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ISSN 2176-4425
EXPEDIENTE
Edição Especial
Museu do Samba
LABHOI/UFF
EDITORIAL
03 Gegê Leme Joseph
LEÁFRICA/UFRJ
PPGH/UFF
Organização
Desirree Reis
uma reinadeira
Ana Luzia da Silva Morais É uma publicação do
Museu do Samba
www.museudosamba.org.br
museu.do.samba
museudosamba
SAMBA EM REVISTA | 1
Musealização da Escravidão e da Cultura Negra
SAMBA EM REVISTA | 3
o desenvolvimento e alcance de rias e para resistir a segmentos nia. Pensa a partir daí sobre “a rica para a redefinição de novas caminhos de uma exposição tura negra foram discutidas, bus-
políticas antirracistas e seus im- da população que se preocupam modernidade negra do samba abordagens de direito à memó- contracolonial na formação de cando entender os diversos pa-
pactos sobre o combate à discri- com a reorientação de poder como um projeto inacabado de ria, justiça e antirracismo. uma reinadeira”, Ana Luzia da péis que protagonistas e aliados
minação racial e étnica no campo que esses movimentos possam busca por direitos no Brasil.” Em “Breve análise da cultu- Silva Morais nos convida a ver podem exercer nos processos de
dos processos de memória. trazer. Relembra também que Em “Passados sensíveis: ain- ra material religiosa africana na a Festa do Rosário, manifesta- musealização. A musealização de
Abrindo esse tema, em é “importante salvaguardar e da “o caso do Bracuí” e a difí- diáspora e sua musealização”, ção religiosa que é uma parcela temas sensíveis, tais como a es-
“Music, Memory and the Bla- reforçar os ganhos que obtive- cil memória do contrabando de Vanicléia Silva Santos explo- da cosmovisão banto de co- cravidão e seus desdobramentos,
ck Diaspora”, Anthony Bogues mos, reconhecendo que eles são africanos escravizados no Rio de ra o uso político da religião munidades afro-brasileiras, a foram analisados com objetivo
nos propõe uma nova leitura incompletos enquanto houver Janeiro”, Hebe Mattos discute católica por africanos e seus partir de uma lente decolonial de ampliar os caminhos de abor-
sobre a história pelo viés da tra- ainda trabalho a ser feito para o aprofundamento no entendi- descendentes para ressignificar para discutir o processo da re- dagem desses temas e favorecer
dição intelectual radical negra, criar igualdade nas sociedades mento histórico sobre a supres- objetos e narrativas cristãs à lação entre tempo e memória, a criação de diálogos e ações de
e nos convida a mergulhar em forjadas no modelo da escravi- são definitiva do contrabando luz de suas próprias tradições. repensando a escrita da His- reparação.
manifestações culturais como dão e do colonialismo.” de africanos escravizados como Vanicléia analisa como o co- tória. Ana Luzia descreve suas Em “Um acervo do samba
a música para acessar proces- Em “Samba, cidadania e mo- tendo sido “depois da aprovação nhecimento das estatuetas de dificuldades de situar o Reina- em primeira pessoa”, Desirree
sos de resistência que contam dernismo: aparando algumas de uma segunda lei de extinção Santo Antônio produzidas por do ou o Congado no univer- dos Reis Santos parte do traba-
uma história alternativa sobre a arestas” Vinicius Natal explora do tráfico de cativos africanos pessoas da região do Congo e so acadêmico, e descreve sua lho da escritora Grada Kilom-
diáspora negra. Explora como possibilidades de modernidade em 1850”. Analisa os impactos da diáspora foi compartilhado jornada, como Rainha Konga, ba para posicionar o Museu do
as experiências humanas de ne- “a partir de agentes que estavam desses entendimentos para o pelas comunidades de africa- em assumir a primeira pessoa Samba como espaço onde a re-
gritude como ser ‘negro em um à margem dos centros decisó- reconhecimento à propriedade nos e seus descendentes entre para construir narrativas histó- presentação de narrativas negras
mundo anti-negro’ produzem rios de poder”, e desse espaço definitiva dos quilombos, e suas as duas margens do Atlântico. ricas. Relembra que o combate em primeira pessoa rompe bar-
ricas ideias e práticas sobre a marginal como lugar de rein- memórias, pelos descendentes Discute também como o co- à discriminação racial e étnica reiras historicamente impostas
vida humana e sua história, e venção. Ao fazer “da margem desta história silenciada. Trata lecionismo dessas estatuetas deve ocorrer também dentro pela presença da lógica colonial.
como estas oferecem caminhos o seu centro”, Vinicius aponta também das desvantagens sociais e sua musealização trazem re- das universidades brasileiras, e Desirree explora o programa de
para discursos e práticas de para a possibilidade de amplia- e psicológicas produzidas pelo flexões sobre como os museus afirma que “nossas memórias depoimentos “Memória das Ma-
liberdade. ção de entendimento sobre a racismo no âmbito das “subje- desvirtuaram a história das po- precisam ser respeitadas e re- trizes do Samba no Rio de Janei-
“formação política e cultural do tividades subalternizadas, enten- pulações submetidas ao colo- conhecidas como um conheci- ro” como uma ação contundente
Em “Dona Zica’s Stove and
país pelas mãos de negros des- didas como trauma,” propondo nialismo e à compreensão dos mento produzido a partir das de visibilização de narrativas in-
the Importance of Memory”
cendentes do pós-abolição”, e a necessidade de “descolonizar seus objetos, com o objetivo de memórias herdadas, das lutas surgentes, questionadoras dessa
Kim D. Butler nos guia em uma
coloca em pauta sujeitos negros narrativas, de imaginar formas justificar o colonialismo. Rea- do tempo presente e pela for- estrutura onde “o racismo atra-
reflexão sobre o processo de
até então silenciados na história de desconstruir e desnaturalizar firma a necessidade de pensar- ma, diferente da colonialidade, vessa e molda as representações
trazer experiências e memórias
nacional. Trata do apagamen- imagens coloniais e escravistas mos estratégias de musealiza- de compreender, ser e estar no da cultura negra em boa parte
negras a espaços públicos des-
to de identidades sofrido pelas no espaço público, sem apagar ção para combater o racismo e mundo”. de nossos museus”. Apresenta
tinados à memória e história
como exercícios de poder em camadas negras da população a memória da injustiça histórica superar antigas representações No segundo dia do Encontro a geração de acervos como ins-
forjar novos moldes para que- como similar ao silenciamento que as engendrou”. Em relato sobre os africanos em todas as foram apresentadas diferentes trumentos de poder e justiça, e a
brar velhas práticas. O direito do papel dos fundadores das sobre o processo de construção sociedades construídas sob o experiências de musealização da valorização da história do samba
à memória como uma luta co- escolas de samba na difusão coletiva do Memorial Passados lastro do tráfico de escravos e escravidão e da cultura negra, no e dos sambistas como uma ope-
mum aos povos da diáspora desses nomes, e seu projeto de Presentes no Quilombo do Bra- da escravidão. Brasil e em países do Atlântico ração de reparação e afirmação
africana nas Américas exige modernidade, e no uso da me- cuí (no litoral fluminense) discu- Concluindo esse tema, o Negro. As disputas pelo prota- da ancestralidade africana.
agência pessoal e social para mória recente da escravidão na te a importância do diálogo entre “Entre o Sagrado e o Intelec- gonismo e pelo direito de narrar Em “O museu somos nós”,
escrever nossas próprias histó- busca pela afirmação de cidada- a tradição oral e a pesquisa histó- tual: O som dos tambores e os histórias da escravidão e da cul- Marilda de Souza nos oferece
Introduction
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a new world – a more humane by centering racial slavery and colo- to be meant no rights. Once the to these forms of refusals and re-
social world, different from the nialism as the forces which shaped indigenous and the Black were sistance. However, if we recall that
• Rule over the vast majority of the population. This rule
anti-black world we currently in- the modern we tell a different story classified as things, as objects and central to the social domination of
was enacted by violence.
habit. The Black radical intellec- about the world. One in which the therefore not human it also meant racial slavery was the “thingfica-
tual tradition similar to all other • Political economy of extraction of the resources of the various Enlightenments of Europe that they could be treated with in- tion” process and that dehuman-
intellectual traditions operates colony. were themselves embedded with- discriminate violence. ization was a necessary part of co-
through a series of questions, • Creation of a social structure based on racial order in in colonial regimes of knowledge. lonial and slave master rule then we
Thus I want to suggest to you
posed by the human experience which indigenous and the black populations were ruled Racial slavery and colonialism were should consider that refusals also
that today when we see the black
of living blackness. I need to be by an ideological and symbolic order system in which they therefore not sideshows to the meant creation of cultural forms –
body, beaten, murdered, mutilated
clear here. I am not arguing for were classified as inferior. main event of making the modern forms in which the humanness of
treated as an object with no rights by
any essentialism, rather I am ar- world they were the main forces the enslaved and colonized would
• Dispossession and often genocide. police or the state – when the black
guing that the historical creation and systems shaping the character be vindicated and expressed. It
body becomes the site of perpetu-
of blackness as a lack, a marked of that modern. is in this cultural world, this sym-
al violence then we should under-
disposable body and within the bolic world that the enslaved and
As we all know one of the key stand its long history. Racial slavery
conventional dominant frame We also know that there were makes it clear that the tremendous colonized sought to recreate a dif-
elements of the modern was the produced black bodies which were
of western thought, politics and various kinds of colonial regimes wealth which allowed Europe to ferent space for themselves in the
way in which the figure of the also double commodified and for
culture as non – human, pro- and that within the Americas, set- become a major economic power everyday. If revolutions and rebel-
human became central both to the enslaved woman she was triple
duced from within these experi- tler colonialism was both a system was because of the wealth created lion were occasions of explosion,
thought and life. Yet, we do not commodified- she was property in
ences a range of questions about of colonial rule and slave society. by enslaved labor on these plan- then within life of the everyday
pay so much attention to how this person; produced commodities and
what it means to be human as This means that Europe’s colonial tations. CLR James the Caribbe- the enslaved and colonized had to
figure of the human emerged pro- was herself sexually a commodity.
well as about life itself and free- project was one of a possessive an historian and political theorist live. Fanon has noted in Black Skin
foundly shaped by the various clas- All of these social processes were
dom. The black radical intellec- violence which generated domina- wrote in his now famous book, White Masks, that human beings
sification schemas. These schemes what the Caribbean poet and think-
tual tradition therefore draws tion and exploitation. In this social The Black Jacobins, that the “fortunes were not just biology but were also
emerged within the context of Eu- er Aime Cesaire called, “Thingfica-
from the questions posed histor- system, might was right. created at Bordeaux, at Nantes, by cultural creatures. The enslaved and
ropean colonial conquests. They tion.”2 Yet social systems of dom-
ically as well as those which ani- the slave trade, gave to the bour- colonized within the realm of the
Embedded within this social were drawn up as comparative ination are never complete, there
mate black life today. geoisie pride …” 1 symbolic world created forms of
system was racial slavery. The trans- ways to understand the figure of are typically aspects of human life
atlantic slave trade forcefully trans- And here is the first fundamen- counter –signification– reworking
Let me give a historical exam- the human. At the heart of these which escape the might of domina-
ported over 12 million Africans to tal point from which the Black rad- the symbolic order of the domi-
ple of what I mean here. I begin schemas for Western thought was tion. So, the enslaved while he or she
the so-called New World of which ical intellectual tradition operates: nant social order. In many African
with the 15th century voyages of how to explain difference? To put might be socially dead, was a living
it is said over 5 million were sent to Racial slavery, European colonial- diasporic communities this meant
Columbus and the so-called dis- it another way the European co- corpse. He/ she spoke and therefore
Brazil, making it the country where ism were the foundations of the the creation of new forms of re-
covery of the New World. These lonial project faced with different had voice and imagination.
the single largest number of en- making of the modern world. This ligious practices. The creation of
voyages opened up the period of groups of humans had to explain
That speech, voice and imagina- new Gods and Spirits. As well it
the modern European colonial slaved Africans lived out their lives shifts the historical focus as well as two things why these groups were
tion moves on the terrain of resis- meant the production of new mu-
project and its various major em- in terror as enslaved beings. This epistemological categories about visually different and on what
tance, refusals, revolt, maroonage sical forms as a popular language.
pires – British, Portuguese, Span- trade in “human commerce” was the so called modern and the mak- grounds could they be conquered
and revolution. In the Brazilian
ish, French and Dutch. There were to establish a plantation system in ing of modernity. In other words, and enslaved? In other words – In the Jamaican case, in the late
context we would see Palmares
of course historical specificities to which sugar, coffee, tobacco and who was human and who was not. 60’s and early 70’s Reggae becomes
1
CLR James, The Black Jacobins (Lon- and various Quilombos as integral
each empire but it is safe to say cotton were key products. The pla- This was central to both politics that popular oral language drawing
don: 1980) p. 47. This book is the
that the European colonial project nation was the factory of its period classic English language historical and culture because to be human 2
For a discussion of this concept see in great part from the counter sym-
and all the historical evidence today account of the Haitian Revolution. It Amie Cesaire, Discourse on Colonial-
had at least four features to it: was first published in 1938. meant that one had rights and not ism, (New York: 2001)
I
dances held in black working-class n the Museu de Samba, there is where. Yet that stove helps write women who provided spaces
practices become part of an histor-
districts. There was no music with- a stove. It is not a marvel of a history of the women who for samba to thrive, long before
ical and living archive? And when Bibliography
out the dance and there was no technology but, rather, a hum- knew how to stretch a meager it was consecrated as a national
we explore that archive what kind
dance without black communities. JAMES, C. L. R. The Black Jaco- ble household stove duplicated pot to feed some extra guests heritage. The stove belonged to
of history will we produce? Are the
bins. 2nd ed., Vintage Books, 1989. many thousand times over in or sell a few dinners to stretch Dona Zica, Euzébia da Silva, the
Of course this music not only historical stories not incomplete
CÉSAIRE, Aimé. Discourse on working-class households every- a family budget. These are the wife and partner of the legend-
sang about systems of oppression without these memories?
Colonialism. New York: Monthly ary samba composer Cartola.
but also provoked memory. From
The Black radical intellectual tra- Women like Dona Zica co-cre-
Burning Spear song “Slavery Days” Review Press, 2000.
to Peter Tosh’s, “Down presser
dition argues that there is the need Until the lions have their own ated samba in a tradition dating
to grapple with the various speech FANON, Frantz. Black Skin,
back to the “tias” (aunties) of the
Man,” many reggae artists invoked
and symbolic practices of the black White Masks. New York: Grove storytellers, the tales of the hunt will nineteenth and twentieth centu-
a black collective memory as histo- Press, 1994.
body as not only refusals but as at-
ry. And this I would submit is a fea- always favor the hunter ries —Tia Ciata and countless
tempts towards making some kind others whose material and moral
of freedom based on a distinctive support was as vital to samba as
3
It is why so many reggae artists were — African proverb
Rastafarians, Bob Marley being the practice of being human. And it the musicians, dancers, and com-
classic figure.
posers. As such, Dona Zica’s
SAMBA, CIDADANIA E
done towards creating equality in
societies forged in the template
of slavery and colonialism. In
the words of Fannie Lou Ham-
er, Dona Zica’s contemporary,
powerful activist for black rights
in the US (and probably the
MODERNISMO: APARANDO
owner of a very similar humble
ALGUMAS ARESTAS
ical component of black social ness in the national identity and
and political movements in Bra- imagination. It matters that the stove), “We who believe in free-
zil, from the literacy classes of National Museum of American dom cannot rest until it comes.”
the Frente Negra Brasileira to the History was led by a black Di- I salute the work of Museu de
black movement’s fight for inclu- rector who questioned narratives Samba, and the many voices it
sionary policies like affirmative that re-inscribed hierarchies of continues to make heard, in this Vinícius Ferreira Natal
action and the Law 10.639. In power. It matters that a cura- conference and every day. Historiador e Antropólogo – LABHOI/UFF
all these initiatives, black people tor can place a mother’s stove
sought the right to counteract in a museum created by a black As reflexões que trago aqui são fruto do esforço que uma série de pesquisadores
Bibliography do samba tem feito em pensar a fundação das escolas de samba como,
the negative representations of woman as part of the story of
também, um marco para a modernidade brasileira. Destaco meu diálogo com
Africa and African descendants the domingueiras and parties that MURCH, Donna. Living for the Mauro Cordeiro, em nossos cursos sobre Pensamento Social do Samba, e com
a professora Martha Abreu, em nossos debates feitos no CULTNA – Cultura
that reinforced their disenfran- helped samba flourish into a na- City: Migration, Education and Negra nas Américas, e no Museu do Pontal, no curso organizado em 2021, com
chisement in society, politics and tional cultural treasure. The right the Rise of the Black Panther o título Arte e Cultura Popular – O que muda quando a perspectiva racial entra
em cena?, juntamente com Ângela Mascelani, e no seminário Ciclo de Debates
the economy. to tell our own stories is part of Party in Oakland, California. – Modernismos, Arte e Cultura Popular, em 2022.
the work of reclaiming the au- Chapel Hill: UNC Press, 2010.
The right to memory is a
tonomy of our bodies and lives
struggle shared throughout the
that defines the culture and pol- ALBERTO, Paulina Laura; AN-
H
African diaspora in the Amer- á 100 anos, um grupo de transformação na cena cultural, rompimento com um passado
itics of the African diaspora in DREWS, George Reid; HOFF-
icas. Our ability to have agency artistas, literatos e intelectuais política e econômica e, dessa que deve ser observado, mas, de
the Americas. NUNG-GARSKOF, Jesse eds.
in the writing of our stories has reuniu-se no Theatro Municipal forma, a ideia de modernidade certa forma, superado. Essa ideia
Voices of the Race: Black Newspa-
come through the work of black Dona Zica’s stove is a polit- de São Paulo, entre os dias 13 e pairava no ar como um debate é presente como um paradigma
pers in Latin America, 1870-1960
movements who have fought ical act and a triumph of black
(Cambridge University Press, 18 de fevereiro, com o objetivo inadiável: afinal, que Brasil se filosófico e nos desafia, até hoje,
not only for representation, but activism. But there will always de pensar o Brasil propondo queria a partir dali? a pensar permanentemente sobre
2022).
also for decision making posi- be a segment of the population novas bases culturais para a o novo. Já o modernismo é visto
RANSBY, Barbara. Ella Baker É bom apontar, desde já,
tions in all sectors. This is clearly that privately worries about the formação de uma identidade como um movimento e corrente
and the Black Freedom Movement: A uma diferença entre os usos,
important in government, but reorientation of power that new nacional. O país, que saíra há intelectual e artística ocorrido
Radical Democratic Vision (Chapel neste texto, de “modernidade”
it also matters who gets to ap- voices are ushering in. To bor- pouco do regime jurídico da na década de 1920, liderado,
e “modernismo”. Entendo a
prove films, television shows, row from the philosophy of Hill, NC: University of North escravidão negra e, um ano majoritariamente, por uma
Carolina Press, 2003), p. 347. ideia de modernidade como um
textbooks, magazine covers and capoeira, the mestre sees the next depois, proclamara a república, elite paulistana. Interessa-nos
paradigma do novo porvir em
other media that situate black- move coming and prepares. It is passava por uma intensa entender tanto a possibilidade
memória do contrabando
2012. de Miranda. A cidade que dança:
clubes e bailes negros no Rio de
CABRAL, Sergio. As escolas de Janeiro (1881-1933). Campinas:
samba do Rio de Janeiro. Rio de Ed. Unicamp, 2020.
Janeiro: Ed. Lumiar, 1996.
de africanos escravizados
SILVA, Marilia Trindade
FRANCESCHI, Humberto M. Barboza; MACIEL, Lygia dos
Samba de sambar do Estácio: 1928 a Santos. Paulo da Portela: traço de
1931. São Paulo: Ed. IMS, 2010. união entre duas culturas. Rio de
Janeiro, Funarte, 1979.
no Rio de Janeiro
GILROY, Paul. O Atlântico Negro.
Modernidade e dupla consciência. SIMMEL, Georg. As grandes
São Paulo, Rio de Janeiro: 34/ cidades e a vida do espírito
Universidade Cândido Mendes (1903). Mana, Rio de Janeiro, v.
– Centro de Estudos Afro- 11, n. 2, Oct. 2005, p. 577-591.
Asiáticos, 2001 [1993].
TAVARES, Alessandra. A
GUIMARÃES, Antônio Sergio. escola de samba “tira o negro do Hebe Mattos
Intelectuais negros e modernidade no local de informalidade”: agências e
Brasil. University of Oxford, associativismos negros a partir Professora Titular Livre do Departamento de História da Universidade Federal
Centre for Brazilian Studies, da trajetória de Mano Eloy de Juiz de Fora (UFJF) e coordenadora do Laboratório de História Oral e Ima-
Working Paper 52, 2003. (1930-1940). Rio de Janeiro: Ed. gem, Universidade Federal Fluminense/UFF e UFJF.
Arquivo Nacional, 2022.
KILOMBA, Grada. Memórias Este texto revisita, com ênfase no caso do Quilombo do Bracuí, alguns dos ar-
da plantação: episódios de racismo VELLOSO, Monica Pimenta. gumentos abordados em minha conferência para ingresso como professora
cotidiano. Rio de Janeiro: Editora As tias baianas tomam conta titular livre no Departamento de História da UFJF.
Cobogó, 2019. do pedaço: espaço e identidade
cultural no Rio de Janeiro.
LATOUR, Bruno. Jamais fomos Estudos Históricos, Rio de Janeiro,
modernos: ensaio de antropologia v. 3, n. 6, 1990.
simétrica. Tradução de Carlos
A questão da escravidão no tempo presente é parcialmente (e talvez crescentemente)
Irineu da Costa. Rio de janeiro: ______. Modernismo no Rio de uma questão de justiça, uma discussão sobre a reparação pelos crimes do passado. A
Ed. 34, 1994 [1991]. Janeiro: Turunas e Quixotes. Rio de emergência das discussões sobre justiça reparatória, como parte de um debate mais
Janeiro: Ed. FGV, 1996. amplo sobre a resolução de injustiças históricas relativas a genocídio, tortura, limpeza
LOPES, Nei. Partido-alto:
étnica, entre outros crimes coletivos, renovou a discussão contemporânea sobre a es-
samba de bamba. Rio de Janeiro,
cravidão no Novo Mundo, para além das abordagens mais correntes sobre diáspora,
Pallas, 2005. racismo, memória e identidade. A questão fundamental da possibilidade de reparação
MATTOS, Hebe Maria. Das – moral, política, cultural e econômica – também ocorre para injustiças históricas
de caráter “sistêmico”, como a captura e o genocídio ameríndio e a escravização de
cores do silêncio: os significados da
africanos no Brasil, Caribe e Estados Unidos. Uma instituição de injustiça não apenas
liberdade no Sudeste escravista perpetrada e usufruída por indivíduos ou mesmo um Estado isoladamente por algu-
(Brasil, século XIX). 3. ed. mas décadas, mas perpetrada por centenas de anos por vários Estados europeus ou
Campinas: Ed. Unicamp, 2020 americanos ilustrados ou baseados em constituições liberais. Uma instituição de injus-
[1995]. tiça que ajudou a criar a riqueza que deu origem às estruturas fundadoras do mundo
contemporâneo [SCOTT; MATTOS, 2014, p. 1].
BREVE ANÁLISE DA
do movimento negro no Brasil. Marambaia (RJ) – 1850-51. In:
In: MATTOS, Hebe (Org.). His- MATTOS, Hebe (Org.). Diáspora
tória oral e comunidade: reparações negra e lugares de memória: a histó-
e culturas negras. São Paulo: Le- ria oculta das propriedades vol-
CULTURA MATERIAL
tra e Voz, 2016. p. 17-48. tadas para o tráfico clandestino
de escravos no Brasil imperial.
SCOTT, David. Omens of adversi-
Niterói: Eduff, 2013. p. 35-60.
ty: tragedy, time, memory, justice.
Durham: Duke University Press,
2014.
Mulher preta do interior de Minas, natural da cidade de Oliveira, neta de Reinadeiros, Rainha Konga de
Nossa Senhora das Mercês e N’dandalunda da Festa do Congo do Reinado de Nossa Senhora do Rosário
e também Rainha Konga de Nossa Senhora das Mercês e Ndandalunda na Festa da Abolição no Inzo
Atim Kaiango ua Mukongo localizado na comunidade Braúnas em Juatuba-MG, tendo como zelador o
Tat’etu Odesidoji e a zeladora Mamet’o Mavuleji, sou também professora de História, cofundadora e
membra da coordenação do Coletivo Encontro de Cultura Afro-Brasileira de Oliveira, membra do GT
Emancipações e Pós-Abolição em Minas, tendo defendido, em fevereiro de 2022, a pesquisa intitulada
Diferentes crenças rezam uma mesma fé – Contemplação do Rosário por uma Rainha Konga em diálogo
com as memórias dos Reinadeiros de Oliveira(MG), pelo Programa de Pós-graduação em História da
Universidade Federal de São João del-Rei (MG) – Linha Cultura e Identidade, com apoio de bolsa Capes.
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ma” e “oposição absoluta do que va-se a instituição referência na Historicamente, as narrativas bistas na geração de novas fontes vaguarda de seus patrimônios bém histórias de seus antepassa-
o projeto colonial predetermi- salvaguarda desses bens cultu- sobre culturas afrodiaspóricas primárias e na salvaguarda dos culturais. dos, o que permite, por exemplo,
nou” (KILOMBA, 2019, p.28). rais, reconhecidos em 2007 pelo são subjugadas nos museus no bens titulados. Pelas recomen- No acervo, há mais de 160 conhecermos territórios e cultu-
Portanto, pode ser considerado Iphan. O passo seguinte foi, a mundo e no Brasil. O museólogo dações do dossiê de candidatura, gravações. Registram-se as me- ras negras que entrelaçam vidas
um ato de descolonização. partir de 2009, a implantação do Marcelo Bernardo da Cunha aprovado em 2007, o alerta era mórias do samba como forma e criações de grandes nomes do
centro de documentação e pes- chama a atenção para o ideal de dado: de expressão na dança, na mú- samba do Rio de Janeiro. Con-
A partir dessa linha de inter-
quisa do Samba Carioca (VA- branqueamento e o imaginário [Faz-se necessária] Formação de
sica, na religiosidade, na poesia, tribui, assim, com diversos estu-
pretação, buscaremos delinear o pesquisadores dentro das diversas
LENÇA, 2009). E uma de suas civilizatório eurocêntrico como na cena. Suas matrizes, seus ri- dos, até mesmo os que procuram
presente artigo como possibili- comunidades de sambistas do Rio
primeiras medidas foi constituir fatores determinantes na produ- de Janeiro para que a coleta, o re-
tos, sua culinária, seus atores, seu identificar lideranças e fundado-
dade de compreender a atuação gistro e a análise dessas formas de
o núcleo de história oral, vol- ção de imagens deturpadas sobre modo de vida. Baianas, passistas, res de escolas de samba, des-
do Museu do Samba: um museu expressão, de seu cenário e sua tra-
tado à criação de documentos a presença negra na sociedade jetória sejam feitas cada vez mais
velhas-guardas, mestres-salas, cendentes da última geração de
criado e dirigido, em sua maioria, pelos próprios atores sociais e seus
audiovisuais que registram, por brasileira nos espaços museoló- africanos e escravizados da re-
por pessoas negras a fim de ins- grupos. Isso atenderá a um an- cozinheiras, presidentas e presi-
meio de entrevistas, histórias de gicos (CUNHA, 2017, p. 78-79). seio de que a sua história possa
dentes (sambistas) de escolas de gião dos Vales do Café do século
titucionalizar espaços de poder, ser contada por eles mesmos,
vida de importantes sambistas O racismo atravessa e molda as samba, compositoras, compo- XIX.6 É possível encontrar falas
de representação e de narrativas valorizando assim vozes mergulha-
cariocas. representações da cultura negra das no cotidiano do fazer e viver o
sitores, porta-bandeiras, funda- de depoentes sobre outros im-
em primeira pessoa, historica- samba no Rio de Janeiro. (IPHAN;
Denominado “Memória das em boa parte de nossos museus. dores de agremiações, filhos de portantes sambistas, que, já fale-
mente negados pela presença da CCC, 2014, p.167. Grifo nosso.)
Matrizes do Samba no Rio de O desenvolvimento do Mu- sambistas memoráveis, ritmistas, cidos, permanecem somente nas
lógica colonial. Para tal análise,
Janeiro”, o programa de depoi- seu do Samba pode ser lido Os efeitos dessa premissa intérpretes. Desde 2009, trajetó- lembranças de algumas gerações
daremos enfoque ao seu Progra-
mentos é uma ação continuada como uma das inúmeras ações, podem ser vistos nos esforços rias como as de Dodô da Porte- do samba. Prestar o depoimen-
ma de História Oral, iniciado no
pelo direito às memórias afro- em cena nas últimas décadas, para documentar as narrativas la, Wanderley Caramba, Nelson to amalgama-se à necessidade de
bojo do processo de patrimonia-
-brasileiras e fortalecimento do voltadas à visibilização de narra- em primeira pessoa no acer- Sargento, Djalma Sabiá, Monar- iluminar mais trajetórias, que não
lização das matrizes do samba
sambista, em perspectiva crítica tivas insurgentes, questionadoras vo, mas também na participa- co, Selminha Sorriso, Laíla, Mes- devem ser esquecidas – ou man-
no Rio de Janeiro.3
à história oficial construída no dessa estrutura. O programa de ção ativa do povo do samba na tre Odilon, Preto Rico, Tião Mi- tidas em silêncio.
À época, o museu chamava-se
Brasil, em que histórias, memó- história oral, aqui analisado, é gestão. Exemplos disso são a quimba, Tiãozinho da Mocidade, São histórias plurais que vão
Centro Cultural Cartola4 e torna-
rias e sujeitos negros foram sis- uma das faces desse propósito. constituição do Conselho do Zeca da Cuíca e de tantos outros colorindo o complexo mosaico
3
Matrizes do Samba no Rio de Janei- tematicamente invisibilizados.
ro, reconhecidas como patrimônio, E, para usarmos as expressões Samba5 e o incentivo para atua- bambas integram as histórias de da cultura política e da história
são o partido-alto, o samba de ter- Pretendemos, com este texto, de Kilomba, busca ter o sambis- ção de sambistas na pesquisa, vida registradas pelo núcleo de do samba do Rio de Janeiro e
reiro e o samba de enredo. Sobre o analisar alguns aspectos nor-
assunto, ver IPHAN; CCC (2014). ta como autor e autoridade de sua na coleta e nos procedimentos história oral do museu. do Brasil. Das múltiplas narrati-
teadores desse programa e seus
4
Em 2001, o Museu do Samba sur- própria história. de consulta pública aos depoi- Um rápido olhar sobre a lis- vas, escolhemos dois depoentes:
ge, no sopé do Morro da Manguei- conteúdos, acreditando ser uma mentos (e ao acervo em geral). mestre Delegado (Figura 1) e
ra, como Centro Cultural Cartola, No processo de patrimoniali- tagem completa desses nomes já
importante contribuição a dar
criado pelos netos do compositor zação das matrizes do samba no
História contada e documen- deixa claros os diferentes marcos Leci Brandão (Figura 2). Sem
e fundador da Estação Primeira de passagem para outros estudos. tada, tendo detentores como
Mangueira. A história da instituição Rio de Janeiro, liderado pelo en- temporais que o acervo abarca. 6
Cartola, fundador da Estação Pri-
tem viradas marcantes, entre elas a tão CCC, esta era a tônica e pre-
protagonistas e agentes da sal- Para seleção dos depoentes, prio- meira de Mangueira, é um deles. So-
implementação do Centro de Refe- Vozes plurais, bre esses estudos, ver Abreu; Mattos;
rência de Pesquisa e Documentação conizava o desenvolvimento de 5
O Conselho é composto por sambis- rizam-se os mais idosos, muitos Agostini (2016), em que o acervo do
do Samba Carioca para constituição múltiplas um centro de memória em que o tas referentes de vários territórios do deles nascidos nas primeiras dé- Museu do Samba foi uma das fontes
e guarda de acervos do samba, bem histórias e dois samba no Rio de Janeiro e tem por consultadas. E, de seus registros, fo-
como sua trajetória, que culmina na povo do samba não se restringi- missão a gestão do plano de salva- cadas do século XX. Facilmen- ram identificados e estudados alguns
passagem de CCC a Museu do Sam- mangueirenses guarda dos bens titulados. Dentre os te se percebem vozes negras nomes, que se referem a esse grupo
ria a objeto, mas seria sujeito do
ba. Momentos da história institucio- conselheiros estão Tia Surica, Selma específico de migrantes negros, tais
nal podem ser vistos em NOGUEIRA; dosamba.org.br/>. Para consulta ao conhecimento. Caberia, pois, ao Candeia, Rachel Valença, Careca do narrando suas experiências nos como Tantinho da Mangueira, Mo-
SANTOS (2019, 2020), MENDONÇA; acervo: <contato@museudosamba. espaço referência criar estraté- Império, Rubem Confete, Martinho diferentes contextos da história narco, Waldir 59, Noca da Portela,
NOGUEIRA; SANTOS (2019). O websi- org.br>. Base de dados phl: <https:// da Vila, Aluísio Machado, Nilcemar Aluísio Machado, Dodô da Portela,
te do museu é <https://www.museu- ccc.phl.bib.br/>. gias para instrumentalizar sam- Nogueira, Zé Katimba, entre outros. política e cultural do país. E tam- Manoel Dionísio e outros.
O museu
só se encontravam ali. Centro de Pesquisa e Forma- seu do Samba: registrar para sal-
Documentar histórias de vida ção. n.5, p. 78-88, set. 2017. vaguardar. XV ENECULT. Sal-
AMADO, Janaína, FERREIRA,
somos nós
de sambistas é, nesse sentido, vador, Bahia: 2009.
entender a geração de acervos Marieta de Moraes (Org.). Usos SCHEINER, Tereza. Museolo-
como instrumentos de poder & abusos da história oral. Rio gia e interpretação da realidade:
e justiça. E perceber que o re- de Janeiro: FGV, 2006. o discurso da História. In: Sym-
conhecimento da história do IPHAN; Centro Cultural Car- posium Museology as a field
samba e dos sambistas, como tola. Dossiê das Matrizes do of study: Museology and His- Marilda de Souza Francisco
parte fundamental da história Samba no Rio de Janeiro. Bra- tory. ICOM/ ICOFOM. ICO-
do Brasil, é uma das operações sília, DF: Iphan, 2014. FOM STUDY SERIES – ISS 35. Quilombola, coordenadora da Associação dos Remanescentes do Quilombo
de Santa Rita do Bracuí (Arquisabra), representante do quilombo no Conselho
mais importantes de reparação KILOMBA, Grada. Memórias Alta Gracia, Cordoba: 2006. Municipal de Promoção de Igualdade Racial de Angra dos Reis (COMPIR) e do
e de afirmação da ancestralidade SOUZA, Neusa Santos. Tornar- Fundo de Meio Ambiente de Angra dos Reis.
da plantação: episódios de
africana. Invisibilizadas por uma racismo cotidiano. Trad. Jess -se negro. Rio de Janeiro: Ed. Palestra de Marilda de Souza Francisco, no I Encontro Internacional Samba,
estrutura racista, essas narrativas Graal, 1983. Patrimônios Negros e Diáspora, transcrita por Carolina Machado dos Santos.
Oliveira. Rio de Janeiro: Ed.
passam a ocupar mais espaços de “Oi, gente, presta atenção
Cobogó, 2019. VALENÇA, Rachel. Pontão de
representação (e de representati-
vidade), sendo sua salvaguarda
LIESA. Livro Abre-Alas 2022.
Sexta-feira. Rio de Janeiro:
Memória do Samba Carioca.
Samba em Revista. Rio de Ja-
na história que vou
contar. Deitei minha
E ste aí é o rio Bracuí (Figura1).
Foi para ele que eu cantei,
saudando o rio. Bem lá para as
para dizer qual a extensão do
Quilombo, que é desde a divisa
de Bananal, em São Paulo, até
alinhada à perspectiva de mu- neiro, Centro Cultural Cartola,
sealização da cultura negra como
Liga Independente das Escolas cabeça na cabeceira do rio, montanhas tem a cabeceira do o mar. O rio Bracuí corta o Qui-
de Samba no Rio de Janeiro Ano 1, n.2, 2009.
ato de descolonização. mas o pé está lá no mar. rio e ele deságua no mar. Então, lombo no meio: para um lado
(LIESA), 2022. Disponível quando as pessoas chegam aqui tem Quilombo e para o outro
em: <https://liesa.globo.com/ Eu deitei minha cabeça e perguntam qual a extensão do também tem. Se a gente quiser ir
carnaval/livro-abre-alas.html>. na cabeceira do rio, mas o Quilombo, eu canto esse pon- para um lado, tem que atravessar
pé está lá no mar.” to de jongo, que fui eu que fiz, o rio para passar.
Figura 13: Acervo pessoal Martha Figura 15: Foto Guilherme Hoffmann/Acervo LABHOI Figura 17: Foto Guilherme Hoffmann/Acervo LABHOI Figura 18: Foto Guilherme
Abreu. Hoffmann/Acervo LABHOI
O
o nome dele. Ele era José, então acharam que não era para a gente s movimentos sociais têm visto que, no auge dos debates pos e rompem com narrativas e
fez a igreja de São José. E a igreja ficar falando disso. No Quilom- enfatizado a responsabili- sobre história pública, os museus imagens racistas. Histórias que
de Santa Rita, que tem, na verda- bo de Santa Rita do Bracuí já tem dade dos museus em remodelar se tornaram fontes importantes eram silenciadas nas escolas e
de, só o altar e a imagem, porque muita gente de fora e eles acham suas exibições constantemente, de informações sobre o passado. em outros espaços de poder.
a mulher dele era Maria Rita e era que ficar falando da história ne- a fim de se envolver de forma Para transmitir ancestralidade e
Nesse sentido, museus têm
devota de Santa Rita. gra é como se estivesse tirando significativa e ética com as mu- tudo mais que consideravam dig-
sido historicamente edificados
eles daqui. Então, muitas placas danças nas percepções da his- no de ser rememorado, ao longo
Vocês veem que tudo se liga pelo movimento negro na diás-
foram quebradas e arrancadas, tória da sociedade. O objetivo dos séculos XIX e XX o movi-
sempre ao povo branco, mas é pora para educar para o antirra-
mas algumas ainda estão nesses seria refletir sobre as demandas mento negro tem lançado mão
bom a gente falar isso porque cismo, através da emergência de
lugares localizados por nós, em sociais e facilitar o diálogo com de estratégias como a publicação
fica conhecendo a história e con- suas histórias. Histórias de luta,
conjunto com o pessoal da UFF, o público de forma inovadora e de biografias de afro-brasileiros
segue, assim, levar a memória mas também de alegria. Histó-
como pontos de memória. respondendo às questões atuais, considerados ilustres em jornais
ao povo. Meu pai guardou essas rias que superam os estereóti-
de História Afro-americana em se destacavam por incentivar dos negros das narrativas histó-
Museu Afro Brasil - Foto Jessika De acordo com os arquivos identidade nacional, por meio de
Rezende Chicago, fundado em 1961, o uma identidade e consciência ricas nacionais tradicionais, as
Museu Afro-americano Interna- exclusivamente negras por meio profundas desigualdades raciais do Núcleo de Memória do MAB, várias manifestações culturais”.
da imprensa negra, além das ten- cional de Detroit, em 1965, e o de exposições e programas edu- e as mobilizações de movimen- o projeto de construção, em São Elencando como missão
tativas de inserir a história e a Museu Comunitário de Anacos- cacionais, e enfatizaram a neces- tos sociais na luta contra o racis- Paulo, de um museu dedicado à promover o reconhecimento,
cultura afro-brasileira nos currí- tia em Washington, no ano de sidade vital de interação entre mo e a discriminação racial. Nes- memória afro-brasileira existia valorização e preservação do
culos da educação básica. 1967. o museu e a comunidade negra se sentido, a seguir relataremos desde dezembro de 1987, época patrimônio cultural africano e
No Rio de Janeiro, os mem- local. alguns aspectos das trajetórias e das comemorações do centená- afro-brasileiro e sua presença
Nesse movimento transnacio-
bros da Irmandade de Nossa Se- narrativas inscritas nos referidos rio da abolição da escravatura. na cultura nacional, o acervo da
nal, essas diferentes instituições Colocar em diálogo as expo-
nhora do Rosário e São Benedito museus.2 Mas somente em 2003, com instituição aborda temas como a
tinham em comum o financia- sições do primeiro museu nacio-
dos Homens Pretos guardavam Martha Suplicy à frente do go- religião, o trabalho, a arte, a es-
mento e a organização promo- nal dedicado à experiência afro-
verno municipal de São Paulo,
nos porões da igreja homônima vidos por ativistas e líderes co- -americana, o National Museum Museu Afro Brasil e cravidão, entre outros, ao regis-
artefatos oriundos das fugas do o museu saiu do papel. O Mu- trar a trajetória histórica e as in-
munitários, coleções geralmente of African American History National Museum
cativeiro e das ofertas dos fiéis, seu Afro Brasil trazia em suas fluências africanas na construção
provenientes de contribuições and Culture (NMAAHC), criado
que usavam para lembrar as lu- da comunidade local e doações
of African American exposições mudanças radicais da sociedade brasileira. O mu-
na forma de representar o ne-
tas por liberdade. Alguns anos de outras organizações culturais History and Culture: seu foi construído no Pavilhão
mais tarde, tais objetos passaram gro, ligadas ao fortalecimento de Padre Manoel da Nóbrega no
e, principalmente, o conteúdo de trajetórias e
a integrar o acervo do Museu do políticas públicas de combate às Parque Ibirapuera, sendo com-
suas coleções, que ofereciam uma
Negro, o primeiro museu focado refutação à narrativa de invisibi-
compromisso com desigualdades raciais e das ações posto por três ambientes: África:
afirmativas. Segundo Ana Lúcia
na experiência afro-brasileira do lidade e marginalização praticada a história negra Diversidade e Permanência,
país, fundado em 1969. Lopes (2010, p.7), tratava-se de Trabalho e Escravidão, As
pelos museus tradicionais no que
um novo tipo de patrimônio cul- Religiões Afro-Brasileiras, O
Anos depois foi criado o Mu- diz respeito à presença e à agência
tural, inédito até aquele momen-
seu Afro-Brasileiro, em 1976, histórica dos negros.
2
As informações a seguir são parte Sagrado e o Profano, História e
dos resultados da pesquisa de dou- to, na tentativa de “recuperar em Memória, Artes Plásticas: a Mão
em Sergipe, seguido pelo Museu Os museus dedicados às his- torado realizada entre 2017 e 2021
profundidade a memória da po-
Afro-Brasileiro (MAFRO), inau- com bolsa CAPES-Programa Abdias Afro-Brasileira.3
tórias africana e afrodescendente do Nascimento. O título da tese é His- pulação negra, sub-representada
gurado em 1982 em Salvador, e o na diáspora, que aqui chamamos tórias de luta dos negros: narrativas
no imaginário social, em termos
Museu Afro Brasil, cuja criação históricas e antirracismo no Museu 3
Um breve roteiro e imagens de par-
Afro Brasil e no National Museum of de legitimidade e prestígio, e que te do acervo exposto nesses núcleos
se deu no ano de 2004 em São 1
Em 2001, surge o Centro Cultural Museu Afro Brasil - Foto Jessika African American History & Culture, está disponível on line no site do Mu-
Rezende se encontra, ao mesmo tempo,
Paulo. Mais recentemente, no Cartola, que passa a se chamar Mu- disponível em <tJessika Rezende Sou- seu Afro Brasil: MuseuAfroBrasil – Ex-
seu do Samba em 2016. za da Silva.pdf (ufrj.br)>. reconhecida como símbolo de posições de longa duração.
TURISMO HISTÓRICO E
a prova disso é que elegemos um National Museum of African
presidente afro-americano”. American History and Culture.
Os acervos expostos no In: ADEN, Roger. C. US public
NMAAHC e no MAB se estru- memory, rhetoric, and the National
turam em bases similares, como
o papel da escravidão na forma-
ção do estado nacional e a cultura
Mall. Lexington Books, 2018
BURNS, A. Andrea. From store-
front to monument: Tracing the
RACISMO COTIDIANO:
como espaço de luta e resistência.
FAZENDAS ESCRAVAGISTAS
pois ambas tratam de processos
de memoire” na França contemporâ-
históricos protagonizados pelas
nea: entre a memória, história, le-
populações negras no mundo
gislação e direitos. Rio de Janei-
e reconhecem que a escravidão
ro: CPDOC, 2006.
forçou o contato e o intercâmbio
Iohana Brito de Freitas
entre membros de diferentes na- LOPES, Ana Lúcia. A dimensão
ções e produziu as mais diversas educativa do Museu Afro Brasil. Mestre em História Social pela Universidade Federal Fluminense e doutoranda
Catálogo do Museu Afro Brasil. São em História Social da Cultura pela PUC-Rio. De 2019 a 2021 foi aluna visitante
formas de negociação entre as
no Lemann Institute for Brazilian Studies da University of Illinois at Urbana-
culturas de opressores e oprimi- Paulo: J.Safra Instituto Cultural, Champaign.
dos, bem como de resistência à 2010.
dominação que tais culturas lhes PEREIRA, Amílcar Araujo. Bla-
“Bom dia, bem-vindos à Fazenda Santa Eufrásia.
impõem na diáspora. ck Lives Matter nos currículos?
Imprensa negra e antirracismo C om estas palavras, trajan-
do roupas que remetem ao
imaginário dos barões oitocen-
Vocês estão vindo do Rio de Janeiro?
em perspectiva transnacional.
Referências bibliográficas
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ARAÚJO, Emanoel. Negras me- localizada em Vassouras – RJ,
A Fazenda Santa Eufrásia partir da escravidão e de grandes
mórias, o imaginário luso-afro- inicia a visita guiada registrada
integra o episódio destinado à propriedades rurais com produ-
-brasileiro e a herança da escra- em um dos vídeos da série Ha-
“Casa de Fazenda”, que se de- ção voltada para exportação.
vidão. Estudos Avançados, nº18, bitar Habitat, dirigida por Paulo
2004. bruça sobre o Vale do Paraíba, Construída por volta de 1830,
Markun e Sérgio Roizenblit, da-
referenciando os tempos em de propriedade do comendador
tada de 2013, com exibição pelo
que a região era conhecida pelo Ezequiel de Araújo Padilha, a
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Pós-doutorado sênior do CNPq, em Museologia, pelo PPGPMUS/Unirio-Mast, entre
liv101681_informativo.pdf>. 2018 e 2020. Foi pesquisadora no Museu Histórico Nacional por mais de 20 anos, ins-
Acesso em: 21/06/2021. tituição que dirigiu entre fevereiro e julho de 2022. Atualmente é docente no Museu
Paulista da USP.
MARQUESE, Rafael. Capitalis-
mo, escravidão e a economia ca-
feeira do Brasil no longo século
O
XIX. Sæculum – Revista de His- Museu Histórico Nacional, da educação nacional, para in- Que lugar ocupam os africanos
tória, Dossiê História e História
instituição que completou cluir no currículo oficial da rede e afrodescendentes no Museu
Econômica, n. 29, 31 dez. 2013,
p. 289-321. cem anos em 12 de outubro de de ensino a obrigatoriedade Histórico Nacional?
MBEMBE, Achille. Necropolí- 2022, tem passado por um pro- da temática ‘História e Cultu- A proposta do presente arti-
tica: biopoder, soberania, estado cesso de autocrítica, questionan- ra Afro-Brasileira e Indígena’”.1 go, inspirado em minha partici-
de exceção e política da morte. do suas práticas e representações 1
BRASIL. Ministério da Educação. Lei pação no I Encontro Internacio-
São Paulo: n-1 edições, 2018. do passado, construídas ao longo nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. nal Samba, Patrimônios Negros
MIRANDA, Ana Carolina Ne- de sua trajetória. Uma pergunta, Diário Oficial da União, Brasília, DF,
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especificamente, tem mobilizado bit.ly/3j63i3S>. Acesso em: 28 jun. essa pergunta, a partir da análise
Santa Eufrásia, Vassouras (RJ).
pesquisas e reflexões, tendo por 2021. BRASIL. Presidência da Repú-
Ouro Preto, 2014. blica. Casa Civil. Lei nº 11.645, de 10 de parte do atual circuito exposi-
base a Lei 10.639/2003, modi- de março de 2008. Diário Oficial da tivo do MHN. Pretendemos, as-
ficada pela 11.645/2008, “que União, Brasília, DF, 11 mar. 2008. Dis-
ponível em: <https://bit.ly/37fqU36. sim, compartilhar um pouco da
estabelece as diretrizes e bases Acesso em: 28 jun. 2021>.
SAMBA EM REVISTA | 99
como o Memorial Zumbi dos Neste texto, considerando ral brasileira e, em particular, a logia de patrimônio e ressaltando em profissionais, como historia- tombamento do terreiro, assim
Palmares, em Alagoas – primeiro um percurso de cerca de qua- de preservação do patrimônio a importância fundamental, no dores, antropólogos e sociólo- como seus argumentos, mos-
produto da articulação de movi- renta anos, tentaremos avançar histórico e artístico, cujas raí- processo de patrimonialização, gos, mais aptos a lidar com esses tra a disputa que se instalou na
mentos sociais negros e o antigo no entendimento das principais zes legais e técnicas remontam da participação ativa e informada universos culturais (CHUVA, instituição em torno da própria
sistema Sphan/Pró-Memória1 –, dificuldades enfrentadas para à França do século XIX e cujo dos sujeitos detentores e produ- 2017). Ainda que insuficiente- narrativa histórica do país. Não
e de iniciativas de patrimoniali- o reconhecimento e tratamen- foco, por excelência, era (e, la- tores de bens culturais como este mente, promoveram em seu seio foi por outra razão que, quando
zação de locais e bens represen- to adequado desse patrimônio mentavelmente, ainda é) a mate- e de uma base social mais ampla uma abertura conceitual e um finalmente o processo chegou ao
tativos da cultura afro-brasileira, e dos desafios atuais para a sua rialidade dos bens culturais, por comprometida com sua defesa arejamento técnico-profissional. Conselho Consultivo do Iphan,
como o Quilombo dos Palma- preservação. Tarefa complexa sua vez abordada principalmente e preservação.3 Nesse sentido, o No momento dos tomba- a decisão pelo tombamento foi
res, na Serra da Barriga (AL), e e difícil, uma vez que estamos em aspectos estéticos e artísticos processo indicou pioneiramente mentos da Casa Branca e do Qui- dividida e exigiu o voto de mi-
o Terreiro da Casa Branca do falando de um patrimônio que, igualmente fundamentados em a centralidade do que chamamos lombo dos Palmares, o Iphan, a nerva do então presidente da
Engenho Velho, em Salvador como já havia sido apontado por noções europeias. O segundo, o hoje de sustentabilidade social despeito dos diversos estudos instituição, o pernambucano
(BA), respectivamente em 1984 Joel Rufino dos Santos (SAN- enfrentamento de uma concep- para a preservação de patrimô- sociológicos e etnográficos que Marcos Vilaça.
e 1986. É possível afirmar, com TOS, 1997, p. 5-9), não se dis- ção positivista de História, que nios culturais. A ampla mobili- marcaram o início de sua atuação A intensa luta de mais de dois
isso, que a luta pelo reconheci- tingue fundamentalmente do conduzia a uma atribuição de zação social aglutinada ao longo nos anos 1930 e dos esforços de anos por esse reconhecimento
mento da contribuição histórica patrimônio cultural do país. Os valor articulada a grandes acon- desse processo de tombamento, abertura realizados no âmbito necessita, a meu ver, ser consi-
e cultural negra teve então uma símbolos nacionais do futebol tecimentos e figuras da história que ultrapassou as fronteiras da da Fundação Nacional Pró-Me- derada nas críticas contempo-
primeira vitória, reforçada, em brasileiro, representado pela fi- oficial, calando outras vozes e Bahia, tornou esse terreiro, jun- mória, era bastante impermeá- râneas às falhas conceituais e
1988, pela criação da Fundação gura do Pelé e de vários outros apagando as complexidades do tamente com o Quilombo dos vel ao reconhecimento de bens às lacunas que são passíveis de
Cultural Palmares. Contudo, po- jogadores negros, e do samba as- processo histórico. Embora já Palmares, um símbolo da luta e sítios aos quais um valor ar- verificação no processo de pa-
de-se também reconhecer que sim o atestam. francamente questionada no âm- pelo reconhecimento do lugar tístico, urbanístico, paisagístico trimonialização da Casa Branca
esta foi uma pequena e insufi- Nos anos 1980, quando o pa- bito do próprio Iphan durante os dos egressos da escravidão e de e/ou histórico, referenciado na – processo que acabou se tor-
ciente vitória, pois a próxima trimônio cultural se tornou uma anos 1980, essa concepção ainda seus descendentes na construção cultura europeia ou, no máxi- nando uma referência para os
iniciativa dessa natureza teve lu- importante arena para a afirma- prevalecia na patrimonialização da história e da sociedade brasi- mo, luso-brasileira, não estives- que vieram depois (ver a respei-
gar mais de dez anos depois – o ção do papel de grupos étnicos de bens culturais. leira. se evidente. Ao lado disso, não to VELAME, 2011). O pionei-
tombamento do Terreiro do Axé na história e na formação da O processo de tombamento Entre outros bens culturais havia conhecimento acumulado rismo dessa iniciativa e a enor-
Opô Afonjá, de Salvador (BA), sociedade brasileira, as citadas do Terreiro da Casa Branca pode não consagrados que forçaram sobre o universo cultural afro- me resistência institucional que
em 1999 – e, até os dias atuais, iniciativas de tombamento do ser definido como uma ação que sua entrada no espaço de ação -brasileiro, ainda visto de forma teve de enfrentar, obviamente,
a parcela de bens culturais afro- Quilombo dos Palmares e do consolidou a noção de patrimô- do Iphan e abalaram os seus pi- preconceituosa. Prova disso foi não deixaram espaço para con-
-brasileiros reconhecidos como Terreiro da Casa Branca já colo- nio afro-brasileiro no país e que lares tradicionais nos anos 1980, a incapacidade de figuras impor- siderações sobre a relação do
patrimônio nacional é pequena cavam claramente as principais enfrentou, de modo exemplar, os terreiros de candomblé e os tantes da instituição de sequer terreiro com outros lugares de
e muito aquém de representar questões e desafios a enfrentar essas questões, colocando ainda quilombos destacam-se entre os reconhecerem as edificações da culto existentes na cidade, si-
a grandeza e importância dessa no processo de patrimonializa- em evidência a necessidade de “novos objetos” e “novos pro- Casa Branca como arquitetura, tuados fora do seu terreno. O
contribuição. ção de bens culturais afro-bra- uma nova abordagem teórico- blemas” que promoveram “no- conforme está registrado em de- máximo que se conseguiu foi
sileiros. Em primeiro lugar, o -metodológica e técnica para a vas abordagens” na instituição, poimentos da “Mesa Redonda – recuperar a área denominada de
1
O sistema Sphan/Pró-Memória foi rompimento com a “fixação gestão e conservação dessa tipo- levando-a a se renovar e investir Tombamento”, publicada no n° Praça de Oxum, que havia sido
implantado em 1979, com a criação
da Fundação Nacional Pró-Memória, eurocêntrica”2 da política cultu- 3
Envolveram-se nessa demanda de 22, p.76, da Revista do Patrimônio
então o braço executivo da antiga Se- Sociedade Nacional, no âmbito do tombamento importantes atores so- de 1987.4 A reação contrária ao Casa Branca, você tem que justificar
cretaria do Patrimônio Histórico e Ar- 2
Essa expressão foi tomada de em- qual ocorreram as iniciativas de tom- ciais, como lideranças religiosas, or- o que está tombado», Sônia Rabello,
tístico Nacional (Sphan). Esse sistema préstimo de Olympio Serra, antropó- bamento do Quilombo dos Palmares ganizações antirracistas e de defesa 4
Respondendo à questão colocada então assessora jurídica do sistema
foi desfeito em 1990, quando o go- logo que, nos anos 1980, atuou como e do Terreiro da Casa Branca (ver de direitos civis, além de intelectuais, por Dina Lerner, então arquiteta do Sphan/Pró-Memória, responde: «De
verno Collor extinguiu essa fundação. coordenador do programa Etnias e SANT’ANNA, 2020). artistas e políticos baianos. INEPAC, «Quando você tomba uma fato nada. Só tem espaço lá».
A musealização de um
ao turismo, o alcance dessa meta Nacional, n. 35, 2017, p. 79-103.
fica ainda mais difícil, inclusive MATOS, Denis Alex Barboza
diante da urgência de defender de. A Casa do Velho: o significado
o que se conseguiu a duras pe- da matéria no candomblé. Salvador:
do Rio de Janeiro
Paulo: 34, 2007.
da política de preservação e sal-
vaguarda. Com esse revés, tor- SANT’ANNA, Marcia. O pro-
na-se ainda mais complexa a su- jeto MAMNBA: contexto polí-
peração desses obstáculos, assim tico institucional, desdobramen-
como ainda maiores os desafios tos conceituais e técnicos. In: Nilcemar Nogueira
que os organismos públicos de Anais do Museu Paulista, São Pau-
Fundadora do Museu do Samba, mestra em Bens Culturais (FGV) e doutora em
preservação têm pela frente com lo, Nova Série, vol. 28, 2020, p.
Psicologia Social (UERJ).
relação ao justo e necessário re- 1-17. d2 e 29.
conhecimento e valorização do SANTOS, Joel Rufino dos. Cul-
patrimônio afro-brasileiro. Um turas Negras, Civilização Brasi-
A
dos maiores e mais urgentes é, leira. Revista do Patrimônio Histórico presentar a história do sam- nhos, sentimentos, culturas, lu- dos excluídos, aqueles cuja histó-
sem dúvida, o da ampliação das e Artístico Nacional, n. 25, 1997, p. ba como forma de expres- gar onde acervos ganham forma ria ficou de fora da oficialmente
ações de identificação e de reco- 5-9. são é dar conhecimento do pro- a partir de objetos, sons e ima- narrada.
nhecimento dessas referências
VELAME, Fábio Macêdo. As cesso criativo do povo negro em gens que abrigam e que ligam os As culturas de matrizes afri-
culturais no território nacional,
lacunas nos tombamentos de diáspora, da construção de uma tempos passado, presente e futu- canas contribuíram substan-
em toda a sua grandeza e diver-
terreiros de candomblé. In: identidade nacional, mas é tam- ro. No Brasil, a criação de mu- cialmente para a construção do
sidade.
GOMES, Marco Aurélio A. F.; bém apresentar uma tragédia que seus tem início no século XIX; patrimônio imaterial brasileiro,
CORRÊA, Elyane L (orgs). Re- ainda deixa marcas na história contudo, só houve um boom no uma cultura vibrante, rica, múl-
conceituações contemporâneas do pa- brasileira – da diáspora de mais século XX. Iniciados pela elite tipla e diversa, mas essa diversi-
Referências de quatro milhões de africanos culta para reforçar e transmitir
trimônio. Salvador: EDUFBA, dade não foi devidamente con-
2011, p. 199-230. para o Brasil, que destruiu laços seus valores, nenhum deles con- templada na historiografia oficial
BASTIDE, Roger. Estudos comunitários, fragmentou iden- templou a história e a contribui- e espaços de memória da cidade
afro-brasileiros. São Paulo: Editora tidades. O ato de pensar a mu- ção dos negros na construção do do Rio de Janeiro, ou mesmo do
Perspectiva, 1983. sealização de um patrimônio ne- patrimônio brasileiro material e Brasil. A falta de representativi-
gro é acima de tudo uma forma imaterial. No final do século XX dade, a reivindicação de direito à
de buscar sentido de valor. emergem movimentos sociais memória, o desejo de celebração
Museus, em geral, são lugares com uma nova agenda de co- da herança africana fez nascer
onde se guardam histórias, so- brança pelo direito da memória em 2001 o Centro Cultural Car-
cultura afrodiaspórica
mente os órgãos federais, pos-
e caxambu, uma parceria com para que se possa avançar como sam olhar mais para os municí-
a UFF e o Iphan para contar a detentores. Não adianta nada pios, porque dificilmente essas
nossa história através de vídeos, preservar a manifestação e estar políticas chegam até as comuni-
de relatos e de livros. Foi criado perdendo os nossos detento- dades, até a ponta, ficam mais na Martha Abreu
muito material sobre os jonguei- res, como nós perdemos vários capital. Precisamos que parcei- Professora titular do Instituto de História UFF.
ros, com os professores da UFF mestres, de várias manifestações, ros de comissões dentro desses
e os técnicos do Iphan. Isso para com a covid. E mesmo com ou-
E
órgãos olhem com mais carinho ste texto foi produzido para chegada, variáveis que permiti- Américas aproximaram-se em
nós foi de suma importância, tras doenças, porque a maioria para que as comunidades sejam minha apresentação no 1º ram constantes renovações das muitos aspectos. Para além de
porque quem passou por essa es- dos nossos mestres no final da atendidas, sejam capacitadas, Encontro Internacional, Samba, tradições, em meio a novas con- fugas, revoltas e quilombos, fo-
cola vai levar esse conhecimento vida não tem como se sustentar. porque é desse tipo de política Patrimônios Negros e Diáspora, figurações e interações com os ram fundamentais a organização
para o resto da vida. Procuramos Então, a gente precisa trabalhar que necessitam as nossas mani- realizado no dia 21 de outubro que tinham chegado antes. Nos de famílias, associações culturais
multiplicar.1 a questão da lei dos mestres, a lei festações culturais. Elas são tão de 2021. Faz parte de uma refle- intensos intercâmbios culturais, e religiosas, festas e a criação de
Agora estamos passando por da cultura viva, a nossa lei griô. lindas e feitas com todo o cari- xão maior que tenho procurado mesmo que desiguais e violen- estratégias de humanização, es-
esse momento difícil, está difícil Essas leis são para garantir que nho, com todo o amor, mas de desenvolver a respeito da histó- tos, entre africanos, indígenas e pecialmente no campo artístico
para todo mundo, mas o nos- um mestre continue passando uma forma muito difícil, com ria das lutas dos africanos e seus colonizadores, criava-se sempre e musical.
so trabalho continua. O jongo seu saber, para que ele no final muito sacrifício. É muito árdua a descendentes por direitos no algo novo em diálogo com as Em outros termos, podemos
é vida. E a gente luta pela vida, da vida tenha pelo menos o su- nossa luta. campo cultural. tradições. acionar a expressão que Lélia
pela sobrevivência, pela história ficiente para os remédios e a ali-
mentação. Pensar em cultura afrodias- Entretanto, deve-se levar em Gonzalez definiu como “ame-
principalmente. Então, é funda-
pórica é levar em conta as vá- conta que, mesmo com línguas fricanidade”. A partir da forçada
mental que os órgãos, principal- Nosso trabalho é sempre
rias Áfricas que se recriaram nas diferentes e escolhas religio- diáspora africana nas Américas,
fundamentando a importância
1
Sobre o trabalho do Pontão de Américas. Ao longo de quatro sas variadas, as lutas contra a presencia-se uma construção
de trabalhar os detentores. É
Cultura do Jongo e Caxambu, ver séculos, foram muitos lugares de escravização, o racismo e a do- diária e tática contra a domina-
<http://observatoriodopatrimonio. muito importante a gente pre-
com.br/site/index.php/itens-de-pa- origem e diferentes tempos de minação em várias partes das ção e de profundo dinamismo
servar a vida do mestre, manter
trimonio/jongo>