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Dezembro de 2022 | Ano 14 | Nº 13

ISSN 2176-4425

EXPEDIENTE
Edição Especial
Museu do Samba
LABHOI/UFF
EDITORIAL
03 Gegê Leme Joseph
LEÁFRICA/UFRJ
PPGH/UFF

Organização
Desirree Reis

Diáspora, Direito à Memória e Antirracismo Diretor Executivo


Museu do Samba
Djalma Luiz de Carvalho Moreira Júnior

11 Music, Memory and the Black Diaspora


Anthony Bogues
Jornalista Responsável
Nilcemar Nogueira
Reg. Nº 24992 - RJ
15 Dona Zica’s Stove and the Importance of Memory
Kim D. Butler Conselho Editorial
Martha Abreu
Mônica Lima
19 Samba, cidadania e modernismo: aparando algumas arestas Nilcemar Nogueira
Vinicius Natal Gegê Leme Joseph
Desirree Reis
Vinicius Natal
29 Passados sensíveis: ainda “o caso do Bracuí” e a difícil
memória do contrabando de africanos escravizados no Rio Arte Capa / Contracapa
de Janeiro Mulambö
Hebe Mattos
Capa - Série G.R.E.S. : Futuro
Contracapa - Série Mar: Maré
37 Breve análise da cultura material religiosa africana na diás-
pora e sua musealização Revisão
Rachel Valença
Vanicléia Silva Santos
Programação Visual
49 Entre o Sagrado e o Intelectual: o som dos tambores e os
caminhos de uma exposição contracolonial na formação de
Ricardo Bogéa | artifices.com.br

uma reinadeira
Ana Luzia da Silva Morais É uma publicação do
Museu do Samba

Rua Visconde de Niterói, 1296


Rio de Janeiro - RJ - CEP 20943-001
(21) 3234.5777
contato@museudosamba.org.br

www.museudosamba.org.br

museu.do.samba
museudosamba

SAMBA EM REVISTA | 1
Musealização da Escravidão e da Cultura Negra

61 Um acervo do samba em primeira pessoa


Desirree dos Reis Santos

O museu somos nós


69 Marilda de Souza Francisco

75 Entre superação e reparação: olhares sobre escravidão em


museus negros na diáspora
Jessika Rezende Souza da Silva
EDITORIAL
Gegê Leme Joseph
Turismo histórico e racismo cotidiano: o passado como devir
83 em fazendas escravagistas
Iohana Brito de Freitas

91 Violência e Folclorização: a musealização da escravidão e da


cultura negra no Museu Histórico Nacional
Aline Montenegro Magalhães
O I Encontro Internacional
Samba, Patrimônios Negros
e Diáspora aconteceu entre 20 e
pora apresentou-se como um es-
paço de debate multidisciplinar
de modo a contemplar temáticas
3. Patrimonialização da
Cultura Afrodiaspórica (22 de
outubro)
22 de outubro de 2021 como uma como escravidão, passados sen- Com esses temas, buscou-
parceria entre Museu do Samba, síveis, sociedades pós-coloniais, -se afirmar o direito às memó-
o LABHOI/UFF, LEÁFRICA/ descolonização, reparação, histó- rias negras como imperativo da
Patrimonialização da Cultura Afrodiaspórica
UFRJ e o PPGH/UFF. ria do racismo, lugares de memó- equidade, inclusão, justiça social
Em 9 de julho de 2021, o Sítio rias negras e culturas afrodias- e combate ao racismo. E, ainda,
A patrimonialização de bens culturais afro-brasileiros:
99 percursos e pedras no caminho Arqueológico e Histórico do Cais póricas. Reuniu detentores de reconhecer o protagonismo de
Márcia Sant’Anna patrimônios culturais, lideranças
do Valongo, situado na área por- detentores nos processos de me-
A musealização de um patrimônio negro – o samba do religiosas, especialistas nacionais
105 Rio de Janeiro
tuária do Rio de Janeiro, come- morialização, patrimonialização
morou quatro anos do título de e internacionais, museus, centros e musealização da história e da
Nilcemar Nogueira
Patrimônio Mundial da UNES- de memória, entre outros repre- cultura negra.
113 O jongo é vida sentantes de experiências brasi-
Maria de Fátima da Silveira CO. Marco fundamental e epi- No primeiro dia do Encontro,
centro das políticas de reparação leiras e internacionais, especial-
Por uma história da patrimonialização da cultura discutiu-se a diáspora, o direito
117 afrodiaspórica no campo memorial e patrimo- mente nos contextos americano
à memória e à história negra, e
Martha Abreu nial, o Valongo é hoje referência e africano, com conferências e
o antirracismo como motores
e estímulo para repensarmos as mesas-redondas tratando de três
de justiça social. Em destaque, a
formas de compreensão e divul- grandes temas:
relação entre processos de me-
gação da história e da cultura da 1. Diáspora, Direito à Me- morialização e a necessidade de
população africana e afrodescen- mória e Antirracismo (20 de repensar a escrita da história do
dente no Brasil, e mais além. outubro) Brasil e a presença de narrati-
Inserido neste movimento, o 2. Musealização da Escra- vas de matriz africana pela voz
I Encontro Internacional Sam- vidão e da Cultura Negra (21 de seus protagonistas e descen-
ba, Patrimônios Negros e Diás- de outubro) dentes. Refletiu-se ainda sobre

SAMBA EM REVISTA | 3
o desenvolvimento e alcance de rias e para resistir a segmentos nia. Pensa a partir daí sobre “a rica para a redefinição de novas caminhos de uma exposição tura negra foram discutidas, bus-
políticas antirracistas e seus im- da população que se preocupam modernidade negra do samba abordagens de direito à memó- contracolonial na formação de cando entender os diversos pa-
pactos sobre o combate à discri- com a reorientação de poder como um projeto inacabado de ria, justiça e antirracismo. uma reinadeira”, Ana Luzia da péis que protagonistas e aliados
minação racial e étnica no campo que esses movimentos possam busca por direitos no Brasil.” Em “Breve análise da cultu- Silva Morais nos convida a ver podem exercer nos processos de
dos processos de memória. trazer. Relembra também que Em “Passados sensíveis: ain- ra material religiosa africana na a Festa do Rosário, manifesta- musealização. A musealização de
Abrindo esse tema, em é “importante salvaguardar e da “o caso do Bracuí” e a difí- diáspora e sua musealização”, ção religiosa que é uma parcela temas sensíveis, tais como a es-
“Music, Memory and the Bla- reforçar os ganhos que obtive- cil memória do contrabando de Vanicléia Silva Santos explo- da cosmovisão banto de co- cravidão e seus desdobramentos,
ck Diaspora”, Anthony Bogues mos, reconhecendo que eles são africanos escravizados no Rio de ra o uso político da religião munidades afro-brasileiras, a foram analisados com objetivo
nos propõe uma nova leitura incompletos enquanto houver Janeiro”, Hebe Mattos discute católica por africanos e seus partir de uma lente decolonial de ampliar os caminhos de abor-
sobre a história pelo viés da tra- ainda trabalho a ser feito para o aprofundamento no entendi- descendentes para ressignificar para discutir o processo da re- dagem desses temas e favorecer
dição intelectual radical negra, criar igualdade nas sociedades mento histórico sobre a supres- objetos e narrativas cristãs à lação entre tempo e memória, a criação de diálogos e ações de
e nos convida a mergulhar em forjadas no modelo da escravi- são definitiva do contrabando luz de suas próprias tradições. repensando a escrita da His- reparação.
manifestações culturais como dão e do colonialismo.” de africanos escravizados como Vanicléia analisa como o co- tória. Ana Luzia descreve suas Em “Um acervo do samba
a música para acessar proces- Em “Samba, cidadania e mo- tendo sido “depois da aprovação nhecimento das estatuetas de dificuldades de situar o Reina- em primeira pessoa”, Desirree
sos de resistência que contam dernismo: aparando algumas de uma segunda lei de extinção Santo Antônio produzidas por do ou o Congado no univer- dos Reis Santos parte do traba-
uma história alternativa sobre a arestas” Vinicius Natal explora do tráfico de cativos africanos pessoas da região do Congo e so acadêmico, e descreve sua lho da escritora Grada Kilom-
diáspora negra. Explora como possibilidades de modernidade em 1850”. Analisa os impactos da diáspora foi compartilhado jornada, como Rainha Konga, ba para posicionar o Museu do
as experiências humanas de ne- “a partir de agentes que estavam desses entendimentos para o pelas comunidades de africa- em assumir a primeira pessoa Samba como espaço onde a re-
gritude como ser ‘negro em um à margem dos centros decisó- reconhecimento à propriedade nos e seus descendentes entre para construir narrativas histó- presentação de narrativas negras
mundo anti-negro’ produzem rios de poder”, e desse espaço definitiva dos quilombos, e suas as duas margens do Atlântico. ricas. Relembra que o combate em primeira pessoa rompe bar-
ricas ideias e práticas sobre a marginal como lugar de rein- memórias, pelos descendentes Discute também como o co- à discriminação racial e étnica reiras historicamente impostas
vida humana e sua história, e venção. Ao fazer “da margem desta história silenciada. Trata lecionismo dessas estatuetas deve ocorrer também dentro pela presença da lógica colonial.
como estas oferecem caminhos o seu centro”, Vinicius aponta também das desvantagens sociais e sua musealização trazem re- das universidades brasileiras, e Desirree explora o programa de
para discursos e práticas de para a possibilidade de amplia- e psicológicas produzidas pelo flexões sobre como os museus afirma que “nossas memórias depoimentos “Memória das Ma-
liberdade. ção de entendimento sobre a racismo no âmbito das “subje- desvirtuaram a história das po- precisam ser respeitadas e re- trizes do Samba no Rio de Janei-
“formação política e cultural do tividades subalternizadas, enten- pulações submetidas ao colo- conhecidas como um conheci- ro” como uma ação contundente
Em “Dona Zica’s Stove and
país pelas mãos de negros des- didas como trauma,” propondo nialismo e à compreensão dos mento produzido a partir das de visibilização de narrativas in-
the Importance of Memory”
cendentes do pós-abolição”, e a necessidade de “descolonizar seus objetos, com o objetivo de memórias herdadas, das lutas surgentes, questionadoras dessa
Kim D. Butler nos guia em uma
coloca em pauta sujeitos negros narrativas, de imaginar formas justificar o colonialismo. Rea- do tempo presente e pela for- estrutura onde “o racismo atra-
reflexão sobre o processo de
até então silenciados na história de desconstruir e desnaturalizar firma a necessidade de pensar- ma, diferente da colonialidade, vessa e molda as representações
trazer experiências e memórias
nacional. Trata do apagamen- imagens coloniais e escravistas mos estratégias de musealiza- de compreender, ser e estar no da cultura negra em boa parte
negras a espaços públicos des-
to de identidades sofrido pelas no espaço público, sem apagar ção para combater o racismo e mundo”. de nossos museus”. Apresenta
tinados à memória e história
como exercícios de poder em camadas negras da população a memória da injustiça histórica superar antigas representações No segundo dia do Encontro a geração de acervos como ins-
forjar novos moldes para que- como similar ao silenciamento que as engendrou”. Em relato sobre os africanos em todas as foram apresentadas diferentes trumentos de poder e justiça, e a
brar velhas práticas. O direito do papel dos fundadores das sobre o processo de construção sociedades construídas sob o experiências de musealização da valorização da história do samba
à memória como uma luta co- escolas de samba na difusão coletiva do Memorial Passados lastro do tráfico de escravos e escravidão e da cultura negra, no e dos sambistas como uma ope-
mum aos povos da diáspora desses nomes, e seu projeto de Presentes no Quilombo do Bra- da escravidão. Brasil e em países do Atlântico ração de reparação e afirmação
africana nas Américas exige modernidade, e no uso da me- cuí (no litoral fluminense) discu- Concluindo esse tema, o Negro. As disputas pelo prota- da ancestralidade africana.
agência pessoal e social para mória recente da escravidão na te a importância do diálogo entre “Entre o Sagrado e o Intelec- gonismo e pelo direito de narrar Em “O museu somos nós”,
escrever nossas próprias histó- busca pela afirmação de cidada- a tradição oral e a pesquisa histó- tual: O som dos tambores e os histórias da escravidão e da cul- Marilda de Souza nos oferece

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uma visita guiada pelo seu Qui- americana; e a do MAB de lem- sobre a escravidão no turismo patrimônios e legados da cultura do samba, “o Museu do Samba da transmissão cotidiana através
lombo de Santa Rita do Bracuí, brar do sofrimento vivido por praticado em fazendas históricas afrodiaspórica. cumpre um dos mais importan- de relações familiares e sociais,
situado em uma antiga fazenda certas partes da população, e a para confrontar o racismo e aten- Em “A patrimonialização de tes papéis, ao efetivar-se como “mesmo que com fortes ruptu-
escravocrata e que hoje é conside- responsabilidade do Estado nes- der demandas por reparação da bens culturais afro-brasileiros: lugar de encontro onde as co- ras, migrações e muitas perdas”,
rado um museu a céu aberto. Ao se sofrimento, como uma forma população negra e enfrentamen- percursos e pedras no caminho”, munidades do samba podem ex- na preservação desses legados.
descrever cada área do quilombo, de justiça. Entendendo ambas as tos na construção de memórias Márcia Sant´Anna analisa a primir os seus anseios, transmitir Através de um histórico de polí-
Marilda conta as histórias do povo abordagens como complemen- públicas. evolução do reconhecimento da conhecimento, resgatar práticas, ticas públicas, a autora nos con-
negro do quilombo e sua relação tares, ressalta o seu valor no re- Em “Violência e Folcloriza- contribuição histórica e cultural fazer circular a tradição.” duz por ganhos e desafios de
com o próprio espaço e a nature- conhecimento de que a escravi- ção: A musealização da escravi- negra na formação da sociedade Em “O jongo é vida”, Maria valorização de legados afrodias-
za. Nas descrições de Marilda, o dão “produziu as mais diversas dão e da cultura negra no Museu brasileira ao longo de cerca de de Fátima da Silveira nos con- póricos através dos séculos XX
quilombo é atravessado por prá- formas de negociação entre as Histórico Nacional” (NHM), quarenta anos de conquistas e duz pelos processos de cerca de e XXI, apontando avanços obti-
ticas culturais, tais como o jon- culturas de opressores e oprimi- Aline Montenegro Magalhães desafios no campo da patrimo- quarenta anos de patrimonializa- dos após a Constituição de 1988,
go e griôs, por uma religiosidade dos, bem como de resistência à nos conduz através de uma aná- nialização de bens ligados à his- ção e salvaguarda do Jongo de e através da valorização no ensi-
sincrética própria e por histórias dominação que tais culturas lhes lise de parte do atual circuito ex- tória e cultura afrodiaspóricas. Pinheiral, preservado desde os no da história e cultura negra nas
sobre o povo negro transmitidas impõem na diáspora”. positivo do MNH no Rio de Ja- Explora as dificuldades em iden- negros escravizados da fazenda escolas, universidades, museus e
oralmente de geração a geração. Em “Turismo histórico e ra- neiro para responder à pergunta tificar formas de gestão, pro- São José do Pinheiro. Explora o locais públicos.
“O povo negro sempre guardou cismo cotidiano: o passado como ‘Que lugar ocupam os africanos e teção e salvaguarda adequadas impacto do registro pelo Iphan Convidamos o leitor a se de-
a sua história, só que não inte- devir em fazendas escravagistas”, afrodescendentes no Museu His- para a promoção do patrimô- do jongo como patrimônio ima- bruçar sobre estes textos que
ressava a ninguém, interessava só Iohana Brito de Freitas traz à luz tórico Nacional?’ Aline nos guia nio negro material e imaterial, terial, ampliando a valorização de trazem reflexões e diretrizes
a nós”. Marilda conclui ao dizer a prática de turismo histórico às por diversas ações do MHN que bem como questões processuais, seus costumes, rituais, tradições, importantes para pensar o direi-
“nós somos um museu ambulan- fazendas históricas do Vale do buscam interpretar o período co- constitucionais e interpretativas e solidificando o jongo como to à memória, o antirracismo, a
te, nós temos a nossa história nos Paraíba fluminense como natu- lonial com uma lente decolonial, que limitam essas possibilidades. um movimento coletivo. Relem- musealização da escravidão e da
nossos traços, no nosso jeito de ralizador do racismo e da escra- e que representam os esforços bra da importância de centrar os cultura negra e a patrimonializa-
Em “A musealização de um
ser, na nossa cor, no nosso tudo. vidão. Aponta também práticas do museu ‘de ter uma instituição detentores nos processos de pre- ção da cultura afrodiaspórica. Na
patrimônio negro – o samba do
O museu somos nós.” de patrimonialização calcadas so- cada vez mais aberta à escuta, à servação e salvaguarda para fazer década internacional dos povos
Rio de Janeiro”, Nilcemar No-
Em “Entre superação e repa- mente na materialidade como fa- conexão e à produção de outras gueira discute o processo de mu- avançar políticas que atendam e afrodescendentes (2015-2024),
ração: olhares sobre escravidão cilitadoras de leituras dessas pro- histórias.’ sealização do samba do Rio de capacitem mais comunidades período decretado pela ONU
em museus negros na diáspora”, priedades despidas de abordagem No terceiro e último dia de Janiero como uma forma, acima jongueiras e garantam a sobrevi- como central para criação de po-
Jessika Rezende Souza da Silva crítica de seu passado escravista. Encontro, discutimos políticas de tudo, de buscar sentido de va- vência desse patrimônio imate- líticas de reconhecimento, justiça
coloca em diálogo as exposições Ao revisitar experiências similares públicas e práticas de reconhe- lor. Traz a formação do Museu rial brasileiro. e desenvolvimento, esperamos
do National Museum of Afri- nos Estados Unidos, pontua que cimento do legado africano no do Samba como uma resposta à Por fim, em “Por uma história estar contribuindo para essas
can American History and Cul- nessas experiências o passado é Brasil e no mundo, assim como reivindicação de reconhecimen- da patrimonialização da cultura ações e mudanças.
ture (NMAAHC) e do Museu entendido de forma dicotômica, as ações realizadas por detentores to desse patrimônio dada à lacu- afrodiaspórica”, Martha Abreu
Afro Brasil (MAB). Retratando o entre verdadeiro ou falso, apre- desses legados para valorização, na de musealização da ‘história faz uma reflexão “a respeito da
compromisso de ambos os mu- sentando uma versão estetizada musealização e sustentabilidade e a contribuição dos negros na história das lutas dos africanos
seus com a história negra, com- de continuidade entre passado e de seus patrimônios culturais. O construção do patrimônio bra- e seus descendentes por direi-
para a estratégia adotada pelo presente e carecendo de nuances protagonismo dos detentores foi sileiro material e imaterial’. Ao tos no campo cultural.” Reflete
NMAAHC de contribuir para a que contemplem seus passados debatido como espinha dorsal descrever as atividades do Mu- sobre a resiliência dos legados
inclusão da perspectiva afro-a- difíceis. É necessário problema- de qualquer processo de patri- seu do Samba, Nilcemar reforça afrodiaspóricos ao longo dos
mericana na reescrita da história tizar a construção de memórias monialização e salvaguarda dos que, para além da apresentação séculos, e aponta a importância

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Diáspora,
Direito à
Memória e
Antirracismo
Music, Memory and
the Black Diaspora
Anthony Bogues

Anthony Bogues is a scholar, writer and curator. He is the inaugural director of


the Center for the Study of Slavery and Justice and a professor of Humanities
and Africana studies at Brown University.

Introduction

T hree years ago I spent some


time in the Samba Museum
and was deeply impressed. As
deep institutional linkages, for
example Samba schools, in var-
ious black communities and that
repertoire of Black life as a dis-
tinctive creation. In making this
claim we may want to recall the
an Afro Jamaican I was struck while the music may have origi- character of the Black radical in-
by a number of similarities, of nated in enslaved melodic calls, tellectual tradition.
the ways in which black music its remarkable improvisations
The tradition begins from
became a social and cultural lan- displayed a counter world to the
the frame - work, that the his-
guage of not only resistance but dominant Brazilian racial order.
torical human experiences of
how this music created within As a scholar and writer operating
blackness, that is of living black
itself practices by which Black inside the Black radical intellec-
in an anti – black world has
persons living in an anti-black tual tradition it became clear to
produced a series of rich ideas
world humanized themselves. I me that Samba was a form of
and practices about human life.
was struck with how Samba prac- cultural practice in which Afro
Further, that this, “lived human
tices constituted a rich archive Brazilians found voice. That
experience of Blackness” con-
of Afro – Brazilian life. I recalled it was one of the many musi-
stitutes a rich set of resources,
my discussion with individuals at cal and cultural currents of the
intellectual, political and social
the museum about how this mu- Black Diaspora and therefore
which opens up possibilities of
sical and cultural form now had needed to be added to the vast

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a new world – a more humane by centering racial slavery and colo- to be meant no rights. Once the to these forms of refusals and re-
social world, different from the nialism as the forces which shaped indigenous and the Black were sistance. However, if we recall that
• Rule over the vast majority of the population. This rule
anti-black world we currently in- the modern we tell a different story classified as things, as objects and central to the social domination of
was enacted by violence.
habit. The Black radical intellec- about the world. One in which the therefore not human it also meant racial slavery was the “thingfica-
tual tradition similar to all other • Political economy of extraction of the resources of the various Enlightenments of Europe that they could be treated with in- tion” process and that dehuman-
intellectual traditions operates colony. were themselves embedded with- discriminate violence. ization was a necessary part of co-
through a series of questions, • Creation of a social structure based on racial order in in colonial regimes of knowledge. lonial and slave master rule then we
Thus I want to suggest to you
posed by the human experience which indigenous and the black populations were ruled Racial slavery and colonialism were should consider that refusals also
that today when we see the black
of living blackness. I need to be by an ideological and symbolic order system in which they therefore not sideshows to the meant creation of cultural forms –
body, beaten, murdered, mutilated
clear here. I am not arguing for were classified as inferior. main event of making the modern forms in which the humanness of
treated as an object with no rights by
any essentialism, rather I am ar- world they were the main forces the enslaved and colonized would
• Dispossession and often genocide. police or the state – when the black
guing that the historical creation and systems shaping the character be vindicated and expressed. It
body becomes the site of perpetu-
of blackness as a lack, a marked of that modern. is in this cultural world, this sym-
al violence then we should under-
disposable body and within the bolic world that the enslaved and
As we all know one of the key stand its long history. Racial slavery
conventional dominant frame We also know that there were makes it clear that the tremendous colonized sought to recreate a dif-
elements of the modern was the produced black bodies which were
of western thought, politics and various kinds of colonial regimes wealth which allowed Europe to ferent space for themselves in the
way in which the figure of the also double commodified and for
culture as non – human, pro- and that within the Americas, set- become a major economic power everyday. If revolutions and rebel-
human became central both to the enslaved woman she was triple
duced from within these experi- tler colonialism was both a system was because of the wealth created lion were occasions of explosion,
thought and life. Yet, we do not commodified- she was property in
ences a range of questions about of colonial rule and slave society. by enslaved labor on these plan- then within life of the everyday
pay so much attention to how this person; produced commodities and
what it means to be human as This means that Europe’s colonial tations. CLR James the Caribbe- the enslaved and colonized had to
figure of the human emerged pro- was herself sexually a commodity.
well as about life itself and free- project was one of a possessive an historian and political theorist live. Fanon has noted in Black Skin
foundly shaped by the various clas- All of these social processes were
dom. The black radical intellec- violence which generated domina- wrote in his now famous book, White Masks, that human beings
sification schemas. These schemes what the Caribbean poet and think-
tual tradition therefore draws tion and exploitation. In this social The Black Jacobins, that the “fortunes were not just biology but were also
emerged within the context of Eu- er Aime Cesaire called, “Thingfica-
from the questions posed histor- system, might was right. created at Bordeaux, at Nantes, by cultural creatures. The enslaved and
ropean colonial conquests. They tion.”2 Yet social systems of dom-
ically as well as those which ani- the slave trade, gave to the bour- colonized within the realm of the
Embedded within this social were drawn up as comparative ination are never complete, there
mate black life today. geoisie pride …” 1 symbolic world created forms of
system was racial slavery. The trans- ways to understand the figure of are typically aspects of human life
atlantic slave trade forcefully trans- And here is the first fundamen- counter –signification– reworking
Let me give a historical exam- the human. At the heart of these which escape the might of domina-
ported over 12 million Africans to tal point from which the Black rad- the symbolic order of the domi-
ple of what I mean here. I begin schemas for Western thought was tion. So, the enslaved while he or she
the so-called New World of which ical intellectual tradition operates: nant social order. In many African
with the 15th century voyages of how to explain difference? To put might be socially dead, was a living
it is said over 5 million were sent to Racial slavery, European colonial- diasporic communities this meant
Columbus and the so-called dis- it another way the European co- corpse. He/ she spoke and therefore
Brazil, making it the country where ism were the foundations of the the creation of new forms of re-
covery of the New World. These lonial project faced with different had voice and imagination.
the single largest number of en- making of the modern world. This ligious practices. The creation of
voyages opened up the period of groups of humans had to explain
That speech, voice and imagina- new Gods and Spirits. As well it
the modern European colonial slaved Africans lived out their lives shifts the historical focus as well as two things why these groups were
tion moves on the terrain of resis- meant the production of new mu-
project and its various major em- in terror as enslaved beings. This epistemological categories about visually different and on what
tance, refusals, revolt, maroonage sical forms as a popular language.
pires – British, Portuguese, Span- trade in “human commerce” was the so called modern and the mak- grounds could they be conquered
and revolution. In the Brazilian
ish, French and Dutch. There were to establish a plantation system in ing of modernity. In other words, and enslaved? In other words – In the Jamaican case, in the late
context we would see Palmares
of course historical specificities to which sugar, coffee, tobacco and who was human and who was not. 60’s and early 70’s Reggae becomes
1
CLR James, The Black Jacobins (Lon- and various Quilombos as integral
each empire but it is safe to say cotton were key products. The pla- This was central to both politics that popular oral language drawing
don: 1980) p. 47. This book is the
that the European colonial project nation was the factory of its period classic English language historical and culture because to be human 2
For a discussion of this concept see in great part from the counter sym-
and all the historical evidence today account of the Haitian Revolution. It Amie Cesaire, Discourse on Colonial-
had at least four features to it: was first published in 1938. meant that one had rights and not ism, (New York: 2001)

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bolic world created by Rastafari.3 ture of black popular music. If we is here I wish to end. Within the
Reggae as a popular language de- think about memory in the words black radical tradition there have
ploys word play, working through of Raphael Samuel as a “deliberate been both discourses and practic-
rural proverbs and then creates a act of recollection”, then it is not es of freedom. These have ranged
sonic language of its own in which
the bass line becomes the core
of its musical energy. To think of
a half-baked form of history but
rather a space of thought which
opens up passages for a different
from creating Maroon communi-
ties during slavery to revolutions
eg. Palmares and Haiti. These
Dona Zica’s Stove and the
Reggae as a musical genre is also
to grapple with the ways in which
various recording studios became
interpretation of “facts”. We re-
member to mark a time as Burn-
ing Spear would sing – “do you
struggles for freedom are yet to be
recognized for what they were, not
pale imitations of the conventional
Importance of Memory
venues of social living and how remember the days of slavery”? conceptions of liberty but rich and
Kim D. Butler
Rutgers University, USA
dance movements completed the And in that marking of time mem- complex formulations in which
musical form. To put this another ory becomes one force and source freedom means the abolishment
way, Reggae was not just a musical of history – opening an archive we of human domination. Na minha contribuição para a conferência, a minha tarefa foi refletir na minha experiên-
cia como estagiária na interpretação da história do negro no Museu Nacional dos EU
form but often engendered a way should explore. (Smithsonian Institution), e também pensar no direito de história na diáspora africana.
We are still singing “redemption
of life. Recall the Marley interview Depois da conferência, tive a oportunidade de conhecer o Museu de Samba com a Profa.
Those of us who work in mu- songs” because our freedom is not Nilcemar, neta dos legendários Cartola e Dona Zica. Fiquei emocionada com a ternura
in which he says, “MI is a revolu-
seums need to pay attention to this yet. And as we do so and struggle e carinho para os pequenos fragmentos do dia a dia das vidas do povo de samba que
tionary” or Channel 1 Studio with constam grande parte do acervo, até reverência. É uma forma de ver a vida do negro com
kind of memory work as part of for the not yet freedom we cre-
the studio band calling themselves olhar de amor e respeito, o que fica ao contrário de nosso posicionamento em sociedades
the historical archive. If we begin ate spaces, we create moments in que se formaram com nossa escravidão. A imagem do negro em discurso popular é um
– Revolutionaries and making in-
by saying that racial slavery and which we can glimpse what that discurso político, reflete quem é valorizado, quem merece investimento, quem é marginal.
strumental music with titles like, Por isso, a pequena escolha de reconhecer e memorializar grandes vidas que não tiveram
colonial domination produced the freedom might look in life. In this
“Angola & MPLA” in celebration joias nem raridades, mas sim um simples fogão, é um triunfo da criatividade e poder
modern world, then do we not regard our musical forms are both transformacional dos movimentos negros.
of the political independence of
need to tap into the memoires of the expression of our humanness
Angola. If Reggae was made in the
the enslaved and the colonized? and our quest for freedom.
studio, then it was played at huge
Do not their cultural and religious

I
dances held in black working-class n the Museu de Samba, there is where. Yet that stove helps write women who provided spaces
practices become part of an histor-
districts. There was no music with- a stove. It is not a marvel of a history of the women who for samba to thrive, long before
ical and living archive? And when Bibliography
out the dance and there was no technology but, rather, a hum- knew how to stretch a meager it was consecrated as a national
we explore that archive what kind
dance without black communities. JAMES, C. L. R. The Black Jaco- ble household stove duplicated pot to feed some extra guests heritage. The stove belonged to
of history will we produce? Are the
bins. 2nd ed., Vintage Books, 1989. many thousand times over in or sell a few dinners to stretch Dona Zica, Euzébia da Silva, the
Of course this music not only historical stories not incomplete
CÉSAIRE, Aimé. Discourse on working-class households every- a family budget. These are the wife and partner of the legend-
sang about systems of oppression without these memories?
Colonialism. New York: Monthly ary samba composer Cartola.
but also provoked memory. From
The Black radical intellectual tra- Women like Dona Zica co-cre-
Burning Spear song “Slavery Days” Review Press, 2000.
to Peter Tosh’s, “Down presser
dition argues that there is the need Until the lions have their own ated samba in a tradition dating
to grapple with the various speech FANON, Frantz. Black Skin,
back to the “tias” (aunties) of the
Man,” many reggae artists invoked
and symbolic practices of the black White Masks. New York: Grove storytellers, the tales of the hunt will nineteenth and twentieth centu-
a black collective memory as histo- Press, 1994.
body as not only refusals but as at-
ry. And this I would submit is a fea- always favor the hunter ries —Tia Ciata and countless
tempts towards making some kind others whose material and moral
of freedom based on a distinctive support was as vital to samba as
3
It is why so many reggae artists were — African proverb
Rastafarians, Bob Marley being the practice of being human. And it the musicians, dancers, and com-
classic figure.
posers. As such, Dona Zica’s

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ognized that what had been dis- of breaths, heartbeats, waves, terms of national culture and It is no accident that education
played as the science was actually winds, and all the natural world identity. In defining ourselves, and history became important
He who controls the present controls only one way of understanding that connect humans to the seen we are also defining who does to black movements throughout
the world and its workings. We and unseen worlds. A painting not belong. When black history the hemisphere as they insisted
the past. He who controls the past knew there were other ways of of the night sky symbolized the is simply an appendage, that his- on their equal citizenship.
knowing. We wanted to honor indigenous sciences that read tory — and black people them-
controls the future. the thousands of years of knowl- stars to map their world and selves — will always remain on
Shortly after slavery ended in
the US, when former slave Lew-
edge accumulated by the original track its changing seasons. Yet it the margins. Black experience
— George Orwell, 1984 inhabitants of our land, and the all seemed primitive and out of cannot be simply pasted into an
is Adams was offered a deal to
deliver black votes to a local pol-
equally important knowledge place in a space dominated by existing template that was shaped
itician, he did not ask for mon-
brought by Africans who shared the material power of Western by, and reinforces, hierarchies of
ey or even land -- he asked for
stove in this museum transforms own, and limited ability to pass technologies, culture, spirituali- forms of knowledge. race, gender and class. Instead,
a school. That school eventually
into a new form of text to visu- objects of value and meaning to ty and arts in the making of the it demands that we break the
In the end, interpretations of materialized as Tuskegee Insti-
alize that which is intangible, but their future generations. After new nation. Our new director old mold and create something
African and indigenous history tute, whose first teacher, Book-
no less important a contribution slavery, people who were never had a space cleared amongst Jef- anew.
rooted in their own perspectives er T. Washington, turned it into
to cultural heritage. compensated for their stolen la- ferson’s shiny objects. But how
moved into museums of their The ability to grasp the tools a beacon of black education for
bor were left to find their own to fill them?
Thousands of kilometers own. The National Museum of that break old molds requires students from Africa and the Ca-
footing in the new realities of
away in the US, a team organized Researching Africans and in- the American Indian was found- the power to forge new ones. ribbean as well as the post-aboli-
capitalism. Precarious finances
by Dr. Spencer Crew, the first digenous heritage, we learned ed in 1989, and opened in 2004. For the Afrodescendentes of the tion communities of the south-
meant that families often made
Black director of the National about the knowledge of stars, The National Museum of Afri- Americas, we have always recog- ern US.1 Black newspapers of
do with mass-produced items
Museum of American History, the ways to call the ancestors can American History and Cul- nized the importance of history the post-abolition decades from
like Dona Zica’s stove, certain-
contemplated how the objects to assist the living, and the sci- ture was founded in 2003 and as a lever of power. Our histo- Uruguay and Argentina, reflect-
ly not the precious objects that
that make up the material lives ences of healing plants. These inaugurated in 2016 by Presi- ries were stripped away in an ef- ing sentiments across the Amer-
typically capture the attention of
of black people might help tell were sophisticated and ancient dent Barack Obama. What had fort to rob that which humaniz- icas, addressed the centrality of
museum curators.
our stories. The logic of the mu- forms of knowledge, but they become clear from experiences es us. From the very beginning, education as a component of
seum favors objects, especially I was fortunate to be on that are not material in the same way such as our attempts to represent we held on to history, memory equality and uplift.2 The Black
those that are unique and worthy team years ago as a graduate as Jefferson’s many shiny tools subaltern voices, was that the and tradition to resist, for we Panther Party in the US was born
of admiration. This orientation student trying to address the and objects that represented mission is not to append those would not be made into chat- from an organization of univer-
left Black people noticeably un- challenges of invisibility and the way the science of the En- voices into an existing template. tel. We recognized that, as the sity students whose first demand
der-represented in this exhibit marginalization in the narratives lightenment made sense of the It is to create new templates al- nations of the Americas shaped was a department of Black stud-
on the early years of the nation. of national history. We were world through measurement and together. their identity in the time of in- ies.3 Education was always a crit-
Despite the fact that their labor reforming an entire section of classification. All the walls of dependence, our histories were
In this conference session, we 1
https://www.tuskegee.edu/about-
had financed the war of indepen- an exhibit dedicated to the sci- the exhibit were glass cases to being told in a way that made us us/history-and-mission
were asked to think about the di-
dence, and that many had served ence of the day, featuring the enclose the objects — our sec- accessories at best in the hero- 2
Paulina Laura Alberto, George Reid
reito a memoria (the right to mem-
as armed combatants, the mu- extensive collection of scientif- tion for African and indigenous ic work of nation building. We Andrews, Jesse Hoffnung-Garskof,
ory). I tell the story of bringing eds. Voices of the Race: Black News-
seum curators struggled to find ic and mechanical tools owned sciences was meant to be con- might have cooked savory foods,
black experience into our public papers in Latin America, 1870-1960
ways to tell the stories of their by Thomas Jefferson, the third tained within a corner of one of brought entertaining music and (Cambridge University Press, 2022).
spaces of telling history because
lives. Enslaved people, their very president of the US. Our team those cases. We ultimately select- dance — but we had not signed 3
Donna Murch, Living for the City:
it is essentially a political ques-
bodies designated as commod- of specialists in African Ameri- ed an African drum to represent the treaties, ruled the colonies, Migration, Education and the Rise of
tion of power. Our narratives the Black Panther Party in Oakland,
ities, had few objects of their can and indigenous history rec- the synchronization of rhythms or written the new constitutions. California (Chapel Hill: UNC Press,
of history define who we are in
2010)

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important to safeguard and bol-
ster the gains we have made, rec-
ognizing they are incomplete so
long as there is still work to be

SAMBA, CIDADANIA E
done towards creating equality in
societies forged in the template
of slavery and colonialism. In
the words of Fannie Lou Ham-
er, Dona Zica’s contemporary,
powerful activist for black rights
in the US (and probably the
MODERNISMO: APARANDO
owner of a very similar humble

ALGUMAS ARESTAS
ical component of black social ness in the national identity and
and political movements in Bra- imagination. It matters that the stove), “We who believe in free-
zil, from the literacy classes of National Museum of American dom cannot rest until it comes.”
the Frente Negra Brasileira to the History was led by a black Di- I salute the work of Museu de
black movement’s fight for inclu- rector who questioned narratives Samba, and the many voices it
sionary policies like affirmative that re-inscribed hierarchies of continues to make heard, in this Vinícius Ferreira Natal
action and the Law 10.639. In power. It matters that a cura- conference and every day. Historiador e Antropólogo – LABHOI/UFF
all these initiatives, black people tor can place a mother’s stove
sought the right to counteract in a museum created by a black As reflexões que trago aqui são fruto do esforço que uma série de pesquisadores
Bibliography do samba tem feito em pensar a fundação das escolas de samba como,
the negative representations of woman as part of the story of
também, um marco para a modernidade brasileira. Destaco meu diálogo com
Africa and African descendants the domingueiras and parties that MURCH, Donna. Living for the Mauro Cordeiro, em nossos cursos sobre Pensamento Social do Samba, e com
a professora Martha Abreu, em nossos debates feitos no CULTNA – Cultura
that reinforced their disenfran- helped samba flourish into a na- City: Migration, Education and Negra nas Américas, e no Museu do Pontal, no curso organizado em 2021, com
chisement in society, politics and tional cultural treasure. The right the Rise of the Black Panther o título Arte e Cultura Popular – O que muda quando a perspectiva racial entra
em cena?, juntamente com Ângela Mascelani, e no seminário Ciclo de Debates
the economy. to tell our own stories is part of Party in Oakland, California. – Modernismos, Arte e Cultura Popular, em 2022.
the work of reclaiming the au- Chapel Hill: UNC Press, 2010.
The right to memory is a
tonomy of our bodies and lives
struggle shared throughout the
that defines the culture and pol- ALBERTO, Paulina Laura; AN-

H
African diaspora in the Amer- á 100 anos, um grupo de transformação na cena cultural, rompimento com um passado
itics of the African diaspora in DREWS, George Reid; HOFF-
icas. Our ability to have agency artistas, literatos e intelectuais política e econômica e, dessa que deve ser observado, mas, de
the Americas. NUNG-GARSKOF, Jesse eds.
in the writing of our stories has reuniu-se no Theatro Municipal forma, a ideia de modernidade certa forma, superado. Essa ideia
Voices of the Race: Black Newspa-
come through the work of black Dona Zica’s stove is a polit- de São Paulo, entre os dias 13 e pairava no ar como um debate é presente como um paradigma
pers in Latin America, 1870-1960
movements who have fought ical act and a triumph of black
(Cambridge University Press, 18 de fevereiro, com o objetivo inadiável: afinal, que Brasil se filosófico e nos desafia, até hoje,
not only for representation, but activism. But there will always de pensar o Brasil propondo queria a partir dali? a pensar permanentemente sobre
2022).
also for decision making posi- be a segment of the population novas bases culturais para a o novo. Já o modernismo é visto
RANSBY, Barbara. Ella Baker É bom apontar, desde já,
tions in all sectors. This is clearly that privately worries about the formação de uma identidade como um movimento e corrente
and the Black Freedom Movement: A uma diferença entre os usos,
important in government, but reorientation of power that new nacional. O país, que saíra há intelectual e artística ocorrido
Radical Democratic Vision (Chapel neste texto, de “modernidade”
it also matters who gets to ap- voices are ushering in. To bor- pouco do regime jurídico da na década de 1920, liderado,
e “modernismo”. Entendo a
prove films, television shows, row from the philosophy of Hill, NC: University of North escravidão negra e, um ano majoritariamente, por uma
Carolina Press, 2003), p. 347. ideia de modernidade como um
textbooks, magazine covers and capoeira, the mestre sees the next depois, proclamara a república, elite paulistana. Interessa-nos
paradigma do novo porvir em
other media that situate black- move coming and prepares. It is passava por uma intensa entender tanto a possibilidade

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de enxergar outras formas de sociedade aparecem como em 1996, Modernismo no Rio de nação, pois “nem as estruturas Meu objetivo maior é entender sobre a modernidade negra,
conceber um novo mundo fundamentais para se pensar uma Janeiro: Turunas e Quixotes, políticas nem as estruturas como essa noção foi tratada trazendo para o debate sobre
social – modernidade – como ideia de estilo de vida moderno problematizando a ideia de um econômicas de dominação por um senso comum, até bem a formação do país sujeitos até
identificar os atores responsáveis urbano – mesmo que as questões modernismo brasileiro centrado coincidem mais com as fronteiras pouco tempo ligada a uma elite então ignorados como atores
por esse processo no Brasil – escravistas coloniais não se em São Paulo e apontando nacionais” (p. 42), colocando em intelectual paulistana, e olhar da história nacional. O que
modernistas – não só na década impusessem como uma realidade para um modernismo carioca xeque a forma como se deu a para outras possibilidades de Paul Gilroy nos sugere é pensar
de 1920, mas em um sentido local e fossem solapadas.1 centrado em bares e cafés, em construção do mundo sem um modernidade que se desenhavam uma ideia de modernidade
mais amplo de protagonismo um movimento liderado por reconhecimento da participação a partir de agentes que estavam à a partir da experiência da
Alguns autores, como
e inovação das culturas afro- literatos e intelectuais da época. efetiva das camadas negras margem dos centros decisórios escravidão negra nas Américas,
Antônio Sérgio Guimarães
cariocas. Entretanto, foi na Inglaterra que oriundas da escravidão. de poder. É preciso mirar essa considerando a experiência do
(2003), entendem a modernidade
Paul Gilroy chamou a atenção margem não só como um espaço tráfico transatlântico, o híbrido
Obras e um grupo de autores como uma ideia que se conecta Com isso, Gilroy entende
para a ideia de modernidade ligada de exclusão, mas também como cultural formado a partir do
como Macunaíma, de Mário de ao eurocentrismo de mundo, a musicalidade como uma das
à diáspora africana, ao passado o espaço das possibilidades contato entre diferentes etnias
Andrade (1928), A Negra (1923) às raízes iluministas e a um formas mais eficazes para se
da escravidão e à construção do e reinvenção. Como nos diz – dos mais variados troncos
e Carnaval em Madureira (1924), movimento romântico pela enxergar a contribuição e a
racismo contemporâneo. Grada Kilomba, “(...) a margem linguísticos africanos – e uma
de Tarsila do Amaral, Manifesto busca de nacionalidades. Uma resistência cultural africana
é um local que nutre nossa reinvenção cultural a partir desse
Antropófago (1928) e Manifesto visão, enfim, ocidental de mundo. Retomando a ideia de dupla nas Américas. Fruto de uma
capacidade de resistir à opressão, processo – em nosso caso, em
da Poesia Pau-Brasil (1924), de Ser moderno, para o Ocidente, consciência de Dubois – em que capacidade de reinvenção diante
de transformar e de imaginar terras brasileiras, a formação
Oswald de Andrade, deram o seria coadunar-se com os valores o sujeito negro vivera o dilema da crueldade da escravidão, a
mundos alternativos e novos de culturas afro-brasileiras. É
tom da década de 1920 ao propor herdeiros de um colonialismo entre pertencer a um estado música teria sido uma saída
discursos” (KILOMBA, 2019, p. nesse contexto que o samba faz
uma narrativa moderna de Brasil que, se na teoria seria superado nacional e ser negro –, Gilroy eficaz para que negros e negras
68). Remaremos, aqui, em outra parte do processo de construção
conectado às suas heranças ao longo dos séculos XIX e XX, pensa de que modo uma ideia de expressassem, à margem de uma
direção, pois a margem será cultural de uma modernidade
populares negras e indígenas, na prática se mostra até hoje modernidade se formou a partir oficialidade letrada e territórios
nosso centro. afro-brasileira.
mesmo que um passado com bastante vigor. do silenciamento sobre o passado simbólicos erguidos à revelia
escravista e as feridas abertas e escravista, em que a escravidão de suas condições sociais, suas Ao apontarmos para a
A década de 1990, com a virada
até hoje não cicatrizadas soassem negra foi um dos principais visões e elaborações próprias de possibilidade de ampliação de
do século, foi um dos momentos
como algo distante que deveria pilares para a construção das mundo. entendimento sobre a formação Sambas e
mais significativos de se pensar,
ser superado. instituições modernas, em política e cultural do país pelas sambistas.
de maneira plural, a modernidade Não pretendo, aqui, defender
que não considerar esse fato mãos de negros descendentes
Um pouco antes dali, em 1903, como ideia organizadora de uma ideia una de modernidade Modernidades e
como fundamental seria um do pós-abolição, lançamos o
já não era uma novidade o debate mundo. Enquanto, na França, e qual seria o seu ponto de
erro ontológico. Sugere, então, olhar para questões importantes modernistas
sobre a modernidade. George Bruno Latour questionava a partida inicial no espaço/tempo.
como forma de reescrita do
Simmel, em As grandes cidades ideia de modernidade a partir
passado, “escrever relatos não
e a vida do espírito (1903), reflete da afirmação – título de seu O samba é um ritmo
centrados na Europa sobre
sobre a ideia de modernidade livro – Jamais fomos modernos, de “(...) a margem é um local que nutre nossa baseado no uso dos tambores
como as culturas dissidentes da
na perspectiva da crescente 1991, dissolvendo as fronteiras – característica de diversas
modernidade do Atlântico negro capacidade de resistir à opressão, de transformar
urbanização alemã, ocorrida entre natureza e cultura, no musicalidades afrodiaspóricas
têm desenvolvido e modificado
no final do século XIX. Temas Brasil, Mônica Veloso publica, e de imaginar mundos alternativos e novos – com o acréscimo de outros
este mundo fragmentado”
como a liberdade individual, a 1
Da mesma forma, na Alemanha, instrumentos como a cuíca,
Walter Benjamin pensava, a partir (GILROY, 2001 (1993), p. 16). O discursos” (KILOMBA, 2019, p. 68).
interação social e o alargamento encontrada também no jongo, o
da obra de Baudelaire, a ideia de autor vai além, propondo mesmo
da economia monetária na modernidade pelo viés da arte e suas agogô, o chocalho, entre outros.
transformações sociais. repensar a ideia de estado-

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Como ritmo praticado e vivido, teatrais e uma intensa agenda de formação urbana em que a re- escravizados, essas organizações silenciamento não é novo e nos Se em 1888 se declarou a
em seus anos iniciais, era parte de atividades, a partir das últimas gião central do Rio de Janeiro era nomearam-se escolas de samba, remete, diretamente, às heranças abolição jurídica da escravidão
uma sonoridade condensada sob décadas do século XIX. Os destinada a um modelo de vida representando, a partir das dé- afrodiaspóricas da escravidão negra no Brasil, os instantes
o nome cunhado por cronistas e “forrobodós” – como ficaram pautado nas elites e no apreço cadas de 1920 e 1930, diferentes negra e ao apagamento de seguintes revelariam um dilema
parte da elite como “batuques”. conhecidos os modelos de bailes cultural aos moldes europeus; localidades da cidade, com ativi- identidades sofrido pelas importante: afinal, a partir
Com o tempo e um processo de e encontros dançantes negros no por outro lado, negros e negras dades rituais durante todo o ano camadas negras da população no daquele momento, quem seriam
melhor definição de cada gênero, final do século XIX, relatados descendentes de escravizados, em seus quintais/terreiros. Brasil. os cidadãos da República?
a partir do final do século XIX por Olavo Bilac, por exemplo – junto a uma camada de descen- Essa era uma questão que, há
Ao olharmos atentamente Entendo que havia, na
– lundus, jongos, maxixes, foram um dos muitos exemplos dentes de imigrantes europeus muito, rondava o imaginário da
para a historiografia das escolas criação das escolas de samba no
macumbas, etc. –, difundiu-se de organizações associativas pobres, ocupavam a cidade e a sociedade senhorial brasileira.
de samba, percebemos que Rio de Janeiro, um projeto de
no Brasil e se tornou uma das negras que se espalharam na preenchiam com suas atividades, Segundo Hebe Mattos (2004), a
muito se fala na criação das modernidade que passava por
principais formas de expressão cidade. sendo fundamentais na forma- Constituição de 1824 já ensaiava
escolas de samba como uma acionar uma memória recente
de negros e negras no pós- ção de uma cultura urbana. É uma definição de quem seriam
Os forrobodós são exemplos organização que desfila nos dias da escravidão e uma busca pela
abolição, fruto de patrimônios nesse contexto que se formam cidadãos: com o desenrolar
de uma intensa vida social e de carnaval e pouco se fala na afirmação de cidadania. Seus
culturais construídos por famílias as escolas de samba na cidade do do século XIX, o conceito foi
organização política negra que representatividade de se criarem primeiros integrantes, muitos
descendentes de africanos Rio de Janeiro nos morros, fave- se acomodando com vistas a
marcava o fim do século XIX e diversas instituições espraiadas deles fundadores, revelam-se
escravizados. las e subúrbios cariocas. abarcar sujeitos majoritariamente
o início do século XX utilizando, pela cidade – e depois pelo país sujeitos ativos no pensamento
pertencentes a uma tradição
Essa prática difundida no muitas vezes, a música e a dança A atuação de Ismael Silva, – geridas, majoritariamente, por sobre a construção de um Brasil
senhorial, branca e com acesso
Rio de Janeiro teve como base não só como entretenimento, que apontava para uma mudança descendentes de escravizados. que teimava em deixá-los à parte
à educação formal. Mesmo
núcleos familiares negros, assim mas como organizações políticas sonora no “samba de sambar” Mais ainda, é flagrante o dos espaços de poder.
que ex-escravizados negros
como o expressivo número por afirmação social e luta por do Estácio, e mesmo a fundação apagamento do protagonismo
agora fossem livres, houve
de associações comunitárias cidadania. A ampla participação da escola de samba Deixa Falar, dos artífices das escolas de samba
uma articulação para que esses
espalhadas por toda a cidade, negra na vida social e cultural em 1928, nos dão a dimensão da em seus primeiros anos, cabendo A cidadania como libertos fossem criminalizados
que não possuíam somente da cidade é exemplo de como inventividade sonora que incluía o papel de difusão desses nomes,
modernidade pelo seu status social e racial
a função de entretenimento, descendentes de escravizados o feito. Se muito questionamos, quase em sua totalidade, a uma
(MATTOS, 2020 [1995], p. 281)
mas também criavam redes de foram ativos na busca de hoje, o protagonismo centraliza- relação do samba com a indústria
e, assim, lhes fosse negado o
proteção, trabalho, demarcação cidadania e melhores condições do de Ismael Silva nesse proces- cultural – fonográfica, TV e rádio Ele (Mano Eloy) foi o grande papel de cidadãos brasileiros.
de identidades e busca por sociais: “mesmo sendo alvo de so de formação das escolas de – e um olhar por vezes exotizado pai da escola de samba no Rio
O que estava em jogo,
cidadania, como uma forma reiterados esforços de exclusão, samba – sem tirar o seu mérito e comercial. Esse processo de de Janeiro. Ele pensava certo.
portanto, nas primeiras horas
de afirmar a existência cultural esses trabalhadores não – devemos reconhecer que tais os desfiles de carnaval, introduziu
Ele achava que samba dava
sociabilidade e também tirava o da república, para a população
negra na cidade (ABREU, deixavam de ser sujeitos ativos transformações, ocorridas entre um novo conceito de expressão,
com notas mais longas e andamento negro do local da informalidade. negra era sua sobrevivência e,
MATTOS, AGOSTINO, 2015). da vida cultural da cidade e do as décadas de 1910 e 1930, são mais rápido, cadência marcada, O camarada tinha direito de ir mais ainda, a busca por direitos
país” (PEREIRA, 2020, p. 17). fruto da inventividade de negros muito além da simples ilustração de à delegacia e dizer assim “olha,
O historiador Leonardo palmas usada até então, e ganhou sociais básicos e uma cidadania
O mundo atlântico começaria a e negras que forjaram estrutu- versos que falavam dos problemas
eu tenho uma escola de samba
Pereira, em seu livro A cidade que no lugar tal”. Aí a polícia não ia impedida pelas vias da lei e
desnudar os ritmos da diáspora e ras rítmicas e organizacionais do dia a dia. Era expressão da nova
dança: clubes e bailes negros no realidade social que se formava nas mais lá, deixava ele sossegado, pela estrutura social. Foi nesse
se interessar, cada vez mais, pela que ressoam até os dias de ho- camadas mais baixas da população.
Rio de Janeiro (1881-1933), de tinha um registro. Era assim contexto que uma série de
produção musical negra. je.2 Reunindo filhos e netos de Falava da realidade de cada um,
que funcionava. Entrevista de
2020, dá um panorama sobre fazendo sucesso nos salões das sujeitos negros formularam
2
Problematiza Humberto M. sociedades recreativas dançantes da Rubem Confete (TAVARES,
grupos que envolviam atividades O início do século XX foi estratégias de reconhecimento e
Franceschi: “A partir de 1926, a música Praça Onze, e dali para toda a cidade” 2022, p.112).
de recreação, espetáculos marcado por uma intensa trans- dos blocos do Estácio, composta para (FRANCESCHI, 2010, p. 52-53). luta pela cidadania, utilizando o

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samba como ferramenta política de manifestações da cultura ne- Mangueira, localizada no bairro pais incentivadores dos ranchos
de afirmação social. É este o gra, foi capaz de circular entre de mesmo nome, na cidade do carnavalescos no Rio de Janeiro
caso de Mano Eloy. diferentes associações negras e Rio de Janeiro. – gravou, em 1930, pela Odeon,
“fazer das escolas de samba lugares de
Eloy Antero Dias, mais práticas que, ao mesmo tempo O protagonismo de Mano uma série de músicas que pau- desenvolvimento de esportes e escotismo para
conhecido como Mano Eloy,3 que possuíam suas especificida- Eloy foi decisivo para a própria tavam o tema, o que demonstra
nasceu em 1889 – um ano após des simbólicas, dialogavam com formação de uma cultura urbana não só a sua inserção no merca-
a juventude” (TAVARES, 2022, p. 120)
a abolição jurídica da escravidão uma matriz musical africana negra carioca, da qual o samba do fonográfico e a projeção de
negra no Brasil – no município comum – os tambores, a prá- foi um dos principais pilares: sua figura pública, mas também
Samba – organização da qual reflete muito do sentimento
de Engenheiro Passos, na tica religiosa misturando-se às primeiro na organização das uma ação afirmativa da cultura
Mano Eloy era um de principais e da preocupação que uma
região do Vale do Paraíba. festividades populares negras, escolas de samba e seu período musical negra em uma cidade
artífices e presidente – no primeira geração dos sambistas
Chegou ao Rio de Janeiro aos o improviso, o canto e a dança. inicial de formação, depois na que teimava em esconder suas
Programa da Juventude Brasileira, fundadores das escolas de samba
15 anos, em um período de Mano Eloy conseguia articular e organização de associações origens africanas.
que tinha como objetivo “fazer possuía com uma modificação
intensa imigração de negros e mobilizar diversas comunidades diretivas que, reunindo as Mano Eloy traz, portanto, em
das escolas de samba lugares de social dos seus. A atuação de
negras ao Rio de Janeiro, então negras, do mundo do samba ao agremiações, negociavam com o sua história de vida (1889-1971)
desenvolvimento de esportes Mano Eloy tanto na escola de
capital da República. Alguns mundo do trabalho, dos sindica- poder público e demais esferas uma trajetória sólida que, pelo
e escotismo para a juventude” samba Deixa Malhar quanto
cronistas, como Jota Efegê, tos ao campo religioso, podendo institucionais da cidade. viés musical e religioso, aponta
(TAVARES, 2022, p. 120) no GRES Império Serrano
descrevem sua participação ser entendido como um versátil Tais ações caminham junto as ideias de ancestralidade, tradi-
mostra isso. No ano seguinte, revela uma preocupação com a
ativa em rodas de jongo, samba, mediador entre as culturas ne- a uma intensa participação nos ção e negritude como chaves de
um evento organizado no campo inserção do negro na sociedade,
capoeira, etc., na região do gras. sindicatos portuários, na União entendimento para uma cultura
do América Futebol Clube junto o que exemplifica uma ideia de
centro da cidade, núcleo inicial Sua importância não se re- dos Operários Estivadores e na urbana carioca moderna, uma
com o juizado de menores modernidade pautada na busca
de desenvolvimento do samba sume somente ao trânsito, mas Sociedade de Resistência de Tra- construção de identidade nacio-
buscava arrecadar fundos para pelo direito social. Afinal, o
carioca. Foi a partir do trânsito também se dá pelo seu papel de balhadores em Trapiche e Café. nal e projeto de cidadania para
órfãos e obras educacionais. que seria a modernidade – o
pela malha urbana da cidade que liderança de grupos da cultu- A criação do “Sindicato da Es- negros e negras no pós-abolição.
Tais exemplos nos mostram novo – para a população negra
alguns sambistas como Mano ra negra como sambista, pai de tiva” foi fundamental para uma Se estamos tratando de moder-
como era possível a Mano Eloy descendente de escravizados
Eloy, partindo da região central, santo e jongueiro. Tal protago- organização da classe traba- nidades construídas a partir da
enxergar as agremiações não senão, também, sua inserção na
colaboraram para a expansão nismo pode ser exemplificado lhadora e, como boa parte dos trajetória desses sujeitos e pen-
só como entretenimento, mas sociedade como cidadãos e uma
das fronteiras da prática festiva em sua participação na criação sambistas do Morro da Serrinha samos a modernidade negra
como locais de reflexão social e consequente busca de melhores
e política do samba pelo Rio de de diversas escolas de samba no trabalhava no local, essa atuação como uma possibilidade real de
busca pela cidadania.4 condições de vida?
Janeiro. Rio de Janeiro: em 1932, foi um foi importante na organização mudança de vida dessa popula-
A frase de Rubem Confete, Assim como Mano Eloy, ou-
A versatilidade de sua atuação dos fundadores da Vizinha Fala- cultural das escolas de samba da ção, é de se notar, por exemplo,
que Tavares nos traz, dizendo tros sambistas possuíam essa vi-
em torno de um mundo social deira; em 1933, fundou a esco- região, com estatutos bem defi- o grande número de projetos so-
que, para Eloy, “a escola de samba são estratégica do samba como
do samba impressiona, pois, ao la de samba Deixa Malhar – já nidos, regras e eleições acirradas ciais nos quais as escolas de sam-
tira o negro da informalidade”, luta por direitos. Paulo da Porte-
transitar entre escolas de samba, extinta – na região da Tijuca, a para a presidência. ba se envolviam, principalmente
la, considerado um dos fundado-
ranchos, rodas de macumba e Papagaio Falador, e, no Morro Além disso, é importante em suas primeiras décadas de 4
Sormani Silva (2018) e Alessandra res do GRES Portela, por exem-
jongo, blocos e outras vertentes da Serrinha, as escolas Prazer ressaltar que Mano Eloy foi um existência, e como esse fator era Tavares (2022) produziram
interessantes trabalhos acerca da plo, proferiu sua célebre frase
da Serrinha, Balaiada e Império dos primeiros músicos a gravar fundamental para a sustentabili-
figura de Mano Eloy e sua atuação em que afirma que o “sambista
3
“Mano” é uma gíria usada
Serrano. Além disso, foi um dos discos cantando pontos de ma- dade da agremiação como grupo importante na construção de um
por sambistas para caracterizar deve andar de pés e pescoços
projeto de escola de samba voltado
proximidade, afeto e mesmo laços articuladores, através de Tia Ma- cumba e jongo no Brasil. Junto recreativo organizado.
para a própria comunidade, para a ocupados” (SILVA e SANTOS,
de uma familiaridade social, sem,
ria Fé, para a fundação da escola de Getúlio Marinho – sobrinho Em 1941, a participação da busca de cidadania e para a inserção
necessariamente, ser consanguínea. 1979), que nos fala muito sobre
do negro no mercado de trabalho e
São parentescos construídos na de samba Estação Primeira de de Hilário Jovino, um dos princi- União Geral das Escolas de
aumento do nível de escolaridade. um intento de respeitabilidade
sociabilidade.

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do sujeito negro em uma socie- acolhia, também, diversos outros estadia em Paris, ao observar 1920 e 1930: um, formado
dade em que a vestimenta se tor- atores de outros nichos sociais. uma reprodução da Torre Eiffel por intelectuais paulistanos
nava um fator de distinção social em um coreto carnavalesco do que entendiam a modernidade
Mário de Andrade, por
(BOURDIEU, 2006). Nesse sen- bairro, Amaral inscreve, em sua como um símbolo de cultura
exemplo, escreve o livro
tido, o uso dos sapatos era visto obra, uma série de elementos que nacional a ser moldada; o outro,
Macunaíma, em que o personagem
como um símbolo de status so- ditavam os rumos do movimento formado por sambistas negros
vai ao terreiro de Mãe Ciata
cial no pós-abolição – pois se o modernista à época: pessoas que enxergavam no samba e nas
para pedir a Exu proteção
escravizado andava descalço, a negras e a flora brasileira em um suas relações de sociabilidade
em sua caminhada e, assim,
liberdade também falava através local afastado do centro, ainda uma maneira de alcançarem uma
vencer Piaimã, “o comedor
dos pés – fator valorizado não só rural, dariam um tom de busca cidadania plena. Ao apontarmos
de gente” (ANDRADE, 2004
por Paulo da Portela, mas tam- de uma nacionalidade “voltada para trajetórias negras de vida,
[1928]). Andrade não só tem
bém por Heitor dos Prazeres, para dentro” que o modernismo nos deparamos com o descaso
conhecimento de Ciata como
que pintava todos os persona- paulistano propunha como uma de que foram vítimas as pessoas
Paulo da Portela, Heitor dos Prazeres, Gilberto Alves, Alcebíades Barcelos um importante nome da cena
gens de suas telas calçados. (Bide) e Armando Marçal. Revista Manchete, 1938. identidade nacional brasileira. negras no pós-abolição. A
da cultura negra carioca como
Em um outro exemplo, é pos- modernidade negra do samba
a cita como um personagem em Ao mesmo tempo que
sível afirmar que, ao aproximar- reconhecer um grupo em busca artistas e intelectuais paulistanos pode ser vista como um projeto
um livro que é alçado ao patamar os modernistas paulistanos
-se do PTN (Partido Trabalhista de uma modernidade que, até não só sabia da existência das ati- inacabado de busca por direitos
de uma das pedras fundamentais agitavam a vida cultural da
Nacionalista) e do PCB (Partido então, não havia chegado. vidades culturais e religiosas pra- no Brasil. Ainda utópico, mas
de um pretenso modernismo cidade, uma série de sambistas
Comunista Brasileiro) na década ticadas pela população negra da que teima em batucar nas mentes
brasileiro. Entretanto, por que também, à sua maneira,
de 1940, Paulo da Portela contri- cidade, dos centro e subúrbios, sonhadoras dos sambistas negros
Uma modernidade falamos de Andrade na cena projetava uma ideia de Brasil
buiu decisivamente para a con- como também interagiu, forte- na luta diária por melhores
cultura brasileira e pouco se e agitava a vida cultural carioca
solidação das escolas de samba inacabada mente, na década de 1920, com
fala de Ciata como construtora, com inovações fundamentais,
condições de existência.
na cidade e para o espraiamento esses atores.
nos termos de Velloso (1990), como a própria gravação de Pelo
de sua atuação com instâncias
Algumas narrativas orais de uma “cidadania paralela”, Telephone e seu registro como
partidárias. Mesmo afirmando Em busca das “raízes pro- Referências bibliográficas
e parte da literatura sobre a forjada à revelia dos discursos e samba, por Donga, ou mesmo
“nunca fazer parte de nenhum fundas” do Brasil, a música e as
história do samba escrita por práticas oficiais do estado? a viagem dos Oito Batutas a
partido político” (SILVA e SAN- sociabilidades negras eram va-
memorialistas e jornalistas5 conta Paris, no mesmo ano da Semana ABREU, Martha; MATTOS,
TOS, 1979, p.132), Paulo entre- lorizadas pelo movimento mo- Outro nome considerado Hebe; AGOSTINI, Camilla.
que a casa de Hilária Batista de Arte Moderna de 1922. Tais
ga ao PTN um programa que, ao dernista paulistano como algo como um dos principais do Robert Slenes entre o passado
de Almeida, mais conhecida elementos nos dão a dimensão e o presente: esperanças e
que relata, é prontamente aceito. autêntico e que deveria ser uma movimento modernista é o de
como Tia Ciata, funcionava de que havia, no início do século recordações sobre diáspora
As sugestões apresentadas de- marca de como o país possuía Tarsila do Amaral, que pintou, africana e cultura negra no
como um importante núcleo XX na cidade do Rio de Janeiro,
notam não só uma preocupação uma cultura própria, fortalecen- em 1924, o quadro “Carnaval Rio de Janeiro1 In: ABREU,
de sociabilidade da região um grupo de interesse negro que Martha; CHALOUB, Sidney;
social com o uso do espaço das do as ideias de modernidade, em Madureira”.6 Após sua
denominada Pequena África, pensava o mundo e negociava, à FREIRE, Jonis; GLADYS
escolas de samba, mas também nação e identidade coletiva. Se 6
Ferreira e Conduru (2012) Ribeiro. Escravidão e cultura afro-
tendo sua frequência majoritária ressaltam que a região de Madureira sua maneira, ideias de cidadania brasileira: temas e problemas em
uma tentativa de fazer valer sua assumimos, pois, que a moder-
pela população descendente experienciava, nesse momento, uma e construção de uma nação que torno da obra de Robert Slenes.
influência e trânsito entre as ins- nidade brasileira pode ser lida ideia de modernidade científica e Campinas: Ed. Unicamp, 2015.
de escravizados. Entretanto, tecnológica com a expansão das os fizesse vistos aos olhos do
tituições da cidade como forma no plural e fruto de uma intensa
é sabido que esse ambiente, fábricas, a arquitetura das linhas mundo. ANDRADE, Mário de.
de melhoria de vida para os sam- articulação política que envolve ferroviárias, etc. Esse é um exemplo Macunaíma – o herói sem nenhum
musical, festivo e religioso de uma experiência de modernidade,
bistas. Olhar, de relance, para grupos de interesse, é interes- Dois grupos coexistem na caráter. Belo Horizonte: Garnier,
apontado pelos autores, vividos 2004 [1928].
Mano Eloy e Paulo da Portela é sante notar como esse grupo de 5
Uma das mais famosas é a de pelos locais e que, de certa forma, foi mesma época, as décadas de
Roberto Moura (1995 [1983]). traduzido pela pintora em sua tela.

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BOURDIEU, Pierre. O ______. Escravidão e cidadania
camponês e a fotografia. Revista no Brasil monárquico. 2. ed. Rio
de Sociologia e Política, n. 26, 2006, de Janeiro: Jorge Zahar, 2004

Passados sensíveis: ainda


p. 31-39. [1999].
CONDURU, Roberto; MOURA, Roberto. Tia Ciata e a
FERREIRA, Felipe. Carnaval Pequena África no Rio de Janeiro. Rio
em Madureira: modernismo de Janeiro: Secretaria Municipal

“o caso do Bracuí” e a difícil


e festa popular no Brasil. In: de Cultura, Dep. Geral de Doc.
FERREIRA, Felipe. Escritos e Inf. Cultural, Divisão de
carnavalescos. Coord. Maria Laura Editoração, 1995 [1983].
Viveiros de Castro Cavalcanti.
Rio de Janeiro: Ed. Aeroplano, PEREIRA, Leonardo Affonso

memória do contrabando
2012. de Miranda. A cidade que dança:
clubes e bailes negros no Rio de
CABRAL, Sergio. As escolas de Janeiro (1881-1933). Campinas:
samba do Rio de Janeiro. Rio de Ed. Unicamp, 2020.
Janeiro: Ed. Lumiar, 1996.

de africanos escravizados
SILVA, Marilia Trindade
FRANCESCHI, Humberto M. Barboza; MACIEL, Lygia dos
Samba de sambar do Estácio: 1928 a Santos. Paulo da Portela: traço de
1931. São Paulo: Ed. IMS, 2010. união entre duas culturas. Rio de
Janeiro, Funarte, 1979.

no Rio de Janeiro
GILROY, Paul. O Atlântico Negro.
Modernidade e dupla consciência. SIMMEL, Georg. As grandes
São Paulo, Rio de Janeiro: 34/ cidades e a vida do espírito
Universidade Cândido Mendes (1903). Mana, Rio de Janeiro, v.
– Centro de Estudos Afro- 11, n. 2, Oct. 2005, p. 577-591.
Asiáticos, 2001 [1993].
TAVARES, Alessandra. A
GUIMARÃES, Antônio Sergio. escola de samba “tira o negro do Hebe Mattos
Intelectuais negros e modernidade no local de informalidade”: agências e
Brasil. University of Oxford, associativismos negros a partir Professora Titular Livre do Departamento de História da Universidade Federal
Centre for Brazilian Studies, da trajetória de Mano Eloy de Juiz de Fora (UFJF) e coordenadora do Laboratório de História Oral e Ima-
Working Paper 52, 2003. (1930-1940). Rio de Janeiro: Ed. gem, Universidade Federal Fluminense/UFF e UFJF.
Arquivo Nacional, 2022.
KILOMBA, Grada. Memórias Este texto revisita, com ênfase no caso do Quilombo do Bracuí, alguns dos ar-
da plantação: episódios de racismo VELLOSO, Monica Pimenta. gumentos abordados em minha conferência para ingresso como professora
cotidiano. Rio de Janeiro: Editora As tias baianas tomam conta titular livre no Departamento de História da UFJF.
Cobogó, 2019. do pedaço: espaço e identidade
cultural no Rio de Janeiro.
LATOUR, Bruno. Jamais fomos Estudos Históricos, Rio de Janeiro,
modernos: ensaio de antropologia v. 3, n. 6, 1990.
simétrica. Tradução de Carlos
A questão da escravidão no tempo presente é parcialmente (e talvez crescentemente)
Irineu da Costa. Rio de janeiro: ______. Modernismo no Rio de uma questão de justiça, uma discussão sobre a reparação pelos crimes do passado. A
Ed. 34, 1994 [1991]. Janeiro: Turunas e Quixotes. Rio de emergência das discussões sobre justiça reparatória, como parte de um debate mais
Janeiro: Ed. FGV, 1996. amplo sobre a resolução de injustiças históricas relativas a genocídio, tortura, limpeza
LOPES, Nei. Partido-alto:
étnica, entre outros crimes coletivos, renovou a discussão contemporânea sobre a es-
samba de bamba. Rio de Janeiro,
cravidão no Novo Mundo, para além das abordagens mais correntes sobre diáspora,
Pallas, 2005. racismo, memória e identidade. A questão fundamental da possibilidade de reparação
MATTOS, Hebe Maria. Das – moral, política, cultural e econômica – também ocorre para injustiças históricas
de caráter “sistêmico”, como a captura e o genocídio ameríndio e a escravização de
cores do silêncio: os significados da
africanos no Brasil, Caribe e Estados Unidos. Uma instituição de injustiça não apenas
liberdade no Sudeste escravista perpetrada e usufruída por indivíduos ou mesmo um Estado isoladamente por algu-
(Brasil, século XIX). 3. ed. mas décadas, mas perpetrada por centenas de anos por vários Estados europeus ou
Campinas: Ed. Unicamp, 2020 americanos ilustrados ou baseados em constituições liberais. Uma instituição de injus-
[1995]. tiça que ajudou a criar a riqueza que deu origem às estruturas fundadoras do mundo
contemporâneo [SCOTT; MATTOS, 2014, p. 1].

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Entre o reconhecimento da Desde finais do século XVIII, do tráfico, de 1831, foi conse- slavevoyages.org/), mais 750 mil de quilombo” para efeitos de sorte”. Para outros, como
escravidão como crime contra a o comércio negreiro, até então quência disso. africanos, pelo menos, foram ile- titulação coletiva de terras tradi- a historiadora Hebe Maria
Mattos, professora da Uni-
humanidade na Conferência de legal e amplamente praticado galmente escravizados no Brasil cionais ou constitutivas de luga-
As pesquisas recentes sobre versidade Federal Flumi-
Durban em 2001, com expres- pelos países europeus envolvi- depois da aprovação da lei de res de memória (ABREU; MA- nense, “a abolição foi um
o tema confluem ao propor “um
siva participação da delegação dos na colonização americana, 1831 e do fechamento do Cais TTOS, 2011). Em 2006, alguns acontecimento ímpar. Pela
modelo conflituoso que reco- primeira vez se reconheceu
brasileira, e a decretação pela começou a perder progressiva- do Valongo, até a supressão de- milhares de grupos já se encon-
nhece o contrabando negreiro a igualdade civil de todos
ONU da década de 2015-2024 mente legitimidade, até tornar-se finitiva do contrabando, alguns travam oficialmente reconheci- os brasileiros […]”. Qual
como objeto de debate e dissen-
como década internacional do ilegal na maioria dos países que anos depois da aprovação de dos em todo o país (MATTOS, delas, em sua opinião, tem
so na esfera pública brasileira”
afrodescendente, aconteceram o praticavam, nas primeiras dé- uma segunda lei de extinção do 2006). Número que só fez cres- um argumento mais con-
para a compreensão do proces- vincente? Justifique [BOU-
mudanças significativas nas po- cadas do século XIX. Nesse con- tráfico de cativos africanos, em cer nos últimos dez anos, rede-
so de abolição do tráfico de es- LOS JUNIOR, 2013, apud
líticas memoriais do Brasil em texto, o próprio reconhecimento 1850. finindo patrimônios, memórias conversadehistoriadoras.
cravizados africanos no Brasil
relação ao passado escravista da independência do Brasil pela coletivas e engendrando novas com/2016/12/12/escravi-
(PARRON, 2007, p. 94). As au- Silenciada por quase todo dao-e-subjetividades/].
(SAILLANT, 2016; ABREU e Inglaterra esteve condicionado narrativas públicas sobre o tem-
toridades imperiais atuaram na o século XX, a memória des-
MATTOS, 2016). Além do re- ao cumprimento de antigos tra- po da escravidão.
repressão ao contrabando nos sa última geração de africanos Li a questão e fiquei pensan-
conhecimento como patrimônio tados de restrição ao “ilícito co-
primeiros anos que se seguiram ilegalmente escravizada no país do: serão as duas afirmações
imaterial de inúmeras manifesta- mércio”, firmados por Portugal,
à aprovação da lei de 1831 (MA- emergiu com força viva no mo- realmente opostas? A história
ções culturais de matriz africana, e à realização de novo acordo, Escravidão,
MIGONIAN, 2017, cap. 3), mas vimento de etnogênese oriundo da experiência do racismo, en-
a indicação e o reconhecimento estabelecendo uma data final
a medida legal se tornou alvo de da implementação do artigo 68 história e narrativa tendido como memória/estigma
do Cais do Valongo como pa- para a interrupção do comércio
um vigoroso processo de deso- das Disposições Constitucionais da escravidão, aproxima, me pa-
trimônio da humanidade pela infame, como começava a ser cha-
bediência por parte de setores da Transitórias da atual Constitui- rece, as duas assertivas. Por que
UNESCO, no ano de 2017, mar- mado, como destacou Jaime Ro-
classe senhorial que, em nome da ção Federal, que declara: “Aos O livro didático História, so- (e como) o acontecimento ím-
ca talvez a mais importante infle- drigues (RODRIGUES, 2000).
liberdade de mercado e de uma remanescentes das comunidades ciedade e cidadania, voltado para o par da abolição (que reconheceu
xão nesse sentido. A aprovação da lei de abolição
leitura utilitarista do liberalismo, dos quilombos que estejam ocu- ensino médio, de Alfredo Boulos a igualdade civil entre todos os
sustentavam a expansão escra- pando suas terras é reconhecida Junior, citou uma frase minha brasileiros, libertando os escravi-
vista da lavoura cafeeira (LOU- a propriedade definitiva, deven- sobre a abolição em uma de suas zados do fardo pesado da escra-
RENÇO, 2015). Ainda assim, do o Estado emitir-lhes os tí- questões, contrapondo a uma vidão) não implicou a superação
Estou convencida de que o vigoroso a lei de 1831 produziu alguns tulos respectivos”. Movimento afirmação de Emília Viotti da do racismo no Brasil, abando-
processo de expansão da cidadania efeitos duradouros, como o fe- que acompanhei de perto, por Costa, uma das referências em nando os “negros”, categoria so-
chamento do porto do Valongo força de entrevistas realizadas minha formação como historia- cialmente construída, à sua pró-
engendrado a partir da Constituição de 1988 na cidade do Rio de Janeiro e o com camponeses negros des- dora. Reproduzo aqui: pria sorte? Esta é a questão que
(hoje infelizmente ameaçado) está na gênese redirecionamento das atividades cendentes da última geração de as duas afirmativas tomadas em
de contrabando para pequenas africanos escravizados no Rio DEBATES DA HISTÓ- conjunto provocam.
da emergência de novas formas de interrogar praias do litoral mais próximas de Janeiro, iniciadas nos anos
RIA: A abolição tem sido
alvo de constantes debates Pensar a experiência da escra-
um passado que, até então, por diversas e das regiões compradoras (CAR- 1990, para o projeto Memórias entre os historiadores. Para vidão, do racismo e da violência
VALHO: 2012; MATTOS, 2013; do Cativeiro do LABHOI/UFF alguns, como Emília Viot-
diferentes razões, se preferira esquecer. colonial como trauma, individual
LOURENÇO, 2013). (RIOS; MATTOS, 2005). Desde ti da Costa, professora da
Universidade de São Paulo e coletivo, é um campo de refle-
então, muitos dos nossos entre-
Segundo o banco de da- (USP), “a abolição libertou xão que tem se expandido nos
vistados passaram a reivindicar os escravos do pesado far-
dos do The Trans-Atlantic últimos anos. Faço parte da gera-
serem reconhecidos como “re- do da escravidão e abando-
Slave Trade Database, (www. nou os negros à sua própria ção que, nos anos 1980, fez mais
manescentes das comunidades

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profundamente a crítica da in- Como visto na introdução fosse de 500 africanos. Na co do Projeto Rota do Escravo Camilia Agostini (AGOSTINI, te com a memória da doação, em
fluência das chamadas teorias da deste artigo, apesar da não revo- praia da Armação foram da Unesco (ABREU; GURAN; 2017). Como no Valongo, essas testamento do proprietário, José
encontrados cerca de 140,
patologia social na obra de Flo- gação da lei de 1831, africanos no Engenho d’Água as MATTOS, 2014). As praias de fazendas eram lugares de mor- Breves, da antiga fazenda negrei-
restan Fernandes e seus muitos sequestrados continuaram a cru- autoridades se depararam desembarque ilegal foram uma te, quarentena, mas também de ra aos seus antepassados, que ali
com aproximadamente
discípulos, por transformarem a zar clandestinamente o Atlânti- 330 africanos, “incluindo 4 das categorias que compuseram ressocialização. E são os descen- foram trabalhadores cativos, li-
experiência da escravidão em um co e a serra do Mar, para serem crias”, sendo a maior parte a lista e a que mais refletia novas dentes dos trabalhadores africa- bertos depois de 1850. De certa
quase completo aniquilamento ilegalmente incorporados como destes últimos composta tendências das pesquisas histo- nos cativos que ali trabalhavam forma, a tradição oral sobre os
por mulheres. [...]
cultural e moral para escraviza- trabalhadores escravizados às riográficas. Nessas praias, além para a recuperação e ressocializa- aspectos mais violentos do tráfi-
Ao retornar à ilha,
dos e libertos. plantações de café, principal de sítios arqueológicos ainda ção dos recém-chegados que se co ilegal se fazia mais concentra-
acompanhado dos oficiais
produto de exportação do novo e de seu escrivão interino, pouco explorados, o maior mo- tornam os guardiões da memória da sobre a fazenda vizinha, mas
A centralidade da agência
país. Antonio Maria Morais de numento ainda é a própria me- do que ali ocorreu e a sociedade os dois proprietários vizinhos,
social de escravizados e liber- Carvalho, o juiz municipal
deparou-se com o cadáver mória coletiva do campesinato brasileira quis, até recentemente, José Breves (Fazenda do Bra-
tos não deve obscurecer, entre- Os recém-chegados morriam
de um africano, do qual negro residente nas proximida- deliberadamente esquecer. cuí) e Pedro Ramos (Fazenda do
tanto, as desvantagens sociais e nas praias à vista de todos. Um determinou exame ime- des. Grataú), ambos indiciados du-
psicológicas reproduzidas pelo relatório inglês de 1839 cita mais diato. Os peritos encarre- No Quilombo do Bracuí foi
gados declararam que se rante as diligências policiais so-
racismo, problema de base nos de 4.000 pessoas desembarcadas A tradição oral de comuni- construído um dos memoriais
tratava de um jovem afri- bre o naufrágio do Camargo no
trabalhos seminais de Flores- entre Copacabana e a Ilha Gran- cano de 20 anos e “supu- dades negras descendentes dos do projeto de história pública
nham que tivesse morrido Bracuí em 1952, sempre apare-
tan Fernandes (FERNANDES: de apenas em janeiro de 1838 trabalhadores cativos de antigas Passados Presentes, que coor-
de inanição”. Acreditavam ciam nelas como “compadres”.
2013) e Emília Viotti da Costa (FLETCHER, 1839). que estava bastante magro fazendas de recepção de cativos denei com Martha Abreu e Kei-
(COSTA, 2012). É importante por ter sido abandona- contrabandeados no litoral flu- la Grinberg, em parceria com Marilda de Souza, liderança
Fechado o Valongo, pouco do junto com os outros e
revisitá-los de perspectivas que minense e paulista foi a ponte comunidades quilombolas do quilombola, descendente dos an-
se sabe sobre o funcionamento ter-se perdido nas matas
integrem o problema da agência da fazenda da Armação que me levou a uma nova agenda Rio de Janeiro. A antiga fazen- tigos herdeiros e uma das prin-
da logística de recepção dos re-
social à questão das subjetivida- depois de o patacho ter de pesquisa, com um conjunto cipais narradoras do grupo, foi
cém-chegados após a lei de 1831. encalhado na Marambaia. da negreira do Bracuí tornou-
des subalternizadas, entendidas Outro cadáver examinado de orientandos, incorporando -se conhecida dos historiadores nossa parceira em toda a con-
Nos poucos registros de época
não como déficit, mas como foi de um africano do sexo história oral, arqueologia e as como o local onde foi a pique cepção da narrativa memorial
sobre esses lugares de quarente- masculino ainda moço que
trauma (COTTIAS; MATTOS, fontes da repressão ao contra- o brigue negreiro Camargo, em da exposição. Nela, uma repro-
na e morte, registros produzidos tinha uma perna quebrada
2016). A mestiçagem latino-a- devido a uma “coisa com bando de africanos, que apre- 1852, comandado pelo capitão dução da página do testamento
por iniciativas tardias de repres-
mericana é filha da desigualdade que viera apreendido” e sentou seus primeiros resultados americano Nathanael Gordon, do comendador Breves em que
são surgidas depois da segunda muito provavelmente fa-
e não do congraçamento racial. no livro Diáspora negra e luga- concedia a antiga fazenda aos
lei de proibição do tráfico, em lecera em decorrência da que colocou fogo no navio para
A memória genealógica curta fratura [YABETA, 2013, res de memória: a história oculta apagar as provas do contraban- moradores recém-libertos, segui-
1850, há impressionantes descri- p. 50].
de grande parte das famílias no das propriedades voltadas para do. Gordon depois viria a ser da de uma foto da casa grande
ções de recém-chegados mortos
Brasil frequentemente esbarra o tráfico ilegal de africanos es- enforcado nos Estados Unidos da antiga fazenda do Grataú, da
ou abandonados para morrer em Em 2012, o Laboratório de
em situações de extrema vio- cravizados no Brasil (MATTOS, pelo crime de tráfico ilegal de es- imagem de um brigue negreiro
áreas próximas a paradisíacas História Oral e Imagem mobi-
lência, de difícil rememoração. 2013b) e, depois, na premiada cravos, no governo de Abraham como deve ter sido o Camargo
praias do litoral. Segundo Danie- lizou uma rede de historiadores
Trata-se fundamentalmente de tese de Thiago Campos Pessoa Lincoln (SOODALTER, 2006; antes do naufrágio, e de uma
la Yabeta, escrevendo sobre as da escravidão das universidades
descolonizar narrativas, de ima- Lourenço sobre o complexo de ABREU, 1995). Para nossa sur- lista com o nome dos cativos
diligências em torno do desem- brasileiras para organizar um in-
ginar formas de desconstruir e fazendas da família Souza Bre- presa, a história do naufrágio e dele desembarcados e recupera-
barque de um patacho negreiro ventário com cem lugares de me-
desnaturalizar imagens coloniais ves (LOURENÇO, 2015), e no das atividades de contrabando ali dos pela polícia, estão colocadas
na Ilha da Marambaia, em 1851: mória da história dos africanos
e escravistas no espaço público, texto, também premiado, sobre praticadas estava na tradição oral em sequência. No momento em
escravizados no Brasil, em cola-
sem apagar a memória da injus- as ruínas do tráfico ilegal no li- que Marilda, pela primeira vez,
Suspeitava-se que o nú- boração com o Comitê Científi- do grupo quilombola, juntamen-
tiça histórica que as engendrou. mero de desembarcados toral fluminense, da arqueóloga visualizou todas as imagens inte-

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gradas em uma mesma narrativa, viviam eram enterrados no Mor- da antiga fazenda negreira, foram ALBUQUERQUE, Wlamyra. O ses. Rio de Janeiro: Globo, 2013 nas, Centro de Estudios Sociales
ela revelou estranheza. Rejeitou ro do Cabral, na fazenda vizinha também os guardiões da memó- jogo da dissimulação: abolição, raça [1963]. (CES), 2007. p. 95-130.
sobretudo a imagem da fazenda do Grataú, incinerados em covas ria do crime ali perpetrado. e cidadania no Brasil. São Paulo:
FLETCHER, Josiah. Brazilian ______. Racialização e cidadania
do Grataú, onde teria se locali- coletivas, como no cemitério Companhia das Letras, 2009.
slave trade. [S.l.]: [s.n.], 1838. 3 p. no Império do Brasil. In: CAR-
zado o cemitério dos recém-che- dos pretos novos do Valongo. Referências bibliográficas ALENCASTRO, Luiz Felipe de. VALHO, José Murilo de; NE-
gados, ao lado do testamento Essa memória coletiva de hor- LOURENÇO, Thiago Campos
Parecer sobre a Arguição de Descum- VES, Lúcia Maria Bastos Pereira
com o nome dos herdeiros seus ror nos foi contada sobretudo Pessoa. O comércio negreiro na
ABREU, Martha. O caso do primento de Preceito Fundamental das (Org.). Repensando o Brasil do
antepassados. Olhando a lista de por Manoel Morais e Marilda de clandestinidade: as fazendas de
Bracuí. In: MATTOS, Hebe; (ADPF) no 186, apresentada ao Su- Oitocentos. Rio de Janeiro: Civi-
desembarcados do Camargo e a Souza, mas esteve presente até recepção de africanos da famí-
SCHNOOR, Eduardo. Resgate: premo Tribunal Federal, 2010. Dis- lização Brasileira, 2009. p. 349-
lista com o nome dos herdeiros mesmo em projetos de história lia Souza Breves e seus cativos.
uma janela para o oitocentos. ponível em: <https://fpabramo. 392.
no testamento, afirmou, visivel- oral desenvolvidos e arquivados Afro-Ásia, n. 47, p. 43-78, 2013.
Rio de Janeiro: Top Books, 1995. org.br/2010/03/24/cotas-pa-
mente abalada, “eles não somos na escola pública local, na déca- ______. Das cores do silêncio: sig-
recer-de-luis-felipe-de-alencas- ______. A indiscrição como ofício:
nós”. da de 1980, em que as crianças p. 165-197. nificados da liberdade no Sudes-
tro/>. Acesso em: 16 ago. 2017. o complexo cafeeiro revisita-
desenhavam os cativos recém- ______; MATTOS, Hebe. Re- te escravista, Brasil, século XIX.
Diante da estranheza, discu- do (RJ: c. 1830 - c. 1888). Tese
-chegados sendo levados ainda manescentes das comunidades BOULOS JUNIOR, Alfredo. Campinas: Ed. Unicamp, 2013a
timos a hipótese de fazermos (Doutorado em História) – Uni-
com vida para serem jogados no dos quilombos: memória do ca- História, sociedade e cidadania. São [1995].
duas exposições paralelas: uma versidade Federal Fluminense,
Morro do Cabral. O cemitério tiveiro, patrimônio cultural e di- Paulo: FTD, 2013. Volume úni-
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da capela de São José, segundo a reito à reparação. Iberoamericana, co. Nível: ensino médio.
seus descendentes e sua luta pela Hebe Mattos. gares de memória: a história oculta
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terra coletiva ao longo do século CARVALHO, Marcus. O de- das propriedades voltadas para o
do para enterrar, em terra santa, MAMIGONIAN, Beatriz. Afri-
XX e outra sobre as atividades sembarque nas praias: o funcio- tráfico clandestino de escravos
os mortos da comunidade cativa
______; GURAN, Milton; MA- canos livres: a abolição do tráfico
de contrabando da antiga fazen- TTOS, Hebe. Inventário dos luga- namento do tráfico de escravos no Brasil imperial. Niterói: Edu-
residente e foi durante todo o sé- de escravos no Brasil. São Paulo:
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dez. 2012. MATTOS, Hebe. Remanescen-
narrados na tradição oral da co- escravizados no Brasil. Niterói: PP- fico negreiro: o Parlamento im-
cuí em defesa dos seus direitos tes das comunidades dos qui-
munidade e à luz das fontes de GH-UFF, 2014. CHALHOUB, Sidney. A força da perial e a reabertura do comércio
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época produzidas pela repressão escravidão: ilegalidade e costume de escravos na década de 1830.
______; MATTOS, Hebe. A his- políticas de reparação no Brasil.
ao tráfico ilegal de africanos es- A construção do Memorial no Brasil oitocentista. São Paulo: Estudos Afro-Asiáticos, ano 29, n.
tória como performance: jongos, Revista USP, São Paulo, n. 68, p.
cravizados. Após uma semana Passados Presentes, a partir da Companhia das Letras, 2012. 1-3, p. 91-121, jan./dez. 2007.
quilombos e a memória do tráfi- 104-111, dez. 2005/fev. 2006.
de reflexão, entretanto, Marilda tradição oral do grupo em diá-
co ilegal de escravizados africa- COSTA, Emília Viotti da. Da RIOS, Ana Maria Lugão; MAT-
de Souza mudou de ideia. Ela logo com a pesquisa histórica, _______. Ciudadanía, raciali-
havia reconectado os dois elos permitiu a Marilda produzir um
nos. In: REBELO, Juniele et al. senzala à colônia. São Paulo: Ed. TOS, Hebe. Memórias do cativeiro:
zación y memoria del cautive-
(Org.). História pública no Brasil: Unesp, 2012 [1966]. família, trabalho e cidadania no
dos trágicos acontecimentos re- reenquadramento dessas duas rio en la Historia de Brasil. In:
sentidos e itinerários. São Paulo: pós-abolição. Rio de Janeiro: Ci-
memorados pela tradição oral do experiências. As duas narrativas COTTIAS, Myriam; MATTOS, ROSERO-LABBLÉ, Claudia
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grupo e construído um novo nós. – da violência do Grataú e da Hebe. Escravidão e subjetividades Mosquera; BARCELOS, Luiz
doação no Bracuí – antes separa- AGOSTINI, Camila. Temporali- no Atlântico luso-brasileiro e fran- Claudio (Org.). Afro-reparaciones: RODRIGUES, Jaime. O infame
A antiga Fazenda do Bracuí
das, agora se redefiniam em uma dades e saberes inscritos em ruínas e cês. [S.l.]: Open Edition, 2016. memorias de la esclavitud y jus- comércio: propostas e experiências
possuía uma capela e um cemi-
nova abordagem. Os quilombo- memórias, Brasília: CNA, 2017. E-book. ticia reparativa para negros, afro- no final do tráfico de africanos
tério para os cativos residentes,
las do Bracuí, descendentes dos Prêmio Luiz de Castro Faria, ca- colombianos y raizales. Bogotá: para o Brasil (1800-1850). Cam-
mas, segundo a tradição oral, os FERNANDES, Florestan. A in-
trabalhadores libertos herdeiros tegoria “Artigo Científico”. Universidad Nacional de Colom- pinas: Ed. Unicamp, 2000.
recém-chegados que não sobre- tegração do negro na sociedade de clas-
bia, Facultad de Ciencias Huma-

34 | SAMBA EM REVISTA SAMBA EM REVISTA | 35


SAILLANT, Francine. Reconhe- Marinha sobre apreensões de re-
cimento e reparações: o exemplo cém-desembarcados na ilha da

BREVE ANÁLISE DA
do movimento negro no Brasil. Marambaia (RJ) – 1850-51. In:
In: MATTOS, Hebe (Org.). His- MATTOS, Hebe (Org.). Diáspora
tória oral e comunidade: reparações negra e lugares de memória: a histó-
e culturas negras. São Paulo: Le- ria oculta das propriedades vol-

CULTURA MATERIAL
tra e Voz, 2016. p. 17-48. tadas para o tráfico clandestino
de escravos no Brasil imperial.
SCOTT, David. Omens of adversi-
Niterói: Eduff, 2013. p. 35-60.
ty: tragedy, time, memory, justice.
Durham: Duke University Press,
2014.

_______; MATTOS, Hebe. Pas-


RELIGIOSA AFRICANA
sados presentes: memória da escra-
vidão e políticas de reparação
nas políticas públicas na área de
educação no Brasil. Niterói, RJ:
NA DIÁSPORA E SUA
Labhoi, 2014. Projeto apresenta-
do ao edital E15/2014 Coopera-
ção Bilateral Faperj/Associação
Columbia Global Center Brasil.
MUSEALIZAÇÃO
Disponível em: <www.labhoi.
uff.br/ppp>. Acesso em: 23 ago. Vanicléia Silva Santos
2017.
University of Pennsylvania e Universidade Federal de Minas Gerais. Texto apre-
SLENES, Robert W. Bávaros sentado no I Encontro Internacional Samba, Patrimônios Negros e Diáspora,
e Bakongos na “habitação de ne- organizando pelo Museu do Samba, LABHOI/UFF, PPGH/UFF e LEAFRICA/UFRJ,
em outubro de 2021. Agradeço a todas as organizadoras do evento, especial-
gros”: Johan Moritz Rugendas e mente à professora Mônica Lima, pelo convite. Este texto está relacionado com
a invenção do povo brasileiro. uma pesquisa maior sobre os objetos de marfim produzidos no Congo, como as
estatuetas de Santo Antônio, entre outros.
Campinas: Departamento de
História IFCH/Unicamp, 1995.
(Mimeo).

SOODALTER, Ron. Hanging


captain Gordon: the life and tri-
al of an American slave trader. O tema das tradições religiosas
africanas na diáspora é um dos
mais estudados pela historiografia
regionais. De todo modo, é preciso
considerar que nas diásporas africa-
nas outras formas religiosas também
também foram aprendidas e disse-
minadas pelos africanos no conti-
nente e nas diásporas. Assim, essas
New York: Atria Books, 2006.
brasileira e americana. Contudo, foram difundidas pelos africanos, religiões não devem ser vistas como
YABETA, Daniela. Da comuni- esses estudos focam mais nas tra- como o islã e o catolicismo (REIS, formas menos “autênticas” ou
dade remanescente de quilombo dições originadas em solo africano, 2003; MOTA, 2018). Embora essas menos “originais” de expressão das
ao tráfico de africanos livres: os onde se cultuam orixás, voduns e duas religiões não tenham se origi- religiosidades de pessoas africanas.
processos da Auditoria Geral da inquices e outras formas religiosas nado no continente africano, elas O catolicismo também foi um espa-

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ço utilizado politicamente por afri- sa de estatuetas de Santo Antônio em suas diásporas. Por extensão, mobilização de cunho religioso, província do Congo, considera- imagens de Santo Antônio de
canos e seus descendentes para res- localizadas em museus brasileiros, as histórias dos objetos não po- popular e profético, chamada da o verdadeiro berço da Igreja metal, transmitiam os ensina-
significar objetos e narrativas cristãs catálogos de museus e de colecio- dem ser separadas das histórias pela historiografia de “movi- congolesa. Por fim, Kimpa Vita mentos sobre o santo a partir do
à luz de suas tradições. nadores, documentos eclesiásticos e das pessoas nem dos seus con- mento Antoniano” (SOUZA; recrutava os “pequenos antoni- universo cosmológico local. Du-
também seus projetos expográficos.
Tomando como ponto de parti- textos de criação no continente. VAINFAS, 1998). Ela defendia nos”, seus auxiliares, que atua- rante a repressão ao movimento,
Por meio dessas fontes, foi possível
da os objetos da cultura material de Logo, museus devem estar aten- que Maria e José eram congo- vam como missionários leigos foram encontradas estatuetas de
compreender os usos das estatuetas
origem congolesa musealizados, es- tos a essas narrativas para não leses, que Cristo nasceu na ca- na região. Os antoninos tinham metal com os auxiliares de Kim-
no Brasil, o processo de colecionis-
tabelecemos três perguntas nortea- contar apenas a história do colo- pital, São Salvador, e que tinha forte atuação nas comunidades, pa Vita. Algumas estatuetas so-
mo privado e de sua musealização.
doras deste texto: como ocorreu o nialismo e dos colecionadores e sido batizado em Nsundi, antiga onde, usando coroa e portando breviveram ao tempo e foram
compartilhamento de conhecimen-
colecionadoras. retiradas do Congo por funcio-
tos africanos entre as duas margens
O nários coloniais e levadas para
do Atlântico? Como ocorreu o pro- Assim, comecemos nossa
compartilhamento museus europeus, como o Royal
cesso de musealização da produção análise com a história da jovem
artística realizada na África e em sua
Museum for Central Africa, si-
de conhecimentos dona Beatriz Kimpa Vita (1684-
diáspora? Qual é o papel dos mu- tuado em Tervuren, na Bélgica.
1706), membro da nobreza local
seus na forma de narrar o passado congoleses entre as (Figura 1)
do Congo, que tinha uma cone-
de objetos e suas conexões com as duas margens do xão especial com Santo Antônio Embora a introdução do cul-
pessoas que os produziram? Este
Atlântico e o mundo dos ancestrais. Em to ao referido santo no Congo
texto traz outro contributo para o
seguida, mostraremos como esse estivesse ligada aos missionários
debate sobre as tradições religio-
sas africanas na diáspora: analisar O estudo das diásporas afri- culto se espalhou pela América europeus, a difusão e ressigni-
como o conhecimento das estatue- canas deve começar sempre com marcado pela perspectiva con- ficação do culto é resultado do
tas de Santo Antônio produzidas o estudo da África. O continente golesa. Kimpa Vita foi educada movimento liderado por Kimpa
por pessoas da região do Congo africano – a terra ancestral – deve e batizada no catolicismo, bem Vita e seus auxiliares. Missioná-
e da diáspora foi compartilhado ser central para qualquer análise como foi iniciada no rito propi- rios de diversas ordens religiosas
pelas comunidades de africanos e que busca compreender a disper- ciatório do kimpasi, voltado para levaram imagens de santos e ou-
seus descendentes; pensar o lugar resolver problemas que afetavam tros objetos católicos para igre-
são de seus povos. As pesquisas
da cultura material nas diásporas a comunidade (THORNTON, jas do Mbanza Congo, Pinda,
devem promover a compreensão
africanas e nas coleções museais; e
da história e da natureza das va- 2009, p. 55). Essa mulher ga- Luanda, Muxima e outras entre
mostrar que o início dos estudos
riadas culturas africanas, levando nhou notoriedade no contexto os séculos XV e XVII. Os Capu-
das estatuetas esteve imbricado
em consideração as diversidades da crise política sucessória que chinhos chegaram ao Congo em
com os propósitos de classificá-las
como “popular”, o oposto da cultu- regionais no continente. Além assolava o Congo desde a batalha
ra dominante no Brasil, vista como disso, devem reconhecer que os de Ambuíla (1665). Nesse con-
erudita (GONÇALVES, 2020). povos que deixaram a África e texto, Kimpa Vita faleceu numa
seus referidos grupos, coagidos morte ritual e “ressuscitou” sete
A escrita da história das diás-
ou não, trouxeram suas culturas, dias depois com outro nome e
poras deve levar em consideração
nova identidade, Santo Antônio. FIGURA 1 - Estatueta de Santo Antônio feita de
os mais diversos tipos de materiais ideias e visões de mundo e as liga de cobre, medindo 11,5 x 3,5 cm. Foi recolhida
para analisar os processos de com- compartilharam na diáspora. As- Como “a nova Santo Antônio”, na região do Luvo, Bacongo, Baixo Kongo, atual
ela passou a pregar ao povo. República Democrática do Congo. Atribuída ao
partilhamento de patrimônio cultu- sim, compreender as experiên- período entre os séculos 17 e 18.
ral comum, bem como as histórias cias das pessoas é fundamental Por volta de 1702-1703, ela Coleção de África do Museu Real da África Central,
das pessoas envolvidas. Este texto para dar feição humana às his- liderou no reino do Congo uma Tervuren, Bélgica HO. 23/09/1955.
tem por base uma extensa pesqui- tórias nas sociedades africanas e (COOKSEY, 2014, p. 74)

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1645 e tudo indica que introdu- Brasil. No século XVIII, cerca médio de Santo Antônio e São tal compartilharam suas ideias, saberes e
ziram o culto a Santo Antônio de de 2,2 milhões de pessoas de di- Gonçalo. Luzia cobrava duas tecnologias (SILVA-SANTOS, 2022).
forma mais sistemática. De todo ferentes origens aqui chegaram. oitavas de ouro de seus clientes
Para compreender como se deu o
modo, o santo foi popularizado Destas, cerca de 1,37 milhões pelos serviços espirituais pres-
compartilhamento de conhecimentos na
no Congo por meio das prega- eram da África Centro-Ociden- tados. Em troca, encomendava
diáspora, devemos, antes de tudo, consi-
ções dos antoninos de Kimpa tal (portos de Congo, Angola e missas para os santos supracita-
derar que o Atlântico era uma ponte, que,
Vita, como mostram os relatos Benguela). No século XIX, do dos, como forma de lhes retri-
ao invés de separar, unia as duas partes
deixados pelos missionários e as total de 2,3 milhões de pessoas buir pela “intervenção”. (ANTT,
dos continentes africano e americano. As
estatuetas de Santo Antônio que exportadas para os portos brasi- Inquisição de Lisboa. Processo
mesmas águas que transportaram pes-
sobreviveram ao tempo. leiros, 1,6 milhões eram da refe- n. 252, Luzia Pinta, fl. 54.)
soas tragadas pelo infame tráfico também
No Congo, o culto a Santo rida região.1 Na diáspora, o caso
No Brasil, durante o período carregaram suas ideias e conhecimentos.
Antônio tinha base nos cultos de Luzia Pinta é emblemático
da escravidão e do colonialismo Os exemplos acima, e muitos outros que
de aflição centro-africanos, fun- para compreender o alcance do
português, a maior parte dos re- não podem ser citados devido ao limite
damentados no modelo de cul- movimento liderado por Kim-
gistros sobre estatuetas de San- de páginas deste dossiê, mostram que
tos de espíritos da natureza, tais pa Vita e a circulação das ideias
to Antônio na posse de pessoas alguns padrões culturais se repetiram e
como os kimpasi – ritos propicia- de ressignificação de objetos do
de origem centro-africana e seus também foram ressignificados na diás-
tórios para alcançar saúde, por catolicismo no Congo, à luz das
descendentes estava relacionada pora. Pessoas sabedoras do universo cos-
exemplo, eram direcionados para concepções religiosas e políticas,
aos contextos de denúncia e re- mológico congolês compartilharam seus
os espíritos tutelares, os bisimbi nas quais os ancestrais têm um
pressão a seus usuários e usuá- saberes especializados na diáspora por
(SLENES, 2006, p. 305-306). Se- papel essencial para os vivos.
rias, que as utilizavam como meio da oralidade e da cultura material.
guindo essa tradição, outras pes-
Maria da Conceição, natural objeto de proteção e intermedia- Elas administravam medicinas, cuidavam
soas da África centro-ocidental
do Reino do Congo, teve sua ção com o mundo sobrenatural da relação entre o mundo dos vivos e os
residentes na região recorreram
filha Luzia Pinta (c. 1690) em (MARCUSSI, 2015, NOGUEI- antepassados, lideravam organizações,
a Santo Antônio em momento
Luanda. Ainda jovem, Luzia re- RA, 2015). Participantes de cul- bem como dividiam conhecimento sobre
de infortúnio, combinando sig-
cebeu os primeiros ensinamen- tos e revoltas datados do século tecnologias, como a arte da metalurgia e
nos católicos e congoleses.
tos sobre práticas religiosas-te- XIX também utilizavam estatue- formas de esculpir. Assim, a inserção de
Essa tradição chegou ao Bra- rapêuticas, comunicação com o tas de Santo Antônio em suas estatuetas de Santo Antônio no univer-
sil por meio das pessoas que mundo dos ancestrais e o pan- cerimônias (SLENES, 2006, p. so cosmológico de comunicação com o
foram escravizadas. Em termos teão do catolicismo, como San- 305-306). Em Minas Gerais, pre- mundo dos espíritos centro-africanos na
demográficos, os centro-afri- to Antônio. Por volta de 1705, dominaram as estatuetas desse diáspora era uma forma de ressignificar
canos, foco deste ensaio, em ela foi vendida para mercadores santo feitas de metal. O exem- o aprendizado da colonização à luz dos
termos globais, compuseram a brasileiros e levada para Minas plar selecionado para este traba- signos culturais de origem.
maioria dos africanos desem- Gerais. Em 1742, foi enviada lho, adquirido em Minas Gerais
barcados no Brasil durante o para os cárceres da Inquisição (Figura 2), guarda impressio-
período do tráfico transatlân- Portuguesa porque tinha o dom nante semelhança com a peça re-
tico de escravizados. Entre os de descobrir causas de doenças colhida no Congo (Figura 1). A
séculos XVI e XIX, cerca de 5,5 e de ministrar curas por inter- comparação entre as duas esta-
milhões de pessoas de diferen- tuetas de Santo Antônio feitas de Figura 2 - Santo Antônio, século XIX. Escultura de
tes sociedades africanas foram 1
Slave Voyage. Disponível em: metal evidencia que na diáspora bronze fundido; 3,6 x 1,1 x 0,7 cm. Coleção Márcia
<http://www.slavevoyages.org/esti- de Moura Castro, Minas Gerais. ©Fotografia Ana Pa-
involuntariamente enviadas ao mates/EMVZdieb>. pessoas da África centro-ociden- nisset (2007). Inv. Ax274.

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A cultura material africana anos 1950, surgiram as primei- marfim, metais, chifre e barro, pro-
compartilhada na diáspora foi ras publicações sobre estatuetas duzidas no Brasil, eram vistas por
alvo de perseguições de autorida- de santos e santas produzidas colecionadores e outros estudiosos
des religiosas e militares desde o na Região Sudeste, com predo- como o oposto das imagens euro-
peias, em termos de estilo ou quali-
período colonial até o século XX, minância das imagens antonia-
dade estética. Entretanto, estatuetas
porque as práticas das lideranças nas. Essas publicações foram
de Santo Antônio produzidas por
religiosas africanas e seus des- realizadas por colecionadores e
artistas de origem africana e afro-
cendentes não se enquadravam estudiosos de imaginária religio- descendentes não podem ser rotu-
nas regras da Igreja Católica, sa, em geral ignorantes sobre o ladas pela sua fatura como exóticas,
como evidencia o caso de Luzia contexto de produção artística e ingênuas, primitivas, toscas, rudimentares,
Pinto e tantos outras repreendi- o legado africano. Eles viajavam rústicas, grotescas, domésticas, populares e
das. Por isso, objetos como as pelo interior do estado de São reducionistas; não devem ser restritas
estatuetas de Santo Antônio, far- Paulo para visitar comunidades a uma região, a exemplo das cha-
tamente utilizados na interme- e comprar os objetos sagrados madas paulistinhas ou mineiras, nem
diação de problemas cotidianos dos moradores (LEMOS, 2010, a uma suposta herança luso-bra-
p. 260-269). sileira; não podem ser reduzidas a
da população negra livre ou es-
funções como fetiches ou amuletos,
cravizada, foram estigmatizados Nesse contexto, os coleciona- muito menos limitadas à condição
pela cultura europeia dominante dores brasileiros identificaram no social de seus artistas: “imaginária
e, consequentemente, ficaram Sudeste brasileiro um tipo de pro- escrava”.
restritos ao espaço das casas das dução de estátuas de Santo Antô-
nio, feitas de madeira escura (nó Esses adjetivos devem ser abo-
comunidades negras.
de pinho), e atribuíram sua autoria lidos da linguagem das artes, por-
aos “escravos” ou aos “negros”. que, no fundo, criam uma dualidade
Além dessa referência genérica e entre objetos de fatura europeia,
Colecionismo classificados como clássicos, eruditos,
descuidada sobre os artistas, os co-
das estatuetas lecionadores utilizaram a produção sofisticados, finos, delicados, portanto
europeia como modelo de análi- superiores, em oposição àqueles que
de Santo Antônio seriam sua contraparte, chamados
se e concluíram que tais objetos
produzidas por eram “grotescos”, “uma imitação de populares, de qualidade suposta-
grosseira, com sinais estranhos (...) mente inferior, porque foram pro-
artistas negros no duzidos fora do cânone acadêmico
espalhados pela peça” (ETZEL,
Brasil 1971, p. 154). Assim, a fase do co- de algum lugar da Europa. Esse
lecionismo, que teve seu auge entre binarismo é improdutivo, porque
No Brasil, as primeiras reco- os anos 1960 e 1990, é marcada por não educa as pessoas sobre os es-
lhas de objetos relativos às cul- análises superficiais e pouco infor- tilos produzidos no Congo e no
madas sobre o contexto cultural Brasil. Além dos referidos rótulos,
turas africanas, afro-brasileiras e
dos africanos que trouxeram seus ainda persiste a tendência, entre
indígenas tiveram início nos anos
conhecimentos para o Brasil (LE- acadêmicos e curadores, de utilizar
1930, por ocasião da criação do
MOS, 2010, p. 260-269; ETZEL, conceitos aplicados aos chamados
Serviço do Patrimônio Artísti- “encontros culturais”, tais como
1971).
co Nacional (SPAN), encabeça- aculturação, sincretismo, hibridis- Figura 3: Coleção de estatuetas de Santo Antônio do Museu Afro Brasil, São Paulo. ©Acervo
do por Mário de Andrade. Nos No campo da cultura visual, de Vanicléia Silva Santos, 2019.
mo, mestiçagem, crioulização e ou-
estatuetas feitas de nó de pinho,

42 | SAMBA EM REVISTA SAMBA EM REVISTA | 43


tros, para explicar a produção dessa os artistas no Brasil seguiam um pa- tos e estátuas de santos e santas de
fatura não europeia. O problema é drão “congolês” para confeccionar grande devoção popular no Brasil,
que essas clivagens interpretativas as estatuetas, que passava pela es- cujas faturas se aproximam dos
tendem a diminuir a agência criativa colha do material (a madeira) e das cânones de algumas sociedades da
dos artistas. formas (dentre outras, os minkisi) África Atlântica. Entre essas, há
(SLENES, 1992); Marina de Mello uma pequena vitrine com divisórias,
Recentemente, Joyce Oliveira
e Souza, por sua vez, tem interpre- contendo 32 estatuetas, sendo 29
fez uma revisão crítica da historio-
tação semelhante em relação ao antonianas e três de Nossas Senho-
grafia sobre essas pequenas escul-
material e a forma (SOUZA, 2002, ras (Figura 3). No entanto, quando
turas produzidas por africanos e
p.132; SOUZA, 2001, p.184-187). visitei o museu em 2019, não havia
seus descendentes no Brasil, como
legendas indicando proveniência,
Santo Antônio, com o objetivo de
datação, materiais nem dimensões
entender de que forma se estabele-
A musealização das das peças. Por outro lado, os textos
ceu o conhecimento sobre elas e os
complementares presentes nos catá-
motivos da preferência dos artistas estatuetas de Santo
logos organizados pelo curador do
pelo pinho da araucária para con-
Antônio no Brasil Museu, Emanoel Araújo, oferecem,
feccionar o referido santo. A autora
sobre a proveniência das estatuetas,
concluiu que, até a década de 1990,
No Brasil, há poucos museus e uma leitura mais especializada do
as publicações brasileiras sobre as
colecionadores dedicados à fatura que a expografia. Contudo, o foco
estatuetas de nó de pinho estiveram
não europeia de estatuetas de san- do catálogo A mão afro-brasileira, vo-
fortemente vinculadas a visões es-
tos; contudo, há diversos museus de lume I, acaba por focar na dimen-
tereotipadas, pois seus autores viam
arte sacra e também colecionadores são da escravidão que menospreza
a produção artística dos africanos e
particulares que possuem consi- o contexto de produção (LEMOS,
de seus descendentes como exótica
deráveis acervos da chamada “arte 2010).
ou primitiva. Ela também observou
sacra erudita”, isto é, europeia. O
que algumas análises ainda focam Em Ouro Preto, o Museu do
colecionismo de objetos classifica-
mais na “função” mágico-religiosa
dos outrora como “etnográficos”, Oratório tem uma coleção sig-
do objeto do que em sua produção
“populares”, “rurais” ganharam nificativa de oratórios de diver-
artística (OLIVEIRA, 2020, p. 78).
mais visibilidade no Brasil devido à sos tamanhos e materiais, que
A historiografia sobre as ima- sua inserção em coleções particula- pertenceram às mais diversas
gens não europeias de Santo Antô- res e, posteriormente, em museus. classes sociais brasileiras. Uma
nio ganhou um novo rumo a partir As maiores coleções de estatuetas
galeria do museu é dedicada aos Figura 4. Oratório descrito como “fatura popular, em inspiração afro-brasileira”. Proveniência: Minas Ge-
dos anos 1990, quando surgiram de Santo Antônio estão no Museu rais, século XIX. Nesse oratório há quatro imagens de Santo Antônio, três de madeira e uma de metal,
chamados “oratórios afro-bra-
pesquisas inovadoras que argu- Afro Brasil, Museu de Artes Sacras posicionadas em ambos os lados das portas abertas. No centro há uma Sant’Ana Mestra. Crucifixos, cru-
sileiros”. A curadoria do museu zes, corações, rosários, castiçais e colagens também foram adicionados a essa composição. © Museu do
mentavam que a tradição congo- e Museu de Antropologia de Jacareí,
inseriu estatuetas de santos nes- Oratório, Ouro Preto. Fotografia sem autoria e sem data. Acesso em 10 de agosto de 2022, em <https://
lesa norteou a produção artística em São Paulo. Em Minas Gerais, museudooratorio.org.br/oratorio/oratorio-afro-brasileiro-mo-099/>
estão no Museu do Oratório (Ouro ses pequenos oratórios (Figu-
daquele tipo de fatura no contexto
do Sudeste do Brasil. Predominam Preto) e no Museu de Congonhas. ra 4). Durante minha visita em
estavam expostos. A funcionária tituir os antigos modos de orga- Numa das paredes do museu
nessas análises os estudos dos códi- Esses museus, por sua vez, adqui- 30/03/2018, não havia legendas
esclareceu que as peças foram nizar os santos nos oratórios das foram formados nichos separa-
gos culturais do Congo subjacentes riram as peças dos colecionadores para os santos e santas, apenas
adquiridas pela colecionadora casas de devotos afro-brasileiros. dos por tipos de santos e santas,
aos usos das estatuetas e da socia- particulares. para os oratórios. Em conversa
separadamente e que a equipe tábuas votivas e outros motivos.
bilidade, criados por sujeitos do es-
O Museu Afro Brasil, em São com uma funcionária do museu, Por fim, o Museu de Congo-
curatorial fez os arranjos expo- O nicho dedicado a Santo An-
paço outrora integrados à entidade perguntei se os oratórios tinham nhas possui uma das mais orga-
Paulo, criou uma galeria chamada
política Kongo. Para Robert Slenes, gráficos, como forma de recons- tônio contém pequenas escultu-
de “arte popular”, onde há ex-vo- sido adquiridos da maneira como nizadas expografias que já visitei.

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produzindo preconceitos e de- ETZEL, E. Imagens religiosas de São ______. Santo Antônio Santo de Casa:
Paulo. São Paulo: Melhoramentos; identificação, análise e estudos
sinformando a população sobre EDUSP, 1971. para conservação de imaginária
a história, a memória da popu- brasileira. Trabalho de Graduação
lação afro-brasileira e a cultura GONÇALVES, Ana. Patrimônio (Graduação em Artes Plásticas) –
etnográfico (verbete). In: REZEN- FAAP, São Paulo, 2007.
material dos povos que forma- DE, Maria B. et al. (Org.). Dicioná-
ram o Brasil. rio IPHAN de Patrimônio Cultural.
Rio de Janeiro, Brasília: IPHAN/ REIS, J. J. Rebelião escrava no Brasil:
DAF/Copedoc, 2015. Disponível a história do levante dos malês em
As estatuetas de Santo An- em: <http://portal.iphan.gov.br/ 1835. 2. ed. revista e ampliada. São
dicionarioPatrimonioCultural/deta- Paulo: Companhia das Letras, 2003.
tônio produzidas no Congo e
lhes/32/patrimonio-etnografico>.
na diáspora são evidências his- SILVA-SANTOS, Vanicléia. Esta-
tóricas de sofisticadas tradições LEMOS, Carlos. A imaginária dos tuetas de Santo Antônio de marfim
escravos de São Paulo. In ARAÚJO, do Congo no Brasil? Uma análise
congolesas compartilhadas na E. A mão afro-brasileira: significado sobre a produção artística e a cul-
Figura 5. Coleção Santos de Casa no Museu de Congonhas (MG). ©Museu de Congonhas. Sem data. Disponível em tura visual no Atlântico. In: SILVA-
<http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/1599>. Acesso em 10 de maio de 2022. sociedade brasileira e os museus da contribuição artística e histórica.
-SANTOS, V. (Org). O marfim africa-
São Paulo: Tenenge, 1988, p. 260-
precisam contar corretamente 269. no como insígnia de poder. Contextos de
ras de madeira, marfim e metal, tipo de produção numa abstra- críticas direcionadas aos museus essas histórias. As curadorias dos
produção e usos, dentro e fora da
África. 2023 (No prelo).
com legendas indicando as pos- ção, pois não trata de quem pro- europeus referem-se aos méto- museus precisam adicionar em MARCUSSI, Alexandre A. Cativeiro
e cura: experiências da escravidão
síveis datações, proveniências duziu as peças e por que foram dos brutais de retirada dos obje- sua expografia, ao lado das es- atlântica nos calundus de Luzia
SLENES, Robert. A árvore de
Nsanda transplantada: cultos Kongo
e materiais de cada peça. Uma produzidas diferentes do cânone tos, à violência imposta aos po- tatuetas, textos com explicações Pinta, séculos XVII-XVIII. 2015. de aflição e identidade escrava no
tela interativa com acesso vir- europeu. Como discutimos aci- vos colonizados e à manutenção sobre o contexto de produção 530 f. Tese (Doutorado em História Sudeste brasileiro (século XIX). In:
Social) – FFLCH, Universidade de
tual foi colocada na proximidade ma, esses conceitos obliteram de expografias e legendas que dos dois lados do Atlântico, a FURTADO, J.; LIBBY, D. C. (Org.).
São Paulo. Trabalho livre, trabalho escravo: Brasil e
das vitrines. Assim, os visitantes a compreensão do contexto de continuam ressaltando a herança dificuldade de definir datação, Europa, séculos XVIII e XIX. São
podem observar os detalhes das criação dos objetos à luz dos câ- colonial. proveniência e autorias das peças MOTA, Thiago. A grande jihad: Paulo: Annablume, 2006. p. 273-
história atlântica da islamização da 316.
peças expostas e acessar outras nones estéticos do Congo e de e, sempre que possível, contar a Senegâmbia. 2018. Tese (Doutorado
A maioria dos museus no
informações, como suas dimen- sua cosmologia.
Brasil seguiu os métodos euro- história ou traçar a biografia de em Programa de Pós-Graduação SOUZA, M. de M. Catolicismo ne-
sões (Figura 5). Essa exposição em História) – Universidade Federal gro no Brasil: santos e Minkisi, uma
peus de recolha, catalogação e alguns objetos, vinculando-os
de Minas Gerais. reflexão sobre miscigenação cultu-
contou com a contribuição do aos seus proprietários ou artis- ral. Afro-Ásia, n. 28, 2002, p. 125-
primoroso trabalho de Ana Pa-
Conclusão exposição dos objetos. Apesar
NOGUEIRA, André. Santo for- 146.
de não terem se envolvido na tas. Essas medidas são, acima de
te! Devoção antoniana e práticas
nisset (2007; 2011), que fez a ca- tudo, estratégias para combater o de cura ilegais nas Minas do sécu-
Devido a suas trajetórias co- retirada de objetos da África du- SOUZA, Marina de Mello e. Santo
talogação da coleção de Ângela racismo e superar antigas repre- lo XVIII. Dimensões, v. 34, p. 5-27, Antônio de nó-de-pinho e o cato-
loniais, os museus desvirtuaram rante o colonialismo europeu, 2015. licismo afro-brasileiro. Tempo, Ni-
de Castro Moura, a colecionado- sentações sobre os africanos na terói, n. 11, 2001, p. 171-188.
a história das populações subme- os museus brasileiros possuem
ra que adquiriu uma parte consi- sociedade brasileira e em todas OLIVEIRA, Joyce F. A fronteira
tidas ao colonialismo e deturpa- valiosos objetos da África e de velada das esculturas de nó-de-pi-
derável do acervo que constitui o SOUZA, Marina de Mello e;
ram a compreensão dos objetos, sua diáspora, recolhidos de for- as sociedades construídas sob o nho no Brasil. In: BRANDÃO, A. VAINFAS, R. Catolização e poder
Museu de Congonhas.
com o objetivo de ressaltar a ma violenta pela polícia brasileira lastro do tráfico de escravos e da et al. (Org.). As fronteiras na história no tempo do tráfico: o reino do
da arte. Bragança Paulista: Margem
O principal problema das escravidão. Congo da conversão coroada ao
superioridade europeia e justifi- nas casas das pessoas e nos ter- da Palavra, 2020. p. 71-87.
movimento Antoniano, séculos
três exposições é a ausência de
car o colonialismo. Nos museus reiros de candomblé, por agentes PANISSET, Ana. O colecionador XV-XVIII. Tempo, Niterói, v. 3, n. 6,
referências à produção artística 1998, p. 95-118.
europeus, a cultura material de do Estado em suas “missões de e a coleção. In: O inventário como
realizada por africanos e seus Referências bibliográficas ferramenta de diagnóstico e conservação
povos não europeus foi reduzida pesquisas folclóricas” e também preventiva: estudo de caso da cole- THORNTON, John. The Kongolese
descendentes no Brasil. A ênfase COOKSEY, S. et al. Kongo Across
ora a sua função, ora a sua for- por colecionadores particulares. ção “Santos de casa” de Marcia de Saint Anthony: Dona Beatriz Kimpa
na função do objeto: “santo de the Waters. Gainesville, USA: Uni- Moura Castro. 2011. Dissertação Vita and the Antonian Movement,
ma, sem qualquer conexão com Portanto, esses museus devem versity Press of Florida, 2014. (Mestrado em Artes) – Escola de
casa” e/ou no aspecto concei- 1684-1706. Cambridge: Cambridge
os artistas e suas sociedades. As cuidar para não continuarem re- Belas Artes, Universidade Federal University Press, 2009.
tual “popular” transforma esse de Minas Gerais.

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Entre o Sagrado e
o Intelectual:
O som dos tambores
e os caminhos de uma
exposição contracolonial
na formação de uma
reinadeira
Ana Luzia da Silva Morais

Mulher preta do interior de Minas, natural da cidade de Oliveira, neta de Reinadeiros, Rainha Konga de
Nossa Senhora das Mercês e N’dandalunda da Festa do Congo do Reinado de Nossa Senhora do Rosário
e também Rainha Konga de Nossa Senhora das Mercês e Ndandalunda na Festa da Abolição no Inzo
Atim Kaiango ua Mukongo localizado na comunidade Braúnas em Juatuba-MG, tendo como zelador o
Tat’etu Odesidoji e a zeladora Mamet’o Mavuleji, sou também professora de História, cofundadora e
membra da coordenação do Coletivo Encontro de Cultura Afro-Brasileira de Oliveira, membra do GT
Emancipações e Pós-Abolição em Minas, tendo defendido, em fevereiro de 2022, a pesquisa intitulada
Diferentes crenças rezam uma mesma fé – Contemplação do Rosário por uma Rainha Konga em diálogo
com as memórias dos Reinadeiros de Oliveira(MG), pelo Programa de Pós-graduação em História da
Universidade Federal de São João del-Rei (MG) – Linha Cultura e Identidade, com apoio de bolsa Capes.

S alve Maria! Makuiu, Saravá,


Motumba, Kolofé, Aboru
Aboye! Com essas variadas sau-
si1 Nkosi e ao Orixá2 Ogum, os
senhores da guerra e também da
alegria e da comemoração que
Sendo assim, direciono meu pe-
dido ao tambor sagrado, princí-
pio da nossa conexão ancestral
dações comunico com o meu sa- deram caminho para o samba, africana que aprendi a respeitar
grado pedindo a bênção a todos para os instrumentos musicais. no Rosário de Oliveira-MG. É
os meus ancestrais e antepas- 1
sobre os caminhos e vivências
Divindade africana cultuada nos
sados(as), para falar. De modo Kandomblés de origem banto. desse sagrado e como ele é ex-
Myriam Vilas Boas. 2005-2016. Reinado de Oliveira-MG (Fotoframe) do vídeo “Vem ver”.
2
particular peço a bênção ao Nki- Divindade africana cultuada nos posto e traduzido nas comuni-
Kandomblés de origem Jejê e Iorubá.

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dades acadêmicas que quero dis- tadual Luiz de Bessa, em Belo ciosa herança deixada pela mãe. algum lugar no mundo, dentro
correr neste artigo. Horizonte, no ano de 2010. Se- Os registros em preto e branco da parcela que lhe cabe. Consi-
gundo Myriam: conseguiram dimensionar um derar o Reinado uma manifes-
Para dar início às questões
passado cíclico presente nas co- tação sincrética ou puramente
que trago, quero convidá-los (las) Em Oliveira, como ocorre nas
comunidades dos Arturos e do munidades Reinadeiras. A partir católica e híbrida nos impede de
a contemplar as fotografias de
Jatobá, há preocupação muito desses fotoframes, convido o(a) enxergar a grandeza do sagrado
Myriam Vilas Boas. A fotógrafa grande em preservar os rituais.
O congado não é folclore, é um leitor(a) a ver um pouco a Festa ancestral africano. Minha fala ex-
acompanhou durante onze anos
ritual de fé, como celebrações da do Rosário a partir também de pressa uma parcela das dificulda-
o cotidiano dos ternos em seus Igreja Católica. Continuo vol- uma lente decolonial. Ao trazer des vividas por mim ao longo do
rituais festivos, de modo particu- tando a Oliveira até hoje, criei
amizade muito grande com o questões sobre essa manifesta- meu processo de formação em
lar os descendentes do saudoso
pessoal das guardas de lá. Sem- ção religiosa, que é uma parcela História e de forma específica na
capitão Leonídio João do San- pre comunico a eles sobre as ex- da cosmovisão banto de comu- pós-graduação, em que, como
tos, em Oliveira. Pela sua lente posições. Tenho muito carinho e
cuidado com eles. 5 nidades afro-brasileiras, ainda Rainha Konga, escolhi pesquisar
sensível ao sagrado dessa mani-
vista como folclore no sentindo sobre as questões religiosas e an-
festação, Myriam fotografou os
Ela se refere aos integrantes mais pejorativo que carregue a cestrais do Reinado de Oliveira, a
rituais da festa do Rosário pelas
das Guardas de Moçambique historicidade do termo, a partir ** Myriam Vilas Boas. 2005-2016. Reinado de Oliveira-MG partir das minhas escrevivências
ruas e terreiros3 dos ternos.4
Nossa Senhora do Rosário, de do Reinado, discuto o processo (Fotoframe) do vídeo “Vem ver”. na festa do Rosário em diálogo
Desse trabalho, Myriam tam- Moçambique Nossa Senhora das da relação entre tempo e memó- com as memórias de outros(as)
bém produziu a exposição “Azul Mercês e de Congo Nossa Se- desdobramentos e significações respeito às percepções externas
ria, repensando a escrita da His- Reinadeiros(as), utilizando esse
novas nesta manifestação híbri- sobre o congado, que terminam
Crença” na Passarela Cultural do nhora do Rosário. tória. Trago, então, uma fala de operador teórico e a teoria e Me-
da do catolicismo negro de raiz por deixá-lo “sem lugar no mun-
anexo da Biblioteca Pública Es- Talita Viana e Sebastião Rios, so- banta no Brasil. Os elementos do”. Desconfiado da ortodoxia todologia da História Oral e His-
Myriam faleceu em 2017, mas dessa espiritualidade estão pre- do culto, o clero apostólico ro-
3
Também chamados de quartéis, bre o lugar do Congado no mun- tória do Tempo Presente. Nesse
deixou um importante patrimô- sentes cotidianamente e não mano, muitas vezes, vê o con-
casa e sede dos(as) Reinadeiros (as),
do, ao apresentar o projeto reali- apenas no espaço-tempo das gado como uma religião sincré- lugar comecei a viver as sutis
onde reúne a comunidade durante nio, que, segundo o seu herdeiro
todo o ano em dias de ensaios, reu- zado em 2018 pela Universidade festas. Caboclos, pretos velhos tica e não entende que ele seja violências do campo epistemoló-
niões e festas, aberturas de Reino e Thiago Vilas Boas, é a mais pre- fazem parte da vida, do dia a dia, suficiente ou puramente católi-
Federal de Goiás em parceria gico, compreendido apenas pela
outras atividades. aconselhando, protegendo.6 co. No lado oposto, alguns seg-
4
Grupo de dançadores(as), chamado 5
Cf. <https://www.catalogodasartes.
com o Iphan, sobre o terno de mentos do movimento negro, filosofia do colonizador. Estou
também em outros regiões de Minas com.br/noticia/DUD>, 05/07/2010.
geralmente vinculados aos can-
Moçambique do capitão Tonho falando das complexidades do
de guarda, corte ou banda. Acesso em: 02/08/2022. Segundo o autor e a autora: domblés Ketu/nagô reafricani-
Pretinho da cidade de Itapeceri- zado, não percebem o congado racismo estrutural, que, segundo
Nesse aspecto, o projeto visou
ca (MG). como religião afro-brasileira por o professor Silvio Almeida, pas-
explicitamente enfrentar um
entender que ele seria católico,
Busca a salvaguarda e divulgação problema muito comum com sa também pela produção histó-
logo, da religião do colonizador
das concepções religiosas e das rica. Ao assumir o meu lugar de
(Viana, Talita & Rios, Sebastião.
práticas culturais dos descen- 6
Cf. <https://jornal.ufg.br/n/
dentes de africanos na América,
2016, p.20). fala, essas estruturas ficam cada
104518-mocambique-do-tonho-
mostrando a tradição das dan- -pretinho,07/03/2028>. Acesso em: vez mais evidenciadas. Segundo
ças, dos ritmos, das concepções 02/08/2022. Djamila Ribeiro,
religiosas e dos sentidos dos Por meio das minhas pesqui-
cantos presentes no Congado. sas, dou ênfase à visão externa Falar de racismo, opressão de gê-
** Segundo o historiador Samuel Avelar nero, é visto geralmente como algo
Nas cerimônias de coroação de Jr. (2019), frame significa desenhos ou da autora e do autor, os espa- chato, mimimi ou outras formas de
reis congos nas festas de Nossa quadros, e também são conhecidos por
“frames por segundo”. Os vídeos são ços acadêmicos. Sendo assim, deslegitimação. A tomada de cons-
Senhora do Rosário, os tambo- ciência sobre o que significa deses-
compostos por frames, ou seja, um con-
res e as danças invocam de um vejo no universo acadêmico uma
junto de figuras em sequência que apre- tabilizar a norma hegemônica é vista
modo africano os santos católi- sentam a ilusão do movimento. Fotofra- aparente dificuldade de colocar como inapropriada ou agressiva por-
Myriam Vilas Boas. 2005-2016. Reinado de Oliveira-MG (Fotoframe) do vídeo cos, pretos velhos, caboclos, an- me é a captura de apenas um frame ou que aí se está confrontando o poder
“Vem ver”. cestrais, e conferem a seu culto um quadro de um determinado vídeo. o Reinado ou o Congado em (Ribeiro, Djamila. 2017, p. 81).

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de manutenção e reconstrução suas análises, ou mesmo proble- narrativas são pesquisadas, re- memórias herdadas dos tempos
das culturas tradicionais e das matizando as violências sofridas produzidas e questionadas. Sen- da escravidão e nas memórias
mudanças feitas nas próprias pelos(as) Reinadeiros(as), como do assim, penso em uma análise construídas no presente na rela-
estruturas do catolicismo nas parte do processo de naturaliza- decolonial também para analisar ção com os antepassados e an-
regiões centro-africanas. Nessa ção do racismo. o Reinado. cestrais, conseguimos enxergar
compreensão, retomei o traba- Contudo, entrevistas como Então, como trazer outras e viver aspectos da cosmoper-
lho de Marina de Mello e Souza a que realizei com a mestra, fi- narrativas decoloniais para pen- cepção banto do Reinado que às
(2002) para repensar os rituais lósofa e capitã de Massambique sar o Reinado? É possível, a par- vezes é difícil de ser identificada
que aconteciam no interior das Pedrina de Lourdes Santos, da tir de uma análise afrocentrada usando lentes coloniais, e isso
irmandades, as coroações dos cidade de Oliveira, mostram, das fontes, encontrarmos pontos afeta o entendimento externo e
Reis Negros e os Reinados fes- como ela declarou, que “o favor de ressignificação das práticas interno dessa manifestação reli-
tivos, vistos como profanos. No que nós, negros do Rosário, não culturais tradicionais dos povos giosa, que em muitos lugares de
Brasil colonial, a ressignificação conseguiremos pagar a Nossa banto, diluídas e razoavelmente Minas já se tornou parte do ca-
das culturas tradicionais pouco Senhora do Rosário, São Benedi- compreendidas dentro do Reina- lendário litúrgico das igrejas ca-
Myriam Vilas Boas. 2005-2016. Reinado de Oliveira-MG aparece registrada nos estatu- tólicas locais, por mais evidentes
to e Santa Efigênia, é eles terem do. Não estou com isso dizendo
(Fotoframe) do vídeo “Vem ver”. tos das irmandades analisadas que estejam os elementos funda-
aceitado ser o pano de frente para que os trabalhos históricos rea-
pela maioria dos historiadores, a nosso culto à ancestralidade”.7 lizados até então não tenham mentais de relação com a ances-
Confrontar a norma hege- ção dos reis negros. Segundo a e por vezes, quando aparecem, A proposta, então, é justamente abordado esses aspectos; talvez tralidade.
mônica é o ponto de confron- autora, no contexto pós-diaspó- é de modo conflituoso e pouco repensar a escrita da História a não tenham considerado essa a O Reinado em Minas, ao vi-
to do meu trabalho, a partir do rico, essa manifestação de culto problematizado, devido à ausên- partir do processo das memórias base para a análise. Nas nossas ver seus processos de reinven-
momento em que, como Rainha à Santa Virgem teria sido ressig- cia de outras fontes para serem construídas no presente cíclico
Konga, assumo a primeira pes- nificada no interior das irmanda- contrapostas. Nas últimas duas do Reinado. A capitã Pedrina,
soa para construir a narrativa des, sendo caracterizada como décadas, por meio da História assim como outros(as) Reina-
histórica. Reinado, Congado e produto do cristianismo africano Oral, foi produzida uma exten- deiros(as) de Oliveira, apresenta
Congadas são os termos mais e posteriormente do cristianis- sa bibliografia sobre as Festas aspectos da nossa fé no Rosário
utilizados na produção histo- mo negro, e hoje associada ape- do Rosário/Congado e Reinado que nos ajudam a repensar essa
riografia brasileira para definir nas ao catolicismo popular. Por em Minas, e as muitas que tive escrita. Todavia, pensando nas
essa manifestação popular de meio dos documentos coloniais, a oportunidade de conhecer áreas da História do Tempo Pre-
origem afro-brasileira, descrita de modo especial atas e estatu- produziram fontes importantís- sente e História Oral, é impor-
primeiro por muitos folcloris- tos das irmandades dos homens simas, mas muitos profissionais tante e necessário repensarmos
tas e higienistas que parecem ter pretos, a historiografia acreditou mantiveram em suas análises as a escrita da história do Reinado,
disseminado por Minas o termo ter encontrado um caminho para mesmas discussões teóricas colo- pensando nas políticas antirra-
Congado. Estudos importantes desvendar a estrutura devocional nialistas. Considero essa aborda- cistas e nos seus impactos nas úl-
como o da historiadora Marina dos pretos à Senhora do Rosário. gem uma forma de diminuir cada timas décadas, pois mesmo que
de Mello e Souza (2002) trouxe- Novas questões apresen- vez mais as chances de encon- o nosso ofício tenha nos últimos
ram aspectos relevantes sobre a tadas por Elizabeth Kiddy, Linda trarmos uma herança ancestral anos se encontrado, no Brasil,
origem do culto a Nossa Senho- Heywood, Lucilene Reginaldo e africana, mais complexa nessa em lugar de desprestígio, nossas
ra do Rosário, ainda nas regiões Leonara Delfino ajudaram-me manifestação, para além do cato-
7
Entrevista da capitã Pedrina de
centro-africanas, pela coloniza- a pensar o espaço das irmanda- licismo que muitas vezes apare-
Lourdes Santos, concedida a Ana Myriam Vilas Boas. 2005-2016. Reinado de Oliveira-MG
ção no processo de cristianiza- ce como o pano de fundo para Luzia da Silva Morais, em janeiro de
des pretas também como lugar (Fotoframe) do vídeo “Vem ver”.
2020.

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tendo apenas como referência os anos de 1923 a 1947, segun- ancestralidade de modo singular,
os colonizadores. Os códigos de do Fernanda Rubião (2010), ela mas posso dizer que as vezes ela
linguagem e a cosmopercepção teria sido proibida e paralisada está ligada aos seus antepassados
do mundo europeu estupraram pelo menos três vezes pela Igreja familiares e também às entida-
o meu doloroso exercício de es- Católica e pela burguesia branca des, Nkisi e orixás.
crever a partir da cosmopercep- local. Todavia, a festa retorna em
Apesar de minha fala denun-
ção ancestral banto, que estou na 1950 e não sofre mais paraliza-
ciar um despreparo das universi-
busca de melhor compreender. ções. Nesse período a festa teria
dades brasileiras para acolher e
Ou, então, diziam que era melhor sofrido mudanças em sua estru-
respeitar as(os) historiadoras(os)
eu ter apresentado este projeto a tura ritualística, também como
negras(os) e suas análises no
outras áreas do conhecimento estratégia para evitar novas proi-
campo da escrevivências, cami-
como a Antropologia, Sociolo- bições, e assim de alguma manei-
nhamos para novos rumos da
gia ou Ciência da Religião, por ra o discurso ancestral começou
construção epistêmica sobre as
exemplo, que tem vários traba- a desaparecer. Mas, por meio da
histórias das áfricas, sobre a his-
lhos importantes no campo do minha análise pautada nos últi-
tória da diáspora, sobre a história
sagrado do Reinado de Oliveira, mos 17 anos, a festa é realizada
da resistência e protagonismos
correndo menos risco de receber hoje por pessoas de diferentes
dos(as) pretos(as) nos processos
duras crítica do que no campo da crenças, como umbandistas, kan-
de abolição e pós-abolição. Hoje
História. domblecista, kardecista, católi-
existe um amplo debate e uma
cos, neopentecostais em peque-
Myriam Vilas Boas. 2005-2016. Reinado de Oliveira-MG (Fotoframe) do vídeo “Vem ver”. Mas uma das questões apre- grande produção nesse campo
na quantidade e aqueles(as) que
sentadas na pesquisa sobre o Rei- e um crescimento e atuação dos
ção da tradição, tende cada vez em Nossa Senhora e nos Santos científico. Tal observação ilustra a têm o Rosário como sua religião,
ordem colonial na qual intelectuais
nado de Oliveira, por meio das movimentos negros em com-
mais a associar-se ou comprar o Padroeiros não está necessaria- mas que comungam de uma fé
negras/os residem: “Você tem uma fontes orais e das minhas escre- partilhar, produzir e reproduzir
discurso religioso que identifica mente ligada aos dogmas da ins- perspectiva demasiado subjetiva”,
vivências, é que a maioria dos(as)
ancestral e cada um entende a
esse conhecimento, assim como
muito pessoal; “muito emocional”
a manifestação como puramen- tituição. Mas quando cheguei na representados em muitas festas do
(Kilomba, Grada.2019, pg.51) narradores(as) diz acreditar que Rosário pelos ternos.
algumas universidades públicas
te católica, desconsiderando sua Universidade, tentando apresen- a festa é ancestral e que os pri-
origem para além das irmanda- tar uma festa com o meu olhar Reconheço-me na fala de
meiros templos religiosos onde
des e problematizando pouco de vivência, a minha voz sofreu Kilomba, e não me deixei inti-
ela se constitui são a senzala e
as narrativas construídas sobre a tentativas de silenciamento, e já midar pela posição de muitos:
os navios negreiros. O Reinado
fé dos Reinadeiros, que mantém na pós-graduação encontrei al- prossegui com a pesquisa. E as
é realizado em Oliveira há mais
sua conexão com a ancestralida- guns profissionais que me incen- possíveis soluções para esta pro-
de duzentos anos e teria iniciado
de. O Reinado de Oliveira, que tivaram. Entretanto, a pesquisa blemática às vezes eram mais
no século XVIII, por negros es-
eu vivo e busquei compreender não deixou de ser vista como violentas do que a posição sobre
cravizados de Oliveira, ainda no
também por meio da pesquisa, é muito bonita, pela sensibilidade minha análise autorreferencial.
interior das matas, por meio do
identificado pela maioria dos(as) das narrativas, pelo meu lugar de Os perigos de ser uma mulher
toque de Kandombe.8 Durante
narradores(as) Reinadeiros(as) Rainha Konga, mas pouco cien- preta, historiadora, usando da
8
Nome dado aos tambores e rituais
como uma festa ancestral, que tífica. Segundo Grada Kilomba: metodologia da História Oral e sagrados, reconhecidos como uma
mantém, por respeito e tradi- Como acadêmica, por exemplo, é da História do Tempo Presen- das origens do Reinado no Brasil. Eles
comum dizerem que meu trabalho são anteriores à criação dos ataba-
ção, a pequena conexão com a te, foi combatido pela indicação ques usados nos Kandomblés no Bra- Myriam Vilas Boas. 2005-2016. Reinado de Oliveira-MG (Fotoframe) do vídeo
acerca do racismo cotidiano é mui-
instituição católica, pois a sua fé to interessante, porém não muito de muito embasamento teórico, sil e o ritual é considerado o pai de “Vem ver”.
uma família de sete irmãos que são

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Referências bibliográficas ______. Progresso e religiosidade: RUBIÃO, Fernanda Pires. Os ne-
Irmandades do Rosário em Minas gros do Rosário: memórias, iden-
Gerais, 1889-1960.Tempo, n. 12, di-
AVELAR JR., Samuel Pereira. ciembre, 2001, p. 93-112.Universi-
tidades e tradições no Congado de
“Beira mar ô, a Congada é coisa de dade Federal Fluminense, Niterói, Oliveira (1950-2009). Dissertação
Preto Velho” – Memória e cons- Brasil. do curso de Pós-Graduação em
ciência histórica: a Festa do Ro- História, na Universidade Federal
MARTINS, Saul. Congado: família de
Fluminense. Niterói, 2010.
sário na comunidade São Dimas. sete irmãos. Belo Horizonte: SESC,
Universidade Federal de São João 1988. SOUZA, Marina de Mello e. Reis
del Rei. Dissertação apresentada negros no Brasil escravista: história
REGINALDO, Lucilene. Os Rosá-
ao Programa de Pós-Graduação das coroações do Rei Congo. Belo
rios dos Angolas – Irmandades de africa-
em História. 2019. Horizonte: UFMG, 2002.
nos e crioulos na Bahia Setecentista. São
Paulo: Alameda, 2011.
VILAS BOAS, Myriam Vilas.
Vem ver: Festa do Reinado de Olivei-
Myriam Vilas Boas. 2005-2016. Reinado de Oliveira-MG (Fotoframe) do vídeo “Vem ver”. ra/MG – Retratos. Em <https://
www.youtube.com/watch?-
têm reconhecido, por meio de exclusão do diferente tratamento Esta mudança verticalizada v=yn48D8B54Z4>. Acesso em
vários programas, os saberes tra- dado a nós pesquisadoras(os) ne- também precisa acontecer em :03/08/2022.
dicionais africanos e afro-brasi- gras(os) da História Oral. A fonte outros espaços institucionali-
DELFINO, LEONORA. O Rosá-
leiros. Os impactos são muitos, e a metodologia da História Oral zados de produção do conhe- rio das Almas Ancestrais: frontei-
mas atingem de forma intimista precisam ser realmente valoriza- cimento, pensando inclusive na ras, identidades e representações do
a grande população, ao mesmo das, desmistificando o lugar sub- História Pública e em como são viver e morrer na Diáspora Atlân-
tica. Freguesia do Pilar – São João
tempo que, cada vez mais, nós, jetivo e perigoso apenas dessa construídas e expostas as comu- del Rei (1787-1841). Belo Horizon-
afrodescendentes, vamos toman- fonte, pois sabemos pelo ofício nicações que apresentam esses te: Clio Gestão Cultural e Editora,
do dimensão dos espaços que os perigos de utilizar qualquer 2017.
saberes. As formas de expor as
devemos ocupar, vamos reivin- fonte se não for bem problema- temáticas afro-brasileiras geral- HEYWOOD, Linda M. De portu-
dicando o nosso direito de ser tizada. O combate à discrimina- mente são ricas em pesquisa, guês a africano: origem centro-afri-
no mundo e, aos poucos, de for- ção racial precisa passar também belas em sua iconografia, mas cana das culturas atlânticas crioulas
ma lenta, vamos movimentando pela continuidade das políticas esvaziadas de sentidos ances- no século XVIII. In: HEYWOOD,
as estruturas. Entretanto, essas públicas que garantem não só trais, porque a lente está focada Linda M. Diáspora negra no Brasil.
estruturas têm sido movidas a entrada, mas a permanência nas violências reproduzidas de Tradução de Ingrid de Castro Vom-
substancialmente pelas bases, e e empregabilidade das(os) forma naturalizada por meio da pean Fregonez; Thaís Cristina Cas-
a mudança verticalizada também historiadoras(os) negras(as). E son e Vera Lúcia Benedito. São Pau-
colonialidade. Que Nkosi nos
precisa acontecer. as nossas memórias precisam ser lo: Contexto, 2019.
dê caminhos abertos e que a Se-
respeitadas e reconhecidas como nhora Manganá9 nos ampare nas KIDDY, Elizabeth W. Quem é o Rei
O combate à discriminação
um conhecimento produzido a travessias. do Congo? Um novo olhar sobre os
racial e étnica no campo dos pro-
partir das memórias herdadas, reis africanos e afro-brasileiros no
cessos da memória precisa, den-
das lutas do tempo presente e Brasil. In: HEYWOOD, Linda M.
tro das universidades brasileira, Diáspora negra no Brasil. São Paulo:
pela forma, diferente da colo-
de forma específica no campo Contexto, 2019. p. 101-191. Myriam Vilas Boas. 2005-2016. Reinado de Oliveira-MG (Fotoframe) do vídeo
nialidade, de compreender, ser e
da História, passar primeiro pela 9
Nome em língua africana dado pelos “Vem ver”.
estar no mundo. Reinadeiros à Senhora do Rosário.

56 | SAMBA EM REVISTA SAMBA EM REVISTA | 57


Musealização
da Escravidão
e da Cultura
Negra
Um acervo
do samba em
primeira pessoa
Desirree dos Reis Santos

Doutoranda em Museologia e Patrimônio pelo PPG-PMUS/UNIRIO/MAST, pes-


quisadora colaboradora no Museu do Samba e coordenadora no projeto Terri-
tórios Negros (Instituto 215 | NEGRAM/UFRJ). A versão ampliada deste artigo
foi publicada na revista Ventilando Acervos (Museu Victor Meirelles/IBRAM),
jul. 2022.

A luta pelo direito à memória


e à história afro-brasileiras
nos traz importantes reflexões
dera a escrita como ato político,
uma forma de tornar-se sujeito
na estrutura colonial em que o
hooks, Grada tece reflexões so-
bre a violência colonial, que não
se restringe à exploração mate-
sobre o lugar de “outridade” re- lugar dado às pessoas negras é rial, mas se manifesta sobretudo
lacionado à população negra. O objetificado. Narrar sua própria na criação de subjetividades e de
que nos remete aos estudos de história,2 sendo autora e autori- pessoas racializadas, pautadas na
Grada Kilomba e sua escrita de dade, é resistir a uma história de ideia de diferença, hierarquia e
si em Memórias da plantação,1 ao silêncio imposto. poder, cujo referencial de cen-
narrar a realidade psicológica do tro e símbolo de humanidade é
Tendo como referência estu-
racismo. Kilomba é uma intelec- a branquitude. E a partir desse
dos como os de Frantz Fanon,
tual negra, nascida em Portugal, centro idealizado, marca-se não
Paul Gilroy, Stuart Hall e bell
com origens em Angola e em só o “outro”, mas também a
São Tomé e Príncipe, que consi- 2
No Brasil, Neusa Santos Souza é uma “outridade”, isto é, a projeção de
das principais referências para refle-
1
Memórias da plantação foi publica- tirmos, em perspectiva psicanalítica, tudo aquilo que o sujeito bran-
do originalmente em inglês em 2008, sobre a ideia de autonomia a partir co não deseja ver reconhecido.
mas só teve tradução para a língua do discurso elaborado pelo negro so-
portuguesa em 2019. Os episódios de bre si em uma sociedade de classe, Contar sua própria história, sua
racismo cotidiano partem de entre- de ideologia, de estética, de compor- própria realidade, então, é uma
vistas realizadas por Grada com mu- tamentos dominantes brancos (SOU-
lheres negras. ZA, 1983, p. 17). maneira de tornar-me “eu mes-

SAMBA EM REVISTA | 61
ma” e “oposição absoluta do que va-se a instituição referência na Historicamente, as narrativas bistas na geração de novas fontes vaguarda de seus patrimônios bém histórias de seus antepassa-
o projeto colonial predetermi- salvaguarda desses bens cultu- sobre culturas afrodiaspóricas primárias e na salvaguarda dos culturais. dos, o que permite, por exemplo,
nou” (KILOMBA, 2019, p.28). rais, reconhecidos em 2007 pelo são subjugadas nos museus no bens titulados. Pelas recomen- No acervo, há mais de 160 conhecermos territórios e cultu-
Portanto, pode ser considerado Iphan. O passo seguinte foi, a mundo e no Brasil. O museólogo dações do dossiê de candidatura, gravações. Registram-se as me- ras negras que entrelaçam vidas
um ato de descolonização. partir de 2009, a implantação do Marcelo Bernardo da Cunha aprovado em 2007, o alerta era mórias do samba como forma e criações de grandes nomes do
centro de documentação e pes- chama a atenção para o ideal de dado: de expressão na dança, na mú- samba do Rio de Janeiro. Con-
A partir dessa linha de inter-
quisa do Samba Carioca (VA- branqueamento e o imaginário [Faz-se necessária] Formação de
sica, na religiosidade, na poesia, tribui, assim, com diversos estu-
pretação, buscaremos delinear o pesquisadores dentro das diversas
LENÇA, 2009). E uma de suas civilizatório eurocêntrico como na cena. Suas matrizes, seus ri- dos, até mesmo os que procuram
presente artigo como possibili- comunidades de sambistas do Rio
primeiras medidas foi constituir fatores determinantes na produ- de Janeiro para que a coleta, o re-
tos, sua culinária, seus atores, seu identificar lideranças e fundado-
dade de compreender a atuação gistro e a análise dessas formas de
o núcleo de história oral, vol- ção de imagens deturpadas sobre modo de vida. Baianas, passistas, res de escolas de samba, des-
do Museu do Samba: um museu expressão, de seu cenário e sua tra-
tado à criação de documentos a presença negra na sociedade jetória sejam feitas cada vez mais
velhas-guardas, mestres-salas, cendentes da última geração de
criado e dirigido, em sua maioria, pelos próprios atores sociais e seus
audiovisuais que registram, por brasileira nos espaços museoló- africanos e escravizados da re-
por pessoas negras a fim de ins- grupos. Isso atenderá a um an- cozinheiras, presidentas e presi-
meio de entrevistas, histórias de gicos (CUNHA, 2017, p. 78-79). seio de que a sua história possa
dentes (sambistas) de escolas de gião dos Vales do Café do século
titucionalizar espaços de poder, ser contada por eles mesmos,
vida de importantes sambistas O racismo atravessa e molda as samba, compositoras, compo- XIX.6 É possível encontrar falas
de representação e de narrativas valorizando assim vozes mergulha-
cariocas. representações da cultura negra das no cotidiano do fazer e viver o
sitores, porta-bandeiras, funda- de depoentes sobre outros im-
em primeira pessoa, historica- samba no Rio de Janeiro. (IPHAN;
Denominado “Memória das em boa parte de nossos museus. dores de agremiações, filhos de portantes sambistas, que, já fale-
mente negados pela presença da CCC, 2014, p.167. Grifo nosso.)
Matrizes do Samba no Rio de O desenvolvimento do Mu- sambistas memoráveis, ritmistas, cidos, permanecem somente nas
lógica colonial. Para tal análise,
Janeiro”, o programa de depoi- seu do Samba pode ser lido Os efeitos dessa premissa intérpretes. Desde 2009, trajetó- lembranças de algumas gerações
daremos enfoque ao seu Progra-
mentos é uma ação continuada como uma das inúmeras ações, podem ser vistos nos esforços rias como as de Dodô da Porte- do samba. Prestar o depoimen-
ma de História Oral, iniciado no
pelo direito às memórias afro- em cena nas últimas décadas, para documentar as narrativas la, Wanderley Caramba, Nelson to amalgama-se à necessidade de
bojo do processo de patrimonia-
-brasileiras e fortalecimento do voltadas à visibilização de narra- em primeira pessoa no acer- Sargento, Djalma Sabiá, Monar- iluminar mais trajetórias, que não
lização das matrizes do samba
sambista, em perspectiva crítica tivas insurgentes, questionadoras vo, mas também na participa- co, Selminha Sorriso, Laíla, Mes- devem ser esquecidas – ou man-
no Rio de Janeiro.3
à história oficial construída no dessa estrutura. O programa de ção ativa do povo do samba na tre Odilon, Preto Rico, Tião Mi- tidas em silêncio.
À época, o museu chamava-se
Brasil, em que histórias, memó- história oral, aqui analisado, é gestão. Exemplos disso são a quimba, Tiãozinho da Mocidade, São histórias plurais que vão
Centro Cultural Cartola4 e torna-
rias e sujeitos negros foram sis- uma das faces desse propósito. constituição do Conselho do Zeca da Cuíca e de tantos outros colorindo o complexo mosaico
3
Matrizes do Samba no Rio de Janei- tematicamente invisibilizados.
ro, reconhecidas como patrimônio, E, para usarmos as expressões Samba5 e o incentivo para atua- bambas integram as histórias de da cultura política e da história
são o partido-alto, o samba de ter- Pretendemos, com este texto, de Kilomba, busca ter o sambis- ção de sambistas na pesquisa, vida registradas pelo núcleo de do samba do Rio de Janeiro e
reiro e o samba de enredo. Sobre o analisar alguns aspectos nor-
assunto, ver IPHAN; CCC (2014). ta como autor e autoridade de sua na coleta e nos procedimentos história oral do museu. do Brasil. Das múltiplas narrati-
teadores desse programa e seus
4
Em 2001, o Museu do Samba sur- própria história. de consulta pública aos depoi- Um rápido olhar sobre a lis- vas, escolhemos dois depoentes:
ge, no sopé do Morro da Manguei- conteúdos, acreditando ser uma mentos (e ao acervo em geral). mestre Delegado (Figura 1) e
ra, como Centro Cultural Cartola, No processo de patrimoniali- tagem completa desses nomes já
importante contribuição a dar
criado pelos netos do compositor zação das matrizes do samba no
História contada e documen- deixa claros os diferentes marcos Leci Brandão (Figura 2). Sem
e fundador da Estação Primeira de passagem para outros estudos. tada, tendo detentores como
Mangueira. A história da instituição Rio de Janeiro, liderado pelo en- temporais que o acervo abarca. 6
Cartola, fundador da Estação Pri-
tem viradas marcantes, entre elas a tão CCC, esta era a tônica e pre-
protagonistas e agentes da sal- Para seleção dos depoentes, prio- meira de Mangueira, é um deles. So-
implementação do Centro de Refe- Vozes plurais, bre esses estudos, ver Abreu; Mattos;
rência de Pesquisa e Documentação conizava o desenvolvimento de 5
O Conselho é composto por sambis- rizam-se os mais idosos, muitos Agostini (2016), em que o acervo do
do Samba Carioca para constituição múltiplas um centro de memória em que o tas referentes de vários territórios do deles nascidos nas primeiras dé- Museu do Samba foi uma das fontes
e guarda de acervos do samba, bem histórias e dois samba no Rio de Janeiro e tem por consultadas. E, de seus registros, fo-
como sua trajetória, que culmina na povo do samba não se restringi- missão a gestão do plano de salva- cadas do século XX. Facilmen- ram identificados e estudados alguns
passagem de CCC a Museu do Sam- mangueirenses guarda dos bens titulados. Dentre os te se percebem vozes negras nomes, que se referem a esse grupo
ria a objeto, mas seria sujeito do
ba. Momentos da história institucio- conselheiros estão Tia Surica, Selma específico de migrantes negros, tais
nal podem ser vistos em NOGUEIRA; dosamba.org.br/>. Para consulta ao conhecimento. Caberia, pois, ao Candeia, Rachel Valença, Careca do narrando suas experiências nos como Tantinho da Mangueira, Mo-
SANTOS (2019, 2020), MENDONÇA; acervo: <contato@museudosamba. espaço referência criar estraté- Império, Rubem Confete, Martinho diferentes contextos da história narco, Waldir 59, Noca da Portela,
NOGUEIRA; SANTOS (2019). O websi- org.br>. Base de dados phl: <https:// da Vila, Aluísio Machado, Nilcemar Aluísio Machado, Dodô da Portela,
te do museu é <https://www.museu- ccc.phl.bib.br/>. gias para instrumentalizar sam- Nogueira, Zé Katimba, entre outros. política e cultural do país. E tam- Manoel Dionísio e outros.

62 | SAMBA EM REVISTA SAMBA EM REVISTA | 63


Hégio Laurindo da Silva, o bem, estão indo bem”. [eu dizia]
“Papai, está bom ou ruim?” [e ele
mestre-sala Delegado, nasceu respondia:] “Não, está ótimo”. E a
no dia 29 de dezembro de 1921, gente estava no samba. (DELEGA-
DO, 2009.)
em Mangueira. Já tinha a dan-
ça como herança familiar: seu
Arlete, mencionada por De-
pai, Miguel Laurindo da Silva,
legado, é a afamada Tia Suluca,8
exímio dançarino, fazia gosto
presença ilustre nos ensaios da
no gingado do filho Hégio, sua
Estação Primeira até hoje, presi-
companhia certa nas gafieiras
dente de honra da ala de baianas,
cariocas do século passado. O
comandada por Nelcy Gomes,
futebol também era uma voca-
neta de D. Neuma. Figura 2. LECI BRANDÃO. Entrevistadora: Rachel Valença. (Acervo Museu do
ção, jogou por um bom tempo
Samba). Depoimento concedido ao programa Memória das Matrizes do Samba
no time da Companhia Cerâmi- O sonho de menino foi por no Rio de Janeiro no Museu do Samba. Rio de Janeiro, 02 jun. 2017.
ca Brasil, importante fábrica na ele alcançado com louvor. Che-
Mangueira, que empregava seus gou a dançar no balé de Mercedes
tudo. Aí, eu fui o segundo, e quando de-e-rosa, já que a performan-
moradores (Delegado, inclu- Baptista, a primeira bailarina ne- eu dancei, os jurados deram que eu
podia ser o primeiro mestre-sala da ce do mestre dos mestres-salas,
sive) e chegou a ser quadra de gra do Teatro Municipal. Presen-
Mangueira. Onde que eu fiquei sen- com sua elegância única, era a
ensaios da escola. Foi até cotado te em grandes campeonatos da do o primeiro mestre-sala da Man-
gueira. (DELEGADO, 2009.) cena mais esperada nos ensaios
Figura 1. Mestre Delegado. Entrevistador: Aloy Jupiara. para jogar no Fluminense – mas Mangueira, Laurindo conquistou
(Acervo Museu do Samba). Depoimento concedido ao programa “Memória
e desfiles da escola até o começo
esta é uma história nada feliz, mais de trinta notas 10 para a es-
das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro” no Museu do Samba. Rio de Janeiro, As narrativas sobre a prepa- do século XXI.
14 fev. 2009. que vamos contar mais à frente. cola, com diferentes porta-ban-
ração para os desfiles são deta-
deiras: primeiro, Nininha, depois Mas falar da dor também cru-
No olhar retrospectivo, o lhadas pelo depoente. Nas suas
pretensão de esgotar temáticas e dos maiores mestres-salas do Neide e, por fim, Mocinha. As za essa trajetória. Uma dor es-
mestre se lembra dos passos do recordações, uma história bas-
questões acerca dos dois depoi- carnaval carioca. Ela, compo- três, lendas do carnaval carioca. trutural, que é parte de histórias
samba atravessando o dia a dia tante conhecida na comunidade
mentos, este último momento de sitora, ativista, vanguardista Suas características no bailado e sensíveis nas memórias negras,
da família Laurindo. Destaca os de sambistas: para ganhar fôlego
nosso texto é mais uma forma na verde-e-rosa: a primeira histórias são também rememora- pois:
nomes das irmãs, Alaíde, Arle- e condicionamento físico, De-
de expor algumas reflexões, des- mulher a ingressar na ala de das no depoimento do sambista. (...) a experiência do racismo não
te e Creusa, suas parceiras na legado fazia corridas do morro é um acontecimento momentâ-
pertar interesses de mais pesqui- compositores da Estação Pri- Nininha, por exemplo, foi seu neo e pontual, é uma experiência
dança e, mais tarde, baianas da até a Quinta da Boa Vista, ida e contínua que atravessa a biografia
sadores e possibilidades outras meira. A entrevista de Dele- par quando passou pelo teste
escola. Memórias de afeto e da do indivíduo, uma experiência que
de estudos sobre os acervos do gado foi uma das primeiras a volta, com um adendo: passava envolve uma memória histórica de
que o fez mestre-sala da Estação
projeção de sonhos no que, de sabão de coco nas pernas, “pra opressão racial, escravização e co-
samba no museu. serem gravadas, no começo do Primeira, nos anos 1940. lonização. (KILOMBA, 2019, p.85)
projeto, em 2009. No caso de
fato, sempre moveu sua vida, o junta ficar mole”, como disse o
Dois bambas. Ele, o bai- samba. Na época, vindo da Unidos
Leci, o registro aconteceu em mestre. Teve uma longa história
larino negro, o “Obá (rei) da Em casa, eu fazia aquela rodinha e de Mangueira, disputou o cargo O racismo cotidiano, nos diz
2017, quando ela já tinha sido nos carnavais da Mangueira. Seu
favela”7 da Mangueira, um nós ali botávamos o rádio para to- com o mestre-sala Ailton: Grada Kilomba (2019), não só
reeleita deputada estadual de car e ficávamos todos balançando, último desfile como mestre-sala
coloca novamente as pessoas ne-
7
No carnaval de 2022, Cartola, Jame- treinando o que íamos fazer. Elas Aquele que dançasse melhor seria o
foi em 1984,9 quando da inaugu-
lão e Delegado foram homenageados
São Paulo – a segunda mulher [minhas irmãs] diziam: “Ó, quando primeiro mestre-sala da Mangueira. gras na cena colonial (como uma
pela verde-e-rosa, com o enredo “An- negra da história da ALESP a nós crescermos, vamos ser grandes Então, nós fizemos aquele duelo, ração do Sambódromo e do su-
reencenação da vida na planta-
genor, José & Laurindo” – a poesia, bailarinos”. Eu dizia: “Não, eu vou todo mundo em volta, dançou ele
percampeonato da escola. Isso,
o canto e a dança, pilares personifi-
ocupar esse cargo. ser um grande mestre-sala”. [...] Aí primeiro. Todo mundo viu, jurados, tion), mas também é um choque
cados da Estação Primeira de Man- a realeza do mestre-sala Delegado, a gente fazia aquela roda ali. Ficáva- como guardião do pavilhão ver-
violento, uma realidade traumáti-
gueira. A imagem do “Obá da favela”, pelo seu gesto, elegância e figura mos brincando, dançando e o papai 8
O depoimento de Tia Suluca foi rea-
utilizada pelo carnavalesco Leandro principesca reconhecida e legitimada do lado também: “É, vocês estão lizado em 2017 e pode ser consultado 9
Com uma curta pausa nos anos ca, historicamente negligenciada.
Vieira no desfile, para representar pelo Morro de Mangueira. boas, crianças. Vocês estão indo no acervo do museu. 1970.

64 | SAMBA EM REVISTA SAMBA EM REVISTA | 65


Nas lembranças de Delegado, há [centro-avantes] na época. [Fui lá 28 de setembro. A família mora- Leci foi precursora na ver- Leci traz importantes informa- resistência, luta pelo direito de
no Fluminense] Entrei, me deram
especialmente dois episódios de a camisa (...) eu fiz três gols. (...) va no colégio. As memórias no de-e-rosa. Poucas linhas acima ções sobre processos criativos na cidadania e contra o racismo, li-
racismo, em perspectiva indivi- Aí, chegou no final, disseram: (...) bairro fazem-na lembrar outro enfatizamos que é a primeira música.12 E registra sambas me- derados por pessoas negras no
“você joga bem, gostamos de você,
dual e coletiva: ser pessoa negra mas da cor não dá para jogar”. episódio de discriminação. Este, mulher da história da ala de com- moráveis de sua trajetória. Um pós-abolição no Brasil. Da polí-
e ser sambista. “Você fez muito bem. Mas tem na infância. positores da Estação Primeira. deles, o próprio samba de quadra tica no palco às ruas, Leci é hoje
que a cor não ajudou”. (...) Saí
Um deles é a conhecida triste de lá. (...) Gostava muito de estudar, O ingresso deu-se nos idos dos da estreia na verde-e-rosa. Abor- responsável por vários projetos
opressão da polícia – do Esta- Marcou lá dentro. Marcou por- tirava boas notas e, num con- anos 1970. Na época, foi reve- da, ainda, os efeitos da repressão relacionados a questões raciais
do – contra o povo do samba no
que eu gostaria de estar jogando
curso de redação, seu trabalho lação do Festival de Música da da ditadura militar (1964-1985) e em defesa dos direitos huma-
futebol, pulando e tal. Eles não
pós-abolição. O mestre-sala con- me receberam porque eu era da foi considerado o vencedor. Universidade Gama Filho, onde na cena cultural, pela lógica da nos. Chegou a integrar o Con-
ta que, nas rodas de batucada,
cor. O que eu vou fazer? Não vou
Era um momento singular do trabalhava e estudava. O sucesso suspeita13 aos artistas. Leci fala da selho Nacional de Promoção da
fazer nada, né? Tive de ir embora.
era comum a chegada truculenta Depois, muitos anos, o Fluminense colégio, a festa da data na- da compositora fez Zé Branco censura à canção Zé do Caroço, fei- Igualdade Racial da SEPPIR15 e
começou a aceitar. (DELEGADO, querer levá-la para a ala. Antes, ta em 1978, que só pôde ser gra- foi quem incentivou o Museu (na
da força policial. 2009. Grifos nossos.) cional do Equador, com pre-
(...) a polícia naquele tempo não sença de autoridades e en- claro, falou com a madrinha de vada nos anos 1980. Memórias época, Centro Cultural Cartola)
gostava de sambista. Eles chega-
Mais depoimentos relatam trega de medalha especial ao Leci, dona Lourdes. de shows, prêmios, parcerias, via- a buscar o reconhecimento do
vam metendo o pau mesmo na
gente. Mas metia o pau mesmo, a experiências de racismo10 em di- primeiro lugar da competição. No depoimento, há recorda- gens e todos os caminhos que o samba como Patrimônio Cultu-
polícia arriava o pau. Sambista era
ferentes tempos. Leci Brandão ções de todo o processo para ter samba abriu a uma de suas maio- ral do Brasil.
vagabundo, falavam assim: “Tu é
vagabundo”. Metia o pau. também testemunha essa violên- Foi um acontecimento muito in- aceitação pela nata de composi- res referências. Detalhes sobre o Mestre Delegado morreu aos
E o que estava com o cabelo esti- cia, como barreira para sua inser- teressante, mas ao mesmo tempo
tores da escola. O ponto de par- Projeto Pixinguinha, o convite de 90 anos de idade, quando era pre-
me chamou a atenção... essa ques-
cado, naquele tempo usava-se os
ção no mercado de trabalho: “eu tão de a gente brigar por nossa tida foi uma carta redigida por Jorge Coutinho para a Noitada sidente de honra da Estação Pri-
cabelos esticados... Então, o que
eles faziam? Enchiam a mão cheia não passava no psicotécnico por etnia. [Porque apesar de todos
ela, defendendo seu interesse em de Samba14 do Opinião, partici- meira, e pouco mais de três anos
acharem que minha redação era a
de graxa e passavam no cabelo da
conta da cor da minha pele, eu melhor], a outra menina, que teve entrar para o grupo. pações em carnavais históricos, depois de seu depoimento. Nas
pessoa. “Acerta esse cabelo, seu va-
gabundo”. (...) não sacava isso, hoje eu entendo. uma redação parecida com a mi-
Daí eu coloquei na carta que eu
lembranças do supercampeona- palavras registradas, um legítimo
nha, era filha de uma professora e
Vi acontecer muita barbaridade. (...) (...) Era uma forma de eles te re- eu era filha da servente. Então, na
queria aprender com eles, porque, to da Mangueira em 1984 e tan- legado: “todos esses mestres-sa-
Vi nego com as tripas saindo. O pra mim, a ala de compositores da
provarem”. hora de decidir, quem ganhou foi a
Mangueira era uma universidade.
tos outros temas (e personagens) las que você está vendo aí, quase
sujeito apanhava o chapéu com as filha da professora, com embaixa-
tripas saindo. Tudo eu assisti. (DE-
dor presente na escola. (...) Nunca
(...) narrados pela voz da sambista. todos foram meus alunos”.
LEGADO, 2009.) Filha e neta de manguei-
vou me esquecer. (BRANDÃO, José Brogogério era o presidente.
renses, Leci é uma das maiores 2017. Grifos nossos.) (...) Estavam lá [os compositores]
Delegado e Leci. Dois de-
A outra experiência narrada é Pelado, Comprido, Helio Turco, poimentos de experiências ne-
intérpretes da música popular
Nilton Russo, Darcy, Jurandir...
Considerações
a que interrompe um de seus so- Antes da escola Equador, gras em diáspora; duas histórias
brasileira, conhecida também uma turma boa. finais
nhos. Craque do futebol na Cerâ- dona Lecy trabalhava numa fá- de vida conectadas pelo samba
pela militância em lutas sociais e E eles falaram assim: “Vamos fazer
mica, despertou a atenção de uma
pelos versos politizados de suas brica em Vila Isabel, onde havia o seguinte: Você vai entrar simbo- como movimento de afirmação,
pessoa, que prometeu levá-lo para licamente, só que você vai ter que A reivindicação do povo do
canções. Nasceu em 12 de se- muitos funcionários mangueiren- fazer samba aqui durante um ano.
12
Lembra, inclusive, quando se des-
jogar na elite do futebol carioca. cobre compositora, sua primeira can- samba pelo direito de narrar
tembro de 1944, em Madureira, ses. O intérprete Jamelão era um Apresente samba de terreiro.11
Se a gente gostar do seu trabalho, ção feita por conta de uma desilusão sua própria história fez surgir o
O time era o Fluminense. Des- deles. E a madrinha de Leci, dona amorosa.
mas foi criada em Vila Isabel. Lá, a gente decide sua entrada na ala. E
crente do convite otimista, Dele- o primeiro samba que eu fiz foi um
Programa Memória das Matrizes
dona Lecy, a mãe de Leci, traba- Lourdes, também. Esta, morado- 13
Referimo-nos ao termo utilizado
gado afirma que refutou logo de samba falando da nova quadra [o pelo historiador Marcos Napolitano no Rio de Janeiro. Hoje, é con-
lhava como servente na escola ra do morro. É dessa vivência, nas Palácio do Samba]. (BRANDÃO, quando fala da “lógica da produção siderado um dos acervos mais
início, já que pessoas negras não idas e vindas da casa da madrinha, 2017. Grifo nosso.) da suspeita” pelos agentes da re-
municipal Equador, no boulevard
eram bem aceitas no clube: “O pressão, principalmente (mas não so- consultados da instituição. Das
que acontecem seus primeiros
Como outras entrevistas de mente) no que diz respeito à música atividades de comunicação do
que eu vou fazer lá?”. Depois de 10
O tema, por vezes, configura-se contatos com a comunidade da popular brasileira, MPB. Ver (NAPOLI-
como não-dito nos depoimentos. O compositores, o depoimento de próprio museu, os depoimen-
convencido, resolve tentar. TANO, 2004, p. 104.)
acervo é uma das possibilidades de Mangueira. E, mais tarde, com a
Eu era um dos maiores centre-fowards consulta para pesquisas relacionadas escola de samba.
14
Sobre A Noitada de Samba, ver 15
Secretaria de Políticas de Promoção
11
Para definição de samba de terrei-
à história do racismo no Brasil. COUTINHO; BAYER (2009). da Igualdade Racial.
ro, ver IPHAN; CCC (2014).

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tos atravessam as concepções Referências bibliográficas NAPOLITANO, Marcos. A
de exposições, revistas, ações de MPB sob suspeita: a censura
educação patrimonial e outras musical vista pela ótica dos ser-
tantas. Seus usos têm suscitado ABREU, Martha et al. (Org.). viços de vigilância política (1968-
pesquisas para além do espaço Escravidão e cultura afro-bra- 1981). Revista Brasileira de
físico da instituição, em dife- sileira. Temas e problemas em História, São Paulo, v. 24, nº 47,
rentes meios: biografias, teses e torno da obra de Robert Slenes. 2004.
dissertações, outras exposições Campinas: Editora da Unicamp,
NOGUEIRA, Nilcemar; SAN-
e até peças de teatro. O musical 2016.
TOS, Desirree dos Reis. (Re)
Dona Ivone Lara: um sorriso negro, COUTINHO, Jorge; BAYER, conhecendo patrimônios: o pa-
com texto e direção de Elisio Leonides. Noitada de Samba. pel social do Museu do Samba.
Lopes Jr., é uma delas. Para pre- Foco de resistência. Rio de Janei- e-Cadernos CES, n..30, 2018.
paração de elenco e roteiro da ro: 2009. NOGUEIRA, Nilcemar; MEN-
peça, houve uma pesquisa pro- CUNHA, Marcelo Bernardo DONÇA, Elizabete de Castro;
Figura 1: Acervo pessoal Marilda de Souza Francisco.
funda nesse acervo do samba em da. Museus, memórias e cultu- SANTOS, Desirree dos Reis.
primeira pessoa. Muitas histórias ras afro-brasileiras. Revista do História oral na coleção do Mu-

O museu
só se encontravam ali. Centro de Pesquisa e Forma- seu do Samba: registrar para sal-
Documentar histórias de vida ção. n.5, p. 78-88, set. 2017. vaguardar. XV ENECULT. Sal-
AMADO, Janaína, FERREIRA,

somos nós
de sambistas é, nesse sentido, vador, Bahia: 2009.
entender a geração de acervos Marieta de Moraes (Org.). Usos SCHEINER, Tereza. Museolo-
como instrumentos de poder & abusos da história oral. Rio gia e interpretação da realidade:
e justiça. E perceber que o re- de Janeiro: FGV, 2006. o discurso da História. In: Sym-
conhecimento da história do IPHAN; Centro Cultural Car- posium Museology as a field
samba e dos sambistas, como tola. Dossiê das Matrizes do of study: Museology and His- Marilda de Souza Francisco
parte fundamental da história Samba no Rio de Janeiro. Bra- tory. ICOM/ ICOFOM. ICO-
do Brasil, é uma das operações sília, DF: Iphan, 2014. FOM STUDY SERIES – ISS 35. Quilombola, coordenadora da Associação dos Remanescentes do Quilombo
de Santa Rita do Bracuí (Arquisabra), representante do quilombo no Conselho
mais importantes de reparação KILOMBA, Grada. Memórias Alta Gracia, Cordoba: 2006. Municipal de Promoção de Igualdade Racial de Angra dos Reis (COMPIR) e do
e de afirmação da ancestralidade SOUZA, Neusa Santos. Tornar- Fundo de Meio Ambiente de Angra dos Reis.
da plantação: episódios de
africana. Invisibilizadas por uma racismo cotidiano. Trad. Jess -se negro. Rio de Janeiro: Ed. Palestra de Marilda de Souza Francisco, no I Encontro Internacional Samba,
estrutura racista, essas narrativas Graal, 1983. Patrimônios Negros e Diáspora, transcrita por Carolina Machado dos Santos.
Oliveira. Rio de Janeiro: Ed.
passam a ocupar mais espaços de “Oi, gente, presta atenção
Cobogó, 2019. VALENÇA, Rachel. Pontão de
representação (e de representati-
vidade), sendo sua salvaguarda
LIESA. Livro Abre-Alas 2022.
Sexta-feira. Rio de Janeiro:
Memória do Samba Carioca.
Samba em Revista. Rio de Ja-
na história que vou
contar. Deitei minha
E ste aí é o rio Bracuí (Figura1).
Foi para ele que eu cantei,
saudando o rio. Bem lá para as
para dizer qual a extensão do
Quilombo, que é desde a divisa
de Bananal, em São Paulo, até
alinhada à perspectiva de mu- neiro, Centro Cultural Cartola,
sealização da cultura negra como
Liga Independente das Escolas cabeça na cabeceira do rio, montanhas tem a cabeceira do o mar. O rio Bracuí corta o Qui-
de Samba no Rio de Janeiro Ano 1, n.2, 2009.
ato de descolonização. mas o pé está lá no mar. rio e ele deságua no mar. Então, lombo no meio: para um lado
(LIESA), 2022. Disponível quando as pessoas chegam aqui tem Quilombo e para o outro
em: <https://liesa.globo.com/ Eu deitei minha cabeça e perguntam qual a extensão do também tem. Se a gente quiser ir
carnaval/livro-abre-alas.html>. na cabeceira do rio, mas o Quilombo, eu canto esse pon- para um lado, tem que atravessar
pé está lá no mar.” to de jongo, que fui eu que fiz, o rio para passar.

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e no outro lado tem uma rua que
leva para aquele rio (Figura 4),
que acabei de mencionar. Lá na
frente tem uma porteira, porque,
como sempre, nosso Quilombo
foi todo comprado, ou grilado Figura 5: Foto Foto Guilherme Hoffmann/Acervo LABHOI
Figura 11: Foto Foto Guilherme Hof-
mesmo, mas a gente sempre pas- fmann/Acervo LABHOI
o pé de quê é camu-camu, uma do, porque ele é mais no chão,
sa e vai para a cachoeira.
fruta muito rica em vitamina C. deitado.
Aqui é o quintal da minha
Esta é a minha casa (Figura Aqui temos a trilha da Maril-
casa (Figura 5), onde eu recebo
6), onde a gente faz os projetos, da (Figura 8), por onde a gen-
as crianças, os jovens, as pessoas
as crianças vêm para ler livros, te passa para ir para a outra rua,
que vêm para escutar as histó-
Figura 2: Acervo pessoal Marilda de Souza Francisco. para desenhar. Eles gostam: eu mas eu levo as pessoas explican-
rias. Tenho aqui na frente um Figura 8: Foto Guilherme Hoffmann/
estendo uns panos no chão, do as plantações que tem nela. Acervo LABHOI
pé de abacate e uma árvore que
Esta é uma foto da frente da e depois veio o café também. E boto almofadas, eles deitam Do lado tem a horta (Figura 9),
antes era chamada de pé de quê,
minha casa (Figura 2). Gosto nós temos um engenho de alam- e rolam, comem, desenham, que é uma horta mandala, tem
porque as pessoas chegavam e
muito de fotografar as monta- bique, onde era feita cachaça, e veem livros. No nosso projeto, um galinheiro (Figura 10) no
perguntavam: “pé de quê?”. E
nhas, porque o nosso Quilombo que hoje está em ruínas. Há outra Livro Bom é Livro na Mão, a meio e tem esse círculo aí que a
a gente não sabia o que que era,
gente consegue também tirar as gente pega as coisas, bota para as
é um museu a céu aberto. Além ruína, que é onde se fazia açúcar, então ficava com pé de quê mes-
de ser um museu a céu aberto, que era o engenho central, bem dúvidas das crianças com aju- galinhas, pega o estrume da gali-
mo. A gente sempre faz a reu-
ele tem as histórias do Quilombo mais perto do mar, onde os na- da de alguns professores. Na nha, deixa descansando 30 dias e
nião embaixo dessa árvore, para
de Santa Rita do Bracuí, que era vios chegavam para pegar o açú- outra foto (Figura 7) sou eu depois faz o adubo.
aproveitar a sombra. Eu recebo
uma fazenda escravocrata. A pri- car, mas não durou muito tempo, socando o café, pilando o café,
as pessoas embaixo dessa árvore. E tem uma foto minha na
meira cultura foi de cana-de-açú- porque o pessoal não acreditava aí tem o pilão sentado, porque
O pé de quê hoje está bem maior, roça de milho (Figura 11), tinha
geralmente os pilões são em pé,
car, então todo esse morro aí que na abolição e aí veio a abolição bem mais florido e com bastante acabado de quebrar milho, aí tem Figura 9: Acervo pessoal Marilda de
vocês veem, tudo isso aí era cana e o engenho de açúcar também mas esse a gente chama senta- Souza Francisco.
frutinha. Hoje a gente sabe que aipim e resolvi tirar uma foto.
não foi muito para frente.

Aqui tem esse QR Code (Fi-


gura 3) e lá atrás tem a entrada
que vai para o Museu, uma ex-
posição que foi feita pelo projeto
Passados Presentes, com Martha
Abreu, Hebe Mattos e pessoal da
UFF.1 Aí onde está o QR Code
é onde a gente planta, bota as
mudas, é um viveiro, que agora
não está mais assim não, acabou
Figura 3: Acervo pessoal Marilda de o viveiro. Aqui na frente sou eu Figura 4: Acervo pessoal Marilda de Figura 6: Acervo pessoal Marilda de Figura 7: Acervo pessoal Marilda de Figura 10: Acervo pessoal Marilda de
Souza Francisco. Souza Francisco. Souza Francisco. Souza Francisco. Souza Francisco.
1
Ver http://passadospresentes.com.
br/site/Site/index.php

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Está parecendo até que estou em para os nomes de alguns negros griôs. Vem dos mais velhos para
uma viagem. E por que mostrar que estavam nesse navio e expli- os mais novos. O pessoal da dan-
tudo isso, falando isso? Porque co às crianças que os nomes dos ça do jongo. E aqui tem a Santa
para nós o Quilombo, como já negros eram nomes europeus: Rita Black, que foi uma mistura
disse, é um museu a céu aberto, quando eles saíam da África, de todas as religiões: a católica,
tem todas as histórias, a gente Figura 14: Acervo pessoal Martha não tinham direito de manter porque o Quilombo é católico, e
Abreu.
sabe falar da história da nature- seus nomes, então recebiam um a religião de matriz africana, que
za. A natureza para nós é como Atrás das minhas costas se nome europeu, e muitas vezes é o candomblé, a umbanda. En-
se fosse uma história, um museu, vê uma placa do povo jonguei- o sobrenome era o lugar onde tão está tudo misturado na Santa
porque a gente mostra todo o ro (Figura 13), que são os jovens eles foram... não gosto de dizer Rita Black. Santa Rita na verdade
valor que ela tem, todas as árvo- que dançam o jongo. E a outra capturados, comprados, mas é é branca, mas, quando foi pin-
res, o que se pode comer, o que placa tem os griôs, seu Manoel onde eles foram comprados. Por tando, o rapaz a pintou negra e
não se pode, o que é remédio. Moraes, dona Joana, todas aque- exemplo, tem Maria Conga: pode de cabelo black, por isso o nome
Figura 16: Foto Guilherme Hoffmann/Acervo LABHOI
las pessoas que foram guardiões ser que essa mulher não tivesse o Santa Rita Black.
dessas histórias, da história oral nome Maria, mas talvez ela tenha
do chegam aqui e veem isso, eles chegam aqui e perguntam cadê Aqui é a foto das pessoas que
que está chegando até o dia de sido comprada no Congo.
falam: “Nossa, mas tem toda o tronco, cadê não sei o quê. eu recebo quando vem o grupo
hoje para nós.
E aqui se pode ver direitinho essa história aqui em Angra?”. Acham que aqui não tem história na minha casa também (Figura
Aqui é a foto do navio ne- uma réplica do navio brigue de Então, a gente fala: “O povo de nada. Mas nós estamos aqui, 17).
greiro (Figura 14). No Bracuí Camargo e o nome das pessoas negro sempre guardou a sua his- através da nossa descendência, Aí tem a igreja de Santa Rita
tem o navio brigue de Camargo, que estavam no navio (Figura tória, só que não interessava a do nosso povo sofrido que veio (Figura 18). A igrejinha, na ver-
Figura 12: Acervo pessoal Martha que foi afundado na Baía da Ilha 15). Hoje em dia a gente está ninguém, interessava só a nós”. para cá. Nós continuamos aqui,
Abreu.
dade, é uma capela. Ela está no
Grande em 1852. Não se sabe tentando fazer uma réplica des- A história ficava com a gente. E então nós somos o museu, nós lugar da casa grande, em cima de
Acima se pode ver aquela ex- se todos os negros que estavam se navio e colocar na entrada do eu sempre digo: nós somos um somos, vamos dizer assim, um onde era a casa do senhor do en-
posição de que falei (Figura 12): nesse navio morreram, mas acho Quilombo para as pessoas ve- museu ambulante, nós temos a museu que se adaptou, nós so- genho, e abriga o altar que era da
aí eu recebo o povo, vou expli- que alguns conseguiram sobre- rem. Angra dos Reis não conhe- nossa história nos nossos traços, mos... o povo negro é tudo. casa grande.
cando para as pessoas cada pla- viver, foram para uma ilha que ce a história do negro. A história no nosso jeito de ser, na nossa
Aqui tem uma foto mais A Santa Rita Black (Figu-
ca. A exposição hoje está preci- a gente conhece como Ilha do do negro é muito apagada, inclu- cor, no nosso tudo. O museu
aberta (Figura 16), que é dos ra 19)está pintada onde a gente
sando de manutenção, está meio Jorge. Na foto estou apontando sive em Angra dos Reis. E quan- somos nós. Às vezes as pessoas
caidinha, mas está em pé ainda.
Sempre a gente recebe algumas
pessoas interessadas em olhar a
história do povo negro no Qui-
lombo.

Figura 13: Acervo pessoal Martha Figura 15: Foto Guilherme Hoffmann/Acervo LABHOI Figura 17: Foto Guilherme Hoffmann/Acervo LABHOI Figura 18: Foto Guilherme
Abreu. Hoffmann/Acervo LABHOI

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Figura 19: Foto Guilherme Hoffmann/Acervo LABHOI
Entre superação e reparação:
ia fazer a casa de estuque, mas histórias (e as do povo negro
caiu e até hoje não conseguimos
terminar a sede do Quilombo.
Como eu falei, tem o engenho
também), contava muito essas
histórias, a gente vai passando
para a frente, através da trans-
olhares sobre escravidão em
museus negros na diáspora
lá embaixo, que era o de açúcar, missão oral. E hoje em dia toda
e a gente tem duas igrejas. Tem essa história é reconhecida em
a igreja de São José, mais para alguns lugares.... Porque, através
a beira da praia, onde o José de do projeto Passados Presentes,
Souza Breves fez a igreja, porque conseguimos fazer algumas pla-
morreu uma escrava e ele não cas e colocar nas estradas, nos
Jessika Rezende Souza da Silva
enterrava o negro em qualquer lugares que têm os pontos de
SEEDUC-RJ
lugar. Essa igreja é bem maior, memória. Muitas foram destruí-
tem um altar mesmo e hoje tem das, porque (outros moradores)

O
o nome dele. Ele era José, então acharam que não era para a gente s movimentos sociais têm visto que, no auge dos debates pos e rompem com narrativas e
fez a igreja de São José. E a igreja ficar falando disso. No Quilom- enfatizado a responsabili- sobre história pública, os museus imagens racistas. Histórias que
de Santa Rita, que tem, na verda- bo de Santa Rita do Bracuí já tem dade dos museus em remodelar se tornaram fontes importantes eram silenciadas nas escolas e
de, só o altar e a imagem, porque muita gente de fora e eles acham suas exibições constantemente, de informações sobre o passado. em outros espaços de poder.
a mulher dele era Maria Rita e era que ficar falando da história ne- a fim de se envolver de forma Para transmitir ancestralidade e
Nesse sentido, museus têm
devota de Santa Rita. gra é como se estivesse tirando significativa e ética com as mu- tudo mais que consideravam dig-
sido historicamente edificados
eles daqui. Então, muitas placas danças nas percepções da his- no de ser rememorado, ao longo
Vocês veem que tudo se liga pelo movimento negro na diás-
foram quebradas e arrancadas, tória da sociedade. O objetivo dos séculos XIX e XX o movi-
sempre ao povo branco, mas é pora para educar para o antirra-
mas algumas ainda estão nesses seria refletir sobre as demandas mento negro tem lançado mão
bom a gente falar isso porque cismo, através da emergência de
lugares localizados por nós, em sociais e facilitar o diálogo com de estratégias como a publicação
fica conhecendo a história e con- suas histórias. Histórias de luta,
conjunto com o pessoal da UFF, o público de forma inovadora e de biografias de afro-brasileiros
segue, assim, levar a memória mas também de alegria. Histó-
como pontos de memória. respondendo às questões atuais, considerados ilustres em jornais
ao povo. Meu pai guardou essas rias que superam os estereóti-

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Rio de Janeiro, o Museu do Sam- de museus negros, representam, em 2016, e um dos mais recentes
ba e o Museu da História e Cul- segundo Burns (2013, p. 5), es- museus afro-brasileiros, o Museu
tura Afro-brasileira (MUHCAB) paços alternativos em uma paisa- Afro Brasil (MAB), criado em
foram criados, em 20011 e 2017 gem cultural eurocentrada, ofe- 2004, nos pareceu interessante
respectivamente. Poucos anos recendo um local onde grupos na medida em que ambos os paí-
antes de se iniciar esse processo negros poderiam adquirir respei- ses compartilham informações
no Brasil, nos Estados Unidos to próprio, fortalecer seu senso e referências no enfrentamento
comunidades negras criaram os de dignidade e independência e de experiências históricas em co-
primeiros museus afro-america- trabalhar em direção a um sen- mum (PEREIRA, 2019), entre as
nos em bairros urbanos de todo tido de identidade comunitária e quais podemos citar as heranças
o país, como o Museu Dusable cívica. Tais instituições também do sistema escravista, a exclusão Museu Afro Brasil - Foto Jessika Rezende

de História Afro-americana em se destacavam por incentivar dos negros das narrativas histó-
Museu Afro Brasil - Foto Jessika De acordo com os arquivos identidade nacional, por meio de
Rezende Chicago, fundado em 1961, o uma identidade e consciência ricas nacionais tradicionais, as
Museu Afro-americano Interna- exclusivamente negras por meio profundas desigualdades raciais do Núcleo de Memória do MAB, várias manifestações culturais”.
da imprensa negra, além das ten- cional de Detroit, em 1965, e o de exposições e programas edu- e as mobilizações de movimen- o projeto de construção, em São Elencando como missão
tativas de inserir a história e a Museu Comunitário de Anacos- cacionais, e enfatizaram a neces- tos sociais na luta contra o racis- Paulo, de um museu dedicado à promover o reconhecimento,
cultura afro-brasileira nos currí- tia em Washington, no ano de sidade vital de interação entre mo e a discriminação racial. Nes- memória afro-brasileira existia valorização e preservação do
culos da educação básica. 1967. o museu e a comunidade negra se sentido, a seguir relataremos desde dezembro de 1987, época patrimônio cultural africano e
No Rio de Janeiro, os mem- local. alguns aspectos das trajetórias e das comemorações do centená- afro-brasileiro e sua presença
Nesse movimento transnacio-
bros da Irmandade de Nossa Se- narrativas inscritas nos referidos rio da abolição da escravatura. na cultura nacional, o acervo da
nal, essas diferentes instituições Colocar em diálogo as expo-
nhora do Rosário e São Benedito museus.2 Mas somente em 2003, com instituição aborda temas como a
tinham em comum o financia- sições do primeiro museu nacio-
dos Homens Pretos guardavam Martha Suplicy à frente do go- religião, o trabalho, a arte, a es-
mento e a organização promo- nal dedicado à experiência afro-
verno municipal de São Paulo,
nos porões da igreja homônima vidos por ativistas e líderes co- -americana, o National Museum Museu Afro Brasil e cravidão, entre outros, ao regis-
artefatos oriundos das fugas do o museu saiu do papel. O Mu- trar a trajetória histórica e as in-
munitários, coleções geralmente of African American History National Museum
cativeiro e das ofertas dos fiéis, seu Afro Brasil trazia em suas fluências africanas na construção
provenientes de contribuições and Culture (NMAAHC), criado
que usavam para lembrar as lu- da comunidade local e doações
of African American exposições mudanças radicais da sociedade brasileira. O mu-
na forma de representar o ne-
tas por liberdade. Alguns anos de outras organizações culturais History and Culture: seu foi construído no Pavilhão
mais tarde, tais objetos passaram gro, ligadas ao fortalecimento de Padre Manoel da Nóbrega no
e, principalmente, o conteúdo de trajetórias e
a integrar o acervo do Museu do políticas públicas de combate às Parque Ibirapuera, sendo com-
suas coleções, que ofereciam uma
Negro, o primeiro museu focado refutação à narrativa de invisibi-
compromisso com desigualdades raciais e das ações posto por três ambientes: África:
afirmativas. Segundo Ana Lúcia
na experiência afro-brasileira do lidade e marginalização praticada a história negra Diversidade e Permanência,
país, fundado em 1969. Lopes (2010, p.7), tratava-se de Trabalho e Escravidão, As
pelos museus tradicionais no que
um novo tipo de patrimônio cul- Religiões Afro-Brasileiras, O
Anos depois foi criado o Mu- diz respeito à presença e à agência
tural, inédito até aquele momen-
seu Afro-Brasileiro, em 1976, histórica dos negros.
2
As informações a seguir são parte Sagrado e o Profano, História e
dos resultados da pesquisa de dou- to, na tentativa de “recuperar em Memória, Artes Plásticas: a Mão
em Sergipe, seguido pelo Museu Os museus dedicados às his- torado realizada entre 2017 e 2021
profundidade a memória da po-
Afro-Brasileiro (MAFRO), inau- com bolsa CAPES-Programa Abdias Afro-Brasileira.3
tórias africana e afrodescendente do Nascimento. O título da tese é His- pulação negra, sub-representada
gurado em 1982 em Salvador, e o na diáspora, que aqui chamamos tórias de luta dos negros: narrativas
no imaginário social, em termos
Museu Afro Brasil, cuja criação históricas e antirracismo no Museu 3
Um breve roteiro e imagens de par-
Afro Brasil e no National Museum of de legitimidade e prestígio, e que te do acervo exposto nesses núcleos
se deu no ano de 2004 em São 1
Em 2001, surge o Centro Cultural Museu Afro Brasil - Foto Jessika African American History & Culture, está disponível on line no site do Mu-
Rezende se encontra, ao mesmo tempo,
Paulo. Mais recentemente, no Cartola, que passa a se chamar Mu- disponível em <tJessika Rezende Sou- seu Afro Brasil: MuseuAfroBrasil – Ex-
seu do Samba em 2016. za da Silva.pdf (ufrj.br)>. reconhecida como símbolo de posições de longa duração.

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o respeito, no seu sentido eti- ricana. A abertura do NMAAHC representante Jack Kingston de- A lei aprovada já previa que o
mológico – olhar para trás – por no fim de 2016 foi um grande nunciava a ausência da história diretor do museu deveria criar e
uma população matriz da nossa
brasilidade e, ao mesmo tempo, evento. A cerimônia marcou o negra nas escolas e nos livros supervisionar um setor educati-
garantindo um espaço educativo último ato oficial do presidente didáticos, defendendo a própria vo e manter contato e trabalhar
de reconhecimento e importân-
Barack Obama, que em seu dis- existência do museu como um com instituições educacionais
cia desta mesma população. Um
dos pressupostos chaves que curso chamou a atenção para as mecanismo não só para promo- em todo o país, a fim de pro-
orientam o trabalho educativo tensões sociais, culturais e po- vê-la, mas também para educar mover a história afro-ameri-
no Museu Afro Brasil é a des-
construção do preconceito ra- líticas que permeiam a vida da historicamente a nação: cana (CONGRESSSIONAL
cial e a reafirmação de uma au- população negra e afirmou a im- A ideia por trás disso, na minha RECORDS, 20/11/2013). Até
toestima e de identidade positiva portância de se conhecer a histó- opinião, é que a história dos mesmo algumas das temáticas
em relação à população negra e afro-americanos é nossa história
mestiça (LOPES, 2010, p. 6). ria afro-americana: e nossa cultura. Eles estão aqui que seriam abordadas no museu
O museu reafirma que todos desde o início e fizeram des- já haviam sido preestabelecidas:
te país o que ele é. Precisamos uma interpretação verdadeira da
O Museu Afro Brasil desde nós somos a América – que a aprender sobre essa história – o
sua inauguração esteve empe- história afro-americana não é de bom, o ruim, o trágico e o ins- escravidão, as resistências ne-
NMAAHC - National Museum of African American History And Culture - Foto
Jessika Rezende alguma forma separada da nossa pirador. Precisamos aprender gras durante a escravidão e o Jim
nhado em construir narrativas
história americana mais ampla, sobre nós mesmos. Penso que
que destacassem a diversidade Crow, a participação histórica
Para além dos fatos políticos gativas da Lei 10.639 de 2003, quanto mais soubermos, mais
não é o lado de baixo da história brilhante será o nosso futuro. dos negros nas guerras america-
da experiência negra, sem se fur-
referentes à história do Afro Bra- que instituía a obrigatoriedade americana, é central para a his- [...] No entanto, quando nos
tar a abordar conflitos raciais e nas, contribuições das igrejas ne-
sil, seu acervo incorpora a ideia do ensino de história da África tória americana. (OBAMA, apud conhecemos, ficou claro que os
a opressão nesse processo. Seu livros de história deixaram de
gras na luta pela liberdade.
de patrimônio imaterial ao abar- e afro-brasileira na Educação BROWN, 2018, p.155)
curador e diretor, o artista plás- fora o capítulo da história negra. Tais temáticas e muitas ou-
car os diversos aspectos dos uni- Básica. Assumindo a missão Quando cheguei na 10ª série,
tico Emanoel Araújo (2010, tivemos fevereiro como mês da tras, derivadas dessas ou não,
versos culturais africanos e afro- educativa de fazer reconhecer, O compromisso com a edu-
p.126) assumiu o compromisso história negra, mas e os outros estão organizadas no museu em
-brasileiros, abordando temas entender e, sobretudo, respeitar cação, e principalmente com a
de construir uma narrativa his- 11? Muitas vezes tenho emoções
como a religião e a arte, atrelados essa população negra, o Museu história afro-americana excluída três galerias: History Galleries,
confusas sobre o mês da histó-
tórica complexa, que transitasse ria negra, porque implica que ela Community Galleries e Cultural
a trabalho e escravidão, ao regis- Afro Brasil busca oferecer re- e marginalizada nos currículos
entre a valorização da herança vale apenas o estudo de um mês. Galleries. As galerias históricas
trar a trajetória histórica e as in- ferências materiais e simbólicas escolares, já estava firmado an-
Este não é o caso. [...] um mu-
cultural e as dores do cativeiro: estão subdivididas em três níveis:
fluências africanas na construção para que história e cultura afri- tes mesmo de o museu abrir as seu como esse iria destacar isso.
da sociedade brasileira. O museu canas e afro-brasileiras sejam
No ponto de partida, há a certe- portas. Durante os debates pela (KINGSTON, 2003, p. 9) Slavery and Freedom, Defending
za de que não se poderia contar Freedom, Defining Freedom e A
mobiliza manifestações culturais efetivamente incluídas quer nos essa história por meio de uma aprovação do projeto de lei, o
relacionadas ao contexto em que currículos escolares, quer nas ati- visão oficial escamoteadora, que Changing America. Nas Galerias
insiste em minimizar a herança Comunitárias são apresentados
eram praticadas, para a partir vidades culturais: africana como matriz formadora
delas contar a história afro-bra- indivíduos e grupos sociais, a fim
A natureza educativa do Mu- de uma identidade nacional, ig-
sileira desde África e diáspora, seu Afro Brasil está vinculada à norando a saga de mais de cinco de ressaltar as lutas que fizeram
complexa tarefa de, a partir do séculos de história e de dez mi- parte da experiência afro-ameri-
atravessando experiências do ca- seu acervo, das exposições tem- lhões de africanos triturados na
tiveiro, estratégias de resistência porárias e das demais atividades construção deste país. cana para conquistar a igualdade.
e movimentos de luta por liber- desenvolvidas, desconstruir um As Galerias Culturais apresen-
imaginário da população negra, tam cinco formas de expres-
tação, até a contemporaneidade. construído fundamentalmente Nos Estados Unidos, de acor-
pela ótica da subalternidade, ao do com os arquivos do Senado, sões culturais: Estilo: Imagem e
A instituição se destaca ainda
longo da nossa história, e trans- Identidade; Foodways: Cultura
mais na perspectiva dos pós-mu- desde 1929 vinham sendo feitos
formá-lo em um imaginário
esforços para reconhecer as con- e Culinária; Arte: Artesanato e
seus por incorporar as prerro- fundado no prestígio e no per-
NMAAHC - National Museum of African American History And Culture - Foto Criatividade; Movimento: Dança
tencimento, reafirmando assim tribuições e a história afro-ame- Jessika Rezende

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Social e Gesto; e Linguagem: o tando o papel dos negros neles, jada pelo Museu Afro Brasil. O ponsabilidade nesse sofrimento
poder da palavra. A exposição como na Primeira e Segunda curador Emanoel Araújo (2010, (HEYMANN, 2006, p. 7).
apresenta aos visitantes a diás- Guerras Mundiais, na Guerra do p. 127) ressalta a necessidade de Apesar de não ser um museu
pora afro-americana e africana Vietnã, na corrida espacial. Não romper com os discursos que histórico, as exposições do Mu-
acentuando as inúmeras contri- à toa, o NMAAHC foi construí- relativizam a crueldade da es- seu Afro Brasil se concentram no
buições que os afro-americanos do ao lado do National Museum cravidão e de se apontar para as período em que esteve vigente a
fizeram à cultura americana. of American History. As duas consequências nefastas desse pe- escravidão. Uma das seções mais
narrativas reunidas lado a lado, ríodo para a história do Brasil: impactantes do museu mostra as
à sombra do Washington Mo- Da perspectiva do negro, esta estruturas de um navio negrei-
Superação nument, encerrariam com um é uma história de muito e do-
ro. Além disso, o espectro da
loroso trabalho, de incertezas,
e reparação: final feliz os anos de segregação incompreensões e inconsciên- escravidão está presente em di-
racial, reconciliando uma nação cias, que ainda hoje persistem
versos momentos da exposição,
memórias antes dividida. na mentalidade de parte da elite
brasileira. Não é só uma história rememorando os efeitos de de-
transnacionais A Changing America, última de preconceitos, racismo e dis- sumanização da população negra
criminação, mas, sobretudo, de
em diálogo das galerias históricas, termina
exclusão social das mais danosas
mesmo quando traz à tona múl-
justamente com a posse do pre- e permissivas, nesse abismo das tiplas histórias silenciadas pelas
sidente Obama. Na exposição se desigualdades criadas e crista- narrativas tradicionais, como a
Atendendo a parte das ex- lizadas no Brasil como herança
destacam imagens de momen- produção de ciência e tecnologia
pectativas de congressistas que da escravidão.
tos importantes de seu governo, por escravizados e obras de artis-
defendiam que o museu afro-
como as multidões em seu ato tas negros do período escravista.
-americano a ser construído no A memória evocada no Mu-
de posse, imagens fotogênicas NMAAHC - National Museum of African American History And Culture - Foto
National Mall deveria unir os seu Afro Brasil não sinaliza para A escravidão e seus efeitos Jessika Rezende
dele com sua família e uma foto
americanos de todas as raças e o fim ou até mesmo para enca- são abordados, não com um
dele encarando o Martin Luther teor vitimista que anule a agên-
etnias, celebrando a riqueza cul- minhamento de soluções para mas, sobretudo, de exclusão so- na experiência cultural, artística
King Memorial. Segundo Brown cia dos sujeitos escravizados,
tural e patrimonial do American os problemas raciais no Brasil. A cial das mais danosas e permis- da população negra. O museu
(2018, p. 168), a seção dedicada mas destacando como o período
melting pot, o NMAAHC transmi- preocupação parece ser lembrar sivas, nesse abismo das desigual- não se furta a abordar as dores
ao presidente comemorava uma foi marcado por tensões e ne-
te uma memória comemorativa. para seguir lutando, para reparar dades criadas e cristalizadas no que atravessam a trajetória dos
conquista importante e repre- gociações que atravessavam os
Como afirmava Kingston, essa as injustiças, conforme a perspec- Brasil como herança da escravi- homens e mulheres negros que
sentava “um Camelot negro”, conflitos raciais de uma socieda-
seria uma instituição para a re- tiva que Heyman chama de dever dão” (ARAÚJO, 2010, p. 127). ajudaram a construir este país.
um símbolo de esperança, ins- de estruturada pelo racismo, e,
conciliação, para “responder per- de memória, o dever de manter Escravidão, resistência e liberda-
piração e promessa para os afro- No MAB, o tom da luta antir-
guntas e trazer histórias impor- vivo o passado e de que um re- em consequência, também pela de se entrecruzam nas salas de
-americanos. A eleição de um racista que perpassa todos os nú-
tantes que nos unirão”. O museu conhecimento é devido àqueles luta antirracista. Se, no caso es-
cleos da exposição parece ser a exposição a fim de explicitar as
presidente afro-americano seria tadunidense, o museu buscava
deveria ser uma oportunidade que sofreram a partir da cons- “heranças” de dor e de luta que
símbolo da superação das bar- busca pela reparação. Ainda que
de reescrever a história ameri- trução de um discurso memorial repactuar uma sociedade dividi- ainda afetam a vida dos negros
reiras raciais e encerraria a nar- não seja um museu estritamente
cana, incluindo nessa narrativa de natureza reivindicativa. Sendo da, no caso brasileiro as exposi- no Brasil.
rativa das galerias históricas com histórico, e por isso não siga uma
assim, uma exposição que inspi- ções buscam denunciar o mito
a perspectiva afro-americana.
a vitória da trajetória de lutas da cronologia oficial, como nas ga- A narrativa do NMAAHC,
Exemplo disso são exposições ra a necessidade de fazer justiça da união, calcado na falácia da
população negra. lerias históricas do NMAAHC, o por sua vez, celebra as conquis-
do NMAAHC que relembram através da lembrança do sofri- harmoniosa democracia racial.
período de vigência do sistema tas da luta antirracista. O encer-
momentos marcantes da história A ideia da memória comemo- mento vivido por certas partes O Museu Afro Brasil opta por
escravista se destaca de forma a ramento das galerias históricas
política estadunidense, ressal- rativa do NMAAHC contrasta da população, sobretudo na me- denunciar a “história de precon-
explicitar as marcas que deixou com a posse do presidente Oba-
com a memória traumática for- dida em que o Estado tem res- ceitos, racismo e discriminação,

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ma, em que ele e a primeira-da- ______. O Museu Afro Brasil.
ma Michelle acenam para o pú- Comunicação & Educação. Ano
blico, é um dos momentos em XV, nº1, 2010.
que podemos sentir esse clima BROWN, Timothy J. Public
comemorativo. A mensagem pa- memory as contested site: the
rece ser: “Vencemos o racismo e struggle for existence at the

TURISMO HISTÓRICO E
a prova disso é que elegemos um National Museum of African
presidente afro-americano”. American History and Culture.
Os acervos expostos no In: ADEN, Roger. C. US public
NMAAHC e no MAB se estru- memory, rhetoric, and the National
turam em bases similares, como
o papel da escravidão na forma-
ção do estado nacional e a cultura
Mall. Lexington Books, 2018
BURNS, A. Andrea. From store-
front to monument: Tracing the
RACISMO COTIDIANO:
como espaço de luta e resistência.

O PASSADO COMO DEVIR EM


public history of the black mu-
As diferentes abordagens memo- seum movement. University of
riais nos dois museus não anulam Massachusetts Press, 2013.
o diálogo entre as exposições,
HEYMANN, Luciana. O “devoir

FAZENDAS ESCRAVAGISTAS
pois ambas tratam de processos
de memoire” na França contemporâ-
históricos protagonizados pelas
nea: entre a memória, história, le-
populações negras no mundo
gislação e direitos. Rio de Janei-
e reconhecem que a escravidão
ro: CPDOC, 2006.
forçou o contato e o intercâmbio
Iohana Brito de Freitas
entre membros de diferentes na- LOPES, Ana Lúcia. A dimensão
ções e produziu as mais diversas educativa do Museu Afro Brasil. Mestre em História Social pela Universidade Federal Fluminense e doutoranda
Catálogo do Museu Afro Brasil. São em História Social da Cultura pela PUC-Rio. De 2019 a 2021 foi aluna visitante
formas de negociação entre as
no Lemann Institute for Brazilian Studies da University of Illinois at Urbana-
culturas de opressores e oprimi- Paulo: J.Safra Instituto Cultural, Champaign.
dos, bem como de resistência à 2010.
dominação que tais culturas lhes PEREIRA, Amílcar Araujo. Bla-
“Bom dia, bem-vindos à Fazenda Santa Eufrásia.
impõem na diáspora. ck Lives Matter nos currículos?
Imprensa negra e antirracismo C om estas palavras, trajan-
do roupas que remetem ao
imaginário dos barões oitocen-
Vocês estão vindo do Rio de Janeiro?
em perspectiva transnacional.
Referências bibliográficas
Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. tistas, Elisabeth Dolson, proprie- Por favor, notícias da Corte.”
49, n. 172, 2019, p. 122-143. tária da Fazenda Santa Eufrásia,
ARAÚJO, Emanoel. Negras me- localizada em Vassouras – RJ,
A Fazenda Santa Eufrásia partir da escravidão e de grandes
mórias, o imaginário luso-afro- inicia a visita guiada registrada
integra o episódio destinado à propriedades rurais com produ-
-brasileiro e a herança da escra- em um dos vídeos da série Ha-
“Casa de Fazenda”, que se de- ção voltada para exportação.
vidão. Estudos Avançados, nº18, bitar Habitat, dirigida por Paulo
2004. bruça sobre o Vale do Paraíba, Construída por volta de 1830,
Markun e Sérgio Roizenblit, da-
referenciando os tempos em de propriedade do comendador
tada de 2013, com exibição pelo
que a região era conhecida pelo Ezequiel de Araújo Padilha, a
canal Sesc TV.
complexo cafeeiro, organizado a

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Fazenda Santa Eufrásia era usa- decretaram falência e tiveram da de 1900, quando a economia sagísticos, e traz em anexo uma Quando Elisabeth assumiu fundamentais na programação
da para o cultivo do café em suas terras vendidas, hipoteca- cafeeira já declinava no Vale do lista de bens móveis considera- a propriedade, em 2001, resol- turística da fazenda, bem como
larga escala, tendo na mão de das ou mesmo abandonadas. A Paraíba fluminense. Na ocasião, dos de valor nacional. O histó- veu investir novamente no café a possível violação ao patrimô-
obra escrava a base do empreen- região viveria, então, um período optou por queimar o que ainda rico da Fazenda contém dados e abrir o espaço à visitação tu- nio histórico, tendo em vista a
dimento. De acordo com seu de reestruturação, com a adoção restava da produção cafeeira e sobre suas etapas construtivas rística. Lançou mão da ideia de sua finalidade de educação e re-
inventário, em 1880, a fazenda da pecuária por muitas das anti- usar a propriedade para criação e seus proprietários e foi ela- ambientação de base histórica, paração simbólica de violências
contava com 162 escravizados. gas fazendas e transformação de de gado. A fazenda foi herdada borado por Augusto Carlos da que busca reviver a história do perpetradas no local em tempos
Vale ressaltar que, entre as déca- tantas outras em casas de vera- por sua avó e depois por seu pai Silva Telles, arquiteto, servidor local por meio de encenações passados (Portaria n.46/2016 3º
das de 1830 e 1850, o Brasil pas- neio. A partir da década de 1980, e sua tia, a qual ficou responsável do Iphan desde 1957, fundador teoricamente fundamentadas na OTCC/PRM/VR – Inquérito
sa a dominar de forma incontes- as antigas construções e reminis- por sua gestão por cerca de ses- e presidente do ICOMOS até interação entre o sítio histórico, Civil nº 1.30.010.000001/2017-
te a produção mundial de café, e cências do complexo cafeeiro do senta anos, dando continuidade 1982 (MIRANDA, 2014, p.44- o intérprete e o visitante. Optou, 05).
o infame comércio transatlântico século anterior, assim como o à pecuária. Em 1970, a Fazen- 45). Como relator, teve o arqui- assim, por se caracterizar como
de escravizados para as Américas imaginário que cerca tais memó- da Santa Eufrásia foi tombada teto Paulo Santos, do Iphan, cujo ‘sinhá’ para receber turistas e fa-
atinge suas maiores marcas. rias, começam a apontar para um como patrimônio nacional pelo parecer destaca como caracterís- zer a visita guiada na fazenda. É
Entretanto, como destaca Ra- novo caminho: o turismo histó- Governo Federal, através do Ins- ticas marcantes da fazenda a au- assim que a proprietária aparece
fael Marquese (2013), a manu- rico cultural no Vale do Café, o tituto do Patrimônio Histórico e tenticidade, singeleza, encanto, no já referido vídeo da série de
tenção dos padrões de adminis- qual tomará vulto especialmente Artístico Nacional (ANS - Nº sedução e deslumbramento. 2013, que irá viralizar em 2016,
tração da paisagem e do trabalho na entrada do novo milênio. Processo: 789-T-67).1 De acordo A violência da escravidão e as quando mencionado em matéria
que, em décadas anteriores, O episódio “Casa de Fazen- com a proprietária, o tombamen- memórias de luta, resistência e assinada pela jornalista Cecília
constituíram a base do sucesso da”, a que nos referíamos ini- to foi resultado da solicitação de transformação dos escravizados Olliveira, do portal de notícias
do Vale do Paraíba no mercado cialmente, se dá nesse contexto sua tia Alzira, então à frente da que serviram de força motriz The Intercept Brasil: “Turistas
mundial, empurrou seus fazen- turístico. Conecta o passado e fazenda, diante da possibilida- para a fazenda no século XIX podem ser escravocratas por um
deiros para o esgotamento de o presente por meio da narrati- de de a propriedade ser cortada não despontam no processo, dia em fazenda ‘sem racismo’”.
suas unidades nas décadas de va que ora fala do comendador por uma estrada planejada pelo que, no entanto, destaca a quan- A reportagem denunciava a
1870 e 1880. Em adição, no mes- dos 1800s, ora fala da família da DNIT. tidade de pés de café existentes prática de visitações que natura- Cartaz de divulgação da Assinatura do
Termo de Ajustamento de Conduta
mo período a articulação do mo- atual proprietária, a qual orienta O processo conta com carta na propriedade ao longo de sua lizavam o racismo e a escravidão entre a Fazenda Santa Eufrásia, o Mi-
vimento abolicionista brasileiro a visita pela fazenda, deixando de recomendação de Roberto existência. O processo reflete a através de sua encenação na Fa- nistério Público Federal e Defensoria
Pública do Estado do Rio de Janeiro,
em bases nacionais e a ação cole- entrever mais do que paredes de Burle Marx, artista plástico bra- política preservacionista de en- zenda Santa Eufrásia, colocando no dia 06 de maio de 2017.
tiva dos escravizados na luta pela pedra e cal: nas palavras de Má- sileiro reconhecido internacio- tão, restrita aos bens materiais, os holofotes das redes sociais no
abolição ganha cada vez mais rio Chagas (2006, p.2), a “tensão nalmente por seus trabalhos pai- na maioria das vezes ligados ao turismo praticado nas fazendas Em sua declaração ao Minis-
força. A Guerra Civil norte-ame- humana implicada na construção poder ou lógica colonial.2 históricas, que permitiam que tério Público, a proprietária da
ricana (1861-1865) e a reorgani- cultural de um patrimônio pes-
1
A Fazenda Santa Eufrásia foi inscrita visitantes fossem servidos por
no Livro do Tombo Arqueológico, Et- 2
Essa perspectiva de patrimônio irá fazenda recorre à ideia de repre-
zação da economia-mundo capi- soal”. Sua narrativa vai e volta no nográfico e Paisagístico (n.48, fl.12) e se ampliar, especialmente nas últi- pessoas vestidas como escravi- sentação/ encenação do passado
talista, em fins do século XIX, tempo, de forma não linear: ora no Livro do Tombo Histórico (n.424, mas décadas do século XX, alinhada zados, sem qualquer abordagem
fl.69), considerando a edificação sede a discussões sobre o tema no âmbito para justificar a caracterização
irão coroar a crise da economia rememora, ora teatraliza o passa- e seu acervo mobiliário, incluindo mundial. A noção integrará progressi- crítica. de “sinhá” e de “mucama”. Ale-
escravista cafeeira brasileira. do, representificando-o. louças, objetos do século XIX e mes- vamente o conjunto de testemunhos
mo carruagens, assim como pequeno materiais nas suas relações com o A polêmica se desdobrou ga não estar a proferir qualquer
Sem conseguir saldar as dívi- Elisabeth Dolson (2018) con- trecho de muro de pedra (que de- meio, passando a focar não apenas em Inquérito Civil Público, que, inverdade histórica, posto que
marca as antigas construções de en- as suas características estéticas, mas
das adquiridas, em pouco tempo, ta que seu bisavô, o coronel Ho- genho, tulha e senzalas), bosque com todo o conjunto, material e imaterial, considerando o artigo 5º da esses personagens de fato existi-
foram muitos os fazendeiros do rácio Lemos, adquiriu a Fazenda árvores centenárias e represa criada reconhecido e apropriado coletiva- Constituição Brasileira de 1988, ram. Para Elisabeth, sua atuação
para mover a roda-d’água do antigo mente por seu testemunho, memória
Médio Paraíba fluminense que Santa Eufrásia na primeira déca- engenho. histórica e sabedorias comunitárias. apurou a violação de direitos ajuda a entender o próprio pas-

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sado, tanto que muitos dos visi- experiência propriamente dita, a o consumo não é simplesmente gica, os negros, quando não dão
tantes já declararam ao final da ideia de que é possível se trans- material, mas também sensorial corpo ao exército da união, figu-
visita que “parece que voltaram portar no tempo. Como observa e identitária. Presente e passado ram como força de trabalho das
no tempo”. Catroga (2015), a necessidade de articulam-se, assim, através de antigas plantations, sem trajetórias
A fazenda é transformada em salvaguardar o passado vai além complexos processos de elabo- ou memórias próprias. As repre-
um cenário onde o visitante pode do rememorar; é preciso repre- ração de significados, mediados sentações do passado escravista
visitar o ontem, contemplar a ri- sentificar, isto é, viver a memó- pela produção, consumo e circu- ganham vulto, no entanto, na ri-
queza do proprietário e até mes- ria, dar vida ao universo simbóli- lação de imagens e narrativas. queza ostentada pelos latifundiá-
mo experimentar o serviço dos co para que possa transmiti-lo e Esse turismo de memória rios e seus percursos familiares,
escravizados. A legitimidade do consumi-lo. não é, portanto, exclusividade que guiam o olhar nostálgico do
espaço como “histórico” ecoa Conhecer a história in loco, do Vale do Paraíba fluminense. turista para uma plantação idílica
Natchez Pilgrimage, 1932. Mississippi Department of Archives & History,
na chancela do próprio Estado experimentar o que é autêntico Nos anos de 1930, antigos pa- Howard Pritchartt Jr. Lantern Slide Collection: “Scene at Dunleith during early
Seja no Brasil, seja nos Esta-
na figura do Iphan. O apaga- de um passado que passou e não lacetes na cidade de Natchez, Natchez Pilgrimage”. dos Unidos, o passado é enten-
mento e a contenção da barbá- poderá mais ser vivido faz parte região ribeirinha ao Rio Missis- dido de forma uníssona e linear,
go Sul permanecia vivo com suas chez – MS a Baton Rouge – LA)
rie típica do sistema de plantation dos devaneios humanos. E tais sipi no Deep South dos Estados portanto, dicotômico: as narrati-
tradições pastorais, paisagens e de cana-de-açúcar (de Baton
diminuem o horror da escravi- devaneios não são autônomos; Unidos, começavam a abrir suas vas sobre o tempo pretérito ou
idílicas e mansões “típicas de Rouge – LA a New Orleans –
dão, selecionando memórias que envolvem o trabalho de publi- portas ao turismo. Peça central são verdadeiras ou são falsas e
uma época de romance e bele- LA).
encontram seu poder simbólico cização da história e de outros na economia algodoeira no anti- a legitimidade de sua reprodu-
za”. Casarões transformados em
no olhar turístico nostálgico, que conjuntos de sinais sociais e mi- go Sul escravista, Natchez figu- ção encontra-se justamente aí:
museus casas, os quais acenavam
observa in loco o que os livros de diáticos, os quais se relacionam rava entre as cidades com maio- se é verdade, pode ser narrado.
ao público com a possibilidade
história procuram contar. com processos complexos de res riquezas per capita da nação O que narrar e como narrar não
de reviver, de forma autêntica,
Mais do que lazer e/ou ativi- emulação social que empregam antes da Guerra Civil americana. despontam como questão, esva-
lembranças sagradas do passado
dade cultural, o que está sendo diferentes tipos de capital. A mo- Ao fim da guerra e da escravi- ziando a necessidade de proble-
glorioso (COX, 2012).
comercializado e consumido é a tivação básica das pessoas para dão, a cidade perde sua proe- matizar esse passado e refletir
minência. Anos depois, duran- O sucesso do Natchez Pil- Cartão Postal do circuito “River Road sobre práticas decorrentes dele
grimage levou outras cidades a Plantations”, Louisiana/ EUA. As fa-
te o período crítico da Grande zendas aparecem de forma recorren- nos dias atuais, em uma opera-
Depressão Americana, Natchez replicarem a ideia e, nas déca- te representadas através da imagem ção que remete a imagens cris-
das seguintes, a indústria de tu- da casa grande, remetendo a um pas-
busca na grandeza antebellum de sado rico e glorioso. Fotografia: Ioha- talizadas pela própria História
suas numerosas mansões uma rismo histórico se consolidará na Freitas (2020). Pública seja na produção didá-
saída econômica, dando vida ao na região. Quem percorre hoje tica e de outros materiais de di-
Na maioria desses espaços,
Natchez Pilgrimage, movimento o Sul estadunidense encontra vulgação, como filmes e livros
ganha vida o imaginário da Cau-
organizado por mulheres ligadas prontamente informações sobre romanceados, seja em lugares de
sa Perdida, buscando-se recon-
ao Natchez Garden Club que re- o circuito turístico de plantations memória como museus e espa-
ciliar a tradicional sociedade
solvem “ressuscitar” os ícones e casas históricas da U.S. Route ços culturais.
branca sulista com a derrota na
do antigo Sul para o turismo. 61, conhecida como River Road,
Guerra Civil americana. A causa Assim, o consenso em torno
região herdeira de uma socieda-
Nos anos que seguem, Nat- confederada é descrita como no- do atributo “histórico” dessas
de escravista voltada, em fins do
chez passa a ser um nome fami- bre e heroica e a importância da fazendas – entendido aqui como
século XVIII e no século XIX,
Senzala cenográfica na Fazenda União, em Rio das Flores/RJ, com réplicas de liar e um destino turístico pro- escravidão na gênese do conflito espaço que remete a um passado
para a produção e comércio de
pessoas escravizadas, em tamanho real, assinadas pelo artista plástico Jeroni- curado por americanos ansiosos é minimizada. Seguindo essa ló- da nação, digno de rememora-
mo Magalhães. Foto: Iohana Freitas (2018) algodão (especialmente de Nat-
em conhecer o lugar onde o anti- ção e patrimonialização – oculta

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Nas últimas décadas, ainda horas em ao menos seis estados não importa, quem é descartá- bre como determinada socieda-
que políticas afirmativas, como brasileiros: Bahia, Ceará, Piauí, vel e quem não é” (MBEMBE, de irá lidar com o seu próprio
a inclusão no currículo oficial da Pernambuco, Rio de Janeiro e 2018, p.41). passado no presente.
rede de ensino da obrigatorieda- São Paulo. E ao definir quem importa, Para compreender e proble-
de da temática História e Cultura Nos Estados Unidos, os da- decide-se quem tem o direito à matizar a construção de me-
Afro-Brasileira (Lei 10.639, de dos de violência policial também memória, ao esquecimento e ao mórias sobre a escravidão no
2003), a instituição do Estatuto têm cor e endereço. De acordo devir, logo ao passado histórico turismo praticado em fazendas
da Igualdade Racial (Lei 12.288, com informações da organiza- e às políticas públicas do presen- históricas, é preciso, portanto,
de 2010) e a reserva de vagas em ção não governamental Mapping te. Contudo, essa escolha não é entender que estamos no meio
Visitação com guia caracterizada como escravizada na San Francisco Plantation, universidades e institutos fede- Police Violence, entre 2013 e uníssona. O pêndulo entre a es- de um longo processo de con-
Louisiana/EUA. Foto: Iohana Freitas (2019)
rais (Lei 12.711, de 2012), pos- 2022 a taxa de homicídios de trutura e a agência social nos re- frontação do racismo. Deman-
sam ser consideradas conquistas
conflitos e divergências em tor- dos, por vezes removidos e res- pessoas negras pela polícia é 2,9 mete a códigos, valores, traumas, das por reparação da população
importantes da população ne-
no de seus significados e práti- significados. Manifestações con- vezes maior do que a de pessoas interditos e permitidos, a sobre- negra e enfrentamentos na cons-
gra,4 o Brasil está longe de resol- brancas. Em julho de 2013, o posições plurais, assim como às trução de memórias públicas ali-
cas, remetendo a uma polifonia tra o racismo tomaram as ruas de
ver suas desigualdades raciais. De movimento Black Lives Matter identidades em suas dimensões nhavam a história de diferentes
de experiências e interpretações. diferentes cidades e países, exigin-
acordo com relatório do Institu- ocupou as ruas de várias cida- ambivalente e conflitual. O es- países marcados pela diáspora
Esse tipo de turismo encontra do mudanças. Reivindicações que
to Brasileiro de Geografia e Es- des em resposta à absolvição de paço público constituirá, assim, africana e pelo fatídico comércio
nas representações do passado existem há séculos e que ganha-
tatística (IBGE) datado de 2019, George Zimmerman, membro arena de disputas e embates so- de escravizados.
sua potência, selecionando, pre- ram nova força.
dois terços da população encar- de uma vigilância comunitária
servando e institucionalizando Se no período que segue a abo-
cerada no país é negra e a taxa em Sanford, Flórida, que matou
locais de memória e patrimônios lição da escravidão em diferentes
de homicídios é 2,7 maior en- o jovem negro Trayvon Martin,
histórico-culturais, transforma- partes do Atlântico a experiência
tre pessoas negras do que entre de 17 anos. Entre 2014 e 2020,
dos em matéria-prima para uma da diáspora africana foi ocultada
pessoas brancas (IBGE, 2019, diante de novos e cotidianos as-
versão estetizada de continuidade do espaço público – colaborando
p.9-10). Quase sete em cada dez sassinatos de pessoas negras e
entre passado e presente. Conti- para o silenciamento de possíveis
mortos ou feridos em aborda- violência policial, o descontenta-
nuidade de desigualdades raciais, demandas de reparação da popu-
gens realizadas pela polícia en- mento e as manifestações conti-
econômicas e sociais. Continui- lação negra que permaneceu so-
tre 2013 e 2018 são negros. Um nuaram crescendo, reverberando
dade que legitima indivíduos, gru- cial e economicamente marginali-
levantamento feito pela Rede de em diferentes países que vivem a
pos, comunidades e mesmo na- zada – as transformações sociais,
Observatórios da Segurança, em realidade da desigualdade racial e
ções, entendida como amálgama políticas e econômicas de fins do
2020, revelou que a polícia mata do racismo no pós-abolição.
no processo de reconhecimento e século XX contribuem para reno-
uma pessoa negra a cada quatro
pertencimento. Um emaranhado var demandas por reparações em Um passado que não passa,
de narrativas sobre o ontem atua- diferentes partes do globo.3 Comparative History. USA: Blooms- intimamente marcado pelo lugar
bury Academic/ HPOD Edition, 2017 /
lizadas a partir das demandas do ARAUJO, Ana Lucia. Slavery in the age proeminente que o racismo ocu-
3
Considerando o precedente aberto
of memory: Engaging the past. Lon-
hoje. por ações de reparação de judeus ví- pa nas relações de poder. Como
don: Bloomsbury Academic, 2020.
timas do holocausto e de nipo-ame- afirma Achile Mbembe, racismo
Vale lembrar que, na última ricanos que estiveram ilegalmente 4
Entendemos aqui a população negra
década, enfrentamentos reocupa- presos em campos de concentração como o somatório de pessoas que se é acima de tudo uma tecnologia
durante a Segunda Guerra Mundial, autodeclaram pretas e pardas, con- destinada a permitir o exercício
ram o campo público, racializa- demandas por reparação por séculos forme o quesito cor ou raça usado
de escravidão ganham cada vez mais pelo IBGE, em atenção à alínea IV do do biopoder e da soberania, en- Escultura de escravizado utilizada como peça decorativa na casa grande, trans-
do. Monumentos a escravagistas
a esfera pública. Ver: ARAUJO, Ana art.1º do Estatuto da Igualdade Ra- formada em museu, na Evergreen Plantation, Louisiana/ EUA. Foto: Iohana
tendida aqui como “capacidade
mundo afora foram questiona- Lucia. Reparations for Slavery and cial (Lei nº 12.288, de 20 de julho de Freitas (2019).
the Slave Trade: A Transnational and 2010). de definir quem importa e quem

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Episódio 9 – Casa de Fazenda
CATROGA, Fernando. Memória, – Fazenda Santa Eufrásia. Dis-
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VIOLÊNCIA E FOLCLORIZAÇÃO:
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A MUSEALIZAÇÃO DA
CHAGAS, Mario. Educação,
museu e patrimônio: tensão, de-
voração e adjetivação. Patrimônio
– Revista Eletrônica do Iphan.

ESCRAVIDÃO E DA CULTURA
Dossiê Educação patrimonial.
Nº 3 – Jan./Fev. 2006, p.01-07.
COX, Karen L. Destination Dixie:
Tourism and Southern History.

NEGRA NO MUSEU
United States: University Press
of Florida, 2012.
DOLSON, Elisabeth. Elisabeth
Dolson: depoimento oral [09 de
agosto de 2018]. Entrevistador:
Iohana Brito de Freitas. Vassou-
ras (RJ): 2018.
HISTÓRICO NACIONAL
IBGE - Desigualdades Sociais
por cor ou raça no Brasil. Rio
de Janeiro: IBGE, 2019. Dispo- Aline Montenegro Magalhães
nível em: <https://biblioteca.
Historiadora com mestrado e doutorado em História Social (PPGHIS/UFRJ). Bolsista de
ibge.gov.br/visualizacao/livros/
Pós-doutorado sênior do CNPq, em Museologia, pelo PPGPMUS/Unirio-Mast, entre
liv101681_informativo.pdf>. 2018 e 2020. Foi pesquisadora no Museu Histórico Nacional por mais de 20 anos, ins-
Acesso em: 21/06/2021. tituição que dirigiu entre fevereiro e julho de 2022. Atualmente é docente no Museu
Paulista da USP.
MARQUESE, Rafael. Capitalis-
mo, escravidão e a economia ca-
feeira do Brasil no longo século

O
XIX. Sæculum – Revista de His- Museu Histórico Nacional, da educação nacional, para in- Que lugar ocupam os africanos
tória, Dossiê História e História
instituição que completou cluir no currículo oficial da rede e afrodescendentes no Museu
Econômica, n. 29, 31 dez. 2013,
p. 289-321. cem anos em 12 de outubro de de ensino a obrigatoriedade Histórico Nacional?
MBEMBE, Achille. Necropolí- 2022, tem passado por um pro- da temática ‘História e Cultu- A proposta do presente arti-
tica: biopoder, soberania, estado cesso de autocrítica, questionan- ra Afro-Brasileira e Indígena’”.1 go, inspirado em minha partici-
de exceção e política da morte. do suas práticas e representações 1
BRASIL. Ministério da Educação. Lei pação no I Encontro Internacio-
São Paulo: n-1 edições, 2018. do passado, construídas ao longo nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. nal Samba, Patrimônios Negros
MIRANDA, Ana Carolina Ne- de sua trajetória. Uma pergunta, Diário Oficial da União, Brasília, DF,
ves. Pesquisa histórica da Fazenda 10 jan. 2008. Disponível em: <https:// e Diáspora, é tentar responder a
especificamente, tem mobilizado bit.ly/3j63i3S>. Acesso em: 28 jun. essa pergunta, a partir da análise
Santa Eufrásia, Vassouras (RJ).
pesquisas e reflexões, tendo por 2021. BRASIL. Presidência da Repú-
Ouro Preto, 2014. blica. Casa Civil. Lei nº 11.645, de 10 de parte do atual circuito exposi-
base a Lei 10.639/2003, modi- de março de 2008. Diário Oficial da tivo do MHN. Pretendemos, as-
ficada pela 11.645/2008, “que União, Brasília, DF, 11 mar. 2008. Dis-
ponível em: <https://bit.ly/37fqU36. sim, compartilhar um pouco da
estabelece as diretrizes e bases Acesso em: 28 jun. 2021>.

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expositivo e sua abordagem tam- cumental sobre o período. Afi- A terceira e última observação da, resultado da composição de
bém foi ampliada para além da nal, nenhuma delas tem relação diz respeito à presença da Maria sua documentação museológica,
escravidão. Entretanto, ainda é com o fato e tampouco são do Cambinda, uma boneca/másca- cheia de imprecisões e equívo-
preciso romper com a violência, período. A segunda diz respei- ra/escultura do século XIX, que cos. Embora seja um objeto de
a folclorização e o silenciamento to à assimetria no tratamento pertenceu à Irmandade de Nossa produção e uso afro-brasileiros,
que persistiram no modo de ex- das informações sobre os obje- Senhora do Rosário dos Pretos ali fora reduzido à condição de
por os objetos e integrá-los à nar- tos. Se aqueles relacionados aos de Ouro Preto, como alegoria do alegoria, a serviço do protagonis-
rativa expográfica. No intuito de portugueses mereceram explica- continente africano. Maria Cam- mo português, esvaziado de suas
fazer esse exercício, escolhemos ções detalhadas na legenda, os binda passou a integrar o acervo possibilidades de compor outras
duas vitrines do módulo expo- representativos dos continentes do MHN em 1928 e sofreu um narrativas, como a das diferentes
sitivo “Portugueses no mundo”. alcançados com as grandes nave- processo de silenciamento em formas de atuação e (re)existên-
Figura 1 – Primeira vitrine do módulo da exposição “Portugueses no mundo” A primeira, que representa as ex- gações foram referenciados com sua trajetória no museu, o que se cias dos negros nas Irmandades
do Museu Histórico Nacional. Vê-se a “Jupira” à esquerda e “Maria Cambinda” pansões marítimas portuguesas e notas sucintas, conforme é pos- percebe pela escassez de infor- de Homens Pretos, como a de
ao seu lado, à direita. Foto da autora
sua chegada à América, e a que sível ver na reprodução abaixo: mações a seu respeito na legen- Nossa Senhora do Rosário (MA-
se encontra na sala “Entre mun- GALHÃES e PALAZZI, 2019).
pesquisa de pós-doutorado em investiu em novo circuito expo- dos” e concentra artefatos do Já a vitrine do núcleo temáti-
museologia “Os negros no Mu- sitivo organizado segundo os protagonismo negro na cultura. co “Entre mundos” do módulo
seu Histórico Nacional: por uma critérios temático e cronológico.
Na vitrine sobre o mundo “Portugueses no mundo” tam-
coleção descolonizada. 1922- Procurava-se ampliar o espaço
português, temos um busto de bém abriga objetos da Irman-
2018”, enfatizando as atuais es- de representação e pluralizar as
Luís de Camões, vestígios de ar- dade de Nossa Senhora do Ro-
colhas e práticas institucionais, abordagens sobre os africanos
queologia marinha de um navio sário dos Pretos de Ouro Preto.
que têm buscado contar outras e afrodescendentes na História
que naufragou na costa brasileira A coroa e o cetro do reinado,
histórias sobre a diáspora africa- do Brasil, com o propósito de
no século XVII e instrumentos assim como um instrumento de
na2 no Brasil. superar o reducionismo à for-
de navegação que ocupam meta- percussão denominado caxambu
Entre 2003 e 2010, a partir ça de trabalho e à violência que
de da vitrine. Ali também estão foram doados junto com Maria
do lançamento da Política Na- marcara as exposições até então.
objetos que procuram represen- Cambinda, em 1928. Ocupando
cional de Museus pelo ministro A preocupação da equipe era
tar os continentes aonde os por- a parte inferior da vitrine, junta-
da Cultura Gilberto Gil, o MHN tamanha que o tema foi levanta-
tugueses chegaram, sendo a Ásia, ram-se à rabeca outrora denomi-
do logo na primeira reunião de
2
Para Rufino (2019, p. 64), “a diáspo- com um potiche (séc. XVIII) e nada “de escravo”, uma escultu-
ra africana como um acontecimento curadoria, muito em função de
uma bacia de toalete em porcela- ra pequena da Deusa Obá, um
de dispersão e despedaçamento de todas as lutas e conquistas do
sabedorias, identidades e sociabilida- na chinesa (séc. XIX), a América, cetro da Festa do Divino do Ma-
des se forja como um assentamento movimento negro, como o sis-
com a escultura de uma índia em ranhão, um conjunto que com-
comum agenciando um complexo tema de cotas nas universidades
poético/político no próprio trânsito”. gesso (sec. XX) e a África com põe a indumentária de Oxum,
Ademais, continua ele, “a diáspora e a aprovação da Lei 11.645, de
três presas de elefante esculpidas formado por abebé, braceletes e
africana se forja enquanto possibi- 2008, que reverberaram na cura-
lidade à medida que os agentes en- (séc. XIX) e uma escultura em adaga. Na parte superior, encon-
volvidos são produzidos como im- doria do novo circuito expositi-
madeira (séc. XIX). tram-se violão e batuta de Carlos
possibilidade pelo advento colonial”. vo.
Para uma perspectiva cultural sobre A primeira observação a se Gomes e um óleo de Henrique
a diáspora, leia Hall (2013, p. 28-53), Efetivamente, a história de Bernardelli, no qual aparece o
que a considerou “como uma subver- fazer é que os objetos ali dis-
são dos modelos culturais tradicio- negras e negros no Brasil passou padre José Maurício tocando
postos cumprem mais um papel Figura 2 – Legendas da primeira vitrine do módulo de exposição “Portugueses
nais orientados para a nação” (Idem, a ocupar mais espaço no circuito para d. João VI.
p. 40). de alegoria do que de fonte do- no Mundo”. Foto da autora

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ção. É o caso do caxambu, que processos e práticas de curadoria
tem os seguintes dizeres grava- compartilhada, mobilizando di-
dos em sua caixa de ressonância ferentes setores da sociedade ci-
“VIVA O BRASIL E TODO O vil organizada. Entre essas ações,
SEO VALOR E VIVA O NOS- destacamos as rodas de conversa
SO IMPERADOR”. Solange com os movimentos sociais. A
Palazzi, historiadora e membro roda sobre a história negra no
da Irmandade de Nossa Senhora MHN, realizada em 2018, gerou
do Rosário dos Pretos de Ouro um grupo de trabalho (GT) com
Preto, sugere que essa gravação Tat’EtuLengulukenu, sacerdo-
tenha relação com a repercussão te do terreiro InzoUnsaba Ria
de alguma lei abolicionista. Por Inkosse, em Paraíba do Sul, Rio
sua vez, o abebé de Oxum carre- de Janeiro. O GT teve por objeti-
ga moedinhas com a efígie de d. vo o estudo e tratamento de uma
Pedro II no verso e no anverso coleção de objetos sagrados do
o brasão do Império do Brasil. candomblé, adquirida em 1999.
Embora a coroa e os cetros não Trata-se de quarenta objetos, en-
tenham nenhuma alusão direta tre os quais itens que constituem
Figura 4 – Exposição dos assentamentos de orixás. Curadoria de
a d. Pedro II, são símbolos da os assentamentos de Oxum, Ie- Tat’EtuLengulukenu. Exposição “Cidadania”. Foto da autora
monarquia europeia apropriados manjá, Ogum e Obaluaê. Foram
Figura 3 – Vitrine que reúne objetos relativos à diáspora africana, enfatizando
as resistências pela via da arte e da religião. na composição da indumentária doados pela própria devota que o direito ao livre culto, contra o artísticas e textuais no circuito
do rei (de Congo) ou do impera- os possuía, Zaira Trindade, se- racismo e as perseguições que as de longa duração do MHN, com
Embora a vitrine tenha sido ração europeia. Além da possível dor (do Divino Espírito Santo). lecionados e coletados pelo mu- religiões de matriz africana ainda o objetivo de provocar e propor
pensada para representar dife- interpretação dessas experiên- (SOUZA, 2002: 219) seólogo Juarez Guerra em uma sofrem tanto. outras leituras sobre temas e ob-
rentes formas de atuação e re- cias como parte do processo casa na Vila Vintém, comunida- Vale mencionar as parcerias jetos relativos à diáspora africana
Desde 2018 essa leitura da
sistência de negras e negros no colonizador vitorioso, o sucesso de localizada entre os bairros de desenvolvidas desde então, com na história do Brasil.4
exposição tem sido realizada
Brasil, sua interpretação por par- desses artistas pode ser tomado Realengo e Padre Miguel, no Rio o objetivo de refletir sobre o pa- Assim, no centenário do Mu-
a contrapelo, na trilha de Wal-
te do público fugiu ao intento. como exemplo para endossar o de Janeiro. Nunca tinham sido trimônio colonial sob uma pers- seu Histórico Nacional, procura-
ter Benjamin (1987, 222-232),
Primeiro porque a organização mito da democracia racial, com o expostos no MHN. pectiva decolonial, a exemplo do mos fazer coro com as palavras
procurando identificar protago-
dos objetos pressupõe uma visão apaziguamento do racismo. Essa projeto European Colonial He- da dramaturga Bonnie Greer, no
nismos silenciados na narrativa Nossa dificuldade em lidar
hierárquica sobre as experiências diferença de planos pode ser vis- ritage Modalities in Entangled sentido de ter uma instituição
apresentada. Especialmente em com esses objetos, tanto pelo
ali expostas. No plano inferior ta sob a ótica da dicotomia entre Cities (ECHOES),3 que resultou cada vez mais aberta à escuta, à
função da pesquisa de pós-dou- desconhecimento sobre a re-
da vitrine, os artefatos relacio- “cultura popular” x “cultura eru- na exposição “Brasil decolonial: conexão e à produção de outras
torado por mim desenvolvida, ligião quanto pelo medo de
nados a práticas coletivas, sem dita”, “história” x “folclore”. outras histórias”, inaugurada em histórias.
tendo por referência a pergunta desrespeitar o sagrado neles
autoria e sem pertencimento maio de 2022. A exposição con-
Outro ponto que vale a aten- sobre a presença afrodiaspóri- presente, foi contornada pelas 4
A curadoria dessa exposição foi
conhecidos. No plano superior, siste em dezessete intervenções composta pelas técnicas do MHN Ali-
ção é que alguns objetos da cha- ca no MHN, no ano em que se orientações e pelo tratamento
artistas negros do século XIX ne Montenegro Magalhães, Fernan-
mada “cultura popular” estão re- completaram 130 anos da Lei 3. dado por Tat’Etu às peças. Ele da Castro, Flávia Figueiredo, Valéria
que tiveram ascensão social, des- 3
Sobre o projeto ECHOES, ver: Abdalla e pelas integrantes do pro-
lacionados ao imperador d. Pedro 353, que aboliu a escravidão no foi o responsável pela exposição
tacando-se na produção de uma <https://ces.uc.pt/pt/investigacao/ jeto ECHOES, Brenda Coelho, Keila
II, contribuindo ainda mais para Brasil. Esse esforço somou-se ao desses itens no módulo “Cidada- projetos-de-investigacao/projetos- Grinberg (Unirio e University of Pitts-
arte tida como erudita, de inspi- f i n a n c i a d o s /e c h o e s - e u ro p e a n - burgh), Leila Bianchi Aguiar (Unirio) e
o discurso vitorioso da coloniza- investimento da instituição em nia”, compondo o discurso sobre
colonial-heritage-modalities> Márcia Chuva (Unirio).

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Diversity isn’t just putting black vel em: <https://bit.ly/3LJuH-
or people of colour in institu- Vh>. Acesso em 8 nov. 2020.
tions. Listen to them, implement
what they say… There are plen- RUFINO, Luiz. Pedagogia das en-
ty of people who teach black cruzilhadas. Rio de Janeiro: Móru-
history, who know heck of a lot. la. 2019.
‘Bring them in, let them hold
courses and have clashing inter- SOUZA, Marina de Mello e. Reis
pretations of an object.5 negros no Brasil escravista: histó-
ria da festa de Coroação de Rei
Congo. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2002.
Referências
bibliográficas

BENJAMIN, Walter. Obras es-


colhidas. Vol. 1. Magia e técnica,
arte e política. Ensaios sobre lite-
ratura e história da cultura. Pre-
Patrimonialização
fácio de Jeanne Marie Gagnebin.
São Paulo: Brasiliense, 1987.
HALL, Stuart. Da diáspora. Iden-
tidade e mediações culturais.
da Cultura
Belo Horizonte: Ed. UFMG,
2013.
MAGALHÃES, Aline Montene-
Afrodiaspórica
gro et al. Notas sobre a Diáspo-
ra Africana nas exposições e nas
ações educativas do Museu His-
tórico Nacional. Anais do MHN,
Rio de Janeiro, v. 51, 2019, p. 44-
64.
MAGALHÃES, Aline Montene-
gro; PALAZZI, Solange. Maria
Cambinda: uma máscara, uma
boneca, uma escultura. Exporvi-
sões, [S. l.], 1 dez. 2019. Disponí-
5
“Diversidade não é apenas colocar
negros ou pessoas de cor em institui-
ções. Ouça-os, implemente o que eles
dizem... Há muitas pessoas que ensi-
nam história negra, que sabem mui-
to. ‘Traga-os, deixe-os realizar cursos
e ter interpretações conflitantes de
um objeto”. (a dramaturga Bonnie
Greer foi vice-presidente do Museu
Britânico). Livre tradução da autora
<https://www.bbc.com/news/enter-
tainment-arts-53219869?__twitter_
impression=true>

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A patrimonialização
de bens culturais
afro-brasileiros:
percursos e pedras
no caminho
Marcia Sant’Anna

Arquiteta e urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e do Programa


de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da
Bahia; foi servidora do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
por 27 anos, tendo dirigido o Departamento do Patrimônio Imaterial dessa ins-
tituição entre 2004 e 2010.

A o longo do século XX, dois


momentos se destacam na
trajetória dos movimentos so-
no âmbito de lutas pelos direi-
tos de cidadania e em defesa das
diferenças étnicas, com vistas
país após vinte anos de ditadura
militar, a emergência de reivindi-
cações em torno da reavaliação
ciais negros no Brasil. O pri- à construção de uma sociedade do papel do negro na história do
meiro, nos anos 1920 e 30, ca- pluralista (RISÉRIO, 2007). Foi Brasil e do reconhecimento da
racteriza-se por demandas de nesse segundo momento que a centralidade de sua contribuição
integração na sociedade e no ancestralidade africana se tornou cultural na formação da socie-
mercado de trabalho e o segun- uma referência fundamental no dade brasileira (SANT’ANNA,
do, que abrange as décadas de bojo dos movimentos negros, 2020).
1970 e 80, foi marcado por uma fomentando, em meio ao pro- Essas reivindicações estão na
radicalização dessas demandas cesso de redemocratização do origem da criação de instituições

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como o Memorial Zumbi dos Neste texto, considerando ral brasileira e, em particular, a logia de patrimônio e ressaltando em profissionais, como historia- tombamento do terreiro, assim
Palmares, em Alagoas – primeiro um percurso de cerca de qua- de preservação do patrimônio a importância fundamental, no dores, antropólogos e sociólo- como seus argumentos, mos-
produto da articulação de movi- renta anos, tentaremos avançar histórico e artístico, cujas raí- processo de patrimonialização, gos, mais aptos a lidar com esses tra a disputa que se instalou na
mentos sociais negros e o antigo no entendimento das principais zes legais e técnicas remontam da participação ativa e informada universos culturais (CHUVA, instituição em torno da própria
sistema Sphan/Pró-Memória1 –, dificuldades enfrentadas para à França do século XIX e cujo dos sujeitos detentores e produ- 2017). Ainda que insuficiente- narrativa histórica do país. Não
e de iniciativas de patrimoniali- o reconhecimento e tratamen- foco, por excelência, era (e, la- tores de bens culturais como este mente, promoveram em seu seio foi por outra razão que, quando
zação de locais e bens represen- to adequado desse patrimônio mentavelmente, ainda é) a mate- e de uma base social mais ampla uma abertura conceitual e um finalmente o processo chegou ao
tativos da cultura afro-brasileira, e dos desafios atuais para a sua rialidade dos bens culturais, por comprometida com sua defesa arejamento técnico-profissional. Conselho Consultivo do Iphan,
como o Quilombo dos Palma- preservação. Tarefa complexa sua vez abordada principalmente e preservação.3 Nesse sentido, o No momento dos tomba- a decisão pelo tombamento foi
res, na Serra da Barriga (AL), e e difícil, uma vez que estamos em aspectos estéticos e artísticos processo indicou pioneiramente mentos da Casa Branca e do Qui- dividida e exigiu o voto de mi-
o Terreiro da Casa Branca do falando de um patrimônio que, igualmente fundamentados em a centralidade do que chamamos lombo dos Palmares, o Iphan, a nerva do então presidente da
Engenho Velho, em Salvador como já havia sido apontado por noções europeias. O segundo, o hoje de sustentabilidade social despeito dos diversos estudos instituição, o pernambucano
(BA), respectivamente em 1984 Joel Rufino dos Santos (SAN- enfrentamento de uma concep- para a preservação de patrimô- sociológicos e etnográficos que Marcos Vilaça.
e 1986. É possível afirmar, com TOS, 1997, p. 5-9), não se dis- ção positivista de História, que nios culturais. A ampla mobili- marcaram o início de sua atuação A intensa luta de mais de dois
isso, que a luta pelo reconheci- tingue fundamentalmente do conduzia a uma atribuição de zação social aglutinada ao longo nos anos 1930 e dos esforços de anos por esse reconhecimento
mento da contribuição histórica patrimônio cultural do país. Os valor articulada a grandes acon- desse processo de tombamento, abertura realizados no âmbito necessita, a meu ver, ser consi-
e cultural negra teve então uma símbolos nacionais do futebol tecimentos e figuras da história que ultrapassou as fronteiras da da Fundação Nacional Pró-Me- derada nas críticas contempo-
primeira vitória, reforçada, em brasileiro, representado pela fi- oficial, calando outras vozes e Bahia, tornou esse terreiro, jun- mória, era bastante impermeá- râneas às falhas conceituais e
1988, pela criação da Fundação gura do Pelé e de vários outros apagando as complexidades do tamente com o Quilombo dos vel ao reconhecimento de bens às lacunas que são passíveis de
Cultural Palmares. Contudo, po- jogadores negros, e do samba as- processo histórico. Embora já Palmares, um símbolo da luta e sítios aos quais um valor ar- verificação no processo de pa-
de-se também reconhecer que sim o atestam. francamente questionada no âm- pelo reconhecimento do lugar tístico, urbanístico, paisagístico trimonialização da Casa Branca
esta foi uma pequena e insufi- Nos anos 1980, quando o pa- bito do próprio Iphan durante os dos egressos da escravidão e de e/ou histórico, referenciado na – processo que acabou se tor-
ciente vitória, pois a próxima trimônio cultural se tornou uma anos 1980, essa concepção ainda seus descendentes na construção cultura europeia ou, no máxi- nando uma referência para os
iniciativa dessa natureza teve lu- importante arena para a afirma- prevalecia na patrimonialização da história e da sociedade brasi- mo, luso-brasileira, não estives- que vieram depois (ver a respei-
gar mais de dez anos depois – o ção do papel de grupos étnicos de bens culturais. leira. se evidente. Ao lado disso, não to VELAME, 2011). O pionei-
tombamento do Terreiro do Axé na história e na formação da O processo de tombamento Entre outros bens culturais havia conhecimento acumulado rismo dessa iniciativa e a enor-
Opô Afonjá, de Salvador (BA), sociedade brasileira, as citadas do Terreiro da Casa Branca pode não consagrados que forçaram sobre o universo cultural afro- me resistência institucional que
em 1999 – e, até os dias atuais, iniciativas de tombamento do ser definido como uma ação que sua entrada no espaço de ação -brasileiro, ainda visto de forma teve de enfrentar, obviamente,
a parcela de bens culturais afro- Quilombo dos Palmares e do consolidou a noção de patrimô- do Iphan e abalaram os seus pi- preconceituosa. Prova disso foi não deixaram espaço para con-
-brasileiros reconhecidos como Terreiro da Casa Branca já colo- nio afro-brasileiro no país e que lares tradicionais nos anos 1980, a incapacidade de figuras impor- siderações sobre a relação do
patrimônio nacional é pequena cavam claramente as principais enfrentou, de modo exemplar, os terreiros de candomblé e os tantes da instituição de sequer terreiro com outros lugares de
e muito aquém de representar questões e desafios a enfrentar essas questões, colocando ainda quilombos destacam-se entre os reconhecerem as edificações da culto existentes na cidade, si-
a grandeza e importância dessa no processo de patrimonializa- em evidência a necessidade de “novos objetos” e “novos pro- Casa Branca como arquitetura, tuados fora do seu terreno. O
contribuição. ção de bens culturais afro-bra- uma nova abordagem teórico- blemas” que promoveram “no- conforme está registrado em de- máximo que se conseguiu foi
sileiros. Em primeiro lugar, o -metodológica e técnica para a vas abordagens” na instituição, poimentos da “Mesa Redonda – recuperar a área denominada de
1
O sistema Sphan/Pró-Memória foi rompimento com a “fixação gestão e conservação dessa tipo- levando-a a se renovar e investir Tombamento”, publicada no n° Praça de Oxum, que havia sido
implantado em 1979, com a criação
da Fundação Nacional Pró-Memória, eurocêntrica”2 da política cultu- 3
Envolveram-se nessa demanda de 22, p.76, da Revista do Patrimônio
então o braço executivo da antiga Se- Sociedade Nacional, no âmbito do tombamento importantes atores so- de 1987.4 A reação contrária ao Casa Branca, você tem que justificar
cretaria do Patrimônio Histórico e Ar- 2
Essa expressão foi tomada de em- qual ocorreram as iniciativas de tom- ciais, como lideranças religiosas, or- o que está tombado», Sônia Rabello,
tístico Nacional (Sphan). Esse sistema préstimo de Olympio Serra, antropó- bamento do Quilombo dos Palmares ganizações antirracistas e de defesa 4
Respondendo à questão colocada então assessora jurídica do sistema
foi desfeito em 1990, quando o go- logo que, nos anos 1980, atuou como e do Terreiro da Casa Branca (ver de direitos civis, além de intelectuais, por Dina Lerner, então arquiteta do Sphan/Pró-Memória, responde: «De
verno Collor extinguiu essa fundação. coordenador do programa Etnias e SANT’ANNA, 2020). artistas e políticos baianos. INEPAC, «Quando você tomba uma fato nada. Só tem espaço lá».

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desmembrada para a instalação junções do culto, aos desígnios res sagradas, cuja preservação é de formas de gestão e promo- ção arqueológica e voltada para no Brasil possam ser deixados de
de um posto de gasolina. das divindades e, principalmen- considerada fundamental. Esses ção adequadas. a exclusiva proteção de vestígios lado, assim como os problemas
Mas as dificuldades do re- te, às práticas específicas de pre- elementos, que são sempre es- Embora o tombamento dos materiais, o que sinalizou clara- que também passaram a se co-
conhecimento oficial da Casa servação adotadas por essas co- pecíficos em cada terreiro e va- Vestígios do Quilombo dos Pal- mente a adoção de uma postu- locar com relação à salvaguarda
Branca como patrimônio não munidades e que somente agora riam, inclusive, conforme cada mares, na Serra Barriga, não te- ra restritiva na interpretação das da dimensão imaterial desse pa-
se comparam às que surgiram começam a ser desvendadas para nação do candomblé, estabele- nha suscitado tantas polêmicas disposições constitucionais, que trimônio.
depois e vêm pontuando a sua os leigos. cem os vínculos sagrados com a quanto o da Casa Branca, essa evita o enfrentamento da ques- O patrimônio cultural ima-
gestão e conservação a partir de Em trabalho premiado pela ancestralidade e com as relações iniciativa colocou novos sujeitos tão do direito à terra das comu- terial existe somente se a ele é
1984, bem como a de outros ter- Associação Nacional de Pesqui- divinas de parentesco que, por em articulação com a cena patri- nidades quilombolas atuais e a atribuído um valor especial por
reiros de candomblé que foram sa em Arquitetura e Urbanismo meio dos rituais, estabelecem a monial e trouxe para o Iphan no- própria conceituação de quilom- parte daqueles que o detêm ou
tombados depois. Embora em (ANPARQ),6 Denis Alex Matos comunicação e as trocas entre vos problemas para lidar, como bo firmada em 2003.8 praticam e se neles desperta um
seu relato ao Conselho Consul- (2019) mostra que os terreiros este mundo (o Aiyê, em língua mostra Marcia Chuva (2017, p A implementação de uma po- sentimento de pertencimento e
tivo5 o antropólogo Gilberto de candomblé possuem uma di- iorubá) e o mundo dos deuses (o 93-96). Esse tombamento, por- lítica de salvaguarda do patrimô- de enraizamento nas suas vidas.
Velho tenha chamado a aten- nâmica própria de preservação Orun, na mesma língua). Como tanto, não chegou propriamente nio cultural imaterial pelo Iphan Algo que simplesmente institui
ção para a necessidade de que dos aspectos materiais do seu se constata, nada a ver com a a promover uma desestabiliza- a partir de 2003 mudou algo uma manifestação cultural como
o Iphan adotasse uma postura patrimônio, voltada não para postura usual da conservação e ção institucional, pois o Iphan desse panorama no que toca à patrimônio, sem esse vínculo,
flexível e compreendesse que o qualquer objeto ou construto, do restauro de elementos arqui- já estava habituado a lidar com ampliação do reconhecimento não significa nada, pois falta a
objetivo desses tombamentos mas para o que é essencial à tetônicos e tipológicos, segundo sítios arqueológicos como este, da diversidade do patrimônio base social ativa e comprometida
seria garantir a continuidade do expressão das suas cosmovisões a qual todos os elementos que desprovidos de seus habitantes afro-brasileiro que, até então, era com o processo de salvaguarda.
uso religioso e de suas expres- e para o que produz, potencializa vinculam o bem ao passado ou originais ou de práticas com as restrita a terreiros de candomblé A despeito disso e dos esforços
sões nesses lugares, essa postu- e transmite o axé (MATOS, ao momento de sua origem têm quais teria que se relacionar. Essa e sítios arqueológicos de anti- técnicos que vêm sendo feitos
ra não foi inicialmente adotada 2019; SANT’ANNA, 2020). o mesmo peso. postura “arqueológica” foi colo- gos quilombos. Os registros do para demonstrar a delicadeza e a
e, mesmo atualmente, não foi Para a manutenção e potenciali- A despeito de toda essa es- cada em xeque, entretanto, com Samba de Roda do Recôncavo complexidade dessa salvaguarda,
ainda plenamente compreendi- zação dessa força que a tudo ani- pecificidade e riqueza de senti- a promulgação da Constituição Baiano, do Jongo no Sudeste, do o entendimento equivocado do
da e incorporada pelas áreas do ma e dá vida, certos elementos dos e significados, o número de Federal de 1988, que reconheceu Tambor de Crioula do Maranhão Registro como um mero título
Iphan responsáveis por sua ges- materiais devem ser substituídos, terreiros de candomblé – mas como patrimônio os modos de e das Matrizes do Samba no Rio que se outorga a uma prática cul-
tão. Embora já exista um pouco transformados, descartados e também de caboclo, de um- vida vinculados a grupos étnicos de Janeiro, dentre outros, podem tural, sem qualquer participação
mais de clareza nesse sentido, entregues às forças do tempo e banda e de outras expressões e à constituição de seus territó- ser citados como exemplos dessa ou envolvimento dos segmentos
especialmente em decorrência da natureza. Isso fortalece, faz das religiões de matriz africana rios e estabeleceu o tombamento diversificação. Contudo, isso não ou grupos sociais a ela relaciona-
dos avanços alcançados pela circular e potencializa o axé que – protegidos como patrimônio dos documentos e sítios deten- significa que testemunhos ma- dos, tem sido constante nos últi-
política de salvaguarda de bens está contido, por exemplo, em é mínimo, em face da importân- tores de reminiscências histó- teriais da herança cultural afro- mos anos, além de realizado com
culturais de natureza imaterial, determinados elementos cons- cia histórica e cultural de muitos ricas dos antigos quilombos.7 -brasileira e da história do negro fins meramente político-partidá-
ainda se aborda a conservação truídos dos templos. Um deles deles e de sua presença massiva Mesmo assim, o Quilombo do rios e/ou imagéticos.
das edificações de terreiros de é o “poste central” (BASTIDE, em todo o território brasileiro. Ambrósio, em Minas Gerais,
8
Conforme o Decreto 4.887/2003,
“Consideram-se remanescentes das Como se vê, o percurso do re-
candomblé sem ter em conta seu 1983, p. 328-333) ou o pilar que O que temos, passados quase foi depois tombado pelo Iphan comunidades dos quilombos, para conhecimento, proteção e salva-
caráter de espaços sagrados que sustenta a cumeeira do barracão; quarenta anos do tombamento ainda com base naquela concep- os fins deste decreto, os grupos ét-
nico-raciais, segundo critérios de au- guarda do patrimônio afro-bra-
se adaptam continuamente às in- outros são objetos rituais, árvo- da Casa Branca, é ainda uma toatribuição, com trajetória histórica sileiro no Brasil teve e continua
enorme carência de iniciativas
7
O parágrafo 5° do artigo 216 da própria, dotados de relações terri-
5
Ata da 108ª reunião do Conselho 6
O trabalho, intitulado A Casa do Ve- Constituição dispõe: “Ficam tom- toriais específicas, com presunção tendo muitas pedras no cami-
Consultivo do Patrimônio Histórico e lho: o significado da matéria no can- de identificação e inventário, de bados todos os documentos e os de ancestralidade negra relacionada nho, que é preciso remover ou
Artístico Nacional, em 31 de maio de domblé, recebeu o prêmio ANPARQ reconhecimento patrimonial e sítios detentores de reminiscências com a resistência à opressão histórica
1984. de melhor dissertação em 2018. históricas dos antigos quilombos”. sofrida”. contornar. No momento atual,

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com a extinção do Ministério da CHUVA, Marcia. Possíveis nar-
Cultura, o desmonte das políticas rativas sobre duas décadas de pa-
culturais e o seu rebaixamento a trimônio: de 1982 a 2002. Revista
um mero elemento de fomento do Patrimônio Histórico e Artístico

A musealização de um
ao turismo, o alcance dessa meta Nacional, n. 35, 2017, p. 79-103.
fica ainda mais difícil, inclusive MATOS, Denis Alex Barboza
diante da urgência de defender de. A Casa do Velho: o significado
o que se conseguiu a duras pe- da matéria no candomblé. Salvador:

patrimônio negro – o samba


nas, em termos de ampliação da EDUFBA, 2019.
noção de patrimônio cultural e
RISÉRIO, Antônio. A utopia bra-
do aumento das bases participa-
sileira e os movimentos negros. São
tivas, democráticas e inclusivas

do Rio de Janeiro
Paulo: 34, 2007.
da política de preservação e sal-
vaguarda. Com esse revés, tor- SANT’ANNA, Marcia. O pro-
na-se ainda mais complexa a su- jeto MAMNBA: contexto polí-
peração desses obstáculos, assim tico institucional, desdobramen-
como ainda maiores os desafios tos conceituais e técnicos. In: Nilcemar Nogueira
que os organismos públicos de Anais do Museu Paulista, São Pau-
Fundadora do Museu do Samba, mestra em Bens Culturais (FGV) e doutora em
preservação têm pela frente com lo, Nova Série, vol. 28, 2020, p.
Psicologia Social (UERJ).
relação ao justo e necessário re- 1-17. d2 e 29.
conhecimento e valorização do SANTOS, Joel Rufino dos. Cul-
patrimônio afro-brasileiro. Um turas Negras, Civilização Brasi-

A
dos maiores e mais urgentes é, leira. Revista do Patrimônio Histórico presentar a história do sam- nhos, sentimentos, culturas, lu- dos excluídos, aqueles cuja histó-
sem dúvida, o da ampliação das e Artístico Nacional, n. 25, 1997, p. ba como forma de expres- gar onde acervos ganham forma ria ficou de fora da oficialmente
ações de identificação e de reco- 5-9. são é dar conhecimento do pro- a partir de objetos, sons e ima- narrada.
nhecimento dessas referências
VELAME, Fábio Macêdo. As cesso criativo do povo negro em gens que abrigam e que ligam os As culturas de matrizes afri-
culturais no território nacional,
lacunas nos tombamentos de diáspora, da construção de uma tempos passado, presente e futu- canas contribuíram substan-
em toda a sua grandeza e diver-
terreiros de candomblé. In: identidade nacional, mas é tam- ro. No Brasil, a criação de mu- cialmente para a construção do
sidade.
GOMES, Marco Aurélio A. F.; bém apresentar uma tragédia que seus tem início no século XIX; patrimônio imaterial brasileiro,
CORRÊA, Elyane L (orgs). Re- ainda deixa marcas na história contudo, só houve um boom no uma cultura vibrante, rica, múl-
conceituações contemporâneas do pa- brasileira – da diáspora de mais século XX. Iniciados pela elite tipla e diversa, mas essa diversi-
Referências de quatro milhões de africanos culta para reforçar e transmitir
trimônio. Salvador: EDUFBA, dade não foi devidamente con-
2011, p. 199-230. para o Brasil, que destruiu laços seus valores, nenhum deles con- templada na historiografia oficial
BASTIDE, Roger. Estudos comunitários, fragmentou iden- templou a história e a contribui- e espaços de memória da cidade
afro-brasileiros. São Paulo: Editora tidades. O ato de pensar a mu- ção dos negros na construção do do Rio de Janeiro, ou mesmo do
Perspectiva, 1983. sealização de um patrimônio ne- patrimônio brasileiro material e Brasil. A falta de representativi-
gro é acima de tudo uma forma imaterial. No final do século XX dade, a reivindicação de direito à
de buscar sentido de valor. emergem movimentos sociais memória, o desejo de celebração
Museus, em geral, são lugares com uma nova agenda de co- da herança africana fez nascer
onde se guardam histórias, so- brança pelo direito da memória em 2001 o Centro Cultural Car-

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tola,1 que mais tarde se tornaria o preocupação por parte dos co- O samba, hoje reconhecido técnico e difusão do acervo de de documentos) necessárias 10.639/03,5 cooperando com o
Museu do Samba. lonizadores portugueses de im- como principal referência iden- Cartola, um acervo familiar, para registro do samba como ensino de história e cultura dos
A criação desse espaço de porem uma cultura hegemônica titária brasileira, foi por muito que reunia fotos, manuscritos, patrimônio cultural do Estado afro-brasileiros; tornando visí-
memória social nasceu com a eurocêntrica na sociedade em tempo renegado pela sua origem documentos, objetos brasileiro. Em 2007, o título veis os produtos culturais pro-
participação de lideranças do formação, também se ocuparam afrodescendente. Este artigo tridimensionais, indumentárias, foi concedido pelo Instituto do duzidos pela diáspora africana e
samba, de pesquisadores com de marginalizar a memória an- aborda o papel social do Museu recortes de jornais, publicações, Patrimônio Histórico e Artístico promovendo a proteção do sam-
estreita relação com os sambistas cestral africana. No começo do do Samba, frente aos desafios da e a partir da história de Cartola Nacional, passando a instituição ba carioca registrado.
e a comunidade do samba repre- século XX, no Brasil, era proi- invisibilidade da contribuição do iluminar a trajetória de outras a ser uma referência na Além do legado musical, o
sentada por seus diversos seg- bido praticar abertamente toda povo negro para além da força personalidades negras que salvaguarda do bem registrado, samba representa uma estrutu-
mentos. Nasceu como um ato de cultura de matriz africana, num de trabalho, analisando a cons- foram capazes de vencer a fator que levou à alteração na ra social de compartilhamento e
resistência, que, assim como se processo de discriminação social tituição dos seus acervos, do invisibilidade imposta por uma sua razão social em 2016 para coletividade, mas que, ao crescer
observa na história do samba, é e racial (TINHORÃO, 1998). exercício do direito à memória, sociedade em que os grilhões da Museu do Samba, ampliando sua em reconhecimento, sair da fave-
uma luta de afirmação social. No início dos anos de 1900, abordando ainda os conceitos de escravidão ainda permanecem função. la e ganhar os grandes salões, não
a reforma urbanística da cidade ágora e fórum aplicados a esta no inconsciente coletivo; e 2) Alinhando-se à noção de mu- empoderou suas comunidades e
Se pensarmos no passado que
do Rio de Janeiro, no período instituição museológica através ações educativas, considerando a seus socialmente responsáveis, agentes, não promoveu trans-
continua presente na contempo-
compreendido entre 1903-1906, das ações de advocacy, junto a preocupação com a transmissão a instituição redefiniu sua mis- formações sociais desejadas, foi
raneidade, se refletirmos sobre
conhecido popularmente como uma de suas principais comuni- dos saberes tradicionais e a são: “contribuir para o reconhe- tendo suas estruturas abaladas
o processo de colonização do
“Bota-Abaixo”, foi um marco dades de interesse: os sambistas. formação de uma geração cimento do que é ser brasileiro e suas matrizes descaracteri-
Brasil, que se deu sem nenhuma
na divisão de classes, criando a O Museu do Samba sediado mais consciente de seu lugar através da difusão, promoção e zadas. O racismo estrutural, a
política de inserção social, com
migração da população negra e aos pés do Morro da Mangueira, social, livre para fazer escolhas multiplicação do legado e da his- circulação global da cultura de
imigração de escravos de várias
pobre para longe do centro da na cidade do Rio de Janeiro, e reivindicar direitos. Nos anos tória do samba e empoderamen- massa, ou talvez por causa dela,
nações africanas, entre os séculos
cidade, relações de poder marca- surgiu a partir da observação da seguintes, a missão se ampliou to de seus agentes e comunida- fez emergir uma diferença local,
XVI e XIX, e a imigração euro-
das pelo autoritarismo. Período urgente necessidade de se criar para além de Cartola, e um dos des, valorizando a ancestralidade com administração e investimen-
peia após a abolição da escrava-
conhecido pelo embelezamento espaços de valorização da cultura pontos determinantes para africana”.4 Desde então o Museu to transnacional, cujos efeitos o
tura, no século XIX (MOURA,
do centro da cidade, dos grandes afro-brasileira. Inicialmente essa nova ótica foi a titulação do Samba é dedicado à pesquisa, Museu do Samba soube dispor a
1995), fenômeno que contribuiu
bulevares e dos imponentes edi- denominado Centro Cultural das Matrizes do Samba no Rio acervo, preservação, educação e seu favor, de modo direto e ob-
para a desigualdade social e tam-
fícios erguidos, é também mar- Cartola, foi fundado em de Janeiro3 como Patrimônio comunicação da história social, jetivo.
bém provocou uma diversidade
co do surgimento das favelas. 2001 pelos netos do sambista Cultural do Brasil, uma ação memória, expressão artística e
étnica e cultural no país, nos de- Apesar das políticas de pa-
O projeto urbanístico destruiu Angenor de Oliveira,2 conhecido dos sambistas, que realizaram legado do samba carioca e sua
paramos com algumas catego- trimonialização – de reconheci-
velhas construções, mas não como Cartola, que se tornou a pesquisa e instrução das salvaguarda como patrimônio
rias sub-representadas e muitas mento e registro de bens imate-
destruiu os afetos, cabendo às seu nome artístico, a instituição peças (dossiê, inventário, imaterial brasileiro. Responsável
memórias apagadas. Além da riais –, o Estado brasileiro não se
favelas e ao subúrbio operarem, criada tinha o propósito documentário, entrevistas, coleta pela criação do primeiro progra- ocupou em criar espaços dedica-
de abaixo-assinado e reunião
1
O Centro Cultural Cartola foi funda- a par da carência material, como de preservar a memória do ma de história oral do samba do
do em 2001, em 2006 foi responsável voz da resistência e das forças de compositor, figura importante Rio de Janeiro, possui um acervo
5
Lei 10 639/2003 modificada pela
pela instrução do dossiê que legou 3
O pedido tem inscrição no Livro de 11.645/2008, “que estabelece as di-
às Matrizes do Samba no Rio de Ja- transformação, e principalmente para o samba. Tinha como Registro das Formas de Expressão, único com mais de 45 mil itens; retrizes e bases da educação nacio-
neiro o título de Patrimônio Cultural lugar de preservação do nosso principais ações 1) o tratamento em 20.11.2007. O termo “matrizes do desenvolve um núcleo educativo nal, para incluir no currículo oficial
do Brasil. O trabalho de pesquisa fez samba” no Rio de Janeiro refere-se às da rede de ensino a obrigatorieda-
com que a instituição reunisse uma patrimônio cultural. Este foi um formas de origem do samba conside- referência em educação patrimo- de da temática História e Cultura
considerável documentação, sendo dos motivos determinantes para
2
Angenor de Oliveira (1908-1980), radas primárias, que sustentaram e nial, em consonância com a Lei Afro-Brasileira e Indígena. Disponí-
implantado um Centro de Referên- Cartola, foi compositor, cantor e um deram origem a variações da música vel em: <https://www.planalto.gov.
cia de Documentação e Pesquisa do a escolha do lugar onde está a dos fundadores do Grêmio Recreati- e da dança – partido-alto, samba de br/ccivil_03/Leis/2003/L10.639.
Samba no Rio de Janeiro, passando a sede o Museu do Samba. vo Escola de Samba Estação Primeira terreiro e samba-enredo (IPHAN e 4
Ver site <https://www.museudo- htm>. Acesso em: 07.09.2022.
Museu do Samba em 2016. de Mangueira (NOGUEIRA, 2015) CCC, 2014: 15). samba.org.br>.

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dos a essa memória ancestral. A questionamentos: Como se ver tura popular, a invisibilidade da mo tornou-se um dos principais vivência do samba. Sua agenda tos) reflete múltiplas vozes na
iniciativa parte em geral da socie- representado? Como instituir população negra e pobre sobres- eixos conceituais do museu. inclui atividades que fazem en- constituição do acervo. A visita
dade civil. O Museu do Samba, um lugar de referência para pes- sai como o maior dos desafios e A invisibilidade das narrativas tender o samba como forma de realizada com mediação tem a
sob a égide das normativas do quisa e documentação? O que traz o Museu do Samba para a dessas comunidades marginali- expressão em que todas as lin- intenção de apresentar novas
Ministério da Cultura e do Ins- salvar ou guardar e quais as prio- vanguarda dos espaços de me- zadas relativamente à memória guagens tradicionais são a ele as- narrativas na contramão da his-
tituto do Patrimônio Histórico e ridades? Como contribuir para a mória que pensam que sua razão e história oficial é um fenôme- sociadas. As rodas de samba, por toriografia oficial.
Artístico Nacional, estabeleceu preservação sem engessamento? de existir está no público ao qual no que afeta todos os brasileiros exemplo, realizadas periodica- Desde sua fundação o Museu
um programa de efetiva difusão, Como pensar a musealização de serve. igualmente, pois não só impede mente na instituição, permitem à do Samba mantém vivo o com-
preservação e valorização desse bens imateriais considerando Jocelyn Dodd e Richard San- as comunidades excluídas da vi- comunidade do samba e ao pú- promisso de levar a educação pa-
legado ancestral, acreditando no tratar-se de uma cultura viva? dell, pesquisadores do Research sibilidade e dignificação de suas blico em geral vivenciar no mu- trimonial para crianças, adoles-
poder de engendrar transforma- O samba pulsa e, como muitos Centre for Museums and Galle- memórias como continua a pri- seu esses saberes e práticas, pos- centes e jovens, justamente para
ções sociais, e que as relações sambistas definem, “é um modo ries/ University of Leicester, var sistematicamente o restante sibilita o encontro entre gerações não deixar que o rompimento
entre comunidades afrodescen- de viver”; logo, é suscetível a ressaltam que as funções mais da sociedade brasileira, de modo de sambistas e fomenta a disse- do “fio da espetacularização” –
dentes negligenciadas e a socie- mudanças e variações. familiarmente reconhecidas do consciente ou não, do entendi- minação de práticas tradicionais a atual banalização do samba,
dade em geral são a principal O Decreto presidencial museu, tais como preservar, co- mento de sua memória coletiva do samba. O processo de cons- sobretudo devido à sua mani-
contribuição do samba para a 3.551,6 de 2000, prevê que os lecionar, interpretar e desenvol- e identidade integral, já que nos- tituição de acervo e montagem festação mais propagandeada, o
sociedade brasileira: como toda bens registrados como patri- ver exposições, não constituem sa cultura, em sua diversidade, é das exposições se deu de forma desfile das escolas de samba du-
cultura de diáspora, acaba sendo mônio cultural sejam objeto de sua razão de ser. inegavelmente fruto do somató- coletiva, com doações a partir da rante o carnaval – implique, para
um elemento inventivo de agluti- ações que garantam sua conti- rio de todas essas partes, sejam seleção de suportes com esco- as novas gerações, a perda do fio
Ora, como o samba é uma
nação, que pode ajudar a refletir nuidade e transmissão, e a pro- elas oficialmente reconhecidas lhas individuais de sambistas. da memória, da tradição.
forma de expressão originalmen-
sobre o que é ser brasileiro de teção dos guardiões. Logo, esse ou não. O projeto de memória (pro-
te negra (praticado majoritaria- Por diversas vezes, foi fácil
forma integral e múltipla. Acre- discurso, inicialmente do poder grama de registro de depoimen-
mente por gente pobre), as ten- O Museu do Samba enqua- perceber que falar sobre histó-
dita também em contar a história público, torna-se um desafio sões sociais que desde sempre o dra-se nos princípios da nova
e legado do samba a partir da óti- para a Museu do Samba, princi- cercaram podem ser entendidas museologia (Desvallés & Mai-
ca dos sambistas, dando espaço palmente ter o desenvolvimento como os principais fatores para resse, 2013), isto é, aquela que
às vozes excluídas e tornando-se humano como um dos principais que a sociedade não reconheça, preconiza que a função de um
local de referência no fomento à focos de seus programas. até hoje, a sua real importância. museu deve estar para além dos
luta pela preservação e valoriza-
Por demandar problemas que Desde o primeiro momento, a objetos, pois envolve as práticas
ção das memórias individuais e
se arrastam desde o processo de preocupação da instituição não a eles associadas e as comunida-
coletivas do samba.
colonização, da abolição da es- consistia somente em preservar des a que servem, ou seja, preci-
A Constituição de 1988, que cravidão, da negação das práticas acervos voltados para a valoriza- sa de um contexto e das memó-
inclui a referência da cultura ima- culturais e religiosas de matriz ção da cultura e história do sam- rias que os sujeitos constroem a
terial no Brasil, implicou uma africana, do descaso com a cul- ba e das suas matrizes africanas, partir do estímulo provocado e
nova visão da preservação e do 6
O Decreto 3.551, de 4 de agos- mas também advogar por essas tem a seu favor o fato de ter sido
modelo gestor dos bens culturais to de 2000, instituiu o Registro de causas e por seus públicos de fundado e ser administrado por
nacionais, reforçada pela gestão Bens Culturais de Natureza Imaterial
que constituem patrimônio cultural interesse. Intervir e marcar pre- sambista.
de Gilberto Gil (2003-2008), à brasileiro e cria o Programa Nacio- sença na política de patrimonia-
nal do Patrimônio Imaterial. Dispo- Pensando na circularidade Figura 1 - Vitrine do módulo da exposição “100 anos do samba” do Museu do
frente do Ministério da Cultura
nível em <https://www.legisweb. lização, através da consequente que se impõe no samba, o Mu- Samba. Indumentária dos sambistas Alcione, Surica, Dona Ivone Lara e Aluízio
no governo Lula, suscitando, no com.br/legislacao/?id=54001>. valorização da memória afrodes- Machado. (Foto acervo Museu do Samba)
Acesso em: 07.09.2022. seu atua de forma a ser lócus de
grupo dos chamados detentores, cendente e do combate ao racis-

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deixaram um legado para o mun- Como ágoras modernas, LOPES, Nei, “As origens africa-
do do samba e para a sociedade, os museus precisam articular nas do samba”. Samba em Revista,
7(6), 22-28(1995), 2015.
sobretudo no que diz respeito a questões essenciais e encorajar
transformações sociais, pautadas reflexões críticas sobre os NOGUEIRA, Nilcemar . O
Centro Cultural Cartola e o pro-
no respeito à alteridade e na va- legados que apresentam. cesso de patrimonialização do
lorização de sua cultura. A atuação colaborativa, a samba carioca. Tese de Doutora-
pesquisa continuada, curadorias do em Psicologia Social apresen-
Os seminários organizados
compartilhadas fazem do museu tada na Universidade do Estado
pelo Museu possibilitam um lu- do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
gar de fala livre. Nesses eventos do samba um museu fórum, Brasil, 2015.
os participantes conseguem se mobilizador, comprometido e
NOGUEIRA, Nilcemar; SAN-
visualizar como categorias, em- com responsabilidade social, um TOS, Desirree. (Re)conhecendo
poderam-se e, em várias oca- museu consciente de seu poder patrimônios: o papel social do
na consecução de melhores Museu do Samba. e-Cadernos
siões, debatem o modo como, a CES, n.30, 2018.
partir da atuação individual e co- transformações sociais.
POLLAK, Michael. Memória e
Figura 2 – Programa Educativo Museu do Samba (Foto acervo Museu do Sam- letiva, é possível agir no sentido identidade social. Revista Estudos
ba)
de preservar e valorizar o samba Referências bibliográficas Históricos, 5(10), 200- 212, 1992.
ria do samba para os alunos que miliares integrantes da escola de como patrimônio e reivindicar TINHORÃO, José Ramos. Pe-
visitaram as exposições perma- samba e sobre o orgulho desses incentivos de instâncias públicas quena história da música popular: da
voltadas para sua manifestação ABREU, Martha et al. (Org.) modinha à canção de protesto.
nentes emponderava-os. Trazia laços de parentesco. Cultura negra. Vol. 1 – Festas, Petrópolis: Vozes, 1974.
à luz lembranças dessas crianças O samba promove a sensa- artístico-cultural.
carnavais e patrimônios negros.
e jovens, que não se privavam ção de pertencimento. Estudar O povo do samba – de dife- Rio de Janeiro: EUFF, FAPERJ,
de narrá-las para o restante do sobre o lugar onde vivem, numa 2018.
rentes gerações – é convidado
grupo: vivências individuais e perspectiva histórica, permite re- a estar no Museu para debater ALBERTI, Verena. Ouvir contar:
textos em história oral. Rio de
coletivas, muitas contadas por conhecer e dar relevância à sua sobre suas atuações na contem-
Janeiro: Editora FGV, 2004.
seus pais, nos desfiles e na cons- identidade cultural no espaço poraneidade. São discussões
CABRAL, Sérgio. As escolas de
trução do carnaval; narrativas social. Outras duas exposições elementares para a reflexão das samba do Rio de Janeiro. São Paulo:
sobre acontecimentos “vividos apresentam as trajetórias de D. situações difíceis a que têm sido Lazuli Editora/Companhia
por tabela” – usando a expressão Zica7 e de Cartola – personalida- submetidos os sambistas, com Editorial Nacional, 2011.
do Pollak (1992: 201) ao falar des do samba – e servem ainda perda de força em seus núcleos DODD, Jocellyn; SANDELL,
de acontecimentos vividos pela como inspiração para o desen- centrais e lugares de práticas, Richard. Including Museums: per-
coletividade à qual o indivíduo volvimento dos projetos de vida spectives on museums, galleries
como as escolas de samba. Exa-
and social inclusion. Leicester,
se sente pertencer; e, por fim, da juventude assistida pelo Mu- tamente pela perda de espaço UK: RCMG, 2001.
a paixão pela escola de samba seu. Apesar das inúmeras difi- de vivência, o Museu do Samba IPHAN; CCC – Centro Cultural
Estação Primeira de Mangueira, culdades enfrentadas, esses sam- cumpre um dos mais importan- Cartola. Dossiê das Matrizes do
que faz parte da vida de diversos bistas lutaram pelos seus ideais e tes papéis, ao efetivar-se como Samba no Rio de Janeiro. Brasília,
alunos do entorno, como uma DF: IPHAN, 2014.
7
Dona Zica (1913-2003), pseudônimo lugar de encontro onde as co-
marca hereditária que se man- de Euzébia Silva de Oliveira, grande munidades do samba podem ex- MOURA, Roberto. Tia Ciata e a
personalidade do carnaval carioca, Pequena África no Rio de Janeiro. Rio
tém por gerações. Nas atividades última esposa de Cartola, famosa pe- primir os seus anseios, transmitir
de Janeiro: Secretaria Municipal
do Museu, são comuns relatos los seus dotes culinários, grande lide- conhecimento, resgatar práticas,
rança da comunidade de Mangueira e de Cultura, 1995. Coleção
das crianças e jovens sobre fa- do samba carioca. (NOGUEIRA,2015) fazer circular a tradição. Biblioteca Carioca.

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O jongo é vida
Maria de Fátima da Silveira (Fatinha do Jongo)

Maria de Fátima da Silveira, também conhecida como Fatinha do Jongo,


é uma das coordenadoras do CREASF (Centro de Referência e de Estudo
Afro do Sul Fluminense), com sede em Pinheiral. É Jongueira, militante do
movimento negro, ex-conselheira do Conselho de Cultura do Estado do Rio,
Mestra Griô da Comissão Nacional de Griôs e Mestres, Pontão do Jongo e
Caxambu do Sudeste.

Palestra de Maria de Fátima da Silveira, no I Encontro Internacional Samba,


Patrimônios Negros e Diáspora, transcrita por Carolina Machado dos Santos.

N a cidade de Pinheiral, no sul


do estado do Rio de Janei-
ro, que fica no Vale do Café, há
lho, dessa preservação. O jongo
é considerado a verdadeira his-
tória do povo negro, porque na
fez. E a comunidade jongueira
de Pinheiral se destaca também
por um viés muito forte junto à
várias fazendas preservadas. A roda de jongo se trabalha tudo. educação: desde o final dos anos
cultura afro e a população negra Na época dos negros escraviza- 1980 estamos dentro das escolas,
são muito fortes, são a base. E dos, se trabalhava a saudade da tanto públicas quanto privadas,
o Jongo de Pinheiral se destaca, África, os orixás, toda a movi- falando da tradição jongueira,
porque foi preservado desde os mentação em prol da liberdade. desde que o negro veio da África
negros escravizados da fazen- Hoje, consideramos o jongo até os dias atuais. É um trabalho
da São José do Pinheiro. Em também como nossa bandeira feito com materiais próprios,
Pinheiral, o jongo nunca esteve de luta para estar participando de com algumas parcerias, trazen-
adormecido ou ficou um tem- momentos como este, represen- do o jongo para o dia a dia, para
po sem acontecer. Ele sempre tando todas as comunidades jon- nossas vivências.
se manteve e veio passando de gueiras, de poder falar das nos- Em 2005, o jongo foi regis-
geração em geração. Há mais ou sas tradições e da nossa história trado pelo Iphan como patrimô-
menos quarenta anos nós faze- por nós mesmos. O jongo faz nio imaterial e se criou uma força
mos a coordenação desse traba- parte do nosso dia a dia, sempre

SAMBA EM REVISTA | 113


da primeira fase da escola for- jongo porque, como eu disse, loriza a figura do mestre jonguei-
mal. É fundamental essa valori- recebemos negros de várias re- ro, a figura dos mais velhos é de
zação, mostrar que o jongo pode giões da África. A gente tem uma uma importância social enorme.
transformar vidas. Só através da mistura grande ali. Nós temos o E quando a gente se beneficia de
educação é possível ter os nossos caxambu e o jongo. A diferença políticas que nos ajudam a man-
objetivos atingidos. entre os dois é muito pequena, ter isso de uma forma mais leve,
Com as políticas públicas que mas são comunidades tradicio- não tão difícil para sobreviver,
foram postas em prática, tive- nais, como o Quilombo Bracuí, é muito importante, porque na
mos a oportunidade de trabalhar lá em Angra dos Reis, e em Barra maioria das vezes as prefeituras
mais a cultura nas escolas, em vá- do Piraí. Há vários núcleos jon- dos nossos municípios não va-
rias escolas. E não apenas com o gueiros: Pinheiral, Valença, Qui- lorizam o nosso trabalho. Esse
jongo: a ação Griô foi também lombo São José da Serra, Vas- trabalho é sempre feito de for-
muito importante, porque outras souras, Piraí (através do jongo de ma voluntária. Nas comunidades
Jongo de Pinheiral no dia da inauguração do Memorial Passados Presentes. Julho/2015. Foto de Guilherme Hoffmann. manifestações, outros fazedores Arrozal). A maior parte dessas jongueiras dificilmente se recebe
de cultura tiveram participação. comunidades é ou foi ponto de alguma coisa para manter a tra-
muito grande, porque até então te. Graças a essas políticas públi- povo junto, para que pudésse- A Lei Aldir Blanc, principalmen- cultura. Essa política fortaleceu dição e fazer a tradição. Fazemos
cada um fazia por si, mantendo cas, nós tivemos bons tempos, mos usufruir um pouco dessa te aqui no estado do Rio de Ja- as comunidades com materiais, porque faz parte da nossa vida,
suas tradições nos seus territó- por alguns anos. Agora há mui- nova forma de fazer política, neiro, procurou chegar ao nosso foi possível também criar vários faz parte da nossa história, das
rios. O jongo é do Sudeste, está ta dificuldade de sobrevivência, através de projetos, através da povo. Foi ainda um pouco difí- materiais didáticos, tivemos mais nossas tradições. Então, acaba
presente no Vale do Café, na ci- principalmente para o jongueiro, internet. Isso representa ainda cil, mas conseguimos atingir um reconhecimento para estar den- sendo muito difícil manter esses
dade do Rio de Janeiro, em parte porque não basta só preservar muita dificuldade, porque o nos- número grande de comunidades tro das escolas. As escolas passa- saberes e passá-los de uma for-
de São Paulo, parte de Minas e a manifestação, temos também so povo não tem acesso a essas jongueiras do nosso povo preto. ram a nos receber e a nos olhar ma mais didática, de uma forma
do Espírito Santo, mas até então que preservar o jongueiro. Está coisas. É bem complicado mes- de uma outra forma, não só no mais, vamos dizer assim, atual.
Acho que políticas públicas
era cada um por si. Com o re- muito difícil para as comunida- mo e é sempre importante repe- 13 de maio e no 20 de novem- Antigamente a gente se sentava
têm que ser assim: é preciso pen-
gistro, o movimento se tornou des se manterem. Durante o pe- tir isso, porque esses projetos e bro. Nós conseguimos trabalhar e ia passando, agora a gente pre-
sar que o nosso povo está lá na
coletivo e tivemos algumas po- ríodo da pandemia de covid-19, essas políticas públicas têm que o ano todo dentro das escolas, cisa criar mecanismos e formas
ponta, lá embaixo. É muito bom
líticas públicas que nos possibi- por estarmos afastados dos ter um olhar diferenciado para junto com as escolas, falando da para atingir a nossa criança, para
quando se tem oportunidade de
litaram isso, como os pontos e grandes centros, tudo se tornou nós. Nem todos estão familiari- nossa tradição jongueira. E isso que a criança valorize a impor-
estar dentro das universidades,
os pontões de cultura. Consegui- muito difícil, mas o trabalho de zados com essas linguagens. En- aconteceu em várias comunida- tância de ser jongueiro, de co-
das escolas, dentro de outros es-
mos trabalhar com várias comu- manter essa tradição continua. tão é preciso, quando forem criar des, não só em Pinheiral. Várias nhecer a tradição, de conhecer a
paços, para falar do jongo e da
nidades de todos esses estados, e editais, pensar que essas políticas comunidades tiveram a oportu- ritualística e a nossa luta, a luta
As políticas públicas são im- luta do povo jongueiro, do povo
o jongo, com os seus costumes, têm que chegar lá na ponta, o nidade de fazer isso. do povo preto.
portantíssimas, não só para a dos quilombos, que mantém
os rituais, as tradições, passou a questão do jongo, mas para toda nosso povo está lá na ponta. É
toda a tradição jongueira, toda A valorização da figura dos Daí a importância dessas po-
ser mais valorizado. manifestação cultural afro, por- tudo mais difícil. mais velhos perdeu muita impor- líticas, principalmente para se
a tradição na agricultura, toda a
Surgiram também alguns que nossas comunidades nunca Continuamos lutando e bus- tradição dos saberes afros. tância em nossa sociedade, mas garantir um território, para que
grupos novos, porque o jongo é tiveram acesso a determinadas cando essa valorização, essa pre- as comunidades jongueiras ain- a gente tenha um território pró-
No caso de Pinheiral, nós so-
muito democrático, todo mundo coisas que outras manifestações servação, mostrando que o jongo da mantêm essa valorização dos prio, para que a gente consiga
mos o pessoal que está na cidade.
dança, todo mundo pode dançar têm. Para nós tudo é mais difícil. faz parte da construção do povo mais velhos, do saber. A nossa manter a tradição, mas sem sa-
Nós somos urbanos, mas Pinhei-
e participar das rodas. Tornou-se Foi preciso fazer muitas ações brasileiro. Principalmente quan- tradição é oral, é passada de ge- crificar tanto o nosso povo, sem
ral é uma área de preservação do
um movimento muito mais for- de capacitação, trazendo nosso do se trabalha com as crianças ração em geração. Quando se va- as pessoas estarem passando por

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tantas dificuldades. Hoje em dia mente os órgãos federais, nos um mestre ativo na comunida-
a gente vê que não há necessida- olhem com outros olhos, vejam de, passando seus saberes, suas
de de enfrentar tanto sacrifício, que o nosso trabalho precisa ser tradições. O jongo está aí para
mas para isso precisamos de par- valorizado e precisa ter subsídios, somar. A gente entende que é
cerias, precisamos principalmen- porque é impossível trabalhar e preciso avançar muito ainda e
te de respeito, que as pessoas en- pagar aluguel e atender escola de espero que nesses próximos
tendam que jongo, por exemplo, forma voluntária. É muito com- anos se consolidem políticas que
é a nossa cultura, é a nossa his- plicado, é difícil. A gente faz isso de fato nos atendam, que aten-

Por uma história da


tória. Quando isso for entendi- porque faz por amor mesmo. As dam às comunidades, como a da
do, seremos vistos de uma outra políticas públicas direcionadas Mangueira, e outras manifesta-
forma, haverá respeito. Para que para o patrimônio imaterial são ções também, para que a gente
isso aconteça, precisamos desses fundamentais. Essa união que os possa sobreviver.
apoios, dessas parcerias. Graças
a Deus, temos grandes parcerias.
Nós tivemos uma vivência muito
grupos têm com outras mani-
festações, não só o jongo como
o samba, o tambor de crioula,
Esta é uma oportunidade de
clamar por políticas públicas,
para que os órgãos, principal-
patrimonialização da
boa dentro do pontão do jongo a capoeira, é importantíssima

cultura afrodiaspórica
mente os órgãos federais, pos-
e caxambu, uma parceria com para que se possa avançar como sam olhar mais para os municí-
a UFF e o Iphan para contar a detentores. Não adianta nada pios, porque dificilmente essas
nossa história através de vídeos, preservar a manifestação e estar políticas chegam até as comuni-
de relatos e de livros. Foi criado perdendo os nossos detento- dades, até a ponta, ficam mais na Martha Abreu
muito material sobre os jonguei- res, como nós perdemos vários capital. Precisamos que parcei- Professora titular do Instituto de História UFF.
ros, com os professores da UFF mestres, de várias manifestações, ros de comissões dentro desses
e os técnicos do Iphan. Isso para com a covid. E mesmo com ou-

E
órgãos olhem com mais carinho ste texto foi produzido para chegada, variáveis que permiti- Américas aproximaram-se em
nós foi de suma importância, tras doenças, porque a maioria para que as comunidades sejam minha apresentação no 1º ram constantes renovações das muitos aspectos. Para além de
porque quem passou por essa es- dos nossos mestres no final da atendidas, sejam capacitadas, Encontro Internacional, Samba, tradições, em meio a novas con- fugas, revoltas e quilombos, fo-
cola vai levar esse conhecimento vida não tem como se sustentar. porque é desse tipo de política Patrimônios Negros e Diáspora, figurações e interações com os ram fundamentais a organização
para o resto da vida. Procuramos Então, a gente precisa trabalhar que necessitam as nossas mani- realizado no dia 21 de outubro que tinham chegado antes. Nos de famílias, associações culturais
multiplicar.1 a questão da lei dos mestres, a lei festações culturais. Elas são tão de 2021. Faz parte de uma refle- intensos intercâmbios culturais, e religiosas, festas e a criação de
Agora estamos passando por da cultura viva, a nossa lei griô. lindas e feitas com todo o cari- xão maior que tenho procurado mesmo que desiguais e violen- estratégias de humanização, es-
esse momento difícil, está difícil Essas leis são para garantir que nho, com todo o amor, mas de desenvolver a respeito da histó- tos, entre africanos, indígenas e pecialmente no campo artístico
para todo mundo, mas o nos- um mestre continue passando uma forma muito difícil, com ria das lutas dos africanos e seus colonizadores, criava-se sempre e musical.
so trabalho continua. O jongo seu saber, para que ele no final muito sacrifício. É muito árdua a descendentes por direitos no algo novo em diálogo com as Em outros termos, podemos
é vida. E a gente luta pela vida, da vida tenha pelo menos o su- nossa luta. campo cultural. tradições. acionar a expressão que Lélia
pela sobrevivência, pela história ficiente para os remédios e a ali-
mentação. Pensar em cultura afrodias- Entretanto, deve-se levar em Gonzalez definiu como “ame-
principalmente. Então, é funda-
pórica é levar em conta as vá- conta que, mesmo com línguas fricanidade”. A partir da forçada
mental que os órgãos, principal- Nosso trabalho é sempre
rias Áfricas que se recriaram nas diferentes e escolhas religio- diáspora africana nas Américas,
fundamentando a importância
1
Sobre o trabalho do Pontão de Américas. Ao longo de quatro sas variadas, as lutas contra a presencia-se uma construção
de trabalhar os detentores. É
Cultura do Jongo e Caxambu, ver séculos, foram muitos lugares de escravização, o racismo e a do- diária e tática contra a domina-
<http://observatoriodopatrimonio. muito importante a gente pre-
com.br/site/index.php/itens-de-pa- origem e diferentes tempos de minação em várias partes das ção e de profundo dinamismo
servar a vida do mestre, manter
trimonio/jongo>

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cultural, entendido como resis- condenados ao desaparecimen- gos, tambor de mina, congados, gra. Dia após dia, encontram-se
tência, acomodação, reinterpre- to ou às vitrines dos museus. E sambas, entre outros, foram reclamações nos jornais da cidade
tação e criação de novas formas. como chegaram? Como chega- genericamente conhecidos – e do Rio de Janeiro, afirmando o
Sem acesso à alfabetização, as ram difundindo força, identida- perseguidos – no século XIX “escândalo” e o “incômodo” que
músicas, danças e tradição oral de, beleza e exercício de direito, como “batuques”. As posturas causavam as danças tidas como
tornaram-se uma pujante cultu- apesar do não reconhecimento e municipais das inúmeras vilas e “bárbaras” e “imorais” para
ra política negra, muitas vezes das políticas de controle? cidades do Brasil estavam reple- “nossa civilização”, ainda mais se
silenciada, mas jamais esquecida, Sem dúvida, para os historia- tas de editais proibindo batuques fossem realizadas próximas às fa-
como aponta Paul Gilroy em O dores começarem a fazer essas e “ajuntamentos de pretos” em mílias que se consideravam “de-
Atlântico Negro. E não esquecida perguntas, foi fundamental a in- espaços públicos, ou estabele- centes e honestas”.
em vários locais da diáspora!! corporação de novas percepções cendo determinados horários e No mês de julho de 1852, no
Nesse sentido, não é nenhuma Augustus Earle, Negro fandango scene, Campo St. Anna, Rio de Janeiro, dos fenômenos culturais, não locais específicos e distantes dos Diário do Rio de Janeiro, por exem-
natural coincidência que a músi- ca. 1822. Aquarela original pertencente à Biblioteca Nacional da Austrália. centros urbanos para sua realiza-
mais entendidos como territó- plo, era publicado:
ca, o verso e a dança ocupem até rios eruditos, práticas de aliena- ção. Muitas autoridades policiais
Nos dias 21 e 22 do corrente
hoje local de destaque nas lutas corpo, das roupas, rezas, deuses lor, um verdadeiro patrimônio e municipais só permitiam deter- houve numa casa do Largo da
ção e válvulas de escape ou sim-
contra o racismo e pela cidadania e muitos patrimônios. cultural para as famílias (de san- minadas festas e encontros de- Carioca e na rua do Cano esqui-
ples reminiscência saudosa das na da rua da Vala ajuntamentos
nas comunidades negras, como Não estou sugerindo, como gue ou de parentesco simbólico) pois de um pedido de licença que
tradições. Os antropólogos nos de negros e negras que se delei-
são ótimos exemplos os atualiza- diziam os folcloristas até os anos de escravizados e seus descen- evidenciasse o que entendiam taram durante muito tempo no
ensinaram muito sobre as dinâ-
dos congados, maracatus, bum- dentes. E se eram desprezados como o “bom” comportamento seu africano batuque. A in-
de 1970, pensar em “sobrevi- micas culturais e suas recriações, decência de uma tal dança,
bas, hip-hop e funks por todo o ou perseguidos pelos de fora, de todxs. Autoridades católicas
vências” (fragmentadas e quase sobre significados e identidades as vozerias de que ela é acom-
Brasil. aleatórias) da África, muito me- nada foi suficiente para impedir muitas vezes não permitiam a panhada, revoltam a educação
sociais e culturais. Outros histo-
sua constante reafirmação. Cer- entrada dos festeiros negros nas menos escrupulosa... Esses ba-
Algo novo no campo cultural nos no paulatino apagamento da riadores avançaram na perspecti- tuques ou bailes do Congo pre-
herança africana, junto com os tamente suas famílias e comuni- igrejas. Muitos senhores, por sua tendem continuar; é bom que a
sempre foi próprio das Améri- va de que a luta por direitos (ou
dades culturais não acreditavam vez, preferiam manter a paz em polícia intervenha e coloque es-
cas, onde os trânsitos e conflitos últimos africanos, em função das contra o avanço do capitalismo ses bem-aventurados pares em
pressões da modernidade. Todas na desqualificação de suas ex- suas propriedades, autorizan-
culturais eram e ainda são inten- industrial) se faz também no lugar onde possam bailar sem
as apostas nesse pretenso desa- pressões culturais e as entendiam do alguns “batuques”. Como já serem vistos pelas famílias de-
sos. A dinâmica e a constante campo cultural. Levar em conta
como pauta de luta e direitos a escreveu João José Reis, entre a centes e honestas. (grifo meu)
mudança cultural nunca impedi- parecimento e apagamento da que cultura é ação política per-
presença africana não resistiram serem respeitados. tolerância e a repressão, existiam
ram a opção – ou tática? – dos mite entender muito melhor as
africanos e seus descendentes de ao tempo e à própria História. Como foi possível manter afirmações identitárias negras, as muitas possibilidades de nego- A política dos
O legado dos africanos e seus tantos legados? Impressiona ciação para a realização de festas
não esquecer, de lutar pela me- lutas por direitos, as lutas antir- folcloristas
mória dos seus antepassados e filhos, transmitido e reconstruí- perceber como os patrimônios racistas e por reconhecimento da e expressões musicais afro-bra-
das várias Áfricas, nos campos do cotidianamente, mesmo que negros do período da escraviza- humanidade de todxs, em qual- sileiras, núcleos fundamentais
Antes dos estudos de histó-
culturais, religiosos, sociais e com fortes rupturas, migrações e ção, como em congados, bum- quer tempo e lugar das Américas. da transmissão dos patrimônios
ria e antropologia sobre as cul-
econômicos, como nos métodos muitas perdas, nunca foi esque- bas, maracatus, jongos, sambas e afrodiaspóricos.
turas negras e populares, os fol-
de trabalho e nas relações com a cido ou perdido. Pelo contrário, muitos outros, mesmo transfor- Os jornais, por seu lado, ali-
A política contra cloristas foram os primeiros a
terra. Para o que nos interessa ele é constantemente acionado mados, chegaram até hoje! Pela mentavam a estigmatização dos produzir conhecimentos sobre
aqui, foi fundamental o não es- como direito à memória, como vontade e ações de governantes, os batuques “batuques”, ao mesmo tempo a produção cultural dos “amefri-
quecimento da força do verso e afirmação política e como sabe- reformadores e autoridades reli- que também demonstravam a canos” no Brasil. Desde o final
da palavra, da tradição oral, da doria ancestral, conhecimento giosas, nunca deveriam ter che- O que hoje entendemos enorme dificuldade de eliminar do século XIX, embalados pelos
música, dos instrumentos, do ou iniciação. Algo de muito va- gado aos nossos dias! Estavam como bumbas, maracatus, jon- por completo a prática festiva ne- mitos da construção mestiça da

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continuidade dessas expressões brechas das legislações e estatu- Estado protegerá as manifesta-
e não querem esquecer o lega- tos de funcionamento de organi- ções das culturas populares, in-
do transmitido. Lutaram por es- zações civis. Ótimo exemplo é a dígenas e afro-brasileiras. Pelo
sas expressões como afirmação ata de criação de uma associação artigo 216, ficarão reconheci-
identitária e direito, direito às de congadeiros de Piedade, Mi- dos como patrimônio cultural
festas, músicas, poesias e expres- nas Gerais, em 1928, estudada brasileiro os bens de natureza
sões religiosas. pela pesquisadora Livia Nasci- imaterial, expressões diretamen-
Nesse caminho, foi funda- mento Monteiro. Cerceados pela te ligadas ao legado da diáspora
mental a formação de associa- ação da Igreja católica e por au- africana no Brasil.
ções negras para proteção, ob- toridades locais, representantes Assim, especialmente depois
tenção de licença e afirmação do da comunidade negra descen- da regulamentação do Decreto
legado africano. É o que chama- dente de escravizados da região 3.551 de 4 de agosto de 2000, os
mos de associativismo negro. Ao registraram em cartório seu di- detentores de formas de expres-
longo dos séculos XX e XXI, reito de existir como sociedade são e celebração, os que detêm
famílias, grupos, comunidades, civil, buscando novos caminhos os saberes de modos de criar,
Jongueiros de Pinheiral no dia da inauguração do memorial do Projeto Passados Presentes, 2015. Os jongueiros de Pi- grêmios e clubes recreativos de existência e exercício de seus fazer e viver, podem acionar a
nheiral fundaram em 1996 o CREASF, Centro de Referência e Estudos Afro do Sul Fluminense. Foto Guilherme Hoffmann, direitos e interesses. Conforme
acervo LABHOI.
mostraram tenacidade e uma proteção do Estado e sua valori-
noção de que tinham direito de a ata, zação. As possibilidades abertas
nação, projetaram uma versão diam seus costumes e tradições Aos dez dias do mês de junho
A política dos existir e de não esquecer, apesar
de mil novecentos e vinte e oito,
por esse decreto permitiram o
harmônica do folclore brasilei- mesmo com muitas mudanças. de isto não estar previsto ou ga- reconhecimento de inúmeras ex-
detentores reuniu-se a sociedade de Conga-
ro, fruto da união de indígenas, Em geral, davam prioridade à rantido em algum lugar. Muitos da e Moçambique para adoração pressões do legado africano no
portugueses e africanos (índios, descrição dos folguedos, suas de Nossa Senhora das Mercês e
fundadores das escolas de samba Brasil, ao lado de iniciativas do
Em meio às perseguições e Nossa Senhora do Rosário res-
brancos e negros para usar a me- performances e expressões, a do Rio de Janeiro, por exemplo, pectivamente, sob a presidência Ministério da Cultura, principal-
previsões de desaparecimento,
táfora das três raças). O folclore despeito da situação, problemas como a Unidos da Tijuca e o do sr. Francisco Fernandes Tei- mente entre 2004 e 2015 ligadas
as expressões afro-brasileiras re- xeira, secretariado por mim José
brasileiro, gradual fruto dessa fu- e persistência dos detentores, Império Serrano, associações ne- ao fomento da cultura a partir de
novaram-se ao longo da história Monteiro do Nascimento, secre-
são, seria para esses intelectuais a suas famílias, vizinhos e parcei- gras vigorosas, faziam parte das tário e presentes todos os sócios editais e de pontos de cultura.2
e na contemporaneidade. Re-
marca da originalidade do país a ros. Como dizem os jongueiros mesmas famílias ou de redes de inscritos e incorporados, para
memorando seus antepassados organização dos Estatutos e A Constituição de 1988 pode
partir da diluição (leia-se desapa- hoje, nas reuniões de organiza- vizinhança e parentesco.
e acionando seu legado, grupos suas cláusulas, fins e direitos da não ter aprovado todas as de-
recimento) dos traços e contri- ção em torno do Pontão de Cul- sociedade e as responsabilidades
permanecem e recriam-se; no- Essas associações demonstra- mandas de representantes do
buições de indígenas e africanos. tura do Jongo e do Caxambu, o de cada sócio para com seus su-
vos grupos culturais e festivos ram não sucumbir em função do periores. (grifo meu) movimento negro que participa-
Se alguns folcloristas, não po- jongo não precisa ser salvo – ele
ressurgem e se afirmam a par- medo da repressão e de proibi- ram dos debates da Constituinte
demos negar, protegeram ou de- sempre vai permanecer. Os de-
tir de gramáticas conhecidas e ções; muito menos se envergo-
tentores é que precisam de valo-
nunciaram muitas vezes as perse- de um aprendizado comunitário nharam por não corresponde- A política dos
rização e proteção.1 2
A partir de 2004, foram patrimonia-
guições impostas aos detentores rem às expectativas de projetos lizados: o samba de roda, o ofício dos
transmitido. Colocado em ou- direitos culturais
de patrimônios afro-brasileiros, civilizadores de elites políticas e mestres e a roda de capoeira, o ofício
tros termos, não são os jongos, das baianas do acarajé, o jongo, a fes-
pouco valorizaram a tenacida- os sambas, os congados ou os intelectuais. Pelo contrário, mui- ta do Senhor do Bonfim , Bembé do
de, o protagonismo e a inovação 1
Ver site do Pontão, <http://www. tas vezes apropriam-se das pos- Foi apenas a partir da Consti- Mercado, Tambor de Crioula, o com-
pontaojongo.uff.br/>, e o site do Ob-
maracatus que permanecem, são plexo do Bumba meu Boi, Maracatu
(por que não falar em moderni- servatório do Patrimônio do Sudeste as famílias, grupos e coletivida- sibilidades oferecidas pelos ca- tuição de 1988 que pela primeira Nação, Maracatu Baque Solto, Cabo-
dade?) dos sujeitos negros pro- <http://observatoriodopatrimonio. minhos da modernidade, como vez ficaram garantidos os direi- clinhos, Matrizes do Samba do Rio de
com.br/site/index.php/itens-de-pa-
des que encontram formas de Janeiro. Ver <http://portal.iphan.gov.
dutores de cultura que defen- trimonio/jongo>. a indústria fonográfica, ou pelas tos culturais. Pelo artigo 215, o br/pagina/detalhes/1617/>.

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com pauta específica.3 Mas deve- Bibliografia GONZALEZ, Lélia. A cate-
-se registrar que sob sua pressão goria político-cultural de ame-
foram aprovados a criminaliza- ABREU, Martha. Da senzala fricanidade (1988). In: Primavera
ção do racismo, o Artigo 68 da ao palco: canções escravas e racis- para as Rosas Negras: Lélia Gon-
ADCT, que garante a proprie- mo nas Américas, 1870 -1930. zalez em primeira pessoa. Cole-
dade da terra aos remanescentes Campinas: Unicamp, 2017 (Cole- tânea organizada e editada pela
das comunidades quilombolas, ção Históri@Illustrada, e-book). União dos Coletivos Pan-Africa-
e importantes dispositivos que nistas (UCPA). Diáspora Africa-
BRASIL, Eric. Moysés Za-
permitiram posteriormente a na, 2018.
charias: carnaval, cidadania e
obrigatoriedade do ensino da MONTEIRO, Livia N. “A
mobilizações negras no Rio de
história da África, da cultura Congada é do Mundo e da Raça
Janeiro (1900-1920). In: Abreu,
afro-brasileira e indígena. Negra”: Memórias da escravidão
M. et al. (Org.). Cultura negra,
No reconhecimento das cul- desafios para os historiadores, vol. 1 e da liberdade nas festas de Con-
turas afrodiaspóricas pelas insti- e vol. 2. Niterói: Eduff, 2017 gado e Moçambique de Piedade,
tuições protetoras do patrimônio (e-book gratuito). Minas Gerais. Tese doutorado
nacional, e na sua valorização no UFF. 2016.
CAMPOS, Renata Bulcão L.
ensino das escolas, universida- NERIS, Nathália. A voz e a
“É assim que o samba vai ven-
des, museus e locais públicos, palavra do movimento negro na Cons-
cendo”: os Unidos da Tijuca e a
vivemos um momento especial tituinte de 1988. Belo Horizonte:
ascensão das escolas de samba
de reparação e inclusão da his- Letramento, 2018.
no Rio de Janeiro na década de
tória e da cultura dos africanos
1930. Dissertação de mestrado, PEREIRA, Leonardo Affon-
e seus descendentes na história e
PUC-Rio, 2016. so de M. Os anjos da meia-noite:
patrimônio nacionais, apesar da
CUNHA, Maria Clementina trabalhadores, lazer e direitos no
continuidade do racismo, da in-
Pereira. “Não tá sopa”: Sambas Rio de Janeiro da Primeira Re-
tolerância religiosa e das difíceis
e sambistas no Rio de Janeiro, de pública. Revista Tempo, 35 (19),
condições de vida da população
1890 a 1930. Campinas: Editora 2013. p. 97-116.
negra. Que este momento não
seja esquecido e que se torne um da Unicamp, 2016 (Coleção His- REIS, João José. Tambores e
caminho importante de luta pela tóri@Illustrada, e-book). temores, a festa negra na Bahia
plena democracia no país. DOMINGUES, Petrônio. na primeira metade do século
Cidadania por um fio: o associa- XIX. In: CUNHA, Maria Cle-
tivismo negro no Rio de Janeiro mentina Pereira. Carnavais e ou-
(1888-1930). Revista Brasileira de tras frestas. Campinas: Ed. Uni-
História. São Paulo, v. 34, n° 67, camp, 2002.
p. 251-281, 2014.
GILROY, Paul. O Atlântico
Negro, modernidade e dupla cons-
3
Ver <https://www.brasildefato.com. ciência. São Paulo: Ed. 34, Rio de
br/especiais/o-movimento-negro-e-
-a-constituicao-de-1988-uma-revolu- Janeiro: Universidade Candido
cao-em-andamento>. Mendes/CEAO, 2001.

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