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DEZEMBRO 2023 EDIÇÃO ESPECIAL

R E V I S T A

10
TEMAS DE 2023
PARA LER E
REFLETIR AO
LONGO DE 2024

INFLUÊNCIA DE TROTSKY NA POLÍTICA


TRUNFOS DO BRASIL NA ENERGIA
A VANGUARDA DO AGRONEGÓCIO
O LADO ELEGANTE DO TERRORISMO
SPORTSWASHING DO ORIENTE MÉDIO
LACRAÇÃO NA MÚSICA CLÁSSICA
O FUTURO CHEGOU NA MOBILIDADE
SAÚDE MENTAL DE JOVENS PROGRESSISTAS
APRENDER A APRENDER
O DILEMA DO FILHO ÚNICO
Índice

De Palocci a Reinaldo Azevedo: a influência de


04
Trotsky na política brasileira atual

Sol, vento, hidrogênio e mais: os trunfos e


19
desafios do Brasil na transição energética

Sem medo de sustentabilidade: comparativo


42
global mostra vanguarda do agro brasileiro

“O lado elegante do terrorismo”, texto de Olavo


61
de Carvalho incluído em seu novo livro póstumo

Neymar, Benzema, Cristiano Ronaldo: o que está


por trás das contratações milionárias da Arábia 71
Saudita

Sai a meritocracia, entra a lacração: música


85
clássica é tomada pelo ativismo “woke”

2
O futuro chegou e ele não tem motorista: os
106
táxis-robôs tomam conta de San Francisco

A paralisia moral por trás da depressão na


126
adolescência

Samia Marsili: Aprender a aprender 143

O dilema do filho único: por que ter irmãos faz


168
bem para o desenvolvimento de uma pessoa

💡 USUÁRIO DE ANDROID: PARA NAVEGAR UTILIZANDO OS


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3
Uma das tendências internas mais antigas do PT é formada por militantes
trotskistas | Foto: Eli Vieira com Midjourney

“MUSO" DA ESQUERDA

De Palocci a Reinaldo Azevedo:


a influência de Trotsky na
política brasileira atual
Por Omar Godoy

No emaranhado de tendências e facções que


formam o tecido da esquerda brasileira, uma

4
escola de pensamento se destaca por sua grande
influência e adeptos famosos: o trotskismo.

E não estamos falando de um movimento do


passado. Estima-se que hoje, no país, há mais
de 30 grupos “oficiais” organizados nesse
sentido. Nesta lista constam desde correntes
participantes de partidos políticos a coletivos
independentes, passando por legendas regis-
tradas no Tribunal Superior Eleitoral cujas
propostas são inteiramente baseadas nas ideias
difundidas por Leon Trotsky (1879-1940).

Uma das tendências internas mais antigas do


PT, por exemplo, é formada por militantes
trotskistas – O Trabalho, responsável pelo
jornal de mesmo nome, editado desde o final
dos anos 1970. O PCO e o PSTU (lembrados pelo
grande público a cada quatro anos, quando

5
lançam candidaturas radicais à Presidência da
República) também seguem essa linha do mar-
xismo. Sem falar no PSOL, fundado, entre ou-
tros grupos, pelo Movimento Esquerda Socia-
lista (MSE, organização ligada ao trotskismo e
surgida de uma cisão com o PT).

Enfim: o trotskismo no Brasil é composto por


tantas siglas, células e subdivisões que nem a
própria militância se entende direito. Seu único
norte é o próprio Trotsky – defensor da ideia de
que a revolução comunista deveria ser perma-
nente e internacionalizada, rival de Stalin,
crítico da burocracia, organizador do brutal
Exército Vermelho. Mas por que seu ideário
atraiu tanta gente por aqui?

Em linhas gerais, os pesquisadores apontam


dois motivos principais, começando pelo

6
pioneirismo. Afinal, os comunistas brasileiros
estão entre os primeiros situados fora da
Europa a se interessar pelo trotskismo.

Ainda na década de 1930, figuras como Mário


Pedrosa, João Costa Pimenta (avô de Rui Costa
Pimenta, líder do PCO), Lívio Xavier, Hilcar
Leite, Fúlvio Abramo (irmão da atriz Lélia
Abramo e do jornalista Cláudio Abramo) e até a
escritora Rachel de Queiroz já participavam de
grupos e publicações dedicados à corrente.

“Eu era comunista, depois briguei com eles.


Descobri os trotskistas, porque os comunistas
eram muito burros, muito certos, muito fecha-
dinhos, muito apertadinhos. E os trotskistas
tinham uma visão mais ampla”, disse Queiroz
em 2000, em uma entrevista para um projeto
memorialista da Câmara dos Deputados (mais

7
tarde, na década de 1960, ela apoiaria o regime
militar – inclusive era parente do ex-presidente
Humberto Castello Branco).

Um texto veiculado no jornal Luta de Classes,


editado entre 1930 e 1939 por uma facção
trotskista chamada Grupo Comunista Lenin,
também ilustra bem as diferenças entre o grupo
e os stalinistas. “Jamais combateremos o
Partido Comunista Brasileiro. Combateremos,
sim, a direção do partido, única responsável
pela orientação política errada, que vai aos
poucos liquidando o partido e separando-o da
pequena parte do proletariado que ainda o
acompanha”, diz um trecho do artigo.

O segundo fator de encantamento é a ligação de


Leon Trotsky com as artes e o pensamento de
vanguarda. Ao mesmo tempo em que ordenava

8
assassinatos em massa, ele era um intelectual
que incentivava a cultura e registrava seus
pensamentos em textos elogiados até pelos
detratores. Essa suposta sofisticação seduzia os
mais jovens – e preocupava os comunistas
pragmáticos.

Em seu livro ‘Trotsky – Uma Biografia’


(publicado no Brasil em 2017, pela editora
Record), o pesquisador britânico Robert Service,
professor de História Russa da Universidade de
Oxford, comenta que mesmo o visual do
revolucionário era um elemento importante na
construção de sua lenda pessoal (para o bem e
para o mal). “Até a elegância refinada de suas
roupas era incômoda [para os stalinistas]”,
afirma o biógrafo.

9
Estudantes da USP criaram um “trotskismo
pop” na década de 1970

Corta para o final dos anos 1970. Frustrada com


o fracasso da luta armada, a esquerda brasileira
buscava novos caminhos para enfrentar, dessa
vez por vias pacíficas, o regime militar. Era o
auge do desbunde tardio tupiniquim, e uma
turma de alunos da Universidade de São Paulo
ficou conhecida por abraçar o trotskismo e
transformá-lo, sem querer, em um movimento
pop: os chamados “libelus”, membros da
tendência Liberdade e Luta.

Não que o pensamento de Trotsky estivesse em


decadência dentro da esquerda naquela altura
do campeonato. A semente plantada por Mário
Pedrosa e companhia durante o Estado Novo
germinou e se alastrou na forma de inúmeras

10
organizações, de curta e longa duração. Muitas
delas trocaram de nome, adaptaram suas
propostas aos períodos históricos posteriores e
estão por aí até os dias de hoje.

Mas nenhuma delas teve tanta influência na


política e na imprensa brasileira atuais quanto a
Liberdade e Luta. Braço estudantil da Organiza-
ção Internacional Socialista – movimento
clandestino trotskista que criticava a estratégia
guerrilheira e propunha um trabalho de base
junto às “massas” –, o grupo surgiu em 1976,
ano da primeira eleição para o Diretório Central
dos Estudantes da USP.

Entre seus membros estavam futuros profes-


sores, políticos, artistas e, principalmente, jor-
nalistas: Demétrio Magnoli, Reinaldo Azevedo,
Paulo Moreira Leite, José Arbex Jr., Laura

11
Capriglione, Cleusa Turra, Markus Sokol, Cadão
Volpato, Eugênio Bucci, Renata Rangel, Alex
Antunes. Todos eles dão depoimentos no docu-
mentário ‘Libelu: Abaixo a Ditadura’ (2020),
dirigido por Diógenes Muniz, distribuído pela
Globo Filmes e vencedor do festival É Tudo
Verdade.

“Eles são jovens, elegantes, iconoclastas,


bem-nutridos e talvez um tanto mal-humora-
dos”, definiu o jornalista Mino Carta, em seu
programa na extinta TV Tupi, em 1979 (esse
trecho abre o longa de Muniz). Na ocasião, ele
entrevistou dois “libelus” que depois seguiriam
carreira na imprensa nacional – os irmãos
Ricardo, ex-presidente da Empresa Brasileira
de Comunicação (nomeado por Dilma Roussef),
e Josimar Melo, crítico gastronômico da Folha
de S. Paulo.

12
E como surgiu o termo “libelu”, que acabou
pegando e entrando para a cultura? Como
explica a jornalista Laura Capriglione, ele foi
criado para ser uma espécie de xingamento:
“Era um apelido jocoso que os comunistas que
se consideravam sérios e responsáveis deram
para a gente, os esquerdistas loucos e, para eles,
infantiloides”.

Libelu foi o Tropicalismo da juventude


comunista brasileira

É possível dizer a Liberdade e Luta foi a Tropi-


cália da política estudantil, no sentido do hedo-
nismo e da liberdade artística – enquanto a
esquerda tradicional defendia comportamentos
mais rígidos e o nacionalismo cultural.

“Ouvíamos tanto música brasileira quanto


estrangeira. Éramos os ‘internacionalistas’, diz

13
o Demétrio Magnoli, mais conhecido como
comentarista da GloboNews (e único entrevis-
tado do documentário que hoje se posiciona
mais à direita dos demais). “Nós ridicularizáva-
mos muito qualquer sentimento de nacionali-
dade exacerbado”, afirma o economista
Eduardo Gianetti da Fonseca.

Reinaldo Azevedo, jornalista que cunhou o ter-


mo “petralhas” antes de se converter ao lulis-
mo, brinca com a fama de rebelde da turma:
“Diziam que os libelus se drogavam e organiza-
vam surubas. Mas para suruba ninguém nunca
me chamou”.

“Chegou um momento em que os homens se


cumprimentavam dando selinho na boca um
dos outros”, diz o músico e jornalista Alex
Antunes. “Dávamos as melhores festas do

14
movimento estudantil”, afirma José Arbex Jr.,
ex-editor da revista de esquerda Caros Amigos.

O filme ainda mostra um antigo membro da


tendência que militava em Ribeirão Preto:
Antônio Palocci. Cumprindo prisão domiciliar
por corrupção, o ex-ministro dos governos Lula
e Dilma aceitou receber a produção – e sua
entrevista acabou girando mais em torno dos
desvios de sua trajetória política.

“Me arrependo de ter feito isso”, diz, refe-


rindo-se à prática de caixa-dois em campanhas
eleitorais. “Minha fraqueza foi não ter insistido
em ser minoria, mas resolvi dançar conforme a
música. Se não fizesse isso, poderia nunca ter
sido eleito. Mas hoje talvez fosse uma pessoa
melhor”, afirma.

15
Em 1978, após vencer a eleição para o DCE da
USP e participar de passeatas em São Paulo, a
Liberdade e Luta explodiu nacionalmente. Foi
assunto de reportagens em jornais, revistas e
programas tevê, além de ser citada em músicas,
filmes e novelas.

Uma charge histórica da revista IstoÉ, publicada


em 1979 e intitulada “Aprenda a ser um libelu”,
trazia o desenho de um jovem com todas as
características dos militantes – “cabelo
grande”, “camisa Fiorucci”, “jeans levemente
puídos”, “paletó de veludo preto, furado na
manga”.

Na mesma época, o poeta curitibano Paulo


Leminski dedicou um poema ao grupo. “Me
enterrem com os trotskistas / na cova comum
dos idealistas / onde jazem aqueles / que o

16
poder não corrompeu”, dizem os primeiros
versos (que, obviamente, não valem para
Palocci).

Trotskistas compõem quadros importantes


dentro do PT

A abertura política acabou dispersando os


libelus, mas alguns de seus quadros foram
fundamentais na fundação do Partido dos
Trabalhadores (como Markus Sokol, membro da
Comissão Executiva Nacional e ainda hoje líder
da corrente O Trabalho dentro da legenda).

O PT ainda conta, em suas fileiras, com vários


trotskistas que ocupam ou ocuparam cargos
públicos e internos – boa tarde deles ligada à
tendência Democracia Socialista, uma das
maiores do partido. Juntos com militantes que
em algum momento já seguiram a cartilha do

17
revolucionário marxista, eles formam uma lista
enorme. Miguel Rossetto, Clara Ant, Luiz
Gushiken, Carlos Minc, Luis Favre, Sérgio Rosa,
Marcelo Sereno são apenas alguns dos nomes
que fazem parte dessa relação. Mesmo a
ex-presidente Dilma Roussef, atualmente à
frente do Novo Banco de Desenvolvimento (o
“Banco dos Brics”), teve sua fase trotskista
quando integrou o grupo armado Comando de
Libertação Nacional (Colina).

Ou seja: eles ainda estão por todos os todos


lados. Então é melhor tomar cuidado, pois pode
ter um discípulo de Trotsky agora mesmo
olhando para você.

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18
Brasil tem uma série de trunfos e desafios na corrida pela transição energética.|
Foto: Albari Rosa/Arquivo/Gazeta do Povo

ENERGIA DO FUTURO

Sol, vento, hidrogênio e mais:


os trunfos e desafios do Brasil
na transição energética
Por Raphaela Ribas

O Brasil conta com uma série de trunfos para ser


um dos protagonistas da transição energética,

19
processo em que combustíveis fósseis vão sendo
gradualmente substituídos por fontes de ener-
gia consideradas limpas e renováveis. Mas o
país também enfrenta obstáculos para aprovei-
tar toda a sua vocação.

Entre as principais apostas brasileiras na cor-


rida pela energia do futuro estão alternativas já
tradicionais e abundantes no país, como o sol e
o vento – no caso deste último, a principal
aposta para os próximos anos são os parques
"offshore", em alto-mar. Mas o Brasil também
tem condições de se destacar em novas frontei-
ras como o chamado "hidrogênio verde", que
hoje é uma opção cara mas que pode ganhar
escala no futuro, repetindo o que aconteceu com
as fontes eólica e solar.

20
Têm sido frequentes os anúncios, de investido-
res locais ou estrangeiros, de projetos-piloto ou
mesmo grandes empreendimentos voltados pa-
ra a transição energética. O interesse não se li-
mita ao potencial retorno financeiro. Mais que
render dinheiro, a energia verde gerada no Bra-
sil ajuda multinacionais a elevar suas pontua-
ções globais nas metas de "descarbonização"
dos negócios.

Petroleiras listadas em bolsa são pressionadas a


mitigar suas pegadas de carbono. E empresas
com menos emissão de gases nocivos ao meio
ambiente conseguem melhores contratos e
crédito mais barato.

Por ser um dos poucos países com capacidade


de gerar para seu consumo próprio e ainda
vender o excedente, o Brasil tem condições de

21
se tornar um "hub" de exportação de energia ou
produtos verdes, avalia José Mauro Ferreira
Coelho, ex-presidente da Petrobras e presidente
da Aurum Energia.

O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), ao


mesmo tempo em que tenta dobrar o Ibama
para explorar petróleo na chamada Margem
Equatorial, ao norte do país, anuncia investi-
mentos públicos e privados para fomentar o uso
de energias verdes e reduzir a dependência de
fósseis.

Mas, segundo especialistas consultados pela


Gazeta do Povo, a questão não é de dinheiro e
nem sequer seria necessária a participação
estatal. Os principais calos, apontam, estão na
insegurança jurídica e na regulamentação. A
despeito da inegável vocação do Brasil para

22
produzir energia limpa, a falta de clareza nas
leis e normas leva investidores a pisar no freio.

"Tudo isso requer grande investimento. E não


precisa ser do Estado. O governo quer usar re-
cursos para isso [investir em energia verde] e
falta dinheiro para coisas importantes, como
capacitar a população", diz Edmilson Moutinho
dos Santos, professor do Instituto de Energia e
Ambiente da Universidade de São Paulo
(IEE/USP).

"Empresas nacionais e internacionais têm ca-


pital. O que precisa é de uma regulamentação,
um bom olhar socioambiental e melhorar a
conexão", completa o especialista.

Conheça a seguir os principais trunfos e


desafios do Brasil na corrida pela energia do
futuro:

23
Energia eólica

Nos últimos dez anos, a capacidade instalada de


energia eólica no Brasil saltou de 3,9 gigawatts
(GW) para 29,2 GW, segundo dados da associa-
ção que representa o setor, a ABEEólica. A po-
tência atual equivale a pouco mais que o dobro
da capacidade instalada da hidrelétrica de
Itaipu.

Conforme a Agência Nacional de Energia Elétri-


ca (Aneel), a energia dos ventos já responde por
14% de toda a potência do elétrico nacional. A
maioria das usinas eólicas em funcionamento
está na região Nordeste e em terra ("onshore").

A grande aposta do setor, no entanto, é nos


parques em alto-mar ("offshore"). Um estudo
da Confederação Nacional das Indústrias (CNI)
calcula que a fonte eólica offshore tem potencial

24
de aproximadamente 700 gigawatts (GW) – 3,6
vezes a capacidade instalada de todas as fontes
de energia do país hoje, de 196 GW.

Na semana passada, a Petrobras anunciou


oficialmente sua entrada no ramo. Com vasta
experiência na exploração de petróleo em
alto-mar, a companhia protocolou no Ibama
um pedido de licenciamento ambiental para
parques eólicos em dez áreas marítimas na
costa brasileira, com potencial de até 23 GW.
Isso faz dela a empresa com maior capacidade
protocolada até o momento.

A Petrobras também anunciou parceria com a


fabricante de equipamentos Weg para investir
R$ 130 milhões no desenvolvimento de uma
turbina eólica (aerogerador) de 7 MW, o maior
do país – neste caso, para uso em terra.

25
“Para a rede brasileira de energia, o onshore
ainda tem muito potencial. O offshore em algum
momento vai para a rede brasileira, mas a ideia
é produzir nele o hidrogênio verde para expor-
tação”, diz Santos, da USP (veja mais abaixo
informações sobre o hidrogênio verde).

Coelho, da Aurum, lembra ainda os desafios da


falta de regulação – o Congresso ainda precisa
aprovar legislação sobre o assunto – e o alto
investimento. “Acredito que a eólica offshore
no Brasil ainda vai demorar. Não só por conta da
regulação, mas porque ainda temos muito
chão”, avalia.

Apesar de todo o potencial da energia dos ven-


tos, uma questão "natural" manterá o Brasil
dependente de outras fontes no futuro, em
especial a hidrelétrica: a fonte eólica é

26
intermitente, com a produção de energia
variando bastante ao longo do dia conforme a
velocidade dos ventos.

Dessa forma, o país precisa de fontes de geração


mais constante – como a hidrelétrica e even-
tualmente a térmica – para garantir a segu-
rança do abastecimento sem interrupções.

Energia solar

Incentivos tarifários e o barateamento das pla-


cas solares popularizaram a energia do sol nos
últimos anos, na forma de grandes instalações
mas também por meio da geração distribuída
em residências, empresas, chácaras e
condomínios.

Segundo a Associação Brasileira de Energia


Solar Fotovoltaica (Absolar), desde 2012 o país

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já investiu R$ 163 bilhões em energia solar. A
fonte fotovoltaica, que na primeira década deste
século tinha participação quase irrelevante na
matriz elétrica nacional, já soma 10,4 GW, ou
mais de 5% da potência instalada no país – e
avança rápido.

A Absolar segue a projeção da Bloomberg New


Energy Finance de que a energia solar será a
principal fonte da matriz elétrica brasileira até
2050. Hoje o protagonismo é das usinas hidre-
létricas, que somam 110 GW e respondem por
56% da capacidade instalada do país.

Entre os obstáculos para a expansão da energia


solar estão dificuldades na exportação de ener-
gia do Nordeste para o Sudeste, com problemas
na transmissão e manutenção das redes, des-
taca Coelho.

28
Assim como ocorre com a energia eólica, a solar
é uma fonte de energia intermitente. Ou seja,
não assegura geração contínua e estável de
energia, ao contrário do que ocorre com as
fontes hídrica e térmica, por exemplo.

Hidrogênio verde

Para ser chamado de "verde" ou de baixo car-


bono, o hidrogênio precisa ser obtido por meio
da eletrólise da água, com eletricidade gerada a
partir de fontes renováveis (como eólica e so-
lar), em oposição à versão "cinza" ou "azul"
(produzidas a partir de combustíveis fósseis).

Somado ao fato de suas principais


matérias-primas virem do vento e do sol,
abundantes no Brasil, o hidrogênio tem as
vantagens de poder ser estocado, e exportado e
usado em várias indústrias.

29
Por isso, o hidrogênio verde é considerado uma
aposta estratégica na transição energética. Por
outro lado, o custo para produzi-lo ainda é alto.

O mercado, no entanto, se movimenta para


apressar o processo. A União Europeia anunciou
neste ano um investimento de R$ 10 bilhões em
hidrogênio verde no Brasil.

Os principais projetos envolvendo o novo com-


bustível no Brasil estão no Nordeste, devido ao
grande potencial eólico e solar e também à
proximidade de Europa e Estados Unidos, que
facilita a exportação.

A primeira usina de hidrogênio verde do país


está sendo construída no polo industrial de
Camaçari (BA), pela fabricante de fertilizantes
Unigel, com investimento inicial de US$ 120
milhões.

30
Biomassa

Biomassa é matéria orgânica de origem vegetal


ou animal que pode ser usada como fonte de
energia renovável. Pode ser usada para gerar
calor, eletricidade ou combustíveis e produz
menos gases de efeito estufa que os combus-
tíveis fósseis tradicionais.

Entre os exemplos de biomassa estão resíduos


de culturas agrícolas, de florestas, de animais,
de processos industriais como a produção de
alimentos e mesmo resíduos sólidos urbanos.

Entre as fontes renováveis que a empresa Engie


Brasil vem desenvolvendo, por exemplo, estão
soluções como pedaços de madeira para subs-
tituir o gás natural em caldeiras, bagaço de
cana-de-açúcar e dejetos animais para gerar
biogás.

31
O lixo urbano é uma fonte de biomassa com po-
tencial de escala. Porém, o professor Edmilson
Moutinho dos Santos, da USP, observa que a
coleta de lixo ainda é muito dispersa, o que
dificulta a logística. “Lixo tem no Brasil. O que
não tem é lixo concentrado e fácil de pegar. A
energia depende da facilidade de pegar a
energia”, diz.

Biocombustíveis

Os biocombustíveis são obtidos da biomassa re-


novável (ou seja, de matéria orgânica vegetal ou
animal) e podem ser usados "puros" ou mistu-
rados a combustíveis derivados do petróleo e
gás.

Os mais usados no Brasil são o etanol – princi-


palmente de cana-de-açúcar mas também do
milho, em franca expansão – e o biodiesel,

32
produzido a partir de óleos vegetais ou de gor-
duras animais e adicionado ao diesel de petróleo
em proporções variáveis. No Brasil, a mistura de
biodiesel ao combustível fóssil é de 12%.

Com fases de altos e baixos, o Brasil aposta no


etanol desde os anos 1970, quando, em reação
ao choque do petróleo, o governo criou o
Proálcool. Outro impulso veio dos carros flex,
que hoje são 85% da frota brasileira. Além
disso, existe uma mistura obrigatória de álcool
anidro à gasolina.

A indústria sucroalcooleira defende que o etanol


tem de ser a principal aposta do país, em termos
de combustíveis veiculares, na transição ener-
gética. Ao contrário do que ocorre com a eletri-
cidade para carros, o país já conta com ampla
rede de distribuição de etanol e, segundo o

33
setor, o desempenho do combustível em termos
de descarbonização é muito parecido.

Um estudo da montadora Stellantis, dona de


marcas como Fiat, Jeep, Peugeot e Citroën,
constatou que, considerando todo o ciclo de
produção, veículos movidos pelo etanol no
Brasil emitem menos gases que veículos
elétricos europeus.

Diesel verde

O recém-lançado Programa Combustível do


Futuro também trouxe novidades para o diesel
verde. A ideia do governo é criar uma adição
mínima obrigatória de diesel verde no derivado
de petróleo, como ocorre com o etanol na
gasolina.

34
Produzido a partir de matérias-primas reno-
váveis e com baixa emissão de carbono, como
óleos vegetais e gorduras de origem animal, o
diesel verde é considerado melhor para os
motores diesel tradicionais do que o biodiesel.

Isso porque, embora os insumos possam ser os


mesmos, o processo de produção e a composi-
ção química dos dois combustíveis são diferen-
tes. Enquanto há um limite para a mistura de
biodiesel, em tese o diesel verde pode ser adi-
cionado ao diesel fóssil em qualquer proporção,
ou mesmo substituí-lo na íntegra.

Metais da transição energética

O Brasil também está relativamente bem


situado na corrida pelos veículos elétricos –
mais especificamente, na produção de insumos
para as baterias.

35
Níquel, lítio e cobre são metais muito usados na
fabricação de baterias elétricas e com potencial
geológico a ser explorado no Brasil. O lítio, por
exemplo, já é extraído no Vale do Jequitinho-
nha, em Minas Gerais, e há iniciativas para
aumentar a produção.

Em maio, o governo mineiro lançou em Nova


York o projeto Vale do Lítio, para atrair empre-
sas estrangeiras ao estado. A Agência de Pro-
moção de Investimentos de Minas Gerais
(Invest Minas) fala em R$ 5 bilhões em inves-
timentos, com expectativa de que o número
suba para pelo menos R$ 20 bilhões até 2030.
No fim de julho, foi anunciado o embarque da
primeira carga de "lítio verde" do mundo,
extraído no Vale do Jequitinhonha e com padrão
"triplo zero" – ou seja, sem carbono, rejeitos e
químicos nocivos.

36
Números da consultoria S&P Global indicam que
a demanda pelo lítio deve atingir 2 milhões de
toneladas até 2030. Até 2040, a demanda deve
crescer mais de 40 vezes. Santos, da USP,
observa que o Brasil ocupa o oitavo lugar no
ranking das maiores reservas de lítio, mas vê
mais potencial para a exploração dessas reser-
vas para fins locais do que como projeto expor-
tador. Ele tem dúvidas sobre a capacidade do
país de competir mesmo na América do Sul.
"Será que produzir lítio aqui sairá mais barato
do que importar dos vizinhos Chile e
Argentina?”, questiona.

Energia nuclear

O Brasil tem duas usinas nucleares em funcio-


namento, ambas no litoral do Rio de Janeiro:
Angra 1 e Angra 2. Juntas, elas têm potencial de

37
geração de 2 GW, cerca de 1% do parque elétrico
nacional. Uma terceira usina, de Angra 3, está
com a construção paralisada. O país tem
reservas significativas de urânio, em especial
em Caetité (BA), e consegue produzir seu
combustível nuclear – no caso, urânio
enriquecido.

A energia nuclear é considerada, por parte dos


estudiosos, como uma das principais opções na
transição energética para o baixo carbono.
Emite poucos gases de efeito estufa, permite a
produção de grande quantidade de energia em
um único local e os reatores podem funcionar
de forma contínua, assegurando fornecimento
estável de eletricidade.

Porém, a energia nuclear também desperta


medos e controvérsias. Para além do risco de

38
acidente nuclear, o descarte e armazenamento
dos resíduos radioativos não são operações
simples. Erros de manejo podem resultar em
grave contaminação do ambiente ao redor, com
riscos para a população.

Embora o custo de operação das usinas não seja


tão elevado em comparação a outras fontes, as
demais despesas são muito altas – da constru-
ção dos reatores ao atendimento de requisitos
de segurança e à gestão dos resíduos.

O tema, por isso, divide opiniões de especialis-


tas. O professor da USP Edmilson Moutinho dos
Santos, por exemplo, não vê necessidade de o
país ampliar a produção nuclear nas próximas
décadas. "Para 2050 não posso dizer que não
precise. O caminho é apostar em projetos de
escala menor", diz.

39
Energia hidrelétrica

Mais da metade da energia elétrica gerada no


país vem das usinas hidrelétricas. Trata-se de
uma fonte considerada limpa e renovável, mas
que tem obstáculos para sua expansão. Grande
parte dos locais com potencial já foram apro-
veitados, e questões de ordem socioambiental –
do alagamento de grandes áreas aos impactos
sobre a população local – são impeditivos para
grandes projetos.

Para Santos, da USP, o modelo binacional está


esgotado, assim como os aproveitamentos nas
regiões Sul e Sudeste. Além disso, a construção
de novas hidrelétricas não é muito viável em
regiões distantes onde ainda há potencial.

“Isso envolve dificuldade política, expansão de


rede num ambiente de linhas de transmissão

40
irregulares e conexão com países instáveis”, diz
o especialista.

Uma opção que tem sido aventada, aponta, é


"hibridizar" as usinas hidrelétricas que já
existem. "A ideia é jogar placas fotovoltaicas e
gerar energia com sol também", diz.

A Engie Brasil, que trabalha com geração, co-


mercialização e transmissão de energia elétrica,
ainda vê espaço para avançar na área hidrelé-
trica. Para a empresa, ainda há potencial de
fazer mais. Os desafios na expansão são os
licenciamentos e avaliar o melhor custo-bene-
fício de desenvolvimento econômico, social, da
localização das usinas.

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41
| Foto: Jonathan Campos/Arquivo/Gazeta do Povo

AGRICULTURA DO FUTURO

Sem medo de sustentabilidade:


comparativo global mostra
vanguarda do agro brasileiro
Por Marcos Tosi

Em tempos em que conceitos de Governança


Ambiental, Social e Corporativa (ESG) se espa-

42
lham por toda a economia e a sustentabilidade é
item obrigatório nas negociações internacionais
– haja vista o Green Deal da União Europeia,
que vai cobrar taxa de carbono na fronteira e
exigirá desmatamento zero de seus parceiros
comerciais –, uma pesquisa global revela que os
produtores rurais brasileiros já põem em prática
hoje o que muitos países ainda veem apenas
como uma “agricultura do futuro”, ou desafio a
ser conquistado.

Reportagens desta Gazeta do Povo já demons-


traram como o Brasil virou potência global no
combate a pragas e doenças usando bioinsumos
e que detém os melhores indicadores da chama-
da agricultura regenerativa. Entende-se por
agricultura regenerativa aquela que utiliza pro-
cessos que impactam positivamente a

43
biodiversidade, melhorando a qualidade do
solo, da água e do ar.

Corroborando essa constatação, nos últimos


meses profissionais da consultoria norte-ame-
ricana McKinsey foram a campo e ouviram 5,5
mil agricultores da Europa, Ásia, América do
Norte e América do Sul. O objetivo foi sondar o
quão presentes as práticas sustentáveis estão no
dia a dia do cultivo de milhões de hectares de
lavouras mundo afora.

Os resultados da pesquisa vão contra as premis-


sas dos que insistem em atacar o agronegócio e
colocá-lo em oposição ao meio ambiente.
Quando se adotam métricas objetivas de avalia-
ção, fica mais difícil – tanto os críticos internos
quanto para os concorrentes internacionais –
desqualificar o agro brasileiro.

44
Em biológicos, agricultura brasileira lidera
com folga

O levantamento da McKinsey mostra que


nenhum outro país se aproxima do nível de
adesão dos brasileiros ao uso de produtos
biológicos para controle de pragas e doenças,
crescimento das plantas e fertilização dos solos.

Em relação à proteção das lavouras, 55% dos


nossos produtores já adotam produtos bioló-
gicos, contra 23% na União Europeia, 8% na
China, 6% nos Estados Unidos, 5% no Canadá,
4% na Argentina e 3% na Índia. E zero por cento
dos agricultores brasileiros “nunca ouviu falar
dos biológicos”, enquanto o assunto é desco-
nhecido para 62% dos chineses e 34% dos
americanos.

45
Adoção de práticas sustentáveis

Percentual de entrevistados que já adotam ou


estão dispostos a adotar as práticas nos
próximos dois anos

46
47
48
49
No Brasil, o mercado dos bioinsumos vem
crescendo a taxas de 50% ao ano, contra uma
média global de 15%. Não se trata de mera
substituição dos defensivos químicos, mas de
uma estratégia complementar dentro do
Manejo Integrado de Pragas (MIP) que previne a
resistência aos pesticidas, ao mesmo tempo em
que reduz os custos e a quantidade de
aplicações. Os ganhos se estendem, também, na
indução do crescimento das plantas e no melhor
aproveitamento dos nutrientes disponíveis no
solo.

Quanto aos bioestimulantes (bactérias, fungos,


ácidos, extratos, biopolímeros e compostos
inorgânicos), cerca de 50% dos produtores
brasileiros já lançam mão desses recursos,
contra 28% os agricultores na União Europeia,
23% na China, 16% nos Estados Unidos, 11% na

50
Argentina, 9% no Canadá e 3% na Índia. A
liderança também é significativa na utilização
dos biofertilizantes (adubos orgânicos): 36%
dos produtores brasileiros usam, contra 25%
dos europeus, 22% dos chineses, 12% dos
americanos, 11% dos indianos, 7% dos
canadenses e 6% dos argentinos.

Plantio direto, ILPF, cultivos de cobertura

Para além dos biológicos, os produtores


brasileiros se destacam também na adoção ou
na intenção de adoção de outras práticas
amigáveis ao meio ambiente, como o plantio
direto, os cultivos de cobertura e as técnicas de
aplicação de fertilizantes de liberação lenta e
com taxas variáveis. Sem falar no sistema
Integração Lavoura-Pecuária-Floresta (ILPF),
uma revolução na exploração múltipla e

51
sustentável da terra, que já atinge 18 milhões de
hectares e deve dobrar de tamanho até 2030.

Segundo a pesquisa McKinsey, o cultivo agrícola


sem reviramento da terra (direto na palha) é
prática declarada, ou está no radar de curto
prazo, de 83% dos produtores comerciais
brasileiros, contra 69% dos canadenses, 67%
dos europeus, 60% dos americanos, 11% dos
indianos e 9% dos chineses. Em relação às
culturas de cobertura (para evitar que o solo
fique descoberto nas entressafras), apenas os
europeus estão à frente dos brasileiros, com
82% de adesão contra 59%, enquanto 50% dos
americanos e 53% dos chineses declararam
adotar a prática. Na aplicação direcionada de
fertilizantes e com taxas variáveis, os
brasileiros são os únicos a adotarem a prática
acima de 50%.

52
Para entender o processo de modernização e
inovação na agricultura brasileira, é preciso
olhar para a transição de gerações. Segundo
Mikael Djanian, sócio da McKinsey em São
Paulo, a primeira pesquisa, há três anos, já
havia detectado "uma força" que empurrava o
movimento tecnológico no campo. "Tem uma
geração mais nova assumindo a propriedade
dos pais, e eles carregam muito isso de
tecnologia, ambição de crescer, abertura a
tomar riscos. O que antes era uma das
hipóteses, a transição geracional, se confirmou
com os dados desta última pesquisa", observa.

Assim, a adoção dos biológicos “explodiu” no


Brasil não exatamente por obra e força da
agricultura familiar ou agroecológica, mas pelo
avanço da pesquisa e do desenvolvimento

53
associado à busca dos agricultores comerciais
por manejos mais eficientes e em larga escala.

Evandro Sasano, diretor de planejamento da


gaúcha Simbiose, líder na produção de insumos
microbiológicos no país, aponta que há 15 anos
era preciso aplicar 1,5 kg de um de seus
principais produtos biológicos para proteção de
um hectare, com validade de quatro meses.
Atualmente, são aplicados 100 ml por hectare
do mesmo produto, com validade de 36 meses.
“Isso corrobora demais para aumentar a
adoção. Por outro lado, a resistência ou perda de
eficiência dos químicos é patente. A gente é
assediado por empresas que querem fazer
manejos integrados para defender suas
moléculas. Afinal, uma nova molécula leva de
dez a quinze anos [para ficar pronta] e exige
investimentos de bilhões de dólares”, afirma.

54
Químico quando necessário, biológico sempre
que possível

Em 2014, apenas dois novos produtos biológicos


tinham sido registrados no país; em 2021,
foram 87. Atualmente, já são mais de 500
registros ativos à disposição do mercado.

Amália Borsari, diretora de biológicos da


Croplife, associação que agrega pesquisadores,
instituições e empresas de tecnologias do agro,
defende a prevalência do critério científico de
eficiência na hora de escolher os insumos,
sejam químicos ou biológicos. “Entendo que
devemos usar cada vez mais o biológico como
ferramenta aplicada sempre quando possível, e
os agroquímicos sempre quando necessário”,
enfatiza.

55
As soluções biológicas não são de todo novidade
para os produtores brasileiros. Prova disso,
segundo o pesquisador Jerri Zilli, da Embrapa
Agrobiologia, está na tradição de uso de
bactérias inoculantes de nitrogênio na soja.

“A gente faz isso no Brasil melhor do que no


resto do mundo há muitos anos. A economia é
de 15 bilhões de dólares por ano, uma economia
absurda pelo fato de utilizar a inoculação e
reduzir a dependência de 6 milhões de
toneladas de nitrogênio por ano”, sublinha.

A diferença agora é que os produtores teriam


acordado para a necessidade de atualizar o
pacote tecnológico da agricultura tropical,
calibrando e diversificando melhor o uso dos
insumos. “A inoculação de nitrogênio é o
grande exemplo. O produtor vê que com a

56
matemática não dá para discutir, então, isso
acaba puxando outros produtos biológicos”,
assegura.

Segundo definição da Embrapa, insumos


biológicos "são os produtos ou processos
agroindustriais desenvolvidos a partir de
enzimas, extratos (de plantas ou de
microrganismos), microrganismos,
macrorganismos (invertebrados), metabólitos
secundários e feromônios, destinados ao
controle biológico. Esses insumos são também
os ativos voltados à nutrição, os promotores de
crescimento de plantas, os mitigadores de
estresses bióticos e abióticos e os substitutivos
de antibióticos”.

57
Brasil lidera adoção de ferramentas biológicas

Biocontrole de pragas e doenças

Você utiliza formas alternativas de proteção das


lavouras no manejo de pragas e doenças?

58
Adoção de bioestimulantes

Você utiliza bioestimulante em seu manejo de


fertilizantes ou de proteção das lavouras?

59
Uso de biofertilizantes

Você usa biofertilizantes em suas práticas de


adubação?

60
Restos mortais em local onde jovens participavam de um festival de música
eletrônica quando o Hamas atacou. | Foto: EFE/ Martin Divisek

ARTIGO

“O lado elegante do terrorismo”,


texto de Olavo de Carvalho
incluído em livro póstumo
Por Olavo de Carvalho

Que o terrorismo mantém o mundo num estado


permanente de guerra não declarada, todo

61
mundo sabe. Mas essa guerra tem ainda uma
segunda peculiaridade: ela é calculada para
subtrair antecipadamente das nações atacadas
— EUA e Israel em primeiro lugar — toda
possibilidade de defesa.

Para compreender esse fenômeno é preciso


estar ciente de que um atentado terrorista nada
vale sem o aproveitamento político e midiático
de suas consequências. Estas são tão meticulo-
samente planejadas como o atentado mesmo, o
que seria impossível se as organizações
terroristas não contassem com uma ampla rede
de apoio nos canais formadores da opinião
pública de dentro e de fora da nação atacada.

Atendida essa condição — e nunca ela foi tão


bem atendida quanto hoje —, paralisar a vítima
torna-se uma operação bem simples. Se uma

62
nação é alvo de ataques terroristas, que é que
ela pode fazer para resolver o problema? Pode,
em primeiro lugar, defender-se no seu próprio
território, perseguindo os agentes locais do
terrorismo. Segundo: pode descobrir os Estados
que dirigem ou apoiam a ação terrorista, e
atacá-los em guerra declarada.

Terceiro: pode tentar combater seus inimigos


por meio de ações tão camufladas e informais
quanto as deles próprios, subsidiando grupos
paramilitares de antiterrorismo, seja no seu
próprio território, seja no Exterior.

Em qualquer dessas três vias, a reação pode ser


obstada pela pressão da mídia e da opinião
pública. A repressão local é condenada como
ditadura policial e atentado aos “direitos
humanos” dos possíveis suspeitos, a simples

63
ameaça de declaração de guerra suscita uma
epidemia de protestos “pela paz”, a luta
clandestina é denunciada como crime por meio
de inquéritos parlamentares e reportagens de
escândalo, provocando crises diplomáticas e
eventualmente a queda do governo.

Na guerra entre as nações e o terrorismo, todas


as vantagens vão para este último. A situação é
estruturalmente análoga à do confronto entre o
cidadão comum e o criminoso armado.

Este, já estando a priori fora da lei, tem à sua


disposição os instrumentos de ação que bem
deseje. Aquele é tolhido pela própria lei, que,
habilmente manipulada, pode chegar a privá-lo
de seus meios de legítima defesa e tornar-se o
mais sólido baluarte em defesa do crime.

64
Assim também se passa na esfera do terrorismo.
Burocratas, jornalistas, intelectuais, estrelas da
TV e do cinema, o beautiful people na sua
totalidade, são tão vitais para o bom êxito do
empreendimento criminoso quanto os próprios
agentes da violência física. A rede que eles
formam tem hoje as dimensões de um
megapoder internacional, incalculavelmente
maior que o de qualquer nação.

Nenhum Estado tem meios de angariar tanto


apoio, na opinião pública mundial e nos
organismos internacionais, quanto as
organizações terroristas. Nenhum Estado pode
manter, no exterior, partidos com milhões de
militantes e ONGs com milhões de
colaboradores atuando em caráter permanente.

65
Nenhum Estado pode comprar consciências a
granel entre jornalistas e intelectuais de um
país estrangeiro. “Nenhum” Estado? Não é bem
assim. Os Estados totalitários podem, porque
não têm satisfações a dar à opinião pública
interna. A China pode.

Cuba pode. O Iraque pode. Mas, precisamente,


esses Estados estão do lado do terrorismo, em
favor do qual usam de meios de ação com que
um Estado democrático e constitucional não
ousaria sequer sonhar.

É assim que, na mídia internacional, e em


especial na de certos países mais abertos à
propaganda esquerdista, como é o caso do
Brasil, a dualidade de pesos e medidas no
julgamento do confronto entre os terroristas e
suas vítimas se torna um fator permanente e

66
quase institucional, atuando sempre em prol
dos terroristas. Estes só são condenados,
quando chegam a sê-lo, durante o breve
momento de impacto de suas ações
espetaculares.

Passado o susto, preenchida a quota de


lamentações pro forma necessária para salvar
as aparências, os formadores de opinião passam
à segunda e decisiva fase das operações, que
consiste em bloquear o revide. Se na primeira
fase tudo não passou de um florescimento
passageiro de verbalizações emocionais sem
consequência prática, na segunda a ação é
contínua, persistente, ordenada e racional, não
se dando por concluída enquanto a nação
atacada não seja induzida a abdicar de seu
direito de reagir.

67
É por isso que, há décadas, a força do terrorismo
cresce ininterruptamente, ao passo que toda
veleidade de resposta das vítimas esbarra cada
vez mais em obstáculos psicológicos, políticos,
jurídicos e culturais, seja no exterior, seja em
seus próprios territórios.

O terrorismo não será vencido enquanto a rede


de seus colaboradores na mídia, na
intelectualidade, no show business e nos
organismos internacionais não for investigada,
conhecida, denunciada e desmantelada. Mas os
obstáculos que se opõem a isso são ainda mais
temíveis do que aqueles que vetam uma
resposta direta ao terrorismo.

O direito dos terroristas ao apoio unilateral é


hoje quase uma cláusula pétrea da “ética”
midiática mundial. No Brasil, então, nem se

68
fala. Ninguém vê nada de anormal ou
escandaloso em que agentes de influência
diretamente ligados à coordenação política do
movimento comunista no continente exerçam
na mídia o cargo de editores ou comentaristas
políticos.

Ninguém percebe sequer a diferença entre o que


eles fazem e o serviço normal de um jornalista.
Mas que um cidadão isolado, sem conexões
organizacionais de espécie alguma, se aventure
a protestar contra alguma mentira que eles
digam, e será imediatamente rotulado de
vendido, de agente estrangeiro, de “ponta de
um iceberg” etc. etc. Isso é, aliás, perfeitamente
lógico.

Se a rede existe para criar uma dualidade de


critérios em defesa do terrorismo, por que não

69
haverá de usar dessa mesma dualidade em favor
de si própria?

O texto acima integra o livro 'A Felicidade Geral da


Nação: O que Restou do Imbecil – Volume VI', que
traz textos publicados pelo filósofo Olavo de
Carvalho (1947-2022) na imprensa em 2003
(primeiro ano de Lula como presidente do Brasil e
também da Guerra do Iraque). A obra póstuma é
um lançamento da Vide Editorial.

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70
Mohammad bin Salman, príncipe herdeiro e primeiro-ministro da Arábia
Saudita| Foto: EFE/Aitor Pereira

NEYMAR, CRISTIANO RONALDO

O que está por trás das


contratações milionárias da
Arábia Saudita
Por John Lucas

O mundo do esporte foi surpreendido em agosto


com a notícia da ida de Neymar para o futebol
da Arábia Saudita.

71
Aos 31 anos, o brasileiro, que em 2017 havia
trocado o Barcelona pelo Paris Saint-Germain
(PSG) no auge da carreira, foi anunciado pelo
Al-Hilal, comandado agora pelo ex-treinador
do Flamengo Jorge Jesus, como a grande estrela
do time para a temporada do campeonato
saudita.

Com um salário de € 320 milhões (cerca de R$


1,7 bilhão) por duas temporadas, Neymar
chegou ao clube saudita afirmando que sempre
quis ser um jogador global.

“Eu conquistei muito na Europa e desfrutei de


momentos especiais, mas eu sempre quis ser
um jogador global e me testar com novos
desafios e oportunidades em novos lugares”,
explicou ele durante sua apresentação.

72
Neymar seguiu afirmando que quer escrever
uma nova história no esporte e que a “Saudi Pro
League [campeonato saudita] tem uma energia
tremenda e jogadores de qualidade no
momento”.

Embora uma grave lesão durante um jogo da


seleção brasileira pelas Eliminatórias para a
Copa de 2026, em outubro, tenha tirado Neymar
dos gramados sauditas por ora, o campeonato
local conta com diversos outros nomes que
brilharam no futebol europeu recentemente.
Estão jogando nos gramados sauditas
Benzema, escolhido melhor jogador do mundo
na premiação Bola de Ouro de 2022 da revista
France Football; Sadio Mané, um dos grandes
nomes da história recente do Liverpool; N’golo
Kanté, campeão mundial com a França em 2018;
os brasileiros Roberto Firmino e Fabinho; e

73
aquela que é sua maior estrela, Cristiano
Ronaldo, um dos melhores jogadores das
últimas décadas, cinco vezes melhor do mundo
e que foi o primeiro a chegar ao futebol saudita,
no começo do ano, atraído por um contrato
multimilionário oferecido no final de 2022.

Há dois ou três anos seria difícil imaginar tais


nomes vestindo as camisas de clubes sauditas e
disputando o campeonato local, mas agora isso
se tornou comum. Inclusive, a transferência de
Neymar para o Al-Hilal foi a maior transação
feita por um clube não europeu em toda a
história. Os sauditas pagaram ao PSG cerca de €
100 milhões, entre pagamento fixo e parcelas
variáveis.
Segundo uma lista do jornal francês Le Parisien
feita no início da temporada, oito dos dez
jogadores mais bem pagos do futebol mundial

74
atuavam em solo saudita. Ao todo, somente com
os salários anuais, a Arábia Saudita deverá
gastar mais de US$ 1 bilhão.

Mas o que está por trás de tanto investimento?

A primeira resposta é o petróleo, ou melhor, o


dinheiro que ele gera. A Arábia Saudita é uma
das maiores produtoras da commodity e o
dinheiro proveniente dela alimenta o poderoso
fundo soberano do país, estimado em cerca de
US$ 620 bilhões.

Em segundo lugar, está o sportswashing, a


prática utilizada por alguns países para “lavar
sua imagem” perante a comunidade
internacional por meio do uso do esporte. Os
sauditas estão utilizando o seu fundo soberano
para investir em diversos campos, que vão da
tecnologia ao entretenimento, e o futebol, de

75
acordo com muitos analistas, tem sido adotado
pelo país nesse momento como a principal
plataforma para colocar em prática sua
mudança de imagem.

Para colocar em marcha esse objetivo, o fundo


soberano saudita adquiriu 75% de participação
em quatro dos principais clubes de futebol do
país em junho: Al-Ittihad, Al-Ahli, Al-Nassr e
Al-Hilal, os mesmos que agora ofertam rios de
dinheiro em salários para jogadores da Europa.

Os sauditas não são os primeiros árabes a


utilizar tal prática: o Catar também fez uso do
sportswashing ao sediar a Copa do Mundo em
2022. O objetivo foi utilizar o principal evento
do futebol mundial para se vender ao mundo
como um país moderno e dinâmico.

76
O Catar, assim como a Arábia Saudita, é alvo de
denúncias por sua violação dos direitos
humanos. As liberdades de expressão, religião,
associação e orientação sexual são severamente
restringidas no país. Além disso, o Catar
também tem histórico de apoio a grupos
terroristas islâmicos na região, como o Hamas e
a Irmandade Muçulmana.

Mas, para se vender ao mundo, o Catar investiu


cerca de US$ 229 bilhões (R$ 1,22 trilhão) na
organização da última Copa, o que a tornou a
mais cara da história. O país construiu e
renovou oito estádios, investiu na construção de
hotéis e infraestrutura e até mesmo de uma
nova cidade, tudo isso com o objetivo de
mostrar ao mundo que era um país
desenvolvido, inovador e acolhedor.

77
No final de outubro, a Fifa confirmou a Arábia
Saudita como sede da Copa do Mundo de 2034,
mas o reino já vinha apelando para outros
métodos dentro do esporte mais popular do
mundo, que inclui também ir além da
contratação de jogadores.

Por este motivo, os sauditas realizaram a


compra do Newcastle, clube da Inglaterra,
investiram em patrocínios em camisas de
outros times europeus com a estampa de sua
empresa de turismo, Visit Saudi, na contratação
de Lionel Messi como embaixador do turismo,
na aquisição dos direitos para realizar
competições internacionais como a Supercopa
da Espanha, que geralmente tem entre os seus
principais competidores Real Madrid e
Barcelona (talvez o maior clássico do futebol
mundial), e o Mundial de Clubes da Fifa e, mais

78
recentemente, na proposta de inserir o seu
campeão nacional na Uefa Champions League, a
principal competição europeia de clubes.

O país também investiu no futebol de base e até


permitiu a entrada de mulheres nos estádios.
Segundo informações da imprensa esportiva,
em alguns contratos assinados pelas novas
estrelas do futebol local, inclusive o de Neymar,
existem cláusulas de bônus que preveem o
pagamento aos jogadores de mais uma
“bolada” por posts nas redes sociais que
exaltem os pontos positivos do país árabe.
Apesar desse esforço, instituições
internacionais de direitos humanos como a
Human Rights Watch (HRW) e a Anistia
Internacional seguem denunciando de forma
recorrente as diversas violações que ocorrem no

79
país de Mohammed bin Salman, o príncipe
herdeiro e primeiro-ministro saudita.

Bin Salman é acusado de ser o mandante do


assassinato do jornalista saudita Jamal
Khashoggi, que desapareceu em 2018 dentro do
consulado da Arábia Saudita em Istambul, na
Turquia, aonde tinha ido buscar documentos
para se casar.

Investigações sobre o caso apontaram que ele


foi brutalmente assassinado dentro do
consulado por um esquadrão saudita, tendo sido
estrangulado e posteriormente esquartejado.
Khashoggi era um crítico do regime saudita e
escrevia matérias e artigos nos quais
denunciava as violações dos direitos humanos
no país árabe.

80
No mais recente índice de democracia do The
Economist, divulgado em 2022, a Arábia Saudita
apareceu na 150ª posição, em uma lista que
contava com 167 países.

“Nos últimos meses, as autoridades da Arábia


Saudita intensificaram sua repressão brutal à
liberdade de expressão, condenando indivíduos
a penas de prisão de dez a 45 anos
simplesmente por sua expressão pacífica
online. As autoridades também continuam a
executar pessoas por uma ampla gama de
crimes. Em um único dia no ano passado, 81
pessoas foram condenadas à morte, muitas das
quais foram julgadas em julgamentos
grosseiramente injustos”, disse em fevereiro
Stephen Cockburn, chefe de Justiça Econômica e
Social da Anistia Internacional.

81
A HRW afirmou em um comunicado que a
“Arábia Saudita gasta bilhões de dólares
hospedando grandes eventos de
entretenimento, culturais e esportivos para se
desviar do péssimo histórico de direitos
humanos do país".

Diversificação econômica?

Apesar de muitos analistas classificarem os


movimentos da Arábia Saudita no futebol como
uma clara prática de sportswashing, as
autoridades sauditas alegam que eles fazem
parte de um grande projeto chamado Visão
2030. Apresentado em 2016, o projeto nada
mais é do que um plano posto em prática por
Mohamed bin Salman para diversificar a
economia saudita, tirando o país da
dependência do petróleo.

82
O regime saudita afirma que o investimento no
setor esportivo, como o futebol, que já é uma
paixão nacional, trará diversos benefícios para o
país, que incluem o alto investimento
estrangeiro, a promoção do emprego interno e o
impulsionamento do turismo, já que muitos
estrangeiros podem se dirigir ao país para
assistir ao Mundial de Clubes ou à Supercopa da
Espanha, bem como ir a um estádio local para
assistir presencialmente a um confronto entre
Benzema e Ronaldo.

Aliado a isso, os sauditas também apontam que


o investimento no esporte em geral ajudará no
combate contra a obesidade, que vem assolando
a população. Segundo mostrou um estudo da
Organização Mundial da Saúde (OMS), a taxa de
obesidade mais que dobrou nos últimos anos na

83
Arábia Saudita, chegando atualmente a alcançar
mais de 50% da população.

Para Simon Chadwick, professor de esporte e


economia geopolítica na Skema Business School
da França, os sauditas estão tentando neste
momento “se posicionar como o centro de uma
nova ordem mundial”.

Ao Yahoo Sports, ele afirmou acreditar que, a


longo prazo, o principal objetivo da Arábia
Saudita seja a aquisição de diversas
propriedades ligadas ao esporte, visando se
posicionar como um dos principais centros
esportivos do mundo.

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84
Cena da releitura da ópera ‘O Guarani’, de Carlos Gomes, que estreou em maio.|
Foto: Divulgação/Rodrigo Duarte

GUERRA CULTURAL

Sai a meritocracia, entra a


lacração: música clássica é
tomada pelo ativismo “woke”
Por Omar Godoy

No imaginário coletivo, a música erudita ainda é


uma espécie de “reserva de excelência” do

85
mundo das artes. Afinal, o rigor que envolve a
realização de óperas e concertos, pelo menos
em tese, não dá brechas para truques,
embromações ou enganadores. Trata-se,
portanto, de um meio norteado pelo
refinamento técnico e a preservação de criações
centenárias. Ou melhor: tratava-se.

A exemplo do que acontece em quase todas as


outras dimensões da vida atual, a música
popularmente conhecida como “clássica”
também vem sendo contaminada pela cultura
do politicamente correto. E os sintomas dessa
invasão incluem a deturpação de obras em
nome da “correção histórica”, o cancelamento
de artistas assumidamente conservadores e a
proposta de abolição da meritocracia na seleção
de instrumentistas.

86
O patrulhamento, como sempre, começa com
detalhes aparentemente pequenos. Como a
revisão e substituição de palavras
“problemáticas” do ponto de vista identitário.
No ano passado, o celebrado maestro italiano
Riccardo Muti, regente da Orquestra Sinfônica
de Chicago, denunciou a pressão que recebeu
para trocar termos considerados racistas e
misóginos do libreto da ópera ‘O Baile de
Máscaras’, escrita em meados do século 19 por
seu conterrâneo Giuseppe Verdi (1813-1901) –
em cuja obra ele é especialista.

Muti se recusou a fazer as alterações, propostas


por movimentos sociais e até por integrantes da
própria orquestra. Mas foi obrigado a se
justificar para a opinião pública, como se
estivesse cometendo um ato criminoso ou, no
mínimo, de caráter duvidoso. Em entrevista ao

87
jornal italiano Corriere dela Serra, ele afirmou:
“Você não pode mudar a História. Ela deve ser
mantida em sua essência, para que as próximas
gerações possam saber. Não ajudamos os jovens
dessa forma, pelo contrário”.

Outro alvo recente dos lacradores eruditos foi a


encenação de Franco Zerifelli (1923-2019) para
‘Turandot’, a última ópera composta por
Giacomo Puccini (1858-1924). Concebida por
Zefirelli nos anos 1980, e sempre um sucesso de
bilheteria desde então, a montagem retornou ao
lendário palco do Metropolitan Opera de Nova
York em 2021 – mas, dessa vez, sem a
consagração praticamente unânime de outros
tempos.

Para críticos como Gabrielle Ferrari, a produção


– cuja história gira em torno de uma princesa

88
chinesa – é um “anacronismo”. “Ela é antiga,
cansada e extremamente problemática. Me
senti quase doente ao ver aqueles atores
brancos usando perucas ‘chinesas’. (...) A ópera
é repugnantemente racista, piorada pelo uso
consistente de um elenco embranquecido com
maquiagem amarela. E seu tratamento das
mulheres é absurdamente insultante”,
escreveu, em um texto publicado no site
especializado Parterre.

Nas universidades, também já existe um


questionamento da “música europeia branca do
período escravocrata”. O que poderia até ser
saudável, por trazer à tona produções
relevantes ainda não pesquisadas e analisadas.
No entanto, o radicalismo de quem propõe a
chamada “descolonização da música e dos
estudos musicais” tem tornado o ambiente

89
acadêmico insuportável para os que ainda se
interessam pela tradição.

É o caso do conceituado musicólogo e


historiador britânico J.P.E. Harper-Scott, que
em setembro do ano passado renunciou ao seu
cargo de professor na Royal Holloway, uma das
faculdades da Universidade de Londres. “As
universidades se tornaram ambientes
dogmáticos, em vez de críticos. E a retórica da
descolonização não admite dúvidas, nem ser
desafiada”, disse, na ocasião.

Detalhe: Harper-Scott não pode ser


classificado, nem de longe, como um homem
conservador, tampouco direitista. Muito pelo
contrário. Seus trabalhos acadêmicos
estabelecem conexões entre as técnicas de
análise musical e o pensamento de intelectuais

90
como Jacques Lacan e Theodor Adorno
(cultuados pelos progressistas), além de serem
marcados por uma crítica ao neoliberalismo.

Mesmo a Julliard, talvez a escola de artes mais


badalada dos Estados Unidos, aderiu aos
preceitos do D.E.I. (diversidade, equidade e
inclusão). A instituição, voltada para o ensino
de música, dança e dramaturgia, há pouco
tempo criou um “espaço de cura”, exclusivo
para alunos negros. “Já é hora de a brancura da
teoria musical ser examinada, criticada e
remediada”, diz um documento divulgado pelo
conservatório da entidade.

Outra iniciativa de D.E.I. envolvendo a música


erudita vem sendo desenvolvida pela Liga das
Orquestras dos EUA e a Fundação Mellon –
criada em 1969 pelos herdeiros do banqueiro,

91
político e filantropo norte-americano Andrew
W. Mellon (1855-1937). Desde 2019, as duas
instituições oferecem bolsas, no valor de U$ 75
mil (R$ 378 mil na cotação atual) cada, para
sinfônicas dispostas a participar, por um
período de três anos, de programas
administrados por consultores da área de
inclusão e diversidade.

O projeto inclui a adoção de um guia intitulado


“Práticas promissoras: ações que as orquestras
podem desenvolver para avançar em direção à
equidade”. O documento causou polêmica na
comunidade musical por não apenas tratar da
questão da desigualdade na formação dos
elencos, mas também estimular que o
repertório dos grupos seja orientado pela
consultoria.

92
Fim da audição às cegas pode representar duro
golpe na meritocracia

A grande controvérsia, no entanto, diz respeito


à proposta de abolição das audições às cegas,
muito utilizadas pelas orquestras para sele-
cionar instrumentistas e cantores. Difundida a
partir do final dos anos 1960, para evitar jul-
gamentos subjetivos e preconceituosos, a
prática foi comprovadamente responsável pela
inclusão de grupos sub-representados no
ambiente da música erudita (especialmente
mulheres e asiáticos). Os negros, porém,
seguem em menor número.

Principal defensor do fim dos “testes com


biombos”, como também são chamadas essas
avaliações, o crítico Anthony Tommasini, do
jornal The New York Times, destaca que a

93
filarmônica da cidade, por exemplo, tem apenas
um negro em suas fileiras – quando as audiên-
cias às cegas começaram por lá, em 1969, eram
dois.

Os defensores desse tipo de avaliação, por sua


vez, acreditam que sua extinção representa o
fim da meritocracia na música. A solução para
corrigir as desigualdades, segundo eles, con-
tinua sendo a educação musical em comunida-
des carentes (um expediente já adotado há
décadas e cujo investimento poderia ser maior).

“Houve discriminação no passado, mas já não


estamos na década de 1940”, disse o violinista
Joseph Striplin para o site City Journal, em uma
entrevista para uma matéria sobre o suposto
racismo no mundo da música clássica.

94
Negro e de origem pobre, ele já tocou em várias
sinfônicas norte-americanas importantes (in-
cluindo a itinerante do Metropolitan Opera, de
Nova York) e atualmente é diretor musical da
orquestra comunitária de Grosse Point, no
estado do Michigan. E garante: “As orquestras
ficariam mais do que felizes em ter mais
negros”.

Encenadores brasileiros têm apostado em


releituras engajadas de obras clássicas

Questionado sobre o modismo de “corrigir” os


textos originais de óperas tradicionais, o
maestro Leandro Oliveira – curador do instituto
Inhotim, em Minas Gerais, e autor do livro
‘Falando de Música: Oito Lições sobre Música
Clássica’ (2020) – cita as ideias do musicólogo
americano Richard Tarunskin (1945-2022) para

95
refletir acerca do assunto. De origem judia,
Tarunskin teorizou, entre outros temas, sobre a
retirada de elementos antissemitas presentes
na obra de Johann Sebastian Bach.

“As palavras têm significado, e Taruskin chama


a atenção para o fato de que elas podem, sim,
ofender parte do público. E, afinal, ele pergunta,
para quem se faz música, senão para essas
pessoas, que se movem, comovem e afetam por
aquilo que está no palco? Que interesse sádico
seria esse de, para defender um compositor
morto, ofender aqueles que, vivos, pagam pelos
ingressos e buscam conforto nas salas de
concerto?”, diz Oliveira.

O maestro, no entanto, prefere adotar uma


solução equilibrada: acrescentar palestras e
textos sobre a performance que ofereçam ao

96
espectador a contextualização das referências
ditas ofensivas. “Sempre que sou consultado,
sugiro optar pela estratégia de preservar o texto
original. Mas também proponho dar luz às
questões problemáticas, aproveitando as
circunstâncias para promover o letramento
sensível do público, e não sua anestesia”,
afirma.

O crítico musical, escritor e tradutor literário


Irineu Franco Perpétuo também defende a
permanência de termos “inadequados” nos
libretos dos clássicos. “Não vale a pena defor-
mar essas obras. Em vez de trair os textos
originais, quem está incomodado deve investir
em óperas contemporâneas, que incorporem os
temas atuais. Você não precisa ser escravo do
repertório canônico se ele não te satisfaz’’, diz o
autor de livros como ‘História Concisa da

97
Música Clássica Brasileira’ (2018) e ‘Populares e
Eruditos’ (2001).

Outro caminho, segundo Perpétuo, é “resolver”


esses problemas na encenação. Nesse sentido, o
cenário brasileiro da ópera tem se mostrado
bastante engajado, vide montagens como a de
‘O Guarani’ (de Carlos Gomes), voltada para
exaltação das causas indígena, e de ‘O
Crepúsculo dos Deuses’ (Richard Wagner), com
referências a divindades afro-brasileiras.

“Reinterpretar faz parte da natureza e da his-


tória da ópera. É o que faz de um clássico um
clássico. As pessoas podem gostar ou não dessas
recriações, mas não faz sentido deslegitimar um
trabalho por causa disso. É até uma
ingenuidade”, afirma o crítico.

98
Oliveira também recorre à essência do gênero
para comentar esse tipo de reinterpretação.
“Estou longe de achar que todo gesto artístico é
necessariamente político. Mas trazer a política
ao palco, em ópera, é uma coisa mais antiga do
que andar para frente. Basta lembrar que
Giuseppe Verdi foi nomeado senador vitalício
pelo engajamento de suas obras no projeto da
reunificação italiana, no século 19”, diz.

Questionado sobre a proposta de derrubar os


testes com biombo, o maestro acredita que a
tendência pode ser positiva. “A questão é que, a
partir de certo nível técnico, as distinções para
avaliação da alta performance, em música, se
estabelecem por parâmetros que dizem mais
respeito a gosto do que efetivamente à
proficiência. Nos termos da qualidade,

99
portanto, não há motivos para temor. O nível
alto pode ser garantido sempre”, afirma.

“As pessoas precisam entender que a música


erudita não é um santuário da qualidade, como
se pensa. Isso é uma falácia”, diz Irineo Franco
Perpétuo. Ele conta que sempre teve uma
simpatia pelos testes cegos, mas hoje em dia
prefere ouvir a opinião de instrumentistas
mulheres ou de cor negra.

Mulher e negra, a clarinetista Luciana Silva é


defensora da utilização dos biombos em pro-
cessos seletivos. “Acabar com essa modalidade
pode prejudicar nossas conquistas. Além do
mais, o maior problema das orquestras no
Brasil não é o machismo ou o racismo. É o
favorecimento, o ‘panelismo’, o ‘amiguismo’”,
afirma a instrumentista e professora, cujo

100
currículo inclui passagens por diversas orques-
tras e a fundação da Associação Brasileira de
Clarinetistas e Claronistas.

Orquestras e universidades se tornaram


ambientes inóspitos para músicos
conservadores

A perseguição e o cancelamento de maestros e


músicos conservadores ou ligado a ideologias de
direita também tem sido frequente no ambiente
das sinfônicas e, principalmente, da academia.

Em 2021, por exemplo, o pianista e compositor


chinês Bright Sheng acabou se retirando da
Universidade de Michigan, onde lecionava,
porque exibiu para os alunos o filme ‘Otelo’
(1965), baseado na obra de Shakespeare e que
traz o ator Laurence Olivier usando uma ma-
quiagem escurecida para parecer um mouro – a

101
prática, chamada de blackface, é considerada
altamente racista.

Sheng queria apenas mostrar as ligações entre a


composição musical e as peças do autor inglês,
mas sua proposta chocou o campus. E, mesmo
se desculpando publicamente, o professor foi
tão pressionado por estudantes e outros
docentes que preferiu deixar a instituição.

A lista de ocorrências semelhantes só tem cres-


cido nos EUA, berço da cultura woke. Emily
Skala, flautista principal da Orquestra Sinfônica
de Baltimore, foi demitida porque a administra-
ção discordava de seus pensamentos sobre a
epidemia da Covid-19. Taxada de negacionista,
ela ganhou o bilhete azul graças à “politica de
disciplina progressiva” do grupo, que permite

102
encerrar o contrato dos músicos caso desaprove
seu comportamento.

Outro caso de repercussão nacional envolveu o


maestro Dennis Prager, também conhecido por
atuar como radialista e colunista conservador
[você pode conferir textos dele aqui na Gazeta
do Povo]. Convidado para reger um concerto da
Orquestra Sinfônica de Santa Mônica, na Cali-
fórnia, ele foi vítima de uma campanha difama-
tória por promover opiniões supostamente
preconceituosas e intolerantes. Prager, porém,
conseguiu usar seus canais de comunicação
para reverter a situação e ganhou apoio da
sociedade e do meio musical para participar do
evento.

No Brasil, uma situação como as descritas


acima teve como protagonista a pianista

103
Tatiane Costa, de 27 anos. Em 2018, enquanto
cursava o bacharelado em Música na Univer-
sidade Estadual Paulista (Unesp), ela passou por
maus bocados quando confessou admirar o
então candidato a presidente Jair Bolsonaro. Foi
o suficiente para que alunos e professores
iniciassem uma onda de posts em redes sociais
para atacar e silenciar Tatiane.

“Na época eu nem sabia direito o que era direita


e esquerda. Mas me incluíram numa lista de
músicos neofascistas, criada para envergonhar
e expulsar as pessoas do mercado de trabalho”,
afirma a instrumentista.

O cancelamento acabou empurrando Tatiane


definitivamente para o campo conservador.
Hoje ela faz parte da ala jovem do Partido
Liberal e até pensa em se candidatar a vereadora

104
nas próximas eleições, na cidade paulista de
Sorocaba. Para ela, a era do politicamente
correto representa uma ameaça para a conti-
nuidade da música erudita – e não somente
devido ao fim da meritocracia e a pressão para
que as orquestras adotem repertórios
engajados.

“Essas pessoas estão dando um tiro no próprio


peito, porque a lacração já começou a afastar o
público fiel do gênero, que não quer saber de
engajamento político. Será que elas não veem
que, desse jeito, o meio da música clássica pode
um dia acabar?”, diz.

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105
Passageira entra no táxi- robô da Cruise em San Francisco| Foto: Divulgação
Cruise

MOBILIDADE

O futuro chegou e ele não tem


motorista: os táxis-robôs
tomam conta de San Francisco
Por Roberta Ribeiro

Desde o início de agosto, as frotas de


táxis-robôs Waymo e Cruise passaram a operar

106
24 horas, todos os dias da semana, em San
Francisco, na Califórnia. A novidade mudou a
paisagem local. Agora é comum ver carros sem
motoristas trafegando pelas famosas e
congestionadas ladeiras e vias da cidade.

A decisão fez de San Francisco a primeira


grande metrópole na qual duas frotas de
veículos que operam de forma totalmente
autônoma circulam por suas vias em período
integral. Ambas as empresas avaliam que a
aprovação servirá de impulso para a expansão
dos serviços em outras cidades nos Estados
Unidos.

A Waymo e a Cruise testam seus veículos em


San Francisco há vários anos e, em 2020,
puderam lançar uma pequena frota de carros
sem motorista. Inicialmente, os carros

107
atendiam aos pedidos com a supervisão de um
motorista, que acompanhava todo o percurso e
podia assumir o volante caso fosse necessário.

Durante o período de testes, as empresas só


podiam oferecer seus serviços entre as 22h e 6h,
a uma velocidade máxima de 48 km por hora.
Agora, além da possibilidade de operar inclusive
em horários de rush, em San Francisco e parte
do condado de San Mateo, os carros da Waymo
poderão trafegar com velocidade de até 96
Km/h.

A advogada Katherine Allen (37) começou a usar


os serviços da Waymo desde o início da fase de
testes. Ela contou ao caderno de automóveis do
jornal inglês Financial Times que, como de
costume, fez o chamado pelo aplicativo, mas se

108
surpreendeu ao ver que não havia um motorista
para supervisionar a corrida.

“Fiquei muito nervosa da primeira vez, mas não


tanto a ponto de não querer aceitar [a corrida].
Eu também estava animada", disse ela. “Du-
rante os primeiros dois terços da viagem, talvez
cerca de 20 minutos, eu estava surtando. Mas,
de repente, parecia normal, o que é estranho,
porque não era normal!”

Como é uma corrida no táxi-robô de San


Francisco

Outros passageiros tiveram uma experiência


menos traumática e até divertida. Guy Scriven,
editor de tecnologia da revista inglesa The
Economist, relatou em tempo real sua
experiência com um táxi-robô da Waymo para

109
um podcast da revista chamado The
Intelligence.

“Estamos em Noe Valley, que é um bairro


ensolarado e familiar em San Francisco. Eu
preciso ir à farmácia, preciso comprar um pouco
de leite e quero ver como é fazer suas tarefas em
um carro que dirige sozinho”, disse.

Scriven viu o carro se aproximar do local em que


estava, depois de parar atrás de um ônibus. “Ele
tem um monte de sensores e detectores e, bem
em cima de tudo isso, tem um grande cone que
está piscando minhas iniciais nesse momento, o
que na verdade eu acho muito legal. Está escrito
GS em letras grandes”, relatou.

Após pressionar o botão para destravar as


portas no aplicativo em seu celular, o editor,
que estava acompanhado de sua produtora,

110
Maggie, foi saudado pela inteligência artificial
do computador de bordo do carro: “Olá! Só nos
dê um minuto para cobrir algumas dicas da
corrida.”

O editor descreveu como foi possível ver o


volante girando e se ajustando à medida que
avançavam. O carro parou quando alguns
pedestres se aproximaram e diminuiu a
velocidade quando um outro veículo, saindo do
supermercado, adentrou a via.

“Basicamente, parece ser um motorista


bastante cauteloso até agora, ele parou bem
cedo quando viu qualquer coisa, agora estamos
subindo mais algumas colinas parando aqui e
ali”, afirmou.

Um “ponto alto” da corrida foi quando o


táxi-robô parou no meio de uma faixa de

111
pedestres, com várias pessoas passando pelo
carro. “Acho que se você fizesse isso em uma
prova direção, seria reprovado”, disse Scriven.

Em outro momento do percurso, os passageiros


se surpreenderam ao passar por outro
táxi-robô, mas da empresa Cruise. Ao chegar ao
seu destino, o carro parou embaixo de uma
placa em que estava escrito que era proibido
estacionar, a não ser por uns poucos minutos
para carga e descarga. Os passageiros desceram
rapidamente, para não extrapolar o limite de
tempo do local.

Outros relatos também dão o testemunho de


que os carros dirigem de forma calma. O
repórter Tripp Mickle, do jornal The New York
Times, recebeu uma explicação mais detalhada
ao adentrar o veículo.

112
“Olá Tripp. Esta experiência pode parecer fu-
turista", disse o carro. "Por favor, não toque no
volante ou nos pedais durante o trajeto. Para
qualquer dúvida, você pode encontrar infor-
mações no aplicativo Waymo. Por exemplo,
como mantemos nossos carros seguros e
limpos."

Ainda com os avisos, o jornalista tentou segurar


o volante em determinada parte do percurso.
Mas não obteve sucesso, já que o carro seguiu
seu caminho como se nada estivesse
acontecendo.

Prós e contras dos táxis autônomos

A frota da Waymo, controlada pela Alphabet,


dona do Google, é constituída por 250 veículos
brancos da marca Jaguar, com um sensor que se
assemelha a uma sirene, com a logomarca da

113
empresa, um W azul esverdeado (ou
vice-versa), instalado em seu teto.

Os carros da Cruise, de propriedade da General


Motors, possuem a mesma marca distintiva,
embora o sensor seja composto por duas sirenes
acompanhadas por dispositivos que parecem
câmeras de segurança. Todo esse aparato lhe
confere um visual bastante menos clean que o
da concorrente.

A autorização para a plena operação foi alvo de


intensos debates, o que resultou em duas re-
marcações da data de votação. Algumas ins-
tituições, como o Corpo de Bombeiros da ci-
dade, estavam céticas quanto à plena imple-
mentação do serviço – o chefe da corporação
chegou a afirmar que os carros “não estavam
prontos”.

114
Mas, mesmo diante dos atrasos e alertas, os
argumentos em favor do “avanço tecnológico”
venceram. Entidades que apoiam pessoas com
deficiência votaram a favor. Em sua página, por
exemplo, a Cruise relata como está adaptando
seus carros para atender cadeirantes com todo o
conforto.

Entidades como a Blinded Veterans Association


[Associação dos Veteranos Cegos, em livre
tradução], a Epilepsy Foundation of Northern
California [Fundação de Epilepsia do Norte da
Califórnia] e o Curry Senior Center [Centro
Sênior Curry, organização de assistência a
idosos], fizeram uma carta aberta em favor da
aprovação plena dos serviços.

“Eles aumentam o acesso ao transporte para os


membros das comunidades que representamos.

115
Muitas pessoas ainda acham muito difícil
chegar onde precisam com segurança”, dizia a
carta.

Entidades afirmam que os táxis-robôs também


são mais inclusivos para cegos, por exemplo.
Segundo seus representantes, não é raro que
esses usuários tenham seus chamados cance-
lados por veículos do Uber, por exemplo, cujos
motoristas se recusam a transportar cães-guia,
o que não ocorre com veículos autônomos.

Por outro lado, também há críticas em relação à


acessibilidade dos veículos. Usuários cadeiran-
tes afirmam que as empresas ainda não os
tornaram totalmente acessíveis e que falta
estabelecer padrões claros de acessibilidade.

Outro ponto levantado é que, muitas vezes, os


táxis-robôs não recolhem ou deixam os

116
passageiros nas calçadas ou, até mesmo,
estacionam longe dos locais de destino, o que
dificulta o acesso das pessoas com deficiência.

“Não deveríamos deixar passar [a aprovação


para extensão dos serviços] só porque as em-
presas em questão argumentam que algum dia
será bom para a comunidade de deficientes.
Ainda não chegou”, disse Ian Smith, que é
cadeirante, ao jornal inglês The Guardian.

Falta de restrições e de limites para as


chamadas noturnas

Um dos pontos que as empresas ressaltam para


defender seus serviços é a segurança para via-
gens noturnas. Segundo a Cruise, dirigir à noite
é mais perigoso que durante o dia – 50% das
mortes nas estradas ocorrem à noite, com

117
apenas 25% do total de quilômetros percorridos
nesse horário.

A empresa afirma que, durante a pandemia da


Covid-19, a insegurança alimentar disparou e
que sua frota foi utilizada para a entrega notur-
na de 2,3 milhões de refeições para moradores
necessitados de San Francisco.

Em março deste ano, a empresa anunciou um


programa piloto que oferece caronas gratuitas
para trabalhadores noturnos de San Francisco.
Na cidade, como ocorre em tantas metrópoles
no Brasil e em outros países, as opções de
transporte noturno são escassas. Além disso,
motoristas de aplicativos e de táxis também
enfrentam riscos mais altos para a sua
segurança.

118
Os táxis autônomos não sofrem com esse tipo
de questão. Podem buscar passageiros em re-
giões remotas ou com pouco acesso a transpor-
tes públicos e outras formas de locomoção. E,
por não terem condutores, estão sujeitos a ris-
cos reduzidos de assaltos. Mas a falta de condu-
tores e de alguém que iniba os comportamentos
dos passageiros, aparentemente, tem levantado
outras questões. Há diversos relatos de pessoas
fazendo sexo em veículos autônomos da Cruise
durante as viagens noturnas. O uso de drogas
também é outra possibilidade.

Tanto a Cruise quanto a Waymo afirmam que


mantém gravações em vídeo das viagens e que
podem utilizá-las para solucionar questões
como limpeza, segurança, batidas e itens
perdidos – e, talvez, denúncias contra práticas
sexuais e uso de drogas em seus veículos.

119
Outro desdobramento que envolve as gravações
de vídeo dos carros autônomos também diz
respeito à segurança. A polícia de San Francisco
já requisitou filmagens dos carros da Waymo e
da Cruise para ajudar a solucionar crimes,
segundo reportado pela Bloomberg.

Segurança e avanços na condução

Uma semana após o início da ampliação dos


serviços, uma série de incidentes fizeram com
que, em 18 de agosto, a autoridade local esti-
pulasse a diminuição em 50% dos carros da
Cruise em operação em San Francisco, que
ficaram restritos a 50 veículos durante o dia e
150 à noite.

Em um deles, um de seus táxis autônomos coli-


diu com um caminhão do corpo de bombeiros
que atendia a uma emergência. Segundo o

120
Departamento de Veículos Motorizados da
Califórnia, os carros autônomos teriam
interferido no atendimento a cerca de 40
situações de emergência ao longo de 2023.
Também foram reportadas 70 colisões.

Em circunstâncias mais surpreendentes, um


dos táxis-robôs ficou atolado no concreto ainda
úmido. Também foi reportado bloqueio no
trânsito de um bairro movimentado da cidade,
causado pela aglomeração de veículos da Cruise
no local.

Um táxi-robô da empresa também teria atrope-


lado e matado um cachorrinho. Há alguns anos,
também houve relato em que um carro autôno-
mo da Waymo, que contava com um motorista
de segurança operando o volante, atropelou um
pedestre que precisou ser levado ao hospital.

121
A dificuldade dos robôs para interpretar as
condições do trânsito são a causa de certas
paradas imprevistas que condutores humanos
resolvem de forma mais rápida. As empresas,
no entanto, dizem que, além de serem raras,
essas paradas são o modo mais seguro de lidar
com circunstâncias incomuns.

A segurança é uma das prioridades defendidas


pelas empresas. Segundo o site da Cruise, em
geral, a porcentagem de colisões de seus carros
é 54% inferior à de veículos dirigidos por hu-
manos. Nas colisões que envolveram os carros
da empresa, o risco de lesões graves foi 73%
menor.

Ambas as companhias afirmam que seus servi-


ços ajudam a reduzir lesões e mortes no trânsito
nos locais em que atuam. Em 2022, quase 46 mil

122
pessoas morreram em razão de acidentes de
trânsito nos EUA, um aumento de 22% desde
2019.

Em todo mundo, 1,3 milhão de pessoas morrem


em acidentes de trânsito anualmente, ou 3,7 mil
por dia. Entre 2015-2030, as mortes e lesões
causadas no trânsito geraram um impacto de
US$ 1,8 bilhão [R$ 8,77 bilhões] para a
economia mundial.

Um estudo conduzido pela Rand Corporation


[um instituto de pesquisa e desenvolvimento
dos EUA em vários campos e indústrias] indica
que, se a condução dos veículos autônomos for
10% mais segura que a do motorista humano
médio, ao longo de 35 anos, 600 mil mortes
poderiam ser evitadas nos EUA.

123
Mapeamento minucioso e aprendizagem em
linha

A fim de garantir a segurança e precisão dos


serviços que oferecem, as empresas contam
com milhões de horas de testes – o equivalente,
para humanos, a décadas de treinamento para
condução de veículos.

A essa expertise, se somam bilhões de horas de


simulações feitas em seus sistemas de condução
automática. Para realizar essas simulações e
também para guiar os carros autônomos em
suas corridas no dia a dia, ambas as empresas
contam com dados detalhados dos locais em
que operam.

Mapas digitais que chegam a distinguir placas,


plantas e sinalizações, bem como construções e
coordenadas abastecem as bases de dados dos

124
sistemas de inteligência artificial usados para a
localização e deslocamento dos veículos
autônomos.

Além disso, os sistemas ainda contam com


aprendizagem compartilhada, em que as
atualizações e escolhas feitas por cada veículo
são automaticamente repassadas para toda a
frota. “Nossos carros têm uma capacidade única
de aprender com eventos rodoviários em toda a
frota, aprimorando suas capacidades em
velocidades incríveis. Este ritmo rápido de
aprendizagem é um dos principais fatores que
permitiu a nossa recente expansão em várias
grandes cidades dos EUA”, afirma a Waymo.

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125
Os Centros de Controle de Doenças (CDC, na sigla em inglês) divulgaram dados
no início deste ano, revelando que a saúde mental diminuiu drasticamente entre
as meninas, especialmente as progressistas| Foto: Bigstock

ARTIGO

A paralisia moral por trás da


depressão na adolescência
Por Nathaniel Peters, Public Discourse

Por que as garotas progressistas estão tão de-


primidas? Muitos estão fazendo essa pergunta

126
depois que os Centros de Controle de Doenças
(CDC, na sigla em inglês) divulgaram dados no
início deste ano, revelando que a saúde mental
diminuiu drasticamente entre as meninas, es-
pecialmente as progressistas. As explicações
mais populares têm sido psicológicas e tecno-
lógicas: os jovens passam muito tempo nas re-
des sociais, o que é tóxico para sua saúde men-
tal. Além disso, seus professores e pais os enco-
rajaram a ver o mundo de uma forma cognitiva-
mente distorcida ou doentia, distorcendo sua
psicologia e privando-os da sensação de que
controlam suas próprias vidas.

Essas explicações podem ser válidas, mas dei-


xam escapar algo importante: essa perda do
arbítrio não é apenas psicológica, mas filosó-
fica. Vem de não ensinar os jovens a pensar em
categorias morais práticas de julgamento e

127
ação. Isso os deixa mal equipados para lidar com
as decisões que enfrentam, fazendo com que
muitos se perguntem como a vida pode ser bem
vivida e se vale a pena viver.

O estado da saúde mental do adolescente

Em fevereiro passado, o CDC divulgou os dados


mais recentes em sua pesquisa bienal de com-
portamento de risco para jovens. Como obser-
vou o Wall Street Journal, talvez as estatísticas
mais notáveis ​sejam as de que 57% das meninas
do ensino médio “relataram experimentar sen-
timentos persistentes de tristeza ou desespe-
rança no ano passado”, em comparação com
36% em 2011, e que 30% consideraram seria-
mente tentar suicídio - um aumento de mais de
10 por cento em dez anos. Para os homens
jovens, essas taxas foram mais baixas e quase

128
não aumentaram, se é que aumentaram, com
29% relatando tristeza persistente, acima dos
21%, e 14% relatando tentativas de suicídio,
acima dos 13%.

Nas semanas que se seguiram ao relatório do


CDC, o psicólogo Jonathan Haidt e outros exa-
minaram trabalhos desenvolvidos, observando
resultados de saúde mental, gênero e afiliação
política. O primeiro estudo que eles analisaram,
do analista de políticas Zach Goldberg, desco-
briu que os diagnósticos de saúde mental são
mais prevalentes em mulheres do que em ho-
mens, nos jovens em comparação aos idosos e
nos progressistas em comparação aos conser-
vadores – e que esses três interagem juntos. De
fato, a maioria das jovens mulheres liberais re-
latou ter sido clinicamente diagnosticada com
uma condição de saúde mental.

129
O segundo constatou que antes de 2012 havia
poucas diferenças no relato de depressão entre
homens e mulheres e apenas uma pequena di-
ferença entre progressistas e conservadores.
Depois de 2012, a taxa de depressão entre as
meninas progressistas começou a subir e subiu
mais de todas as categorias, superando os ho-
mens progressistas e conservadores de ambas
as faixas. Michelle Goldberg, do New York
Times, apontou 2012 como o ano em que o
Facebook adquiriu o Instagram e as selfies se
tornaram uma prática comum. O livro Gerações,
de Jean Twenge, apoia esse diagnóstico,
relatando que as meninas progressistas são as
mais propensas a dizer que passam cinco ou
mais horas por dia nas redes sociais. Mais uma
razão, conclui Haidt, para colocar a culpa na
mídia social por deixar essas meninas mais
deprimidas.

130
Os jornalistas Matt Yglesias e Jill Filipovic estão
inclinados a uma explicação mais psicológica.
Quando os pacientes de saúde mental catastro-
fizam ou se fixam no resultado mais negativo
possível quando é altamente improvável, os
psicólogos os ajudam a separar suas reações
internas das ações externas dos outros, para
que seu estado mental se alinhe melhor com a
realidade. Yglesias se preocupa com o fato de
que “líderes institucionais progressistas ensi-
naram especificamente aos jovens progressistas
que a catastrofização é uma boa maneira de
conseguir o que desejam”. É exatamente contra
isso que os profissionais de saúde mental
desaconselham. Filipovic elabora:

"Estou cada vez mais convencido de que há


consequências tremendamente negativas a
longo prazo, especialmente para os jovens,

131
provenientes dessa confiança na linguagem do
mal e das acusações de que as coisas que consi-
deramos ofensivas são 'profundamente proble-
máticas' ou mesmo violentas. Quase tudo que os
pesquisadores entendem sobre resiliência e
bem-estar mental sugere que as pessoas que se
sentem os principais arquitetos de suas pró-
prias vidas - para misturar metáforas, que co-
mandam seu próprio navio, não que estão
simplesmente sendo jogadas de um lado para o
outro por uma força incontrolável oceano -
estão muito melhores do que pessoas cuja
posição padrão é vitimização, mágoa e uma
sensação de que a vida simplesmente acontece
com eles e eles não têm controle sobre sua
resposta."

Como observa Haidt, décadas de pesquisa res-


paldam as afirmações de Filipovic: pessoas com

132
um locus de controle interno (o sentimento de
ação) são mais felizes e produtivas, enquanto
aquelas com um locus de controle externo (o
sentimento de que os outros determinam o
curso de sua vida) são mais passivos e deprimi-
dos. Com base em suas pesquisas, Haidt e
Goldberg argumentam que a Geração Z se tor-
nou mais externa em seu locus de controle, e os
progressistas da Geração Z mais autodeprecia-
tivos. Para eles, os principais culpados são as
dinâmicas culturais tóxicas na internet e nas
instituições, principalmente escolas e
universidades.

Ensinando Liberdade Moral

O diagnóstico de Haidt et al. sobre o que exter-


nalizou o locus de controle da Geração Z é per-
suasivo. Mas deixa de lado um problema filo-

133
sófico mais fundamental: os jovens são infelizes
porque pais e professores não os ensinaram a
pensar e agir de maneira a torná-los felizes.
Não é só que muitos foram ensinados que as
coisas erradas os deixam felizes e que sua de-
liberação leva a escolhas que os tornam infe-
lizes - embora isso aconteça em muitos casos.
Com muita frequência, eles não receberam
ferramentas suficientes para pensar e agir
moralmente.

Vemos esse tipo de aluno no início de Why We


Are Restless [Por que somos inquietos, em
tradução livre], de Benjamin e Jenna Silber
Storey — a jovem bem-sucedida que precisa
decidir o que fazer da vida após a formatura ou
o primeiro emprego. O mundo é sua ostra -
talvez mais do que nunca para mulheres como
ela - mas ela se pergunta como é uma pérola e

134
onde encontrar uma. Nas palavras dos Storeys,
seus “anos de progresso constante culminaram
em uma estranha e inquieta paralisia”.

Essa paralisia se torna aparente em diferentes


estágios do processo de tomada de decisão. Às
vezes, os alunos têm um objetivo claro em
mente, mas não sabem qual caminho os levará
até lá - qual dos três estágios eles devem fazer
ao buscar sua graduação em ciência da compu-
tação, por exemplo. Mas a verdadeira crise sur-
ge quando os alunos são forçados a determinar
quais fins seguir. Eles abandonam uma carreira
de maior prestígio para retornar à sua cidade
natal? Devem seguir a vida intelectual, com
todos os problemas da academia, ou seguir
carreiras mais lucrativas, mas menos gratifi-
cantes intelectualmente? A quem eles devem
amar e como devem encontrar essa pessoa? Ter

135
filhos lhes dará alegria ou os esmagará - ou,
mais realisticamente, ambos?

Para simplificar, muitos alunos não têm noção


do que torna algo bom, quais coisas contribuem
para uma vida boa e quais coisas boas importam
mais do que outras quando somos forçados a
escolher entre elas. Eles carecem disso porque
seus pais e professores foram muito cuidadosos
em não lhes dar ferramentas e categorias para
fazer julgamentos morais sobre bens, ou
dizer-lhes que algumas coisas são bens. Quando
o sociólogo Christian Smith e seus coautores
falaram com adultos emergentes para seu
estudo de 2011, Lost in Transition [Perdido na
Transição, em tradução livre], 34% dos
entrevistados “disseram que simplesmente não
sabiam o que torna algo moralmente certo ou
errado. Eles não tinham ideia sobre a base da

136
moralidade.” Eles observam ainda que muitos
“desses entrevistados perplexos não conse-
guiam nem entender nossas perguntas sobre
esse ponto. Não importa quantas maneiras
diferentes nós colocamos... nossas próprias
perguntas sobre as fontes da moralidade não
faziam ou não podiam fazer sentido para eles”.

Alguns anos atrás, em um artigo sobre educação


e a restauração da agência moral, o editor-chefe
do Public Discourse, RJ Snell, capturou como
essa perda de vocabulário moral levou ao mes-
mo locus de controle externalizado que
Jonathan Haidt lamenta. Snell lembra que certa
vez uma “aluna me disse que lutava para enten-
der as perguntas sobre o propósito da vida que
eu fazia, porque seus pais, escolas, médicos e
terapeutas haviam lhe dado amplos meios para
não lutar com o drama existencial de ser um

137
agente moral livre... Ela sabia, de forma avas-
saladora, que tudo dependia dela quando se tra-
tava de sucesso, mas se sentia resignada a uma
espécie de determinismo quando se tratava do
objetivo da vida, despreparada para deliberar ou
escolher. Ela não só não sabia o que fazer, mas
foi treinada para não entender a pergunta.”

A solução, sugere Snell, não é entregar aos alu-


nos uma folha de dicas simplificada com
“Deus” ou “família” no topo e uma classifica-
ção dos bens da vida abaixo, ou dar-lhes a
Bíblia, a Summa ou a Ética a Nicômaco como
manuais seguros para uma vida feliz. Em vez
disso, professores, pais e educadores não devem
ter medo de propor relatos oficiais da vida
humana e seus bens, e encorajar os alunos a
julgar e decidir como atores morais livres: “A
autoridade deve ajudar os alunos a recuperar o

138
espaço moral, o arbítrio e a capacidade de tomar
uma posição, agir, ser responsável de maneira
razoável e fazê-lo em toda a gama de atos hu-
manos e pessoais – não apenas como produto-
res ou graduados credenciados, mas como pes-
soas”. Os alunos não precisam de doutrinação;
eles precisam de uma educação moralmente
séria.

Doutrinação em Moralidade Social

Na verdade, a doutrinação é frequentemente a


forma como estamos educando nossos alunos.
Aos jovens não é dado um relativismo puro, mas
uma espécie de absolutismo moral seletivo.
Pode não haver um código moral claro para
buscar uma vida boa, mas existe um hipermo-
ralismo para buscar uma vida justa ou correta.
Este código é altamente crítico, com

139
conhecimento forte e claro do certo e do errado,
do santo e do pecador. Faz julgamentos totali-
zantes, capitaliza o negativo, denuncia falhas
inerentes e dá pouca absolvição além de atos
contínuos de abjeção e arrependimento. Suas
categorias e critérios são evidentes; somente
alguém preconceituoso questionaria a dinâmica
de privilégio que envolve raça, sexualidade e
outros marcadores de localização social.

Julgamentos socialmente morais não são uma


questão de pensar por si mesmo e deliberar de
acordo com princípios, mas internalizar um
código de elogios e opróbrios e aplicá-lo aos
outros. O cenário em que essa atividade moral
ocorre de forma mais aguda é a mídia social,
cujos usuários mais frequentes são os aplica-
dores mais dedicados desse código. E como
observou a crítica cultural Kat Rosenfield,

140
grande parte de nossa moralidade pública é es-
truturada em torno de cultivar e remediar a
autoaversão feminina. Portanto, não é surpresa
que as garotas progressistas estejam supor-
tando o peso da miséria produzida por essa
exigente moralidade política.

Então, dando um passo para trás, podemos per-


guntar novamente: por que as jovens progres-
sistas são infelizes? A mídia social e a má psico-
logia desempenham um papel, sem dúvida. Mas
o mesmo acontece com nossa forma atual de
educar os jovens, que os inculca contra a delibe-
ração moral sobre escolhas pessoais e questões
sociais. Afinal, a psicologia e a filosofia sólidas
compartilham o mesmo objetivo: ajudar-nos a
perceber a nós mesmos e ao mundo ao nosso
redor com precisão e a agir para o nosso flores-
cimento e o dos outros. Para ajudar os jovens a

141
fazer isso, devemos eliminar políticas e estru-
turas em nossas instituições que encorajam
distorções cognitivas e protegem os jovens
online. A rejeição da Universidade de Cornell aos
avisos de gatilho e a Lei de Regulamentação de
Mídia Social de Utah servem como exemplos
concretos disso. Mas devemos ir além disso. Os
jovens — homens e mulheres, conservadores e
progressistas — precisam ver a deliberação
moral praticada e aprender a praticá-la eles
mesmos. Eles precisam de adultos para
ensiná-los que vale a pena viver a vida e que
devem considerar vivê-la de maneiras
específicas.

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142
| Foto: Jonathan Campos/Arquivo/Gazeta do Povo

ESTUDO

Aprender a aprender
Por Samia Marsili

“Aprender a aprender” tornou-se uma expres-


são comum nas discussões pedagógicas moder-
nas, e no Brasil especialmente após o movi-
mento da Escola Nova e a introdução de

143
concepções construtivistas da educação. Atual-
mente, ter como objetivo que a criança adquira
essa habilidade ou competência é ponto pacífico
de quase todos os projetos pedagógicos, públi-
cos e privados. Trata-se, grosso modo, de fo-
mentar no aluno a capacidade de buscar fontes
de informação, e de articular e abalançar essas
informações sozinho, “construindo” o seu
próprio conhecimento, tornando-se assim o
agente principal e o centro de seu próprio
aprendizado.

Haveria muito o que pensar e o que dizer sobre


esta ideia, que, a depender do ponto de vista
desde o qual se a aborda, é extremamente
verdadeira e essencial, ou enganadora e trai-
çoeira. Interessa-me, aqui, tomá-la por seu
lado verdadeiro: deve-se de fato ensinar as
crianças a buscarem e absorverem informações

144
de maneira inteligente, de modo a sintetizar,
em si mesmas, um conhecimento verdadeiro.
Mas os defensores do “aprender a aprender”
nem sempre se recordam de que, para que a
criança aprenda a aprender, é preciso que
alguém as ensine a aprender, com exemplo e
método, conduzindo-a, ainda um pouco às
tontas, por processos dos quais ela vai, aos
poucos, tomar consciência para enfim dominar.
Isto é, ensinar a aprender significa, até boa
parte dos anos de vida da criança, ensinar a
estudar.

Estudar, para as crianças, é uma obrigação


grave, assim como trabalhar é para nós,
adultos, seja qual for o tipo de trabalho: desde
um emprego formal convencional, trabalho
autônomo, de oferta de serviço ou produto, até
o árduo trabalho de cuidar da casa e educar os

145
filhos no lar, tudo isso é, em cada uma das cir-
cunstâncias e para todos os estados de vida,
obrigação igualmente grave a ser cumprida, e
cumprida com esmero. O cumprimento do dever
do trabalho é, para o adulto, ocasião de fortale-
cimento do caráter, de dignificação, e, para os
religiosos, até mesmo de santificação. No caso
das crianças, a formação do caráter passa pelo
cumprimento esmerado do dever do estudo.
“Mas por quê?” – se você não perguntou agora,
talvez se perguntasse quando era aluno; e, se
não, espere que alguma criança ainda vai lhe
perguntar: “Por que devo estudar estas coisas
chatas, se não vou usar para nada?” Nós pode-
ríamos dar a essa pergunta, e às crianças, al-
guma razão, se fôssemos fazer uma crítica da
escola ou levar em conta a qualidade do que se
vem ensinando nela, mas também não é este o
meu ponto aqui, ao contrário.

146
Quero mostrar como essa visão sobre o estudo –
sobre o estudo de verdade – é limitada, é nada
mais que utilitarista, o que, no caso, quer dizer
materialista: estuda-se apenas na medida em
que isso tiver a ver com a função que se preten-
de desempenhar na sociedade, que se reduz, no
mais das vezes, a conseguir um bom emprego,
para assim ganhar mais dinheiro – e este é o
topo, o suprassumo do sucesso e do que se es-
pera na vida. Esse aspecto também é verdadeiro,
é claro: o conhecimento tem a sua utilidade
prática, e o conhecimento técnico e especializa-
do prepara a pessoa para desempenhar funções
de trabalho, que, além de dar dinheiro, servem à
sociedade, e são boas. Mas não podemos reduzir
o estudo a este único aspecto, pois isso privaria
especialmente as crianças dos motivos e dos
benefícios mais profundos do desenvolvimento
desse hábito. E, antes de transmitir aos nossos

147
filhos uma visão mais ampla sobre o estudo e o
conhecimento, talvez nós mesmos precisemos
passar a vê-los desse modo.

Devemos ter em conta, em primeiro lugar, que


estudar é um exercício para aguçar a inteligên-
cia, seja qual for a matéria do estudo. Mesmo
que seja um tópico secundário, ou uma matéria
pela qual não temos uma inclinação natural do
interesse: sendo algo verdadeiro, que nos esfor-
çamos por compreender, o ato de inteligir será
certamente recompensado, pois nossa alma
opera fazendo interconexões, analogias e com-
parações entre tudo aquilo que conhecemos.
Portanto, compreender uma coisa, seja ela qual
for, nos capacita para compreender melhor
qualquer outra, e assim, pelo estudo, a criança
pode melhorar em tudo, até mesmo nas tarefas
mais banais, e em zonas insuspeitas da vida,

148
como os relacionamentos pessoais. Passamos a
enxergar relações entre coisas que antes não
víamos, e a formar, dentro de nós, um esboço
mais claro da unidade do mundo. Estudar Geo-
grafia, por exemplo, pode potencializar nossa
inteligência de modo a que consigamos “ma-
pear” várias outras regiões do ser; as mate-
máticas imprimem em nós a forma das pro-
porções do mundo, e assim por diante. Ao
estudarmos as constantes e os processos que se
repetem em vários níveis da realidade, nós
conhecemos o mundo, não só os seus dados
soltos, mas em sua essência, em sua natureza.

Em segundo lugar, por meio do estudo nós nos


tornamos capazes de conhecer as origens de
nossas próprias ideias – que, ficamos sabendo,
talvez não sejam tão “nossas” nem tão
“próprias” assim – e começamos a tomar

149
consciência da maneira como algumas ideias
vêm parar dentro da nossa cabeça, e se insinuar
como se fossem nossas. Isso é pré-requisito
para termos uma “consciência crítica” em
algum momento, sentido pleno da expressão.
Por meio do estudo, podemos viver processos
semelhantes com relação também às nossas
ações, aos nossos hábitos, àquilo que conside-
ramos normal e esperado, e ter a mente aberta
para novas possibilidades, melhores e piores, de
outros tempos e lugares, que antes não nos
ocorriam. Podemos tomar conhecimento das
forças que regem a nossa sociedade, e a nossa
vida como um todo. Assim podemos distinguir
melhor quem somos e quem queremos ser;
enfim, assim conhecemos a nós mesmos, e o
mundo em nós, e nós no mundo.

150
Além disso, em terceiro lugar, o estudo nos ca-
pacita para melhor compreender o outro, uma
vez que valem para os outros, a depender da
situação, algo do conhecimento que adquirimos
sobre o mundo, para os homens de outros tem-
pos e lugares e todos os muito diferentes de nós,
e muito do conhecimento que tivermos obtido
sobre nós próprios, para compreendermos, com
compaixão, os que forem mais semelhantes a
nós. De um modo ou de outro, a prática do
estudo nos capacita, indiretamente, para amar.

Estes três prismas sobre o hábito do estudo po-


dem iluminar, ao menos para nós, se não ainda
para os nossos filhos, o valor elevado e a pro-
fundidade que ele tem, transcendendo – e, des-
se modo, incluindo – as informações e habili-
dades técnicas mais imediatas. Na verdade,
todas as nossas habilidades, não somente as

151
manuais, mas também as intelectuais, nos são
dadas para que as coloquemos a serviço dos ou-
tros, e para isso nós precisamos conhecê-las e
desenvolvê-las. Ora, é por meio do estudo e do
trabalho que isso se dá. Essa é a mais honesta
explicação, para os alunos relutantes, do porquê
de precisarem estudar, e que tipo de recom-
pensa receberão pelo esforço nessa prática. Eles
precisam estudar Matemática, e Geografia, e
Biologia, e História etc. porque, independente-
mente do que venham a fazer no futuro, isso
fará deles pessoas mais inteligentes, e ser mais
inteligente, além de ser benéfico e útil para
qualquer um, é o dever que eles têm em sua
grave obrigação de estudar.

A prática do estudo, sobre a matéria que for, é


essencialmente um exercício de atenção: é o
sutil aprendizado de como modular a concen-

152
tração, o foco da atenção e a livre associação de
ideias, a correlação com outros assuntos e me-
mórias. Nesse sentido, não ter facilidade natural
ou preferência por um assunto – geometria, por
exemplo – não atrapalha em nada o desenvolvi-
mento da atenção por meio da resolução de um
problema ou o estudo de uma demonstração. Ao
contrário: essa dificuldade vira quase um apoio,
uma circunstância favorável. E mesmo que esse
exercício não chegue a um resultado exterior
bom, a boas notas, ele não ficará sem recom-
pensa interior, pois serviu de meio para um
ganho em outro plano, e o fruto desse trabalho
poderá ser colhido só muito mais tarde.

Quem nunca viu um pai ou uma mãe dizendo


que o filho é, na verdade, inteligente, que tem
facilidade para compreender as coisas e inclu-
sive para focar a atenção, desde que sejam

153
coisas das quais ele gosta? Sim, pois quando a
coisa nos interessa ela logo chama a nossa
atenção, e fica fácil focar. Uma criança vidrada
na televisão ou no videogame está hiperfocada.
Só que ter hiperfoco somente nas coisas de que
gostamos, e nos momentos em que queremos,
não faz de nós senhores da nossa atenção, nem
mais inteligentes, nem seres humanos mais
retos, de melhor caráter, com vontade forte.
Nós precisamos exercitar o foco da nossa
atenção e a operação da nossa inteligência
independentemente do nosso interesse espon-
tâneo – servindo-nos dele ao nosso favor, é
claro, mas não servindo-o apenas. O nome
dessa virtude da atenção, e que é justamente a
virtude que nós devemos fomentar nos nossos
filhos por meio do estudo, é, segundo os an-
tigos, studiositas, estudiosidade. O vício que lhe
é oposto é a curiositas, a curiosidade, no sentido

154
de uma vã curiosidade que, assim como está a
gula para a alimentação, busque só o que é
gostoso e nos momentos e quantidades erradas.

Essa analogia entre a atenção, a memória e a


inteligência, de um lado, e o comer, o estômago
e a digestão, de outro, também é muito tradi-
cional, e muitos livros foram escritos a respeito.
Os monges medievais, por exemplo, compre-
endiam a leitura e a memorização das palavras
como um engolir; a rememoração e a meditação
das palavras decoradas como o ruminar de um
bovino; e, enfim, a contemplação da verdade
que elas encerram como a verdadeira nutrição
da alma. E São Tomás de Aquino, o grande
filósofo medieval, quando vai explicar o que é a
estudiosidade, classifica-a como uma espe-
cificação, como uma “virtude anexa” da
temperança, justamente a virtude relacionada

155
ao equilíbrio e à moderação no comer e no
beber, e nos demais apetites. Leiamos aqui, na
Suma Teológica, IIa IIae, questão 166, artigo 2,
solução:

“Como dissemos, o objeto da temperança é mo-


derar o movimento do apetite, a fim de não bus-
car com excesso o que é naturalmente desejado.
Ora, assim como o homem naturalmente deseja
os prazeres da mesa e do sexo, pela natureza do
seu corpo, do mesmo modo a sua alma natural-
mente deseja conhecer; por isso, diz o Filósofo
[Aristóteles, no livro Metafísica] que todos os
homens naturalmente desejam saber. Ora, a
moderação desse apetite é o objeto da virtude da
estudiosidade. Donde a consequência que a
estudiosidade é parte potencial da temperança
como virtude secundária anexa à principal.”

156
O esforço, e especialmente esse sutil esforço de
atenção, é sempre recompensado, e faz de nós,
e de nossos filhos, pessoas melhores, ainda que
o êxito na soma das frações ou na conjugação do
“present perfect” não tenha sido lá essas coisas

Por essas mesmas razões eu disse, em outro ar-


tigo, que a exposição maciça a telas e luzes a que
as crianças estão hoje submetidas é como uma
“gula da imaginação”, é um excesso de infor-
mações e de estímulos, sensoriais e mentais,
que corresponde a engolir um saco de açúcar
por dia. Reparem que os efeitos são semelhan-
tes. E, assim como essa dieta confundiria o
senso da fome e embotaria o sentido do paladar,
o abuso de estímulos também confunde a
inteligência e embota a atenção, que fica sem
critério sobre o que deve reter e a que deve se
ater. Fica logo desencantada e desinteressada

157
pela beleza e pela maravilha das coisas, que se
mostram e se dão a conhecer no tempo normal
da natureza e da leitura, e não no frenesi piro-
técnico das telas. É a forma viciada da fome
natural de conhecer, a curiositas. Seus efeitos
são nefastos, e não se restringem a danificar a
inteligência, mas ressoam nas emoções e em
todo o equilíbrio bioquímico e psíquico – como
acontece, em geral, com todos os vícios. E o pior
é que, para sanar o desinteresse das crianças, e
tentar, na verdade, engambelá-las para que
sejam atraídas para os temas do currículo,
muitas escolas e outras iniciativas pedagógicas
apelam para esses mesmos equipamentos, os
mesmos entretenimentos e expedientes
extasiantes, e assim estão apenas aprofundando
ainda mais o buraco. Não estão ensinando a
aprender, não estão ensinando a estudar.

158
O que devemos desejar, na prática, com relação
ao estudo dos nossos filhos? Que estudem com
eficácia, isto é, que se atenham às tarefas pro-
postas, àquilo que precisa ser compreendido ou
exercitado, e gastem nelas um tempo justo,
nem maior nem menor, e que o façam da me-
lhor maneira possível. Que estudem com res-
ponsabilidade, ou seja, que saibam o que preci-
sam fazer, e o façam sozinhos. Que estudem
com constância, e não apenas pouco antes da
prova; que o seu estudo não seja uma artimanha
para passar nas provas, mas um estudo para
conhecer e para se fortalecer, que se refletirá,
idealmente, nas notas. Que o estudo seja um
hábito. Que consigam, por meio do estudo,
descobrir outros interesses, desenvolver-se
neles, e colocar seus progressos a serviço dos
outros, ajudando seus amigos. Como ajudá-los
a fazer isso?

159
Antes de qualquer coisa, é preciso ajudá-los a
tirar os obstáculos que talvez venham antes do
próprio estudo. Suas necessidades mais básicas,
que são sanadas, do mesmo modo, com bons
hábitos, devem estar equilibradas: o sono, a
alimentação, a postura corporal; que haja um
local suficientemente adequado para se estudar,
silencioso e iluminado, e cuja paz esteja garan-

tida durante aquele período, sem o receio de ser


interrompido e de ter seus esforços de concen-
tração frustrados. Também é bom que estejam à
disposição os materiais que serão utilizados na
tarefa. Isto garantido, e os lápis apontados,
podemos começar.

Não deixe seu filho perder tempo. Não permita


que os períodos de estudo sejam ocasiões para
se desenvolver o hábito da enrolação. Tendo

160
analisado os deveres e a quantidade de conteú-
do, estabeleça previamente um tempo de estudo
no qual você estima que ele é capaz de
cumpri-los. Você pode adquirir um relógio, e
tê-lo diante da mesa de estudo, para medir o
tempo de cada tarefa. Entretanto, cobrar sem
ensinar não somente é injusto como não vai dar
certo. Se o seu filho ainda não tem o hábito do
estudo, sente-se ao lado dele, e fique ali. Você
deve instruí-lo, guiá-lo, quase como uma
personal trainer intelectual, ou uma coach da
atenção, em cada uma das ações, exteriores e
sobretudo interiores, que é preciso operar para
se atingir êxito. Se for preciso, adapte-se aos
ritmos, facilidades e dificuldades do seu filho
dando pausas, para que ele faça às vezes um
refresh cerebral, ou troque de assunto, e depois
torne ao primeiro. Em suma, você deve
mostrar-lhe o caminho, mostrar como pode

161
lidar consigo mesmo, mostrar como se faz para
“sentar e estudar”, e então levantar-se, no
tempo determinado, com a tarefa concluída, e o
coração em paz. Estudar é uma arte, e toda arte
se aprende imitando alguém que a pratica
diante de nós.

Valorize qualquer esforço da parte do seu filho,


e elogie-o. Às vezes estamos muito desatentas,
e deixamos coisas pequenas, mas que são muito
importantes, passarem batidas... Tente ficar
atenta aos esforços, aos minúsculos gestos de
coragem da criança que se põe a tentar estudar.
Pode ser que a nossa cabeça esteja no cronogra-
ma que estabelecemos, no uniforme, no lanche,
ou no próprio dever que precisa ser feito... e
esquecemos de elogiar uma pequena vitória.
“Não fez mais que a obrigação”? Ora, como é
difícil cumprirmos a nossa obrigação. Quando

162
fazemos qualquer coisa um pouco mais perfei-
tamente, já gostaríamos que o mundo inteiro
nos elogiasse. Por que seria diferente com os
pequenos? É importante, sim, que demonstre-
mos interesse pelas descobertas e pelos avanços
dos nossos filhos, pois elogiar e incentivar é
grifar, é dar um contraste na compensação in-
terna que eles sentem ao realizar bem a tarefa, e
não é o mesmo que um prêmio ou uma barga-
nha com recompensas externas, o que, ao con-
trário, seria muito danoso para o progresso nos
estudos. Sem isso, e apenas sob o peso de “ter
de cumprir sua obrigação”, é provável que a
criança que não tenha um especial dom natural
acabe desistindo, deixe a escola e o estudo para
lá, porque aquilo não lhe pareceu desejável, ela
não conseguiu encontrar um motor interno
para sua ação, quando, para isso, talvez
bastasse que a mãe o valorizasse.

163
Agora, esse elogio, que é valorização de um bem
que foi efetivamente feito, não é o mesmo, nem
de longe, que uma associação dos sucessos com
o sentimento dos pais. Tanto quanto não se de-
ve usar de barganhas com recompensas exter-
nas, e nem de um excessivo peso na obrigação,
não se deve jamais apelar para sentimentalis-
mos baratos (o que não vale só para o estudo,
evidentemente). Frases como “muitas crianças
gostariam de estar no seu lugar, e você não
aproveita a oportunidade”, “eu me mato para
pagar a melhor escola para você, e você nem
liga”, ou “eu fico muito triste, muito desapon-
tada que você não faça seu dever de casa”
significam apenas que a ação infantil deve ter
como motivo, como motor, o sentimentalismo
dos pais. Esse tipo de “chantagem emocional”
não tem como formar o caráter da criança, nem
como ensiná-la autonomia; a ação dela ficará

164
atrelada ao seu sentimento, e não à clareza de
que algo deve ser feito porque é certo e bom. Ela
só fará as coisas porque você está muito triste,
ou muito brava, ou muito decepcionada. E pior:
pode acabar acontecendo de, lá pelas tantas, ela
desprezar os seus sentimentos e você perder sua
autoridade sobre ela, e ela, a admiração que ti-
nha por você. Não faça com que seus filhos ajam
de acordo com seus sentimentos, verdadeiros
ou simulados, pois este não pode ser o motivo, o
motor de suas ações. Elas precisam fazer o bem
porque é bom, e o certo porque é certo; o que
você deve fazer é ajudá-las a reconhecer isso
dentro de si.

Não desanime se seu filho passa por dificulda-


des. É nossa tarefa ajudá-los a formar os hábi-
tos que serão a base de sua liberdade, e o hábito
do estudo não é diferente. Ao ajudá-los e

165
tomá-los pela mão, não seremos muletas, ou
resolveremos para eles os problemas; não, nós
estaremos dando a eles tudo de que precisam
para ser autônomos, estaremos ensinando-os a
aprender.

Lembre-se de que o padroeiro dos estudantes


era burrinho de dar dó, e nem por isso teve me-
nos sucesso que os bem-dotados, ao contrário:
via todos desde cima. Não se esqueça de que o
esforço, e especialmente esse sutil esforço de a-
tenção, é sempre recompensado, e faz de nós, e
de nossos filhos, pessoas melhores, ainda que o
êxito na soma das frações ou na conjugação do
“present perfect” não tenha sido lá essas coisas.
Toda vez que prestamos verdadeira atenção,
vencemos, de algum modo, a dispersão e a su-
perficialidade, e robustecemos o nosso coração.
E qual é a substância do amor ao próximo a não

166
ser a atenção? Os tristes e os aflitos querem ou-
tra coisa além de alguém que preste atenção ne-
les? É o olhar atento o que os conforta, e mesmo
uma hora de estudo apenas, desde que ensine
nossos filhos a olhar com atenção, poderá um
dia, se a ocasião se apre- sentar, fazer com que
deem a alguém o socorro necessário, e, mesmo
dessa maneira inesperada, aquela uma hora de
estudo terá valido o mesmo que uma hora de
oração.

Autor:Samia Marsili é médica, palestrante, escritora, mãe de 7


filhos e esposa do Dr. Italo Marsili, um dos psiquiatras mais
influentes do país. Ela deixou o consultório médico e a
residência em Pediatria para se dedicar integralmente à
pesquisa e à prática da criação de filhos, aconselhando
milhares de famílias por meio de seus conteúdos digitais.

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167
Até mesmo o sofrimento de “perda de lugar” é natural e serve como um preparo
para a vida, diz psicóloga| Foto: Pixabay

FAMÍLIA

O dilema do filho único: por que


ter irmãos faz bem para o
desenvolvimento de uma pessoa
Por Bruna Komarchesqui

Embora as famílias numerosas sejam cada vez


mais comuns nos meios católicos e

168
conservadores do Brasil, ter muitos filhos está
longe de ser o comportamento familiar médio
do brasileiro atualmente. A verdade é que o
“filho único”, comum em países que adotaram
políticas de restrição de natalidade, como a
China, já é uma tendência por aqui. Uma
progressiva queda na taxa de fecundidade, nas
últimas décadas, colocou o país em um cenário
semelhante ao de 60% da população mundial,
em que os nascimentos não são suficientes para
repor a população que morre: o dado mais
recente aponta 1,65 filho por mulher brasileira
(enquanto a taxa de reposição da população
seria, pelo menos, 2,1 filhos por mulher).

Se nos anos 1960, portanto, o normal era uma


brasileira ter seis filhos, e duas décadas mais
tarde, quatro, hoje o mais comum é que uma
criança seja criada sem a presença de irmãos. Os

169
impactos disso são primeiramente sociais: “o
Brasil é um país que envelheceu antes de
enriquecer, esse é um grande desafio”, resume
Rodolfo Canônico, especialista em Políticas
Públicas para a Família pela Universidade
Internacional da Catalunha e fundador e
diretor-executivo da ONG Family Talks, que
apoia o fortalecimento das famílias em favor do
desenvolvimento social. Isso porque, com
menos nascimentos e as pessoas vivendo
potencialmente mais, em 2050 um em cada
quatro brasileiros deverá ser idoso, segundo
projeções, o que aponta para um alto custo
social de cuidar dessa população.

Mas o impacto do filho único está longe de ser


apenas demográfico e econômico. Há mais de
um século (desde um estudo desenvolvido em
1896 por E.W. Bohannon, da Universidade Clark,

170
em Massachusetts), crianças sem irmãos são
descritas como mais mimadas e menos
preparadas para a vida. A concepção, aceita
durante décadas, passou a ser questionada por
estudos mais recentes, que garantem que a
diferença entre ter ou não irmãos é menos
relevante para o desenvolvimento da criança
que fatores como o relacionamento dos pais e o
status socioeconômico da família.

Na Grã-Bretanha, testes cognitivos aplicados a


crianças com dez ou 11 anos de idade, nascidas
em 1946, 1958, 1970 e 2001, apontaram
pontuações semelhantes entre quem era filho
único e quem tinha um irmão, além de
vantagem dos filhos únicos sobre quem tinha
dois ou mais irmãos, na maioria dos anos
analisados. Apenas em 2001, os indivíduos sem
irmãos não se destacaram no teste. Para os

171
pesquisadores, o achado reforça a tese de que o
contexto familiar conta mais do que ter ou não
irmãos. Isso porque “ao longo do tempo, ser
filho único tornou-se mais associado a
condições potencialmente desfavoráveis, como
crescer com pais separados”.

Amabilidade e resistência a frustração

Um estudo realizado na China, em 2016,


descobriu, por meio de ressonâncias
magnéticas cerebrais, que os filhos únicos
tendem a ter menor agradabilidade – um traço
de personalidade expresso em comportamentos
como ser amável, simpático, cooperativo,
caloroso e atencioso – do que pessoas criadas
com irmãos. Em compensação, eles seriam mais
flexíveis do ponto de vista cognitivo, o que está
ligado à dimensão da criatividade.

172
Do ponto de vista do desenvolvimento infantil,
estudos afirmam de tudo, até que ter um
cachorro (ou outro pet qualquer) é mais
vantajoso do que ter um irmão. "O fato de
animais não poderem entender ou responder
pode ser um benefício", afirma o psiquiatra
Matt Cassells, da Universidade de Cambridge.

Quem trabalha no dia a dia com o


acompanhamento de pessoas, no entanto,
afirma: ter irmãos faz toda a diferença no
desenvolvimento do indivíduo. “Irmãos
ensinam a ter resistência a frustração, mostram
que competir nem sempre adianta, porque
enquanto o mais velho corre ainda estou
engatinhando, trazem sentimento de pertença e
ajudam na confiança”, resume a psicóloga
Roseana Barone Marx, logoterapeuta e doutora

173
em psicologia clínica, cujo trabalho tem ênfase
no vazio existencial.

Ela explica que mesmo o sofrimento de “perda


de lugar” experimentado quando um irmão
nasce é natural e serve como um preparo para a
vida. “Claro que traz sofrimento, mas isso é
superado quando percebo que minha mãe e meu
pai me amam de um jeito único. Sempre recordo
a história real de uma amiga que tinha 11 filhos.
Num dia, na hora do almoço, ela foi chamá-los,
porque estavam jogando bola em frente à sua
casa, e um deles havia sido atropelado. Ele
morreu na hora em seus braços, e ela nunca
mais se recuperou. Aí eu pergunto: por que, se
ela ainda tinha dez? Porque ninguém é
substituído no amor”, afirma.

174
"Não é que é pior criar um filho único", pondera
Canônico, "porque é possível criar os mesmos
problemas na educação de mais de uma criança.
Agora, existem benefícios de se ter irmãos",
afirma.

Relacionamentos duradouros

Para a maior parte das pessoas, os


relacionamentos mais duradouros da vida são
estabelecidos com os irmãos. “Os pais não
ficam com você a vida toda, seus parceiros
românticos vêm e vão (e você só os conhece
mais tarde na vida), os amigos vêm e vão, mas
os irmãos estão sempre presentes ao longo da
vida”, diz a pesquisadora Susan McHale, da
Universidade Estadual da Pensilvânia, que
estuda relacionamentos entre irmãos.

175
Também é no relacionamento com um irmão
que se estabelecem as bases práticas para todos
os demais ao longo da vida. Nesse sentido,
relacionamentos positivos entre irmãos tendem
a ser protetores e levar a melhores
relacionamentos sociais na adolescência. Ainda
de acordo com McHale, se relacionar de
maneira próxima com irmãos traz impactos
positivos na saúde mental, enquanto ter
conflitos nesse contexto aumenta riscos de
depressão, ansiedade e comportamento
antissocial.

E quando os pais tratam um filho melhor que o


outro? Mesmo nisso, os irmãos podem ser a
cura, “reconhecendo que isso está acontecendo
e como é injusto”, diz McHale. E em situações
com uma boa explicação para o tratamento
diferenciado, como quando o irmão realmente

176
tem uma necessidade especial, a criança é capaz
de compreender. “Eles podem proteger um ao
outro, desde que ambos entendam o que está
acontecendo, que isso seja reconhecido e a
criança favorecida possa apoiar a criança menos
favorecida para ajudar a compensar o
comportamento dos pais”, afirma.

Mesmo na vida adulta ou na velhice, o


relacionamento entre irmãos continua trazendo
benefícios e auxiliando em problemas, segundo
a pesquisadora. “Pela história compartilhada,
os irmãos entendem você como ninguém mais
consegue. Rotinas e rituais familiares,
memórias, a forma como as coisas funcionam
em sua família, as pequenas piadas e
entendimentos privados – você simplesmente
não tem isso com outras pessoas, nem mesmo
com um cônjuge de longa data”, explica.

177
Tendência populacional

Rodolfo Canônico explica que o último Censo já


apontava para uma correlação entre maior
escolarização e menor taxa de fecundidade
(tendência que tem se revertido em países mais
ricos, com mulheres de rendas mais altas
voltando a ter filhos). Por aqui, ele acrescenta,
ter um filho apenas já é tendência entre famílias
de renda mais alta.

Recentemente, a cantora Sandy – que ganhou


fama ainda muito pequena ao lado do irmão
Júnior – declarou que acha “todo mundo [que
tem mais de um filho] louco”. "Acho que
deveria? Acho. Seria bom um companheirinho
para o meu filho? Seria. Culpa? Temos. Mas não
quero outro filho. Porque quero ser a melhor
mãe que eu consigo para o meu filho. Eu já me

178
cobro demais por não estar mais disponível.
Imagina ter dois? Não dou conta. Ser mãe é
assim. Eternamente a gente fica nessa coisa de
se cobrar, amar, se doar e achar que está sempre
se doando pouco", declarou.

Esse conflito entre “o mundo do trabalho e a


maternidade” impacta nas escolhas referentes à
fecundidade e ao planejamento familiar,
“levando as mulheres a postergar a decisão de
ter filhos ou de ter menos filhos ao longo do
tempo”, afirma Canônico. “No Brasil, a
tendência é cada vez mais diminuir as famílias.”

Com isso, o cuidado do núcleo familiar deve


ficar cada vez mais difícil no país. Antes, ele
acrescenta, quando uma mãe de seis perdia sua
autonomia e demandava cuidados na velhice, os
filhos poderiam se revezar na tarefa. “No novo

179
contexto, as famílias pequenas terão menos
condições de cuidar dos idosos. Por outro lado,
há menos jovens em idade economicamente
ativa gerando renda para garantir o cuidado
desses idosos por meio da previdência social,
que já demanda metade dos gastos da União
atualmente, e da saúde pública. É uma mudança
social radical”, completa Canônico.

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