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COOPERTAN: memórias

e histórias de vida de
uma cooperativa

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Livro composto por memórias narradas pelos
fundadores da COOPERTAN e transcritas
concomitantemente por integrantes da Curupira
Cartonera (editora que costura artesanalmente
livros com capa de papelão, vinculada à
Universidade do Estado do Mato Grosso) durante
o outono de 2022, em comemoração aos 15 anos
de fundação da Cooperativa de Reciclagem de
Tangará da Serra. Como este exemplar é o
resultado de um exercício da memória, o que aqui
se narra não corresponde à Verdade; nem à
História da COOPERTAN. Neste sentido, pedimos
desculpas no caso de termos nos esquecido de
fatos e pessoas. Outras narrativas virão. Vida
longa às pessoas que sustentam com seus corpos
narrativas tão bonitas quanto estas!

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A COOPERTAN, por seu percurso de vida, agradece a parceria
estabelecida com as seguintes instituições:

Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT)


Núcleo de Pesquisa, Extensão e Estudos da Complexidade no
Mundo do Trabalho-NECOMT
Incubadora de Organizações Coletivas Autogeridas, Solidárias
e Sustentáveis (IOCASS)
Serviço Autônomo Municipal de Água e Esgoto (SAMAE) /
Programa Tangará Recicla
Prefeitura Municipal de Tangará da Serra (PMTS) / Núcleo de
Políticas para a Economia Solidária (NUPES)
Secretaria Municipal de Agricultura e Pecuária (SEAPA)
Câmara Municipal de Vereadores de Tangará da Serra (PMTS)
ONG Sociedade Alternativa La Comuna
Banco do Brasil S/A / Programa Corporativo de
Desenvolvimento Regional Sustentável-DRS
Fundação Banco do Brasil (FBB)
Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis
(MNCR)
Associação Nacional dos Catadores e Catadoras de Materiais
Recicláveis (ANCAT)
Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso (DPMT)
Ministério Público do Estado de Mato Grosso (MPMT)
Ministério Público do Trabalho (MPT)
Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis
(MNCR)

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COOPERTAN: uma história com múltiplos
olhares
Por Neuri Eliezer Senger1

A COOPERTAN, Cooperativa de Produção de


Material Reciclável de Tangará da Serra, surge a
partir de iniciativas para organização dos catadores
de material reciclável que trabalhavam em Tangará
da Serra, estado de Mato Grosso, de forma
individual nos lixões a céu a aberto nesta
localidade. São várias as histórias que inserem
dentro da história da Coopertan em sua trajetória
de vida nestes 15 anos de sua existência. Neste
breve relato pretendemos trazer à lembrança um
pouco dessa vivência junto a estes trabalhadores e
trabalhadoras rememorando momentos e práticas
significativas.
A história, como registro oficial se dá a partir de
julho de 2007 com o registro de seu Estatuto e Ata
de Fundação na Junta Comercial do Estado de
Mato Grosso. Mas, o protagonismo desses

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Professor, mestrando em Educação pela Universidade do
Estado de Mato Grosso, especialista em Economia Solidária e
colaborador da Coopertan desde sua fundação.
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trabalhadores já vem de algum tempo antes,
quando o município de Tangará da Serra resolve
criar a política de gestão de resíduos sólidos. Para
acabar com os lixões a céu aberto, organizar um
aterro sanitário e sistematizar a coleta dos resíduos
sólidos foi necessário dar atenção às pessoas que
tiram seu sustento dos depósitos de lixo na
periferia da cidade. É nesse ambiente que vamos
encontrar os trabalhadores que se tornaram os
fundadores da Coopertan. A trajetória de
organização desses trabalhadores se dá por
motivação do poder público, tanto a Prefeitura
Municipal como o SAMAE, autarquia responsável
pela gestão da água e esgoto da cidade. Com a
parceria de organizações e instituições, tais como
Universidade do Estado de Mato Grosso, Câmara
Municipal e outros agentes, partindo de algumas
iniciativas frustradas, surge afinal esta cooperativa
que tornou em realidade a possibilidade de
organização de trabalhadores para a geração de
renda, amparo social e inclusão produtiva.

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A Autogestão: um princípio orientador para a
gestão participativa com a inclusão de todos os
trabalhadores, que pode parecer algo apenas
teórico, mas que na Coopertan se torna prática.
Traz saudade relembrar dos momentos de reunião,
rodas de conversa e diálogos que aconteceram nos
mais diversos ambientes. Nos barracões, em meio
aos fardos de material prensado que às vezes
serviram de assento, as cadeiras, bancos e
banquetas tiradas da coleta, consertadas, ou
escoradas com tijolos. A mesa improvisada em cima
dos fardos para a coleta das assinaturas nas listas
de presença e nas atas. Momentos especiais para
conversar, para tirar dúvidas, para responder
perguntas, para fazer encaminhamentos. Momentos
de participação para todos os cooperados, muitos
que apenas ouviam, mas que após as reuniões, em
conversas de pé de ouvido, traziam outros
questionamentos, mas também demonstravam,
através de suas falas, reações e procedimentos, a
compreensão das decisões tomadas para o bom
desenvolvimento da cooperativa. Significando assim

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que autogestão vai para além da eleição de uma
diretoria, torna-se significativa nos diálogos, nas
conversas, nas assembleias, nas reuniões
ampliadas, nas perguntas para melhor
compreensão, nas discussões acaloradas e muitas
vezes falas ásperas, acusativas, no dar de dedo, nas
votações em aberto ou em secreto. Mas que se
concluíam com decisões e encaminhamentos que
traziam de volta a paz e a tranquilidade para a
continuidade da caminhada.
O cooperativismo como a base para o aprendizado.
Me lembro, das tantas perguntas: professor Neuri
como se faz isso? Momentos em que se voltavam
para ouvir, para compreender como se fazer, tanto
a diretoria como os demais cooperados. Momentos
em que eu perguntava: o que está escrito no
Estatuto? E a gente sentia, em vez solucionar a
dúvida, esta ficava maior. Ou seja, eram pequenos
processos dialéticos que contribuíam para o
aprendizado e que se tornavam práticas intrínsecas
dentro da gestão. Aprendizado que não brotavam
dos bancos e carteiras escolares, mas que nasciam

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do diálogo, da conversa, da confiança estabelecida
entre o professor e amigo e o coletivo dos
cooperados. Me lembro das vezes em que sentados
na varanda de minha casa, a diretoria trazia toda a
papelada para fazer o caixa da cooperativa. E ainda
era possível fazer isso em planilhas do Excel. E na
volta para a cooperativa, era possível apresentar
relatórios para a assembleia ou para a reunião
ampliada, demonstrando o ganho da cooperativa e
os gastos para a manutenção. Relatórios em que
muitas vezes trouxeram tristeza, angústia e
desilusão, pois demonstravam que o ganho para as
pessoas era pequeno, quase nada. Decepções que
se transformaram em aprendizado, que hoje, após
15 anos passados, o coletivo adota práticas que
demonstram o aprendizado cooperativista.
Compreendeu como escolher seus representantes e
coordenadores. Compreendeu como acompanhar os
passos da gestão através do olhar do Conselho
Fiscal sobre as receitas e despesas. Compreendeu a
se posicionar dentro de uma assembleia ou

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reunião, perguntando, levantando dúvidas e
fazendo sugestões.
Muitas coisas ainda há para se falar da Coopertan.
Tais como, o amadurecimento do jeito de se
relacionar com o poder público, com o ministério
público, com Câmara Municipal e diversos
parlamentares e outras entidades. O fato de ter se
tornado uma referência em trabalho associado
voltado para a inclusão produtiva, econômica e
social de catadores. Falar das muitas produções
acadêmicas, artigos, dissertações e teses que a
partir do protagonismo dessas pessoas falam da
história dessa cooperativa pelo Brasil a fora.
Então... há muito ainda por dizer. Mas eu paro por
aqui. Finalizo com a certeza e a vontade de ainda
prosseguir junto a esta cooperativa, junto a estas
pessoas que muito mais do que aprendem, ensinam
que outro mundo é possível, com menos
individualismo e concorrência e com mais
cooperação, autogestão, solidariedade e ação
econômica que oferece bem estar para pessoas e
famílias.

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Memórias da Dona Bárbara

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Vim de Guaratinguetá tem 30 anos. Eu tinha
separado do meu marido e eu queria morar em
outra cidade. Peguei uma carona. O motorista me
perguntou: “Pra onde você quer ir?”. Eu devolvi:
“Não, eu que pergunto: pra onde o senhor tá indo?”.
Ele respondeu: “Eu to indo pra Cuiabá, lá é muito
longe”. Daí eu disse: “Então é pra lá mesmo que eu
quero ir”. Daí eu vim chorando porque ficaram três
filhos meus pra trás. O menor tinha 6 anos. O
maior ficou com minha mãe. O do meio com minha
irmã e o mais novinho ficou com o pai. Daí o
motorista ficou dó de mim, porque eu vim contando
que eu sofria muito, eu apanhava muito. Daí ele
ficou com dó de mim, ele pegou e me trouxe, ele era
uma pessoa muito respeitosa. “Agora a gente
chegou em Cuiabá, você vai precisar se virar,
porque eu não posso te ajudar mais. Eu tenho
esposa, minha esposa não vai entender´”.
Daí, na praça em que ele me deixou, eu fui comprar
um salgado porque eu tava com fome. Daí a
senhora que me vendeu o salgado, me perguntou:

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“Você ta indo ou ta vindo?” Eu disse: “Eu to
chegando, eu to procurando um emprego”. Daí
contei minha história e ela me disse: “Então eu vou
te arrumar emprego, pra fechar marmitas”. No
fundo do quintal tinha um quarto e ela me deu, pra
eu morar. Daí comecei a trabalhar, fiquei dois anos
lá.
Daí eu conheci uma amiga nesse meu trabalho: ela
comprava comida lá. Ela morava em Cuiabá e
trabalhava em Tangará de doméstica. Vim embora
com ela pra Tangará porque ela me chamou. Daí
ela arrumou um quarto pra gente morar, moramos
juntas por pouco tempo, mais ou menos cinco
meses, porque ela voltou pra Cuiabá para cuidar da
mãe que teve derrame.
Cheguei aqui, fui procurar trabalho, eu ainda
trabalhei em uma casa. Daí eu amiguei com meu
marido, ele é meu marido até hoje. A gente tá
juntos há 27 anos. Eu disse pro meu marido: “Ai,
eu preciso trabalhar, não sei onde, já andei tudo
essa cidade procurando”

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Meu marido me disse: “Pensa: você tem duas
pernas e dois braços pra trabalhar, é só usar a
cabeça que você vai conseguir”.
Daí uma senhora (era uma senhorinha já de 70
anos), a Dona Catarina, me disse: “eu vou levar
você pra trabalhar lá no lixão, você vai catar
latinha”.
Eu cheguei lá e foi um paraíso. Porque os meninos
não estavam lá ainda. Era muitas latinhas e eu
precisava de dinheiro. E a latinha era toda pra mim
e pra ela.
Daí foram aparecendo as pessoas para poder
formarem uma cooperativa: o Edmilson, o
Elvandro, o Tonho, a Eva, a Idalina, a Dona Maria,
que é mãe de uma das cooperadas de agora. Daí
eles queriam acabar com o lixão, para não ter
ninguém em cima de lixão, pra dar segurança pro
povão. Foi nessa época que apareceu a ideia da
cooperativa. Na época mesmo eu ficava meio assim:
“Nossa, e se formar uma cooperativa e a gente não
tirar o dinheiro que a gente tira hoje?” Mas a
cooperativa foi uma coisa muito boa, porque agora

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a gente tem uma segurança, a gente recolhe o INSS,
faz a distribuição de sobras e tem o descanso
remunerado. Valeu muito a pena formar a
cooperativa, porque teve uma época da vida que eu
trabalhava muito em cima do caminhão, no serviço
pesado, mas agora eu to com problema na coluna,
já não consigo. Então agora eu to dobrando
sacolinha em casa. Mas eu falei pra Mara que eu
não quero mais ficar em casa, eu quero ficar aqui
com o pessoal, porque eu gosto muito de ficar
junto. Eu quero ficar na cooperativa até o fim da
vida.
A gente começou a trabalhar junto. Eu tenho
amizade com todo mundo, eu dou com a mão pra
todo mundo, eu falo com todo mundo. Quando eu
chego aqui e vejo meus companheiros... Quando eu
chego, eu vou em cada pessoa, em cada grupo, pra
mim é muito importante estar com eles. A gente foi
criando esse laço de amizade. Agora mesmo eu tava
falando com a Dona Neusa “que vontade que eu to
de reciclar, de rasgar os sacos e ir separando tudo”.
Mas agora eu estou com sete hérnias de disco.

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Vamos ver como vai ser o tratamento. A sorte é que
a COOPERTAN tem um fundo pra pagar os exames
da gente. É muito triste isso porque eu queria estar
com meus companheiros.
Em 2017 eu fui presidente. Daí eu fiquei dois anos.
Quando deu os dois anos, não tinha ninguém para
ser presidente. Daí eu dei meu nome de novo. Eu
fiquei 4 anos na presidência. O momento mais
marcante dessa presidência foi quando a gente
começou a ganhar a empilhadeira, a pá
carregadeira, as quatro prensas. Foi um dinheiro
que veio pela prefeitura, mas que ganhamos através
de um projeto que propomos. Mas o que mais
marcou mesmo foi a primeira compra do caminhão:
a Cooperativa mesmo que comprou, financiado.
Graças a Deus foi uma boa presidência, eu não
tenho estudo, mas fiz tudo com honestidade pra
fazer o melhor pros companheiros e poder dar
continuidade e que a Cooperativa cresça cada vez
mais, que ela continue, continue crescendo. Agora
estão entrando pessoas novas, com saúde. Como
diz o Tonho: “Nós fizemos a cama já pro povo

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deitar”. Porque a gente começou lá no lixão e a
gente fica muito feliz de ver que está entrando
pessoas, que tão reconhecendo o trabalho de
recicla, porque naquela época a gente não queria
trabalhar no lixão, era muito pouco quem queria
entrar.

Depois de oito anos, eu voltei para minha cidade


para rever meus filhos, era época de Natal. Daí,
bem na noite de Natal, era muita chuva, nossa
senhora, meu filho mais velho, César, disse: “Mãe,
vamo bem ali comigo”. Eu disse: “Eu num vou sair
com essa chuva toda”. Ele disse: “Vem, mãe, você
vai gostar”. Daí eu fui. Dali a pouco veio um casal
andando, meu filho me disse: “Mãe, vai de encontro
com sua filha”. Daí a gente foi, se abraçou, aquela
emoção toda, parecia briga. O povo da rua começou
a abrir a janela pra ver o que estava acontecendo
naquela chuva toda. Meu filho disse: “Não é nada
não, é reencontro de mãe e filha”.

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Depois desse reencontro, meus filhos vieram morar
comigo. Mas não se adaptaram e voltaram para o
Estado de São Paulo. Só meu filho mais novo, o
Charles, quem eu fiquei sem ver por 23 anos é que
mora agora em Tangará da Serra. Ele trabalha com
gráfica e tem 39 anos.
Gostaria de deixar um recado: nunca desista de seu
sonho, lute, ser catadora não é vergonha. Tenho
muito orgulho de ser catadora!!

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Memórias da Dona Eva Jacinta

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Eu sou de Cuiabá. Mas daí separei do meu primeiro
esposo e vim embora, porque eu tinha conhecido
uma senhora. Era 1992, eu tinha um menino de
braço, de 10 meses. A Geisiane ia completar três
anos. A Jacqueline ia fazer seis anos. Essa senhora
eu conheci em Cuiabá, mas ela era de Tangará.
Como eu não vivia bem com meu marido, ela me
disse que eu poderia vir pra cá e me ajeitar. Ela
tinha gostado de mim e disse pra eu conhecer o
filho dela. Daí nós – o filho dela e eu – nos
conhecemos e ele se apaixonou de cara e disse que
me assumia. Nem precisamos nos conhecer, parece
que a gente já se conhecia. Daí eu saí dum
casamento e praticamente fui pra outro. Ele
trabalhava em uma fazenda em Sapezal. A gente
morou três anos lá, mas eu não me acostumei. Daí
ele pediu as contas e a gente veio para Tangará.
Mas, como ele ficou desempregado eu comecei a
fazer umas diárias, porque já tinha experiência
como doméstica. Daí eu trabalhava um dia e
comprava umas coisinhas. Trabalhava outro e
comprava outras coisinhas. Até que eu conheci
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uma outra senhora, a Dona Bia. Ela me disse: “Lá
no lixão a gente trabalha individual e dá pra tirar
uma renda a mais”. Daí eu fui com ela, ainda era lá
pra frente do Ararão. Chegando lá, eu vi o serviço
das pessoas, vi que era um pouquinho difícil, mas
eu tinha esperança de que iria conseguir. Daí eu fui
aprendendo e fui pegando gosto pelo serviço.
Naquela época era mais movido no alumínio, era
latinha. Naquela época já tinha bastante catador.
Eu tinha 28 ou 29 anos e não podia ficar muito lá.
Podia ficar umas 4 horas, porque precisava voltar
para dar mamá para minha filha mais nova, que
sempre ficava com o pai dela. Nessa época ele
estava desempregado, então ele ficava com as
crianças. Às vezes eu também pagava a vizinha
para cuidar delas, quando ele estava trabalhando.
Eu fui gostando, fui aprendendo, a renda foi
aumentando. O que eu tirava lá dava pro sustento.
Eu já não precisava trabalhar de doméstica porque
o dinheiro do lixão era suficiente. Assim foi até que
disseram que a gente já não poderia ficar ali no
lixão. Daí o Elvandro chamou a gente pra conversar

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e conversou bastante. Conversou bastante mesmo.
Muitos não quiseram ficar. Naquele momento eu
pensei positivo. Eu pensei que poderia dar certo.
Era uma certeza assim: o que nós ganhávamos ali
daria pra pagar os gastos e o que sobrasse dividiria
pra nós, né? Daí a gente estaria trabalhando dentro
das normas, organizado. Diferente dali, né?
Quando fomos pro Aterro Sanitário nosso trabalho
melhorou muito. Era diferente, era mais seguro, já
não ia mais trabalhar nem em sol, nem em chuva.
A gente era unido. Eu sentia que existia um espírito
de união. No lixão, quem chegasse antes, pegava o
melhor. Quem chegava depois, pegava o refugo. No
aterro, já era todo mundo junto. Todos eram donos.
Todos já trabalhavam sabendo que o que era de
um, era pra vender o produto para dividir para
todos. Vendia e depois recebia o pagamento. Daí
todos os que entram pegam gosto. Todos os que
entram não querem sair. Tem uns assim que
quando saem dizem “que saudades do serviço da
cooperativa”. Eu mesma, eu fico me envolvendo
aqui dentro porque nossa, é um serviço que você

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nem vê passar. Porque é um serviço assim que você
começa a sentir o gosto do serviço, do trabalho e
você nem vê passar, quando vê já é hora de ir
embora.
No lixão o trabalho era mais cansativo. O saco
chegava amarrado, a gente batia o gancho em cima
e vinha com ele rasgando o saco até embaixo para
ver se tinha algo aproveitável. Lá era tudo
misturado: latinha, lavagem, cachorro, gato morto.
A gente tirava o que aproveitava e o que não
aproveitava, mais tarde, a patrola passava para
jogar a terra em cima, depois que não tinha o que
aproveitar mais.
Lá no aterro sanitário, a coisa foi mudando. Logo
começou a coleta. No começo as meninas já
distribuíram os saquinhos com os cartazinhos
explicando como seria. Daí as pessoas já foram
separando o lixo mais corretamente e o serviço foi
ficando melhor. De lá pra cá, o serviço só melhorou.
Mas ainda têm coisas que vem na coleta que a
gente ainda não aproveita, como aquele acrílico
duro, que faz barulho, os copos descartáveis. Mas a

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gente tem trabalhado muito, pra vender cada vez
mais. A gente tá correndo atrás de ver de vender
cada vez mais coisas.
Nesses 30 anos de Tangará da Serra, eu gostaria de
deixar como conclusão que ser uma catadora é uma
coisa muito brilhante. Pra ser uma catadora tem
que ter o gosto e o sabor do trabalho. Mas pra ser
uma catadora não é fácil não. Tem que pegar o
gosto.
O povo chega aqui, já vê as melhorias. Mas bater
um gancho não é fácil não. Eu estudei meus filhos,
eu construí minha casa. Eu gosto muito de
Tangará. Eu num troco Tangará por Cuiabá de jeito
nenhum. E a gente vai estar aqui até quando o
corpo aguentar. Depois é deixar para os netos.
Meu marido tentou tirar eu daqui. Mas eu falei
“Não saio não, Airton. Ali é meu lugar. Eu me sinto
bem”. Ele tentou me tirar daqui por conta da
saúde. É um serviço que eu não aguento, mas eu
gosto de fazer. Ainda mais com a esteira que nós
temos, facilitou bastante, né?

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Acho que pra todo serviço, você tem que pegar o
gosto do serviço. Porque senão não dá não. Meus
filhos já me deram netos. E eu ainda hoje to nesse
serviço. Meus filhos dizem “A mãe vai aposentar
nesse serviço, só pode!”
Eu vou ver até quando vou trabalhar, até quando
tiver jeito de trabalhar, eu ainda to aí dentro. Até
chegar outros pra fazer o serviço.
A parte mais difícil do trabalho foi saber, foi
aprender. Aprender foi a parte mais difícil, daí
quando aprendi, daí eu já não quis sair mais não...

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Memórias do Sr. Edmilson de Oliveira Lobato

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Antigamente era lixão na Estrada da 12, depois do
rio Ararão. Eu sou de São Paulo, mas cheguei em
Tangará vindo de Rondônia, comecei a trabalhar na
época do lixão, não me recordo o ano. Na época não
tinha serviço e eu precisava trabalhar, o pessoal
que trabalhava lá no lixão começou a se organizar
para montar a associação e eu gostei muito quando
conseguimos montar a associação.
Com o apoio do Jeferson do Samae (diretor do
Samae na época, o prefeito era o Júlio Cesar)
mudamos de associação para cooperativa e também
nos mudamos para o aterro sanitário que ficava lá
na São José. O Samae nos deu uma prensa e um
elevador. Antes, quando não tínhamos uma prensa,
nós vendíamos só aqui em Tangará.
Em 2007, como já éramos uma cooperativa, nós
precisávamos ter um presidente, e eu me
prontifiquei para o cargo, já que ninguém mais
queria e nós precisávamos ter um presidente.
Fiquei por dois anos. As coisas também iam
melhorando na vida particular também, eu por
exemplo fui reformando a casa, e também veio o
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contrato com o Samae, eles colocaram um
caminhão para recolher o “recicla” na cidade e
entregar na cooperativa.
Depois nos mudamos para a Linha 12, estávamos
lá quando pegou fogo e nós perdemos tudo, o
elevador, a prensa queimou tudo. Houve também o
problema que tivemos aqui com um presidente que
nos roubava, ele desviava dinheiro e quando
chegava no fim do mês nós não tínhamos quase
nada para receber, passamos a retirar bem menos
dinheiro, nós não tínhamos dinheiro nem pra
manter a casa.
Foi nessa época que eu resolvi sair da cooperativa e
fui trabalhar na Itamarati, fiquei lá por três anos.
Eu só fui trabalhar na Usinas Itamarati porque eu
precisava mesmo, mas eu prefiro estar aqui na
cooperativa. Por isso estou aqui até hoje, me sinto
em casa, somos amigos. Depois a Itamarati fez mais
uma redução de funcionários e fizeram acerto
comigo também e me mandaram embora. Fiquei em
casa por um mês mais ou menos, aí o Elvandro me

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chamou pra voltar para a cooperativa, eu voltei e
não saí mais.
Aqui não temos “patrão”, nós sabemos fazer de
tudo e fazendo conforme é necessário, eu gosto de
trabalhar na prensa, mas faço o que me escalarem
pra fazer, se me mandarem parar e ir para outro
setor eu vou, tem que fazer.

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Memórias do Sr. Antônio Francisco

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Comecei a catar recicláveis bem antes da fundação
da COOPERTAN, no lixão do Ararão. Lá eu ia de
bicicleta, depois começou a surgir caronas. Quando
tinha carona, a gente deixava as bicicletas na
SINFRA. Às vezes tinha carona para ir, mas não
tinha para voltar, então a gente voltava a pé. Da
SINFRA até o lixão eram 7 km. Quem dava carona
pra nós eram os caminhões “tira entulho”, eles já
conheciam a gente e por isso davam carona. Mas
tinha dias que eles não achavam frete para levar,
daí tinha que bater perna de lá pra cá.
Tinha vez que a gente ia de bicicleta, enchia ela de
material, cobre, latinha... e quando estava voltando
tchuff ... furava o pneu, daí tinha que vir
empurrando.
Lá nós catávamos mais é latinha e cobre, depois
que surgiu a COOPERTAN. Daí catava tudo,
plástico, pet, lata de tambor. A gente colocava as
latas na estrada para o caminhão amassar e dar
mais peso.
Os caminhões do supermercado Big Master
levavam muitos alimentos vencidos: fardo de arroz,

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caixas de leite e as pessoas pegavam. O leite ainda
fica bom, mas estava vencido, então não pode
tomar. Eu não pegava. Ia cerveja, também, e a
turma não perdia nada, pegava tudo, essa eu
pegava, também. Cerveja não vence, não. Fica até
mais gostosa. Foi por isso que não deixaram mais
catar. Porque não podia pegar coisa vencida. Daí
surgiu a COOPERTAN e as condições melhoraram
para nós.
No lixão, os materiais que a gente catava ficavam lá
e os compradores iam lá comprar. Ia o Zé Rubens e
Zé Pedro, que até hoje compram da gente.
Depois fizeram o aterro e nós íamos catar lá. Era
um buracão. No meio tem uma manilha pra
escorrer o chorume e pra sair o gás. Esse gás faz
mal e é por isso que não dá pra catar lá. La o
pessoal jogava, também, lata de veneno e fazia mal
para as pessoas. Hoje é uma montanha, é até
bonito de ver, em volta é tudo gramado.
No começo, o Elvandro convidou para ir catar no
Ararão. “Lá você tira seus trocos” – ele disse. Na

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época tirava bem, ganhava mais do que se fosse
trabalhar para os outros.
Antes de começar a catar, eu gostava de trabalhar
de caseiro, faxineiro, só que não ganhava quase
nada naquele tempo. Naquele tempo não ganhava
nem cem reais por mês, era uma mixaria. No lixão
era por semana, trabalhava até domingo. A gente
deixava os materiais no lixão e sempre ficava
alguém lá cuidando. Depois, a gente começou a
deixar alguém cuidando lá também. Eu tirava
duzentos, às vezes até quatrocentos reais por
semana. A casinha onde eu moro foi comprada com
dinheiro daquela época. A gente ia de manhã e
ficava até revirar todo o material. Para não se
machucar tinha que ter cuidado. A gente usava um
ferro de construção com um gancho para puxar o
lixo e depois catava com cuidado.
Vim do Paraná, Porecatu, norte do Paraná, bem na
divisa com São Paulo, perto do rio Paranapanema.
Vim em 1981 direto pra Tangará: primeiro, eu
trabalhava de caseiro, depois não deu certo e fui

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parar na rua, pegava serviço diário, carpir terreno,
por exemplo. Mas também não dava muito.
Quando começou a COOPERTAN melhorou cem por
cento. Ficou melhor porque já sabia que todo dia
tinha serviço para trabalhar.
Na COOPERTAN fiz parte do conselho fiscal. Quem
dava força pra gente era o Elvandro, ele explicava
pra gente como era tudinho. Agora trabalho na
prensa, fazendo fardo.
Agora nós conseguimos uma diretoria boa, todos
eles gostam da gente. Teve um pessoal aí que só
pensava neles. Mas agora tá tudo certinho.
O professor Sandro também fez muito pra gente.
Foi que nem um pai. Quando a cooperativa estava
pra fechar, ele correu atrás pra resolver tudo. Hoje
já estou com os papéis encaminhados pra
aposentar, estou com 68 anos.

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Memória do Sr. Elvandro Lima Viana

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Cheguei em Tangará em 1993, com 18 anos, vindo
de Barra do Bugres. Anteriormente minha família
havia vindo da Bahia para Barra do Bugres, mas
isso foi em 1974. Meus pais eram gerentes de
fazenda. Em 1993 existia muito trabalho em
Tangará da Serra: segurança, ajudante de pedreiro,
foram algumas das funções que eu desempenhei
até 1998, quando fui para o Assentamento Antônio
Conselheiro, onde fiquei um ano no acampamento.
Na verdade, ficamos: fomos eu, minha esposa e
nossas duas filhas. Quando saiu nossa terra, era
em um lugar muito seco, sem água, tínhamos que
andar 12 kilômetros para buscar água, daí eu
desisti e voltei pra rua.
Mas no assentamento eu participei de uma
associação: Associação de Produtores Rurais de
Tangará da Serra. Fui secretário e vice-presidente
dessa associação e aprendi muito lá. Mas, quando
saí do assentamento, saí também da associação.
Foi quando eu fiquei desempregado: era ano de
1999, 2000.

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Em 2001 eu fui pro lixão. Nessa época o lixão era
próximo do Ararão. Eu morava na Vila Horizonte e
fui pegando informação, até conseguir chegar lá de
bicicleta. Nesse período tinham cortado minha água
e minha luz.
Cheguei: na primeira semana de serviço lá eu juntei
metal e alumínio, na venda deu para pagar água,
luz, um monte de conta atrasada e fiz compra
ainda. Se eu estivesse trabalhando de empregado,
em um mês, eu teria ganhado um salário mínimo.
Mas lá, eu ganhei quase 4 salários mínimos dentro
de 30 dias. Era quase um salário mínimo por
semana.
Além do dinheiro que a gente ganhava, a gente
achava coisas muito interessantes, como por
exemplo, brinquedos para minhas filhas. O dia que
eu não ia pro lixão, minha filha, Daiane, que tinha
5 anos, ficava brava, porque sabia que naquele dia
ela não iria ganhar presente.
Desde 2001, ir para o lixão era um compromisso
diário para mim. Eu acordava cedo, preparava meu
café, arrumava minha marmita e ia logo cedo, 5h

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da manhã, 6h da manhã. Nessa época, eu já estava
fazendo uns bicos de segurança, então o horário
variava um pouco por conta disso: se eu trabalhava
na noite anterior, ia às 6h da manhã, se eu não
trabalhava na noite anterior, ia às 5h.
Em 2003, já tinha umas 20 pessoas trabalhando no
lixão: a Eva, o Sr. Antônio, o Edmilson, o Narciso, a
Evanir, Dona Santina, Dona Beatriz, Sr. Luiz, Maria
Gomes, Cassiandra, a Bárbara (Polaca), a Eliandra,
que foi a primeira presidenta da ASCARMATA, o Sr.
David Rigosordi. Tinha mais gente, mas o difícil é
lembrar o nome de todo mundo.
No fim de 2003, começou a construção do aterro
sanitário. Foi quando a prefeita pediu que o
escrivão da câmara de vereadores fosse para o lixão
conhecer como é que estava, porque eles não
queriam que a gente fosse trabalhar individual,
desorganizado, como a gente trabalhava lá – era
cada um pra si e Deus pra todos. Foi quando eu
tomei a frente dos assuntos, porque eu tinha pouco
estudo mas tinha um pouco de experiência. Foi
quando eu pedi uma reunião com a Dona Ana e

40
propus a organização de uma associação. Ela
aceitou. A Dona Ana tendo aceitado, só faltavam os
catadores aceitarem. Eu chamei os trabalhadores
mais antigos para conhecerem o projeto do novo
aterro, eles foram e começamos um pouco a ir nos
organizando no plano das ideias. A ideia era montar
uma associação para ganhar mais. Iria melhorar a
renda para todo mundo. As pessoas mais de idade
já não tinham mais todo aquele pique para
trabalhar, por isso foi mais fácil convencê-las do
trabalho coletivo.
O aterro foi inaugurado dia 7 de novembro de 2004.
Era uma sexta-feira. Na segunda já estávamos lá
para coletar alumínio, plástico, papelão. Quando o
aterro foi inaugurado, a prefeita entregou o
barracão, uma prensa, um elevador de carga, um
bebedouro, dois banheiros e um caminhão para
trabalhar dentro do aterro. Ela também fez um
poço artesiano e uma instalação completa de água
e luz para o nosso barracão.

41
Foi em 2005 que nós começamos tentar a criar
nossa cooperativa, com o nome de COOPERATA,
que seria o nome fantasia. Tínhamos nosso
uniforme, trabalhávamos somente uniformizados,
cada um tinha dois uniformes. Começávamos às 7h
da manhã. Apesar que atrasavam, porque a maioria
ia de carona, alguns de bicicleta. O aterro está
aproximadamente uns 10 kilômetros da cidade.
Trabalhávamos até às 11h. Aí parava pro almoço,
duas horas de almoço. Daí pegava à 1 hora e

42
parava às 4 e meia, tinha vez que a gente parava
um pouco mais cedo, variava do dia e da carona.
Naquela época, na parte da manhã, a gente ia no
aterro e ficava lá até as 11horas, para separar o
material que chegava lá. Nessa época ainda não
existia a coleta seletiva, depois é que começou.
Depois das 11 a gente puxava pro barracão, era
coisa de 250 metros entre o aterro e o barracão. No
começo, a gente separava o material no chão, até
que eu pensei e executei uma mesa de madeira que
media 1,50 m por 5 metros de comprimento. Nessa
mesa ficavam de 6 a 10 pessoas de cada lado,
dependia do tanto de gente que tinha lá. Com essa
mesa, deixamos de despejar o material no chão,
para já despejá-lo em cima da mesa.
Nessa época, tentamos, mas não conseguimos
fundar a COOPERATA. Foi uma questão de
burocracia: as pessoas que disseram que nos
ajudariam não conseguiram. Fomos na UTAMBI,
que era uma associação, mas aí não conseguimos
nos transformar em uma associação. Aí fomos em
uma Associação de Bairros. Foi quando

43
conseguimos fundar a ASCARMATA. Associação de
Catadores de Materiais Recicláveis de Tangará da
Serra. E aí com a associação conseguimos a
autorização da prefeita para fazer a coleta dos
materiais recicláveis dos mercados de Tangará da
Serra. Pegamos dois mercados e uma padaria. O
Prudente e o Favorito. A Padaria era a Superpão.
Uma vez por semana a gente ia retirar o plástico, o
papelão, o que eles tinham de reciclável, a gente
pegava. Isso já era final de 2005, começando 2006.
Entre 2004 e 2007 ficamos no Aterro. Nessa época
trabalhávamos junto com o pessoal da prefeitura.
Chegava o material, o pessoal da prefeitura dava
um tempo para que a gente recolhesse, umas duas
horas, três horas. Depois disso, eles tinham que
fazer o aterro. Era uma espécie de parceria que às
vezes se abalava um pouco pelas trocas constantes
de secretários. Uma vez eu tive problemas com um
funcionário da prefeitura, porque ele não queria
esperar o tempo suficiente para que a gente
recolhesse o material que nos interessava. Na
verdade, foram só duas vezes que tive problema

44
com funcionário da prefeitura. Eu tinha mais
problema com visitante que ia descarregar lixo lá e
queria voltar carregado: de metal, de bateria de
carro, de coisas que ele sabia que davam dinheiro
vendendo.
Nessa época, nosso ganho era maior com as
latinhas e com os metais. Não existiam catadores
na rua, nem consciência de que este material vale
dinheiro, então, tudo ia parar lá no Aterro
Sanitário. Tínhamos que ter estômago para
procurar isso no lixo, mas encontrávamos coisas
boas.
Além de trabalharmos lado a lado com o pessoal da
prefeitura, a prefeitura também nos dava assessoria
através do NUPES, com o professor Neuri Senge.
Foi quando conhecemos o Prof. Sandro Sguarezi. Aí
a gente buscou uma alternativa para fazer a
fundação da Cooperativa. Em 2006 tentamos
fundar a Cooperativa em uma assembleia no La
Comuna, não deu certo. Não deu certo fundar a
cooperativa, mas nessa assembleia ela ganhou o

45
nome que tem hoje. Ainda era uma associação, mas
já ficou conhecida como COOPERTAN.
Continuamos com a Associação em 2006, dentro do
Aterro Sanitário, e buscando uma ideia para criar
uma cooperativa, para passar legalmente de
ASCARMATA para uma cooperativa.
Foi nessa época que a Prefeitura adaptou um
caminhão para fazermos a coleta seletiva. Era mais
na Vila Alta e no Centro. Coletávamos e levávamos
para o aterro. A Prefeitura colocou uma meta de
50% da cidade, mas não chegávamos nem a 30%.
Foi só no começo de 2007 que o Sandro pegou
esses documentos com os quais havíamos tentado
fundar a cooperativa e organizou tudo, conseguindo
o que a gente ainda precisava. Foi junto com ele
que conseguimos tudo o que precisávamos. No dia
12 de julho de 2007 conseguimos fazer o registro da
fundação, com edital publicado no Diário da Serra,
em uma Assembleia na Câmara dos Vereadores.
Nesse dia, a ASCARMATA se transformou em
COOPERTAN.

46
Assim que fundamos a cooperativa, recebemos a
proposta da prefeitura de ganharmos um barracão
na Linha 12. O SEMA não permitiria que
continuássemos no aterro sanitário. Essa era uma
grande preocupação da época: todos sabíamos que
nossos ganhos diminuiriam e muito. Naquela
época, não conseguíamos vender as coisas que
chegavam na coleta seletiva: papel, livro, caixa de
ovo, vidro, tetra-pack. Às vezes, a sacola do Recicla
chegava cheia de livro, a única coisa que a gente
aproveitava era a própria sacola. Aquilo era um
castigo pra gente. A gente não tinha comprador de
papel na região do Mato Grosso e o frete para São
Paulo era mais caro do que eles pagavam no nosso
carregamento.
O ano de 2007 foi muito difícil para a cooperativa.
Muitos dos fundadores saíram do projeto,
justamente porque nossa renda diminuiu muito.
No ano de 2008 fizemos nosso primeiro contrato
com o SAMAE, um contrato de prestação de
serviço, foi aí que melhorou um pouco. Além da
venda da produção, tínhamos esse dinheiro do

47
SAMAE, quer era um dinheiro depositado direto na
conta da cooperativa.
Linha 12
Em 2008 começou a aumentar a coleta seletiva: o
caminhão às vezes descarregava 4 vezes, sendo que
antes descarregava uma ou duas vezes. Nessa
época comecei a pensar no processamento do
plástico. Em 2008 também fomos visitar a
BIOTERRA, uma indústria de reciclagem, junto com
o pessoal do SAMAE. Eles trouxeram duas prensas
boas em 2008 e depois uma esteira (que não serviu
pra muita coisa) em 2010. Assinamos um
comodato: enquanto estávamos com as máquinas
deles, tínhamos que vender pra eles. Mas eles eram
a única empresa de Mato Grosso que pagavam
bem. Também vinham buscar o material. Foi daí
que deu certo, nos trabalhamos em 2008, melhorou
bem, 2009, nossa renda foi melhorando.
De 2004 a 2009 eu andei com o escritório da
cooperativa na bolsa, era eu quem fazia o
pagamento de todo mundo, de modo que essa
questão financeira começou a me preocupar e

48
comecei a buscar alternativas para nossa perda de
lucro, que acontecia desde que saímos do Aterro.
Em 2008 já tinha uma turma grande, de 26, 28
pessoas.
O lançamento e fechamento do pagamento do
pessoal quem fazia era o NUPES, através do
professor Neuri de 2008 até 2011. Em 2011 foi
quando construímos o escritório. Antes era só o
barracão. No escritório tinha espaço pra guardar
documentos.
Em 2009 tivemos a ampliação da coleta seletiva
para 100 por cento, a partir do projeto Tangará
Recicla. Até aí só tínhamos 1 caminhão, daí
passamos para 2 caminhões.
No período da ASCARMATA, eram cerca 22
cooperados. O pagamento era feito em dinheiro. O
conselho fazia uma reunião nos 2 últimos dias do
mês e dividia o que restava do fechamento do mês.
Tudo era feito na base da confiança. O dinheiro era
dividido e colocado num envelope, o conselho fazia
um recibo, assinava e eu fazia a entrega. Em 2006
o pagamento era feito no próprio lixão. Mas daí

49
ficamos com medo de ser assaltado. Era muito
dinheiro o pagamento de 22 pessoas.
As reuniões eram feitas cada mês na casa de uma
pessoa diferente, porque a gente mexia com
dinheiro e era perigoso. Isso foi até 2008 quando
começamos a trabalhar com contador e com o
Banco do Brasil.

50
Breve reflexões sobre a história da COOPERTAN
Por. Sandro Benedito Sguarezi2

Catadores/as de materiais recicláveis,


Catadores/as do lixão, da rua. Antes de 26 de
outubro de 2005, eu não os percebia, eram
invisibilizados ao meu olhar, eu não tinha a mínima
noção da importância dessa categoria de
Trabalhadores/as. Sabia que existia lixão, lixo
queimando, via, sentia e sofria com a fumaça. Mas
nunca tinha pisado num lixão. Tampouco falado
com um Catador/a.
Filho de agricultor, me tornei líder estudantil,
cooperei com a encampação do antigo Centro de
Ensino Superior de Tangará da Serra (CESUT) pela
Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT)
em 1995. Daí me tornei professor. Preocupado com
2
Professor da Universidade do Estado de Mato Grosso
(UNEMAT)Coordenador do Núcleo de Pesquisa, Extensão e
Estudos da Complexidade no Mundo do Trabalho (NECOMT) e
da Diretoria da Fundação Interuniversitária de Estudos e
Pesquisas sobre o Trabalho (UNITRABALHO). Coordenador da
Incubadora de Organizações Coletivas Autogeridas, Solidárias
e Sustentáveis (IOCASS), fundador e membro dos Grupos de
Pesquisa: Gestão agricultura familiar e agroecologia (GAFA) e
é Líder do Grupo de Pesquisa em Desenvolvimento Regional
Sustentável (GDRS).
51
a Agricultura Familiar criamos um projeto que
trabalhava com associações e cooperativas.
Foi daí que surgiu o convite do Edson Vicente da
Costa (Edinho Chê) – in memorian –, membros da
Sociedade Alternativa La Comuna e a época
estudante do Curso de Direito junto com o Anilton
Gomes da Sila e o Rogério Silva me convidaram
para apoiar a organização dos Catadores.
Posteriormente, em 2006, junto com o Professor
José Pereira Filho, que também era funcionário do
Banco do Brasil S/A formalizamos junto à UNEMAT
o Projeto: Programa Corporativo de
Desenvolvimento Regional Sustentável-DRS. Em
2007, passei a coordenar e executar o projeto, no
âmbito do Núcleo de Pesquisa, Extensão e Estudos
da Complexidade no Mundo do Trabalho-NECOMT.
Porém, para formalizar o projeto junto a
universidade criamos, em 2006, o Grupo de
Pesquisa em Desenvolvimento Regional Sustentável
e as Transformações no Mundo do Trabalho
(GDRS), certificado junto ao Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

52
Utilizando-se da metodologia de Incubação de
Empreendimentos Econômicos Solidários (EES),
desenvolvida pela Fundação Interuniversitária de
Estudos e Pesquisas sobre o Trabalho
(UNITRABALHO) e pelo Programa Incubadora de
Organizações Coletivas Autogeridas, Solidárias e
Sustentáveis (IOCASS), fomos desenvolvendo o
processo de formação técnica e política dos
Catadores/as de materiais recicláveis. Esse
processo se pautou pelos princípios da Educação
Popular, Economia Solidária, Tecnologia Social,
Cooperação, Autogestão, Solidariedade e Ação-
Econômica.
Ao mesmo tempo que o membros do
NECOMT/IOCASS/UNEMAT avançavam no
processo de formação partilhando conhecimento,
recebia em troca os saberes dos Catadores/as. Essa
troca se transformou em conhecimento.
Conhecimentos que se transformaram em relações
de confiança reciprocas.
Assim, em 12 de julho de 2007, com 22 sócios
(Catadores/as oriundos do lixão) foi fundada a

53
Cooperativa de Produção de Material Reciclável de
Tangará da Serra (COOPERTAN). Nesse processo
também foi importante a participação da professora
Ana Maria de Lima, do Professor Neuri Senger, cujo
texto abre esta coletânea de memórias, e de toda a
equipe do projeto.
Mas o essencial desse processo foi o protagonismo
dos Catadores/as, eles que demandavam a criação
da cooperativa. Se eles não criassem a cooperativa,
não teriam mais como exercer o trabalho lá no
Aterro Municipal de Tangará da Serra. Por outro
lado, o Serviço Autônomo de Água e Esgoto-SAMAE
– Autarquia do Poder Público Municipal – que opera
a gestão de resíduos sólidos no município foi
obrigada a dar apoio e a criar o Projeto Piloto do
Programa Tangará Recicla. Percebe-se que o
protagonismo desses/as trabalhadores/as levou a
instituição UNEMAT a criar um grupo de pesquisa,
desenvolver um projeto e também levou ao SAMAE
a implementar uma política pública.
Paralelo a isso a UNEMAT/NECOMT-GDRS
articularam junto ao Poder Público Local, e por

54
proposição dos Empreendimentos Econômicos
Solidários (EES) e do Vereador Jaconias José da
Silva (PT) foi criada a Lei Nº 2.460/2005, que
instituiu a Política Municipal de Fomento à
Economia Popular Solidária no Município de
Tangará da Serra-MT. Em 2007 também foi criada
a Lei Ordinária Nº 2752, que criou o Núcleo de
Participação Social e Economia Solidária.
Concomitantemente pela mobilização do Movimento
de Economia Solidária do Estado de Mato Grosso
em 2008, o governo do Estado de Mato Grosso
sancionou a Lei Estadual n. 8.936/2008, que criou
a política de fomento à economia solidária no
estado, vale lembrar que o mesmo governador tinha
vetado essa lei na íntegra em 2005.
Os Catadores/as da COOPERTAN em 2008
ingressam no Movimento Nacional de Catadores de
Materiais Recicláveis (MNCR). Eles também foram
protagonistas na criação do Fórum Municipal de
Economia Solidária de Tangará da Serra-MT, em
2007. Depois em 2011, junto com mais cinco EES
fundaram o Fundo Rotativo Solidária Unidos

55
Vivendo em Ação (FRS-UVA). Em 2012, a
COOPERTAN com o apoio do MNCR/MT e mais dois
empreendimentos cria a Rede Autogestionária de
Cooperativas e Associações de Catadores de
Resíduos Sólidos do Estado de Mato Grosso (REDE
CATAMATO), e com apoio da UNEMAT/NECOMT-
IOCASS-GDRS e do NUPES submete um projeto de
organização em rede junto à Fundação Banco do
Brasil (FBB). O projeto concorreu com mais de 80
projetos e foi aprovado em primeiro lugar, 11
pontos à frente do segundo colocado. É importante
salientar que a COOPERTAN também criou o seu
próprio Fundo Rotativo Solidário, denominado
Catadores Andando Juntos ambientalmente
(CAJA). Hoje o CAJA tem disponível para
empréstimo R$ 120.000,00 (cento e vinte e mil
reais). A finalidade do CAJA é atender as demandas
financeiras de seus sócios, sem cobrar juros dos
associados.
Assim a COOPERTAN foi se consolidando e
consolidando o Programa Tangará Recicla. O
primeiro contrato de prestação de serviços assinado

56
com o SAMAE foi em 2009, quando a cooperativa
passa a operar parte da coleta seletiva no município
com o seu primeiro caminhão adquirido com
recursos próprios. Em 2015, com o apoio da
Câmara Municipal de Vereadores a prefeitura doou
uma área de 20 mil m² onde está a atual sede da
cooperativa. Isso permitiu que em 2019 a
COOPERTAN passasse a trabalhar – ainda que de
maneira precária – na sua sede própria. Hoje a
COOPERTAN já está construindo seu segundo
barracão com aproximadamente 900 m², tem seu
escritório totalmente mobiliado.
Dentre os principais parceiros institucionais da
COOPERTAN, além do Poder Público Local, do
SAMAE, UNEMAT/NECOMT-IOCASS-GDRS está o
Ministério Público do Estado de Mato Grosso
(MPMT), que em 2011 passa a apoiar as ações da
incubadora e da cooperativa, o Ministério Público
do Trabalho (MPT) que repassou os primeiros
recursos para a construção do primeiro barracão da
COOPERTAN. Em 2022, numa ação inovadora a
COOPERTAN com o apoio do MPMT, da Associação

57
Brasileira das Indústrias de Vidro (ABIVIDRO), da
Associação Brasileira das Indústria de Bebidas
(ABRABE) e do GIG (Glass Is Good-Vidro É Bom),
passou a comercializar o vidro reciclável.
Hoje a COPERTAN tem 63 sócios/as Catadores/as,
não tem nenhum patrão, nenhum empregado. É
referência nacional em Autogestão. Além disso, a
coleta seletiva operada por Catadores/as, como é o
caso da COOPERTAN, cumpre com os princípios da
sustentabilidade na sua essência. É
economicamente viável porque seu custo de
operação com a coleta seletiva fica em torno de 10 a
20% do custo da coleta convencional e ainda
aumenta vida útil do aterro sanitário. É
socialmente justa porque tira os Catadores/as do
lixão e da rua e os coloca na cooperativa, garante
renda, cidadania, dignidade e promove o
desenvolvimento local sustentável. É
ecologicamente correta porque promove a economia
circular, evitando explorar os recursos naturais e
reinserindo matéria prima reciclável na cadeia
produtiva, evitando que o lixo vá para bueiros,

58
galerias ou mesmo poluindo a natureza e porque
promove a educação ambiental. É politicamente
correta, visto que pelo exercício da Autogestão
promove a formação política, a participação
qualificada fortalecendo a democracia.
A COOPERTAN se tornou um espaço de realizações
coletivas, é uma usina de produção de
conhecimento, é um espaço de construção de
ciência, desde a sua fundação, até 2021, já foram
catalogados mais de 50 trabalhos científicos
produzidos junto a cooperativa, entre monografias,
dissertações de mestrado, teses de doutorado,
artigos científicos, entre outros mostrando que o
processo de incubação se articula fortemente com a
extensão inovadora e promove a interlocução entre
com o ensino e a pesquisa. É um espaço de
produção de Tecnologias Sociais, pois os
Catadores/as aos poucos vão se apropriando de
conhecimentos e promovendo a adequação
sociotécnica e replicando esses processos junto a
Catadores/as de outros municípios do estado.

59
Sinceramente, eu nunca imaginei que em 15 anos
isso seria possível. Que da invisibilidade eu poderia
aprender tanto com esses Trabalhadores/as. Fazer
da coleta seletiva com inclusão socioprodutiva a
razão do meu trabalho como educador.
É fácil? Não. Se fosse fácil já teriam feito. Mas é
possível porque acreditamos no inédito viável
freiriano, é inédito porque ninguém fez, mas é
possível de JUNTOS fazê-lo. A Autogestão comporta
esse processo pedagógico que conduz à autonomia,
ao empoderamento.
Parabéns Catadora, Parabéns Catador da
COOPERTAN, GRATIDÃO pela jornada prazerosa
que estamos a construir.

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As narrativas foram coletadas transcritas por Alexandre Botton,
Alyne Gonçalves e Flavia Krauss
As imagens dos cooperados, com exceção da Dona Bárbara
(que é da Julie Rhaynara Lacerda) são de autoria de Iuri
Barbosa Gomes.
A revisão gramatical e estilística: é da Flavia Krauss
A diagramação também foi feita Flavia Krauss

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