Você está na página 1de 5

Emily Medeiros Emiliano (1812868)

Primeiro ensaio: Cotidiano Digital (2022.2)

“Singularidades em ruína” – um ensaio a partir da música “desconstrução” de


Tiago Iorc

Criada com objetivos militares na segunda metade do século XX, a internet


possibilitou a difusão das famosas redes sociais, que são compostas por membros
que compartilham um pouco da sua vida e das suas opiniões online. Atualmente,
influenciadores digitais expõem, em geral, somente as conquistas de suas vidas,
estabelecendo um modelo no qual muitas pessoas se inspiram. Em decorrência,
muitos se decepcionam após fracassarem em suas tentativas de atingirem esse
objetivo inalcançável.

O uso das mídias sociais parece fomentar uma ideia errônea na mente de
seus usuários: a possibilidade de construir uma nova identidade. Isso ocorre na
medida em que cada um pode construir o seu próprio perfil online e, nesse
momento, em geral, as pessoas consideram apenas suas virtudes.

“As redes sociais tornaram-se um gigante ponto de encontro de


contatos superficiais, distorcidos e estereotipados. Através das redes
sociais, cada um pode representar o papel que desejar, ser o que a
“sociedade espera”, opinar (ou não) sobre determinado assunto e
então, apropriar-se da repercussão do que foi exposto.” (Maia de
Oliveira & Figueira, 2017).

Enquanto o Instagram proporciona aos seus usuários a possibilidade de


escrever a sua biografia, o facebook pergunta: “no que você está pensando?” Já o
Twitter questiona: “o que está acontecendo?” Assim, os indivíduos constroem suas
identidades por meio de suas postagens (Dias & Couto, 2011) e esquecem-se da
própria personalidade.

Tiago Iorc, cantor e compositor brasileiro, em seu quinto álbum intitulado


“Troco Likes”, expressou em duas canções sua crítica à sociedade moderna que
briga pela atenção. Em “Alexandria”, o artista critica a liquidez moderna e o mar de
informações produzidas e consumidas todos os dias que se perde. Já em “Sol que
faltava”, Tiago Iorc critica o “mar de tanta indiferença” gerado a partir do excesso de
coisas expostas na internet “só para se mostrar”. Ele pergunta: “onde foi a última vez
que você se deixou livre, sem se retocar, sem se instagramear1?”

Apesar da crítica bem construída nessas duas canções do seu quinto álbum,
a melodia delas não valorizava o conteúdo devido ao ritmo mais “dançante”. Essa
característica das canções traz um paralelo importante com as redes sociais, onde
as pessoas constantemente valorizam mais a forma do que o conteúdo.

Entretanto, em maio de 2019, após um ano e quatro meses longe das redes
sociais e de qualquer notícia na imprensa, Tiago Iorc retornou à mídia com o álbum
“Reconstrução”, que contém músicas de sua autoria e clipes dirigidos pelo artista. A
primeira música do álbum foi intitulada “Desconstrução” e conta a história de uma
menina que perdeu a própria singularidade em meio às redes sociais.
Diferentemente das canções do último álbum, essa música é composta por uma
melodia dramática que sustenta o conteúdo da letra. Assim, o ouvinte é levado a
refletir acerca do seu significado e a entendê-lo melhor a partir da observação do
clipe.

A nova composição de Tiago Iorc parece reafirmar a realidade da frase


repetida tantas vezes no senso comum: a arte imita a vida. A música narra a história
de uma menina que mergulhou nas redes sociais em busca de atenção, mas
encontrou somente a própria solidão. Para tentar se satisfazer, abriu mão da sua
timidez e da sua virgindade; dramatizou a sua rotina, para que esta parecesse
interessante aos olhos dos outros; “vestiu um ego que não satisfez” e, assim, se viu
vazia, no meio de inúmeras pessoas iguais que, no clipe, são representadas por
manequins idênticos uns aos outros. Ao abrir mão da própria singularidade
encontrou a depressão e tornou-se só mais uma no meio de tantas pessoas iguais,
tentando assegurar uma curtida. Dessa forma, a personagem acreditava que se
satisfaria. Contudo, quanto mais buscava, mais se perdia. Segue a letra da canção:

“Quando se viu pela primeira vez


Na tela escura de seu celular
Saiu de cena pra poder entrar

1
Neologismo criado pelo artista a partir da palavra “instagram”, usada para se referir à mídia social no
qual as pessoas publicam fotos e vídeos.
E aliviar a sua timidez
Vestiu um ego que não satisfez
Dramatizou o vil da rotina
Como fosse dádiva divina
Queria só um pouco de atenção
Mas encontrou a própria solidão
Ela era só uma menina

Abrir os olhos não lhe satisfez


Entrou no escuro de seu celular
Correu pro espelho pra se maquiar
Pintou de dor a sua palidez
E confiou sua primeira vez
No rastro de um pai que não via
Nem a própria mãe compreendia
No passatempo de prazeres vãos
Viu toda a graça escapar das mãos
E voltou pra casa tão vazia

Amanheceu tão logo se desfez


Se abriu nos olhos de um celular
Aliviou a tela ao entrar
Tirou de cena toda a timidez
Alimentou as redes de nudez
Fantasiou o brio da rotina
Fez de sua pele sua sina
Se estilhaçou em cacos virtuais
Nas aparências todos tão iguais
Singularidades em ruína

Entrou no escuro de sua palidez


Estilhaçou seu corpo celular
Saiu de cena pra se aliviar
Vestiu o drama uma última vez
Se liquidou em sua liquidez
Viralizou no cio da ruína
Ela era só uma menina
Ninguém notou a sua depressão
Seguiu o bando a deslizar a mão
Para assegurar uma curtida”

A história da música “Desconstrução” ilustra de maneira clara esse novo


fenômeno presente na sociedade que afeta, especialmente, os jovens. As curtidas,
tão sonhadas pela menina descrita na música, parecem uma espécie de motivação
para a desconstrução da própria identidade na busca pelo enquadramento aos
padrões inalcançáveis e considerados ideais.

Zygmunt Bauman, sociólogo polonês, em seu livro “Vida líquida” escreveu:

“A vida numa sociedade líquido-moderna não pode ficar parada.


Deve-se modernizar-se (leia-se: ir em frente despindo-se a cada dia
dos atributos que ultrapassaram a data de vencimento, repelindo as
identidades que atualmente estão sendo montadas e assumidas) ou
perecer.” (Bauman, 2007)

A menina cuja história é contada na canção de Tiago Iorc pereceu. A última


estrofe da poesia parece relatar um suicídio, precedido por uma depressão que não
foi notada por ninguém. O compositor relata que ela “estilhaçou seu corpo celular” e
“se liquidou em sua liquidez”, fazendo referência ao conceito de vida líquida
inaugurado pelo sociólogo Zygmunt Bauman.

Nesse sentido, é importante salientar que um estudo foi publicado em


novembro de 2018 por Melissa G. Hunt sobre a relação entre o uso das redes
sociais e depressão e solidão. Sua pesquisa, disponibilizada no “Journal of Social
and Clinical Psychology”, foi realizada na Universidade da Pensilvânia (EUA) e
verificou que a diminuição do uso do Facebook, Snapchat e Instagram reduz
depressão e solidão. Hunt afirmou:

“Algumas das publicações existentes sobre redes sociais sugerem que


há uma enorme quantidade de comparação social que acontece.
Quando você olha para a vida de outras pessoas, particularmente no
Instagram, é fácil concluir que a vida de todos é mais legal ou melhor
que a sua”.

Alguns artistas, como Tiago Iorc, têm retratado em suas obras o atual cenário
de maneira clara. Tal postura é de suma importância uma vez que é capaz de
direcionar a atenção do público a essa situação. Contudo, isso não é suficiente para
diminuir os impactos negativos dessa cultura. É necessária uma mudança de
postura frente a essa realidade a fim de preservar as diferentes singularidades e
minimizar os prejuízos ocasionados pelo uso excessivo de mídias sociais.

Referências Bibliográficas

BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2007.

DIAS, Cristiane et al; COUTO, Olivia Ferreira. As redes sociais na divulgação e


formação do sujeito do conhecimento: compartilhamento e produção através da
circulação de ideias. Linguagem em (Dis) curso, 2011.

Diminuição do uso de redes sociais reduz depressão e solidão, diz novo estudo. G1,
2018. Disponível em:
https://g1.globo.com/bemestar/noticia/2018/11/09/diminuicao-do-uso-redes-sociais-re
duz-depressao-e-solidao-diz-novo-estudo.ghtml. Acesso em 18 de outubro de 2022.

Dois Dedos de Teologia. DECIFRANDO A DESCONSTRUÇÃO DE TIAGO IORC.


YouTube, 8 de maio de 2019. Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=ZZ_2JyChRwg. Acesso em 18 de outubro de
2022.

IORC, Tiago. TIAGO IORC - Desconstrução. YouTube, 5 de maio de 2019.


Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=UXTYErYEXsk. Acesso em 18 de
outubro de 2022.

MAIA DE OLIVEIRA, Rosa Maria; FIGUEIRA, Agostinho. Solidão, tecnologia e


inversão de valores com base na Pirâmide de Maslow. Facultad de
Psicología-Universidad de Buenos Aires, 2017.

Você também pode gostar