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ARISTÓTELES E A POLÍTICA
FRA N CIS W O L FF
tradução de
Thereza C hristina Ferreira S tum m er
e Lygia Araújo W atanabe
discurso editorial
C et o u vrage, p u b lié d a n s le cadre du p ro g ra m m e d e p a r tic ip a tio n à la
p u b lic a tio n , b é n éficie du s o u tie n du M in istè re fr a n ç a is des A ffa ire s E tra n g ères,
d e ! 'A m b a ssa d e de F rance au B résil, d e la M a iso n fr a n ç a ise de R io de Janeiro
et du C o n su la t G é n éra l de F rance à S ã o Pauto.
li,
JjF^
CONSULADO 6ERAL M IN I S T É R IO
d a Fr a n ç a /5 P DA CULTURA
C op yr ig h t © b y Presses U niversitaires de France, 1991
Título originai cm francês: A ri sto te et lu politiqu e.
C D D (I 9 .e d ) 185
320
3 20.5
41
discurso editorial
Av. Prof. Luciano G ualberto, 315 (sala 1033)
0 5 5 0 8 -9 0 0 - São Paulo - SP
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SUMÁRIO
7 D a p o lític a a té a P o lític a de Aristóteles
35 A fe lic id a d e de se viver ju n to
A nálise dos dois p rim eiro s capítulos d a P olítica
o 35
PRIM EIRO C A P ÍT U L O ,
Tese geral, 3 5
Primeira premissa: 'A cidade é uma comunidade” 36
Segunda premissa: "Toda comunidade
visa um certo bem”, 42
Terceira premissa: 'A comunidade política é aquela
que é soberana entre todas,
e inclui todas as outras”, 44
O direcionamento polêmico da tese, 45
Um método: a análise, 48
49
O S E G U N D O C A PÍT U L O ,
A comunidade de base da cidade: O lar, 50
A comunidade do vilarejo, 66
A comunidade política (cidade), 68
Observação ética, lógica e cosmo lógica, 74
N O T A SOBRE A ESC RAVIDÃO, 96
1 0 3 E m busca do ju sto regime. A nálise do Livro I I I
Estrutura de conjunto, 103
A classificação dos regimes (caps. 6 a 8), 105
Precisões prévias (caps. 1-5), 113
Em busca do regime mais justo (caps. 9-13), 118
O Capítulo 9, 123
A intenção dos capítulos 10-11, 129
Aristóteles e a democracia, 131
A defesa da soberania popular no Capítulo 11, 135
Os capítulos 12-13, 143
A realeza (caps. 14-17), 148
1 5 3 Referências bibliográficas
Este pequeno livro não tem outra pretensão além de preparar
ou acom panhar a leitura da Política de Aristóteles. O C apítulo 1 é
um a apresentação geral desta obra, a partir da história —ou antes, da
pré-história —do pensam ento político grego, seguida de um resum o
analítico destinado a facilitar seu acesso. O C apítulo 2 propõe um
com entário dos dois prim eiros capítulos da Política, ressaltando seus
objetivos próprios e ressituando-os no quadro mais geral da filosofia
de Aristóteles; segue-se um breve apêndice sobre a teoria da escravi
dão, exposta nos capítulos 4 a 7 do m esm o livro. O C apítulo 3 é co n
sagrado à análise do Livro III: é o livro fundam ental, do pon to de
vista político, porque ali Aristóteles classifica e com para os diferentes
regimes. Veremos que daí se depreende, em particular, um a defesa sin
gular do regime “dem ocrático”.
A escolha das passagens em que nos concentram os evidente
m ente não esgota o interesse da Política: o sociólogo ou o historiador,
até m esm o o “politólogo”, teriam sem dúvida privilegiado outros li
vros. Escolhem os abordar a Política de Aristóteles por onde ela mais
m arcou a história da filosofia política e por onde ela pode co n tin u ar a
alim entá-la.
D epreende-se um a certa lição geral: a de que só há política
determ inada por aqueles aos quais ela é destinada.
^ Ét. Nic.y X, 10, 1180 a 21. Esse C apítulo X, 10 da Ét. Nic. trata
das relações tão controvertidas, em Aristóteles, entre a ética e a
Da política até a Política de Aristóteles 21
INTENÇÃO INTENÇÃO
DESCRITIVA PRESCRITIVA
PROCEDIMENTO
ESPECULATIVO LIVROS I e III LIVROS II, VII e VIII
PROCEDIMENTO
POSITIVO LIVRO IV LIVROS V e VI
O PRIMEIRO CAPÍTULO
Tese geral
Os capítulos 1 e 2 da Política, de Aristóteles estabe
lecem os fundam entos de toda sua filosofia política. C ons
tituem um todo, e este todo já está de algum m odo contido
na prim eira frase: esta esboça um raciocínio cujos suportes
e conseqüências serão desenvolvidos no conjunto dos dois
capítulos, e, além disso, anuncia a sua conclusão, que é a
tese d o m in an te da Política. Ei-la: “A cidade tem por fina
lidade o soberano bem ”.
Esta conclusão fundam enta-se em três premissas:
1. “A cidade é um a (um certo tipo de) com unida
de” (1252 a 1).
2. “Toda com unidade é constituída em vista de um
certo bem ” (1252 a 2).
3- “D e todas as com unidades, a cidade é a mais so
berana e aquela que inclui todas as outras” (1252
a 3-5).
Disso se depreende facilmente que o bem próprio
visado por essa comunidade soberana é o bem soberano.
36 FRANCIS WOLFF
Terceira premissa: “
A comunidade política é aquela que
ésoberana entre todas, e inclui todas as outras”
Um método: a análise
O SEGUNDO CAPÍTULO
8 Fis., II, 9, 200 a 5 e ss. Ver tam bem Partes dos animais, I, 642 a.
^ £ o que observa W L. Newman, The Politics o f Aristotle, Vol. II, p. 105.
52 FRANCIS WOLFF
nidade dos sexos, perm ite ao anim al ser ele mesmo. Isola
do, um anim al estará condenado ao devir e ao não-ser.
Ele não pode, p ortanto, ser ele mesmo um a vez que não
pode^r.
O hom em , por sua vez, participa do divino de vá
rias maneiras: enquanto anim al, acabamos de ver com o
atinge a eternidade pela procriação. E nq u an to esse ani
mal, tem um a natureza específica, enquanto dotado de
pensamento, o hom em pode aceder à mais alta form a de
ser pelo “pensam ento teorético”, atividade mais elevada
da alma, independente de qualquer m atéria, e de qual
quer m udança, consistindo na contem plação pelo sábio
daquilo que é e que perm anece. E por aí que um in diví
duo pode, em certos m om entos, aceder sozinho à pleni
tude do ser1L Veremos adiante com o a com unidade polí
tica perm ite ao hom em , anim al dotado de logos, ser ele
m esm o, em um outro sentido.
Já se pode ver a im portância do terceiro registro
em que se desenrola esse tema: o registro ontológico. Ser,
para Aristóteles, é seja “ser em ato” (isto é, efetivam ente),
seja “ser em potência” (isto é, virtualm ente). U m a reali
dade qualquer é toda em ato quando é tudo aquilo que
pode ser. E o caso mais raro. Os traços do adulto são, por
exemplo, na criança, mas em potência; mas nem m esm o
o adulto exerce em n en h u m m om ento todas as suas facul
dades, nem desdobra todas as suas potencialidades. A pe
nas os seres im utáveis são sem pre tudo aquilo que podem
ser, o que só vale, entre os vivos, para o “prim eiro m o-
12 O que não significa que isto não responda a um fim (já vimos qual
é), m uito ao contrário; mas antes que esta finalidade é cega, ou
m elhor, que ela pode descartar a m ediação da reflexão e da escolha
(ver Fís., II, 8, 199 a 26-32).
60 FRANCIS WOLFF
dos sexos, justam ente eles que não têm necessidade de pro
criar, isto é, de se reproduzir, para ser eles mesmos, isto é,
para se perpetuarem na existência, tam pouco conhecem
a divisão senhor/escravo, pois sua vida não se esgota co
m o a dos animais. D ispensam , portanto, todos os traba
lhos, porque não têm necessidades a serem satisfeitas.
U m a vida que se reproduz para se perpetuar é im
perfeita, com o vimos, um a vez que a perpetuação da es
pécie consigna a m ortalidade do indivíduo (a vida per
feita dos deuses se p erpetua individualm ente), mas, ao
m esm o tem po, “im ita” com isso o ser acabado e tende
assim à perfeição. (A existência dos seres inanim ados, que
não se nutrem nem se reproduzem , é ainda mais precária
do que a dos seres vivos.) D a m esm a form a, um ser vivo
que deve trabalhar para satisfazer as necessidades de seu
corpo, por exemplo, para se alimentar, isto é, sim plesm ente
para reproduzir sua vida no dia-a-dia, para perpetuar sua
“forma”, é um ser imperfeito, mas, ao m esm o tem po, “im i
ta” com isso o ser acabado. E, no caso do hom em , o tra
balho “econôm ico” aparece, no que diz respeito à procria
ção, com o um desvio que lhe perm ite ou com o um
mal m enor que lhe perm ite atingir seu bem próprio en
q uanto vivente.
O trabalho “econôm ico” (econômico no sentido es
trito do term o, um a vez que se trata do trabalho exercido
no quadro privado do oikos, destinado a satisfazer as ne
cessidades “da vida de todos os dias”) é obra própria da
com unidade dom éstica, e p o rtanto obra com um ao m es
tre e ao escravo: “Eis por que a m esm a coisa é vantajosa
para um m estre e para um escravo” (1252 a 34).
A felicidade de se viver junto 63
^ N ote-se, no entanto, que os escravos são plenam ente hom ens: su
por que os escravos não têm virtude propriam ente hum ana “é ab
surdo, um a vez que são hom ens e com partilham da razão” (I, 13,
1259 b'2 7 -8 ).
15 Ver Ét. Nic., V III, 12, 1160 b 2-7 e 24-7.
66 FRANCIS WOLFF
F1 F2 F3
(objetivo do (objetivo do (objetivo da cidade:
lar: satisfação ( vilarejo: satisfa- estado de total
das necessidades ção das necessída- independência -
vitais cotidianas) des vitais cotidianas) vida boa, felicidade)
A fe licid a d e de se v iv er ju n to 11
eles mesmos e aqueles que são por outra coisa —os “aci
dentes”. Consideremos esses seres que não existem senão
por um outro (por exemplo, a cor amarela bem que exis
te, mas não por ela mesma; “amarelo” existe porque há
alguma coisa que é amarela, um pintinho, uma flor); é
evidente que sua existência é “inferior” àquela dos seres
dos quais dependem. Se X não existe senão por Y, Y “exis
te mais” que X. Do mesmo modo que levantávamos há
pouco, a respeito dos bens, a hipótese de que possa haver
somente coisas boas para outra coisa, levantemos desta vez
a hipótese de que possa haver somente seres que não exis
tem senão por um outro, em outras palavras, que “tudo
seja acidente”20. Estaríamos, evidentemente, também neste
caso, condenados a uma progressão até o infinito:
A-,1 —y 2A0 —3> A, —> ... —> An —> ... —>
Estrutura, d e co n ju n to
A primeira vista, há quatro grandes “blocos” no li
vro: inicialmente (caps. 1 a 5), o esclarecimento de algu
mas noções de base (“cidadão”, “cidade”, “virtude cívica”);
em seguida (caps. 6 a 8), a dedução e a classificação dos
diferentes regimes políticos; em seguida (caps. 9 a 13)',
uma espécie de “dissertação” sobre a justa distribuição do
poder; e, finalmente (caps. 14 a 17), o estudo da realeza.
104 FRANCIS WOLFF
poder
exercido por um só alguns a massa
regime
para todos realeza aristocracia
“constitucional”
O Capítulo 9 ,
O que estabelece o Capítulo 9? Os partidários dos
dois tipos de regime mais comuns no século IV, a “de
mocracia” e a “oligarquia”, defendem “seu” regime em
nome da justiça. Aplicam para isto o princípio da justiça
distributiva (a cada um segundo seu X), ao problema da
repartição do poder. Concordam sobre este princípio, mas
se opõem, é claro, sobre este X. O primeiro objetivo deste
capítulo será pô-los lado a lado mostrando: que seus ra
ciocínios eram válidos tanto um quanto o outro, não são
nem um nem outro concludentes; e que seus raciocínios
se fundam em uma falsa concepção da finalidade da
cidade.
Os “democratas” dizem de fato: deve-se dar a to
dos os cidadãos uma parte igual de poder, pois todos os
cidadãos são igualmente livres. A cada um segundo sua
liberdade. Os “oligarcas” dizem: deve-se dar uma parte
desigual de poder aos cidadãos, pois eles são desiguais em
riqueza. A cada um segundo sua riqueza. Ora, nem a li
berdade nem a riqueza são qualidades que devem ser le
vadas em conta na distribuição do poder. O argumento
de uns e de outros seria aceitável se a comunidade políti
ca tivesse por objetivo unir particulares. Se, por exemplo,
a cidade fosse uma associação de interesses privados, en-
124 FRANCIS WOLFF
9 Cf. os textos de V, 9, 1 3 1 0 a 2 5 -3 2 ; e de V I, 2, 1 3 1 7 b 1 1 -7 .
10 C f. Mct., A , 10 , 1 0 7 5 a 19 -2 2 .
134 FRANCIS WOLFF
Os capítulos 12-13
Em perfeita conformidade com o Capítulo 1, que
definia o cidadão como aquele que exerce os poderes de
liberativo e judiciário, o Capítulo 11 acaba de atribuir esses
mesmos poderes ao conjunto do povo. Mas restam todas
as outras funções públicas, as “magistraturas” em sentido
estrito. Como é ju sto repartí-los? Tentemos novamente
aplicar o princípio de justiça distributiva a cada um se
gundo seu X, isto é, deve-se dar partes iguais às pessoas
iguais (1282 b 17-22). Iguais em quê?, tudo está aí. E
necessário pôr-áe de acordo sobre esse X.
Não pode ser uma qualidade qualquer, por mais
admirável que seja, mas “é necessário formular sua rei
144 FRANCIS WOLFF