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Trabalho orientado pela professora Dra. Mail Marques de Azevedo
Para fazer a análise dos diários de Lima Barreto, em que pese a posição crítica
sobre a ficcionalidade intrínseca dos gêneros autobiográficos, é imprescindível para
este estudo salientar, de início, momentos importantes da vida do escritor.
2 A ESCRITA DE DIÁRIOS
[...] em situações de extrema solidão interior, o diário faz as vezes de um amigo em quem se
pode confiar. Oferece a possibilidade de nos evadirmos de um dia-a-dia tantas vezes penoso.
Reencontro que é também uma libertação. Está-se mais só e mais livre. (1997, p. 45-6)
Em termos mais amplos, é lícito dizer que as pessoas escrevem diários para
preservar um momento da vida, a que podem retornar no futuro. O diário teria,
portanto, a função de conservar a memória. Philippe Lejeune aponta outras funções
do gênero, que levariam o diarista a escrever: sobreviver, desabafar, conhecer-se,
deliberar, resistir, pensar e escrever (2008, p. 261-5).
Nossa análise dos diários de Lima Barreto é feita com base nas funções que
teriam para o autor, e que o texto permite entrever.
3 DIÁRIO ÍNTIMO
2 As referências posteriores ao Diário íntimo e ao Diário do hospício serão indicadas, respectivamente, pelas iniciais DI
e DH, entre parênteses, seguidas da data de publicação e número de páginas das edições utilizadas neste estudo.
Hoje, depois de ter levado quase todo o mês passado entregue à bebida, posso escrever calmo. O
que me leva a escrever estas notas é o fato de o Brasil ter quebrado a sua neutralidade na guerra
entre a Alemanha e os Estados Unidos, dando azo a que êste mandasse uma esquadra poderosa
estacionar em nossas águas. A dolorosa situação dos homens de côr nos Estados Unidos não
devia permitir que os nossos tivessem alegria com semelhante coisa, pois têm. Néscios. Eu me
entristeço com tal coisa, tanto mais que estou amordaçado com o meu vago emprêgo público. (DI,
1953, p. 191).
Até mesmo fatos que tocam sua vida apenas superficialmente despertam-
lhe reflexões sombrias. Entristecido pela situação dos homens de cor nos Estados
Unidos, e revoltado com a atitude de seus compatriotas, - néscios que recebem
festivamente a esquadra americana - busca no diário um confidente, e um espaço
para voltar a escrever.
Dolorosa vida a minha! Empreguei-me e há três meses que vou exercendo as minhas funções. A
minha casa ainda é aquela dolorosa geena pra minh´alma. É um mosaico tétrico de dor e de tolice.
Meu pai, ambulante, leva a vida imerso na sua insânia. Meu irmão, C ..., furta livros e pequenos
objetos para vender. Oh! Meu Deus! Que fatal inclinação a dêsse menino! Como me tem sido
difícil reprimir a explosão. Seja tudo o que Deus quiser! (DI, 1953, p. 41)
Sua carreira literária foi marcada pelas dificuldades. Em 1904, sem datar, ele
desabafa: “Não se pode compreender no nosso tempo (...) que um cidadão merece
injúrias, só porque publicou um livro. Seja o livro bom ou mau. Os maus livros fazem
os bons, e um crítico sagaz não deve ignorar tão fecundo princípio” (DI, 1953, p. 56).
Hoje, dia de ano-bom (1º. de janeiro de 1905) levantei-me como habitualmente às sete e meia
para as oito horas. Fiz a única ablução do meu asseio, tomei café, fumei um cigarro e li os jornais.
Acabando de lê-los, arrumei as paredes do meu quarto. Preguei aqui, ali, alguns retratos e figuras,
e êle tomou um aspecto mais garrido. Há, de mistura com caricaturas do Rire e do Simplicissimus,
retratos de artistas e generais. (DI, 1953, p. 71)
Marcello Mathias destaca o aspecto híbrido dos diários como narrativa pronta
e ainda por fazer:
[...] ‘o diário é um livro já feito e ainda por fazer’, ou seja, tem um começo, mas não necessariamente
um fim, como dias inacabados, sendo ‘uma narrativa irregular constituída por fragmentos’,
possuindo a particularidade única que não existe em nenhum outro texto literário de poder ser
interrompido pela morte sem que por isso fique inacabado. (1997, p. 45)
Emendei-o como pude e nunca encontrei quem o quisesse editar em livro. Em fins de 1915, devido
a circunstâncias e motivos obscuros, cismei em publicá-lo. Tomei dinheiro daqui e dali, inclusive do
Santos, que me emprestou trezentos mil-réis, e o Benedito imprimiu-o. Os críticos generosos só se
lembravam diante dêle do Dom Quixote. (DI, 1953, p. 181)
O ano que passou foi bom para mim. Em geral, os anos em 7 fazem grandes avanços aos meus
desejos. Nasci em 1881; em 1887, meti-me no alfabeto; em 1897, matriculei-me na Escola
Politécnica. Neste andei um pouco, no caminho dos meus sonhos. Escrevi quase todo o Gonzaga
de Sá, entrei para o Fon-Fon, com sucesso, fiz a Floreal e tive elogio do José Veríssimo, nas
colunas de um dos Jornais do Comércio do mês passado. Já começo a ser notado. (DI, 1953, p.
125)
Não tenho editor, não tenho jornais, não tenho nada. O maior desalento me invade. Tenho sinistros
pensamentos. Ponho-me a beber; paro. Voltam êles e também um tédio da minha vida doméstica,
do meu viver cotidiano, e bebo. (DI, 1953, p. 171)
Desde menino, eu tenho a mania do suicídio. Aos sete anos, logo depois da morte de minha mãe,
quando eu fui acusado injustamente de furto, tive vontade de me matar. Foi desde essa época
que eu senti a injustiça da vida, a dor que ela envolve, a incompreensão da minha delicadeza, do
meu natural doce e terno; e daí também comecei a respeitar supersticiosamente a honestidade,
de modo que as mínimas cousas me parecem grandes crimes e eu fico abalado e sacolejante. (DI,
1953, p. 135)
Hoje, quando essa triste vontade me vem, já não é o sentimento da minha inteligência que me
impede de consumar o ato: é o hábito de viver, é a covardia, é a minha natureza débil e esperançada.
... Há dias que essa vontade me acompanha; há dias que ela me vê dormir e me saúda ao acordar.
Estou com vinte e sete anos, tendo feito uma porção de bobagens, sem saber positivamente nada;
ignorando se tenho qualidades naturais, escrevendo em explosões; sem dinheiro, sem família,
carregado de dificuldades e responsabilidades. Mas de tudo isso, o que mais me amola é sentir
que não sou inteligente. Mulato, desorganizado, incompreensível e incompreendido, era a única
cousa que me encheria de satisfação, ser inteligente, muito e muito! (DI, 1953, p. 135)
De há muito sabia que não podia beber cachaça. Ela me abala, combale, abate todo o organismo,
desde os intestinos até à enervação. Já tenho sofrido muito com a teimosia de bebê-la. Preciso
deixar inteiramente. [...] No dia 30 de agôsto de 1917, eu ia para a cidade, quando me senti mal.
Tinha levado todo o mês a beber, sobretudo Parati. Bebedeira sôbre bebedeira, declarada ou não.
Comendo pouco e dormindo sabe Deus como. Andei porco, imundo. (DI, 1953, p. 192-3)
Desse ponto até as internações vai apenas um passo: “A segunda vez que
estive no hospício de 25 de dezembro de 1919 até 2 de fevereiro de 1920. Trataram-
me bem, mas os malucos, meus companheiros, eram perigosos”. Nesse trecho de
seu diário, Lima Barreto descreve rapidamente os momentos vividos no período em
que ficou internado no hospício.
Estou no Hospício ou, melhor, em várias dependências dele, desde o dia 25 do mês passado.
Estive no pavilhão de observações, que é a pior etapa de quem, como eu, entra para aqui pelas
mãos da polícia. Tiram-nos a roupa que trazemos e dão-nos uma outra, só capaz de cobrir a nudez,
e nem chinelos ou tamancos nos dão. (DH, 1993, p. 23)
(...) Da outra vez, fui para a casa-forte e ele me fez baldear a varanda, lavar o banheiro, onde me
deu um excelente banho de ducha de chicote. Todos nós estávamos nus, as portas abertas, e eu
tive muito pudor. Eu me lembrei do banho de vapor de Dostoievski, na Casa dos Mortos. Quando
baldeei, chorei; mas lembrei de Cervantes, do próprio Dostoievski, que pior deviam ter sofrido em
Argel e na Sibéria. (DH, 1993, p. 24)
Agora, que, creio, ser a última ou a penúltima, porque daqui não sairei vivo, se entrar outra vez,
penetrei no pavilhão calmo, tranqüilo, sem nenhum sintoma de loucura, embora toda a noite tivesse
andado pelos subúrbios sem dinheiro, a procurar uma delegacia, a fim de queixar-me ao delegado
das cousas mais fantásticas dessa vida, vendo as cousas mais fantásticas que se possa imaginar.
(DH, 1993, p. 38).
Nesta secção, como na outra em que estive, não faltam sujeitos que tenham recebido certa
instrução; há até os formados. Eu não tenho nenhuma espécie de superstição pelos nossos títulos
escolares ou universitários; eles dão algumas vezes algum saber profissional, muito restrito e
ronceiro, e nunca uma verdadeira cultura; mas, em todo o caso, a convivência nas escolas com
rapazes de inteligência mais aguda, mais curiosos de saber e conhecer atividade mental indígena
ou estrangeira, dá a alguns uma tintura das altas cousas que, nesta minha solidão intelectual, num
meio delirante, seria um achado encontrar um. (DH, 1993, p. 42)
Mas na secção Pinel, aconteceu-me cousa mais manifesta, da estupidez do guarda e da sua
crença de que era meu feitor e senhor. Era este um rapazola de vinte e tantos anos, brasileiro, de
cabeleira solta, com um ar de violeiro e modinheiro. Estava deitado no dormitório que me tinham
(...) entretanto, minha casa, o delírio de minha mãe... Oh! Meu Deus! Tanto faz, lá ou aqui ... Sairei
desta catacumba, mas irei para a sala mortuária que é minha casa. Meu filho ainda não delira; mas
a toda a hora espero que tenha o primeiro ataque... Minha mulher faz-me falta, e nestas horas eu
tenho remorsos como se a tivesse feito morrer. Logo, porém, como vem de mim mesmo ou de fora
de mim uma voz que me diz: é mentira. (DH, 1993, p. 60)
Desde a minha entrada na Escola Politécnica que venho caindo de sonho em sonho e, agora que
estou com quase quarenta anos, embora a glória me tenha dado beijos furtivos, eu sinto que a vida
não tem mais sabor para mim. Não quero, entretanto, morrer; queria outra vida, queria esquecer
a que vivi, mesmo talvez com perda de certas boas qualidades que tenho, mas queria que ela
fosse plácida, serena, medíocre e pacífica, como a de todos. Penso assim, às vezes, mas, em
outras, queria matar em mim todo o desejo, aniquilar aos poucos a minha vida e sumir-me no todo
universal. Esta passagem várias vezes no Hospício e outros hospitais deu-me não sei que dolorosa
angústia de viver que eu me parece ser sem remédio a minha dor. (DH, 1993, p. 50)
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por outro lado, fazendo a leitura de seus diários, ficamos conhecendo melhor a
figura do homem e do escritor que, apesar de ter passado por momentos difíceis, na
vida pessoal e profissional, ultrapassou as expectativas dos leitores, comovendo-os
com suas atitudes e sua sensibilidade.
Lima Barreto relata em seus diários que não sabia como lidar com a grave
situação gerada pelo vício da bebida, fato que o afligia. Mas, como grande artista,
consegue transformar a provação em criação, e faz das crises existenciais meios de
colocar em ação sua inteligência e seu talento, para relatar várias passagens de sua
vida.
BARRETO, Afonso Henriques de Lima. Diário íntimo. São Paulo: Brasiliense, 1956.
217 p.
____. Diário do hospício. O cemitério dos vivos. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal
de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de
editoração, 1993. 222 p.
I
Mestranda em Teoria Literárura no Centro Universitário Campos de Andrade