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American Museum of Natural History, New York.
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Universidade Federal do Pará, Laboratório de Antropologia, Coordenadora do Curso de Pós-Gradua-
ção em Arqueologia. Contato: denise@marajoara.com.
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Esse ensaio foi escrito por Robert Carneiro há mais de dez anos e permanecia inédito, sendo compar-
tilhado apenas por alguns poucos antropólogos e arqueólogos interessados no desenvolvimento de
complexidade social na Amazônia. Apesar de não contemplar a bibliografia produzida nos últimos 8 ou
10 anos, o trabalho continua bastante atual e sua revisão da história do debate sobre cacicados,
esperamos, será de grande valia para os estudiosos dos processos de mudança cultural na Amazônia.
mento tornou-se difícil de manter nas clusão parecia inevitável: onde quer que
florestas tropicais, onde a agricultura de cacicados tivessem aparecido no norte
coivara é praticada... da América do Sul, eles tinham aparen-
Desta maneira, a cultura circum-ca- temente se desenvolvido localmente a
ribenha foi forçada a declinar para o ní- partir de culturas simples, mas ainda as-
vel de floresta tropical. Cacicados desfi- sim agricultoras (Rouse, 1953:195-197).
zeram-se em aldeias autônomas. Che- Vamos agora voltar nossa atenções
fes supremos foram reduzidos a chefes para Betty Meggers e Clifford Evans e
de aldeias locais. Especialistas em tem- seu papel no desenvolvimento de teorias
po integral perderam seus empregos. E sobre a pré-história amazônica. Por qua-
os cultos ídolo-templo-sacerdote se de- se um século é sabido que grandes e bem
sintegraram, deixando em seu lugar ornamentadas urnas funerárias eram
somente simples xamanismo. Para encontradas em vários sítios na ilha de
Steward, então, a cultura de floresta tro- Marajó, na foz do Amazonas. A alta qua-
pical não tinha se desenvolvido a partir lidade da artesania desses vasos suge-
das culturas marginais, mas tinha invo- ria que tinham sido feitos por uma cul-
luído a partir da cultura circum-caribe- tura relativamente avançada. Qual era
nha. Da foz do Orenoco, Steward a natureza e origem daquela cultura? E,
(1949:770) viu essa cultura, agora di- uma vez que não tinha sobrevivido à épo-
minuída, espalhando-se ainda mais na ca do contato, o que teria levado ao seu
direção leste através das Guinas e en- desaparecimento? Essas eram questões
tão subindo o Amazonas para o coração que Meggers e Evans se propuseram a
do continente. responder quando eles começaram a
Esta interpretação da pré-história escavar na ilha de Marajó em 1949.
Amazônica foi logo colocada em teste por O que eles encontraram parecia con-
Irving Rouse para o norte da América do firmar a visão de Steward. Suas escava-
Sul e por Betty J. Meggers e Clifford ções mostraram que uma cultura com-
Evans para a foz do Amazonas. Rouse plexa, que eles chamaram Marajoara, ti-
começou por assinalar que, se a teoria nha uma vez existido em Marajó, e so-
circum-caribenha de Steward estava cer- bre essa cultura eles escreveram:
ta, iriam ser encontradas culturas nessa Toda a evidência arqueológica indica que
região mostrando a seguinte seqüência representa uma cultura de nível de desen-
estratigráfica: volvimento circum-caribenho ou sub-andi-
no, com uma tecnologia e organização so-
1. Uma série de Culturas Marginais, re- ciopolítica mais avançada do que de seus
presentando a ocupação original da área. predecessores ou sucessores no baixo Ama-
zonas. As grandes obras de terra erigidas
2. Cultura Circum-Caribenha, indo dos como sítios de habitação e os cemitérios
Andes e se disseminando por toda a parte. implicam a organização de trabalho e de
liderança para dirigi-los. Estratificação so-
3. Cultura de Floresta Tropical, desenvol- cial é mais diretamente revelada no trata-
vendo na parte central da área e se espa- mento diferenciado aos mortos. Divisão do
lhando em direção sul para as Guianas ... trabalho é também sugerida pela elabora-
(Rouse 1953:189). da e variada arte cerâmica ... Ainda que
não existam templos, a existência e ídolos
Mas essa seqüência não foi o que a e de elaboradas práticas funerárias indica
evidência arqueológica revelou. Em ne- um sistema religioso bem desenvolvido (Me-
ggers & Evans, 1957:593).
nhum lugar onde a cultura circum-cari-
benha foi encontrada era a primeira cul- A natureza da cultura Marajoara era
tura cerâmica e horticultora a ter surgi- evidente, mas sua origem continuava a
do. Em todos os lugares, era antecedida ser um mistério. Essa cultura parece ter
pela cultura de floresta tropical. A con- chegado na ilha de Marajó no ápice de
ambientais sustentadas pelo rio Amazo- ainda estavam faltando, e algumas fei-
nas. Ao longo das margens do rio, e so- ções tinham que ser retocadas. Mas estes
bre suas ilhas, existe um tipo de terra refinamentos estariam somente alguns
chamado várzea. O rio inunda essa ter- dez anos à frente na estrada, então me
ra a cada ano, cobrindo-a com uma ca- deixem continuar a contar a história de
mada de lodo. Por causa desse reabas- maneira cronológica.
tecimento anual, a várzea é uma terra No ano seguinte ao aparecimento de
agrícola de primeira qualidade que pode
A Theory of the Origin of State, Betty
ser cultivada ano após ano sem nunca
Meggers publicou Amazonia, Man and
ter que deixá-la descansar. Logo, entre
Culture in a Counterfeit Paradise (1971).
os agricultores nativos, era altamente
Esse livro mostrou claramente que, du-
considerada e grandemente cobiçada.
rante os anos que se passaram, Meggers
As águas do Amazonas eram também tinha ampliado e aprofundado seu en-
extraordinariamente generosas, proven- tendimento da pré-história Amazônica.
do peixes, peixes-boi, tartarugas e ovos Primeiro de tudo, ela estava, agora, to-
de tartarugas, assim como outros ali- talmente consciente da existência pré-
mentos ribeirinhos em quantidades ine-
via de cacicados ao longo do Amazonas.
xauríveis. Em virtude dessa concentra-
De fato, um capítulo de seu livro (Me-
ção de recursos, o Amazonas, como ha-
ggers, 1971:121-149) apresentava um
bitat, era distintivamente superior às
esboço de duas dessas chefaturas, os
terras do interior.
Omágua e os Tapajós. Em segundo lu-
A concentração de recursos ao longo gar, Meggers não mais sustentava que
do Amazonas equivalia quase a um tipo qualquer cacicado encontrado na bacia
de circunscrição. Enquanto não existia amazônica fosse necessariamente intru-
clara separação entre terras produtivas sivo; eles poderiam muito bem ter emer-
e improdutivas, como havia no Peru, gido ali. E em terceiro lugar, ela descar-
existia um gradiente ecológico claro.
tava a visão da Amazônia como um am-
Logo, muito mais recompensador era o
biente indiferenciado de floresta tropi-
rio Amazonas e áreas adjacentes e tão
cal com capacidade de carga baixa e
desejado se tornou como habitat que os
uniforme. Agora ela claramente reconhe-
povos das regiões vizinhas foram atraí-
cia a diferença crucial entre várzea e
dos a ele. Eventualmente, concentração
terra firme, e enfatizou como algo im-
ocorreu ao longo de muitas partes do
portante essa distinção. Logo, ela sus-
rio, ocasionando guerras nas áreas ribei-
rinhas. E os que perdiam a guerra, para tentava que, por causa de seu rico alu-
que continuassem a ter acesso ao rio, vião e seus recursos aquáticos inesgo-
freqüentemente não tinham escolha se- táveis, a várzea era totalmente capaz de
não submeter-se aos vitoriosos. Por essa dar origem a culturas do tipo cacicado,
subordinação de aldeias a um chefe su- enquanto a terra firme não era.
premo que surgiu ao longo do Amazo- Ao final de seu capítulo sobre as cul-
nas, cacicados representaram um passo turas da várzea, Meggers (1971:146)
além na evolução política que tinha ocor- mais uma vez levanta a questão que por
rido em outras partes da bacia Amazô- muito tempo a intrigava.
nica (Carneiro, 1970:736-737).
O alto nível de desenvolvimento cultural
Com isso, eu pensei ter apresentado adquirido na várzea, [ela escreveu], nos faz
um relato coerente, consistente e con- questionar se isso é principalmente um re-
clusivo sobre como os cacicados amazô- flexo da grande acessibilidade dessa por-
ção das terras baixas amazônicas às influ-
nicos teriam emergido. Alguns aconte-
ências emanando da área andina ou se isso
cimentos, no entanto, iriam me mandar pode ser explicado como conseqüência de
de volta ao atelier. Algumas pinceladas evolução cultural.
não são de seu gosto, e oferecendo sua os grupos vencidos poderiam ter se mu-
própria, audaciosa e ambiciosa, recons- dado para o interior e desta maneira per-
trução. manecido autônomos, mas, em vez dis-
As primeiras 56 páginas de Parmana so, eles teriam escolhido não fazê-lo.
contêm a mais completa e incisiva críti- Frente às alternativas de manter sua
ca das interpretações teóricas da Ama- autonomia, por um lado, e ficar perto
zônia jamais realizadas. Um por um, dos generosos recursos alimentares do
Roosevelt pega os argumentos de todos Amazonas, por outro, eles tinham esco-
os teóricos antropológicos conectados lhido a última.
com a Amazônia, e cada um deles cai O que estava faltando em minha apli-
sentindo a dor de sua chicotada. Ao dis- cação da teoria, para que não fosse vo-
cutir minha teoria sobre a origem dos luntarista, era algo que dissesse que o
cacicados amazônicos, Roosevelt pare- grupo vencido não poderia ter se muda-
ce pronta para aceitar dois de seus ele- do para longe, porque não havia para
mentos: a noção de que cacicados emer- onde ir. E, ao omitir tal afirmação, aca-
giram através da guerra de conquista e bei implicando que existia um local para
o fato de que a pressão populacional foi ir, mas que eles tinham escolhido não
o que causou a guerra. ir; logo, meu cenário era de fato volun-
tarista.
Entretanto, Roosevelt fez uma obje-
ção à cadeia de argumentos que eu apre- Eu devo dizer que, mesmo antes de
sentei para dar conta do estopim da Roosevelt ter publicado sua crítica, eu
guerra de conquista. Especificamente, estava vagamente consciente dessa con-
ela argumentou que meu uso da con- tradição. Mas só vagamente. E em vez
de enfrentar isso de frente, eu tinha dei-
centração de recursos estava falho. A
xado essa questão adormecida em al-
maneira com que eu apliquei à Amazô-
gum lugar da minha mente. Agora eu
nia, ela disse, continha um elemento de
era forçado a confrontá-la e, se possí-
voluntarismo. Bem, em meu artigo de
vel, resolvê-la.
1970 eu tinha enfaticamente rejeitado
teorias voluntaristas de desenvolvimen-
to político, argumentando que somente A reformulação da
uma coercitiva poderia fazê-lo. Logo, dis-
se Roosevelt, minha introdução e certo concentração de recursos
voluntarismo na descrição da emergên- Desde 1980, eu tinha pensado bas-
cia dos cacicados amazônicos envolvia- tante sobre concentração de recursos, e
me em uma contradição. E ela estava acabei por vê-lo sob uma nova perspec-
certa. tiva (Carneiro, 1987). Concentração de
Sem que eu me desse conta, a ex- recursos esteve realmente envolvida na
planação dos cacicados amazônicos que emergência dos cacicados amazônicos,
eu tinha proposto de fato estava man- mas não agiu sozinha. Ela operou ao criar
chada com voluntarismo. Considerando circunscrição social, com todas as suas
esta frase-chave de meu artigo: ...e os inevitáveis conseqüências.
vencidos na guerra, para que pudessem Eu devo dizer uma palavra aqui so-
ainda ter acesso ao rio (e a seus recur- bre circunscrição social. Esse conceito
sos) freqüentemente não tinham outra não estava em minha formulação origi-
escolha senão submeter-se aos vitorio- nal da teoria da circunscrição. Ele foi adi-
sos [ênfase adicionada]. Mas as palavras cionado em 1970, tendo sido empresta-
freqüentemente não tinham outra esco- do de Napoleon Chagnon, que inventou
lha eram ambíguas e ilusórias. O que eu e cunhou o termo em 1968. Tão logo
estava realmente dizendo era que eles Chagnon o propôs, eu reconheci sua uti-
tinham uma escolha. Isso implicava que lidade. Para mim parecia ser a chave para
entender como o estado poderia emer- Essa pode não ser uma evidência con-
gir em áreas como as terras baixas Mai- clusiva para a existência de circunscri-
as, onde a circunscrição ambiental não ção social ao longo do Amazonas no
existia. momento em que os primeiros cacica-
Brevemente, circunscrição social re- dos surgiram, mas pelo menos aponta
sulta quando densidade populacional naquela direção.
cresce em uma dada área, chegando ao Com essa reformulação da teoria da
ponto em que as pessoas são impedidas circunscrição aplicada à Amazônia, o
de se mover de seus locais porque todas demônio do voluntarismo tinha sido
as terras em volta estão ocupadas. As exorcizado. Assim como os cacicados em
conseqüências militares e políticas da outros lugares do mundo, aqueles da
circunscrição social são claras. Ela age Amazônia emergiram através da guerra
essencialmente da mesma maneira que de conquista, desencadeada pela pres-
a circunscrição ambiental. Um grupo são populacional, operando em uma re-
vencido na guerra, não tendo para onde gião tão densamente ocupada que es-
ir, é então subjugado à incorporação for- capar era efetivamente impossível.
çada na unidade política dos vencedo-
res.
A questão central agora surge: cir- A crítica de Roosevelt
cunscrição social esteve realmente pre- Mas existia ainda mais para ser dito.
sente ao longo do Amazonas logo antes Ao apontar uma inexatidão em minha
da emergência dos cacicados? Para ser reconstrução da história cultural da Ama-
consistente e correta, minha teoria re- zônia, Anna Roosevelt me fez um gran-
quer um sim. Mas a realidade seria gen- de favor. Agora eu gostaria de retribuir
til o suficiente para se conformar à mi- esse favor.
nha teoria? Vamos ver. Em seu livro, Parmana, Roosevelt
As fontes etno-históricas sugerem está profundamente interessada nos fa-
que a circunscrição social esteve real- tores ecológicos por trás dos cacicados
mente operando aqui, mesmo antes de amazônicos. De fato, ela propõe uma
1542. Para começar, elas falam de as- nova proposta ecológica de como os ca-
sentamentos muito próximos uns dos cicados emergiram. E o ator principal
outros ao longo do Amazonas. Em um nessa teoria é o milho. Antes de exami-
trecho do rio de 240 milhas de compri- nar sua tese, contudo, vamos voltar um
mento, por exemplo, Carvajal relata que pouco.
não havia mais do que um tiro de bales-
Todos os participantes do “Grande
tra entre as aldeias (Medina, 1934:198).
Debate Protéico”, que tem tido lugar por
E para o interior, longe do rio, o quadro
mais de duas décadas na Amazônia, con-
não era diferente. Então, não havendo a
escolha de habitar a frente do rio, o in- cordam perfeitamente em uma coisa.
terior era também habitado. E esses ha- Para se desenvolver como um cacicado,
bitantes do interior vinham todo o dia uma sociedade precisa possuir uma fonte
para o rio para tentar deslocar aqueles de proteína substancial e essencialmen-
que estavam assentados lá (Medina, te imóvel. Qualquer sociedade que de-
1934:190). Além disso, um século de- pende da caça para a maior parte de sua
pois, Cristoval de Acuña (1959:196) en- proteína não seria uma boa candidata
contra os Omágua ainda guerreando con- para um cacicado.
tra muitos outros grupos, que estavam Com a caça eliminada, somente duas
continuamente atacando-os a partir do fontes de proteína estão abertas a um
interior. Logo, um anel apertado parece possível cacicado: peixes e outros recur-
ter sido forjado em torno das margens sos aquáticos por um lado, e cultivo, de
do grande rio. outro. De todos os maiores cultivos da
ses índios ainda subsistindo em tama- ele contém e, nunca temendo faltar peixe
nha fartura de animais aquáticos. De- no dia seguinte, eles nunca [se dão ao tra-
balho de] prover o anterior, mas, sustenta-
pois de descrever quanta mandioca e
dos pelo que pegam hoje irão comer o pro-
milho os índios colhiam, Acuña duto de outra pescaria amanhã.
(1891:45) diz, contudo, o que eles mais
comem e, como dizem, fazem uso para O quadro da pesca no rio Amazonas
uma refeição são peixes, que, de uma que emerge dessas primeiras fontes en-
abundância incrível, eles pegam todos tão, é bastante diferente daquele pinta-
os dias nesse rio (1891:50). “Mas”, ele do por Roosevelt. Era marcado, não por
adiciona, entre todos [esses peixes], escassez, mas por abundância, e não
aquele que, como um rei, reina sobre pelo uso ocasional ou sazonal de peixe,
todos os outros desse rio, das cabecei- tartarugas e peixes-boi, mas por uma
ras a sua boca, é o peixe-boi, que então
forte dependência deles todo o ano. E
pensavam era um peixe (1891:50). Os
não somente o peixe parece ter existido
peixes-boi, que os índios pegavam em
em grande abundância para a subsistên-
grande quantidade, Acuña observou
(1891:51) que assados sobre uma gre- cia de aldeias junto ao rio, mas havia,
lha duram mais de um mês; completan- em algumas aldeias ao menos, um ex-
do que, por falta de sal, não poderiam cedente dele para trocar com aldeias do
ser preservados por um ano inteiro interior que aparentemente não tinham
(1891:51; ver também Carvajal, apud acesso ao rio.
Medina, 1934:417, 419). Vamos nos voltar agora ao Orenoco
Apesar do fato de que eles não podem pre- e ver como estava a proteína aquática
servar a carne do peixe-boi seco por muito no rio onde Roosevelt trabalhou. A me-
tempo, [Acuña (1891:52) continua], eles lhor fonte para o médio Orenoco é o li-
não deixam de ter carne fresca durante a vro de Padre José Gumilla, El Orenoco
estação chuvosa, que [falando da carne de
tartaruga], apesar de não tão saborosa
Ilustrado y Defendido, que descreve a
como a outra, é mais saudável e não me- vida indígena observada por ele entre
nos satisfatória. Eles pegam essas tartaru- 1715 e 1738.
gas, [ele continua] em tal abundância que
Gumilla (1963:219) nunca se cansa
não existe curral que não tenha cem ou mais
tartarugas, de maneira que esses nativos de notar as vastas quantidades de peixe
nunca sabem o que é fome, uma vez que que foram encontradas no Orenoco e nas
uma só tartaruga é suficiente para satisfa- lagoas e canais as quais o rio inundava.
zer uma família inteira independente de Por exemplo, ele fala de
quantos membros tenha (1891:54).
...quantidade [e] variedade ... de inume-
Em certo momento Roosevelt (1980: ráveis espécies de peixes que o Orenoco
109) escreve: produz e mantém... [E novamente] Não é
concebível, nem é a caneta capaz de ex-
Não é provável que as técnicas de seca- pressar a quantidade de grandes peixes se-
gem, salga e defumação ... teriam tornado guramente à disposição dos índios... (Gu-
possível para as populações aborígines que milla, 1963:223).
habitavam as várzeas estocar suficiente
carne de peixe por tempo suficiente para E ainda mais:
compensar a disparidade sazonal de oferta
de peixe. ... a abundância de peixes e tartarugas no
Orenoco é dificilmente crível àqueles que
Mas o que ela apresenta como uma os vêem e tocam com suas próprias mãos.
desvantagem pode em verdade ter sido O que eu posso dizer, então, àqueles que
somente lêem essas linhas? (Gumilla,
uma virtude. Ouçam mais uma vez a Pa- 1963:223; ver também pp. 220, 221).
dre Acuña (1891:55):
Com grande facilidade os habitantes desse Pescaria, além disso, era enorme-
rio dispõem de todos os tipos de peixe que mente recompensadora independente da
estação do ano. Sobre a estação das chu- os grãos de areia nas vastas praias do rio
vas, Gumilla (1963:222) escreve: assim como contar a imensa quantidade de
tartarugas que se alimentam ao longo de
Durante os meses em que o Orenoco está suas margens e canais (Gumilla,1963:229).
alto, os índios fazem uso [para pescar] so-
mente de paus ou, os que preferem, lan- E, se isso não fosse suficiente,
ças. Eles vão para os llanos baixos onde a Gumilla (1963:232) diz, mas muito
enchente proporciona cerca de três pés de maior ainda é a quantidade de ovos de
água, e lá várias espécies de peixe apare-
cem para brincar e alimentar-se ... Então,
tartaruga que eles consomem... e conti-
pode-se vê-los nadando entre os juncos, e, nua a descrever sua abundância em ví-
como cada um preferir, os índios vão em vidos detalhes.
torno abatendo-os, não ao acaso, mas se- Mais poderia ser dito, mas esse ca-
letivamente: uma pessoa gosta de ‘catfish’,
outra ‘cachama’, outra ‘morcoto’, ou ‘paya-
tálogo de riquezas aquáticas está já se
ra’. Há todos os tipos de peixe para cada gastando, e a questão justificada.
um, e em uma incrível abundância. Em resumo, então, a evidência acu-
Durante a estação seca, a pesca era mulada das antigas fontes, tanto para o
ainda maior: Amazonas como para o Orenoco, parece
esmagadora e incontroversa. Peixes, pei-
Os índios experimentam pesca ainda maior xes-bois e tartarugas existiam nessa
e mais abundante com o rio Orenoco está
águas em quantidades prodigiosas. E
baixo e começa a receber suas águas de
volta, que estavam previamente espalha- eles proporcionaram aos índios vivendo
das por uma grande área, porque eles en- ao longo desses rios um suprimento de
tão bloqueiam com barreiras os canais que proteína variado, de fácil obtenção, anual
levam para as lagoas, deixando uma inu- e inexaurível. Por comparação, a quan-
merável incrível quantidade de peixes à sua tidade de proteína que o milho poderia
disposição em águas muito baixas. Mas a
contribuir à sua dieta perde em signifi-
captura verdadeiramente incalculável de
peixe ocorre nas grandes lagoas, que são cância. Logo, qualquer teoria que sus-
invadidas por inumeráveis tartarugas e ‘ca- tente que o crescimento de grandes po-
tfish’ de 50 a 75 libras de peso, ‘laulaos’ de pulações e a emergência de cacicados
250 a 300 libras, e especialmente um sem ao longo do Amazonas e Orenoco não
número de peixes-boi, cada um pesando poderia ter ocorrido na base de recursos
de 500 a 750 libras (Gumilla, 1963:222).
aquáticos, mas teria que aguardar a che-
Uma vez, os índios esqueceram-se de re- gada do milho, parece insustentável.
mover uma barragem de feixes de um ca-
nal conectando uma certa lagoa com o rio
principal, de maneira que os peixes e pei-
xes-bois que entraram a lagoa durante a
Trabalho recente no Marajó
época da cheia não podiam voltar ao Ore- O que ocorreu com a interpretação
noco quando as águas baixaram. Então, dos cacicados amazônicos desde o apa-
lembrando-se de repente dessa lagoa, os recimento de Parmana? Para começar,
índios foram inspecioná-la, e apenas um pé nenhuma nova teoria foi exposta. Os ele-
e meio de água restava, e eles encontra-
ram mais de 3000 peixes-bois mortos e uma
mentos teóricos a partir dos quais irá
grande quantidade de peixe! (Gumilla, emergir uma teoria final, bem-sucedida
1963:223) da origem dos cacicados amazônicos
Quando Gumilla fala de tartarugas, parecem já estar na mesa. O que resta
os números são anda mais impressio- a ser feito agora é cortar e apará-los um
nantes: pouco, e colocá-los juntos em uma sim-
ples e coerente explanação.
A quantidade de tartarugas que abundam
no Orenoco é tão grande que, não importa O que a última década tem assisti-
como eu tente expressá-la, tenho certeza do, portanto, é uma acumulação de evi-
de que vai parecer menos do que realmen- dências em torno desse problema. Os
te é ... mas é certo que seria difícil contar anos 1980 foram uma década de pes-
Meggers sobre essa cultura. Meggers terial. Portanto, quando, onde e como
tem, de fato, questionado a descrição de cacicados emergiram continua a ser uma
Roosevelt de Marajoara em diversos pon- questão central para a arqueologia ama-
tos. Ela fez isso em duas resenhas de zônica. E onde quer que cacicados se-
Moundbuilders of the Amazon. Além dis- jam discutidos, o foco tende a cair sobre
so, em diversos artigos recentes, Me- Marajó, que se destaca como a mais
ggers tem defendido suas últimas opi- antiga cultura de tipo cacicado até ago-
niões sobre a pré-história amazônica em ra descoberta na Amazônia.
geral, e essas dizem respeito também
Se é, de fato, a mais antiga, depen-
às suas interpretações da cultura Mara-
de, é claro, de sua datação. Meggers e
joara. Como veremos, suas percepções
Evans, em seus primeiros trabalhos, fo-
atuais representam uma significativa di-
ram cautelosos nesse ponto: A duração
vergência daquelas expressadas em
da fase Marajoara não pode ser estimada
Amazônia, a ilusão de um paraíso.
acuradamente nesse momento (Meggers
Em sua resenha crítica de Moundbuil- & Evans, 1957: 404). Na ausência de
ders, Meggers (1992b) aponta diversos datação radiocarbônica, eles conferiram
problemas técnicos no livro, mas aqui, datas provisórias a essa fase, de 1200 a
podemos deixar de lado certos detalhes 1450 AD (1957:422).
e focalizar nas questões mais gerais en-
volvidas. E são muitas. A estimativa se manteve até 1967,
quando datas radiocarbônicas obtidas
A característica saliente da cultura
por Mário Simões empurram o começo
Marajoara era que, em seu ápice, repre-
da fase Marajoara para cerca de 500 AD.
sentava um nível superior de cultura do
E essa data antiga foi depois confirma-
que aquele atingido pelas aldeias autô-
da por outras datas radiocarbônicas (Me-
nomas da cultura de floresta tropical nos
ggers, 1988b:247). Baseado na datação
interiores da Amazônia. Era, de fato, um
de materiais que ela mesma escavou,
cacicado. Meggers e Roosevelt concor-
Roosevelt (1991:214, 242) afirma que
dam nesse ponto, mas aqui a concor-
dância acaba. Ainda controversas entre as datas radiocarbônicas dos sítios de
elas estão coisas como a data do início Marajó indicam uma variação temporal
de Marajoara, sua derivação, sua dura- provável para a fase Marajoara de cerca
ção, o nível de complexidade a que che- de 400 a 1300 AD.
gou, a capacidade de carga de seu habi- Que Marajoara emergiu muito antes
tat, a população total que suportou e as do que originalmente pensado, parece
razões para seu desaparecimento. E es- colocar nenhum sério problema teórico.
sas questões, surgindo dos dados de No entanto, a nova estimativa para sua
Marajó, projetam-se sobre a grande tela duração – 900 anos – certamente colo-
da pré-história amazônica. ca. Enquanto que a datação original de
O mais importante degrau galgado Meggers e Evans dava a Marajoara uma
na pré-história amazônica, uma vez que duração de 200 anos, as novas datas a
a agricultura se estabeleceu, foi a emer- estendem por quase mil anos. E o pro-
gência de cacicados. Nesses poucos lu- blema que essas novas datas colocam
gares onde eles emergiram, represen- para Meggers é esse: se o ambiente de
taram um salto quântico. Não somente floresta tropical não poderia suportar
as antigas aldeias que os constituíram uma cultura do nível cacicado por muito
perderam sua independência e torna- tempo, como ela tinha argumentado
ram-se subordinadas aos chefes pode- desde o começo, como poderia Marajoara
rosos e supremos, mas também sofre- ter durado tanto? Por que teria levado
ram muitas outras mudanças em sua todos esses 900 anos para declinar de
vida social, econômica, religiosa e ma- cacicado ao nível de floresta tropical?
gar. E com o cruzamento desse limiar do ... (Roosevelt, 1991:136), uma das
muitas possibilidades rapidamente se mais excepcionais conquistas culturais
abrem. Inovações nas artes e no artesa- indígenas no Novo Mundo ... (Roosevelt,
nato, que o sustento da chefatura faz 1991:29); um extenso domínio igual ou
possível, agora começam a tomar lugar. maior do que aqueles de sociedades
Um ceramista hábil que previamente complexas já conhecidas (Roosevelt,
produzia somente vasilhas utilitárias 1991:96), que, em sua extensão geo-
para si mesmo ou sua própria família, gráfica obscurece algumas das famosas
se repentinamente tem tempo para ex- civilizações do velho mundo (Roosevelt,
perimentar com novos modos de deco- 1991:1, 436).
ração, formas de vasilhas, métodos de Com relação ao tamanho, Roosevelt
tempero, técnicas de queima, etc, pode, coloca a população total Marajoara em
em curto tempo, trazer à tona surpre- 100.000 a 200.000 pessoas, e em seu
endentes vasilhas novas que mostram entusiasmo sem limites, está pronta para
pouca continuidade com as anteriormen- dizer que poderia ser até um milhão...
te existentes. Com o estabelecimento de (Roosevelt, 1991:38). A conclusão a que
um novo cacicado, então, uma florescên- não se pode fugir, ela completa, é que o
cia eruptiva da feitura de cerâmica pode padrão de assentamento Marajoara é
ocorrer, para a qual a tradição cerâmica urbano em escala (Roosevelt, 1991:39).
antecedente deu muito pouco impulso. A matéria requer um pouco mais de
Logo, enquanto não estou pronto discussão, entretanto. Nós vimos que
para afirmar que Meggers está equivo- Roosevelt indicou uma população de mil
cada com relação à tradição ceramista pessoas para Teso dos Bichos, o que
Marajoara como intrusiva na ilha de Ma- parece uma típica comunidade de um
rajó, penso que devemos estar prontos teso. Esse é um bom tamanho de aldeia
para antever a possibilidade de sua ori- pelos padrões atuais da Amazônia, mas
gem autônoma lá. Evidência para tal dificilmente urbano. Com relação ao to-
origem relativamente abrupta pode ain- tal da população da ilha, Roosevelt diz
da ser encontrada em algum lugar na que
ilha, em sítios ainda não escavados. uma vez que as centenas de tesos conhe-
Logo, dificilmente existe uma necessi- cidos devem... ser pensados... como cen-
dade forçosa de derivar Marajoara do tros permanentemente habitados, antes do
que sítios cerimoniais vazios ou habitações
sopé dos Andes ou mesmo do Amazo-
temporárias, a população da cultura como
nas Central. um todo parece ter sido de bom tamanho,
possivelmente maior do que 100.000 pes-
soas... (Roosevelt, 1991:404).
A escala de Marajoara
Mas mesmo se isso é correto, ainda
Vamos agora às diferentes visões de
fica em aberto a questão de se qualquer
Meggers e Roosevelt com relação ao ta-
assentamento individual pode ser carac-
manho e complexidade das unidades po-
terizado como urbano. O mais perto que
líticas do Marajó. Mesmo em seus pri-
Roosevelt chega de defender essa ca-
meiros relatos, Meggers e Evans pinta-
racterização é quando ela fala de sítios
ram-nas como “circum-caribenhas”, ou
com 20 a 40 tesos, que podem ter tido
seja, cacicados. Mas Roosevelt não es-
populações acima de 10.000 pessoas
tava satisfeita com isso. Ela iria pintar
(Roosevelt, 1991:404).
Marajoara em tons mais fortes e brilhan-
tes que seus predecessores. De fato, al- Existe uma questão não respondida
gumas vezes ela derrama louvores so- aqui, no entanto: quantos desses tesos
bre a cultura, descrevendo-a como um são contemporâneos? Depois de tudo,
dos grandes cacicados tropicais do mun- se a cultura Marajoara durou por 900
anos, não é provável que muitos desses a interpretação da organização social, polí-
tesos contíguos não duraram todo o pe- tica e econômica [é ainda um dos grandes]
problemas prementes (p.422). [Novamen-
ríodo, mas foram abandonados algum te ela diz] ... a história da ... sociedade [Ma-
tempo ao longo do período de séculos e rajoara] e a natureza de sua organização
novos tesos adjacentes construídos e não são ainda bem compreendidas (p.404).
ocupados? Logo, até que a datação des- [E novamente] ...a iconografia Marajoara
não dá evidência de uma administração po-
se grupo de tesos tenha sido seguramen-
liticamente centralizada focalizada em um
te estabelecida, nada pode ser dito com chefe... (p.398; ver também p.420). [E fa-
segurança sobre Marajoara ser urbano. lando de Marajoara, entre outros cacicados,
Meggers (1992b:403) corretamente ela diz] o nível de hierarquia política e cen-
tralização na sociedade é ainda uma ques-
faz objeções às assertivas extravagan- tão em aberto... (p.2). [E ela vai mais lon-
tes de Roosevelt sobre a escala e mag- ge ao dizer que] ... não é possível avaliar
nificência da cultura Marajoara. Obser- hipóteses para um governo centralizado
vada a conclusão de Roosevelt de que (p.417).
os povos Marajoaras dependiam de pe-
Enquanto ela está pronta para acei-
quenos peixes e sementes silvestres para
tar o fato de que os Tapajós, mais acima
sua subsistência, Meggers (1992b:402)
no Amazonas, possuíam todos os atri-
observa, jocosa: sustentar uma popula-
butos que os marcavam como um caci-
ção de 100.000 ou mais por quase um
cado, se Marajoara era, ou não, é incer-
milênio nessa dieta parece requerer in-
to (Roosevelt, 1991:428). De fato, às ve-
definidamente a repetição do milagre dos
zes (por exemplo, Roosevelt, 1991:420)
pães e dos peixes.
parece como se Roosevelt não quisesse
que Marajoara fosse um cacicado!
A natureza das unidades O que essas idas e vindas nos mos-
políticas Marajoaras tram é, de fato, quão difícil é para a ar-
queologia inferir muito sobre estrutura
Chegamos agora à questão central da política a partir daquilo que se retira do
natureza dos cacicados Marajoaras. solo. E Roosevelt (1991:421) reconhece
Como Roosevelt os caracteriza? Aqui a isso:
encontramos extremamente equivocada.
Como Meggers (1992c:26) observa, Roo- ...é difícil pensar em um teste conclusivo,
ela admite, para a evidência de diferentes
sevelt falha em oferecer uma definição tipos de organização social e política por
clara de um cacicado e de fato ela oscila causa da falta de evidência sistemática para
entre a questão de se Marajoara era re- as características materiais...
almente um cacicado ou não. Eu citei os
que normalmente acompanham um ca-
termos luminosos com que Roosevelt
cicado. Logo, me parece uma esperança
algumas vezes caracteriza a sociedade
vã de sua parte que a evidência de Ma-
Marajoara. Mas quando ela aperta o cin-
rajó poderá ser importante para infor-
to para discutir a evidência para sua es-
mar teorias gerais com relação a cacica-
trutura sóciopolítica, nós a encontramos
dos... (Roosevelt, 1991:420). Parece-me
tentativa e incerta. Ela reconhece a im-
muito mais provável que fosse o contrá-
portância geral da questão da natureza
rio. Teorias robustas sobre a origem de
das sociedades cacicados... (Roosevelt,
cacicados poderão vir de relatos etno-
1991:397), mas deixa-nos tentando adi-
gráficos e etno-históricos de cacicados
vinhar qual seu entendimento sobre a
observáveis, que irão então ser aplica-
natureza precisa dessas sociedades.
das à interpretação das manifestações
Em certo ponto, Roosevelt (1991) nos arqueológicas dessas polis. Parece-me
fala que inevitável que a arqueologia está con-
denada a ser uma importadora de teo- E algumas páginas depois em seu li-
ria, não uma geradora. vro ela observa que durante os tempos
Roosevelt está no caminho certo, pré-históricos tardios, a várzea amazô-
entretanto, quando escreve: nica estava literalmente coberta por as-
sentamentos, alguns dos quais parecem
Para realmente demonstrar uma organiza- ter sido de complexidade e escala urba-
ção centralizada, deve-se encontrar evidên-
cia objetiva de que os centros era funcio-
na (Roosevelt, 1991:113).
nalmente distintos, de maneira que centros Não somente Meggers e Roosevelt
politicamente conhecidos estão controlan- discordam sobre o tamanho de sítios ar-
do certos recursos e dirigindo certas ativi- queológicos individuais, elas também di-
dades importantes... Logo, se existia um
governo central ou não será difícil respon-
ferem sobre o total da população aborí-
der até que uma prospecção compreensiva gine da Amazônia na época do contato.
de assentamentos possa ser conduzida para Meggers (1992a:203) iria reduzir dras-
testar a centralização ao investigar a dis- ticamente o quadro atualmente aceito
tribuição de estruturas, feições, artefatos, de 5 a 6 milhões para 1.500.000 e
e grupos ocupacionais e de status dentro 2.000.000. Se a população total da Ama-
de diferentes tipos de sítios no sistema de
assentamentos (Roosevelt, 1991:420). zônia era substancialmente menor do
que geralmente pensado, então o tama-
Entretanto, na discussão de Roose- nho de sítios individuais deveria prova-
velt sobre os cacicados Marajoaras exis- velmente diminuir de acordo. E isso Me-
te um importante ponto cego. Com a di- ggers resolve fazer, astutamente desin-
minuta exceção acima citada, ela nunca flando o tamanho que Roosevelt atribuiu
se pergunta se, durante seus dias, Ma- a muitos sítios arqueológicos.
rajoara consistia de um cacicado ou vá- Essa redução no tamanho dos assen-
rios. E de fato isso é uma questão absolu- tamentos amazônicos está enraizada na
tamente crítica. Marajoara dificilmente premissa de Meggers sobre a baixa ca-
poderia atingir a grandeza que Roosevelt pacidade de carga da floresta tropical
vez ou outra lhe imputa se consistisse chuvosa. Mas não se limita a isso; ela
de uma dúzia ou dois pequenos cacica- também oferece um argumento empíri-
dos. Somente se comportasse um gran- co. Seu ceticismo sobre a existência de
de cacicado, cobrindo boa parte da ilha, grandes assentamentos provém dos re-
e abarcando dezenas de milhares de pes- sultados de um extensivo programa de
soas, poderia ser considerado como uma prospecção arqueológica conduzido des-
unidade política realmente imponente. de os anos de 1970 pelo PRONAPABA
Mas Roosevelt parece quase esquecida (Programa Nacional de Pesquisas Arque-
da importância dessa questão. ológicas na Bacia Amazônica), que Me-
ggers ajudou a organizar. Durante o cur-
so daquelas prospecções, ela diz
Marajoara extrapolada
nenhuma ocupação grande ou permanente
As diferentes interpretações de Roo- foi identificada entre as centenas de sítios
sevelt e Meggers se estendem para toda investigados. Ao contrário, excetuando os
a Amazônia. Pensando principalmente no pequenos sítios, todos eram resultado de
sítio de Santarém, Roosevelt (1991:98) múltiplas reocupações pelas mesmas fases
audaciosamente afirma que ou fases sucessivas durante centenas de
anos (Meggers, 1990:202).
existe agora incontroversa evidência arque-
ológica e etnohistórica para a existência de Em diversos de seus artigos recen-
sociedades complexas indígenas nos tem- tes, Meggers reitera que as múltiplas re-
pos pré-históricos tardios, com padrões de ocupações de um mesmo sítio tinham
assentamento de caráter urbano e exten-
sos domínios culturais de milhares de qui-
criado a ilusão de que se tratava de um
lômetros quadrados. só grande assentamento. Logo, a incon-
Roosevelt. E vamos encontrar mais al- vantagem, uma que teria tornado uma
gumas surpresas. Primeiro, então, uma estupidez, senão tornado impossível para
necessária revisão. os agricultores confiarem nela exclusi-
O que eu disse anteriormente em re- vamente. Não se pode contar com a vár-
lação à várzea e terra firme precisa ser zea para cultivo todos os anos. Eu esta-
amplificado. Como os brasileiros usam o va em Manaus no início de agosto de
termo, terra firme é terra alta o suficiente 1975, quando as águas do Amazonas ti-
em relação aos rios adjacentes de forma nham recuado substancialmente. Mas a
que nunca é inundada. A maior parte da estação chuvosa daquele ano tinha vis-
bacia Amazônica, incluindo a terra en- to o rio chegar a um nível bastante alto,
tre os grandes rios – os chamados e estava demorando mais do que o usu-
interflúvios – consiste de terra firme. al para descobrir a terra que tinha inun-
dado. Uma grande parte da várzea que
Várzea se refere às terras baixas ao
deveria estar seca e pronta para o culti-
longo do Amazonas e outros rios maio-
vo estava ainda sob as águas.
res que sazonalmente transbordam suas
margens e inundam ao redor. Uma vez As implicações dessa incerteza para
que os sedimentos depositados pelas os agricultores nativos devem ser cla-
cheias anuais de tais rios são ricos em ras: eles não podiam se dar ao luxo de
nutrientes minerais, trazidos do sopé dos colocar todos os seus ovos em um mes-
Andes, a várzea possui alto valor agrí- mo cesto. Várzea nunca poderia ser a
cola. E uma vez que sua fertilidade é única terra reservada para plantio. Al-
renovada a cada ano, não precisa ser guma confiança deveria ser colocada na
abandonada após somente dois ou três terra firme.
anos de plantio, como é a regra para a Ainda que os antigos cronistas pare-
terra firme. Em vez disso, pode ser plan- çam silenciosos nesse ponto, a regra
tada ano após ano. Como terra agrícola geral para os agricultores pré-colombia-
de primeira qualidade, a várzea era mui- nos era provavelmente essa: durante os
to procurada – e disputada – pelos índi- anos normais, cultivar milho, e tanta
os que viviam em sua vizinhança mandioca quanto possível, na várzea,
(Medina, 1934:190). mas estar pronto para voltar-se para a
terra firme para ambos os cultivos du-
Apesar de sua alta fertilidade, no en-
rante os anos em que as águas da inun-
tanto, a várzea tem algumas desvanta-
dação falhassem em retroceder rápido o
gens. Estando sob a água metade do ano,
suficiente.
não pode ser cultiva durante todo o ano.
Logo, qualquer planta a ser cultivada Como vimos, tanto Meggers quanto
deve ser colhida em cerca de seis me- Roosevelt cantam as maravilhas da pla-
ses. Isso apresenta um problema para a nície inundável ou várzea. Roosevelt
mandioca, cujos tubérculos levam de 16 (1991:8) descreve os solos de Marajó
a 18 meses para alcançar o tamanho como sedimentos densos e ricos..., e os
ideal. Por causa disso, os cultivadores relacionada com os solos férteis ao lon-
indígenas que uma vez viviam ao longo go do Mississipi, o rio Amarelo, e o Nilo
do Amazonas encontraram uma solução (Roosevelt, 1991:10).
parcial para esse problema. Eles de- Começando com Amazônia, a Ilusão
senvolveram uma variedade de mandi- de um Paraíso, Meggers, em diversas de
oca – chamada mandioca purê no Brasil suas publicações, tem distinguido clara-
– que fornece tubérculos de tamanho co- mente entre terra firme e várzea com
mestível, senão ideal, em apenas seis base em sua capacidade de carga. Por
meses (Loureiro, 1986:27). exemplo, ela fala do
Somando-se à sua curta estação de contraste marcante nas densidades [de
crescimento, a várzea tem outra des- assentamentos] para a várzea e terra fir-
me, que refletem importantes diferenças na tações a diferentes recursos, e que isso
capacidade desses dois tipos gerais de ha- explica a incapacidade de ambas as tra-
bitat de sustentar grandes concentrações
de populações humanas sedentárias
dições de expandir-se dentro do territó-
(Meggers, 1984:629). rio da outra... (Meggers, 1992a:200).
Essa alegada barreira deixou de ser cru-
Fora a grande variedade e abundân- zada porque estratégias de subsistência
cia de fauna aquática encontrada nos apropriadas para explorar a várzea fo-
grandes rios (especialmente o Amazo- ram inapropriadas para a terra firme e
nas), o que faz a várzea tão bem consi- vice-versa (Meggers, 1991:205). No en-
derada é sua grande produtividade para tanto, o que estas diferenças em estra-
agricultura. O rejuvenescimento anual do tégias de subsistência podem ter sido,
solo tem duas importantes conseqüên-
Meggers não nos conta.
cias, Meggers observa,
(1) milho, que requer solos mais férteis do
que a mandioca, pode ser cultivado com Os solos da Ilha de Marajó
grande retorno, e (2) os mesmos terrenos
podem ser usados indefinidamente, [conti- Uma questão interessante surge
nuando a produzir] com um nível continu- quando a matéria da várzea versus ter-
amente elevado (Meggers, 1984:632, 641). ra firme é levada à ilha de Marajó espe-
cificamente. De tudo o que foi dito até
Essa diferença na capacidade de car- agora sobre o alto nível da cultura Ma-
ga desses dois habitats Meggers encon- rajoara, poderia ter sido subentendido
tra refletida na arqueologia da região. que os solos nos quais ela depende seri-
Uma distinção clara existia, ela disse, am várzea. E Roosevelt certamente pin-
entre os altos cursos dos tributários do
ta-os dessa maneira:
Amazonas onde a terra era a terra fir-
me, e aqueles localizados na planície Os remanescentes da cultura construtora
de tesos pré-histórica, Marajoara, são en-
inundável, onde a várzea predominava.
contrados primariamente no interior da
Povos acima da linha limite faziam metade leste da ilha. Derivada principal-
cerâmica simples e viviam em peque- mente de recentes depósitos aluviais, o les-
nas aldeias autônomas. Moradores da te-centro de marajó é uma das maiores
várzea, no entanto, produziam a mais extensões de planície (várzea) na Amazô-
nia (Roosevelt, 1991:7-8). Boa parte da
elaborada e ornamentada louça policrô- superfície de Marajó é composta de sedi-
mica, e experimentavam formas de or- mentos profundos e ricos...(p.8). ... os so-
ganização sociopolítica mais avançadas. los [de Marajó] são bem supridos com ele-
De fato, Meggers acha tão marcada a mentos nutrientes para plantas... (p.10).
distinção entre os povos do alto curso e O potencial agrícola dos solos das planícies
inundáveis de Marajó é, portanto, signifi-
aqueles da planície que ela presume que
cativo ... (p.10).
eles teriam diferentes origens e histó-
rias (Meggers, 1988a:288). Além disso, Meggers, entretanto, faz uma obje-
ela considerava o limite ambiental entre ção. A terra que suportava os povos
eles agudo e difícil de cruzar: Marajoaras, ela diz, não era várzea, mas
fragmentos ocasionais com decoração di- terra firme. Marajoara é ... uma exce-
agnóstica de uma região [ocorrendo] em ção entre as fases da Tradição Policrô-
outra podem refletir troca, mas não exis- mica, ela escreve (Meggers, 1992b:403),
tem um exemplo de intrusão de sítio de ne-
ao ocupar um ambiente que não é de
nhum lado dessa barreira ecológica (Me-
ggers, 1992a:200). várzea. E ela observa que a parte leste
de Marajó, onde a maioria dos sítios Ma-
Falando dos dois tipos de culturas rajoara estão localizados tem sido des-
descritas, Meggers (1991:200) acredita crita [pelo ecólogo H.Sioli] como uma
que seus limites estáveis implicam adap- ‘terra firme consolidada’... (Meggers,
ter jogado um papel construtivo na emer- ce provável que esse lago era uma fonte
gência de cacicados. Uma dessas des- importante de proteína aquática para a
vantagens é, como já vimos, a incons- população aborígine dos arredores du-
tância da várzea: o fato de que em cer- rante os séculos passados. E competi-
tos anos pode ainda estar sob as águas ção pela proximidade do lago e pelos di-
quando chega a hora de plantar. E deve- reitos de pescar deve ter jogado um pa-
se então lidar com os problemas que isso pel crucial no processo que levou à for-
cria. Meggers se baseia neles para pro- mação de cacicados.
por algo que em seus escritos é o mais Roosevelt (1989:82) observa que,
próximo de uma teoria sobre como os apesar da emergência de cacicados na
cacicados surgiram: ilha de Marajó em torno de AD 400 ter
a necessidade de monitorar o regime do rio ocorrido muito antes do que tinha sido
[Amazonas], estabelecer a época para plan- anteriormente previsto – foi, entretan-
tar, e arranjar e dirigir a força de trabalho to, mais tarde do que na costa do Peru.
levou à emergência de chefes e pajés com
autoridade para requerer obediência
Isso, é claro, está completamente de
(Meggers, 1984:643). acordo com nossas explanações teóricas.
No que tange aos fatores favorecendo o
Mas aqui eu acho que Meggers esco- desenvolvimento político, os vales da
lheu o caminho errado na encruzilhada. costa peruana têm a vantagem distinta
A mini-teoria encapsulada nessa passa- com relação ao Marajó por serem muito
gem parece ser voluntarista, e como tal mais agudamente circunscritos. O cres-
sofre dos defeitos de todas as teorias vo- cimento da pressão populacional levan-
luntaristas, como argumentei anterior- do eventualmente à emergência de ca-
mente. cicados teria ocorrido muito mais rapi-
A outra desvantagem da várzea, que damente lá. Sendo menos altamente cir-
vou examinar agora, é sua escassez. cunscrito, Marajó, por seu turno, teria
Desde que, em adição a ser louvada, a que esperar o efeito mais vagaroso da
várzea é também limitada quanto à sua concentração de recursos para dar ori-
ocorrência, uma vez que as populações gem à circunscrição social e a relativa
amazônicas tinham crescido a um certo pressão populacional: isso, em seu tur-
tamanho, a várzea veio a faltar. E não no, teria resultado em competição so-
havendo em quantidade suficiente, a bre a terra, com os resultados que de-
competição em torno dela iniciou-se. correm daí.
A cadeia de eventos que então se Não devemos perder de vista o fato,
desenvolveram, que culminou com a entretanto, que, sendo uma ilha, Marajó
emergência de cacicados, teve como um era mais circunscrita geograficamente do
de seus elos intermediários a concen- que muitas áreas da Amazônia. Conse-
tração de recursos. E esse fator, que teve qüentemente, não é surpresa – de fato,
um papel na formação de cacicados ao é teoricamente esperado – que o mais
longo do rio Amazonas, muito provavel- antigo cacicado até agora identificado na
mente jogou papel similar no Marajó. Amazônia deveria ter emergido na ilha
Meggers e Roosevelt dizem pouco sobre antes do que em áreas adjacentes.
esse ponto, mas se olharmos para um
mapa dos sítios Marajoara (por exem-
plo, Meggers & Evans, 1957:296;
O papel da guerra
Roosevelt, 1991:9), esses sítios parecem Dos diversos fatores contribuindo
agrupar-se mais densamente a leste do para a formação dos cacicados, o meca-
lago Arari, o maior lago na ilha. Seja qual nismo mais diretamente envolvido na
for a concentração de peixe hoje, pare- sobreposição da autonomia da aldeia, e
a criação de cacicados compostos por Mas ela não está certa sobre exata-
várias aldeias, foi a guerra. De fato, mente como a guerra funcionava nesse
Meggers tem consistentemente negado contexto. Então ela escreve: ... a histó-
à guerra um papel nesse processo evo- ria da guerra na Amazônia etnográfica e
lucionário. Ela falha em perceber a guer- pré-histórica e sua relação com padrões
ra, causada em grande parte pela pres- culturais e organizacionais é ainda obs-
são populacional, como a única maneira cura (Roosevelt, 1991:414).
pela qual a autonomia da aldeia poderia Referindo-se à ilha de Marajó espe-
ser transcendida. cificamente, Roosevelt diz que
Aqui e acolá, Meggers toca a bainha
um melhor entendimento da evidência para
da pressão populacional e seus efeitos, a guerra e sua história durante a pré-histó-
mas ela nunca veste a camiseta. Ainda ria Marajoara é necessária para elucidar seu
que algumas vezes reconheça a existên- possível papel na emergência, manutenção
cia de pressão populacional, ela falha em e declínio da cultura (Roosevelt, 1991:407).
perceber suas várias nuances. Então ela
De fato, parte desse “melhor enten-
escreve que
dimento” tem começado a emergir atra-
o deslocamento [de povos] exibidos nas vés de seu próprio trabalho na ilha. En-
seqüências em Marajó, no médio Orenoco, tre as feições arqueológicas que ela des-
e no baixo Orenoco implica em ‘pressão
cobriu em Teso dos Bichos estavam es-
populacional’, mas a pressão deriva antes
de uma diminuição nos recursos do que um truturas de terra que pareciam circun-
aumento em população (Meggers, dar o topo do teso (Roosevelt, 1991: 185,
1988a:291). 423). Essas estruturas monumentais, ela
diz, são estruturas de um tipo que nun-
Isso pode ser verdade, mas, de ma- ca foram reconhecidos, mapeados ou es-
neira geral, não importa. Pressão popu- cavados em sítios Marajoaras até agora
lacional é pressão populacional. Se cau-
(Roosevelt, 1991:422).
sado por um aumento de pessoas ou uma
diminuição de terras, uma vez que a ofer- Como são essas estruturas interpre-
ta de terra arável cai abaixo da deman- tadas? Das diversas funções que podem
da, o palco está armado para uma aqui- ter servido, Roosevelt (1991:401) diz,
sição forçada, pela expropriação de seus uma possibilidade é que as estruturas
vizinhos. eram fortificações construídas sobre as-
Roosevelt, por outro lado, aprecia sentamentos contemporâneos para aju-
grandemente o papel da guerra na evo- dar a repelir ataques militares. Mas fa-
lução política da Amazônia. Ela está ci- lando da possível importância da guerra
ente de que, durante o período do con- nas origens e crescimento de cacicados
tato inicial, os cacicados do baixo Ama- (Roosevelt, 1991:422) em Marajó, ela
zonas são claramente descritos como acredita que mais escavações são ne-
tendo paz interna e guerras ativas con- cessárias... para acessar a probabilida-
tra seus vizinhos por todos os lados... de de funções ... defensivas (Roosevelt,
(Roosevelt, 1991:441). E ela não se en- 1991:402).
vergonha de projetar esse estado de
Supondo que essas estruturas de ter-
coisas para tempos recuados:
ra eram muros defensivos – e é difícil
...sociedades complexas somente aparecem imaginar o que mais poderiam ter sido
na Amazônia em torno da era Cristã, quan- – sua evidência oferece algumas pistas
do o crescimento populacional tinha final-
importantes sobre a pré-história Mara-
mente enchido as vastas planícies inundá-
veis e criado o contexto para inevitável joara. Elas apontam claramente para a
conflito social (Roosevelt, 1991:436, ver presença de guerras recorrentes e inten-
também 114). sas na ilha. Nada menos do que isso le-
deriam ter emergidos e sustentados ali, sem, cada um devia passar por severos
e relatos ao contrário são falsos. Vamos testes antes de assumirem seus respec-
esperar sua decisão. tivos postos (Whitehead, 1988:60-63).
Entre os caribes dos Llanos Venezue-
lanos, Whitehead (1988:61) nos conta
A emergência de cacicados que cada aldeia tinha um cacique e ... a
em uma perspectiva etno- honra poderia ... ser dada a um homem
histórica que era bravo na batalha ou que tinha
matada um animal temido ... Entretan-
Em alguns momentos nas páginas to, uma reputação por bravura não era
precedentes eu apontei os fatores que suficiente para obter o posto:
eu penso operaram na Amazônia para
o aspirante teria que suportar o teste de
dar origem aos cacicados. E, até certo
viver de mandioca e água por um mês, e
ponto, eu procurei indicar como eles inte- beber periodicamente grandes quantidades
ragiram para atingir seu feito. No en- de suco de tabaco. Se o candidato sobrevi-
tanto, quanto mais precisamente apon- via a esse processo, era nomeado ‘capitão’
tarmos a seqüência de passos pelos quais ... Entretanto, a severidade dessa iniciação
esse processo ocorreu, mais convincen- poderia ser diminuída se não se esperasse
que o capitão fosse também o chefe da
te nossa narrativa desse processo irá ser. guerra (Whitehead, 1988:61-62).
Ou, se isso é muito otimista, pelo me-
nos mais facilmente a teoria pode ser Quando uma expedição de guerra es-
desafiada e corrigida. De acordo com tava para ser realizada, diversas aldeias
isso, eu gostaria de considerar agora al- juntavam forças.
guma evidência etnohistórica que indi- Cordas com nós ou um arco era mandados
ca como esses fatídicos primeiros pas- a aldeias vizinhas e os guerreiros reunidos.
sos, que levaram das aldeias autônomas Entre esses parece que havia um grupo
aos cacicados, devem ter acontecido. definido de chefes de guerra, dentre os
quais o líder da expedição seria escolhido
Voltando a alguns dos trabalhos etno- (Whitehead, 1988:60-61).
históricos realizados recentemente na
Amazônia, nós podemos dizer que sus- Nesses grupos de guerreiros,
tentam algumas pistas sobre como a au- a liderança das... expedições de guerra pa-
tonomia das aldeias foi na verdade so- rece ser decidida seja pela concordância
brepujada e cacicados estabelecidos. com daqueles reunidos para aquele propó-
Estudos sobre os Caribes e Tupinambás sito ou pelo deferimento ao indivíduo que
tinha iniciado a empreitada, logo, claramen-
do século XVI são particularmente su- te, qualquer um dos indivíduos teria tido
gestivos a esse respeito. Eles nos mos- que demonstrar orgulho na guerra e a to-
tram sociedades que estavam, seja no mada de cativos para ser considerado para
limiar de tornarem-se cacicados, ou ti- tal papel (Whitehead, 1988:60).
nham na verdade cruzado esse limite.
Qual era o tamanho dessas expedi-
Olhando primeiramente para os Cari- ções de guerra? Os relatos antigos indi-
bes da costa e do interior da Guiana, o cam uma média em torno de 300 a 400
trabalho de Neil Whitehead (1988, 1990) guerreiros por expedição, sugerindo a
tem lançado nova luz na organização
Whitehead (1990:153) que alianças mi-
política entre essas sociedades bastante
litares temporárias abarcavam quatro ou
guerreiras. Algumas aldeias Caribe ti-
cinco aldeias. Ocasionalmente, então
nham dois chefes, um chefe da guerra e
uma força de 1.000 ou mais homens era
um chefe de paz, mas em outros os dois
liderada (Whitehead, 1988:61).
estavam diluídos no mesmo indivíduo.
Uma vez que em tempos de guerra es- Entretanto, a suprema autoridade
perava-se que ambos os chefes lutas- conferida para os comandantes milita-
res de uma expedição de guerra não con- respeitado em todas as ilhas (apud Roth,
tinuava além do final das hostilidades, 1924:573).
apesar do chefe de guerra manter con- Em suma, então, cacicados tinham
siderável influência entre um número de já emergido pelo mesmo em algumas
aldeias relacionadas (Whitehead, 1988: ilhas das pequenas Antilhas, e esses ca-
63). Então era somente em tempos de cicados eram o resultado direto de um
conflito que os chefes de guerra tinham líder de guerra tendo obtido dominância
posição e especial precedência na piro- política sobre todas as aldeias da ilha.
ga [canoa] (Whitehead, 1988:62). Voltando agora aos Tupinambás da
Os Caribes do continente então nos costa brasileira, nós novamente encon-
mostram não mais do que primeiros pas- tramos o confuso quadro do desenvolvi-
sos em direção à formação dos cacica- mento político. Algumas aldeias eram li-
dos. Somente em tempos de guerra, e vres de subordinação, exceto durante
então somente temporariamente, era um tempos de guerra. Em certas áreas, no
homem capaz de exercer autoridade so- entanto, verdadeiros cacicados multi-al-
bre mais do que sua própria aldeia. No deias surgiram. Esse fato foi observado
entanto, nas pequenas Antilhas, a evo- tão cedo quanto 1948 por Alfred Métraux
lução política tinha ido além. Ajudado em seu artigo sobre os Tupinambás no
sem dúvida pela aguda circunscrição ge- Handbook of South American Indians. Lá,
ográfica que pequenas ilhas conferem, Métraux (1948:113) escreve: alguns
os Kalinago ou Caribes ilhéus tinham chefes estendem seu poder sobre um
avançado ao passo seguinte. Aqui, po- grande distrito e comandam de fato
derosos chefes de guerra tinham suce- muitas aldeias. Muitos amazonistas, en-
dido em estabelecer hegemonia sobre tão (incluindo esse), tendem a conside-
todas as aldeias da ilha. E essa autori- rar os Tupinambás como estando ao ní-
dade era evidentemente substancial. vel de aldeia autônoma (floresta tropi-
Então, de acordo com Padre Roquefort, cal).
na presença do cacique da ilha nenhum O fato é que existe evidência para
homem fala se ele não pergunta ou man- citar em ambos os lados. Pelo lado do
do-o fazê-lo (apud Roth, 1924:568). argumento de aldeia autônoma, pode-
Mas o processo de evolução política ríamos citar Gabriel Soares de Souza
tinha ido ainda mais longe do que isso. que, depois de descrever os poderes de
Durante expedições de larga escala, di- um chefe Tupinambá durante tempos de
versas ilhas poderiam unir suas forças e guerra, observou por contraste que, em
mandar uma imensa frota de canoas de tempos de paz cada pessoa faz o que
guerra para atacar seus inimigos. E para tem vontade (citado por Fernandes,
tal expedição militar, um dos vários che- 1963:329).
fes de guerra era escolhido como supre- Alguma evidência do outro lado do
mo comandante de toda a esquadra. caso tem sido recentemente citada por
Mesmo assim, o poder assim assumido, William Balée como parte de sua rein-
diferentemente do chefe da ilha, durava terpretação das causas da guerra Tupi-
somente pala duração da expedição. De nambá. Então Balée (1984:254-255) es-
qualquer maneira, enquanto observan- creve:
do que depois a guerra um Kallinago ou-
Os Tupis da costa ... tinham evoluído em
boutou, ou cacique principal, tinha ne-
cacicados em torno de 1500. Entre os fa-
nhuma autoridade, mas somente sobre lantes tupi Tamoios do Rio de Janeiro, o
sua própria ilha, Padre Roquefort adicio- cronista capuchinho Ives d’Evreux decla-
nou, verdade é que se ele tivesse se rou que ‘cada habitação (isto é, casa) tem
comportado de forma galante em sua seu chefe. Esses quatro chefes estão sob
empreitada ele seria sempre altamente as ordens do chefe da aldeia, que junta-
da Amazônia tem ao menos nos levado cia de opiniões sobre a questão dos ca-
a dirigir nossa atenção a uma questão cicados amazônicos. Para falar a verda-
maior que tinha, previamente, dificil- de, todas as linhas ainda não se encon-
mente sido colocada. traram, mas os dados da arqueologia,
Em resumo, eu tentei nesse artigo etnografia e etnohistória acumulam, e
traçar a história e teorias propostas para enquanto os teóricos continuam a apa-
dar conta da presença de cacicados na rar a arestas das explanações uns dos
Amazônia. Além disso, eu apresentei, outros, talvez um consenso final irá
defendi e melhorei minha própria teo- eventualmente surgir. Isso, ao menos, é
ria. Eu acredito que nos últimos anos o objetivo que nós todos deveríamos
pode-se discernir uma certa convergên- estar perseguindo.
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