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O Gato da Meia-Noite

De tempos em tempos minha mãe leva eu e minha irmã Clara para a


casa do nosso pai. Ela diz que faz isso para poder descansar, mas eu duvido,
já que seus remédios a fazem dormir o dia todo. Ela provavelmente deve sair
com aqueles esquisitões que ficam olhando para a bunda dela. Clara diz que é
errado pensar assim, mas não sou como ela para ficar me iludindo. Pelo menos
temos algo em comum: nós não gostamos do nosso pai, pelo menos não tanto
quanto nossa irmã Bárbara, que prefere ficar com ele do que com a mamãe.
Logo de manhã, já que a viagem de carro será longa, arrumamos nossas
mochilas, nossas roupas e, junto de nós, levamos uma dúvida que temos a um
tempo: “O que são aqueles cortes no braço da Bárbara?”, foi o que eu
perguntei para a mamãe semana passada, que me respondeu fechando a cara
e me ignorando.

Chegando lá, deixamos nossas mochilas na sala e vamos direto para o


quarto da mana. Subindo os degraus tortos da escada, Clara me pergunta se
isso é realmente uma boa ideia.

– E por que não? – Eu a pergunto.

– Não sei, e se for coisa séria? – Ela diz, insegura como sempre.

Esse jogo de perguntas continua até que nos questionamos sobre o que
fez aqueles cortes. “Um acidente?”, claro que não, nossos pais teriam feito
alvoroço. “Um animal selvagem?”, só se for um urso com garras enormes.
“Será que é maquiagem?”, não soube responder essa idiotice de pergunta,
afinal, quem vai fazer isso não sou eu. Entramos no quarto dela e, como
sempre, ficamos espantados com a tamanha bagunça. Roupas fora do armário,
pratos de comida e remédios na cama, balões estranhos com leite escondidos
de baixo da cama e um cheiro que deixa o lugar desagradável. Quando ela vai
arrumar esse chiqueiro? Ou uma pergunta melhor:

– O que são esses cortes no seu braço, irmã?

Não demorei muito pra perguntar, já que nossos assuntos estavam


acabando, e Bárbara não parecia estar muito animada para conversar.

– Ora... foi um gato! – Ela responde, tentando esconder o desconforto.


– Ela está mentindo. – Digo para a Clara logo após sairmos do quarto da
nossa irmã.

– Você acha que ela mentiria para nós?

– Claro que sim, um gato não faz aquele tipo de coisa. Pelo visto você
tava certa, era coisa séria... – Falo, arrependido em ter feito aquela
pergunta.

“Mas o que poderia ser?”, a dúvida continua me perturbando, e


convencido de que aquela resposta meia boca da nossa irmã é mentira, eu e
Clara vamos arrumar nossas camas para dormir. Quem diria que eu me
surpreenderia na mesma noite, quando minha irmã me acorda dizendo ter visto
um gato estranho na rua pela janela. Sem nem pensar vamos correndo ver o
animal esguio e torto de pelagem preta e olhos amarelos brilhantes, que nos
observava em meio a neblina.

– Disse que ela não mentiria para nós! – Clara diz convencida.

– Nós nem sabemos se é verdade, e mesmo se for, não tem como saber
se é esse o gato.

– É só olhar para ele, Milo! Me arrepio só de imaginar aquilo invadindo


aqui...

E então ela finalmente diz algo relevante, já que independente daquele


ser o gato que machuca nossa irmã, caso a aberração entre em nossa casa, as
coisas não vão acabar bem.

– Só uma garra dele é maior que meu dedo! Eu tô falando, foi ele quem
cortou o braço da Bárbara e bagunçou o quarto dela. Sem falar que ela
não deve sair do quarto porque tem medo do gato. – Ela continua.

– Tá bom, eu tive uma ideia. Os remédios da nossa irmã devem ser


iguais aos da mamãe, já que ela está sempre trancada no quarto,
provavelmente dormindo. Vamos misturar os remédios com carne, pra
quando o bicho comer e dormir, levá-lo pra nossa irmã ver se é esse o
gato que ataca ela. – Explico enquanto caminho pelo quarto, dando
pequenas voltas.

– E o que acontece depois? – Clara me pergunta com receio.

– Caso ela tenha dito a verdade, podemos tentar domesticar o gato. Mas
caso seja mentira, é só ligar pro controle de animais.
– Isso não me parece nada bom... – A insegurança é a praga que assola
sua vida, irmã.

– Qual é, vamos logo antes que ele entre aqui. – Começo a me estressar
com seu medo e pessimismo.

– Eu não vou chegar perto dele com um pote de carne!

– Tá... você pode ficar na porta de casa esperando, e se algo der errado,
você chama a mana.

– Prefiro assim, mas ainda não gostei do plano.

– Vamos logo, Clara.

Eu saio para a rua com o pote de carne em mãos, enquanto Clara me


espera na porta de casa. Meu coração acelera conforme eu e a criatura nos
aproximamos, assim como suas garras tremem mais rápido conforme a neblina
se dissipa. Meus pelos do corpo inteiro arrepiam, assim como os dele. Nós nos
encaramos, e seus olhos brilhantes me revelam o erro que foi eu ter vindo aqui.
Abro o pote com a carne e remédio assim como uma faca abre o tecido da
pele. O cheiro da carne sobe assim como o cheiro das drogas que meu pai usa.
E provando que a insegurança de Clara estava certa mais uma vez, as grandes
e afiadas garras da fera voam no meu rosto, me cortando profundamente.
Meus gritos se unem com os da minha irmã, pedindo ajuda desesperadamente.

Depois desse capítulo, algumas coisas mudaram. Os médicos me


levaram em casa para estancar o sangramento, e me levar para o hospital. Eu
me recuperei rápido dos ferimentos depois de sair de lá, ficando só uma cicatriz
maneira no meu nariz. Bárbara finalmente sentiu que era hora de contar a
verdade para nós. Ela disse que tem uma doença chamada depressão, e essa
doença machuca o braço dela, a fazendo tomar remédios para ficar melhor.
Mas não foi isso que minha mãe disse depois que os médicos encontraram
drogas e camisinhas usadas no quarto da minha irmã e no quarto do meu pai.
Ouvi de terceiros que meu pai abusava da Bárbara, e a forçava a ficar quieta.
Não sei o que isso realmente significa. Não sei no que é verdade ou mentira.
Só sei que não é da minha conta, nem da Clara. Ela podia ter se machucado
por minha causa. Eu cuidarei bem dela daqui pra frente. Eu não vou ser que
nem meu pai.

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