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Keith Simmons
Tradução de Desidério Murcho
As teorias da verdade investigam a verdade como propriedade das nossas ideias e do
nosso discurso. Atribuímos a verdade e a falsidade a uma imensa diversidade de
denominados portadores de verdade: itens linguísticos (frases, elocuções, afirmações e
asserções), itens abstractos (proposições) e itens mentais (juízos e crenças). Qual é a
propriedade que estamos atribuindo quando dizemos que um portador de verdade é
verdadeiro? Esta pergunta é crucial devido à presença da verdade em teses filosóficas
centrais: por exemplo, diz-se amiúde que a verdade é o objectivo da ciência, que o
significado de uma frase é dado pelas condições em que é verdadeira,1 que a validade
lógica é a preservação da verdade, ou que as afirmações éticas não são verdadeiras nem
falsas. Uma compreensão adequada da verdade promete iluminar questões fundamentais
em metafísica, filosofia da linguagem, lógica e ética.
Uma motivação diferente para teorizar sobre a verdade é o desafio que os paradoxos
semânticos representam, em especial o paradoxo do mentiroso. As teorias da verdade
que respondem ao mentiroso tendem a preocupar-se menos com a natureza da verdade,
e mais com a lógica e a semântica do predicado verdadeiro. Tem havido
surpreendentemente pouco contacto entre estes dois grupos de teorias (mas veja-se
Priest, Beall e Armour-Garb 2005).
A teoria da correspondência
Segundo a teoria da correspondência, a verdade consiste na correspondência com os
factos. Um portador de verdade (por exemplo, a proposição de que a neve é branca) é
verdadeira se e só se corresponde a um facto (que a neve é branca). Em traços gerais, a
verdade é uma propriedade relacional entre portadores de verdade, de um lado, e o
mundo, do outro.
A abordagem da correspondência é sugerida no Sofista (263b) de Platão, onde, na
presença de Teeteto, o Estrangeiro contrasta a afirmação verdadeira “Teeteto está
sentado” com a afirmação falsa “Teeteto está voando”:
A verdadeira afirma acerca de ti as coisas que são tal como são […] ao passo que a falsa
afirma acerca de ti coisas diferentes das coisas que são.
O facto do ser de um homem traz consigo a verdade da proposição de que ele é […] A
verdade ou falsidade da proposição depende do facto de o homem ser ou não. (12b12–
22; veja-se também 4b8)
Russell (1956) e Ludwig Wittgenstein (1922) passam então a desenvolver a sua filosofia
do atomismo lógico, segundo a qual não há factos logicamente complexos; só há factos
atómicos. As proposições verdadeiras que são logicamente simples ou atómicas
correspondem a factos atómicos, mas as proposições verdadeiras logicamente
complexas já não correspondem a factos logicamente complexos. Ao invés, as
proposições complexas são recursivamente decompostas nas proposições simples que as
constituem, e a verdade das proposições complexas é em última análise explicada por
meio dos factos atómicos aos quais correspondem as verdadeiras proposições atómicas.
Mas as dificuldades continuam: certas proposições complexas, por exemplo, afirmações
com “porque” e afirmações subjuntivas, resistem a serem decompostas em componentes
simples; e podemos ainda perguntar se os factos universais são necessários para
generalizações universais genuínas, e factos negativos para negações verdadeiras.
Apesar destes conhecidos problemas, algumas versões de atomismo lógico têm
defensores (por exemplo, veja-se Armstrong 1997). Num espírito diferente, J. L. Austin
evita os “factos bizarros” negando que a correspondência seja uma questão de
congruência estrutural: “Não é de modo algum preciso que as palavras usadas para fazer
uma afirmação verdadeira “espelhem” seja como for, por mais indirectamente que seja,
qualquer característica da situação ou acontecimento” (1999, p. 155) — mesmo uma
única palavra, ou uma simples expressão, pode corresponder a uma situação complexa.
Ao invés, a correspondência é uma correlação, determinada pelas nossas convenções
linguísticas: é “absoluta e puramente convencional” (p. 154).
Segundo outra linha de objecção, é uma ilusão que possamos ter acesso a um domínio
puro de factos com o qual comparamos os nossos juízos. O nosso conhecimento do
mundo é mediado pelas nossas descrições, interpretações e juízos; não podemos sair do
nosso próprio sistema de crenças e comparar essas crenças com a “realidade nua”. Dado
que a teoria da correspondência diz que a verdade consiste em correspondência com os
factos, e dado que esses factos nos são inacessíveis, nunca podemos saber que um juízo
é verdadeiro, e somos conduzidos ao cepticismo. Quem subscreve esta linha de crítica
associa tipicamente a teoria da correspondência ao realismo metafísico e advoga ao
invés uma forma qualquer de anti-realismo e uma perspectiva “epistémica” da verdade,
em termos de verificação, por exemplo (como os positivistas lógicos) ou de
asseribilidade (veja-se Dewey 1938, Dummett 1978).
Considere-se que efeitos consideramos que o objecto da nossa concepção poderia ter,
efeitos esses que possam concebivelmente ter impacto prático. Então, a nossa
concepção desses efeitos é a totalidade da nossa concepção do objecto. (1955b, p. 31)
Peirce aplica esta regra à ideia de realidade: o efeito prático que as coisas reais têm em
nós “é provocar crenças” (1955b, p. 36), de modo que a questão é como distinguir as
crenças verdadeiras das falsas. A resposta de Peirce é que as verdadeiras são aquelas
com as quais todos concordaremos, e só os métodos da ciência podem cumprir a
esperança de chegar a este consenso. Escreve Peirce:
James aplica a regra de Peirce directamente à verdade. Os efeitos práticos das crenças
verdadeiras são acções bem-sucedidas, maneiras benéficas de lidar com o mundo; as
verdades são “instrumentos inestimáveis de acção” (1907, p. 97), a verdade “compensa”
(p. 104). E assim, segundo a regra de Peirce, a verdade é o que é útil, o que “funciona”.
James dá menos ênfase do que Peirce ao consenso e ao método científico (na verdade,
Peirce rebaptizou a sua teoria, chamando-lhe “pragmaticismo”, para se distanciar da
versão de James). James aplica a sua teoria às crenças individuais e também às
colectivas, assim como às crenças religiosas e metafísicas, tal como às empíricas (por
exemplo, “Com base em princípios pragmatistas, se a hipótese de Deus funciona
satisfatoriamente no sentido mais lato da palavra, então é verdadeira” (p. 143)).
A objecção comum é que podemos ter crenças falsas benéficas, e crenças verdadeiras
danosas. A minha crença falsa de que toco violino maravilhosamente pode de facto
melhorar a minha execução; a minha crença verdadeira de que não o faço poderá torná-
la pior. James tem recursos para dar uma resposta. Apesar de “o verdadeiro ser apenas o
que é expediente na nossa maneira de pensar”, a verdade é o que é expediente no
sentido forte, “expediente a longo prazo e no decurso completo das coisas” (1907, p.
106). Temos de adoptar a perspectiva mais lata: a minha execução pode ser boa desta
vez, mas no seu todo será melhor para mim fazer uma avaliação rigorosa dos meus
talentos. A perspectiva de longo prazo tem de ser adoptada não apenas com respeito às
crenças individuais, mas à totalidade das teorias — a astronomia ptolemaica foi
expediente durante séculos (p. 107).
O objectivo de Tarski não era revelar a natureza da verdade, mas pôr o conceito de
verdade para lá de suspeita. Por um lado, pensava, a verdade é fundamental para a
ciência, para a lógica e para a metamatemática; por outro, a verdade tem “má
reputação”, por estar envolvida no paradoxo do mentiroso. O objectivo de Tarski era
encontrar uma maneira de definir a verdade em termos que ninguém pudesse pôr em
questão:
É evidente que “É verdadeiro que César foi assassinado” não quer dizer senão que César
foi assassinado. (1999, p. 106)
É menos fácil eliminar a verdade de generalizações como “Tudo o que Sócrates afirma é
verdadeiro”, mas Ramsey defende que se consegue fazê-lo (p. 106). A palavra
verdadeiro desaparece, e qualquer razão para investigar a natureza da verdade
desaparece com ela. Segundo uma versão mais sofisticada da teoria da redundância, a
teoria profrásica da verdade (Grover, Camp, and Belnap 1975), a palavra verdadeiro não
é sequer um predicado genuíno, mas simplesmente uma componente de profrases. Se
uma pessoa diz “Isso é verdadeiro” em resposta a uma afirmação de outra, não proferiu
uma frase, mas antes uma profrase, que refere a frase da outra pessoa, tal como o
pronome ele pode referir o nome João. Podemos considerar que “Isso é verdadeiro” tem
hífenes, não tendo mais estrutura interna do que ele. Do ponto de vista profrásico,
verdadeiro não sobrevive como predicado discreto que denote uma propriedade. A
variante de P. F. Strawson (1949) da teoria da redundância atribui a verdadeiro um papel
performativo: não usamos verdadeiro para seleccionar uma propriedade, mas antes para
executar actos de fala, como subscrever, concordar e conceder.
E a totalidade de frases V diz-nos tudo o que há a dizer acerca da verdade. Isto levanta
uma questão: por que não vermo-nos livres do predicado da verdade, a favor de um
discurso directo sobre o mundo? O descitacionista responderá chamando a atenção para
generalizações como “Toda a frase da forma ‘p ou não p’ é verdadeira” (veja-se Quine
1970, pp. 10–13). Nesses casos, só poderíamos livrar-nos do predicado da verdade se
pudéssemos formar uma conjunção infinita da forma “p ou não p”: “Os orictéropos
andam a furta-passo ou os orictéropos não andam a furta-passo, e os bisontes tomam
banho, ou os bisontes não tomam banho, e…”. Mas não podemos formar frases
infinitamente longas. De modo que para atingir o efeito desejado, generalizamos sobre
frases, e depois, por meio do predicado da verdade, trazemo-las de volta à Terra
descitando-as. Apesar da aparência superficial, verdadeiro não denota uma propriedade
ou relação — é um expediente lógico. De modo que não há qualquer propriedade da
verdade para explorar, e a verdade não tem outro papel que não o lógico.
A teoria descitacionista considera que os portadores de verdade são frases, e isto levanta
uma preocupação quanto ao âmbito da teoria (veja-se David 1994 para mais
preocupações). Suponha-se que, com base no que me disseram, acredito que Dmitri tem
sempre razão, apesar de eu não falar russo. Compreendendo aparentemente o que digo,
afirmo “O que Dmitri diz é verdadeiro”. Mas, segundo o descitacionismo, compreender
o que acabei de dizer é uma questão de compreender o que Dmitri disse; e dado que não
consigo compreender o que ele disse, não consigo compreender o que eu disse. Os
descitacionistas tipicamente relativizam a teoria às frases de uma dada linguagem
natural, como o português. E dado que uma pessoa que fale português não irá
compreender todas as frases portuguesas, alguns descitacionistas reconhecem a
necessidade de ir mais além e restringir a teoria a frases do idiolecto de uma dada
pessoa (ou seja, a frases que a pessoa compreende). Isto parece afastar-nos da
compreensão de senso comum da verdade — comummente, ao que parece, podemos
aplicar a noção de verdade a frases estrangeiras, e a frases portuguesas que ainda não
compreendemos. Em suma, o conceito de verdade não parece depender das frases que
uma dada pessoa compreende num dado momento. O desafio que o descitacionista
enfrenta (assumido por Field, entre outros) é moderar as restrições contra-intuitivas à
verdade descitacional de uma maneira que não comprometa a teoria.
E assim por diante, ad infinitum. Longe de se restringir aos idiolectos das pessoas,
verdadeiro aplica-se a todas as proposições, incluindo as expressas por frases que não
compreendemos. Mas agora há um novo conjunto de preocupações. Primeiro, dado que
não compreendemos todas as proposições, iremos compreender só uma fracção dos
axiomas que constituem a teoria minimalista — e por isso o nosso entendimento da
verdade tem sempre de ser parcial. Segundo, dado que a teoria minimalista descreve a
verdade fragmento a fragmento, para cada proposição individualmente, não inclui
quaisquer generalizações sobre a verdade. De modo que se poderá objectar que a teoria
não consegue explicar generalizações como “Só as proposições são verdadeiras” — a
teoria não nos diz o que não é verdadeiro, de modo que não exclui, por exemplo, o
absurdo de que a Lua é verdadeira. (Sobre esta objecção, veja-se Anil Gupta 1993;
Christopher S. Hill 2002 oferece uma versão de minimalismo que lhe responde.)
Terceiro, considere-se a forma que têm os axiomas de Horwich: a proposição de que p é
verdadeira se e só se p. Para obter um axioma, temos de ter cuidado para substituir cada
ocorrência de p por espécimes portugueses da mesma frase-tipo, com o mesmo
significado. Mas agora parece que as frases voltaram a entrar na conversa — juntamente
com a noção semântica substancial de significado, que poderá não estar tão longe de se
envolver com a verdade como o minimalismo exige.
Esta última observação relaciona-se com um desafio geral que todas as formas de
deflacionismo enfrentam. Os deflacionistas tipicamente centram-se nos usos de
verdadeiro como “ ‘Os orictéropos andam a furta-passo’ é verdadeira”, ou “A maior
parte do que Sócrates diz é verdadeiro” — o que podemos chamar usos de primeira
ordem, onde verdadeiro se aplica a um portador de verdade particular ou a um conjunto
de portadores de verdade. Mas verdadeiro é também usado de outras maneiras: por
exemplo, considere-se a afirmação de que o significado de uma frase é dada pelas suas
condições de verdade, ou a afirmação de que asserir é apresentar como verdadeiro.
Estes usos de verdadeiro — chame-se-lhes de segunda ordem — pretendem explicar o
significado e a asserção. Ao contrário do usos de primeira ordem, não se aplicam a
quaisquer portadores de verdade particulares, e por isso não é fácil ver como poderão
ser tratados como redundantes e elimináveis, ou como poderemos dar-lhes um papel
meramente descitacional. Estes usos de segunda ordem têm de ser explicados. Além
disso, o deflacionista tem de mostrar que é possível explicar o significado e a asserção
(e muitos outros conceitos aparentemente relacionados com a verdade, como a validade,
a crença, a verificação, a explicação e o sucesso prático) em termos que atribuem à
verdade um papel lógico limitado, ou nenhum papel.
A frase 1 é falsa.
Suponha-se que 1 é verdadeira; nesse caso, ocorre o que afirma, e por isso 1 é falsa.
Pelo contrário, suponha-se que 1 é falsa — nesse caso, dado ser isso que 1 afirma, 1 é
verdadeira. Chega-se à contradição por qualquer das pontas, e caímos num paradoxo.
As teorias hierárquicas da verdade têm sido talvez a resposta ortodoxa ao mentiroso.
Seja L0 um fragmento de português que não contenha o predicado verdadeiro. Seja
verdadeiro em L0 o predicado de verdade para L0, que se aplica exactamente às frases
verdadeiras de L0. Se verdadeiro em L0 for em si um predicado de L0, então podemos
construir o paradoxo do mentiroso em L0 por meio da frase “Esta frase não é verdadeira
em L0”. Por isso, o predicado verdadeiro em L0 restringe-se a uma metalinguagem mais
rica para a linguagem-objecto L0. Mas devido ao mentiroso, esta metalinguagem não
pode incluir o seu próprio predicado de verdade; para isso, é preciso outra
metalinguagem. Deste modo, gera-se uma hierarquia de linguagens, contendo cada
linguagem para lá de L0 o predicado de verdade da linguagem anterior. Um célebre
teorema de Tarski (1930–1931/1983) mostra que nenhuma linguagem formal clássica
pode incluir o seu próprio predicado de verdade, e somos assim conduzidos a uma
hierarquia de linguagens formais. Houve quem transferisse este resultado para as
linguagens naturais, para lidar com o mentiroso, ainda que Tarski não subscrevesse esta
jogada. A abordagem hierárquica de Russell estava presente na sua teoria dos tipos e das
ordens (1967). Uma queixa frequente é que as abordagens hierárquicas obrigam a
disciplinar artificiosamente uma linguagem natural como o português; o próprio
Russell, a certo ponto, disse que a abordagem era “severa e muitíssimo artificiosa”.
2 não é verdadeira.
Agora 2 e 3 são compostas das mesmas palavras, com os mesmos significados, mas uma
é patológica e a outra é verdadeira. Os defensores da teoria contextualista afirmam que a
melhor maneira de explicar esta mudança de estatuto de verdade sem mudança de
significado é por meio de um desvio contextual (compare-se “Tenho fome” dito antes de
jantar e “Tenho fome” dito depois da sobremesa). A maior parte das teorias contextuais
são hierárquicas (por exemplo, Burge 1979, Barwise e Etchemendy 1987), apesar de
Keith Simmons (1993) desenvolver uma sugestão de Kurt Gödel, segundo a qual um
conceito não-estratificado da verdade se aplica em todo o lado, excepto em certas
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Keith Simmons
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Notas
É obviamente falso que o significado de qualquer frase seja dado pelas condições em
que é verdadeira. As frases interrogativas e imperativas, por exemplo, têm significado,
mas não há condições em que sejam verdadeiras; o mesmo acontece com as falsidades
lógicas. O autor quer dizer que o significado de uma frase assertiva sintética é dado
pelas condições em que é verdadeira. N. do T.
O autor quer dizer “Toda a frase assertiva é verdadeira ou falsa”. Como é óbvio, as
frases interrogativas e imperativas, entre outras, não são verdadeiras nem falsas. N. do
T.
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