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Notas do livro Terra Queimada:

P. 128/129

Brado contemporâneo em torno do “capitalismo de vigilância”

- não tem como alvo o capitalismo,

- pretende apenas combater “os alegados excessos e violações impostos a um sistema que
pode ser fundamentalmente reformado, mas que é indispensável”;

- na realidade, “o sistema foi desenhado para as pessoas nunca terem privacidade na rede,
mas ainda assim pedem-nos que acreditemos que se há de aprovar legislação que garanta a
privacidade, que se podem moderar os abusos presentes e que podemos recuperar essa
reconfortante ficção da “nossa” internet, que na verdade nunca existiu”.

- “exigências do secretismo, anonimato, encriptação e firewalls distorcem todos os aspetos da


vida online e comprometem a manutenção dos valores democráticos e comunitários.”

- empresas de segurança informática admitem que “temos de eliminar desta equação a


confiança”;

- reconhecimento fácil põe a debate: a privacidade, as identificações imprecisas, o


enviesamento racializado...

Tecnologia de reconhecimento de emoções (“computação afectiva”):

- objetivo é “determinar o estado emocional de alguém sob observação, muitas vezes segundo
categorias de felicidade, tristeza, surpresa, raiva, medo, repulsa e desprezo”

- exemplos de corporações: Affectiva, Emotient e Beyond Verbal

p. 130/131

- estão a criar formas de “inteligência artificial da emoção” para analisar expressões faciais em
tempo real;

- dizem que têm “boa maneira de compreender as reações espontâneas dos consumidores:

- permite “identificar os anúncios que geram melhor reação emocional a visualizações


repetidas”, identificar “comportamentos no ecrã das personalidades mediáticas que
atraem os espectadores”;

- importantes no desenho dos videojogos: “para maximizar o vício”.

- “consequências da computação afectiva começaram a encolher toda a nossa vida”;

- “são uma dimensão da generalização e mecanização redutoras da emoção que o capitalismo


neoliberal exige”;

- “escrutínio computacional do rosto também consegue interpretar micro expressões”,


identificar sorrisos verdadeiros e falsos...

- análise informática do sorriso é importante para “criação de robôs ou avatares digitais,


dotando-os de expressões credíveis e aparentemente genuínas” [questão das deepfake]
- objetivo da empresa de robótica é “incutir-lhes inteligência emocional e torná-los
verdadeiramente sociais”;

- o nosso “rosto, voz ou ambos, começam a disseminar-se, num sem-fim de situações,


modelos ocos de emoção e expressão”;

- estamos quase a “perder a capacidade ou sequer o interesse de captar o olhar ou a


voz de alguém como objeto de afecto ou íntima reflexão”.

Pp. 132/133:

Século XVII: rosto “exigia autodisciplina e controlo”, porque “nos revela e expõe”.

- “tudo mudou com o aparecimento da fotografia e o advento da sociedade de massas no fim


do século XIX”

- “ubiquidade das imagens fotográficas [...] tornaram menos relevante o que advinha dos
encontros diretos”.

Com “ascensão das neurociências, das redes sociais e do engenho da inteligência artificial”,
tem-se “sequestrado a atenção individual” na “personalidade complexa” (Avery Gordon).

- “milhares de milhões de imagens de rostos” correspondem a uma “superfície ilimitada e


desencorajadora”, definida pelo “atributo de ser ou não «gostável»”;

- relação recíproca com “projeto empresarial de reconhecimento do rosto e da voz”:

- serve “para determinar e aumentar a atractividade de produtos e serviços”;

- “O mais perturbador não é a mercantilização do sentimento ou o sinistro quadro de


controlo de comportamento.”

- “É naufragarem as formações sociais que outrora valorizavam a compreensão e a


experiência dos outros, a singularidade e a indeterminação do rosto e da voz.”

- “estamos a perder o dom de ver um rosto ou ouvir uma voz na sua


profundidade temporal”.

Sigrid Weigel:

- “como os fundos sulcos de perda, dor, amor, perseverança ou resignação num rosto humano
são supérfluos e, por isso, ilegíveis, à análise emocional das máquinas”.

- “impressões de uma vida [...] são [...] cada vez mais imperceptíveis para quem se habituou às
trocas online amnésicas e quase automatizadas”.

Século XX:
- “rosto pedia uma nova valorização e até santificação”

- “muitas vezes desprezava-se qualquer defesa da singularidade do indivíduo na sociedade de


massas ou qualquer reflexão sobre a ideia de personalidade como humanismo burguês ou
desilusão antimoderna”

- “despotismo do rosto fora assimilado às formas dominantes do espetáculo e da cultura de


celebridades”

- “apagava-se permanentemente o rosto vivo de quem sofria, de quem era desfavorecido ou


de quem não era branco”.

- rosto importante como “elemento definidor de um encontro humano em que se viabilizava


(ou negava) a fala”.

Pp. 134-135

Diálogo crucial “para construir ou manter a vida em comum, enquanto comunidade”.

- defesa de um socialismo comunitário, por Buber, nasceu:

- da leitura da obra de Proudhon, Marx, Kropotkin, Landauer e Lenine;

- das experiências da Comuna de Paris;

- das cooperativas operárias e dos primeiros kibbutzim;

- “trabalhar e viver juntos exigiam de toda a gente um grau de responsabilidade partilhada,


mas tal só ocorreria substancialmente como reação ao que uma pessoa enfrentava numa
situação real”

- Buber: “olhar” “vive no espaço dos acontecimentos”:

- “o encontro é mera condição prévia inescapável para alimentar a ligação entre os


humanos: «[M]ais vale a violência perante seres que realmente se experimentaram do
que a solitude espectral para com números sem rosto!”

- “mutualidade seria sempre incompleta, nunca inteiramente concretizada, tal como a


comunidade que alicerçava era um projeto permanentemente inacabado e em curso”;

-“gastamos a maior parte da vida no «mundo do Isso» das instituições e dos mercados,
onde o desejo de ganhos e a vontade de poder são forças naturais e inevitáveis”;

- o «mundo do Isso» despersonalizado foi sendo mitigado por formas comunais de vida
em que se valorizam e apoiam o afecto, a ajuda mútua e as festividades;

- modernidade tecnológica pode ameaçar “a própria existência do inter-humano”.

- obra de Buber “tem a familiaridade e a força epifânica do lugar-comum”.

- fragmento de Heráclito: “Para os seres despertos há só um mundo comum.”

- “Hoje, expropriados e instrumentalizados o rosto, a voz e o olhar, cada vez mais se


incapacitam as aptidões mais básicas pelas quais se invocam o comum”
- expropriação como “fim da própria possibilidade de fala dialógica, violência exercida
sobre «a essência linguística dos seres humanos»”

- efeitos dos meios de comunicação e das redes de informação globais: «O que se


apropria é a própria possibilidade de bem comum.»

Pp. 136-137

“O rosto é a única localização da comunidade [...]”:

- publicidade, pornografia e tantos outros domínios “exploram e rebaixam o rosto;

- Agamben afirma que o rosto é objeto de «uma guerra civil global que tem como campo de
batalha toda a vida social [...] e como vítimas todos os povos da Terra».

- olhar, voz, rosto: “Todos são objecto de monitorização e análise”:

- com o intuito fundamental de “assimilar mais facilmente os humanos aos sistemas e


operações maquínicos”;

- reduzindo e estandardizando as nossas reações.

Análise da voz “para identificar o estado emocional de um falante”

- “aumento o número de plataformas com acesso por voz”;

- aumentam “as vozes robóticas simularem interações humanas com os utilizadores”;

- “a máquina consegue alterar o desempenho com base no que determina do estado de


espírito ou sentimento”;

- ideia de que “as máquinas se tornam mais humanas” é uma “afirmação disparatada e frívola
por pressupor uma ideia neoliberal/corporativa do que constitui o «humano».”

- “deixámos de ter a sensibilidade para discernir sons simulados e sem vida das vocalizações
com corpo de um ser humano”.

- robôs “aplainam e reduzem a amplitude da expressividade das nossas próprias palavras, e


ressecam a singularidade e a espontaneidade de muitas das nossas interações verbais”;

- expropriação e esgotamento da fala surgiram com era da rádio e da televisão:

- agora, “acontece a uma imensa escala programática”.

Pp. 138-139

Formas modernas de poder “lesam os mais valiosos e vulneráveis elementos de ligação


humana”.

- prevalência destas trocas inertes e repetitivas incapacita ainda mais a nossa aptidão ou
paciência para a frustração e incompletude (normais em situações de encontro).
- o mundo “acostumou-se a formas monetizadas de comunicar que isolam o falante ou
emissor em circuitos unilaterais controláveis”;

- “é fácil pesquisar e encontrar tudo o que achamos dever saber sobre alguém”, logo, “o que
se possa aprender do outro com o tempo, mutualidade conquistada e transparência não tem
relevância, nem valor monetário”;

- “estamos a perde a capacidade de ouvir; de [...] estarmos frente a alguém estranho,


desfavorecido, que nada dá ao nosso interesse pessoal.”

- estamos “menos capazes de [...] aceitarmos que o diálogo se pode abrir [...] na
incognoscibilidade dos outros.”

- redes sociais “eliminaram a possibilidade de relação ética com a alteridade ou com a dor”;

- “induzem[-nos] ou forçam a seguir as rotinas do trabalho e do lazer digitais e de nos


alinharmos com a sua mediocridade e irracionalidade”

- tal como Kafka: “convencemo-nos de que havemos de cumprir as nossas metas e aspirações
numa zelosa e quieta conformidade com os preceitos e as normas de um sistema que sabemos
ser maligno”.

- “Conformamo-nos por passividade ou conveniência, e com o tempo passamos a ter gestos e


pensamentos que deixaram de ser nossos.”

Vivemos rodeados de “males supérfluos” (Adi Ophir): “muitas formas de intolerável


sofrimento que se poderiam evitar, mas que persistem por negligência ou porque assim se
quis”.

- pode parecer pouco importante destacar “as consequências éticas das técnicas de decifrar o
olhar, o rosto e a voz”, contudo, “se não atentarmos ao modo como os imperativos neoliberais
ferem o tecido íntimo”, “somos cada vez menos capazes de aguentar ou de iniciar sequer os
grandes combates contra as guerras imperiais, o terror económico, o racismo, a violência
sexual e a catástrofe ambiental.”

- “Com menor capacidade de reagir aos outros, não há nenhum sentido palpável de
responsabilização mútua, nem motivação para abandonar as parcas compensações da
insularidade digital.”

Pp. 140/141

- “multidão atomizada de pessoas, todas aparentemente absorvidas pelo conteúdo dos ecrãs”:

- “amplifica a inclusão do espaço público e constitui demonstração ritual da recusa de


comunidade que o neoliberalismo exige”

- “pressagia a perda do encontro”;

- fim de um “mundo da vida estabelecido no caráter indispensável de «estarmos com


os outros»;
- “dizem-nos que é mero efeito secundário, incómodo e inconsequente, da
actividade produtiva da era digital a que nos vamos habituar ou que esse
comportamento há-de mudar com o tempo.”

“A fragmentação do mundo social baseia-se nesta atuação obrigatória de andarmos ocupados,


de nos ocuparmos.”

- resultado: “aquiescência massificada a uma arquitetura imaterial da separação”

- existe “uma vontade niilista de deixar o mundo passar”;

- “insularidade sem os benefícios reparadores da verdadeira solidão, da falsa


privatização dos espaços públicos sem privacidade”.

Capitalismo gerou muitas configurações da alienação e separação sociais:

- mesmo na era da «multidão solitária» do século XX, mundo continuava pleno de coisas
inesperadas e imprevistas, enquanto que agora isso é tudo cada vez mais vedado.

Celularização do espaço público:

- Eugène Minkowski descreveu “as formas disseminadas de doença mental como «perda de
contacto vital com a realidade»;

- perda da capacidade de compaixão: «a dimensão mais natural e humana da nossa


vida».

- é posta em causa “pela imersão diária em passatempos egoístas e privatizados”;

- o que “amplifica a «fala unilateral» e o «autismo generalizado» que configuram


grande parte da atividade online;

- “neutralização da compaixão” e “perda de um sentido de responsabilidade” refletem


uma “desintegração mais lata da estrutura moral do quotidiano”;

- “a nossa própria capacidade de reconhecimento do humano começa a faltar”:

- Paolo Virno: “[O] animal humano é capaz de não reconhecer outro animal
humano como parte da sua espécie. Os casos extremos – do canibalismo aos
genocídios coloniais e europeus – são forte demonstração desta possibilidade
permanente.”

- “este não reconhecimento é o limite onde se começa a degradar a


possibilidade da sociedade”

- “A omnipresença de espaços coletivamente ocupados e marcados pela


indiferença à proximidade dos outros é inseparável da presente catástrofe da
terra queimada.”

“mundo que deixou de ser partilhado”.


Espaços públicos abrem lugar para um grupo se juntar:

- “atmosfera dos espaços sociais hoje atomizados é perturbadora” (tóxica, corrosiva...)

- “dissipa-se a curiosidade pelo outro”;

- experiência reduz-se ao que se pesquisa online.

Ernst Lohoff:

- “violentos parâmetros da vida numa realidade movida pelo mercado, que dispensa a
sociedade e se constitui apenas por indivíduos em competição para triunfarem e sobreviverem
sozinhos, a qualquer custo”.

- Citação completa: «A loucura a que nenhum de nós é poupado – a de ter de existir como
sujeito autónomo – traduz-se no impulso demente de defender este modo invisível de
existência por qualquer meio, mesmo de arma em punho.»

- subjugação do indivíduo ao mercado:

- ilusões de autonomia;

- ancora-se numa verdadeira impotência;

- “racionalização” e “absoluta economização das relações sociais” promovem


precisamente o seu oposto a “irracionalidade, já sempre prenhe de violência”.

Num momento de “perigo inédito quanto ao futuro do planeta”, é espantoso que “tanta gente
voluntariamente se isole nos áridos armários concebidos por um punhado de corporações
sociocidas”.

- não se encontram soluções nos motores de pesquisa da net;

- “precisamos antes de exploração e receptividade criativa a todos os recursos e práticas


desenvolvidos durante milhares de anos”:

- existem imensas reservas de conhecimento e visão (técnicas de subsistência,


incentivo à comunidade ...)

- precisamos “recuperar e adaptar às necessidades presentes” as culturas do Sul Global


e dos povos indígenas;

- exigem-se novas maneiras de viver, “temos de repensar radicalmente as nossas


necessidades, de redescobrir os desejos além da enxurrada de ocas carências”;

- “grande maneira de comunicarmos com os outros é no que compramos, no


mesquinho capital simbólico que nos esforçamos por obter, levados pela inveja ou pela
necessidade de sermos respeitados”;

- “dependência individual em relação à distinção social” existe, mas “vínculo a bens


materiais e ao estatuto social depressa se pode dissipar”, se se criar um futuro
conjunto e de partilha com todos.
Cada região determinará o seu próprio caminho.

Projetos mais urgentes:

- expandir a produção e distribuição local de alimentos;

- disponibilizar cuidados básicos de saúde e de serviços paramédicos;

- proteger o abastecimento de água potável;

- reconfigurar, de maneira igualitária, o parque habitacional.

Para tudo isto, é necessário “inovação visionária” e “inventividade pragmática”.

Importante “repensar o elo entre humanos e animais”.

“Jean-Paul Sartre defendeu que a escassez é a base de toda a história da humanidade.”

- «A História nasce da assimetria que afeta todos os níveis da sociedade.»

- violência intrínseca à escassez organizada gera “quebra de reciprocidade e de


exploração sistemática da humanidade do ser humano para se destruir o humano”

Capitalismo da terra queimada:

- “põe em perigo a sobrevivência de milhares de milhões de pessoas e de outras formas de


vida no nosso planeta”;

- extremo desequilíbrio social, carências criminosas, devastação dos habitats;

- resposta a esta violência pode ser uma «ação comum» (de grupos e comunidades);

- “As pessoas isoladas podem descobrir «que a ação comum é único meio de conseguir
alcançar o objetivo comum».

- capitalismo sobrevive graças às “pessoas agarradas à sua diferenciação, à privacidade, à


liberdade dos outros e ao medo de tudo o que seja comunal”;

- “complexo internético continua a gerar estas subjetividades em massa, [...] a dissolver


possibilidades de reciprocidade e responsabilidade coletiva.”

- “Contudo, a não ser que haja uma prefiguração activa de novas comunidades e formações
capazes de se governarem em igualdade,”

- “o pós-capitalismo será um novo domínio de barbarismo e despotismos regionais”

- “a escassez assumirá formas selváticas difíceis de imaginar”.

- “insurgências emergentes” são capazes de inverter o estado das coisas, de criar novas formas
de solidariedade;

- respondendo a um estado de emergência, grupos revolucionários podem “determinar «a


velocidade de chegada do futuro»”;

- “resta-nos pouco tempo para irmos ao encontro de um futuro com novas maneiras de viver
na Terra e de viver uns com os outros”.

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