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A máquina de escrever entre a burocracia e a arte

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26 de outubro de 2018

Por Luiz Prado

Poema, de Giulia Niccolai (1974) – Foto: Divulgação

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Houve um tempo de sentidos à flor da pele. Um território barulhento, tomado por tal
magnitude de ruídos que as vozes se elevavam nas redações dos jornais tomadas pelas
brumas da nicotina. Um mundo tátil, no qual cada palavra cobrava dos dedos seu quinhão
de energia e vontade de existência. Um universo linear e testemunhado, com os percalços
da criação registrados em erros, rascunhos e lápis. Uma realidade material, fundida em
metal, papel e tinta, preenchendo baús e gavetas com cápsulas do tempo regularmente
lançadas ao encontro das saudades e nostalgias.

Essa foi a era da máquina de escrever.

As cinzas dessa época ganham a paisagem mais uma vez no Museu de Arte
Contemporânea (MAC) da USP, com a exposição Ecos Mecânicos

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Jornal Dobrabil, de Glauco Mattoso (1977/81) –
Foto: Divulgação

: A Máquina de Escrever e a Prática Artística.

Com curadoria de Cristina Freire, docente do MAC, a mostra, que começa neste sábado, dia
27 de outubro, entrelaça duas abordagens, histórica e artística. Na primeira, a trajetória da
máquina de escrever é delineada a partir de exemplares e documentos de coleções do
Museu Paulista (MP) e do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), ambos pertencentes à USP.

Para Cristina, a máquina de escrever, com seu anacronismo tátil e mecânico, convoca um
passado próximo que destoa do mundo digital. “Como uma espécie de tipografia padrão, a
máquina de escrever funcionou, até há algumas décadas, como uma prensa portátil e
acessível, capaz de associar a escrita, a fala e a publicação”, comenta.

A curadora situa a máquina de escrever entre os polos antagônicos da burocracia e da arte.


Preenchimento de papeladas, documentos e relatórios fazem par com correspondências
trocadas entre artistas e obras que se inspiram na tecnologia. “Nas primeiras décadas do
século 20, Mário de Andrade chama de Manuela, em homenagem a Manuel Bandeira, sua
máquina Remington”, explica. Parte da coleção do IEB, a Manuela integra a exposição, ao
lado de máquinas das décadas de 1910 e 1920 pertencentes ao MP.

Seja na marola burocrática ou na arritmia artística, a máquina de escrever também


significou uma relação com o processo criativo e a memória que hoje se desmancha no ar,
reflete Cristina. “Na máquina de escrever é impossível esquecer. Se você apaga, fica o

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rastro. Se quer registrar, deve grifar duas vezes.”

Também há uma dimensão política nas arqueológicas Olivettis e Remingtons, segundo a


docente. “Como dispositivo moderno, a máquina de escrever pode ser considerada uma
tecnologia de liberação, pois favoreceu a emancipação feminina com a profissionalização da
secretária e a formação técnica da datilógrafa, apoiada em escolas, cursos e manuais.”

Extrativismo cognitivo

Concretework, de Ruth Rehfeldt (1977) – Foto:


Divulgação

Dos personagens que bateram seus nomes na história das máquinas, a exposição destaca
João Francisco de Azevedo (1814-1880), padre paraibano criador de um dos primeiros
modelos de máquina de escrever. “O que me chamou a atenção em sua história é que eu
jamais havia ouvido falar desse nome”, relata a curadora.

Em 1861, Azevedo apresentou na Exposição Nacional, no Rio de Janeiro, uma máquina


inspirada na estrutura de um piano, criada para facilitar a escrita mecânica. Premiado pelo
Imperador Dom Pedro II com medalha de ouro, o invento foi, contudo, vetado pela comissão
responsável pelo pavilhão brasileiro da Exposição de Londres de 1962. “Há estudos que
sustentam que seu projeto foi entregue a agentes estrangeiros e atesta um exemplo
precoce e mal conhecido de extrativismo intelectual no Brasil”, afirma Cristina.

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Na visão da curadora, o caso do padre Azevedo é ilustrativo de um fenômeno mais
abrangente. “É um tipo de extrativismo que observamos nos países periféricos, sem
condições de tornar públicas suas invenções, que não conseguem extroverter suas
possibilidades intelectuais e acabam sendo usurpados, o que chamo de extrativismo
cognitivo.”

A arte da máquina
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A parte eminentemente artística da exposição acolhe 86 obras que investigam, questionam


e torcem a datilografia e seus usos. São trabalhos da poesia concreta e de artistas das
décadas de 1970 até a atualidade, nomes nacionais e internacionais como Vera Chaves
Barcellos, Julio Plaza, Eduardo Kac, Élida Tessler, Mira Schendel, Augusto de Campos,
Décio Pignatari, Haroldo de Campos, Glauco Mattoso e Ruth Rehfeldt.

A maior parte das obras pertence ao acervo do próprio MAC, mas há itens vindos de
coleções particulares. Segundo Cristina, a exposição conta com arquivos de Décio Pignatari
e Haroldo de Campos e o próprio Augusto de Campos também enviou trabalhos. Houve
ainda convite a artistas jovens, que trabalham com a máquina de escrever em múltiplas
linguagens, como a performance, vídeo e desenho. Pensando nos nostálgicos e na geração
pós-rumor das teclas, máquinas de escrever foram disponibilizadas pela área da mostra
para contatos imediatos de quinto grau.

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Os Telefonemas, de Mira Schendel (1974) –
Foto: Divulgação

“Os poetas concretos, desde meados dos anos 1950, tiveram com a máquina de escrever
uma parceria de plano e projeto, distante do artesanal. O espaçamento padrão e o branco
da página funcionaram como elementos gráficos-estruturais”, pontua a curadora. “Com
máquinas de escrever, muitos artistas contemporâneos realizaram trabalhos em processos
intermídia, resultando em poesia visual, incluindo cartas-poemas, poemas concretos,
datiloscritos e datiloarte.”

Cristina destaca também o papel da máquina de escrever nas publicações marginais dos
anos 1970, como em Jornal Dobrabil, de Glauco Mattoso, que integra a exposição. Ou
mesmo como instrumento musical, caso da peça A Máquina de Escrever, do compositor
estadunidense Leroy Anderson, executada pela Filarmônica de Minas Gerais, na qual a
máquina se torna instrumento percussivo e ganha protagonismo como solista da orquestra.

A curadora vê uma diferença significativa no uso da máquina de escrever pelos artistas


antes e depois da era digital. “No princípio, até meados da década de 1980, os artistas
valeram-se dos recursos da máquina como dispositivo de escrita mecânica na construção
da imagem-letra-palavra”, analisa. “Hoje, o desuso da máquina de escrever, que oscila entre
a inutilidade prática e o eclipse total, é índice do desparecimento programado de todas as
coisas. Sua obsolescência sugere a possibilidade da emergência de novos sentidos
poéticos e políticos, que tensionam esse vão indefinido entre o futuro e passado.”

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Perfomances de escrever

Duas performances estão programadas para a abertura da exposição, neste sábado, dia 27,
às 11 horas. Performance de Uma Pessoa Escrita, de Tatiana Schunck, usa uma máquina
de escrever para registrar o contato com o público e a experiência do encontro com
desconhecidos. Já 43 Estudiantes de Ayotzinapa, de Javier del Olmo, é a datilografia ao
vivo de um dos 43 rostos de estudantes secundaristas desaparecidos pelas forças policiais
mexicanas em 2014.

A exposição Ecos Mecânicos: A Máquina de Escrever e a Prática Artística fica em


cartaz até 27 de outubro de 2019, de terça-feira a domingo, das 10 às 21 horas, no
Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP (Avenida Pedro Álvares Cabral, 1.301,
Ibirapuera, em São Paulo). A abertura da mostra será neste sábados, dia 27, às 11
horas. Entrada grátis.
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43 estudiantes de Ayotzinapa, de Javier del Olmo (sem data) – Foto: Divulgação

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Carta ao Pai, de Élida Tessler (2015) – Foto: Divulgação

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Profilograma dp, de Augusto de Campos (1987) – Foto: Divulgação

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