Você está na página 1de 196

EDIÇÃO BIBLIOTECA

SAUDADE
NA LITERATURA E ARTE PORTUGUESAS
António Carneiro, Noturno, óleo sobre tela, 1910. Museu Nacional de Arte Contemporânea do
Chiado. De um expressionismo quase abstrato, esta paisagem verdadeiramente hipnotizante,
invoca um silêncio que se eleva ao estatuto de poesia da transcendência. A diluição das
formas, a profundidade monocromática, a luz e o seu reflexo estabelecem uma relação de
presença/ausência, interior/exterior que nos projeta para um ambiente de quase sonho.
NotíciasFlix
ESPERO SEMPRE POR TI O DIA INTEIRO,
QUANDO NA PRAIA SOBE, DE CINZA E OIRO,
O NEVOEIRO
E HÁ EM TODAS AS COISAS O AGOIRO
DE UMA FANTÁSTICA VINDA.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

AH, TODO O CAIS É UMA SAUDADE DE PEDRA!


E QUANDO O NAVIO LARGA DO CAIS
E SE REPARA DE REPENTE QUE SE ABRIU UM ESPAÇO
ENTRE O CAIS E O NAVIO,
VEM-ME, NÃO SEI PORQUÊ, UMA ANGÚSTIA RECENTE,
UMA NÉVOA DE SENTIMENTOS DE TRISTEZA
QUE BRILHA AO SOL DAS MINHAS ANGÚSTIAS RELVADAS.

FERNANDO PESSOA

4
A BELEZA DA SAUDADE

P
rofundamente enraizada na alma lusitana, a saudade é muitas vezes
comparada à melancolia que os antigos gregos associavam ao génio
criativo. Esta bela palavra, que não tem tradução direta em muitas línguas,
mas que pode ser associada a conceitos como o alemão sehnsucht, que descreve
uma saudade sublimada de algo indefinível, e o galês hiraeth, a nostalgia de um lar
ao qual não se pode regressar ou que nunca existiu, encerra um misto de emoções,
amor, perda, distância e tempo, que ultrapassa a melancolia e revela um aspeto
universal da experiência humana: o desejo profundo e muitas vezes inatingível de
ligação, seja a um lugar, a uma pessoa ou a um momento no tempo.
Nesta maravilhosa edição que tem nas suas mãos, escrita por especialistas na área,
exploramos o conceito de saudade na nossa literatura e artes visuais, para nos
compreendermos melhor e para valorizarmos e apreciarmos quem somos.

CARMEN SABALETE
Diretora

ASC

Painel de Azulejos em Lisboa, realizado a partir da Pintura O Fado, de José Malhoa, 1910.

5
CONT
Cláudio nos Rochedos, 1912. Óleo sobre
tela da autoria de António Carneiro. Câmara
Municipal de Matosinhos, Portugal.
ASC

6
EÚDO O CONCEITO DE SAUDADE NA
CULTURA PORTUGUESA.............. 8

IRMÃOS DA SAUDADE?............. 20

AMOR E SAUDADE NOS


CANCIONEIROS MEDIEVAIS...... 28

SAUDADE NA OBRA
DE CAMÕES................................ 42

A SAUDADE E GARRETT............ 56

A SAUDADE EM
FLORBELA ESPANCA................. 68

TEIXEIRA DE PASCOAES
E A SAUDADE.............................. 80

CAROLINA MICHAËLIS
DE VASCONCELOS..................... 92

SAUDADE E SAUDOSISMO
EM FERNANDO PESSOA......... 100

A SAUDADE NO
PENSAMENTO PORTUGUÊS
CONTEMPORÂNEO................. 114

A SAUDADE EM
EDUARDO LOURENÇO............ 122

JOSÉ SARAMAGO..................... 134

ANTÓNIO CARNEIRO............... 144

PROTAGONISTAS
DA SAUDADE........................... 156

MUSEU DO FADO..................... 178

O MIL, A NOVA ÁGUIA


E A SAUDADE .......................... 184

EXPOSIÇÕES DE LETRAS....... 186

BIBLIOGRAFIA......................... 192

7
ASC

Livro de Horas de D. Duarte, o rei-filósofo, autor de Leal Conselheiro, onde, pela primeira vez, se
teoriza em língua portuguesa sobre a palavra Saudade.

8
O CONCEITO
DE SAUDADE
na cultura portuguesa

NUNO JÚDICE
Poeta, ensaísta e professor universitário

9
P
odemos começar por um exercício banal, pegando em dicionários
correntes. No de bolso Português-Francês da Porto Editora, saudade
é regret de l’absence, tendre souvenir; num outro da mesma edi-
tora, dá-se regret, nostalgie, souvenir, e acrescenta-se um insólito
cafardage (da família de cafard, barata, o que nos faria olhar este de-
sagradável insecto com outros olhos), que tem o significado de hipocrisia ou falsa
devoção; no Michaëlis de bolso de Português-Espanhol, saudade é añoranza, nos-
talgia; no Collins, temos longing e yearning, com uma distância e uma ânsia que
exageram consideravelmente a harmonia da saudade.
Já em dicionários de português, o significado da palavra reveste-se de uma to-
nalidade de estilo mais poética do que linguística: o Houaiss fala de «lembrança
melancólica e, ao mesmo tempo, suave, de pessoa(s) ou coisa(s) distante(s) ou ex-
tinta(s), na linha romântica do Morais: «a mágoa que nos causa a ausência da cousa
amada, com o desejo de a ter presente, e tornar a ver»; o dicionário da Academia
é mais duro: «recordação de alguma coisa que foi agradável mas que está distante
no tempo ou no espaço».
Esta dificuldade, ou quase impossibilidade, de encontrar um equivalente noutras
línguas românicas (as que nos são mais próximas e familiares) a um sentimento
que deveria fazer parte do tronco linguístico comum, derivado do latim solitatem
(o grego é já um barbarismo distante, afastando a hipótese de ter sido a
saudade de Penélope a trazer Ulisses de volta a Ítaca), levou a crer tratar-se de uma
originalidade portuguesa, que no folclore mais recente da nossa promoção inter-
nacional se tem vindo a associar ao fado, ao negro que o ICEP transformou em cor,
e até ao bacalhau (que para os nossos emigrantes é um ersatz compensatório da
distância a que se encontram do so-
lo natal). A deriva linguística acabou
por fazer dessa solitatem uma especi-
ficidade quase ibérica, em que do lado
castelhano temos soledad e, do lado
português, depois de formas transi-
tivas como soidade, distinta de soi-
dão (esta vinda de solus, solitudine,
que dá a solitude francesa e a solidão
nacional), se plasmou na saudade já
desde o fim da Idade Média, embora
soidade e saudade ainda coexistam
durante séculos.

Bernardim Ribeiro. «A associação do


sentimento a Bernardim converte-o num
topos literário, retirando-lhe a carga de
acédia que D. Duarte, no ‘Leal Conselheiro’
ALBUM

lhe emprestara.»

10
A questão que importa tratar é, por
isso, a de ver como é que uma palavra
que tem origem numa ideia precisa,
que associa afastamento e solidão,
vai progressivamente adquirindo um
estatuto metafísico que, a partir do
Romantismo, irá evoluir no sentido
da filosofia que, desde o princípio do
século XIX encontra a sua fórmula
ideológica no Saudosismo de Teixei-
ra de Pascoaes e companheiros, daí
evoluindo até ao que se designa por
filosofia portuguesa. Diria que isso
aconteceu à falta de melhores ideias,
ou melhores conceitos: não temos
grande vocação inventiva no que res-
peita a um pensamento próprio, pelo
que foi essa palavra que, no espaço do
glossário pós-babélico, não tem cor-

GETTY
respondência traduzível noutras lín-
Luís de Camões. «É nele que o conceito
guas, que fixou a nossa especificidade [de saudade] irá encontrar um dos seus
ontológica. fundamentos nacionais...»
O problema da saudade, porém, é
precisamente a sua intraduzibilidade.
Outras palavras, oriundas de áreas que não a filosofia propriamente dita, puderam
constituir a base de sistemas ou pensamentos filosóficos, como foi o caso da loucura
(desde Erasmo), da melancolia (desde Dührer), até às Luzes (dos homens da En-
ciclopédia). Mas loucura, melancolia, luz, encontram facilmente correspondente
vocabular em qualquer língua, condição necessária para lhes conferir a universa-
lidade que a filosofia implica, uma vez que aspira à universalidade do homem e do
seu universo espiritual.
Ora não é possível falar de uma saudade espanhola, de uma saudade francesa, de
uma saudade inglesa, e assim por diante. É uma palavra solitária, na sua definição,
que só num campo literário – o da poesia – tem perfeita definição, posta na boca
de Camões por Almeida Garrett:

«Saudade! gosto amargo de infelizes,


Delicioso pungir de acerbo espinho,
Que me estás repassando o íntimo peito
Com dor que os seios d’alma dilacera;
- Mas dor que tem prazeres – Saudade»
(«Camões», Canto Primeiro)

E é Garrett, em nota aposta ao seu «Canto primeiro», que faz tomar consciência
deste valor próprio da palavra:
«Saudade:/Mavioso nome que tam meigo soas/Nos lusitanos lábios…»

11
Retrato de Almeida Garrett
por Joaquim Pedro de Sousa,
1860s. Biblioteca Nacional
«...é Garrett, em nota aposta
ao seu «Canto primeiro», que
faz tomar consciência deste
valor próprio da palavra:
«Saudade:/Mavioso nome
que tam meigo soas/Nos
lusitanos lábios…»

ASC
Para Garrett, é uma palavra que «é porventura o mais doce, expressivo e delica-
do termo da nossa língua»; e se o sentimento pode ser comum a todos os homens
que, noutros países, o podem sentir, o que o poeta verifica é que nenhum outro
vocábulo, noutra língua, o designa tão precisamente. E prossegue adiante: «Sau-
dade, palavra, cuido que vem, por derivação oblíqua, do latino solitudo. Oblíquo,
digo, porque direitamente derivaram
os nossos de solitudo, solidão, soidão,
e depois soledade, soidade, finalmen-
te saudade. De modo que, por esta
síntese (ou pela análise que é óbvia)
se vem a intender claramente que o
verdadeiro sentido de saudade é – os
sentimentos ou pensamentos da so-
ledade ou solidão ou soidão; o desejo
melancólico do que se acha na soli-
dão, ausente, isolado de objectos por
que suspira, amigos, amante, pais,
filhos, etc. – E tanto por saudade se
deve entender este desejo do ausente
e do solitário…»
Definição completa e fechada, aqui
se arrumaria o assunto não fosse
aquela preciosa – para a nossa ânsia
especulativa – indicação garrettiana
ALAMY

de que, para o que saudade significa,


Autor de SÓ, António Nobre é um dos mais «não o sei de outra nenhuma lingua-
consagrados poetas da saudade. gem senão a portuguesa». Também

12
A QUESTÃO QUE IMPORTA TRATAR É A
DE VER COMO É QUE UMA PALAVRA QUE
TEM ORIGEM NUMA IDEIA PRECISA,
QUE ASSOCIA AFASTAMENTO E SOLIDÃO,
VAI PROGRESSIVAMENTE ADQUIRINDO
UM ESTATUTO METAFÍSICO

Camões não vem à liça, puxado pela saudade, por acaso: é nele que o conceito irá
encontrar um dos seus fundamentos nacionais, ligando a ideia de saudade, através
de Bernardim Ribeiro, à lembrança do campo: «Entre algũas novas que mandastes,
vi que me gabáveis a vida rústica, como são: águas claras, árvores altas, sombrias,
fontes que correm, aves que cantam e outras saudades de Bernardim Ribeiro, quae
vitam faciunt beatam.» A associação do sentimento a Bernardim converte-o num
topos literário, retirando-lhe a carga de acédia que D. Duarte, no «Leal Conse-
lheiro» lhe emprestara; e D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos, no seu livro «A
saudade portuguesa», recupera inteiramente esta palavra para o lado da poesia:
«…foram os poetas, de Bernardim Ribeiro a Camões, e de Camões a Garrett, de
Garrett a António Nobre, Teixeira de Pascoaes, Correia de Oliveira e Afonso Lo-
pes Vieira que encheram a saudade de tudo quanto de vago, e
misterioso e apaixonado e melancólico se desentranha da
alma nacional.»1
Ora o que é novo nesta frase de D. Carolina é a ex-
pressão «alma nacional». Se a autora, de origem
alemã, conhece bem essa identificação que os ro-
mânticos fizeram entre literatura e nacionalidade,
mais do que língua, a palavra alma vai amplificar
num outro sentido esta concepção, a partir do mo-
mento em que o Povo ganha uma personalidade antro-
pomórfica, dotada dessa alma única caracterizada
por aspectos individuantes, como a saudade,
que o irá distinguir de outros povos. Não
anda longe disto Teixeira de Pascoaes
quando recorre à Saudade como criação
do povo lusitano2, fazendo uma síntese
da conferência de 1912, no Porto, em
que trata o tema, desta forma:

Busto de Carolina Michaëlis, por Raúl Xavier, 1953.


«Carolina Michaëlis de Vasconcelos, no seu livro «A
saudade portuguesa», recupera inteiramente esta
palavra para o lado da poesia...»
ASC

13
«A primeira vez que tive a hon-
ra de falar nesta cidade demonstrei
que existia uma alma portuguesa e
o que ela era na sua íntima expres-
são transcendente, afirmando que o
nosso ressurgimento resultará da sua
lenta revelação e aplicação directa à
vida social.»3
É paradoxalmente um poeta que
pretende alargar o conceito de sauda-
de da esfera literária ao campo social,
indo mais longe do que isso quando
fala de uma «religião da Saudade».
Nesses anos 1910, trata-se de uma
afirmação obviamente anti-moder-
nista, dado que o Futurismo era, a
partir de 1909, o movimento central
do campo das vanguardas europeias.
ASC

A ruptura entre Fernando Pessoa e


Teixeira de Pascoaes «...pretende alargar o
conceito de saudade da esfera literária ao
Pascoaes, e mais precisamente entre
campo social, indo mais longe do que isso Álvaro de Campos e o Saudosismo,
quando fala de uma ‘religião da Saudade’.» inscreve-se plenamente neste confli-
to entre o passado – que é a razão de
ser da Saudade – e o Futuro que, na
óptica de Marinetti, se constrói sobre a destruição de tudo o que evoque esse pas-
sado. Destruir Veneza, como ele pretende no seu Manifesto, é por isso um sinal que
vai ao encontro da 1ª Grande Guerra, que os Futuristas saúdam como uma forma de
higiene de tudo o que é velho e se liga à tradição.
Inscrever-se-á neste campo o verso da «Mensagem» em que Pessoa fala de «fu-
turo do passado», num desses paradoxos que visa destruir a imagem feita. Mas
Pessoa tem, sobretudo, uma consciência crítica em relação ao conceito que, pelas
suas características ideológicas, vai no sentido do ruralismo e do bucolismo tão
contrários à sua formação urbana. Este desajuste em relação ao século XX que nas-
cera sob o signo da técnica e do progresso, no entanto, tem já no passado reacções
no exterior, como refere Karl Vossler:
««A saudade portuguesa», «la nostalgia portuguesa», se glorifica ya a final del
siglo XVI como cualidad nacional y característica de la nobleza del alma lusitana e
del sentimiento refinado, y, por otra parte, es objeto de burla para los castellanos.»4
Vossler aponta, curiosamente, uma nova explicação para o aparecimento singular
do ditongo au, substituindo os arcaicos oi e ui da Idade Média:
«No obstante, dejemos esto aparte y perguntemos, en primer lugar, de dónde
y cómo el diptongo au se ha introducido en tan bonita palabra. Uno o varios gru-
pos de palabras de forma fonética semejante, de un significado aproximado, deben
haber intervenido. Se ha tomado en consideración la palabra árabe saudá= «pa-
decimiento hepático, dolor de corazón, depresión, melancolía; se aproxima más al
grupo de vocablos portugueses saúde, saudar, saudações, sanidade, salvar…»5

14
NÃO PODEMOS LIBERTAR-NOS DELA,
COMO DE TUDO AQUILO QUE NOS
FORMOU CULTURAL E HISTORICAMENTE;
MAS DEIXEMO-LA NO SEU ESPAÇO
NATURAL, O DA POESIA, ONDE O SEU VÔO
SERÁ BEM MAIS LÍMPIDO E SAUDÁVEL

Esta relação entre o físico e o espiritual vai acentuar a especificidade deste con-
ceito, uma vez que o ser «saudoso» constitui – a aceitar a etimologia árabe de sau-
dá - uma forma patológica da pessoa que, por razões várias, se vê afastada do que
ama. Noutras línguas, são bem mais amenas as palavras que designam este estado,
da «nostalgie» francesa ao «to feel nostalgic» inglês; mas é também o inglês que
caracteriza, preto no branco, o fundo patológico da saudade com o termo «home-
sick», em que a dor causada pela ausência do lar é uma doença (sickness), no que
se afasta da nostalgia que o Houaiss reduz a uma banal «saudade da pátria», no que
é corroborado pelo Dicionário da Academia.
Com efeito, a definição de nostalgia deriva do étimo grego «nostos» que tem
explícita uma distância entre quem sente e o objecto do sentimento, introduzindo
já um sentido de perda e de superação do sentimento negativo; pelo contrário, a
saudade é algo de prolongado, é um estado não transitório mas imanente ao sujeito
e, por isso, algo que o afecta em permanência, mantendo viva a sua relação com a

ASC

Retrato (parcial) de Fernando Pessoa, por Almada Negreiros.


«Pessoa tem [ ]uma consciência crítica em relação ao conceito que, pelas suas
características ideológicas, vai no sentido do ruralismo e do bucolismo tão contrários à sua
formação urbana...»

15
Retrato de António Correia de Oliveira. Tendo participado
inicialmente no movimento da Renascença portuguesa,
António Correia de Oliveira, acabará por afastar-se,
tornando-se num dos autores oficiosos do regime do
Estado Novo.

pessoa, objecto ou estado que se perderam, ou de


que foi afastada. Mais perigoso, ainda, é a verifica-
ção garrettiana do prazer que se pode tirar desse
estado. Assim, a saudade que punge como o espi-
nho também é doce; e desta qualidade o que resulta
é a inacção de quem não precisa de lutar contra o
que o faz sofrer, porque nesse estado encontra uma
completude dolorosamente agradável.
ASC

Afinidade electiva poderia encontrar-se, de acor-


do com D. Carolina Michaëlis, entre a nossa sauda-
de e a Sehnsucht alemã; mas logo ela desfaz a semelhança, voltando a deixar-nos
«orgulhosamente sós» com este belo substantivo:
«Plena concordância há, porém, entre Saudade e a Sehnsucht dos alemães (…)
Mas em regra a Sehnsucht alemã tem carácter metafísico. Aspira a estados e regiões
ideais, sobre humanas: ao Além»6
Será Portugal então, no mais fundo da sua alma, um país sofrendo desse comple-
xo a que Sacher-Masoch, o autor da «Vénus de Kazabaïka», ligou o seu nome? Se
virmos as auto-flagelações em que, entranhada e langorosamente, sectores impor-
tantes das nossas elites, e muita da nossa imprensa de referência, se comprazem,
esta sintomatologia é evidente. E não há qualquer dúvida em que, por trás dela,
se esconde essa saudade que se fixa numa expressão que não sei se terá equiva-
lente noutro país: «dantes é que era
bom». Terá sido a percepção deste
lado deceptivo do presente que levou
Eduardo Lourenço a falar da saudade
como um labirinto? Se labirinto exis-
te, atrás dele vem o monstro: e esse
monstro é o Presente que os habitan-
tes do labirinto – nós, os portugueses
– temos de defrontar e vencer; ou,
em alternativa, fazer como esse povo
antigo que, ritualmente, oferecia de
sacrifício ao Minotauro os melhores
de entre a sua juventude.

Afonso Lopes Vieira, numa fotografia


de José Leitão Bárcia, no seu gabinete
no palácio da Rosa. Poeta ligado ao
movimento da Renascença Portuguesa e
ASC

um dos primeiros neogarrettistas.

16
Deixemos então a saudade para o seu espaço «natural», que é o da Poesia; mas
também aí não é pacífica a sua aceitação. De Garrett a Nobre fez o seu caminho, no
século XX, o Saudosismo deu-lhe um amplo espaço com as características já referi-
das; mas o século XX é, também, o tempo da sua contestação. Poderá ainda a saudade
vir a encontrar novas formas e um novo espaço de significação que a liberte do «déjà
vu»? Quem conhece a história da literatura sabe que, ciclicamente, temas, motivos
ou palavras que pareciam letra morta do passado têm o condão da Fénix. A saudade
tem todas as condições para renascer das cinzas; mas importa limpá-la dessa pesada
tradição de lugar-comum que o seu nome arrasta. E posso dar um exemplo de uma
nova utilização, num poeta em que a saudade é um sentimento praticamente ine-
xistente: Eugénio de Andrade. É num poema de «As mãos e os frutos», livro da sua
juventude, que ela se encontra, não voltando a aparecer na sua obra:

O ANJO DE PEDRA
Tinha os olhos abertos mas não via.
O corpo todo era a saudade
de alguém que o modelara e não sabia
que o tocara de maio a claridade.

Parava o seu gesto onde pára tudo:


no limiar das coisas por saber
- e ficara surdo e cego e mudo
para que tudo fosse grave no seu ser.

Anjo de pedra na catedral do corpo, a


saudade converte-se em alegoria, e o seu
voo é outro, diferente, criador e luminoso,
no céu límpido do poema. Convertida em
estátua por Eugénio, a saudade adquire a ISTOCK

solidez da pedra – e ao mesmo tempo que


entra no espaço imaterial do poema, onde
a sua presença ganha a perenidade do objecto estético, a sua materialidade de ima-
gem dá-lhe a consistência que nos permite tocá-la e sentir a sua realidade. Mas não
é esta a condição indispensável para esconjurar o seu lado negativo? Não podemos
libertar-nos dela, como de tudo aquilo que nos formou cultural e historicamente;
mas deixemo-la no seu espaço natural, o da poesia, onde o seu voo será bem mais
límpido e saudável.

1 «A saudade portuguesa», Guimarães editores, 1996, pág. 55.


2 «O Povo português criou a Saudade, porque é a única síntese perfeita do sangue ariano e
do semita.» in «A Saudade e o Saudosismo», Assírio & Alvim, 1988, pág. 47.
3 Idem, pág. 69.
4 Karl Vossler, «La soledad en la poesia española», Visor Libros, Madrid, 2000, pág. 15.
5 Idem, pág. 15.
6 «A saudade portuguesa», pág. 32.

17
Ai eu, coitada! – como vivo
en gran cuidado – por meu amigo
que ei alongado! – muito me tarda
o meu amigo – na Guarda!

Ai eu, coitada! – como vivo


en gran desejo – por meu amigo
que tarda, e non vejo! – muito me tarda
o meu amigo – na Guarda!

– Rei D. Sancho I, Séc.XII

Ondas do mar de Vigo,


se vistes meu amigo!
E ai, Deus!, se verrá cedo!

Ondas do mar levado,


se vistes meu amado!
E ai Deus!, se verrá cedo!

Se vistes meu amigo,


o por que eu sospiro!
E ai Deus!, se verrá cedo!

Se vistes meu amado,


por que hei gran cuidado!
E ai Deus!, se verrá cedo!

– Martim Codax, Séc. XIII

18
Ai flores, ai flores do verde pino,
se sabedes novas do meu amigo!
Ai Deus, e u é?
Ai flores, ai flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado!
Ai Deus, e u é?
Se sabedes novas do meu amigo,
aquel que mentiu do que pôs comigo!
Ai Deus, e u é?
Se sabedes novas do meu amado,
aquel que mentiu do que mh á jurado!
Ai Deus, e u é?
-Vós me preguntades polo vossamigo,
e eu ben vos digo que é san e vivo:
Ai Deus, e u é?
-Vós me preguntades polo vossamado,
e eu ben vos digo que é viv e sano:
Ai Deus, e u é?
E eu bem vos digo que é san e vivo
e seerá vosc ant o prazo saido:
Ai Deus, e u é?
E eu ben vos digo que é viv e sano
e seerá vosc ant o prazo passado:
Ai Deus, e u é?

– Rei D. Dinis, séc. XIII/XIV

«A suidade, propriamente, é sentido que o coração filha por


se achar partido da presença de alguma pessoa, ou pessoas que
muito por afeição ama, ou o espera cedo de se ir. E isso medês dos
tempos e lugares em que por deleitação muito folgou. Digo afeição e
deleitação porque são sentimentos que ao coração pertencem, donde
verdadeiramente nasce a suidade mais que da razão nem do sizo»

– Rei D. Duarte, séc. XV

19
Viajante Sobre o Mar de Névoa, 1818,
pintura a óleo do artista alemão Caspar
David Friedrich.
ASC

20
A
SAUDADE
Tem irmãos
ou é filha única?

ALBERTO DE FRUTOS
Jornalista e escritor

21
H
á sentimentos universais que cada cultura baptiza como bem en-
tende .Mas, tal como em espanhol termos como «soledad», «nos-
talgia» ou «añoranza» estão relacionados mas não são sinónimos,
o português «saudade» tem nuances que escapam ao alemão
«Sehnsucht» ou ao galês «hiraeth», embora todos se refiram a
essa mística, a essa raiz psicológica que gera tanta dor e tanta beleza.
«Solidão», «nostalgia», «saudade». Não foi por acaso que colocámos estes
substantivos abstractos na introdução deste artigo: a Real Academia Espanhola
utiliza-os para definir saudade. Naturalmente, os três são sentimentos universais,
transfronteiriços, se quisermos, e inteligíveis para qualquer ser humano.
Na Alemanha, por exemplo, pode-se morrer ou ser consumido pela «Sehn-
sucht», tal como a borboleta do poema de Goethe Selige Sehnsucht, que, ávida
de luz, se aproxima da chama de uma vela, se queima no seu fogo e, só com a sua
morte, se torna realidade.Será um desejo intelectual de sair da « escuridão das tre-
vas» ou, talvez, um desejo de amor? Afinal, e esta é a magia da poesia, a intenção
de Goethe pode ter sido uma e a nossa interpretação muito diferente, mas o que
importa aqui é estabelecer que a «saudade» - uma saudade, digamos, infinita - é o
traje espanhol que melhor se adapta ao «Sehnsucht» germânico (e, por conseguin-
te, ao «mall» albanês, objeto de um poema comovente de Ismael Kadaré sobre um
amante que anseia à distância pela sua amada, ou ainda ao pothos grego, entendido
como o desejo do que está ausente).
Se a origem da palavra saudade se presta a equívocos, como veremos, a de «Sehn-
sucht» é mais evidente, embora a sua tradução noutras línguas seja igualmente
comprometedora. Sehnsucht» implica um «desejo de desejo», uma busca insa-
SHUTTERSTOCK

Snowdonia National Park,


País de Gales.

22
GETTY
O poeta Dylan
Thomas.

ciável e viciante como a deHeinrich von Ofterdingen, a personagem de Novalis


apaixonada por uma flor azul, símbolo do infinito.
O que é que distingue, então, a «Sehnsucht» da saudade? Movida pela curiosida-
de sobre a «incomparabilidade» e a «intraduzibilidade» dos dois conceitos, a filó-
loga Delfina de Araújo Madureira dedicou a sua tese de doutoramento, Sehnsucht
e Saudade. Para uma história comparada do pathos, à resolução deste conflito,
examinando as suas analogias, as suas diferenças e o seu desenvolvimento. Sedi-
mento cultural de suas respectivas nações, ambas parecem mover-se na «sombra
negra» do poema de Rosália e, sem dúvida, ambas contribuíram para forjar o ser de
seus povos. Mas, seguindo o pensador Jesué Pinharanda Gomes, a fome de infinito
- caraterística crucial da «Sehnsucht» teutónica -é apenas um dos predicados da
saudade. Assim, a saudade revela-se como uma noção mais ampla, capaz de abarcar
a «Sehnsucht», mas não de se integrar nela.

SENSIBILIDADE CELTA
No dia 15 de fevereiro de 2021, a jornalista britânica Lily Crossley Baxter publicou
na BBC um curioso artigo sobre o País de Gales, a propósito do termo «hiraeth»,
intitulado The untranslatable word that connectsWales . Ela própria arriscou uma
definição: na sua opinião, «hiraeth» seria «uma mistura de saudade, nostalgia e
anseio, um aperto no coração que transmite um sentimento distinto de falta de algo
irremediavelmente perdido».
Apesar de partilhar qualidades com a saudade portuguesa ou a «Sehnsucht» ale-
mã, a autora salientou que «hiraeth» não era um fenómeno inteiramente equiva-
lente, talvez porque em galês aquilo de que sentimos falta - seja uma pessoa, um
lugar ou um tempo - sentimos falta para sempre: «hir» significa longo, e «aeth»
significa mágoa ou tristeza. É certo, porém, que esta tristeza não é totalmente in-

23
ASC

Rosalía de Castro, pelo pintor compostelano Manuel López Garabal. Museu Virtual da
Universidade de Santiago de Compostela.

24
desejável, pois, tal como os seus parentes português e alemão, o conceito, que pode
ser encontrado já na poesia galesa do século XVI, é fértil e não necessariamente
paralisante.
O idolatrado poeta Dylan Thomas, filho de Swansea, encarnou como ninguém
este sentimento, intensificado no seu caso pela saudade que o levava a regressar
sempre ao País de Gales, pois fora da sua pátria os seus poemas morriam antes de
nascer. O exílio insuportável e o regresso aos antepassados seriam assim dois dos
pilares em que assenta o «hiraeth», mas não será a saudade também baseada nestas
emoções?
Num trabalho esclarecedor publicado por Robert G. Havard, Paralelos entre os
sentimentos galegos e galeses da saudade/hiraeth: um espelho céltico da neu-
rosis rosaliana, este professor galês reconheceu que, ao ler On the banks of the
Sar, experimentou uma «forte sensação de familiaridade, de afinidade e até, po-
der-se-ia dizer, de compreensão instintiva, que (...) me senti como se estivesse em
casa». A sensibilidade celta operou este milagre, nada fora do natural, se tivermos
em conta as semelhanças topográficas, demográficas e climáticas entre a Galiza e o
País de Gales. Para Havard, a poeta de Santiago de Compostela «estava a morrer de
saudade», que é o que «nós, galeses, chamamos ‘hiraeth’». Na sua investigação,
recorde-se, falava de um «espelho» e, nesse espelho, o poema de Dylan Thomas
The Fern Hill poderia trazer-nos, porque não, a imagem de «those beautiful and
bright days» do quarto poema de On the Banks of the Sar.

E QUANTO À MORRIÑA?
Assim, sem serem duas ervilhas numa vagem, o parentesco entre a saudade e o
galês «hiraeth» é evidente, tal como o é entre a primeira entrada e morriña, em-
bora valha a pena invocar a este respeito os ensinamentos do sábio Ramón Piñeiro,
que, em Filosofia da saudade, argumentava que « as saudades de casa são um es-
tado de depressão vital acompanhado de um sentimento psicológico de tristeza».
A melancolia seria um sinónimo de saudade e, em alguns casos, a saudade poderia
ser uma consequência da experiência da saudade. No entanto, esta última é algo
mais do que um estado psicológico: a saudade é «a experiência originária, de plena
significação ontológica», porque nela «o homem está afundado em si mesmo».
No seu ensaio, Piñeiro situa no século XVI o momento em que a saudade por-
tuguesa absorve os termos medievais «soedade», «soidade» e «suidade», que,
curiosamente, sobreviveram no galego, na altura uma língua «meramente fala-
da». «Durante os séculos em que o galego permaneceu mudo como língua es-
crita, em Portugal o conceito e a palavra saudade estiveram bem vivos, dando
a impressão de ser uma herança exclusivamente portuguesa», explica o autor
numa outra reflexão.
Essa ausência foi corrigida no século XIX, quando a saudade, abençoada pelo
Rexurdimento depois de «os séculos escuros», regou, sem ir mais longe, os versos
de Rosalía de Castro. «Guardiã» da poesia lírica galaico-portuguesa, em Cantares
gallegos recuperaria os acentos desses cancioneiros medievais que a saudade so-
brevoava com asas de ausência e morte, como nas cantigas de amor de Bernal de
Bonaval, trovador do século XIII.

25
OUTRAS VOZES, OUTRAS ESFERAS
Se Miguel de Unamuno, numa das suas brincadeiras linguísticas, brincou com a
raiz etimológica de saudade («soledad: soidade; salud: saude») e mergulhou nas
vozes intraduzíveis dos nossos irmãos peninsulares (além de saudade, «soturno»,
«luar», «nevoeiro», «magoa», «noivado»...), o hispanista Karl Vossler, no seu
já clássico A Poesia da Saudade em Espanha, (1946), trouxe à colação o conceito
árabe de «saudá», que nos coloca perante a atrabílis, a bílis negra de Hipócrates,
Galeno e Aécio, cuja sequela era uma profunda melancolia.
Venha de onde vier, do latim» solitudo» ou do árabe «saudá», a languidez con-
substancial à saudade impregnou outras vozes e outras áreas da cultura europeia.
Se viajarmos para a Bósnia-Herzegovina, por exemplo, a sevdalinka, uma música
folclórica balcânica, far-nos-á sentir em Alfama ou no Bairro Alto, enquanto o gre-
go rebético, um género musical outrora transmitido oralmente, surgiu num am-
biente de marginalidade e de dificuldades não muito diferente do fado, a expressão
musical por excelência da saudade.
E isto se nos apetecer alargar o quadro das nossas reflexões à arte de Euterpe,
pois, sem termos de nos afastar da filologia, encontraremos, para além do alemão
«Sehnsucht» ou do galês «hiraeth», concomitâncias espirituais da saudade em
inúmeras línguas, como o inglês («longing»), o sueco («längtan»), o dinamarquês
(«savn»), o islandês («saknaor»), o turco («hüzün»), o russo («toska», soberba-
mente revisto por Vladimir Nabokov), o italiano (o «desio» ou «disio» do divino
Dante) ou o romeno («dor»).

NOSTALGIA ROMENA
Vejamos pois, a última, que é, de
facto, uma «limba» românica: é a
«dor» (nostalgia) um irmão mais ou
menos ignorado da nossa saudade
portuguesa? Mircea Eliade (Bucares-
te, 1907-Chicago, 1986) pensava que
sim, tal como Emil Cioran (Rășinari,
1911-Paris, 1995).
Quando lhe perguntaram sobre a
sua visão do mundo saturada de nos-
talgia, respondeu: «Este sentimento
está em parte ligado às minhas ori-
gens romenas. Está presente em to-
da a poesia popular romena. É um
desgosto indefinível, a que se chama
em romeno ‘dor’, próximo da ‘Sehn-
sucht’ dos alemães, mas sobretudo da
saudade dos portugueses».
Poetas como Vasile Alecsandri e,
ASC

sobretudo, Mihai Eminescu deixa-


Autorretrato de Miguel Unamuno. ram-se levar por esta tristeza fecun-

26
da, que Elena Balan-Osiac estudou
em profundidade em La solitude
nostalgique dans la poésie roumai-
ne, espagnole et portugaise (1977).
Para Cioran, «dor» - dolor em gale-
go - é sentir-se eternamente longe de
casa, e, neste sentido, as almas dácia
e portuguesa convergem no mesmo
plano que, como assinalou o Dr. Pablo
Javier Pérez López, da Universidade
de Valladolid, é partilhado pelos paí-
ses da Europa de Leste e pelo grupo
ibérico, ou seja, a periferia do Velho
Continente, com o seu «sentimento
trágico da vida».
Tal como Bécquer, figura cimeira do
Mihail Eminescu foi o mais conhecido
Romantismo tardio, Eminescu foi um poeta da literatura romena.
poeta eternamente jovem e doente e,

ASC
tal como Rosalía, cantou as florestas e
os céus da sua terra natal. No entan-
to, a «dor» - palavra que, aliás, escapou a Carolina Michaelis de Vasconcelos no
seu incontornável A saudade portuguesa ( 1914) - não é um «espelho» da sauda-
de, embora ambas contenham desejo, nostalgia, mágoa e paixão. Afinal, «a dor é
a angustiada responsabilidade que monta a guarda da Europa onde a civilização
de Roma colocou os seus baluartes mais extremos contra os bárbaros, enquanto
a saudade é a réplica angustiada dos homens sobre cuja existência pende a espada
condenatória de um perigo supra-humano e desconhecido em que se condensam
todos os males das coisas naturais» (Francisco Elías de Tejada e Gabriella Pèrcopo:
El reino de Galicia, 1966). Terra versus mar, homem versus natureza, ou, por
outras palavras, «dor» versus saudade.

UNIDADE DIVINA
Em jeito de conclusão, sublinhemos que a saudade é filha única, tal como a alemã
«Sehnsucht», o galês «hiraeth» ou o romeno «dor». Assemelham-se umas às
outras, como nós nos podemos assemelhar a outros povos deste mundo, mas não
são clones, porque cada cultura é peculiar, única e soberana.
Como escreveu o saudoso Eduardo Lourenço, saudade é o sentimento/sensação
de «arder no tempo sem ser consumido por ele», e, embora não haja povo que
não sinta algo semelhante, os portugueses vivem-no de uma forma íntima, inclas-
sificável, particular. O que está por detrás desta excecionalidade? Não é a história
ou a geografia, não: é o espírito de um país que, como dizia o grande Teixeira de
Pascoaes, fundiu a alma com o corpo, a dor com a alegria, o amor com o desejo,
a terra com o céu..., e assim conseguiu a sua «unidade divina» . Como expressão
dessa individualidade, a saudade apresenta-se, hoje como ontem, como o sangue
que vivifica Portugal.

27
Página de Fólio do Cancioneiro da Ajuda «Quand’eu, mia senhor,
convosco falei Por Deus, senhor, tam gram sazom...»
ASC
ASC

AMOR E
SAUDADE
nos cancioneiros medievais
galaico-portugueses
PAULO BORGES
Departamento de Filosofia da Faculdade
de Letras da Universidade de Lisboa

29
A
saudade nos cancio-
neiros medievais galai-
co-portugueses surge
intimamente associada
à experiência do desejo
amoroso, no descentramento erótico
do eu para o outro. Isto também se
manifesta na originalidade das can-
tigas de amigo, em que os trovado-
res masculinos se colocam no lugar
das mulheres e expressam os seus
sentimentos, como se fossem elas a
fazê-lo. Como diz Stephen Reckert,

ASC
«é notável no cancioneiro de amigo
[...] o empenho concertado de uns Iluminura de Cancioneiro da Ajuda. Nobre,
bailadeira com castanholas, jogral com
cem poetas, ao longo de quase cen- saltério de lados côncavos.
to e cinquenta anos, na empresa co-
mum de imaginarem as palavras que
a donna diria se fosse ela a fazer os versos» e assim «assumirem uma persona e
uma voz femininas». Notando ser o primeiro exemplo disto na literatura ocidental
(na China composições semelhantes remontam ao século IV), interpreta-o como
«um esforço colectivo e aturado para escapar ao cárcere sufocante do eu, sentido
como identidade sexualmente definida»1. Eduardo Lourenço também nota esta
«originalidade», a par de outra, a do surgimento do lirismo amoroso na «intimi-
dade» com a «Natureza», como características que mostram a procedência das
cantigas de amigo de uma «fonte mais arcaica» que as «canções de amor, de ori-
gem borgonhesa ou provençal», «e sem exemplo noutras culturas neolatinas»2. O
travestimento ou mudança de persona sexual, o imaginar-se outro, antecipando
a heteronímia em Fernando Pessoa, é afim ao descentramento erótico do sujeito
de si para o outro, humano e não-humano, contrastando com o ensimesmamento
narcísico que, com a inerente agonia de Eros, marcam a situação contemporânea,
de acordo com Byung-Chul Han.
Carolina Michäelis de Vasconcelos, que relaciona a saudade com o sentimento do
amor ferido pela ausência, vê-a implícita na composição do rei D. Sancho, o Ve-
lho3, em que a amiga associa o viver «en gran cuidado» ao «desejo» por seu amigo
«alongado» (distante) da sua vista na Guarda:

«Ai eu, coitada! – como vivo


en gran cuidado – por meu amigo
que ei alongado! – muito me tarda
o meu amigo – na Guarda!

Ai eu, coitada! – como vivo


en gran desejo – por meu amigo
que tarda, e non vejo! – muito me tarda
o meu amigo – na Guarda!»4

30
A experiência implícita da saudade –
Eduardo Lourenço nota que «antes de
ser pensada, a saudade foi cantada» 5
- surge assim associada à coita (sofri-
mento) e ao cuidar amorosos, vividos
como doloroso e exacerbado desloca-
mento da memória e da atenção para
um ser amado ausente e distante, que
move o pensamento e o desejo em di-
recção a alguém que não se vê e cujo
regresso se anseia e espera, o que con-
verte a passagem do tempo em factor de
inquietação crescente. A coita, do lati-
no cogere, com os sentidos de reunir e
constranger, é sentida como movimen-
to que busca o encontro ou reunião com
quem se ama, gerando padecimento na
medida em que ainda o não consegue,
sem disso desistir. A coita é a da pai-
xão amorosa, que torna coitados os

ASC
seus sujeitos, que são verdadeiramen- D. Sancho I - Compendio de crónicas de
te sujeitos, enquanto submetidos a um reyes (Biblioteca Nacional de España).
movimento que os domina, conduzin-
do-os ou mesmo arrebatando-os para
algo que os transcende e se lhes escapa.
Na coita amorosa e erótica, cuja feno-
menologia psicológica é poetizada por
Dom Dinis, o bem, o sentido da vida, o
prazer de viver ou o folgar, bem como o
próprio domínio do juízo e do pensar (o
«sen»), dependem de se ver o amigo ou
amiga, cujo valor se absolutiza ao ponto
de surgir como todo o «bem» e de, na
sua ausência, nada ser satisfatório ou
gratificante:

«Des que vos non vi, de ren


non vi prazer e o sen
perdi, mais, pois que mi aven
que vos vejo, folgarei
e veerei todo meu ben,
pois vejo quanto ben ei»

(Dom DINIS, in José Joaquim NUNES,


ASC

Cantigas d’Amigo dos Trovadores Gale- D. Dinis - Compendio de crónicas de reyes


go-Portugueses, II, 1973, 50). (Biblioteca Nacional de España).

31
O dia em que a coita amorosa desponta, por via do ver e ouvir falar a amada, é
assim um «grave dia» (Ibid., 25), que coloca o viver e o morrer na dependência da
presença ou ausência de quem se ama (Ibid., 14), podendo dar lugar a uma «coita
mortal» (Ibid., 27), num desejo em vida de morte que se sente como o «maior
mal» (Ibid., 33). Ainda no dizer de Dom Dinis, a «coita tan forte» em que vivem
o amigo e a amiga no «gram desejo» de se verem não lhes é «se non morte», re-
duzindo-se a isso uma vida que, pela trágica separação dos amantes, se sente que
mais valeria não existir («non seer nada»), conduzindo mesmo a sentir inveja dos
que já morreram (Ibid., 44-45).
Na verdade, a «fremosura» da amiga é algo que o amigo sente que lhe «faz gran
mal sem mesura» (Ibid., 53), no contexto de um rito erótico do olhar em que o
homem, ao colocar «tan de coraçon» e «tan bem» os «seus olhos» na amiga, não
pode mais ter prazer em coisa alguma senão em vê-la (Ibid., 23). O serviço amoroso
cumpre-se no «catar», ou seja, procurar com os olhos os olhos da amada e também
o seu «parecer», o que significa o seu rosto, o seu aspecto ou aparência exterior e
a sua formosura, embora essa aproximação seja feita a partir do interior do amigo,
do «coraçom». Se o amigo não cumprir esses preceitos, a amiga considera que ele
perderá a razão e o poder de a «chamar senhor» (Ibid., 24), palavra que significa-
tivamente no masculino se aplica a Deus e a Jesus Cristo e no feminino à amada do
trovador, que no rito do amor cortês se assume como a sua soberana, sendo ele o
seu vassalo, a exemplo das relações feudais6.
Note-se haver cantigas onde surgem expressões ambíguas, como «Por Deus
Senhor», num contexto que tanto se pode aplicar a Deus como à amiga 7. Isto
confirma a tendência à heterodoxa divinização da mulher amada, uma das orien-
tações do erotismo trovadoresco e cortês, onde por exemplo uma canção de Ponz
de Chapteuil afirma que o fino amor da amada faz esquecer tudo, incluindo o
próprio Deus, o que Rodrigues Lapa entende como uma experiência de «êxtase»,
deslocado do contexto cristão para a absorção erótica na dama8. Na lírica galaico-
-portuguesa, que se destaca pela importância nela assumida pela mulher9, mais
abundam ainda expressões heterodoxas, derivadas de uma concepção da «origem
divina do amor», sendo a beleza da amiga uma divina epifania 10. A experiência
do «gran cuidado» e do «gran desejo» amoroso11, que é o terreno matricial da
saudade, mostra uma absolutização do seu objecto, o ser amado, fazendo de-
pender o sentido, o sabor e a felicidade da vida de se estar junto dele. Com o ra-
dical descentramento do sujeito amoroso, isto configura uma vivência religiosa
da experiência erótica, pela implícita divinização do seu objecto, que, de acordo
com a linguagem evangélica, se converte no «tesouro» que retém o «coração»
(Mateus, 6: 21), mesmo que à distância.

ISTO CONFIRMA A TENDÊNCIA À


HETERODOXA DIVINIZAÇÃO DA MULHER
AMADA, UMA DAS ORIENTAÇÕES DO
EROTISMO TROVADORESCO E CORTÊS

32
O AMOR COMO FUNDAMENTO DO MUNDO
Esta dimensão religiosa do amor humano e erótico avulta nas cantigas de amigo
que exaltam a sua bondade, como acontece numa composição de Joan de Guilhade
onde a amiga começa por louvar o «mundo» por todo o bem que nele Deus lhe fez,
destacando o ser formosa, apreciável («de mui bom prez») e muito amada pelo seu
amigo, acrescentando que tal amor, com o prazer e consolação («lezer») que lhe
são inerentes, faz do mundo terreno e sensível a melhor das coisas e benefícios por
Deus concedidos, sendo nesse sentido, e enquanto nele os amigos e amigas vive-
rem juntos, mais desejável do que o próprio «paraiso» pós-morte e supra-terreno
(Ibid., 161). Notamos que esta valorização do mundo e da vida terrenos como o
maior dos bens divinamente concedidos, enquanto lugar onde se realizam as possi-
bilidades eróticas da experiência humana, constitui uma visão alternativa à cultura
eclesiástica urbana dominante na Idade Média, já desde há séculos acentuadamente
orientada para uma desconsideração do corpo e uma salvação supra-terrena.
Mas a dimensão mais profunda do amor e do erotismo humanos, e como vere-
mos da saudade, é entreaberta pela belíssima cantiga de Nuno Fernandes Torneol
que começa com o verso «Levad’, amigo, que dormides as manhãas frias». Nela a
amiga exorta o amado a que se levante do leito, o que pode ser também um convite
ao despertar da consciência, numa composição em que em todas as estrofes afirma
a sua alegria («leda m’ and’eu»), apesar de ir narrando um acontecimento infeliz,
o que confere uma estranha e enigmática beleza ao poema, impregnado de uma
atmosfera saudosa sem que a saudade nele seja nomeada. O que singulariza esta
cantiga é o seu centro não ser o amor entre o amigo e a amiga, como em todas estas
composições, mas a participação dos
seres não-humanos nele, neste caso
as aves, e sobretudo as consequên-
cias felizes e infelizes para elas e para
a natureza das vicissitudes da relação
amorosa humana. Com efeito, repete-
-se nas primeiras quatro estrofes que
«todalas aves do mundo» falavam
do amor e o «cantavam», que «em
ment’aviam» o amor entre o casal
humano, ou seja, que o consideravam,
memoravam, pensavam e cuidavam,
aparentemente num primeiro e feliz
estado da relação amorosa, enquanto
que nas últimas quatro estrofes uma
possível ruptura, abandono ou traição
do amigo tem como efeito tirar ou le-
sar os «ramos» em que estavam ou
«pousavan» e secar as «fontes» onde
bebiam e se banhavam (Ibid., 71-72).
A notável sugestão é que o amor não
é aqui uma mera experiência psicoló-
ASC

gica e afectiva restrita ao ser humano, Códice de Manesse.

33
mas o próprio fundamento do mundo e dos seres vivos humanos e não-humanos,
como uma energia que por todos circula e a todos vincula, que todos comungam,
expressam e celebram numa atmosfera de alegria, mas na qual, e por isso mesmo,
uma cisão num dos lugares onde mais intensamente se manifesta, o casal humano,
afecta radicalmente a própria fonte da vida dos viventes, como que arrastando-os
na mesma separação surgida no elo humano da cadeia amorosa. A composição mos-
tra-nos um mundo onde a consciência, a vida subjectiva e os afectos não se reduzem
à humanidade, mas são comuns aos animais não-humanos, e onde a energia amo-
rosa surge como um vínculo cósmico e ecológico que permeia e une não só todos
os viventes, mas ainda tudo o que existe, dissipando a distinção entre animado e
ASC

Página de Fólio do Cancioneiro da Ajuda.

34
inanimado12. Esta cantiga é talvez o mais notável exemplo do arcaísmo animista ou
panpsiquista já notado noutras composições deste género13, sendo aqui o amor um
sentimento cósmico, partilhado por seres não-humanos e inseparável da vida do
mundo, do qual pode ser a própria alma divina. Isto possibilita compreender a ten-
dência para divinizar o seu objecto, como vimos acontecer com a mulher.
Esta cantiga permite ler a outra luz um dos factores de maior singularidade do
cancioneiro galaico-português, que, segundo Eduardo Lourenço, se junta ao facto
do trovador se expressar em voz feminina: a animação, «intimidade» e «mediação
da Natureza» na expressão do amor, pois a amiga interpela os entes naturais, per-
guntando-lhes pelo seu amigo14 e obtém deles respostas, como acontece na cantiga
de Dom Dinis onde pergunta por «novas» do amigo às «flores do verde pino» e
delas recebe a notícia de que ele é «sã’ e vivo» (Ibid., 19-20). Rodrigues Lapa, que
considera que a poesia lírica galaico-portuguesa constitui o «tipo primitivo», mais
antigo e original, do «lirismo europeu ocidental»15, destaca como suas caracterís-
ticas, a par da centralidade da mulher e dos «arcaísmos de linguagem», os temas,
muito mais acentuados do que na poesia francesa, do «culto das árvores, dos ani-
mais e das fontes, nas suas várias modalidades», num enlace com a «situação sen-
timental» que confere «por vezes à cantiga um ar de inefável mistério»16. Cremos
que este mistério resulta da profunda interpenetração entre o sentimento amoroso
e o de uma natureza envolvente e viva que comunga da relação entre o casal huma-
no, numa atmosfera animista ou panpsiquista, porventura também panteísta, que
se tornou estranha à mentalidade moderna. A este respeito, recorde-se a caracte-
rização que António José Saraiva faz dos cantares de amigo, enquanto «poesia indí-
gena» do Noroeste peninsular que, no seu arcaísmo, diz serem criação espontânea
e colectiva do «povo-oceano» que expressa «o amor entre homem e mulher» na
«alegria da chegada» e no «tormento da ausência», num «ritmo de sístole e diás-
tole» que é simultaneamente o do coração, o da dança de roda e o da natureza ou
do cosmos. O amor que expressam é assim fortemente comunitário, mas «também
intensamente cósmico», sendo «tema de romaria e bailados [...] frequentemente
associado ao arvoredo e à água das fontes, do mar ou dos rios»17.
A matriz mais original da cultura galaico-portuguesa, e do próprio lirismo euro-
peu, seria assim a experiência da inserção do amor humano num amor mais vas-
to, de dimensão cósmica, enquanto vínculo unitivo de todos os seres e coisas. A
experiência da coita amorosa, do morrer de amor e da saudade, provocada pela
separação entre os amantes, inserir-se-ia assim, como mostra Carolina Michaëlis
de Vasconcelos, numa atmosfera original de celebração da unidade amorosa da vida
e do mundo, patente na cultura popular tradicional pré-cristã, sobretudo de base
rural, resistente ao combate que lhe foi movido pelo cristianismo institucional e
urbano que a qualificou negativamente como «pagã».

A INSERÇÃO DA EXPERIÊNCIA AMOROSA NUMA ESFERA DIVINA


Cremos que esta dimensão mais ampla e profunda da coita amorosa nos permite
entrever o sentido maior da saudade, que surge claramente na sua dependência.
Se o amor humano nos cancioneiros é por vezes vivido como contemplação de
uma mulher divinizada ou enquanto comunhão na unidade e intimidade sensí-

35
A POESIA LÍRICA GALAICO-PORTUGUESA
CONSTITUI O «TIPO PRIMITIVO» MAIS
ANTIGO E ORIGINAL DO «LIRISMO
EUROPEU OCIDENTAL»

vel e amorosa de tudo, é inevitável questionar se a saudade, enquanto sentimento


do amor ferido pela ausência do seu objecto, não manifestará também, apesar da
sua mais aparente expressão psicológica, uma mais profunda aspiração, muitas
vezes não plenamente consciente, a reintegrar a experiência humana nessa divi-
na contemplação ou comunhão cósmica com a unidade e totalidade da vida e dos
seres. Eduardo Lourenço diz que «antes de ser pensada, a saudade foi cantada» e
que, antes de se converter num mito por interpretar, «a saudade não foi senão a
expressão de um transbordar de amor para com tudo o que merece ser amado: o
amigo ausente, o cenário dos amores, a Natureza com a sua voz imemorial, o mur-
múrio das folhas ou das vagas do mar»18. Haveria assim, no seu «berço céltico»
galaico-português, uma ingenuidade saudosa, ainda sem «nenhuma ressonância
trágica», procedente de uma osmose com o mundo natural que «parece modulada
pelo ritmo universal do mar», «música de fundo» exterior que se tornará «música
da alma», e que sugere a indistinção de tempo e eternidade19.
Seja como for, a par da saudade implícita no «gran cuidado» e «gran desejo» do
amigo ausente, na cantiga do rei D. Sancho, outras formas da mesma se divisam,
como no morrer «d’amores» sempre que a amiga vê um objecto que traz por amor
do amigo e se recorda de com ele haver estado e conversado (Dom DINIS, Ibid.,
16-17). Decorrendo do amor dilacerado pela ausência, as primeiras manifestações
explícitas da saudade nos cancioneiros são marcadas por uma tonalidade trágica,
em que a saudade do amigo ausente impossibilita a vida (Ibid., 30) e em que a re-
cusa do amor converte a pulsão erótica da vida numa pulsão de morte, fazendo da
saudade uma potência letal: «Non queredes viver migo / e moiro eu com soidade»
(D. Fernan Fernandez COGOMINHO, Ibid., 122.). Cabe notar, todavia, que a vida
que assim se mortifica é a vida convencional, a vida autocentrada a que aspiram
em geral os humanos, e não necessariamente toda a vida, pois a coita amorosa e
saudosa tem precisamente o poder de romper esse autocentramento convertendo
o viver num dinamismo aberto à alteridade, ao invisível e à ausência, com todo
o dilaceramento que isso implica, sobretudo para a consciência enclausurada na
busca de satisfação imediata do desejo. O poder desassossegante da ausência do
ser amado e da saudade que provoca tanto mais avulta quanto, como vimos, vá-
rias cantigas d’amigo exaltam o bem do amor humano, sensual e sexual, como na
composição de Joan de Guilhade onde esse amor, com o prazer inerente, converte
o mundo terreno e sensível no melhor dos dons divinos, sendo nesse sentido mais
desejável do que o próprio «paraiso» (Ibid., 161).
Recordando tudo o que referimos acerca da inserção da experiência amorosa nu-
ma esfera divina e cósmico-vital, notamos que este vínculo da saudade nos can-
cioneiros à ferida do impulso erótico, incarnado e sensorial da vida, pela distância
entre os amantes, mostra a sua irrupção medieval muito distante do (neo)platonis-

36
mo que desloca o amor, e com ele a saudade, para a esfera metafísica supra-sensí-
vel, como acontecerá no lirismo camoniano e na reflexão de D. Francisco Manuel
de Melo, bem como, mais tarde, no visionarismo de Teixeira de Pascoaes.
Porventura após se perder a ingenuidade pré-trágica referida por Eduardo Lou-
renço, a tónica pesarosa da saudade predomina sobre outra, neutra, onde a «sui-
dade» acompanha o amigo no seu distanciamento físico (Joan ZORRO, Ibid., 352)
e ainda sobre um outro efeito, mais benigno, em que a «gran soidade» leva por
exemplo a que a amiga perdoe as ofensas amorosas do amigo, caso ele regresse
brevemente para ela (Sancho SANCHEZ, Ibid., 252).
Cremos, todavia, que outra fecundidade do tema da saudade surge ainda na sua
presença implícita na composição do rei D. Sancho. Sendo inerente ao «gran cui-
dado» e ao «gran desejo» do amigo ausente e distante, mostra um exercício do
pensar («cuidado» vem de cogitatu, do verbo cogitare, que significa «pensar» e
«meditar») que é tudo menos um exercício distanciado do intelecto, sendo antes
o de uma intensa atenção amorosa. Esta forma de pensar no ser amado condiz
com o sentido antigo do verbo português pensar, ainda hoje preservado no inte-
rior de Portugal, que, para além das operações cognitivas do raciocinar, cogitar e
reflectir, está associado ao cuidado amoroso e terapêutico, como no acto de lim-
par, alimentar e vestir uma criança, aplicar um curativo («penso») a uma ferida e

ASC

«Antes de ser pensada, a saudade foi cantada» e «não foi senão a expressão de um
transbordar de amor para com tudo o que merece ser amado: o amigo ausente, o cenário
dos amores, a Natureza com a sua voz imemorial, o murmúrio das folhas ou das vagas do
mar» (Eduardo Lourenço).

37
dar penso ou ração aos animais. Isto
é evidente numa cantiga onde se diz
que o «amigo» «irá morrer al mar
/ […] / se eu d’el non pensar» (Pero
MEOGO, Ibid., 374).
O pensar saudoso no amado dis-
tante é vivido como uma dolorosa
exaltação (a «coita») do cuidar, pro-
porcional à distância e incerteza do
reencontro. José Enes enfatizou bem
este sentido amoroso, cordial e co-
movido do pensar enquanto cuidado
essencial20, que se destaca da etimo-
logia latina que o relaciona com as
ASC

Nobre, jogral tocando harpa. Iluminura de actividades mensurativas e mercan-


Folio, Cancioneiro da Ajuda.
ASC

Códice de Manesse.

38
tis do pendere e do pensare, do «pesar» e do «apreçar». O pensar saudoso é
assim um pensar amoroso que, vivendo a dor e o mal da separação e da ausência,
aspira a rever a amada ou o amado e porventura a reviver com ela ou ele o pra-
zer e o bem da abertura e comunhão divino-cósmica da consciência que vimos
surgir em aspectos centrais da experiência do amor trovadoresco. O pensamento
e desejo saudosos, aspirando à união com a amada ou o amado, podem subcons-
cientemente aspirar à experiência da totalidade divino-cósmica a que por vezes
aponta o erotismo dos cancioneiros. Que isso se processe essencialmente pelo
contacto visual – recorde-se o «catar», o procurar com os olhos os olhos da
amada (Dom DINIS, Ibid., 24) - , abre o horizonte que será aprofundado por Luís
de Camões e que estabelece profundos diálogos implícitos com múltiplas tradi-
ções do erotismo espiritual e místico, desde Platão aos tantras hindus e budistas
indo-tibetanos. O tema da saudade possui uma imensa riqueza inter-cultural e
inter-espiritual, ainda por explorar.

1 “antes de ser pensada, a saudade foi can- 9 Cf. Ibid., pp.112-113.


tada” e “não foi senão a expressão de um
10 Cf. Id., Das Origens da Poesia Lírica em
transbordar de amor para com tudo o que
Portugal na Idade-Média, Lisboa, Edição do
merece ser amado: o amigo ausente, o ce-
Autor, 1929, pp.96-105.
nário dos amores, a Natureza com a sua voz
imemorial, o murmúrio das folhas ou das va- 11 Cf. D. SANCHO, O VELHO, citado em Ca-
gas do mar.» (Eduardo Lourenço) rolina Michaëlis de VASCONCELOS, A Sau-
dade Portuguesa, p.54.
2 Cf. Stephen RECKERT in Stephen REC-
KERT e Hélder MACEDO, Do Cancioneiro de 12 Cf. Paulo BORGES, Pensamento Atlânti-
Amigo, Lisboa, Assírio & Alvim, 1996, 3ª edi- co. Estudos e ensaios de pensamento luso-
ção, corrigida e aumentada, pp.28-29. -brasileiro, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa
da Moeda, 2002, pp.13-17.
3 Cf. Eduardo LOURENÇO, “De la Poésie
Portugaise”, in Obras Completas. III – Tem- 13 Cf. Stephen RECKERT in Stephen REC-
po e Poesia, coordenação e introdução de KERT e Hélder MACEDO, Do Cancioneiro de
Carlos Mendes de Sousa, Lisboa, Fundação Amigo, pp.9 e 14.
Calouste Gulbenkian, 2016, p.677.
14 Cf. Eduardo LOURENÇO, “De la Poésie
4 D. SANCHO, O VELHO, citado in Ibid., Portugaise”, in Obras Completas. III – Tempo
p.54. e Poesia, p.677.
5 Eduardo LOURENÇO, Mythologie de la 15 Cf. Rodrigues LAPA, Das Origens da Poesia
Saudade. Essais sur la mélancolie portugai- Lírica em Portugal na Idade-Média, pp.10-11.
se, tradução de Annie de Faria, Paris, Édi-
16 Cf. Id., Lições de Literatura Portuguesa.
tions Chandeigne, 2017, p.16.
Época Medieval, pp.112-115.
6 Cf. Celso CUNHA, Cancioneiro dos Tro-
17 Cf. António José SARAIVA, A Cultura em
vadores do Mar, Lisboa, Imprensa Nacional
Portugal. Teoria e História, II, Amadora, Ber-
– Casa da Moeda, 1999, p.284.
trand, 1984, pp.182-185 e 188-189.
7 Cf. Vasco PRAGA DE SANDIN e Carolina
18 Eduardo LOURENÇO, Mythologie de la Sau-
Michaëlis de VASCONCELOS, Cancionei-
dade. Essais sur la mélancolie portugaise, p.16.
ro da Ajuda, I, Lisboa, Imprensa Nacional –
Casa da Moeda, 1990, p.717. 19 Cf. Ibid., pp.16-17.
8 Cf. Rodrigues LAPA, Lições de Literatu- 20 Cf. José ENES, Linguagem e Ser, Lisboa,
ra Portuguesa. Época Medieval, Coimbra, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1983,
Coimbra Editora, 1977, pp.17-18. pp.145-150.

39
(...)
Rogo-vos que aqui manso me digais este segredo:
Quando cansarão meus males e fadigas,
Minhas injúrias e ofensas,
Minhas saudades e misérias,
As feridas n’alma e minhas mágoas,
As bem-aventuranças em sonhos,
As desaventuras certas, os males presentes
E esperanças longas e tão cansadas?!
E quando terá paz tanta guerra
Contra um fraco sujeito,
Temor, suspeita, receios
De minhas entranhas?!
Até quando gemerei, suspirarei, matarei a sede
Com as lágrimas de meus olhos?!

– Samuel Usque, Consolação às Tribulações de Israel, 1553

40
«N’este monte, mais alto de todos, (que eu vim
buscar pela saudade, diferente dos outros, que n’ele
achei) passava eu a minha vida como podia, ora em
me ir pelos fundos vales que o cingem derredor, ora
em me pôr, do mais alto d’êle, a olhar a terra como
ia acabar no mar, e depois o mar como se estendia
logo após ela, para acabar onde ninguém o visse.
Mas, quando vinha a noite, entregue a meus pensamentos,
e via as aves buscarem seus pousos, umas chamarem as
outras, parecendo que queria sossegar a terra mesma;
então eu, triste, com os cuidados dobrados com que
amanhecia, me recolhia para a minha pobre casa, onde
Deus me é boa testemunha de como as noites dormia!
Assim passava eu o tempo, quando, uma das passadas
noites, pouco há, levantando-me, eu vi a manhã
como se erguia formosa, e se estendia graciosamente
por entre os vales, e deixar indo os altos.
O sol, já levantado até aos peitos, vinha tomando posse
dos outeiros, como quem se queria assenhorear da terra.
As doces aves, batendo as asas, andavam buscando umas
ás outras; os pastores, tangendo as suas flautas, e rodeados
dos seus gados, começavam a assomar pelas cumiadas.
Para todos, parecia que vinha aquele dia assim
ledo. Só os meus cuidados, vendo, parece, como
vinha poderoso seu contrario, se recolhiam a
mim, pondo ante meus olhos para quanto prazer e
contentamento pudera aquele dia vir, se não fôra
tudo tam mudado; d’onde o que fazia alegre a todas
as cousas, a mim só teve causa de fazer triste!
E como os meus cuidados, para o que tinha a
ventura ordenado, me começassem de entrar pela
lembrança de algum tempo, que foi, e que nunca
fôra, assenhorearam-se assim de mim que não me
podia já sofrer a par de minha casa, e desejava ir-me
para lugares sós, onde desabafasse em suspirar.

– Bernardim Ribeiro, As Saudades


ou Menina e Moça, 1554

41
Memória e saudade na
OBRA DE
CAMÕES
JOSÉ AUGUSTO CARDOSO BERNARDES
Faculdade de Letras de Coimbra
Túmulo de Camões, na Igreja dos Jerónimos. As
cerimónias de tumulação datam de 1880, por ocasião
das comemorações do terceiro centenário da morte
do poeta. Nesse túmulo se prestam, desde então,
homenagens protocolares, por parte de chefes de
GETTY

estado nacionais e estrangeiros.


A
palavra «saudade» surge meia centena de vezes em toda a obra de
Camões. Se a ela juntarmos a variante adjetiva («saudosa ou saudo-
so») ou a forma adverbial («saudosamente») o número vai além das
seis dezenas1.
Na contabilidade, porém, é ainda necessário fazer entrar pelo me-
nos uma outra palavra diretamente relacionada com a anterior. Refiro-me à palavra
«memória». Esta surge, pelo menos, uma centena de vezes, repartindo-se pela
Lírica e pela Épica.
A presença assídua dos dois vocábulos indicia uma importante linha de sentido
que atravessa a escrita camoniana: a constante evocação do passado que pode ser
pessoal, no caso da lírica, ou coletivo, no caso da epopeia. De forma esquemáti-
ca, pode dizer-se que enquanto no primeiro caso, essa evocação corresponde a
uma ideia de felicidade enganosa, na epopeia, a memória de acontecimentos sur-
ge sobretudo como exemplo (negativo ou positivo), que o poeta coloca perante
o destinatário: D. Sebastião, o rei a quem procura influenciar. É para ele que se
«presentificam» as histórias, para que delas possa extrair proveito pedagógico.
Tanto na lírica como na épica, existe sobretudo passado. Existe pontualmente al-
gum futuro. Já a representação do presente é sistematicamente sombria. Na poesia
lírica, o tempo da escrita equivale ao tempo da lucidez, aquele em que o poeta re-
conhece que o passado que, parecia feliz, era, afinal, ilusão e origem de sofrimento.
Na poesia épica essa mesma lucidez incide sobre uma realidade histórica de declí-
nio. Sempre que o poeta suspende a narração do passado (o que sucede no final dos
quatro cantos finais, com exceção do último), o presente irrompe em tom crítico e
desencantado. A única nota luminosa equivale à existência de um jovem monarca,
concedido ao Reino pela Providência. É para ele que o poeta escreve a epopeia. É
pela figura desse monarca que o futuro encontra conjugação na obra de Camões,
remetendo para um resgate que, apesar de todas as sombras, ainda parece possível.
Os Lusíadas terminam com uma exortação à partida para Marrocos. E não é por
acaso que essa partida retoma o fundamento do Reino. Assinalada por Cristo em
Ourique para expandir a fé cristã, a missão de Portugal encarna agora em D. Se-
bastião, um novo ungido, chamado a assumir a mesma linha de reconquista e de
missionação.
Embora pontualmente, o futuro encontra também lugar na lírica. Naquela que
é a poesia mais longa e impressiva (as redondilhas de «sobre os rios que vão»)
encontramos um confronto agónico com o passado. Após a sua depreciação siste-
mática ao longo da primeira parte do poema, emerge um horizonte de profunda
transformação. Na segunda parte dessa composição (provavelmente concebida na

Tanto na lírica como na épica,


existe sobretudo passado. Existe
pontualmente algum futuro. Já
a representação do presente é
sistematicamente sombria

44
parte final da vida do poeta) fala-se, em concreto, no abandono do canto profano,
em proveito do canto divino, o único que se afigura constante e assegura a luz da
Verdade Divina. Nessa medida, o poema, que representa a paráfrase a um salmo
bíblico de cativeiro, termina com a visão mística da Luz redentora2.
Tomando como ponto de partida a importância quantitativa das palavras «sau-
dade» e «memória», tentarei, de seguida, sublinhar a importância do seu contri-
buto para a compreensão global da obra camoniana, repartindo a análise pelos dois
grandes modos da criação camoniana: a Lírica e a Épica.

A Gruta de Camões em
1965, in José Jorge Letria –
Oriente da Mágoa (Pranto de
Luís Vaz). Instituto Português
do Oriente, 1992.
ASC

45
A LÍRICA
Seguindo o exemplo de Petrarca (1304-1374), Camões recorre à memória como
base de escrita confessional, nela evocando acontecimentos, mas também iden-
tificando as suas causas e os seus efeitos, colocados em evidência através de uma
análise acentuadamente melancólica, em que prevalece a ideia de perda.
Falamos de uma memória de bem, com evocações felizes, sobretudo as que en-
volvem o plano amoroso. Interpretada à luz do presente, o poeta imaginava como
«bem» o que, afinal, era fonte de desengano e sofrimento. Este sentimento, que
atravessa a generalidade da lírica, torna-se ainda mais patente num dos géneros
maiores que a assinalam. Refiro-me às canções, especialmente propícias ao dis-
curso autobiográfico.

Camões na Gruta de Macau


(1851-1852). Francisco
Augusto Metrass. Museu de
Arte Contemporânea, Lisboa.
ASC

46
O texto onde o passado
surge evocado com mais
desenvolvimento, é aquele que
ficou conhecido por Canção X

Assim, na canção IV («Vão as serenas e doces águas do Mondego descendo/ que


até o mar não param») alude-se a um tempo que parece ter sido de plenitude amo-
rosa. A «testa de neve e ouro», sinédoque da amada, surge associada a um tempo
de fruição e de reciprocidade. O tempo presente é o da escrita e surge assinalado
pela consciência de que afinal o bem evocado prenunciava o mal consumado na
separação dos amantes. O exame do passado e do presente levam mesmo o poeta a
assinalar uma conclusão dolorosa: a de que o sentimento que unia os amantes era
de intensidade desigual:

Mas a mor alegria


Que daqui levar posso,
Com a qual defender-me triste espero,
É que nunca sentia
No tempo que fui vosso
Quererdes-me vós quanto vos eu quero. (p. 210-211)3

Esta situação atravessa, de resto, toda a lírica do poeta. Não faltam sonetos onde
a escrita de consciência recupera o passado. E, sobretudo, não faltam elegias, gé-
nero caraterizado pela lamentação, onde este mesmo sentimento é desenvolvido,
envolvendo a responsabilização do Destino nefasto.
O tema do passado ilusoriamente feliz surge mesmo em várias composições da
medida velha. É o caso da composição que começa com dois versos que quase po-
deriam ser tomados como epígrafe global de toda a lírica camoniana («Nunca em
prazeres passados/tive firmeza segura»).

O texto onde o passado surge evocado com mais desenvolvimento, porém, é


aquele que ficou conhecida por Canção X.
Mais do que em qualquer outro, é nele que o poeta leva bem fundo o exercício da
memória, aprofundando o exame autobiográfico que lhe anda associado.
Tudo começa no dia do seu nascimento

Quando vim da materna sepultura


De novo ao mundo
Logo estrelas infelices me obrigaram.

(...)

Com ter livre alvedrio mo não deram. (p. 223)

47
O exercício de memória é, neste caso, particularmente minucioso, implicando a
iniciação amorosa, através de um veneno que lhe é dado em pequenas porções para
que, mais tarde, tomando-o em doses muito elevadas, sofresse, mas não morresse.
A estrofe que precede o desfecho da canção é bem elucidativa da consciência dos
«doces errores» cometidos e, em simultâneo, da impossibilidade de os corrigir,
ainda por força da permanência do desejo:

Que se possível fosse, que tornasse


O tempo para trás, como a memória,
Pelos vestígios da primeira idade,
E de novo tecendo a antiga história
De meus doces errores, me levasse
Pelas flores que vi da mocidade;
E a lembrança da longa saudade
Então fosse maior contentamento,
(....)
Ah! vãs memórias, onde me levais
O fraco coração, que ainda não posso
Domar este tão vão desejo vosso? (p. 228-29)

De facto, se é verdade que memória e saudade se entrelaçam na poesia lírica de


Camões como instrumento de autoanálise, nenhuma delas se assume como via de
superação, revelando-se capaz de neutralizar a origem do sofrimento.

A ÉPICA
Dedicados a um «rei-menino», Os Lusíadas constituem o repositório de um
passado. Assim se explica que estejamos perante um poema centrado na História
de Portugal e na primeira viagem de Vasco da Gama entre Lisboa e Calecute.
De entre os episódios em que a memória surge de forma mais vincada, selecio-
namos dois: o Velho do Restelo e a Ilha dos Amores. Na sua flagrante diversida-
de, convergem pelo menos num aspeto: a convocação de uma memória especial.
Refiro-me à memória mítica que, num caso é identificável com um certo tipo de
saudade e no outro serve para projetar um determinado futuro.

O VELHO DO RESTELO
Contando matéria que lhe dizia diretamente respeito, Vasco da Gama aproxi-
ma-se do final da sua narração ao Rei de Melinde. Na sequência do sonho em que
lhe apareceram os rios Indo e Ganges e do conselho que então tomou, D. Manuel
escolhe o Gama para capitão da armada que se dirige à Índia.
Introduzido por uma adversativa, surge na praia uma figura inesperada:

Mas um velho, de aspeito venerando (IV, 94)4

A caracterização que dele é feita não deixa margem para dúvidas: trata-se de uma
figura especialmente qualificada: o seu saber é feito de experiência, as palavras que

48
lhe saem do peito são «pesadas» (o que equivale a cuidada ponderação), e, por isso,
são sinceras.
A figura denuncia a «glória de mandar» e a «vã cobiça», sustentando que nelas
reside a origem de inquietações e da perda «De fazendas, de reinos e de impérios»
(96). Depois, numa série de perguntas retóricas, insinua que, por força desse móbil
enganoso, aquela partida significará, tão-só, o início de «novos desastres».
Dando como certo que os descendentes de Adão, antes fruindo a idade dourada e
agora mergulhados na idade do ferro e das armas, têm em si uma pulsão de guerra,
aponta uma alternativa à Índia. Trata-se de África, onde estão os mouros, conhe-
cidos inimigos da fé cristã. O homem caído é amante da guerra. Nessa medida, a
solução africana parece assim constituir um «mal menor»:

Deixas criar às portas o inimigo


Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovoe o Reino antigo,
se enfraqueça e se vá deitando a longe; (101)

As três estâncias finais da proclamação retomam a tónica do início do episódio,


amaldiçoando o primeiro navegante, referindo o fogo do desejo que Prometeu re-
velou aos homens, para, desde então, lhes roubar a quietude da renúncia, e instilar
neles a tentação do perigo.

ASC

O Velho do Restelo. Columbano Bordalo Pinheiro, 1904. Museu Militar de Lisboa.

49
Mísera sorte! Estranha condição!

São as últimas palavras do Velho, dirigidas aos nautas, que, embora já no mar e
topograficamente afastados, as ouviam com tanta nitidez como se as escutassem
no íntimo das suas próprias consciências. Trata-se, no entanto, de exclamações
dirigidas a todos os mortais que, impelidos por este mesmo ímpeto, se encontram
prisioneiros dos «altos desejos», inicialmente imputados a Prometeu.
Situado no final de um canto (lugar onde, por várias vezes, o poeta se manifesta
em registo de crítica e denúncia), este episódio tem sido interpretado de várias
formas: como reflexo histórico de uma corrente de interesses – o Portugal agrário
do Norte, a quem, de todo, não convinha a Expansão –; parte da Nobreza que,
sendo a favor da Expansão, preferia a África e rejeitava a Ásia; testemunho direto
do próprio poeta – sobretudo do Camões regressado da Índia, que nela tinha expe-
rimentado o resultado concreto daquela mesma partida e que se sentiu obrigado a
incluir no poema este conjunto de vaticínios pessimistas.
Qualquer destas interpretações se revela plausível e o mais certo é que, em maior
ou menor grau, qualquer delas possa ter lugar na intenção camoniana ou, pelo me-
ASC

Lusíadas, Episódio de Inês de Castro. Dona Inês de Castro, acompanhada dos filhos,
implora clemência ao rei. Tela de Eugénie Servières, 1822.

50
nos, no horizonte histórico-cultural em que o poeta se inscreve. Para além de todas
elas, porém, parece claro que aquele velho representa a ética humanista, adversa
a todas as guerras e a todas as partidas. Mais do que as críticas de circunstância
que no episódio têm lugar, o que está em causa é a desmistificação do valor de cer-
tas palavras: a «Fama», a «Glória» e alguns qualificativos que as adornam como
«ilustre» e «subida». Deste modo, pode dizer-se que a crítica central é dirigida
não contra aquela expedição em especial, mas contra todas as partidas que derivam
do mesmo fundamento.
É certo que a África, tantas vezes interpretada como sendo uma solução defendi-
da por esta voz, funciona, no conjunto do discurso, não como alternativa redento-
ra, mas como uma possibilidade menos negativa.
O que o Velho diz a este propósito está, contudo, longe de poder ser confundido
com o incitamento que, no final da epopeia, Camões dirige ao Rei. O ancião repre-
senta uma voz que o autor quis acolher, como, de resto, acolheu outras, transfor-
mando o poema num tecido altamente polifónico. Trata-se, sobretudo, de mais
um obstáculo que o autor coloca no caminho do herói coletivo. Tal como as mães
e as esposas configuram uma posição legítima e fundamentada, o Velho do Restelo
representa uma outra reserva àquela partida: esta de natureza racional e ideológica.
Depois de ter superado o outro tipo de reservas, o herói supera agora também este
obstáculo, decidindo-se pela partida aventurosa.
O que parece fora de toda a ética de superação é a saudade (que não a memória)
de um tempo isento de ambição. Quando o velho amaldiçoa «o primeiro que no
mar pôs vela em seco lenho» está implicitamente a convocar um estádio mítico, a
idade de ouro feita de mediania e de renúncia feliz.

A ILHA DOS AMORES


O mesmo sucede na célebre ilha dos amores, a «ilha angélica pintada». Nela a
história é absorvida pela mitologia. Na amenidade do espaço e em tudo o que lá
sucede encontramos ainda os traços da idade dourada, envolvendo a liberdade dos
sentidos e a ausência de qualquer tipo de culpa.
No que toca ao papel da memória, porém, o poeta vai agora mais longe: nela se
representa de novo um passado mítico (na senda de todos os lugares de plenitude
que abundam na literatura universal desde a Antiguidade). Neste caso, porém, a
evocação desse lugar sem coordenadas não se esgota em si mesma. Logo após a
descrição minuciosa que dela faz, o poeta não hesita em dissipar o equívoco da
literalidade:

Que as ninfas do Oceano, tão fermosas,


Tétis, e a ilha angélica pintada,
Outra cousa não é que as deleitosas
Honras, que a vida fazem sublimada. (IX, 89)

Sublinhando o carácter metafórico da «ilha angélica» o poeta mantém-se assim


fiel à história, tal como havia declarado na Dedicatória do poema (I, 6-18). Depois
de se terem cruzado sexualmente com as ninfas na imaginação do poeta, os nautas
regressam, de facto, a Lisboa, onde são acolhidos e recompensados pelo Rei.

51
O facto de Os Lusíadas não terminarem com o episódio da ilha dos amores re-
veste-se do maior significado. Fazendo regressar os nautas, o poeta recoloca-os no
tempo e faz deles um exemplo para aqueles que ainda não partiram.
O objetivo do poeta ao atribuir tanta importância à recompensa do herói para ser
justamente o de criar memória poética. Esse tipo de memória, contudo, não rasura
a memória histórica. Pelo contrário: a memória imaginada dessa ilha mas também
aquela que se centra na primeira viagem à Índia por mar e na história de Portugal
nascida em Ourique servem de acicate a uma partida nova.
A exortação com que termina o poema não seria compreensível sem a memória
e a saudade do que antes se narrou.
ASC

Lusíadas, edição de 1878, Imprensa Nacional, Lisboa. Episódio da Ilha dos Amores, Canto IX,
Desenho de Soares dos Reis, gravura de J.Pedroso.

«Sigamos estas Deusas, e vejamos


Se fantásticas são, se verdadeiras!»
Isto dito, velozes mais que gamos,
Se lançam a correr pelas ribeiras.
Fugindo as Ninfas vão por entre os ramos,
Mas, mais industriosas que ligeiras,
Pouco e pouco sorrindo e gritos dando,
Se deixam ir dos galgos alcançando»

52
CONCLUSÃO
Tendo escrito sobre memória e saudade, Camões viria a converter-se, ele próprio,
em referência memorial e saudosa. Não faltaram, desde logo admiradores, segui-
dores e imitadores. A apropriação comunitária que dele foi feita pelos portugueses
não tem comparação com nenhum outro escritor e vai da literatura à pintura e à
arte popular.
De entre os muitos sinais que poderiam destacar-se da presença de Camões na
memória coletiva, sobressai a sua presença ininterrupta na Escola, fazendo com

Vasco da Gama na Ilha dos


Amores. Pintura de Vieira
Portuense.
ASC

53
O facto de Os Lusíadas não
terminarem com o episódio da
ilha dos amores reveste-se do
maior significado
ASC

Retrato de Luís de Camões, por António Soares. (1894-1978). Museu de Lisboa.

54
Luis Vaz de Camões
(c.1524-80). Óleo sobre tela,
Escola Portuguesa. MNAA.

ASC
que todos os jovens portugueses se aproximem dele de uma maneira ou de outra.
Em Portugal (e também no Brasil) falar de Inês de Castro, do Velho do Restelo, do
Adamastor ou da ilha dos amores significa aludir a referências especialmente agre-
gadoras. Num outro plano, situam-se as efemérides que se têm vindo a celebrar
pelo menos desde 1880 (ano em que se lembraram, com grande impacto nacional,
os 300 anos da sua morte).
Para março de 2024 está previsto o início das comemorações dos 500 anos do nas-
cimento de Luís de Camões. O facto de o Governo ter chamado a si a coordenação
de mais essa efeméride camoniana significa que, passados cinco séculos, o «poeta
maior» continua a inspirar memória e saudade.

1 Retiro a informação da utilíssima Concordância da obra toda, coligida por Telmo Verdelho
(Coimbra, Centro interuniversitário de estudos camonianos, 2012).
2 Com fundamentação plausível, Barbara Spaggiari, que tem em curso uma edição crítica da
Lírica camoniana (juntamente com Maurizio Perugi), duvida da autenticidade camoniana da
última parte da composição, precisamente aquela em que se configura a conversão ao divino
e se antevê o gozo da Jerusalém Celeste (Cf. La lírica di Camões, 2. Redondilhas, Edizione
critica a cura di Barbara Spaggiari, Genève, Centre d’Études Portugaises, 2021).
3 As citações da Lírica seguem a edição preparada por Álvaro Júlio da Costa Pimpão (Coim-
bra, Almedina, 1973).
4 As citações d’ Os Lusíadas são extraídas da edição prefaciada, fixada e anotada por Álvaro
Júlio da Costa Pimpão (Lisboa, Instituto de Alta Cultura, 1973).

55
Almeida Garrett, o maior poeta
do Romantismo português.
ASC

56
A SAUDADE
E GARRETT

JOÃO DIONÍSIO
Professor de Literatura Portuguesa
e de Crítica Textual na Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa

57
A
s palavras são veículos, de sentimentos, de emoções, de raciocínios,
de muita coisa. Se fosse um veículo motorizado, a palavra «sauda-
de» seria um camião TIR e com excesso de carga, a que lhe tem sido
colocada tanto pela cultura popular como pela tradição erudita.
«Saudade» é palavra que atravessa gerações através da cultura
musical pop portuguesa das últimas décadas graças a temas como o dos Heróis
do Mar (em 1981, a memória da mulher amada em tempo de guerra), dos Xutos e
Pontapés (em 1988, paródia minimal de «Uma casa portuguesa», de Amália), do
funk do tipo «ó tempo volta para trás» dos Expensive Soul em 2014 e da canção
que Maro leva à Eurovisão, em 2022, acerca da paralisia emocional motivada pela
perda de um amigo.
Esta propagação da palavra na cultura popular é precedida pelo protagonismo
cíclico do termo na tradição erudita plurissecular, que começa no tratado moral
Leal Conselheiro, concluído pelo rei D. Duarte em 1438, ano da sua morte. É nesta
obra que encontramos a observação seguinte: «E porem me parece este nome de
suidade tam próprio que o latim nem outra linguagem que eu saiba nom há pera tal
sentido semelhante». Ou seja: ‘E por isso me parece que esta palavra «saudade» é
tão privativa (da língua portuguesa) que nem o latim nem outra língua dispõem de
termo semelhante que transmita o seu sentido’. Passam quinhentos anos redondos
até que, no início do séc. XX, a tradição erudita chega a um ponto culminante na
conceptualização da saudade através de Teixeira de Pascoaes. É ele quem estabelece
para o termo um significado muito especial:

sentido profundo, verdadeiro, essencial, isto é, o sentimento-ideia, a


emoção reflectida, onde tudo o que existe, corpo e alma, dor e alegria,
amor e desejo, terra e céu, atinge a sua unidade divina. Eis a Saudade
vista na sua essência religiosa, e não no seu aspecto superficial e ane-
dótico de simples gosto amargo de infelizes.

Esta reconceptualização aparece no artigo «Renascença», publicado nas páginas


da revista Águia em 1912 e o sentido vulgarizado do termo que pretende superar,
aquele «gosto amargo de infelizes», é cunhado por Almeida Garrett. Antes de nos
concentrarmos nesta definição, que Pascoaes deplora e
pretende superar, vale a pena percorrermos alguns dos
usos que o criador de Frei Luís de Sousa dá ao termo.
A gama de significados de que Garrett se serve pode ser
ilustrada com recurso a exemplos colhidos do género
dramático, da poesia lírica e, por fim, num poema de-
vedor da memória épica, Camões.

«A Pátria não tem aqui sentido material ou terreno, mas


espiritual, e acha-se assim configurada pela leitura que Catão
faz do Fedón, de Platão.»
ASC

58
REGISTO DRAMÁTICO
No prefácio da 3.ª edição do drama Catão, texto originalmente escrito quando
jovem adulto e republicado em vida várias vezes, Garrett fala do interregno entre
as primeiras manifestações do teatro português e o período em que se encontrava.
É neste passo que menciona o poder catalisador da saudade enquanto reactivador
da tradição quebrada do teatro português: «ficou a memória vaga de uma pouca
de semente que se perdera – e nada mais. Mas esta mesma saudade atormentou a
nação e os seus poetas». No drama propriamente dito, quando Pórcio, o filho de
Catão, morre nos seus braços, o pai tem uma fala que procura, por entre diferentes
cambiantes semânticos, a expressão certa para o sentimento que experiencia, cau-
sado pela antecipada perda do ente querido: «Vê dos olhos paternos, vê correr-me
| Estas lágrimas – doces, não de pena, | Meu Pórcio, não de dor, mas de saudade».
Já mais tarde, na cena 2 do acto V, Catão diz-se preparado para morrer, falando de
«Indistintas, mas seguras, | Reminiscências da perdida pátria. | E saudades de voltar
a ela». A pátria, bem entendido, não tem aqui sentido material ou terreno, mas es-
piritual, e acha-se assim configurada pela leitura que Catão faz do Fedón, de Platão.

REGISTO LÍRICO
Passando ao registo lírico, há um poema precisamente intitulado «A Saudade»,
datado de 1820, de Coimbra, incluído na Lírica de João Mínimo e que começa
«Saudade! Oh saudade amarga e crua, | Númen dos ais, do pranto!» (p.54). Com o
sentido de ‘divindade’, «númen» faz da saudade a deusa dos lamentos, por meio
de uma operação que ganhará força mais tarde, como veremos, no poema Camões.
Aliás, «A Saudade» é composição precedida por uma epígrafe retirada do poeta
romano Catulo: «… Desiderio … nitenti | Nescio quid charum». Ora, estes mesmos
versos latinos, de novo, são considerados por Garrett na nota ao início de Camões:
«Quisera eu também ver como se traduziria, a não ser em Português, aquele
tão belo, e delicadissimamente voluptuoso pensamento de Catulo, ao pardalzinho
ASC

ASC

ASC

Três obras fundamentais de Almeida Garrett: Flores sem Fruto, Folhas Caídas e Frei Luís de
Sousa, em edições da Imprensa Nacional, Lisboa.

59
da sua Lésbia: «Quum desiderio meo nitenti, | Nescio quid earum lubet jocari, |
Et solatiollum sui doloris». A tradução garrettiana surge de seguida: «Quando
saudades minhas a angustiam, | E acha não sei que gôso no folguedo, | Pequeno
alívio para a dor que a punge». Portanto, «saudades» por «desiderio», uma op-
ção alinhada com as observações sobre a precisão plástica da língua portuguesa
que observaremos adiante.
Vale a pena vermos também a compilação Flores sem fruto, publicada no mesmo
ano (1844) em que sai Frei Luís de Sousa. À data tinha Garrett 45 anos, sendo a ques-
tão da idade central para o que aí escreve acerca da correspondência entre etapas da
ASC

«Passos Manuel, Almeida Garrett, Alexandre Herculano e José Estevão de Magalhães»


por Columbano Bordalo Pinheiro (pormenor). Óleo sobre tela concluído em 1926. Passos
Perdidos, Assembleia da República.

60
vida e géneros literários. A poesia seria a marca da
juventude; a prosa, da maturidade. De onde escre-
ve logo no início do prefácio da compilação: «En-
quanto fui poeta afrontei-me que mo chamassem;
hoje tenho pena e saudade de o não poder já ser».
Trata-se, pois, de um livro de arquivo, que reme-
mora o que, lamenta o seu autor, já não é actual:
«A minha [alma] está velha; e a todos os achaques
da velhice, junta essa fatal e matadora saudade do
passado». A expressão lírica deste reconhecimen-
to surge na composição «Já não sou poeta», onde

ASC
se explora a vontade de oferecer versos «A quem
junta ao precioso valor | D’alma bela, as mais graças
d’amor». Este poema é construído sob a forma de Capa da edição conforme a
revista pelo autor com um estudo
justificação contraditória, dizendo-se em verso que por Camilo Castelo Branco.
o escritor perdeu o talento de se expressar em verso Colecção Lusitânia N.º 15. Lello &
e estabelecendo-se a diferença subtil entre sentir Irmão - Editores. Porto. S.d.
falta da glória e sentir falta do tempo da glória. Nu-
ma primeira fase, nega-se a condição:
«Mas não sou já poeta; caiu-me | Da cabeça a coroa, o poder; | (…) | Sei, perdi-me…
e na triste memória | Nem saudades já tenho da glória». Depois, afina-se a afirmação:
«Ai, por ti, por ti só, à memória | Vêm saudades do tempo da glória!». Além do que
se lê em «Já não sou poeta», o termo aparece em poemas como «O mar», «A vitória
da praia», «Nova Heloísa» e numa série de composições com referência expressa ao
suporte das recordações por excelência, o álbum. Essas composições incluem «Ramo
seco», subintitulado «No álbum de uma senhora brasileira»; «Livro da vida», com
o subtítulo «No álbum do Sr. J. M. do Amaral»; e «Num álbum de um amigo». Nesta
última, datada de Londres 1831, é convocada uma formulação próxima da que encon-
tramos em Camões: «Nos vales do desterro são colhidas | Estas singelas, desmaiadas
flores | Que por mãos da Saudade vão tecidas | C’os acerbos espinhos de suas dores: Mas
doce esp’rança as leva oferecidas (…)». De facto, preparada por poesia anterior e re-
cordada em versos posteriores, a exploração mais demorada que Garrett faz da palavra
«saudade» manifesta-se em Camões. Em que circunstâncias é composto este poema?

CAMÕES
Em Maio de 1823, dá-se a Vilafrancada, o movimento com nome derivado de Vila
Franca de Xira, onde se reuniram as tropas lideradas pelo infante D. Miguel, que

Preparada por poesia anterior e


recordada em versos posteriores,
a exploração mais demorada que
Garrett faz da palavra «saudade»
manifesta-se em «Camões»
61
visava restaurar a monarquia absoluta. O cenário parece então sombrio para os
partidários do regime liberal, tendo vários deles tomado a decisão de partir para o
exílio. Entre eles, Almeida Garrett emigra para Inglaterra, mudando-se para França
em 1824, onde se fixa, primeiro, na Normandia, para depois residir em Paris.
É assim fora de Portugal que Camões é composto: quase todo no verão de 1824,
em Ingouville, próximo do Havre, a gravidade do empreendimento literário que-
brando a saúde e destemperando os nervos ao seu autor. Depois de uma interrup-
ção na escrita do texto, vai concluir o poema em Paris entre o final daquele ano e
o início de 1825. A memória daqueles tempos difíceis aparece sob a forma da casa
onde vivia à época e do amigo que com ele a partilhava. Conforme escreve em nota
da segunda edição do poema:

E quase que tenho hoje saudades — tal nos tem andado a sorte! — das
engelhadas noites de Janeiro e Fevereiro que numa água-furtada da
rua do Coq-St.-Honoré passávamos com os pés cozidos no fogo, eu
e o meu amigo velho o Sr. J. V. Barreto Feio, ele trabalhando no seu
Salústio, eu lidando no meu Camões, ambos proscritos, ambos po-
bres, mas ambos resignados ao presente, sem remorsos do passado — e
com esperanças largas no futuro (…).

Uma vez concluído, Camões será publicado ainda em 1825, com chancela pari-
siense. Poema fundador do romantismo para uns, última obra clássica para outros
ou, em clara etiqueta transitiva, pós-clássica, é sintomático que na advertência da
1.ª edição Garrett se esquive a categorizações mutuamente exclusivas: «Não sou
clássico, nem romântico: de mim digo que não tenho seita, nem partido em poesia
(assim como em cousa nenhuma)». Tratando-se de um poema narrativo, expõe
uma acção e esta é a composição e publicação d’Os Lusíadas, afirma na mesma
advertência. Assunto, Os Lusíadas são também modelo do poema de Garrett em
diferentes aspectos: por exemplo, na divisão estrutural em 10 cantos e na invocação
com que o poema começa. E é precisamente na invocação que Garrett se dirige, não
às ninfas de um rio que, exilado, não podia ver, mas sim à Saudade. A explicação,
bem disposta, para tal escolha é dada numa das notas eruditas com que fornece
explicações ao leitor. Garrett imagina-se papa beatificador de sentimentos e depois
mobiliza a imaginação alegórica com recurso à referência a animais volantes:

Vali-me do exemplo de muito boa gente para personalizar e deificar


assim afectos d’alma. Antiquíssimo deus é o amor, a amizade, ainda
a ira, a tristeza, a alegria; porque o não será também a saudade? Bea-
tifico-a eu, que neste caso me tenho por tão bom papa como os meus
predecessores, e principalmente gregos.

Uma vez que estes, diz, imaginaram o carro de Juno puxado por pavões, por bor-
boletas o de Cupido e o de Vénus por pombas, pareceu-lhe apropriado que o carro
da Saudade fosse movido por «meigas, constantes gemedoras rolas». A invocação
principia com uma definição de saudade que ganhará voga: «gosto amargo de in-
felizes, | Delicioso pungir de acerbo espinho, | Que me estás repassando o íntimo

62
Estátua de Almeida Garrett, da autoria de Barata Feyo,
na Praça General Humberto Delgado, no Porto.
ISTOCK

peito | Com dor que os seios d’alma dilacera, | – mas dor que tem prazeres». Os ver-
sos constroem-se em torno de paradoxos lógicos, aliás prefigurando o que Teixeira
de Pascoaes escreverá, este num enquadramento que se pode quase dizer cósmico,
aquele numa representação individual do sentimento. Na sequência dos versos ini-
ciais de Camões, Garrett ocupa-se da palavra propriamente dita que em português
designa sentimento tão contraditório: «Mavioso nome que tão meigo soas | Nos
lusitanos lábios, não sabido | Das orgulhosas bocas dos Sicambros | Destas alheias
terras». As «alheias terras» serão referência ao lugar onde Garrett se encontrava
quando redigia estes versos, «alheias» na acepção de estrangeiras, no caso, na
Normandia, em França. Por seu lado, os sicambros (referência a povo da Germânia

63
Garrett contribui bastante
para o peso excessivo que ainda
hoje sobrecarrega a palavra
e faz dela uma boa candidata
a ilustrar inclinações
identitárias que, felizmente,
já viram melhores dias
que estaria na origem da dinastia dos reis merovíngios), embora orgulhosos, não
conhecem o termo. Pretexto, assim, para uma das mais conhecidas anotações de
Garrett, parte integrante da história da palavra (e do conceito) em Portugal.
Com efeito, na nota a estes versos, Garrett explica que o sentimento da saudade,
sendo embora universal, só na língua portuguesa teria palavra apropriada para o re-
ferir. É neste ponto que se ocupa de reflexão etimológica: o termo viria por derivação
oblíqua de solitudo e designaria o desejo melancólico de quem se acha na solidão,
ausente, isolado de objectos cuja falta sente, afastado de pessoas a quem está unido
por laços de afecto. Depois, Garrett adopta um ponto de vista progressivo na obser-
vação da história da língua: os Romanos, na ausência de outro termo, expressavam
este sentimento por «desiderium». Daí escrever Horácio numa das suas epístolas:
«Quis desiderio sit pudor aut modus | Tam chari capitis? –». A este respeito, Garrett
considera que a palavra «desiderium» é insuficiente para dar corpo à ideia do poeta
e afirma que, de entre as palavras que conhece em várias lín-
guas, nenhuma lhe parece mais adequada do que o termo
português «saudade». Com este lance, não só proclama
neste aspecto a superioridade do português em relação ao
latim, como também em relação a outras línguas ver-
náculas. Em sintonia com a posição de Garrett, fora
essa, já em 1681, a escolha da tradução «com o enten-
dimento literal & construição portuguesa» publicada
na oficina de Miguel Manescal. Esta versão vai segmen-
tando o texto horaciano em expressões intercaladamente
em latim e em português, dando o estranho resultado:
«Quis pudo que pejo, aut modus ou que modo sit
desideris terão saudades tam cari capitis
de tão amado amigo?». E a opção persis-
te na recentíssima tradução de Frederico
Lourenço: «Para a saudade de tão querida
cabeça, que pudor | ou que medida poderá
haver?».
Do ponto de vista linguístico, Garrett
A 3.0

prossegue, assim, uma tradição que foi


JOSEOLGON CC BY-S

cedo iniciada por D. Duarte sobre a capa-


Busto de Almeida Garrett,
Escola de Palmeira, Braga.
cidade expressiva especial do termo «sauda-
de». O mais recente elo desta tradição é, em

64
ALAMY

«Garret: Drama, Lenda e Profecia», painel de azulejos de Lima de Freitas,


1996, na Estação do Rossio, Lisboa.

chave popular, a eurovisiva canção de Maro, quando se diz em inglês o que em inglês
não se diz tão bem: «Nothing more that I can say | says it in a better way». De qual-
quer modo, apesar da crítica que lhe dirige Pascoaes, Garrett vai mais longe na con-
ceptualização da «saudade» do que o simples reconhecimento da excepcionalidade
linguística. Isso mesmo é registado por Eduardo Lourenço no ensaio «Portugal como
destino». Aqui, Lourenço mostra que a mobilização da saudade por Garrett não é
nem marcada por providencialismo paralisante, nem alimentada pela idealização de
um passado inibidor. Pelo contrário, afirma, «Garrett instaurou a primeira mitologia
cultural portuguesa sem transcendência. A que fez do país de Camões o país-sauda-
de, o Portugal-saudade, que não tem outro destino senão o da busca de si mesmo».
Tudo somado, portanto, Garrett contribui bastante para o peso excessivo que ainda
hoje sobrecarrega a palavra e faz dela uma boa candidata a ilustrar inclinações iden-
titárias que, felizmente, já viram melhores dias.

65
Alegres campos, verdes arvoredos,
Claras e frescas águas de cristal,
Que em vós os debuxais ao natural,
Discorrendo da altura dos rochedos;

Silvestres montes, ásperos penedos


Compostos de concerto desigual;
Sabei que, sem licença de meu mal,
Já não podeis fazer meus olhos ledos.

E pois já me não vedes como vistes,


Não me alegrem verduras deleitosas,
Nem águas que correndo alegres vêm.

Semearei em vós lembranças tristes,


Regar-vos-ei com lágrimas saudosas,
E nascerão saudades de meu bem.

***
O céu, a terra, o vento sossegado...
As ondas, que se estendem pela areia...
Os peixes, que no mar o sono enfreia...
O nocturno silêncio repousado...

O pescador Aónio, que, deitado


Onde co vento a água se meneia,
Chorando, o nome amado em vão nomeia,
Que não pode ser mais que nomeado:

— Ondas – dezia – antes que Amor me mate,


Tornai-me a minha Ninfa, que tão cedo
Me fizestes à morte estar sujeita.

Ninguém lhe fala; o mar de longe bate;


Move-se brandamente o arvoredo;
Leva-lhe o vento a voz, que ao vento deita

– Luís Vaz de Camões, Sonetos, Séc.XVI

66
No meio desta serra, onde se cria
Aquela saudade d’alma pura,
Que no duro penedo acha brandura,
Ardente fogo dentro n’água fria:

Ouço do passarinho a melodia,


Vejo vestir o bosque de verdura,
Variar-se no céu outra pintura,
Que em vários sentimentos me varia.

Pasmando de quam mal se gasta a vida


De quem na terra quer subir ao céu
Pois caminhar em fim ninguém duvida.

Menos da vida estreita que escolheu,


Dos seus mais escolhidos mais seguida,
Christo Jesu, que numa Cruz morreu.

– Agostinho da Cruz, Na Serra da Arrábida,


Séc.XVI-XVII

«É a saudade uma mimosa paixão da alma, e por isso, tão subtil, que
equivocamente se experimenta, deixando-nos indistinta a dor da satisfação.
É um mal, de que se gosta e um bem que se padece: quando fenece troca-
se a outro maior contentamento, mas não que formalmente se extinga:
porque se sem melhoria se acaba a saudade, é certo que o amor e desejo se
acabarão primeiro. Não é assim com a pena: porque quando é maior a pena,
é maior a Saudade e nunca se passa ao maior mal, antes rompe pelos males;
conforme sucede aos rios impetuosos, conservarem o sabor das suas águas,
muito espaço de misturar-se com as ondas do mar, mais opulento.»

– D. Francisco Manuel de Melo, Séc.XVII

67
Retrato de Florbela Espanca,
que a si própria chamou Soror
Saudade num poema a que deu
esse mesmo título.
ASC
SHUTTERSTOCK
A Saudade em
FLORBELA
ESPANCA
JOSÉ CARLOS FERNÁNDEZ
Diretor de Nova Acrópole em Portugal
Traduzido por Mariana Esteves
O
imperador romano Juliano (361-363), a quem os cristãos chamaram
«o Apóstata», dizia, no seu filosófico paganismo, que a melhor for-
ma de constatar a existência dos deuses era estudar as diferenças de
carácter dos povos. E é evidente que um dos rasgos determinantes
do carácter da terra e das gentes do país de Camões é a saudade. Um
termo que designa uma mistura de sentimentos de ausência, perda, distância, amor
e que já encontramos nas cantigas de amigo galaico-portuguesas, na Idade Média.
Aceita-se que o Fado, o cântico de amoroso pranto e aceitação do destino (pois Fado
vem de Fatum, destino), também se vincula a este sentimento. Dizem os astrólogos
antigos que o signo que rege Portugal é Peixes, e é certo que uma das características
deste signo é a saudade, o sentimento indefinido de ausência, a neblina desde a qual
se espera a redenção, o Rei esperado, o amor fusão universal que desfaz todos os
limites, regras e formas, tal como o descreve Wagner no seu Tristão e Isolda. Precisa-
mente nesta obra, o chamado «acorde de Tristão» expressa esta angústia indefinida,
irresoluta que só pode finalizar com a morte ou o reencontro do amor sem fim.
Mas na literatura portuguesa, talvez ninguém tenha encarnado a saudade como
fez na sua vida e nos seus escritos a «musa do Alentejo», a poetisa Florbela Espan-
ca. Até ao ponto em que num dos seus livros de poemas ela própria assume o nome
de Soror Saudade, e assim chama a esse mesmo opúsculo, editado em 1923.
O nome veio-lhe de um epíteto de Américo Durão, um amigo, que assim a cha-
mou numa carta, e ela reconheceu num poema até que ponto se sentia identificada.

SOROR SAUDADE
Irmã, Soror Saudade me chamaste...
E na minh’alma o nome iluminou-se
Como um vitral ao sol, como se fosse
A luz do próprio sonho que sonhaste.

Numa tarde de Outono o murmuraste,


Toda a mágoa do Outono ele me trouxe,
Jamais me hão de chamar outro mais doce.
Com ele bem mais triste me tornaste...

E baixinho, na alma da minh’alma,


Como bênção de sol que afaga e acalma,
Nas horas más de febre e de ansiedade,

Como se fossem pétalas caindo


Digo as palavras desse nome lindo
Que tu me deste: «Irmã, So-
ror Saudade...».

E é que realmente a vida inteira da poetisa


é um drama mistérico de saudade, como fi-
Foto de Florbela Espanca
em criança.
lha de «mãe de aluguer» pois o seu pai não
podia conceber com a sua esposa; com os
ASC

70
na literatura portuguesa, talvez
ninguém tenha encarnado a
saudade como fez na sua vida e nos
seus escritos a «musa do Alentejo»,
a poetisa Florbela Espanca

três amores infaustos dos seus três maridos, a rutura com o seu amante, Luís Ca-
bral, alma seleta que sim estava à sua altura; os seus abortos involuntários; a morte
trágica do seu ser mais querido, o seu irmão Apeles; e a rejeição social por ser uma
mulher moderna e livre-pensadora sem tótemes nem tabus.
Exausta por uma doença que a debilitava mais e mais, e porque a vida se tinha
convertido numa tortura já insofrível, escolheu cometer suicídio na sua casa de
Matosinhos, a 8 de dezembro de 1930, o Dia da Imaculada, patrona da vila que a viu
nascer, Vila Viçosa; o mesmo dia do seu nascimento e do seu primeiro matrimónio.
Talvez se tenha sentido como a Albine do «Crime do Padre Mouret», a cristaliza-
ção humana do espantoso jardim encantado que descreve Emile Zola na sua obra.
E é que ambas quiseram o seu cadáver intoxicado pelas flores.
Em Florbela vemos como, desde a sua primeira juventude, nos seus versos a sau-
dade pulsa e banha como a espuma branca e as ondas de um mar, na noite. No seu
caderno de poesias de juventude, «Trocando olhares», diz que bebe «uma saudade
estranha e vaga, / uma saudade imensa e infinita que / triste, me deslumbra e em-
briaga», no seu belíssimo poema «Folhas de Rosa».
E com 19 anos no seu «As quadras d’ele» expressa:

Saudades e amarguras
Tenho eu todos os dias,
Não podem pois adejar
Em meus versos, alegrias.

Saudades e amarguras
Tenho eu todas as horas,
Quem noites só conheceu,
Não pode cantar auroras.

Encontramos essa saudade nesse


amar, mas não saber o quê; ir, mas
não saber onde; na presença de um
destino que não chega a ser abraça-
do; num vazio interior e dor de alma
que não sabemos como encher, nem
ASC

curar; num desterro e necessidade de


retorno a Casa, mas sem a certeza de Livro de Mágoas, 1919, Lisboa. Primeiro
o quê ou quando. livro de poesia de Florbela Espanca.

71
ASC

ASC
Poema manuscrito, 1920. Livro de Soror Saudade, 1923, segunda
obra de Florbela Espanca. Edição da
autora.

Florbela expressa estas sensações e emoções, anseios, ideias e sentimentos, que


constituem a saudade, como numa rede de névoa, já desde os seus primeiros es-
critos de prosa também. Por exemplo, com 21 anos escreve o conto «A Oferta do
Destino» que indica muito bem o mistério da sua alma, demasiado grande para ser
vulgarmente feliz neste mundo.

A OFERTA DO DESTINO
Um dia, o destino, trôpego velho de cabelos cor da neve, deu-me uns sapatos e
disse-me:
- Aqui tens estes sapatos de ferro, calça-os e caminha... Caminha sempre, sem
descanso nem fadiga, vai sempre avante e não te detenhas, não pares nunca!... A
estrada da vida tem trechos de céu e paisagens infernais; não te assuste a escuridão,
nem te deslumbres com a claridade; nem um minuto sequer te detenhas à beira da
estrada; deixa florir os malmequeres, deixa cantar os rouxinóis. Quer seja lisa, quer
seja alcantilada a imensa estrada, caminha, caminha sempre! Não pares nunca!
Um dia, os sapatos hão de romper-se; deter-te-ás então. É que terás encontrado,
enfim, os olhos perturbadores e profundos, a boca embriagante e fatal que há de
prender-te para todo o sempre!
Isto disse-me um dia o destino, trôpego velho de cabelos cor da neve.
Calcei os sapatos e caminhei, O luar era profundo; às vezes, cantavam nas matas
os rouxinóis... Outras vezes, ao sol ardente do meio-dia desabrochavam as rosas,

72
Em Florbela vemos como,
desde a sua primeira
juventude, nos seus versos a
saudade pulsa e banha como
a espuma branca e as ondas
de um mar, na noite

vermelhas como beijos de sangue; as borboletas traziam nas asas, finas como far-
rapos de seda, os perfumes delirantes de milhares de corolas! Outras vezes ainda,
nem uma estrela no céu, nem um perfume na terra, e eu ouvia a meus pés a voz
de algum imenso abismo. Passei pelo reino do sonho, pelo país da esperança e do
amor que, ao longe, banhado pelo sol, dá a impressão duma imensa esmeralda, e vi
também as terras tristes da saudade, onde o luar chora noite e dia! Não me detive
nem um só instante! O coração ficou-me a pedaços dispersos pelos caminhos que
percorri, mas eu caminhei sempre, sem fraquejar um só momento!... Há muito
tempo que ando, tenho quase cem anos já, os meus cabelos tomam-se da cor do li-
nho, e o meu frágil corpo inclina-se suavemente para a terra, como uma fraca haste
sacudida pela nortada. Começo a sentir-me cansada, os meus passos vão sendo
vagarosos na estrada imensa da vida!
E os sapatos inda se não romperam! Onde estareis vós, ó olhos perturbadores e
profundos, ó boca embriagante e fatal que há de prender-me para todo o sempre?!...

E é que se pudéssemos falar de um acorde na saudade, Florbela pulsa cada uma


das suas cordas, cada um dos seus sentimentos:

O da ausência, da necessidade do retorno

Quero voltar! Não sei por onde vim…


Ah! Não ser mais que a sombra duma sombra
Por entre tanta sombra igual a mim!

Amor, dor mística indefinida, como no poema «Anoitecer»

A luz desmaia num fulgor d’aurora,


Diz-nos adeus religiosamente...
E eu, que não creio em nada, sou mais crente
Do que em menina, um dia, o fui... outrora...
(…)

E a esta hora tudo em mim revive:


Saudades de saudades que não tenho...
Sonhos que são os sonhos dos que eu tive...

73
Memória, incompletude, desejo que nunca chega a satisfazer-se, como o de um
íman que sente outro, ou o ferro, mas não pode unir-se a ele.

Bendita seja a desgraça,


Bendita a fatalidade,
Benditos sejam teus olhos
Onde anda a minha saudade.
(«Trocando Olhares»)

E bem sabe Florbela que o Fado é o canto sonoro


próprio da saudade

Corre a noite, de manso num murmúrio,


Abre a rosa bendita do luar...
Soluçam ais estranhos de guitarra...
Oiço, ao longe, não sei que voz chorar...
ASC

Diário do Último Ano foi Há um repoiso imenso em toda a terra,


editado em 1981, 51 anos Parece a própria noite a escutar...
depois da morte da autora. A E o canto vai subindo e vai morrendo
edição, da Livraria Bertrand
Num anseio de saudade a palpitar!...
contou com um prefácio de
Natália Correia.
É o fado. A canção das violetas:
Almas de tristes, almas de poetas,
Pra quem a vida foi uma agonia!

Minha doce canção dos deserdados,


Meu fado que alivias desgraçados,
Bendito sejas tu! Ave-Maria!...

E às vezes, como na mulher, essa saudade arde


em labaredas silenciosas

Quanta paixão e amor às vezes têm


Sem nunca o confessarem a ninguém
Doces almas de dor e sofrimento!
ASC

Paixão que faria a felicidade


As Máscaras do Destino,
Dum rei; amor de sonho e de saudade,
1931, Editora Marânus,
Porto, foi a primeira obra em Que se esvai e que foge num lamento!
prosa da autora. («Trocando Olhares»)

Saudade é em Florbela o amor que murchou, a vida que falseou, os amigos que fo-
ram de gelo, o pai que não a reconheceu ante a lei, a saúde que secou os seus frescos
brotos, a beleza que foi deixando em farrapos, no próprio caminho; a fé perdida, e
inclusive os filhos que não teve porque no seu seio morreram.

74
FILHOS
Filhos são as nossas almas
Desabrochadas em flores;
Filhos, estrelas caídas
No mundo das nossas dores!

Filhos, aves que chilreiam


No ninho do nosso amor,
Mensageiros da felicidade
Mandados pelo Senhor!

Filhos, sonhos adorados,


Beijos que nascem de risos;
Sol que aguenta e dá luz
E se desfaz em sorrisos!

Em todo o peito bendito


Criado pelo bom Deus,
Há uma alma de mãe
Que sofre p’los filhos seus!

Filhos! Na su’alma casta,


A nossa alma revive...

ASC
Eu sofro pelas saudades Retrato de Florbela Espanca,
Dos filhos que nunca tive!... com dedicatória.

Em Florbela parece que a Saudade fora a sua aura, o seu duplo luminoso, co-
mo própria alma de Portugal, e ela canta-lhe nos mais ternos anos do seu livro
«Trocando olhares» um poema que é como um hino, e com o próprio título de
«Saudade».

Autor deste artigo


com a professora
Aurélia Borges.
ASC

75
Oferenda diante do busto de Florbela em
Vila Viçosa, feita por Mariana Esteves,
atual diretora do Grupo de Poesia Florbela
Espanca da Nova Acrópole.

És a filha dileta da noss’alma


Da noss’alma de sonho e de tristeza
Andas de roxo sempre, sempre calma
Doce filha da gente portuguesa!

Em toda a terra do meu Portugal


Te sinto e vejo, toda suavidade
Como nas folhas tristes dum missal
Se sente Deus! E tu és Deus, saudade!…

Andas nos olhos negros, magoados


Das frescas raparigas, Namorados
Conhecem-te também, meu doce ralo!
FOTO DE CARMEN MORALES

Também te trago n’alma dentro em mim,


E trazendo-te sempre, sempre assim,
É bem a pátria q’rida que eu embalo!

Outro filho de Portugal, e da sua Alma, Fernando Pessoa, sentiu-se alma gémea
da poetisa, segundo encontramos no seu famoso baú, numa folha datilografada1 e
com o título «Em memória de Florbela Espanca». E, na verdade, a sua grandeza e
o seu sentir e saudade irmanam-os.

Dorme, dorme, alma sonhadora,


Irmã gémea da minha!
Tua alma, assim como a minha,
Rasgando as nuvens pairava
Por cima dos outros,
À procura de mundos novos,
Mais belos, mais perfeitos, mais felizes.
Criatura estranha, espírito irrequieto,
Cheio de ansiedade,
Assim como eu criavas mundos novos,
Lindos como os teus sonhos,
E vivias neles, vivias sonhando como eu.
Dorme, dorme, alma sonhadora,
Irmã gémea da minha!
Já que em vida não tinhas descanso,
ASC

Se existe a paz na sepultura: «...a vida inteira da poetisa é um drama


A paz seja contigo! mistérico de saudade...»

76
Tive a fortuna de conhecer a última discípula de Florbela, Aurélia Borges, que
escreveu em 1946 a primeira biografia da nossa poetisa. Foi no ano 2014, graças à
professora Severina Gonçalves, e recordo o quão impactante foi, tão frágil como
estava com os seus quase cem anos, ouvi-la recitar Florbela, com uma voz podero-
sa, vibrante, cheia de emoção. Aurélia Borges entregou à Severina, pouco antes de
morrer, seis poemas inéditos de Florbela que tinha guardado como um tesouro, e
que depois a Associação Cultural Nova Acrópole editou com o título «Inéditos: Os
últimos poemas de Florbela Espanca». Poemas que, por serem novidade, nunca,
tristemente, aparecem nas edições de Poemas Completos. Num deles mostra a face-
ta da saudade com que mais podemos identificar Florbela Espanca, que é a condição
do exílio. Saudade tem quem está fora da sua pátria amada, e saudade nas almas
mais despertas, a de quem se sente exilado da sua Casa Celeste.

EXILADA
Quem me pôs dentro de mim esta ânsia ardente
De quão é belo e puro e luminoso
se eu tinha de viver, humanamente,
Prisioneira d’um mundo tormentoso?

Quem me formou um coração fremente,


Torturado, exigente, cobiçoso
D’altura, d’infinito - se, imponente,
Veria limitar meu vôo ansioso?

Ah! Não sou deste mundo! O meu país


Não é este, onde o sonho contradiz
A realidade! Eu sou uma exilada,
ASC

Que um duro engano fez nascer aqui!


Os últimos poemas de Florbela
Tirem-me da prisão onde caí! Espanca, editados pela Nova
Arranquem-me as algemas de forçada! Acrópole.

Muitos, talvez não com tão mística violência, mas com os mesmos gritos e mú-
sica da alma de Florbela, podemos sentir este desterro, esta necessidade de voo,
de altura, de luz e Sol de verdade e beleza. E sentimos assim, ao ouvir os versos de
Florbela, que nos trazem ecos de mundos distantes, como a nossa alma se agita na
sua prisão e clama pela sua liberdade, e sonhamos que na música dos seus poemas
abraçando a sua alma, a alma ainda que cega também voa.

1 Nos documentos classificados como 66 A-39 e 66 A-40 do seu espólio. Ver Dicionário de
Fernando Pessoa e do Modernismo Português, Editora Caminho, 2008.

77
À MEMÓRIA DE FLORBELA ESPANCA

Dorme, dorme, alma sonhadora,


Irmã gémea da minha!
Tua alma, assim como a minha,
Rasgando as núvens pairava
Por cima dos outros,
À procura de mundos novos,
Mais belos, mais perfeitos, mais felizes.

Criatura estranha, espírito irriquieto,


Cheio de ansiedade,
Assim como eu criavas mundos novos,
Lindos como os teus sonhos,
E vivias neles, vivias sonhando como eu.
Dorme, dorme, alma sonhadora,
Irmã gémea da minha!
Já que em vida não tinhas descanso,
Se existe a paz na sepultura:
A paz seja contigo!

– Fernando Pessoa

78
Saudade! gosto amargo de infelizes,
Delicioso pungir de acerbo espinho,
Que me estás repassando o íntimo peito
Com dor que os seios d’alma dilacera,
- Mas dor que tem prazeres - Saudade!
Misterioso númen, que aviventas
Corações que estalaram, e gotejam
Não já sangue de vida, mas delgado
Soro de estanques lágrimas - Saudade!
Mavioso nome que tão meigo soas
Nos lusitanos lábios, não sabido
Das orgulhosas bocas dos Sicambros
Destas alheias terras - Oh Saudade!
Mágico númen que transportas a alma
Do amigo ausente ao solitário amigo,
Do vago amante à amada inconsolável
E até ao triste ao infeliz proscrito
- Dos entes o misérrimo na terra -
Ao regaço da pátria em sonhos levas,
- Sonhos que são mais doces do que amargo,
Cruel é o despertar! - Celeste númen,
Se já teus dons cantei e os teus rigores
Em sentidas endechas, se piedoso
Em teus altares húmidos de pranto
Depus o coração que inda arquejava
Quando o arranquei do peito malsofrido
À foz do Tejo - ao Tejo, ó deusa, ao Tejo
Me leva o pensamento que esvoaça
Tímido e acovardado entre os olmedos
Que as pobres águas deste Sena regam,
Do outrora ovante Sena. Vem, no carro
Que pardas rolas gemedoras tiram,
A alma buscar-me que por ti suspira.

– Almeida Garrett, Camões, 1824

79
Retrato de Teixeira de Pascoaes.
Pintura de Columbano, 1927.
ASC

80
TEIXEIRA
DE
PASCOAES
e a saudade

ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO


Escritor, Historiador e Professor Universitário
(Passagem do Solstício de Inverno de 2023)

81
T
eixeira de Pascoaes anda tão associado ao sentimento da saudade que
dificilmente concebemos um sem o outro. Habituámo-nos a ver em
Pascoaes a personificação moderna da saudade, uma espécie de indi-
vidualização electiva de um sentir comum, e na saudade que nos
foi dada como contemporânea a expressão mesma do poeta. A sua
obra e a saudade fundem-se de forma tão perfeita, criando uma rede de conexões
tão larga, tocando estratos tão fundos, contaminando horizontes tão inesperados e
longínquos, dando origem a uma osmose tão perfeita, que somos levados a pensar
que as duas – obra e saudade – não se distinguem nem estabelecem fronteiras entre
si. São tão-só uma e a mesma coisa.
Não é só porém a obra de Pascoaes que se associa à saudade. A própria vida do
poeta, naquilo que tem de mais íntimo e característico, nos passos que melhor in-
dividualizam a sua biografia e mais a exaltam, cola-se de forma tão indissolúvel à
saudade, com uma solda tão potente, que é como se o poeta tivesse nascido do ven-
tre da saudade e não mais se separasse dela ao longo da sua existência. A saudade foi
para Teixeira de Pascoaes a origem, a mãe, a amante e por fim a morte. Encarnou
todos os rostos possíveis numa metamorfose alucinante e lunar. Deu-lhe a beber
o leite materno e depois o eléctrico solavanco do amor. Por fim, foi ela ainda que
depôs nos lábios envelhecidos do poeta o beijo gelado da morte. A saudade foi para
Pascoaes o eterno feminino na sua obscura e misteriosa transfiguração – única e
secreta obsessão da sua alma, rainha absoluta do seu mundo.

DESSE REINO ETERNO DO MEIO-DIA


Como quer que seja, também Pascoaes teve um período da sua vida em que não
conheceu a saudade. Por inacreditável que isso possa hoje parecer houve um mo-
mento em que o poeta ainda sem ser poeta, ou sendo-o como nunca depois o foi,
ASC

Solar de Pascoaes, Gatão, Amarante, casa do século XVI onde Teixeira de Pascoaes viveu a
maior parte da sua vida e onde morreu em 1952.

82
A SAUDADE FOI PARA TEIXEIRA DE
PASCOAES O ETERNO FEMININO
NA SUA OBSCURA E MISTERIOSA
TRANSFIGURAÇÃO - ÚNICA E SECRETA
OBSESSÃO DA SUA ALMA, RAINHA
ABSOLUTA DO SEU MUNDO

não teve por companhia a musa eleita da saudade a que sempre o vaticinámos – na
vida e na morte. E por impensável que isso possa ser para quem leu as páginas que
ele escreveu sobre a saudade houve um lapso de tempo na sua vida em que ele não
teve qualquer necessidade de verbalizar a saudade. Esta era uma pura não existên-
cia. Não existia para ele – nem como palavra nem como sentir e como pensar. Tal-
vez esse espaço inicial, sem palavras e sem coisas, no que as coisas têm de sentido
e de determinação, reino imaterial e sem fronteiras da primeira idade mágica do
mundo em que tudo é consentido, tenha sido o verdadeiro reino de Pascoaes – o
único em que ele foi rei e senhor. Tudo o resto não passou afinal de um bailado
de sombras e de fantasmas nas paredes espectrais da lembrança desse primeiro
paraíso perdido. No jardim original
onde o Sol esplendece é sempre meio-
-dia. Nesse ponto estático do zénite,
estático e extático, não há lugar para
a saudade – nem mesmo na vida de
Pascoaes, ou sobretudo na dele, já que
ele foi um verdadeiro Rei-Sol desse
castelo encantado da infância.
Não é difícil apontar o momento
em que a saudade chegou à vida de
Pascoaes para nela se instalar de mo-
do tão definitivo e tão absoluto que
chegamos a reescrever retrospecti-
vamente toda a biografia do poeta em
função desse acontecimento. O que é
difícil, isso sim, é avaliar a importân-
cia desse momento. Trata-se na rea-
lidade de um facto insignificante – a
saída da aldeia de Gatão, onde esta-
va o seu palácio maravilhoso, o solar
de todas as prestidigitações, o reino
ASC

fantástico voltado à Serra do Marão, Interior da Casa de Gatão, onde Teixeira


onde ele era Deus absoluto, primeiro de Pascoaes escreveu grande parte da sua
obra. Imagem: capa do álbum A Casa de
indo para o Liceu de Amarante, que o
Teixeira de Pascoaes com texto do jornalista
horrorizou, e depois para a Faculdade Secundino Cunha e fotografias de Sérgio
de Direito da Universidade de Coim- Freitas. Edição Opera Omnia.

83
bra, que não menos lhe repugnou e onde se bacharelou em 1900 e se licenciou no
ano seguinte. Foi essa transição que o mergulhou para sempre na saudade de um
espaço perdido, de um tempo solar revoluto no quadrante de pedra da vida e so-
bretudo de um «Eu» pleno, cheio de dons mágicos e de poderes infinitos, e que
acabou substituído por aquilo que mais tarde ele próprio veio a chamar com fino e
corrosivo humor «o pobre doutor Joaquim», um mero «Eu» social – mísero, mes-
quinho e insignificante. Desse reino eterno do Meio-Dia ficou-lhe só um vestígio,
mas esse de pura prata, a lembrança – essa que acabou por ser o alimento da sua
saudade ao lado de uma esperança não menos ardente de reaver um dia aquilo que
tão inquietantemente se perdera.
É preciso avaliar este momento em que se dá a cisão no mesmo e no único até aí
existente – cisão entre um «Eu» que foi e deixa de ser e um «Eu» que o substitui,
não perdendo dele consciência e tornando-se assim um «Outro» irreconhecível
ao «Eu» que foi. Esse que foi continua sendo o núcleo mais persistente – por mais
arcaico – da personalidade. É verdade que se trata de um facto banal, insignifican-
te, mero passo do processo de socialização que toda a criança sofre, mas no caso de
Pascoaes isso deu lugar a uma necessidade invulgar de verbalização e de dramatiza-
ção, numa total absorção do pensar sobre o facto vivido – e bastará isso para fazer
dele o primeiro grande pioneiro da heteronímia pessoana.

A SAUDADE FOI NO ITINERÁRIO PESSOAL


DE PASCOAES UM ENCONTRO MILAGROSO
QUE LHE PERMITIU TEMPERAR O ABRASIVO
INFERNO DE SOFRIMENTO EM QUE A
TERRA SE LHE REVELOU
SHUTTERSTOCK

Vista da Serra do Marão.

84
UM ABANÃO CÓSMICO
Toda a sua poesia anda desde o início, isto é, desde a composição da primeira
parte da écloga Belo (1896), tinha ele 18 anos, em torno desse facto original que o
cindiu em dois, verdadeiro relâmpago de trevas que o precipitou no mundo e na
História, sem porém lhe roubar a consciência luminosa do drama que em si suce-
dia. Primeiro grande espectador de si mesmo, exorcista de horrores, nunca deixou
de surpreender os mínimos sucessos do seu teatro interior, dando-lhes mais tarde
nesse livro único que é Duplo Passeio (1942) uma direcção xamânica. Leia-se este
terceto final da segunda parte da écloga Belo (1897):

E ver em mim outr’ alma é o que me espanta...


Julgo ter duas almas reunidas,
E esse peso de oiro me quebranta!...»

No poemeto À Minha Alma, do início de 1898, ainda antes de dar a lume o livro
que o consagrou, Sempre (1898), capta em expressão flagrante o desdobramento do
«Eu» em outro, verdadeira experiência de outramento e do que de perda entrópica
definitiva pode haver na saudade:

Quando acaso me vejo, em espírito, sozinho,


Com outro que eu conheço e que eu só sei amar,
Hei saudades de mim, doutro que fui – menino,
Que um dia me disse adeus p’ra nunca mais voltar!

Tal como ele a viveu ao longo do


processo da sua primeira socializa-
ção amarantina e depois coimbrã, a
saudade foi no itinerário pessoal de
Pascoaes um encontro a bem dizer
milagroso que lhe permitiu tempe-
rar o abrasivo inferno de sofrimento
em que a Terra se lhe revelou, encon-
trando uma clareira de alívio e um
purgatório intermédio entre o caste-
lo da sua infância de oiro e o deserto
inóspito de chumbo da vida adulta.
Todo o drama da sua biografia sau-
dosa mora aqui. E se nas conferências
que deu no âmbito da Renascença
Portuguesa e que culminaram na
publicação desse manual cívico que
é Arte de Ser Português (1915), ele
acreditou com íntimo e exaltado fer-
vor que o seu país, um país chamado
Teixeira de Pascoaes numa
por acaso Portugal, só se regeneraria foto de Juventude.
pela saudade, isto ante o pasmo de
ASC

85
um cartesiano puro e deslumbrado como António
Sérgio, tal não deve surpreender, pois para ele era
a própria história da humanidade, o seu destino
universal, que dependia da saudade. Ilusão ou não
de poeta, esta visão tem na base porém o alicerce
concreto e vivido de uma experiência pessoal.
Daí que o momento do nascimento da saudade
na vida de Pascoaes seja como que um abanão cós-
mico que a fracturou em duas metades irreconhe-
cíveis e abalou para sempre as placas tectónicas da
sua existência. Um facto que na realidade parece
hoje banal, a simples partida de um rapazinho da
sua aldeia natal, acabou na verdade da vida do
poeta por representar um cataclismo de dimen-
sões universais, que lhe inspirou depois a bem di-
ASC

Sempre (1898), a obra poética zer tudo o que pensou e escreveu.


que consagrou Teixeira de Para se perceber o alcance geológico e a dimen-
Pascoaes no meio literário são galáctica deste evento basta talvez pensar que
português.
Terra Proibida foi editado pela foi ele que pôs em contacto o poeta com a grande
primeira vez em 1900. História universal, levando-o a biografar, entre
1934 e 1945, figuras como Paulo de Tarso, Napo-
leão Bonaparte, Camilo Castelo Branco e Agosti-
nho de Hipona, tudo personagens históricas que desdobram facetas do seu próprio
drama pessoal. E foi ele ainda, esse mesmo facto sem valor nem significado, o seu
drama original de rapazinho, que lhe forneceu o quadro necessário para traçar o
destino da humanidade desde a remota origem até ao não menos remoto fim nes-
se grande poema de sopro miltónico, mas sem Milton dentro, que é Regresso ao
Paraíso (1912).

A UNIVERSALIZAÇÃO DA SAUDADE
Nos versos incandescentes deste inspirado poema narrativo temos na história
humana a universalização da saudade tal como o seu autor a identificou no seu
próprio drama de menino a adolescer. Por um lado, na prata crepuscular dos dias,
derrama-se a lembrança lacrimosa de tudo o que passou, verdadeira força de re-
trogradação, enquanto no carbúnculo negro da noite, no fundo e gelado nadir,
em virtude mesmo do que a reminiscência preserva, irrompe o desejo em fogo da
aurora, o indício de oiro da esperança e a sua invicta progressão. A saudade é um
resíduo entrópico, triste e doído, cinza parada de um incêndio já extinto, mas é
ainda o único vínculo que subsiste do que se perdeu. É no coração propulsor dessa
cinza que se conserva uma faúlha do fogo inicial. É nela que reside o processo de
regeneração – e é por ela que progride e evolui a aspiração ao que de infinito houve
no que se perdeu. Sobra já apagada, sedimento final, escória sem espessura nem
presença, a saudade é ainda a brasa lucilante e contagiosa que permite e acelera o
«regresso ao paraíso». Um tal regresso é também o encantado e surpreendente
retorno do que morreu e já não se pode ressuscitar nem mesmo esperar.

86
PARA TEIXEIRA DE PASCOAES ERA A
PRÓPRIA HISTÓRIA DA HUMANIDADE,
O SEU DESTINO UNIVERSAL, QUE
DEPENDIA DA SAUDADE

Se o homem não é uma inutilidade num mundo já feito e acabado, mas o constru-
tor de um mundo a fazer, como afirmou Leonardo Coimbra tomando com certeza
por mote a dinâmica ética de Jean-Marie Guyau, é irrecusável que o destino reserva
a esse mesmo humano, quer ele queira ou não, os mais fantásticos vislumbres e as
mais inatendíveis ressurreições. O poder taumatúrgico da saudade reside menos
no esforço da vontade humana do que no inexplicável de uma inaudita aparição.
Todos os factos biográficos que se seguiram na vida de Pascoaes à cisão que lhe
quebrou e cindiu o «Eu» em dois, pondo fim ao reino mágico da sua infância
serrana, dilatam a um ponto que visto de fora se diria insustentável este primor-
dial acontecimento da sua vida pré-adulta que passou assim a ser uma espécie de
protótipo embrionário que tudo determinou à sua vida posterior. E o que depois
se desenrolou no palco de pinho humilde e obscuro da sua vida foi o amor, pri-
meiro como força de uma alta potência paradisíaca que unia o que separado fora,
e depois, quando essa força se mostrou ilusão e o poeta percebeu a sua irreme-
diável soledade, como imagem saudosa que reforçava e amplificava a primordial
separação do «Eu».
Pascoaes teve a desdita, ou porventura a sorte, de um amor tão infeliz, que não
teve outra saída senão namorar na mente a imagem da sua adorada. Pôs assim a
salvo a paixão que sentia, que ficou sempre no altar da sua alma como um fogo
sacro que ele vigiou com todos os cuidados, nunca degenerando num quotidia-
no de traições, mas foi também obrigado a viver uma dolorosíssima e irremissível
solidão, que foi o preço altíssimo que
foi obrigado a pagar pela sua sauda-
de. Sempre só e solteiro, acompanha-
do apenas por um séquito infinito de
descarnados fantasmas, ele foi menos
um homem feito de carne, músculo e
osso do que um espectro de fumo, en-
tre anjo e diabo, que passou a vida em
lutas com o absoluto.

Teixeira de Pascoaes, Hemeroteca


Digital - «Serões: revista mensal
ilustrada», n.º 69 (Mar. 1911).
ASC

87
Desde que se apaixonou no tempo de Coimbra, logo em 1898, ou mesmo ainda
em 1897, por uma menina sua conhecida da Casa da Faia de Amarante, a quem
dedicou os primeiros livros até Terra Proibida (1900), que a sua estranha e negra
sina no amor ficou para sempre traçada. Em Fevereiro de 1898 timbrava ele numa
quadra do poemeto À Minha Alma o drama daquele que para sempre seria o seu
fado de amor, em que à mistura com um sofrimento dilacerante e um desespero
amargo vinha ao de cima um relâmpago miraculoso de aparição luminosa que lhe
revelava todo um novo deslumbramento e o consolava ao menos por um momen-
to da muita lágrima azeda vertida.

Eu sei que me ensinaste a eu saber chorar,


Que fizeste de mim o meu pior amigo...
E a minha solidão desejas-me roubar
Que sempre que estou só, encontro-me contigo!

Este drama amoroso teve depois em 1909 um epílogo quase fatal, que o deixou às
portas da morte, com a obsessiva paixão que sentiu por uma inglesinha que conhe-
ceu na Foz do Porto e o levou a Londres e lhe deu depois como sublimação salvadora
o lucreciano poema, aqui com Lucrécio, chamado Marános.
A única excepção a este processo sublimatório que tanto lhe doeu, mas que
não menos o assombrou de prazeres, foi Senhora da Noite (1909), poema cele-
brante de um raríssimo mas concreto amor carnal e que representou na sua vida
uma trégua momentânea nos duros e solitários combates da saudade – talvez
o único momento em que ele riu descontraído com o riso aceso do inferno sem
para isso necessitar da purgação saudosa de uma hipóstase. Foi esse riso de lume
que Columbano lhe vislumbrou em 1927 no semblante maduro e diabólico e que
para sempre deixou gravado nos clarões vermelhos do retrato que lhe fez. Sem
ele, sem esse lume de trevas, o viático da saudade que Pascoaes teve de atraves-
sar não teria sido tão visceral, tão vivo, como foi.

Regresso ao Paraíso,
segunda edição,
1912, com um
prefácio de Leonardo
Coimbra. «Nos versos
incandescentes deste
inspirado poema
narrativo temos na
história humana a
universalização da
saudade...»
ASC

Em Arte de Ser Português, 1915, Teixeira de Pascoaes


«acreditou com íntimo e exaltado fervor que o seu país,
um país chamado por acaso Portugal, só se poderia
regenerar pela saudade...»
ASC

88
O PODER TRAUMATÚRGICO DA SAUDADE
RESIDE MENOS NO ESFORÇO DA VONTADE
HUMANA DO QUE NO INEXPLICÁVEL DE
UMA INAUDITA APARIÇÃO

NOTA FINAL
Nome poético, ou pseudónimo li-
terário de Joaquim Pereira Teixeira
de Vasconcelos, Teixeira de Pascoaes
nasceu numa rua do centro da então
vila de Amarante, a 2 de Novembro
de 1877. Com poucos meses de ida-
de mudou-se para a freguesia de São
João de Gatão, no termo de Ama-
rante, onde para sempre viveu na
Casa de Pascoaes, aí vindo a morrer
a 14 de Dezembro de 1952. Foi ainda
nessa casa, cuja fundação remon-
tava ao século XVI, que escreveu
quase toda a sua obra em verso e em
prosa. Os seus mais conceituados
leitores consideram a sua obra em

ASC
prosa, que foi largamente traduzi-
Teixeira de Pascoaes num belíssimo desenho
da na Europa central, superior à sua aguarelado de António Carneiro (1923), seu
obra em verso. amigo e companheiro no movimento da
Renascença Portuguesa.

Teixeira de Pascoaes e Raúl


Brandão, com quem escreveu a
quatro mãos, em 1924, a obra
teatral Jesus Cristo em Lisboa.
ASC

89
«E dizem que saudades que matam! Saudades dão
vida; são a salvação de muita coisa que, em seu
pleno gozo e posse pacífica, pereceria de inanição
ou morreria da opressora moléstia da saciedade.»

– Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra, 1846

«Saudade, saudade! palavra tão triste,


E ouvi-la faz bem: Meu caro Garrett, tu
bem na sentiste,
Melhor que ninguém!

Saudades da virgem de ao pé do Mondego,


Saudades de tudo: Ouvi-las caindo da
boca dum Cego,
Dos olhos dum Mudo!

Saudades de Aquela que, cheia de linhas,


De agulha e dedal, Eu vejo bordando
Galeões e andorinhas
No seu enxoval.

Saudades! e canta, na Torre deu a hora


Da sua novena: Olhai-a! dá
ares de Nossa Senhora,
Quando era pequena.

Saudades, saudades! E ouvide que canta


(E sempre a bordar) Que linda!
Quem canta seus males espanta
E eu vou-me a cantar…
....»

– António Nobre, Saudade, SÓ, 1892

90
«Há ainda nos portugueses um sentimento ... que
nasceu do casamento do Paganismo greco-romano
com o Cristianismo judaico, o qual tomou na nossa
língua uma forma verbal sem equivalente nas outras
línguas. Refiro-me à Saudade… Saudade é o desejo
da Coisa ou Criatura amada, tornado dolorido pela
ausência. O Desejo e a Dor fundidos num sentimento
dão a Saudade. Mas a Dor espiritualiza o Desejo e o
Desejo, por sua vez, materializa a Dor. O Desejo e a Dor
penetram-se mutuamente, animados da mesma força
vital, e precipitam-se depois num sentimento novo,
que é a Saudade. Pelo Desejo a Saudade descende do
sangue ariano, e pela Dor, do sangue semita. Desta
forma os dois grandes ramos étnicos que deram
origem a todos os povos europeus, encontraram na
Saudade a sua suprema síntese espiritual. E quando
digo Saudade, digo alma portuguesa. Nascendo ela
do casamento do Desejo carnal ou pagão com a Dor
espiritual ou cristã, a Saudade é também a Tristeza e a
Alegria, a Luz e a Sombra, a Vida e a Morte. Ampliada
à Natureza, a Saudade é a própria alma universal, onde
se realiza a unidade de tudo quanto existe. Está-se
a perceber a religião e a filosofia que ela contém....
Mas para além desta parte definida e revelada da
Saudade, prolonga-se ainda indefinidamente a sua
parte misteriosa, transcendente, ainda inatingível,
que constitui a mais alta Divindade do seu ser».

– Teixeira de Pascoaes,
o Espírito Lusitano ou o Saudosismo, 1912

91
ASC

Carolina Michaëlis, 1876.

92
CAROLINA
MICHAËLIS
DE VASCONCELOS
Uma prussiana com
coração português

ALBERTO DE FRUTOS
Jornalista e escritor

93
A
obra de Carolina Michaëlis de Vasconcelos (1851-1925) encarna o
amor à palavra que corre nas veias da filologia. Romanista ilustre,
inovou no estudo e na compreensão da literatura portuguesa, apesar
de ter nascido e sido educada em Berlim. Casada com um português,
viveu no Porto e em Coimbra e teorizou sobre a saudade num ensaio
que, mais de cem anos depois da sua publicação, mantém intacto o seu interesse.
«Não nego sequer que a saudade seja um traço distintivo da psique melancólica
portuguesa e das suas manifestações musicais e líricas, muito mais do que aSehn-
sucht é caraterística da alma germânica.» Quem escreveu isto, Carolina Michaëlis
de Vasconcelos, conhecia bem os dois anseios da saudade: o português e o alemão.
Afinal, ela era natural de Berlim, então capital da Prússia, onde nasceu em 1851,
filha de um professor de matemática, Gustav Michaëlis, e de Henriette Louise Lo-
beck, que morreu quando ela tinha doze anos.
Apaixonado pela ortografia e pelos sistemas fonéticos, o pai introduziu Carolina
nas línguas românicas e ela deu amplas provas do seu talento na Luisenschule, uma
«escola para raparigas» onde foi educada até aos dezasseis anos e onde cultivou a
amizade da pedagoga feminista Helene Lange e do professor Carl Goldbeck, a quem
dedicou o seu livro Studien Zur Romanischen Wortschöpfung.
A jovem Michaëlis sentia-se em casa nestes círculos intelectuais e, ao mesmo
tempo que aprofundava o estudo das línguas românicas e se familiarizava com as
línguas eslavas e semíticas, conviveu com o contador de histórias Jakob Grimm, o
naturalista Alexander von Humboldt e o cronista Karl August Varnhagen von En-
se, todos eles frequentadores assíduos
das reuniões em casa dos pais. Outra
Michaëlis, a sua irmã mais velha Hen-
riette, não ficou para trás: a sua pai-
xão pela lexicografia deu origem aos
dicionários Michaëlis Alemão-Portu-
guês, ainda hoje uma referência para
as crianças em idade escolar.
Com esta formação, Carolina pas-
sou rapidamente da teoria à prática:
trabalhou como revisora de textos
espanhóis e portugueses na editora
Brockhaus e como intérprete e tradu-
tora para a Câmara Municipal da sua
cidade e para o Ministério dos Negó-
cios Estrangeiros da Prússia, além de

Carolina Michaëlis de Vasconcellos


com seus netos mais velhos, Manuel e
Joaquim Ernesto (1911).
ASC

94
«NÃO NEGO QUE A SAUDADE SEJA
UM TRAÇO DISTINTIVO DA PSIQUE
MELANCÓLICA PORTUGUESA E DAS SUAS
MANIFESTAÇÕES MUSICAIS E LÍRICAS ...»

escrever os seus primeiros artigos para revistas da especialidade. Mas uma coisa
era o ensino secundário, outra era o ensino superior. Durante a minha juventude»,
escreveu, «a entrada na universidade era estritamente proibida às mulheres aca-
démicas, mesmo em Berlim, a minha cidade natal, a metrópole da Intelligentsia.
No entanto, nenhuma barragem conseguia parar a torrente de vocação e sabedo-
ria de quem, como recordou o político e advogado português Guilherme d’Oliveira
Martins num artigo recente, foi a primeira mulher professora numa universidade
portuguesa. E isso, tendo nascido em Berlim, sem ter pisado uma sala de aula da
alma mater na sua juventude e sem nunca ter obtido um diploma.
Tendo como bandeira o autodidatismo e incentivada por professores que acre-
ditavam no seu enorme potencial, Carolina submeteu vários contributos à revista
portuense Bibliografia Crítica de História e Literatura, criada com o objetivo
de garantir que Portugal não ficasse para trás no «grande movimento científi-
co europeu (...), especialmente nas
ciências históricas e filosóficas».
Através das suas páginas, tomou co-
nhecimento da polémica tradução
para português do Fausto de Goethe
que António Feliciano de Castilho
tinha concebido em 1872 e fez eco
do debate que a chamada «questão
faustiana» tinha gerado em Portu-
gal, pondo em causa a competência
do referido tradutor. Foi assim que
Carolina conheceu o protagonista
desta querela, o germanista, musicó-
logo e historiador de arte Joaquim de
Vasconcelos, com quem trocou uma
animada correspondência antes de
se casarem em Berlim, em 1876.

Carolina Michaëlis de Vasconcellos,


num grupo de família.
ASC

95
UMA NOVA PÁTRIA
Aos vinte e cinco anos, Carolina Michaëlis troca assim o clima e a arquitetura
do seu país natal pelos do seu marido. Depois de passar por Itália, Áustria, Suíça,
Dinamarca, França e Espanha, de onde o pretendente Carlos de Borbón y Austria-
-Este se tinha despedido com um sonoro «voltarei», o casal chega ao Porto, onde
a jovem dá à luz o seu único filho, Carlos Joaquim.
Foi uma mudança radical, uma vez que, como salientou o especialista Yákov Mal-
kiel, os recursos académicos daquela cidade não se comparavam aos da sua Berlim
natal, nem a sua antiga biblioteca aos da sua nova casa na Rua de Cedofeita. No
entanto, estas limitações fizeram-na concentrar-se na língua e literatura portugue-
sas, com colegas da estatura de Teófilo Braga e Adolfo Coelho. E não abandonou os
seus estudos hispânicos, que a levaram a publicar em Leipzig o Romancero del Cid
e Tres flores del teatro antiguo español ( a sua correspondência com o polígrafo
Ramón Menéndez Pidal mereceria um capítulo à parte).
Como recordaria o presidente da Real Academia Galega, Manuel Casas Fernández,
«foi ela quem principalmente demonstrou a existência de uma poesia lírica popu-
lar anterior aos trovadores» e quem provou «essa pré-existência no seu formidá-
vel Cancioneiro da Ajuda», cuja edição crítica em dois volumes, apresentada em
1904, continua a ser uma referência obrigatória para a assimilação da poesia lírica
galaico-portuguesa.
Mas não imaginemos Carolina isolada numa torre de marfim ou entrincheirada
numa biblioteca atrás de milhares de volumes. A literatura contemporânea nunca
lhe foi alheia, nem as desgraças da sua sociedade, marcada, por exemplo, pelos
elevados níveis de analfabetismo, que ela tentou atenuar com várias obras sobre
a aprendizagem das primeiras letras. O eco da feminista Helene Lange, sua ami-
ga de longa data, ressoa também nas suas cartas e artigos, como os que publicou
por ocasião do Congresso Feminista de Berlim de 1896, nos quais, como explica a
ASC

Rua Carolina Michaëlis em Berlim, Alemanha.

96
professora Maria Manuela Gouveia Delille, se mostrava «ex-
traordinariamente bem informada sobre as más condições
de vida das mulheres portuguesas». É de salientar, no
entanto, que era uma feminista conservadora, alheia ao
movimento sufragista.
À procura da alma do seu país de adoção, a estudiosa
acabaria por se impregnar dessa terna saudade a que, em
1914, dedicou um dos seus mais raros e luminosos estudos,
A saudade portuguesa. Divagações filológicas e literar-his-
tóricas em volta de Inês de Castro e do cantar velho ‘Sau-
dade minha - quando te veria’?
A obra centrou-se, por um lado, na figura de Inês
de Castro, rainha póstuma de Portugal, cujos «amo-
res e catástrofes» foram cantados por Luís de Ca-
mões em Os Lusíadas e Luis Vélez de Guevara em
Reinar después de morir, e, por outro, nesse
«sentimento agridoce», nessa «alegria da

ASC
dor» que parece estar inscrita nos genes
dos nossos irmãos portugueses.

HONRAS E DORES
Segundo a professora Maria Manuela
Gouveia Delille, os anos no Porto, en-
tre 1876 e 1912, foram os mais férteis
da sua carreira. Para além da já men-
cionada edição crítica do Cancioneiro
da Ajuda, há que acrescentar as suas
Glosas marginais ao Cancioneiro Me-
dieval Português, os seus estudos so-
bre o poeta e dramaturgo renascentista
Francisco Sá de Miranda e os seus tra-
balhos, em alemão e português, sobre
Luís de Camões, entre outros.
Três doutoramentos honoris causa
(Freiburg im Breisgau, 1893;Coimbra,
1916; e Hamburgo, 1923), a insígnia da
Ordem de Santiago da Espada, atribuí-
da em 1901 por iniciativa da Rainha D.

Busto de Carolina Michaëlis, colocado


no recinto da Escola Secundária com
o seu nome, no Porto.

97
[Saudade é a] lembrança de se ter
gozado de um tempo passado,
que não voltará mais; a pena de
não gozar no presente, ou de só
gozar na lembrança; e o desejo e a
esperança de voltar no futuro a
esse estado antigo de felicidade.
—Carolina Michaëlis (1851-1925) A
Saudade Portuguesa

Amélia, esposa de Carlos I de Portugal, a sua admissão na Academia das Ciências


de Lisboa, em 1911, e a presidência honorária do Conselho Nacional das Mulheres
Portuguesas, em 1914, foram apenas alguns dos galardões conquistados por uma
mulher a quem os homens tinham batido com a porta da universidade.
Nomeada professora da Faculdade de Letras de Lisboa em 1911, deixou passar esse
comboio porque, em 1912, foi distinguida com o grau de mestre na Universidade de
Coimbra, onde leccionou várias disciplinas de Filologia Portuguesa e Românica e
de Alemão. Naturalmente, a docência retirava tempo à investigação, e a sua saúde
não era boa nos últimos anos. A sua maior mágoa, porém, foi a Grande Guerra,
que a obrigou a regularizar a sua situação no país após a publicação dos decretos
que previam a expulsão dos súbditos alemães de Portugal e dos seus territórios e
a anulação das naturalizações. «O espinho que me enterraram na carne ainda me
dói», reflecte numa carta. O refúgio dos livros foi o seu «remédio universal» nesse
transe e, até à sua morte, não deixou de abrir os olhos de leito-
res e discípulos para a obra dos seus queridos Gil Vicente
e Luís de Camões.
A professora faleceu com setenta e quatro anos de
idade, a 16 de novembro de 1925, e foi sepultada
no cemitério de Agramonte, no Porto. Com ela
desaparecia, nas palavras do Professor Wilhelm
Storck, «a mulher mais sábia do seu tempo».
Oito anos após a sua morte, em 1933, a Revis-
ta da Universidade de Coimbra dedicou-lhe
um volume de 1.156 páginas, Miscelânea de
estudos em honra de D. Carolina Michaëlis,
professora da Faculdade de Letras da Univer-
sidade de Coimbra. Hoje, uma escola no Porto
tem o seu nome.

Retrato de Carolina Michaëlis, a


primeira mulher catedrática numa
Universidade portuguesa.
ASC

98
SAUDADE, UMA RELIGIÃO NACIONAL
N
o contexto do «saudosismo» impulsionado pelo escritor Teixeira de Pas-
coaes, um movimento de cariz tradicionalista e neorromântico, Carolina de
Michaëlis, no seu ensaio A saudade portuguesa, descreve os versos que Luis
Vélez de Guevara pôs na boca de Inês de Castro no seu drama do Século de Ouro,
Reinar antes de morrer:

«Diz o pensamento,
porque só ele o sente,
adorado ausente,
o que eu por ti sinto.
MInha pena e tormento
troco a contento
com doce alegria:
Saudade minha,
quando vos veria?

A autora prossegue argumentando que já


no século XVI a saudade era considerada
em Portugal «quase como uma filosofia ou
uma religião nacional».
Numa extraordinária pesquisa etimológica,
Carolina liga a saudade à redenção ou sal-
vação da alma, segue e traça a sua evolu-
ção e examina palavras como «saudoso»,

ASC
apurando este conceito que, de certa for-
ma, designa «o vazio nostálgico ou o peso Rua da Saudade, em Lisboa, 1902.
esmagador que, nas ausências, dilata ou
oprime o coração humano».
Para a prussiana, não é verdade que as outras nações desconheçam este sentimento.
Termos como o galego «morrinha» (oh, a nossa Rosalía de Castro ou os Aires da miña
terra de Curros Enríquez), o asturiano «senhardade», o catalão «anyoransa» e, claro , a»-
Sehnsucht» alemã respondem a uma emoção semelhante. Quem não experimentou em
algum momento «a lembrança de ter desfrutado de um tempo passado que não mais
voltará, a pena de não o desfrutar no presente ou de desfrutar apenas da lembrança; e
o desejo e a esperança de voltar a esse antigo estado de felicidade no futuro»?
A saudade transpõe-se para a literatura portuguesa no tema «morrer de amor»,
partilhado por clássicos como a Consolação de Israel do judeu Samuel Usque, os
seis volumes das Saudades da Terra de Gaspar Frutuoso, as rimas de Camões ou
as Cartas da monja portuguesa de Mariana Alcoforado, bem como os textos de
Almeida Garrett, entre outros.
Lida na perspetiva atual, A saudade portuguesa continua a ser uma obra filológica
de primeira ordem, um trabalho de maturidade que se completou com uma segunda
edição, revista e aumentada, em 1922. As suas quarenta páginas de notas revelam
os vastos e diversificados interesses literários e históricos da autora. «Divagações»,
lê-se no subtítulo do ensaio, sim, mas divagações ponderadas, servidas com a cla-
reza de uma grande mestra. «Será que Carolina Michaëlis foi o misterioso símbolo
do saudosismo germânico enxertado no génio lírico da nossa raça?», perguntava-
-se um atónito Manuel Casas Fernández. E porque não? Muitas vezes, aqueles que
melhor nos conhecem são os que nos olham de fora.

99
SHUTTERSTOCK

«...a relação
entre Pessoa e
FAMÍLIA PESSOA

o saudosismo
é complexa e
multifacetada...»
SHUTTERSTOCK
SHUTTERSTOCK
Saudade e Saudosismo em
FERNANDO
PESSOA
NUNO RIBEIRO
Investigador pessoano do Instituto de
Estudos de Literatura e Tradição.
Universidade Nova de Lisboa

SHUTTERSTOCK

GETTY

101
A
obra de Fernando Pessoa constitui-se como um marco da recepção
das temáticas subjacentes ao movimento saudosista. A presença
da temática da saudade e do saudosismo verifica-se tanto ao longo
dos escritos publicados em vida por Pessoa, quanto nos que ficaram
inéditos no espólio pessoano à data da morte do autor em 1935. No
entanto, a relação entre Pessoa e o saudosismo é complexa e multifacetada. Se, por
um lado, constatamos na obra do poeta e pensador português uma revalorização de
elementos subjacentes à mundividência saudosista, por outro lado, encontramos
também em alguns textos um distanciamento crítico. A recepção do saudosismo
na obra pessoana tem, nesse sentido, três momentos fundamentais que nos possi-
bilitam compreender as relações de proximidade e de distanciamento crítico face
ao ideário saudosista.
Um primeiro momento importante para a caracterização da relação entre Pes-
soa e o saudosismo corresponde à publicação, em 1912, dos artigos sobre a nova
poesia portuguesa em A Águia, revista que se constitui como órgão da Renascença
Portuguesa e palco de exposição e debate das teses saudosistas. Neste momento
da recepção do saudosismo na criação literária pessoana encontramos um com-
prometimento do poeta e pensador português com as ideias caracterizadoras do
saudosismo. No primeiro dos artigos de Pessoa publicado na revista A Águia, com
o título «A Nova Poesia Portuguesa Sociologicamente Considerada», existe uma
importante afirmação acerca de Teixeira de Pascoaes, o arauto do saudosismo, no
contexto da análise das teses relativas ao surgimento de um período máximo na
literatura portuguesa e ao consequente aparecimento de um supra-Camões:

Vistos estes elementos sociológicos do problema, salta aos olhos a inevi-


tável conclusão. É ela a mais extraordinária, a mais consoladora, a mais
estonteante que se pode ousar esperar. É ela de ordem a coincidir abso-
lutamente com aquelas intuições proféticas do poeta Teixeira de Pascoaes
sobre a futura civilização lusitana, sobre o futuro glorioso que espera
a Pátria Portuguesa. Tudo isso, que a fé e a intuição dos místicos deu a
Teixeira de Pascoaes, vai o nosso raciocínio matematicamente confirmar.
(A Nova Poesia Portuguesa Sociologicamente Considerada, 1912)

Esta afirmação relativa a Teixeira de Pascoaes constitui-se como particularmente


relevante tendo em consideração o papel de Pascoaes enquanto fundador do ideário
saudosista. Numa apreciação literária de Fernando Pessoa lemos a seguinte afirma-
ção a respeito da relevância da temática da saudade em Pascoaes: «Se há coisa que
Pascoaes tenha dito e repetido é que a palavra saudade tem para ele um sentido

Talvez Caeiro proceda de Pascoaes;


mas procede por oposição, por
reacção. Pascoaes virado do
avesso, sem o tirar do lugar onde
está, dá isto – Alberto Caeiro
102
ASC
Documento de Espólio de Pessoa sobre Pascoais e a saudade. (BNP/E3, 143 – 76r).

muito largo, (…). O mais que o podem acusar – qualquer filólogo – é de ter dado a
uma palavra uma extensão que ela não tem» (BNP/E3, 143 – 76).
Um segundo momento importante da relação entre Fernando Pessoa e o saudosis-
mo corresponde ao período posterior a 8 de Março de 1914, correspondente ao mítico
«dia triunfal» em que, de acordo com a carta sobre a génese dos heterónimos de 13
de Janeiro de 1935, Pessoa diz ter criado os seus três heterónimos: Alberto Caeiro,
Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Este momento da recepção do saudosismo em Pes-
soa é caracterizado por um movimento de diálogo crítico do autor português face ao
ideário saudosista, em que se reconhece a importância do movimento saudosista,
mas em que ao mesmo tempo se apontam as limitações a esse movimento.

DIÁLOGO DE PESSOA COM O SAUDOSISMO


No campo da criação heteronímica pessoana, a obra de Alberto Caeiro constitui-
-se como o exemplo de diálogo crítico com o saudosismo de Teixeira de Pascoaes.
Num trecho redigido na sequência de um fragmento destinado ao prefácio de uma
tradução para inglês da poesia de Caeiro, lemos que apesar de Caeiro partilhar com
Pascoaes uma atitude metafísica e naturalista face à natureza, a criação poética do
heterónimo pessoano constituir-se-ia como a inversão dos fundamentos metafísi-
cos presentes no pensamento do autor saudosista. A poesia de Caeiro seria, desse
modo a atitude metafísica e naturalista de Pascoaes «virada do avesso», como le-
mos no seguinte trecho:

Caeiro e Pascoaes.
Tanto Caeiro como Pascoaes encaram a Natureza de um modo directa-
mente metafísico e místico, ambos encaram a Natureza como o que há
de importante, excluindo ou quase excluindo o Homem e a Civilização,
e ambos, finalmente, integram tudo o que cantam nesse sentimento na-
turalista. Esta base abstracta têm de comum: mas no resto são, não dife-
rentes, mas absolutamente opostos. Talvez Caeiro proceda de Pascoaes;
mas procede por oposição, por reacção. Pascoaes virado do avesso, sem
o tirar do lugar onde está, dá isto – Alberto Caeiro. (BNP/E3, 21 – 89)

103
ASC

Documento de Espólio de Pessoa sobre Caeiro e Pascoais. (BNP/E3, 21 – 89r).

Contudo, para se compreender de um modo mais aprofundado o diálogo crítico


de Pessoa com o saudosismo, no segundo momento da recepção pessoana do mo-
vimento saudosista, é necessário ter em consideração os textos pessoanos relativos
a Orpheu, uma revista modernista que teve dois números publicados em 1915, e ao
sensacionismo, um movimento literário modernista criado por Pessoa.
Num fragmento destinado a um artigo crítico sobre a revista Orpheu encontramos
a explícita afirmação do saudosismo como um dos movimentos, a par do simbolismo,
do cubismo e do futurismo, que se encontra na base dos princípios basilares subja-
centes à atitude estética do grupo do Orpheu, tal como lemos no seguinte trecho:

A nova corrente literária portuguesa, que há algum tempo se tem vin-


do esboçando, sem contudo se reunir e se concentrar, apareceu agora
em revista, Orpheu. Não é fácil dar em poucas palavras ideia do que
sejam os princípios basilares, extraordinariamente novos e perturba-
dores, desta corrente literária. Partindo em parte do simbolismo, em
parte do saudosismo português, um pouco também, sem dúvida, do
cubismo e do futurismo, esta corrente consegue, porém, realizar uma
novidade, e através das várias modalidades apresentadas pelos seus di-
versos poetas e prosadores, pouca relação parece ter com as correntes
de que parte. (BNP/E3, 144 – 3)

No entanto, apesar de Pessoa reconhecer o saudosismo como um dos movimen-


tos que se encontra na base do ideário estético da revista Orpheu, constatamos ao
longo dos fragmentos sobre essa revista inúmeros trechos que estabelecem uma de-
marcação entre a atitude saudosista e o ideário dos membros de Orpheu. É isso que
verificamos no seguinte trecho, onde Pessoa caracteriza o saudosismo enquanto um
movimento fechado dentro de um conceito artístico estreito, que apenas pretende
ser português, por contraposição à atitude internacionalista da escola de Orpheu:

Ao contrário do saudosismo, que está fechado dentro de um conceito


artístico, que nos seus criadores é com certeza elevado, mas que é es-
treito como pensamento humano e sobretudo como pensamento mo-
derno, porque é pensamento que não pretende ser senão português,
a escola de «Orpheu» (não sabemos se ela tem um nome) é interna-
cionalista por excelência, resulta de uma síntese de todas as correntes
modernas, e de alguma coisa mais, que lhe é próprio, e que é onde
consiste o seu maior valor e interesse. (BNP/E3, 87 – 45)

104
TORRE DO TOMBO

Fernando Pessoa e Augusto Ferreira Gomes, descendo o Chiado. 1925.

105
Assim, a principal demarcação que Fernando Pessoa estabelece entre o ideário
saudosista e a atitude estética dos membros de Orpheu reside no carácter regiona-
lista do movimento saudosista por oposição à atitude cosmopolita e englobante de
todas as correntes subjacente ao grupo de Orpheu. Lemos nesse sentido o trecho
de um fragmento intitulado «Inquérito Literário»:

Mas faltavam, e faltam, à «Renascença Portuguesa», ou, melhor di-


zendo, ao saudosismo, os característicos distintivos duma corrente
literária máxima. Propriamente falando o saudosismo é um regionalis-
mo em ponto grande; não é um nacionalismo propriamente tal. É tal-
vez mais um provincialismo do que outra cousa qualquer. Distancia-se
absolutamente de todas as correntes portuguesas que o têm precedido
em toda a história literária de Portugal, mas peca por tacanhez e es-
treiteza dentro do próprio âmbito de sistema literário. […]
Ao contrário do saudosismo, a Escola de Lisboa pretende incluir den-
tro de si todas as escolas e correntes passadas e, por sua virtuali-
dade própria, transcendê-las. Ela pretende, em especial incluir (1)
os elementos metafísicos do saudosismo, isto é, a estética panteís-
ta do avizinhamento das Coisas da nossa interpretação delas; (2) os
elementos metafísicos (e estéticos) do decadentismo e simbolismo.
(BNP/E3, 142 – 12)

Nos escritos relativos ao sensacionismo – um movimento estético criado por


Fernando Pessoa tendo por base a sensação como realidade fundamental – en-
contramos também uma reapreciação crítica de elementos presentes no pensa-
mento saudosista. Numa lista do espólio de Pessoa intitulada «Opiniões da Nova
Geração» encontramos, desde logo, o Saudosismo e o Sensacionismo listados em
conjunto com outros movimentos estéticos surgidos no contexto do modernismo
português:

Opiniões da Nova Geração:


1. O Saudosismo. (Leonardo Coimbra ou Pascoaes).
2. O Integralismo Lusitano. (João de Amaral).
3. O Bizantinismo. (Luiz de Montalvor).
4. O Vertiginismo. (Raul Leal).
5. O Futurismo. (José de Almada-Negreiros).
6. O Sensacionismo. (Fernando Pessoa).
7. O Neo-Paganismo. (António Mora).
8. O Classicismo...... (algum poeta ou crítico a descobrir).
(BNP/E3, 48B – 78)

Não há no sensacionismo um
poema que iguale a surpreendente
Elegia de Pascoaes

106
ASC
Documento de Espólio de Pessoa intitulado «Opiniões da Nova Geração».
(BNP/E3, 48B – 78r).

Num texto, redigido por Pessoa originalmente em francês destinado à divulgação


do sensacionismo no estrangeiro, lemos também a seguinte afirmação:

Não há no sensacionismo um poema que iguale a surpreendente Elegia


de Pascoaes. Mas, em contrapartida, não há no saudosismo obras tão
perfeitas, tão complexas como o Marinheiro de Fernando Pessoa e A
Grande Sombra do Mário de Sá-Carneiro.
O saudosismo já está no começo de sua adolescência. O sensacionismo
está apenas na sua primeira infância.
[Il n’y a pas dans le sensationnisme de poème qui égale l’étonnante
Élegie de Pascoaes. Mais, par contre, il n’y a pas dans le saudosismo
d’oeuvres aussi parfaites, aussi complexes que Le Matelot de Fernando
Pessoa et La Grand Ombre de Mário de Sá-Carneiro.
Le saudosismo est dejá au commencement de son adolescence. Le sen-
sationnisme n’est que dans sa première enfance. (BNP/E3, 88 – 29)]

Apesar de estes elementos se constituírem como indícios da revalorização do


pensamento saudosista no âmbito das considerações relativas ao movimento
sensacionista, encontramos, porém, no contexto dos escritos pessoanos sobre o
sensacionismo uma pormenorizada demarcação entre a atitude estética sensa-
cionista – que viria a servir de base a Pessoa para a consolidação do movimento
de Orpheu – e o ideário saudosista, tal como se pode constatar no seguinte texto
que apresenta sumariamente em seis pontos as diferenças entre o saudosismo e o
sensacionismo:

107
As diferenças entre o saudosismo e o sensacionismo indicam-se em
poucas palavras:
(1) O saudosismo subordina a arte a uma preocupação patriótica e
religiosa; o sensacionismo põe a arte acima de tudo.
(2) O saudosismo proclama como verdadeira uma determinada doutri-
na, ou visão estética; o sensacionismo proclama verdadeiras todas as
doutrinas e visões estéticas – clássicas, românticas, simbolistas, futuris-
tas –; exige-lhes apenas que sejam doutrinas estéticas, visões artísticas.
(3) O saudosismo apoia-se não só numa religião, mas também numa
metafísica. O sensacionismo apoia-se em todas as metafísicas.
(4) O saudosismo tem perante as coisas uma atitude moral; o sensa-
cionismo apenas uma atitude estética. Por exemplo uma árvore, para o
saudosista é uma irmã sua; para o sensacionista é, ou não é, conforme
lhe convenha ao que quer dizer.
(5) O saudosismo e o sensacionismo têm de comum o julgarem-se
interpretadores da alma nacional. Mas o saudosismo supõe que a alma
é essencialmente mística; o sensacionismo que ela é essencialmente
cosmopolita, sintética e pagã.
(6) O saudosismo procura fundir o paganismo e o Cristianismo. O Sen-
sacionismo põe de parte o Cristianismo; procura apenas transcenden-
talizar o paganismo. (BNP/E3, 144X – 54v-55r)

SEBASTIANISMO E QUINTO IMPÉRIO


Um terceiro momento da relação entre Fernando Pessoa e o saudosismo cor-
responde ao impacto das temáticas saudosistas nos textos sobre sebastianismo
e Quinto Império, em que o poeta e
pensador português defende um fu-
turo glorioso para Portugal enquan-
to império cultural. Este momento é
caracterizado por uma revalorização
do saudosismo. Os textos relativos
ao sebastianismo são aqueles onde,
muito provavelmente, a reapropria-
ção do ideário saudosista se faz sentir
com maior força no âmbito dos escri-
tos pessoanos. Com efeito, lemos o
seguinte trecho a respeito da relação
entre o saudosismo e o sebastianismo:

Documento de Espólio de Pessoa


sobre as diferenças entre saudosismo e
sensacionismo.
(BNP/E3, 144X – 54v).
ASC

108
TORRE DO TOMBO

Fernando Pessoa em Lisboa


nos anos de 1930.

109
Qualquer estudioso da nossa nova poesia, que não haja sido educado
ausentemente, em França ou pseudo-França, constata sem custo e por
intuição imediata, uma semelhança curiosa entre estes dois factos reli-
giosos da vida nacional – os únicos dois factos religiosos que são real-
mente nacionais – Sebastianismo e Saudosismo. (BNP/E3, 142 – 20)

Ainda a respeito da religião da saudade enquanto a mais elevada forma de fé lusi-


tana, encontramos as seguintes considerações que nos apresentam o sebastianismo
e o saudosismo como estádios da fé lusitana:

A religião da saudade é a mais alta forma da fé lusitana, porquanto é a


alma da raça, e já não de um indivíduo da raça, feito objecto da fé. É
messiânica.
Os estádios da fé lusitana: (1) estádio católico (2) estádio sebastianista
(3) estádio Saudosista.
_______
O «mito da grandeza futura» contido no sebastianismo.
(BNP/E3, 15B1 – 26v)

No entanto, para se compreender a reapropriação do saudosismo no âmbito do


pensamento sebastianista pessoano é necessário ter em consideração aquilo que
Pessoa nos diz no texto «Sebastianismo – sua Renascença», no qual encontramos
uma apresentação do sebastianismo enquanto potenciador de um alargamento do
ASC

ASC

Documento do Espólio de Pessoa sobre Documento do Espólio de Pessoa sobre


sebastianismo e saudosismo. sebastianismo e saudosismo.
(BNP/E3, 142 – 20r). (BNP/E3, 15B1 – 26v).

110
Fernando Pessoa com
Costa Brochado no Café

TORRE DO TOMBO
Martinho da Arcada, Praça
do Comércio, Lisboa, 1914.

elemento saudosista subjacente ao desenvolvimento sebastianista em Portugal. É


justamente isso que encontramos expresso nos pontos 4, 5 e 6 do texto «Sebastia-
nismo – sua Renascença»:

4. O movimento saudosista e a sua base sebastianista. O saudosismo


está criando a base intelectual e moral ao sebastianismo, puramente
popular.

5. Como implantar o sebastianismo? Se ele tiver de se implantar apare-


cerá quem o pregue. Mas qual deve ser a acção dos intelectuais? Tripla:
(l) atacar o catolicismo, mas atacá-lo sempre com a insinuação do ele-
mento nacional, sempre lembrado, nos interstícios do ataque, a figura
nacional de D. Sebastião; (2) criar a atmosfera moral necessária ao sau-
dosismo, base do sebastianismo; (3) alargar a acção deste.

6. A divinização da Saudade. Pascoaes está


criando maiores coisas, talvez, do que ele
próprio mede e julga. A alma lusitana está
grávida de divino.
(BNP/E3, 125A, 84v)

Os três momentos da recepção do saudosismo


em Fernando Pessoa, apresentados neste artigo,
constituem-se como a evidência da natureza plural
e multifacetada da reavaliação das temáticas sau-
dosistas no contexto da obra de Fernando Pessoa,
o que nos possibilita considerar que o pensamen-
to saudosista, não obstante as reservas críticas da
parte de Pessoa, se constitui como um elemento Fernando Pessoa é
TORRE DO TOMBO

considerado o Poeta Maior


fundamental para a criação poética e reflexão teó-
da Língua Portuguesa.
rico-literária do poeta e pensador português.

111
Quando o sol vai caindo sobre as águas
Num nervoso delíquio d`oiro intenso,
Donde vem essa voz cheia de mágoas
Com que falas à terra, ó mar imenso?

Tu falas de festins, e cavalgadas


De cavaleiros errantes ao luar?
Falas de caravelas encantadas
Que dormem em teu seio a soluçar?

Tens cantos d`epopeias? Tens anseios


D`amarguras? Tu tens também receios,
Ó mar cheio de esperança e majestade?!

Donde vem essa voz, ó mar amigo? ...


... Talvez a voz do Portugal antigo,
Chamando por Camões numa saudade

– Florbela Espanca, Vozes de Mar, 1915

«A Saudade é um sentimento universal, mas, só na alma


lusitana atinge as alturas supremas da Poesia, - contendo
uma conceção da vida e da existência. E alcançamos
também, por virtude dela, o estado místico perfeito, que é
a saudade de Deus personalizada em nós, substituindo-se
completamente ao nosso ser, elevado num êxtase sem fim»

– Teixeira de Pascoaes, conferência «Da Saudade», 1952

112
«A saudade é assim num ser vivente a sua ligação ou
passagem, entre devir e eternidade, terra e céu, morte e
vida. A força dialética da passagem e união de contrários.
É este fruto-discurso de conhecimento-vida que
cada um de nós tem de desenvolver e assumir,
nesta vida mortal, uma a uma, um a um»

– Dalila Pereira da Costa, Nova Atlântida, 1977

«Assim, a saudade teria nascido aqui, ao


fundo dos milénios, das entranhas dessa
deusa, a quem os seus adoradores nomeavam
a Meiga. Natureza doce e cruel. De matriz
feminina, como de placenta primeira; mas,
nessa natureza feminina, sempre tendendo
à união com a natureza masculina em
complementaridade: nesse sentimento
saudoso, como memória paradisíaca duma
união primordial. Assim, esse princípio
cósmico feminino vivendo a saudade,
ansiaria pelo princípio cósmico masculino»

– Dalila Pereira da Costa, Entre


Desengano e Esperança, 1996

113
ARQUIVO DA FAMÍLIA

José Marinho, o maior hermeneuta do


pensamento português contemporâneo.
Foto arquivo da família, ca.1969.
A Saudade no
PENSAMENTO
PORTUGUÊS
CONTEMPORÂNEO
RENATO EPIFÂNIO
Professor Universitário; Membro do Instituto
de Filosofia da Universidade do Porto, da
Direcção do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira
e da Associação Agostinho da Silva

115
S
egundo José Marinho (1904-1974), o maior hermeneuta do pensamen-
to português contemporâneo, como defendemos da nossa Dissertação
de Doutoramento (Fundamentos e Firmamentos do pensamento por-
tuguês contemporâneo: uma perspectiva a partir da visão de José
Marinho, Universidade de Lisboa, 2004), o nosso pensamento tem
tido um «oculto motivo e secreto motor»: a Saudade. Esta, esclareça-se desde já,
não é um mero sentimento, uma mera afecção humana – muito menos uma afecção
«deprimente e negativa» –, mas uma real pulsão ontológica: a pulsão, a atracção
ontológica do ser humano, de todo o ser, relativamente ao Absoluto, senão mesmo
do Absoluto em relação a si próprio – ainda nas palavras de José Marinho: «Em
tudo o divino a si mesmo se rememora. O ser mais humilde reproduz-se dando um
ser novo, e nessa reprodução é possível repetir-se ou simbolizar-se aquele profun-
do acto genesíaco pelo qual tudo quanto é se revelou.».
Eis, precisamente, como enfatiza José Marinho, sobretudo na sua monumen-
tal obra Verdade, Condição e Destino no pensamento português contemporâneo
(1976), que aqui tomaremos como obra de referência, o mais autêntico sentido
da Saudade – tal como foi configurado pelos nossos dois maiores pensadores da
Saudade, Leonardo Coimbra (1883-1936) e Teixeira de Pascoaes (1877-1952). Se o
primeiro é mesmo, nas palavras do segundo, o nosso «filósofo da Saudade», o se-
gundo não pode deixar de ser considerado como o nosso «poeta saudosista» por
excelência. Para Teixeira de Pascoaes, com efeito, a Saudade é, tão-só, «a força
máxima do Espírito», «o Verbo divino», «a própria essência da Verdade», «o
que existe de real, no último extremo da ilusão espectaculosa do Universo», «a
essência do Cosmos, o Fiat, o Verbo, a Alma do Mundo», não sendo pois assim o
Mundo, todo o Cosmos, senão o «corpo da Saudade». Para Teixeira de Pascoaes,
efectivamente, a Saudade é, tão-só, essa «Deusa atlântica», essa «Deusa», essa
«Luz», a «precursora luzerna matutina do novo sol espiritual que a Humanidade
espera», desejosa que está «de se libertar do cárcere estreito, escuro, asfixiante,
em que o materialismo a enclausurou».
Eis, igualmente, em grande medida, a concepção de Saudade de Leonardo Coim-
bra. Daí o ter-nos dito que a «Vida» não é senão o próprio «rasto da Saudade»,
não fosse a «Vida» senão essa «tendência para o excesso, para a superação». Daí,
ainda, o ter-nos assegurado que «a saudade é como a sombra do homem,
sombra que jamais o deixa» – sendo-lhe pois
assim, nessa medida, «tão impossível li-
bertar-se da Saudade como da própria
sombra» –, não fosse o ser humano,
cada um de nós, senão «uma sauda-
de de Deus». Daí, enfim, o ter afir-
mado que «a sombra da Saudade
é agora sem limites, pois a mede o
nosso desejo de vida eterna e infini-
ASC

ta», dado que da mesma forma que


«no tempo palpitou [palpita] o coração
Medalha Comemorativa do Centenário de da eternidade, no estreito peito do homem
José Marinho. bateu [bate] o coração do Infinito».

116
Segundo José Marinho , o
nosso pensamento tem tido
um «oculto motivo e secreto
motor»: a Saudade

Ainda segundo José Marinho, esta concepção de Saudade não foi, contudo, uma
constante ao longo da história do pensamento filosófico português. Longe disso
– nas suas palavras: «Entretanto [ao longo dessa história], a saudade aflora como
algo estranho ou minúsculo para o pensamento educado na lógica aristotélico-to-
mista, ou em qualquer lógica averiguada e segura de si, algo estranho e minúsculo
desatendido por teólogos, filósofos, eruditos, historiadores e políticos, ou apenas
olhado com displicência e mal velado sorriso. O próprio Camões, se nos Sobolos
Rios canta a saudade da ‘pátria minha natural’, só o alcança fundindo o sentimento
saudoso com a reminiscência platónica ou, noutra hipótese interpretativa, com a
equivalente relação aos arquétipos divinos em Santo Agostinho.».

SÓ DEUS NÃO TEM SAUDADE, SÓ DEUS NÃO TEM SUIDADE


Daí a subtil, a abissal diferença da concepção de Saudade de Camões relativamente
à concepção de «Saudade» de Pascoaes – ainda nas palavras de José Marinho: «Com
a obra sábia por excelência, a obra clássica, aos nossos olhos barroca, feita para a fic-
tícia eternidade da glória terrena da pátria e da humanidade, mas com uma simbólica
terminal que as ultrapassa, queremos dizer n’ Os Lusíadas, a saudade nada ou pouco
tem que ver. Apenas no episódio de Inês de Castro ou no do Adamastor ela aflora,
timidamente, como hóspede de circunstância. Que diferença abissal com Teixeira
de Pascoaes, no qual a Saudade é não só musa ex-
celsa mas deusa excelsa e gloriosa sem a qual nada
se entende, nada do que para os homens é ou se
diz Necessidade, nada do que se crê, se ama ou se
pensa como liberdade e libertação!».
Como se depreende da penúltima passagem
transcrita, deve-se tal «abissal diferença» à alte-
ração do paradigma lógico, não já «aristotélico-
-tomista» no caso de Teixeira de Pascoaes. Daí,
também, a alteração do paradigma onto-teoló-
gico – o ser, o próprio Absoluto, todo o Cosmos,
não são já apreendidos na sua pretensa, na sua
ilusória, imutabilidade – como, alegadamen-
te, acontece em Camões –, mas, ao invés, «em
subtil metamorfose». Eis, igualmente, o que Jo-
sé Marinho salienta – ainda nas suas palavras:
ASC

«Com Teixeira de Pascoaes, a velha e rígida or-


dem cósmica, o Deus da eternidade impassível,
transformado num legislador universal, num rei Obra de José Marinho.

117
Outro equívoco reside
na pretensão de fazer da
Saudade algo que é apenas – ou
privilegiadamente – experienciado
pelos portugueses

absoluto ou num supremo juiz, e, com ele, as chamadas leis da Natureza, a razão
dedutiva segura de si, ou já indutiva, as imagens circunscritas do mundo na polpa
dos dedos ou na ponta do nariz – surgem-nos em subtil metamorfose.».
Eis, com efeito, a «inversão do olhar» que, segundo Marinho, Pascoaes prefi-
gura: passar a ver tudo não já na sua ilusória imutabilidade, mas na sua «subtil
metamorfose». À luz dessa inversão do olhar, concluiremos então que «a autêntica
realidade se nos mostra e vela com dupla face». E passaremos assim a assumir, não
já dramática mas enigmaticamente, a dupla face do ser, do próprio Absoluto, de
todo o cosmos, do próprio tempo. Daí, em suma, a condição do poeta – nas pa-
lavras de Pascoaes, que Marinho transcreve, ele é esse «Ser de olhar duplo», esse
«Fantasma Bifronte que olha o Tempo e a Eternidade».
Esta pretensão de perspectivar a Saudade como um mero sentimento, uma me-
ra afecção humana, e não como uma real pulsão ontológica – a pulsão, a atracção
ontológica do homem, de todos os seres, relativamente ao Absoluto, senão mesmo
do Absoluto em relação a si próprio –, não constitui, contudo, o único equívoco
que importa aqui desfazer. Outro
equívoco reside na pretensão de fa-
zer da Saudade algo que é apenas – ou
privilegiadamente – experienciado
pelos portugueses. Eis, igualmente,
o equívoco que Marinho desfaz: «Te-
mos então nós, portugueses, esta par-
ticularidade de que o presente é um
falso presente? Não será essa, contu-
do, a condição do homem, de todo
o homem? Pelo profundo e dilatado
sentido da memória não se alcançará
outra Saudade mais que humana? Com
ela e para ela nada chega então a ser
completamente vivido, nem nas lon-
gas idades, nem nesta hora breve, nem
no instante sempre incompreensível,
sempre indizível? O mistério da sau-
dade é então, com o mistério do ho-
ASC

Leonardo Coimbra, o nosso «filósofo da mem e do ser para o homem, o enigma


Saudade». Para ele a «Vida» não é senão
do Tempo? Todas estas interrogações
o próprio «rasto da Saudade», não fosse
a «Vida» senão essa «tendência para o tiveram seu equivalente nas formas da
excesso, para a superação». imagética dos poetas da nossa liberta-

118
ção possível e obscuro destino, culmi-
nando em Teixeira de Pascoaes.».
A este respeito, gostaríamos aqui
de referir a meditação de Pinharanda
Gomes (1939-2019), um outro filóso-
fo português da Saudade. Partindo da
definição da saudade enquanto sui-
-dade, ou seja, enquanto o que é pró-
prio de si, como «a mais profunda e
íntima subjectividade do ser», chega
este nosso pensador à conclusão de
que a saudade afecta todos os entes,
pelo menos todos aqueles que têm
a capacidade de se apreenderem na
«mais profunda e íntima subjectivida-
de do seu ser», ou seja, todos aqueles
que têm a capacidade de assumirem a
sua própria sui-dade. Tal como José
Marinho, parte pois Pinharanda Go-
mes da premissa de que «não há saber

ASC
da suidade, sem saber da alteridade», Fernando Pessoa e Teixeira de Pascoaes,
de que «só pela alteridade a suidade protagonistas de dois movimentos que se
se conhece» – daí que, nessa medida, encontram e desencontram no entendimento
da Saudade. Revista Nova Águia alusiva
essa «mais profunda e íntima subjec- ao Centenário do Orpheu e da Arte de Ser
tividade do nosso ser» seja, cumula- Português.

ASC
Teixeira de Pascoaes:
o poeta é esse «Ser
de olhar duplo», esse
«Fantasma Bifronte
que olha o Tempo e a
Eternidade».

119
Marinho procurou sobretudo,
«uma antropologia renovada, ou
seja, uma nova visão compreensiva
do homem, dos seus caminhos e
dos seus fins»

tivamente, essa «alteridade» em relação à qual o nosso próprio ser se conhece, se


reconhece, se constitui. Nessa medida ainda, só «Deus», aqui entendido como o
verdadeiramente absoluto, não tem saudade, não tem sui-dade – ainda nas palavras
de Pinharanda Gomes: «Só Deus não tem suidade. Se Deus é Deus, não se confronta,
enquanto Deus, com outro Deus. Assim como Deus é o único ateu, porque não tem
que crer em Deus, uma vez Ele mesmo ser Deus, também Deus não é saudoso, porque
não é um mesmo perante o qual se situe dialecticamente um outro.»

DA RAZÃO ATLÂNTICA À RAZÃO LUSÓFONA


Se a Saudade é, conforme o exposto, algo que, a priori, afecta por igual todos os
seres humanos – dado que os afecta ontologicamente –, sem que isso signifique, vol-
tamos a ressalvá-lo, que ela se constitua como uma mera afecção humana, designa-
damente enquanto mera «memória», a Saudade, igualmente ao contrário do que
alguns insistem em pensar, não é algo que traduza uma qualquer fixação pelo passado.
Quem assim pensa confunde, desde logo, origem e princípio, pois se, de facto, o ho-
rizonte último da Saudade fosse a origem, então sim, essa acusação seria pertinente.
Acontece que o horizonte último da Saudade não é a origem mas sim o princípio, ou
seja, o que está para aquém da origem, nessa medida, o que está para além de todo o
tempo. Essa acusação segundo o qual o «Saudosismo» se constitui como um «passa-
dismo» é, aliás, geralmente estendida, ainda com maior vigor, ao «Sebastianismo».
Eis, nomeadamente, o caso de Álvaro Ribeiro (1905-1981), outro vulto maior da Filo-
sofia Portuguesa. Se, em abono do «Saudosismo», ainda nos diz que a Saudade é um
«sentimento que não se projecta no passado histórico, mas no passado mítico», já,
quanto ao «Sebastianismo», a sua atitude é bem menos abonatória,
na medida em «ao invés de um D. Sebastião – que lhe suge-
re a memória da queda –, preconizará a esperança num
vindouro Infante de Sagres, que lhe sugere a
memória da ascensão».
ASC

José Marinho, ao invés, afirma a «corres-


pondência simbólica» de D. Sebastião e do
Infante das Descobertas, dado que, alegada-
mente, «o sebastianismo não tem menor sig-
nificado e valor nos quatro últimos séculos
do que a conquista e depois a aventura dos
Teoria do Ser e da Verdade, obra
monumental de José Marinho, editada descobrimentos teve para os anteriores» –
em 3 Volumes pela INCM. assim defendendo a perspectiva de Sampaio

120
Bruno (1857-1915), sobretudo exposta na sua obra O Encoberto (1904), na qual, co-
mo nos diz, «mostra que no sebastianismo um alto e divino sentido perdura». Ma-
rinho, aliás, numa carta de 1929, dirigida ao poeta José Régio (1901-1969), chegou
a confessar «ter em mente uma ‘Teoria do Messianismo’ em que queria retomar o
problema do ‘Encoberto’ que o Bruno me pre-plagiou». Essa obra, que depois se
veio a chamar Nova Interpretação do Sebastianismo, nunca se chegou, porém, a
completar. Ainda assim, do que dela chegou até nós, é possível concluir que, com
a sua Nova Interpretação do Sebastianismo, Marinho procurou sobretudo, como
aliás ele próprio escreveu na sua introdução à obra, «uma antropologia renovada,
ou seja, uma nova visão compreensiva do homem, dos seus caminhos e dos seus
fins». E isto porque, no seu entender, D. Sebastião, a própria «Ilha do Encoberto»,
simboliza, sobretudo, o nosso «ser autêntico» – daí que pelo famigerado «regresso
de D. Sebastião» não se simbolize senão o regresso do homem ao seu «ser autên-
tico», no seu «trânsito do viver caótico ao viver harmonioso», na sua «passagem
do reino ilusório da necessidade ao da liberdade».
Daí, em suma, todo o sentido dessa «viagem» animada pela Saudade que José
Marinho prefigura na sua obra maior (Teoria do Ser e da Verdade, 1961), que tem
sido entretanto desenvolvido por outros Filósofos da Saudade em plena actividade
– como, destacamos, António Braz Teixeira. Nascido em 1936, António Braz Tei-
xeira é, actualmente, como nós próprios já tivemos a oportunidade de sinalizar, «o
maior hermeneuta vivo do nosso universo filosófico e cultural, não só português
mas, mais amplamente, lusófono». Tendo cunhado o conceito de «razão atlântica»
– para, precisamente, sinalizar o chão comum do pensamento filosófico luso-bra-
sileiro –, ele próprio, como também já tivemos a oportunidade de escrever, escla-
receu entretanto «que esse era um conceito, em grande medida, ‘ultrapassado’; e
que, hoje, mais do que de uma ‘razão atlântica’ (circunscrita ao espaço luso-bra-
sileiro ou, quanto muito, luso-galai-
co-brasileiro), se deve falar, cada vez
mais, de uma ‘razão lusófona’, senão
mesmo de uma ‘filosofia lusófona’,
porque aberta a todo o pensamento
expresso em língua portuguesa, por
muito que esse pensamento mais fi-
losófico ainda não tenha realmente
desabrochado em todo o espaço lusó-
fono». Tese que, paradigmaticamen-
te, subjaz a uma das mais recentes
obras – A saudade na poesia lusófo-
na africana e outros estudos sobre a
saudade (2021) –, onde, a propósito
da expressão poética da Saudade na
poesia lusófona africana, mostra bem
ASC

o quanto está nela ínsita uma filoso-


António Braz Teixeira é, atualmente, o maior
fia, como já acontece, de forma clara,
hermeneuta vivo do nosso universo filosófico
no pensamento português, galego e e cultural, não só português mas, mais
brasileiro. amplamente, lusófono.

121
Eduardo Lourenço,
imagem extraída do sítio
«eduardolourenco.com», do
Centro Nacional de Cultura.

122
A saudade em
EDUARDO
LOURENÇO

MIGUEL REAL
Escritor, ensaísta e professor de filosofia

123
S
entimento desde sempre presente na mentalidade histórica portugue-
sa, a saudade foi elevada a teoria e movimento filosófico e estético com
Teixeira de Pascoais em 1915 no livro A Arte de Ser Português.
Da saudade como sentimento, Pascoaes criou o saudosismo como mo-
vimento filosófico, pelo qual defendia a renacionalização ou refundação
de Portugal, sociedade conspurcada por uma contínua influência estrangeira desde
a segunda metade do século XVI.
A exaltação do sentimento coletivo de saudade como síntese de um destino sagra-
do de Portugal ou, menos fortemente, como elemento constitutivo, entre outros,
de um destino de regeneração e purificação nacionais de inspiração divina (tese de-
fendida por autores como, por exemplo, - Teixeira de Pascoais, Leonardo Coimbra,
Fernando Pessoa, Agostinho da Silva, António Quadros, António Telmo, Afonso
Botelho, Pinharanda Gomes, Dalila Pereira da Costa), bem como a identificação
entre a consciência saudosa e a exaltação da nacionalidade portuguesa, envolvidas
ambas numa auréola de inspiração sagrada, presta a esta tese um cunho providen-
cialista que em alguns autores como, por exemplo, Pascoais, Coimbra, Agostinho
da Silva ou Dalila Pereira da Costa, eleva o nível ontológico do discurso filosófico a
um nível teológico de redenção e salvação pela saudade.
Do ponto de vista conceptual, o rei D. Duarte evidencia-se como o primeiro teó-
rico da saudade; na poesia, destacam-se frei Agostinho de Cruz com a sua conceção
mística de saudade, e, na prosa, do ponto de vista do lirismo, Bernardim Ribeiro
com a novela Menina e Moça. Definições de saudade são registadas e trabalhadas
por Duarte Nunes de Leão, Francisco Manuel de Melo e Almeida Garrett.
Na primeira metade do século XX, Carolina Michaëllis de Vasconcelos e a sua
conceção filológica de saudade; Pascoais, com a sua ideação ontológica de saudade
como fundamento da identidade histórica de Portugal; Coimbra e a ideação re-
ligiosa da saudade; Joaquim de Carvalho, com uma conceção fenomenológica de
saudade, constituem-se como os quatro grandes pensadores da saudade.
Neste período, António Sérgio evidencia-se como o pensador contestador do
sentimento de saudade como definidor do ser português. Sérgio faz radicar a sau-
dade no atraso civilizacional português.
Na segunda metade do século XX, Agostinho da Silva e a sua teoria de «saudades
ASC

Da esquerda para a direita: Carolina Michaëlis, Teixeira de Pascoaes, Leonardo Coimbra e


Joaquim de Carvalho foram os grandes pensadores da Saudade no Século XX.

124
do futuro» e Dalila Pereira da Costa e uma conceção mediterrânica de saudade,
evidenciam-se como os pensadores mais importantes da saudade.
No final do século XX, o pensador Eduardo Lourenço e o historiador José Mat-
toso contestam a determinação essencial da saudade no pensamento português, o
segundo considerando-a como pertinente à contínua emigração dos portugueses
por via da separação das famílias e entre estas e a sua terra natal.

A SAUDADE EM EDUARDO LOURENÇO


A saudade em Labirinto da Saudade. Piscanálise Mítica do Destino
Português (1978)
Em 1949, Eduardo Lourenço em Heterodoxia I, seu primeiro livro, tem uma frase
absolutamente demolidora: «o mundo da cultura portuguesa arrasta há quatro
séculos uma existência crepuscular». Assim, o caudal de conhecimentos, de poder
e de prestígio internacional que Portugal tinha erguido com a empresa dos Desco-
brimentos «perdeu tudo o que tinha de vivo e prometedor, para conservar apenas
o comentarismo ruminante estéril». Porém, e paradoxalmente, a cultura portu-
guesa dos últimos 300 anos fora edificada por todos aqueles que, em contacto com
as manifestações culturais superiores da Europa, tinham criado uma obra pessoal
conflituadora com a mentalidade dominante do Estado, da Igreja e do Ensino. Este
raciocínio do jovem Eduardo Lourenço muito devia à lição de Antero de Quental e
de António Sérgio. O que já não acontece trinta anos depois quendo publica O La-
birinto da Saudade, em 1978, livro crítico de Sérgio, o grande filósofo racionalista
do século XX em Portugal.
Em O Labirinto da Saudade, o nosso autor faz publicar o seu artigo de 1969, na
revista O Tempo e o Modo, «Sérgio como mito cultural», onde evidencia filosofi-
camente a intrínseca constitutividade débil da razão. Com este artigo, o iluminismo
ASC

ASC

Primeira edição de Heterodoxia I, em 1949 e Heteroxia II, em 1967.

125
pombalino, o positivismo republicano e o racio-
nalismo forte da primeira metade do século XX,
que tinham elevado a razão a fortaleza ontológica
e gnosiológica da Verdade, soçobravam às mãos
de uma conceção perspectivística e instrumental
de razão e de verdade: é o relativismo ético e cívi-
co da democracia a anunciar-se. É com Eduardo
Lourenço que, em Portugal, a Razão, acossada pe-
los novos estudos epistemológicos, psicanalíticos
e linguísticos, perde o privilégio de um superior
instrumento de conhecimento. A partir deste ar-
tigo, os estudos sobre a razão em Portugal desen-
ASC

volverão uma teoria fraca ou fragilizada de razão:


Fernando Gil, Manuel Maria Carrilho, Boaventura
de Sousa Santos, José Gil, José Mattoso, Viriato So-
O Labirinto da Saudade.
Edição Gradiva. romenho-Marques, António Damásio.
Bastaria este capítulo de O Labirinto da Sauda-
de. Psicanálise Mítica do Destino Português para o
tornar um livro admirável, vocacionado para ser acolhido na história do pensamento
em Portugal. Porém, então, como hoje, todas as atenções se centraram no capítulo
que dá nome ao livro. Foi como se, nele, os portugueses se vissem despidos, sem a
envoltura dos ouropéis ideológicos, mirando-se frágeis, menores e diminuídos ao es-
pelho de si próprio e da Europa. É um dos poucos livros publicados no último quartel
do século XX que ficará na história da cultura portuguesa.
Segundo Eduardo Lourenço, temos historicamente caminhado num espaço con-
flitual entre o modo como somos e o modo como nos imaginamos ser. Existe, por-
tanto, na mente de cada português, uma desproporção, uma clivagem, melhor, um
duplo estado de espírito em que cada um sente o que ontologicamente é (pequeno
país, pobre e carenciado país, recursos limitados, baixa qualidade de vida, forte
ruralismo tradicional, incipiente indústria, frágil organização financeira nacional,
hábitos passadistas, tecnologia nacional ínfima) e o que imageticamente lhe é dado
ver através da leitura da história pátria (o mito dos Descobrimentos, a aventura da
Expansão Ultramarina, o sonho do Quinto Império, o desejo do progresso antevisto
na Europa iluminista e positivista, a quimera de um Estado imperial uno, do Minho
a Timor, e, em 1974/75, do seu contraponto socialista-comunista, o Estado solidá-
rio e igualitário dos trabalhadores salvadores do mundo). É a esta dupla consciência
que tem animado a maioria dos Portugueses, sintetizada na diferença imaginária,
em cada época histórica, entre a realidade e a ficção, sempre fundada na saudade
do passado, que um dia retornará, que Lourenço designa por «o irrealismo pro-
digioso da imagem que os Portugueses fazem de si mesmos». Este «irrealismo»,
esta «forma mentis» de ser português, condição histórica permanente de Portugal,
tanto tem arrastado Portugal para o maior dos miserabilismos culturais (o espírito
decadentista entre os séculos XVII e XX) como para a crença de que somos por
condição e destino um povo eleito, por vezes adormecido, mas sempre virtual-
mente preparado para lançar as «novas naus» da civilização. Esta «forma mentis»
portuguesa, é designada pelo nosso autor como de tipo «traumático», ao modo

126
O LABIRINTO DA SAUDADE É UM DOS
POUCOS LIVROS PUBLICADOS NO ÚLTIMO
QUARTEL DO SÉCULO XX QUE FICARÁ NA
HISTÓRIA DA CULTURA PORTUGUESA

psicanalítico, querendo com isso dizer que algo na nossa cultura nacional sofreu de
fortíssimas perturbações civilizacionais que lhe recalcaram a possibilidade de uma
vivência integrada na normalização média da existência europeia. Ser sempre mais
ou menos, tudo ou nada, superior ou inferior, vanguarda ou proscrito, príncipe ou
gáfaro, não é, sejam quais forem os padrões epocais de estandartização dos com-
portamentos, um modo habitual de vida.
E. Lourenço tenta sintetizar genealogicamente a origem histórica desta particular
maneira de ser português erguendo três momentos-chave por que a consciência
histórica portuguesa se feriu ou se imaginou ferida. A nossa personalidade cultural
desloca-se não especificamente em função destes três «traumatismos», mas mais
em função das suas consequências no modo social de vivermos e, especialmente,
no modo como imaginamos as causas do nosso viver. Trata-se de fundamentar não
a realidade histórica tout court, mas de compreendê-la na mediação imagética pela
qual os protagonistas da nação interiorizaram culturalmente o passado segundo
uma visão saudosista e as exigências do presente, isto é, se autoconhecem. Deste
autoconhecimento ressalva um conjunto de imagens históricas epocais, registadas
na historiografia portuguesa, as quais, por sua vez, cruzadas e organizadas, cons-
tituem a imagologia que define a análise cultural propriamente dito de Lourenço.
O primeiro traumatismo da história de Portugal relaciona-se diretamente com o
espírito de cruzada por que o Condado Portucalense nasceu, espírito aventureiro,
simultaneamente santo e guerreiro, mártir e heroico: «O nosso surgimento como
ASC

O Milagre de Ourique. Domingos Sequeira, 1793. O ato de nascimento de Portugal


«apareceu, e com razão, como sendo da ordem do injustificável, do incrível e do milagroso,
ou, num resumo de tudo isso, do providencial».

127
Estado foi do tipo traumático e desse traumatismo nunca na verdade nos levan-
támos até à plena assunção da maturidade histórica prometida pelos céus e pelos
séculos a esse rebento incrivelmente frágil [Portugal] para ter podido aparecer, e
misteriosamente forte para ousar subsistir. (Talvez não seja por acaso que os mitos
historiográficos ligados ao nascimento de Portugal tenham um perfil tão freudiano
com sacrilégios maternos e palavra quebrada, Teresa, Egas Moniz...)».
O ato de nascimento de Portugal «apareceu, e com razão, como sendo da ordem
do injustificável, do incrível e do milagroso, ou num resumo de tudo isso, do
providencial». Assim, essa «conjunção de um complexo de inferioridade e de su-
perioridade» cumpre «uma única função: a de esconder de nós mesmos a nossa
autêntica situação de ser histórico em estado de intrínseca fragilidade». Como se
lê, esta «intrínseca fragilidade» tem sido compensada pelo «irrealismo prodigio-
so» por que nos vemos a nós próprios como seres dotados de uma missão histórica
providencial. A verdade é que, mesmo na «hora solar da nossa afirmação histórica,
essa grandeza era, concretamente, uma ficção»: «Da nossa intrínseca e gloriosa
ficção os Lusíadas são a ficção.»
Para Lourenço, Os Lusíadas, livro maior da história de Portugal, constitui-se
como a suprema ficção deste «irrealismo prodigioso». Nesta magnificência ilu-
sória, incapazes de controlar tão vasto império, enredados na política europeia
de expansão, acordámos sentindo-nos «às avessas», experimentando «na carne
que éramos (também) um povo naturalmente destinado à subalternidade. Esta
experiência constitui um segundo traumatismo, de consequências mais trágicas
que o primeiro»: «Nesses sessenta anos [de perda de independência, 1580 – 1640]
o nosso ser profundo mudou de sinal». De povo excelso passámos a povo subal-
terno, inferior, desprezado politicamente pela restante Europa: «Tornou-se en-
tão claro que a consciência nacional (...), que a nossa razão de ser, a raiz de toda
a esperança, era o termos sido. E dessa ex-vida
são Os Lusíadas a prova de fogo. O viver nacio-
nal (...) orienta-se nessa época para um futuro
de antemão utópico pela mediação primordial,
obsessiva do passado» – nasce o sebastianismo
como liquidação «no imaginário e em termos
magníficos (d)o segundo traumatismo, numa
barroca inversão que vale bem outras futuras.
Esta imagem invertida da nossa real situação
histórica acompanhar-nos-á sempre até ao sé-
culo XX, servindo de suporte imagológico para
a política de Pombal e para a «Viradeira» sub-
sequente, para a emergência do liberalismo e
consequente guerra civil, para a modernização
impetuosa do Fontismo e das Conferências do
Casino e consequente melancolia nacional com o
ASC

Ultimatum, para a salvação social prometida pe-


Para Lourenço, Os Lusíadas, livro
maior da história de Portugal,
la República e consequente derrocada com a su-
constitui-se como a suprema ficção bida ao poder do Estado Novo de Salazar, ou seja,
deste «irrealismo prodigioso». «cada período de forçado dinamismo tem sido

128
Retrato do rei
D. Sebastião,
por Cristóvão de
Morais. «nasce
o sebastianismo
como liquidação
no imaginário e em
termos magníficos
(d)o segundo
traumatismo, numa
barroca inversão
que vale bem outras
futuras».

ASC

seguido sempre do que, em linguagem freudiana, se chamaria o regresso do recal-


cado». O saudosismo de Teixeira de Pascoais, o Integralismo Lusitano de António
Sardinha, o nacionalismo do Estado Novo, o Grupo defensor da existência de uma
filosofia genuinamente portuguesa (Álvaro Ribeiro, José Marinho) assumem-se, no
século XX, como expressões imagológicas do ser profundo de Portugal enquanto
país intrinsecamente fragilizado pela sua atual impotência económica e política,
mas também como sucedâneos atuais do messianismo sebastianista do século XVII.
Contraimagem verdadeira é marcada pelo surrealismo, «que soube encontrar os
gestos, as imagens, picturais ou poéticas, menos lusitanistas no sentido tradicional
do termo». Porém, diferentemente de outros autores, como A. Sérgio, que viam
no salazarismo uma doutrina espúria à consciência nacional, reflexo prolongado
de uma moda política europeia, Lourenço declara que «Não se percebeu nada do

129
Portugal como Destino seguido de Mitologia da Saudade
(1999). «desenvolvendo o conceito de «identidade
histórica» de um povo, confirma o irrealismo prodigioso
dos portugueses fazendo notar que a nação portuguesa
vive «da contemplação maravilhada de si mesma».

espírito do antigo regime [a ditadura do Estado Novo]


e do seu êxito histórico quando não se vê até que pon-
to ele foi a mais grandiosa e sistemática exploração
ASC

do fervor [saudosista] nacionalista de um povo que


precisa dele como de pão para a boca em virtude da
distância objetiva que separa a sua mitologia de antiga
nação gloriosa da sua diminuída realidade presente». É justamente esta contra-
dição entre passado glorioso e «diminuída realidade presente» que levará à per-
sistência de treze anos de guerra colonial, defendendo um sonho passado já sem
expressão concreta presente senão no campo do imaginário («Portugal Uno do
Minho a Timor»), e que conduzirá ao 3º «traumatismo profundo – análogo ao da
perda da independência» e a «um repensamento em profundidade da totalidade
da nossa imagem perante nós mesmos e no espelho do mundo», isto é, à perda do
Império em 1975. Ainda sob o efeito desta amputação do corpo-uno da imagem que
sobre nós mesmos fazíamos, terá sido o projeto político de integração na Europa
comunitária, a que aderimos em 1980 e 1986, compensando a ferida da «descolo-
nização», que permitiu a ultrapassagem incicatrizada desta ferida simbólica que,
«em geral provoca noutros povos dramas e tragédias implacáveis».
Estava detetada a «ferida traumática» da cultura portuguesa: a saudade, isto é,
a alegre e descuidada vivência do português sempre com os olhos no seu passado
glorioso, ufanando-se de um tempo em que fora grande, mas tropeçando e caindo
nos enredos do presente.

A SAUDADE EM PORTUGAL COMO DESTINO SEGUIDO DE MITOLOGIA


DA SAUDADE (1999)
Em 1999, no livro supracitado, Lourenço, desenvolvendo o conceito de «iden-
tidade histórica» de um povo, confirma o irrealismo prodigioso dos portugueses
fazendo notar que a nação portuguesa vive «da contemplação maravilhada de si
mesma», como se existisse à parte do mundo ou deste fosse guia e senhor: «Seria
absurdo pretender que um povo entre outros, e ainda por cima um pequeno povo,
possa estar ou escapar a esse maelström que chamamos História. Contudo, evitar
o destino comum [a normalidade europeia], instalar-se, não se sabe por que aber-
ração ou milagre, à margem do mundo, é um pouco aquilo que o povo português
sempre tem feito», provocando, para si próprio, um labirinto mental cujos sus-
tentáculo último reside na conceção de saudade, de lembrança viva de um tempo
em que a sua existência se repartia pelo mundo: «Essa mitologia [da saudade] está
inscrita na bandeira portuguesa. Portugal foi o único país que colocou no centro da
sua bandeira a esfera armilar [criada em 1910, aquando da fundação da I República],
em suma, a representação do universo. Isto não espanta ninguém e ainda menos

130
os Portugueses», como se estes se considerassem um segundo povo eleito de Deus
(um «Israel católico»).
Assim, a identidade de Portugal não tem residido na sua historiografia, na sua so-
ciologia, na sua antropologia, na sua política, mas, de outro modo, numa mitologia
criadora de uma «identidade mítica» que o tem civilizacionalmente bloqueado e
encerrado num «labirinto».

DIFERENÇA ENTRE SAUDADE, NOSTALGIA E MELANCOLIA


Neste mesmo livro, Lourenço opera uma diferença específica entre os três con-
ceitos supracitados. Lourenço fora aluno e assistente de Joaquim de Carvalho em
Coimbra, filósofo leitor da fenomenologia de Husserl, então na moda. Carvalho, em
1951/52, teorizara fenomenologicamente a saudade em Problemática da Saudade e
em Elementos Constitutivos da Consciência Saudosa. Numa síntese absolutamen-
te sintética, Carvalho define os três conceitos ligando-os ao conceito de tempo: a
nostalgia revelaria uma consciência do passado em que a consciência se encontraria
realizada no presente (visitar a escola de infância e, orgulhosamente, sentir que o
percurso da vida correu bem); a melancolia (hoje classificada como uma doença
mental) significaria um presente irrealizado e uma fixação obsessiva numa fase do
passado; a saudade revelaria uma consciência frágil no presente e o desejo de, com-
pensatoriamente, regressar a um certo momento do passado, convivendo amiúde
com a sua imagem. Lourenço, sem citar Carvalho (uma atitude feia), registando
igualmente ser a saudade presa do tempo, constata que, alimentando-se os três
estados sentimentais da memória (o tempo), «conferem um sentido ao passado que
através deles convocamos. Inventam-no como uma ficção. A melancolia visa o pas-
sado como definitivamente passado, e, a este título, é a primeira e mais aguda ex-
pressão da temporalidade, aquela que a lírica universal jamais se cansará de evocar.
A nostalgia fixa-se num passado determinado, num lugar, num momento, objeto
de desejo fora do nosso alcance, mas ainda real ou imaginariamente recuperável. A
saudade participa de uma e de outra, mas de uma maneira paradoxal, tão estranha
– como é estranha e paradoxal a relação dos portugueses com o tempo – que, com
razão, se tornou um labirinto e um enigma para aqueles que a experimentam, como
o mais misterioso e o mais precioso dos sentimentos».
Eis a que a saudade, «esse gosto de mel e de lágrimas», levou os portugueses – a
um labirinto enigmático «misterioso» e «precioso» de que nem a revolução de-
mocrática de 1974 nem a adesão à Comunidade Europeia em 1986 os libertou.

(*)Miguel Real é autor de mais de 60 títulos, distribuídos entre romance e ensaio,


tendo recebido os seguintes prémios no decurso da sua carreira literária: Prémio
Revelação de Ficção da APE/IPLB em 1979 com o romance O Outro e o Mesmo;
Prémio Revelação de Ensaio Literário da APE/IPLB em 1995 com o ensaio Portugal
– Ser e Representação; Prémio «Ler» do Círculo de Leitores 2000 com A Visão de
Túndalo por Eça de Queirós; Prémio Literário Fernando Namora em 2006 com o
romance A Voz da Terra; Prémio Jacinto do Prado Coelho 2008 pelo livro «Eduar-
do Lourenço e a Cultura Portuguesa»; Prémio Matriz Portuguesa por alguns dos
seus livros versarem sobre a Identidade Portuguesa.

131
«Uma assombrosa sociedade secreta
transmite a saudade cada vez mais
ocultamente, de geração em geração. Se há
que haver religião no nosso patriotismo,
extraiamo-la desse mesmo patriotismo.
Felizmente temo-la: o sebastianismo.
Deixemos de importar Deus. Portugal, que
perdeu a sua grandeza com D. Sebastião, só
voltará a tê-la com o regresso dele, regresso
simbólico em que é preciso voltar a acreditar»

– Fernando Pessoa, Séc.XX

132
Somewhere where I shall never live
A palace garden bowers
Such beauty that dreams of it grieve.
There, lining walks immemorial,
Great antenatal flowers
My lost life before God recall.
There I was happy and the child
That had cool shadows
Wherein to feel sweetly exiled.
They took all these true things away.
O my lost meadows!
My childhood before Night and Day!

– Fernando Pessoa, English Poems, 1921

133
JOSÉ
SARAMAGO
e a saudade
CARLOS NOGUEIRA
Ensaísta e professor universitário,
Universidade de Vigo

Retrato do escritor
português José Saramago
GETTY

na ilha de Lanzarote.

134
135
N
’O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), o quinto romance de José
Saramago (1923-2010) e o terceiro publicado pelo autor na década
de 1980, a palavra «saudade» é usada dezasseis vezes (seis ocor-
rências no singular, dez no plural) e o adjetivo «saudoso» surge
seis vezes. Recorro a esta contabilidade para enfatizar a frequência
com que estes vocábulos comparecem na escrita literária do autor de Memorial do
Convento (1982). Neste romance, Baltasar Sete-Sóis, por exemplo, tem «saudades
da guerra» (Saramago, 2015: 63) e o seu amigo João Elvas conta com «sessenta anos
subitamente mordidos pela saudade de voltar à terra onde nasceu» (Saramago,
2015: 332). Neste contexto, na definição precisa de Jacinto do Prado Coelho, «A
saudade compreende a lembrança, pungitiva ou docemente melancólica, dum bem
ausente, algo que está longe ou que passou na carreira do tempo – lembrança a que
se junta o desejo de reaver esse bem perdido» (Coelho, 1997: 1002). Ainda segundo
este ensaísta, a saudade é também «o próprio anseio de qualquer coisa pressenti-
da, gozada em imaginação, como quando a saudade é dum bem futuro, «saudade
do Céu»» (Coelho, 1997: 1002). No vol. II dos Cadernos de Lanzarote, que reúne
apontamentos diarísticos escritos em 1994, esta última aceção de saudade tem uma
correspondência perfeita nesta passagem:

O que são as coisas. Estava no hotel, a descansar um pouco, e por


desfastio liguei a televisão. Saiu-me a TVE, um programa da Euronews
sobre a Bica. E não é que de repente me entrou no coração uma espécie
de saudade pungente e irresistível de um bairro que conheço bem, mas
onde nunca vivi? O mais absurdo, porém, é que não pensei sequer em
sair para ir rever, com os meus próprios olhos, aquelas ruas empina-
das, aquele ascensor de brinquedo, aquelas lojinhas arcaicas, aquelas
pessoas sem tempo... Que perversão é esta? Como podem as imagens
tomar assim o lugar da realidade? (Saramago, 2016: 235)

Salta à vista, nas passagens citadas, o recurso, por parte de Saramago, ao atributo
«pungente», associado a «saudade», e a relação direta deste termo com o adjetivo
«pungitiva», utilizado por Jacinto do Prado Coelho. Há uma conclusão óbvia a ex-
trair deste paralelismo entre as palavras do escritor e do ensaísta: na obra literária de
José Saramago, mas também nos seus depoimentos e nas suas intervenções orais e
escritas, a saudade é um sentimento humano, universal, um contentamento de que
não está ausente a dor, um prazer contraditório em que entra um indefinível sabor
de (in)felicidade. Nunca Saramago se referiu à saudade como uma natureza afetiva
própria da «alma portuguesa» ou da «raça portuguesa». Muito pelo contrário, em
total discordância com o pensamento e as práticas artísticas que veem na saudade um

Nunca Saramago se referiu à


saudade como uma natureza afetiva
própria da «alma portuguesa» ou da
«raça portuguesa»
136
sentimento exclusivo do ser(-se) por-
tuguês, José Saramago reclamava vee-
mentemente a falsidade e os perigos
(ensimesmamento, imobilismo) des-
ta tradição. Lembremos: Teixeira de
Pascoaes, em 1912, no n.º 2 da revista
A Águia, preconizava a existência de
uma alma distinta e única entre todas
as nações, uma alma lusitana que ha-
veria de dar origem a uma civilização
original e superior. Este e outros poe-
tas e pensadores acreditavam na força

SHUTTERSTOCK
mobilizadora da saudade e do próprio
sebastianismo (o autor de Marânus
considerava o Saudosismo um sebas- Livros de José Saramago, Prémio Nobel da
tianismo clarividente, evoluído). Literatura.
Para José Saramago, a saudade não
é uma condição específica do espírito
e da cultura de Portugal. Em 2008, a menos de dois anos de morrer, o escritor de-
clarava, numa entrevista ao jornal Expresso, com o título irónico de «Esplendor de
Portugal»: «Na cabeça de muita gente esteve, e ainda permanece, essa ideia de que
ser-se português é uma coisa diferente. Lembremo-nos da importância que teve
a saudade, à sombra da qual se definiram filosofias, modos de entender a História
do país e a História universal… Tudo isto é bastante falso» (Gómez Aguilera, 2010:
111). Vale também a pena destacar este fragmento da mesma entrevista, para per-
cebermos como Saramago, na linha de pensadores como António Sérgio, associa a
saudade, o movimento conhecido como Saudosismo e os mitos messiânicos a um
entendimento errado e excessivamente utópico da História de Portugal e do lugar
deste pequeno país no mundo:

Essa imagem do esplendor de Portugal foi fomentada pelo fascismo


e derivou de um falso sentimento patriótico. Tão falso que foi capaz
de negar a sempre discutível verdade histórica, manipulando-a sem
pudor. Os hinos postos em circulação a partir de 1936, o da Mocidade
Portuguesa, o da Legião, eram autênticos manuais em que se introdu-
zia uma linguagem, um certo modo de pensar, uma forma degenerada
de imaginar o que seria o Quinto Império, que nasceu com o Padre
António Vieira, e que Fernando Pessoa alimentou em tempos mais re-
centes. A História de Portugal, tão enaltecida por ter uma identidade
que teria resistido a tudo, não tem nada que ver com esse esplendor.
(Gómez Aguilera, 2010: 111).

Ao afirmar, noutras entrevistas, «Gosto da minha terra, mas deixei de a idealizar»


(Gómez Aguilera, 2010: 107), e «Não estou com saudosismo da revolução» (Gómez
Aguilera, 2010: 112), José Saramago está a dizer-nos que acreditou na possibilidade de
um país para todos, antes e, sobretudo, durante a Revolução de Abril. Dito de outro

137
modo: certamente que Saramago, como, aliás, se deduz das suas convicções iberis-
tas, desejou um lugar ativo para Portugal no quadro das relações internacionais e no
contributo para um mundo mais justo, com mais paz, mais respeito pelos direitos
humanos, mais harmonia entre o ser humano, a Natureza e o ambiente. Mas isto
não significa que o escritor alguma vez se tenha sentido atraído pelo ideário mítico
lusitano, pela ideia de Portugal como nação predestinada a cumprir um destino civi-
lizador universal. Daí afirmações como estas, também da entrevista «Esplendor de
Portugal»: «Quando se vive de ilusões é porque algo não funciona. A nossa imagem
mais constante é a de alguém que está parado no passeio à espera de que o ajudem a
atravessar para o outro lado» (Gómez Aguilera, 2010: 111).

SAUDADE E UTOPIA
A problemática da saudade (e do sebastianismo), em José Saramago (e não só), liga-
-se à questão da utopia. Como se sabe, Saramago não só não apreciava minimamente
a palavra utopia como, mais do que isso, a considerava prejudicial e até perigosa,
por, segundo ele, poder induzir à crença na chegada, natural e certa, de um mundo
melhor. Assinale-se, todavia, que são relativamente tardias as manifestações de de-
sagrado de Saramago em relação ao vocábulo utopia. Quando publicou A Jangada de
Pedra (1986) e até inícios dos anos 2000, o autor empregava-o sem constrangimentos
aparentes. Em 1995, por exemplo, a propósito do romance Ensaio sobre a Cegueira
e da propensão do ser humano para o mal, ainda afirmava: «Se nós, de um dia para o
outro, nos descobríssemos bons, os problemas do mundo estavam resolvidos. Claro
que isso nem é uma utopia, é um disparate» (Gómez Aguilera, 2010, p. 118). Em 1996,
sobre o mesmo livro, dizia: «Talvez não sejamos mais que hipóteses de humanidade
e talvez cheguemos ao dia, e isto é a utopia máxima, em que o ser humano respeite o
ser humano» (Gómez Aguilera, 2010, p. 315).
Em 2001, numa atitude já muito consciente e crítica em relação ao vocábulo
utopia, José Saramago considerava: «Conceitos como o da esperança ou da utopia
SHUTTERSTOCK

Sede da Fundação José Saramago na Casa dos Bicos, Lisboa.

138
A Jangada de Pedra é um dos livros
de José Saramago que mais nos
interpelam sobre a conceção
saramaguiana de utopia e de questões
afins como as da saudade

pouco me interessam. Para mim, o que conta é o trabalho que tem de se fazer no
dia em que nos encontramos» (Gómez Aguilera, 2010, p. 372). O argumento que o
escritor apresenta imediatamente a seguir resume na perfeição outras intervenções
dele em entrevistas e em depoimentos perante centenas de ouvintes: «Se não o
fizéssemos, isto é, se não procurássemos em cada momento, efetivamente, solu-
ções para os problemas, de pouco nos serviria continuar a falar de utopias ou de
esperanças, atirando para um futuro incognoscível a materialização das mesmas»
(Gómez Aguilera, 2010, p. 372). A lucidez e a coragem de Saramago são aqui in-
discutíveis, apesar de o escritor parecer estar esquecido, convém notá-lo, de uma
evidência: a utopia, a esperança e a saudade são necessidades inscritas na matriz
do humano. Na verdade, não há propriamente descuido crítico por parte de José
Saramago, que está, antes de mais, a considerar as falhas e os erros de perspetivas
ideológicas, políticas e sociais.
A Jangada de Pedra é um dos livros de José Saramago que mais nos interpelam
sobre a conceção saramaguiana de utopia e de questões afins como as da saudade e
do sebastianismo. Este romance não é uma utopia ingénua, nem radica em qualquer
tipo de messianismo (antropológico, histórico, cultural, político, individual-heroico,
etc.). Para José Saramago, como observa Paulo de Medeiros, a fechar um ensaio sobre
o escritor português e Günter Grass, «there is no teleology of History» (Medeiros,
2021, p. 185). Há, antes, a convicção de que a História «must be constantly present,
constantly rethought, and that ultimately there is no historical truth but a plurality

Espaço interior da
SHUTTERSTOCK

Fundação José
Saramago, em Lisboa.

139
of historical perspectives» (Medeiros, 2021, p. 185). O final integralmente aberto
do romance não deixa dúvidas quanto à visão que Saramago nos propõe da vida,
individual e coletiva, plena de sucessos imprevistos. «Talvez», o advérbio de dúvida
que tantas vezes dizemos como sinal de esperança nas nossas utopias, sintetiza toda
a dimensão ao mesmo tempo utópica, eutópica, distópica e saudosa da mundividên-
cia de José Saramago, cujas personagens (pessoas) vivem a sua individualidade, se
relacionam e aprendem a conhecer-se a si próprias e aos outros, a exigir cedências e
a ceder, enquanto seres individuais mas também sociais:

A península parou. Os viajantes descansarão aqui este dia, a noite e


a manhã seguinte. Chove quando vão partir. [...] A viagem continua.
Roque Lozano ficará em Zufre, irá bater à porta de sua casa, Voltei, é
a sua história, alguém há-de querer contá-la um dia. Os homens e as
mulheres, estes, seguirão o seu caminho, que futuro, que tempo, que
destino. A vara de negrilho está verde, talvez floresça no ano que vem.
(Saramago, 2015, p. 349)

Segundo José Saramago, a nossa única fatalidade tem de ser acreditarmos numa
vida nova, numa sociedade renovada, e agirmos em conformidade com essa neces-
sidade e esse ideal ativo, dia após dia. Porque nenhuma teleologia existe, nenhum
aperfeiçoamento da espécie humana está garantido, por mais que nele acreditemos
e ilusoriamente o vejamos à nossa volta. A frase final do romance, «A vara de ne-
grilho está verde, talvez floresça no ano que vem» (Saramago, 2015, p. 349), re-
presenta, com um simbolismo e uma eloquência surpreendentes, «not the certain
realization of utopia, but the precarious nature of human hopes and aspirations»
(Sabine, 2016, p. 198). Mas também significa que a ação desencadeada pela utopia e
pela saudade (no sentido de saudade do futuro, segundo Agostinho da Silva) tem de

José Saramago e a
arte urbana. Retrato
do autor por Alexandre
Farto (Vhils).
ASC

140
A saudade, no sentido de falta e de
desejo de um bem, tal como a utopia,
com a qual interage e constitui um
todo complexo, é, para Saramago, uma
força que nos projeta no «amanhã»

se concretizar nos atos mais individuais e privados, no dia a dia, e nos gestos mais
sociais e políticos, institucionais e públicos.
Para José Saramago, aquilo que nos falta – mais democracia, mais igualdade,
mais justiça, o fim da fome, da guerra, da exploração – deve ser procurado com
o contributo de todos, não aguardado passivamente, saudosamente. A dinâmica
histórica faz-se com cada cidadão, hoje, em vez de numa conceção de futuro exa-
geradamente carregada de esperanças messiânicas, utopistas e saudosistas que não
poucas tragédias trouxe ao mundo, no que Saramago se distancia sem hesitação do
comunismo ortodoxo e também, naturalmente, dos messianismos de direita. Este
sentido mais concreto e prático dos vocábulos messianismo, utopia e saudade nada
tem a ver com providencialismo religioso (judaico-cristão, místico, metafísico ou
outro), nem com qualquer teleologia política (mais materialista, mais idealista ou
mais capitalista), nem ainda menos com naturalismo cultural de matriz mais ou
menos religiosa e sapiencial (crença na superioridade da cultura nacional).
A saudade, no sentido de falta e de desejo de um bem, tal como a utopia, com
a qual interage e constitui um todo complexo, é, para Saramago, uma força que
nos projeta no «amanhã» próximo, um renascimento breve que se transforma
em desespero e pessimismo, em angústia e cansaço, e que volta uma e outra vez, e
de novo desaparece. É esta vertente pessimista que distingue a saudade e a utopia
saramaguianas da Saudade de um Teixeira de Pascoais e de utopias políticas como a
comunista, aquela e estas autocontemplativas, fechadas num otimismo que a His-
tória humana contradiz. Para Saramago, a saudade, a utopia e os messianismos são
necessidades ao mesmo tempo e propriamente humanas, políticas e sociais, cons-
trutoras de futuro, mas também, quando o devaneio e a passividade se sobrepõem
à razão e à ação equilibradas, destrutivas e imobilizadoras.

Obras citadas
- Coelho, Jacinto do Prado. «Saudade», in Dicionário de Literatura, direção de Jacinto do
Prado Coelho, 4.ª ed., 4.º vol. Porto: Mário Figueirinhas Editor, 1997, pp. 1002-1003.
- Gómez Aguilera, Fernando (edição e seleção). José Saramago nas Suas Palavras. Tradução
dos textos em espanhol, francês e italiano de Cristina Rodrigues e Artur Guerra. 2.ª ed.
Alfragide: Editorial Caminho, 2010.
- Medeiros, Paulo de. «Saramago and Grass», in In Dialogue with Saramago. Essays in Com-
parative Literature, ed. Adriana Alves de Paula Martins and Mark Sabine. London: SPLASH
Editions, 2021, pp. 177-185.
- Sabine, Mark. José Saramago: History, Utopia, and the Necessity of Error, Oxford: Legenda, 2016.
- Saramago, José. A Jangada de Pedra. 17.ª ed. Porto: Porto Editora, 2015.
- Saramago, José. Memorial do Convento. 57.ª ed. Porto: Porto Editora, 2016.

141
«Segue-me noite e dia o teu desejo!...
Oiço a tua voz rúbida e cantante
Suplicar-me a carícia do meu beijo,
numa teima exigente e perturbante!

E o meu corpo vencido, dominado,


vai tombar doloroso, inconsciente,
sobre a lembrança morna do passado
- e fica-se a sonhar... perdidamente!

– Judith Teixeira, 1923

142
Depois das bodas de oiro,
Da hora prometida,
Não sei que mal agoiro
Me anoiteceu a vida...
Temo de regressar...
E mata-me a saudade...
_ Mas de me recordar
Não sei que dor me invade.
Nem quero prosseguir,
Trilhar novos caminhos,
Meus pobres pés dorir,
Já roxos dos espinhos.
Nem ficar... e morrer...
Perder-te, imagem vaga...
Cessar... não mais te ver...
Como uma luz se apaga...

– Camilo Pessanha, Clepsidra, 1920

143
Contemplação, óleo sobre cartão, 1911. Museu Nacional de Arte
Contemporânea do Chiado. A paisagem de uma praia na hora crepuscular,
desmaterializada pela técnica de pinceladas fluidas, transfigura-se,
assumindo uma espécie de «estado de alma», que a figura, feminina,
sublinha, fundindo-se numa atitude contemplativa e meditativa.
ASC

144
ANTÓNIO
CARNEIRO
Pintor da saudade e
«retratista das almas»
ALLEN PIRES
Artista e curador

145
A
ntónio Carneiro nasceu em
Amarante a 16 de Setem-
bro de 1872 e morreu no
Porto a 31 de Março de
1930. Viveu a primeira
infância com a sua mãe em Amaran-
te, terra do tão celebrado Amadeo de
Sousa Cardoso, até que esta morreu
quando ele tinha apenas sete anos. Es-
ta infeliz circunstância, que influencia-

ASC
rá mais tarde a sua obra, conduziu-o ao
internamento num asilo no Porto, do qual
sairá aos 12 anos para frequentar a Acade-
mia de Belas Artes desta cidade, onde foi
Ex-libris da Renascença Portuguesa,
discípulo de Marques de Oliveira e, mais desenhado por António Carneiro e
tarde, de outro grande nome das artes com forte inspiração na escultura «O
portuguesas, o escultor Soares dos Reis, Pensador», de Rodin.
de quem aqui falaremos um pouco mais à
frente.
Em 1897 rumou a Paris, onde frequentou a Academie Julian. Na capital francesa
terá apreciado a pintura expressionista e existencial de Edward Münch, tendo opor-
tunidade de ver algumas das suas obras, designadamente «O Tríptico da Vida», e
ter-se-á deixado seduzir pelos simbolistas franceses, que muito o influenciaram,
especialmente Puvis de Chavannes e Gustave Moreau, mas também o escultor Au-
guste Rodin e Eugène Carrière, com o
seu característico traço difuminado e
a sua intrínseca evocação de silêncio.
Ainda em Paris, inicia o célebre
Tríptico A Vida que terminará dois
anos depois de regressar a Portugal.
Reconhecido como um dos sím-
bolos do movimento da Renascença
Portuguesa, que no início do sécu-
lo XX se vinha afirmando como um
dos mais vigorosos e originais mo-
vimentos artísticos e filosóficos em
Portugal, António Carneiro colabo-
rou desde o primeiro momento para
o órgão deste movimento, a revista
A Águia, da qual chegou a ser dire-
tor artístico. É de António Carneiro o
símbolo da Renascença Portuguesa,
que figurava em todas as suas edições
e publicações.
Apesar de não concordar com to-
ASC

Raquel, 1905, Estudo para uma obra. das as orientações do movimento da

146
ASC
Vista de uma praia, 1910, óleo sobre madeira. A sua paleta de cores, de grande
modernidade para a época em Portugal, como que espiritualiza a paisagem.

Renascença Portuguesa do ponto de vista político e doutrinário, revia-se, nele,


porém, em termos de afinidade conceptual, refletindo na sua pintura muitos dos
seus anseios, nomeadamente a temática relacionada com a Saudade.
Com uma arte bem distinta do estilo modernista que se ia fazendo pela Europa,
António Carneiro afirmava em 1925, em entrevista à Labareda, revista portuense
de crítica e letras, que «(...)não há arte antiga, nem arte moderna. Há apenas
Arte (...) e a Arte não tem idade, é de ontem, de hoje, de sempre, eterna e superior
à volubilidade das modas e dos tempos (...)pelas formas e pela cor (...) o artista
exprime-se (...) preencherá os seus fins: revelar almas, derramar beleza (...)».
Esta afirmação é bem reveladora do sentimento exaltante, existencial e quase reli-
gioso com que desenvolvia a sua missão artística. A sua é uma arte de profundidade,
uma arte que traduz uma erudição espiritual com dimensão contemplativa, mística
e simbólica.
Esta dimensão é claramente expressa no célebre tríptico de estilo simbolista A
Vida, de que falaremos mais à frente, mas também nas múltiplas cenas de natureza
e paisagem que criou, cenas de natureza espiritualizada, de paisagens do espírito,
feitas de longos e brancos areais, de nevoeiros marinhos, de mares e rios...
São também dignas da maior nota, as misteriosas e solitárias cenas noturnas em
que pequenas e breve luzes na escuridão anunciam o recolhimento do humano na
solidão da sua casa, da sua aldeia, e que em nós evocam sentimentos simultanea-
mente de solidão e exaltação.

147
Marinha, 1916. Há uma dimensão espiritual em toda a obra pictórica de António Carneiro,
ASC

bem patente nas suas várias telas de praias de grandes areais de etéreos tons rosa. A
presença do mar traz sempre consigo a evocação da distância e da saudade.

Jaime Ferreira, em António Carneiro (1972), refere: «António Carneiro não se


abstraía dos homens e de todo o resto da criação animal. Mas para ele como
para Claude Lorrain, a Natureza eram as árvores, era o chão cheio de sombras
ou cheio de sol, eram as transparências liquidas dos regatos, era o mar, eram
os rios e eram os segundos planos afastados onde os seus olhos penetravam e
imediatamente descobriam uma
fuga imprevista do horizonte, uma
dilatação luminosa de perspetivas.
A Arte só começa a ser divina quan-
do se torna impassível, e o artista só
é um Deus quando, em vez de ma-
nifestar as suas ideias, interpreta o
pensamento da Natureza. Assim foi,
assim fez António Carneiro. (...)»

S/título, 1916. Papel, pastel e sanguínea.


A beleza, a graça, a inocência associada a
um tónus algo melancólico e saudoso da
figura, são uma constante nos trabalhos
deste desenhador exímio que, afirma que
a nobre missão do artista, é a de «revelar
almas» e «derramar beleza».
ASC

148
A arte de António Carneiro é uma
arte intimista, marcada por numero-
sos registos retratísticos, da infância
e do feminino, que são simultanea-
mente registos de saudade, solidão
existencial e de introspeção.
Com efeito, a sua obra pictórica es-
tá fortemente marcada pela homena-
gem à Mulher (recorde-se, no plano
pessoal a importância que tiveram as
mulheres na sua vida, desde logo a
sua mãe e depois a sua esposa e filha,
a quem era profundamente dedica-
do), mulher, que nas suas pinturas
e desenhos, frequentemente repre-
senta a condição existencial huma-
na, e simboliza, ora a melancolia do

ASC
pensamento, ora o arrebatamento
amoroso, ora assume um registo de Menina com Gato (Maria), 1900. A obra de
António Carneiro é prolífica em registos
memória da Saudade, como ocorre retratísticos da infância, remetendo para uma
no tríptico A Vida. dimensão mais pessoal de saudade.
Neste tríptico, A Vida, sua obra
máxima de estilo simbolista (refira-
-se que António Carneiro foi, talvez,
o único pintor simbolista em Portu-
gal) e uma das raras obras-primas
da pintura portuguesa de sempre,
refletem-se os conceitos da geração
intelectual e filosófica da Renascença
Portuguesa: o irracional da natureza
projetado no humano, a saudade da
ausência, uma dimensão mística, ul-
trarromântica.
Trata-se de uma pintura profunda-
mente original e singular no contex-
to da pintura portuguesa, uma obra
de natureza sobretudo metafísica e
poética, na qual se apresentam três
momentos da vida: a infância, a ma-
turidade e a velhice.
ALBUM

Os três painéis, não tendo aparen- Sinfonia Azul, 1910, óleo sobre tela. Centro
temente uma continuidade física de de Arte Moderna, Fundação Calouste
leitura, podem ser vistos como que Gulbenkian. Mais do que um retrato da filha
do pintor, esta obra de natureza intimista
sendo «espectros», fragmentos re-
aborda uma vez mais a poética do feminino
presentativos de uma certa ausência e da luz que aqui reforça a metáfora musical
de sentido narrativo, mas que ga- que dá título ao quadro.

149
Tríptico «A Vida», Paris 1899-Porto 1901, óleo sobre tela. Da esquerda para a direita:
ALAMY

Esperança, Amor, Saudade. Fundação Cupertino de Miranda.

nham o sentido de uma interrogação filosófica quando analisados numa perspetiva


poética.
No painel da esquerda, intitulado Esperança, podemos observar uma cena pri-
maveril, paradisíaca, com uma mulher e uma criança de olhares e orientações
desencontradas. A criança brinca absorta no lago, enquanto a jovem mulher, de
costas para nós, nua e de longos cabelos soltos, segura uma cítara com uma das
mãos, enquanto a outra se eleva num gesto de aceno ou de graças.
No painel central, intitulado Amor, uma mulher belíssima e sensual parece guiar
(ou ser protegida por?) um cavaleiro cego (cego de amor ou inebriado pelo ideal de
cavaleiro medieval?), emergindo ambos, nos seus cavalos brancos, de uma densa
floresta, que parece simbolizar um outro mundo, que se deixa para trás para entrar
numa luminosa clareira.
O painel da direita, intitulado Saudade, representa uma mulher mais velha,
vestida de preto que nos olha (ou olha o passado?). Simbolizando talvez a pro-
ximidade do fim, encontra-se sentada sobre uma inusitada e enigmática esfinge
verde (o eterno enigma da vida?), tendo como fundo um mar calmo e azul. Mas
o ciclo da vida ainda não se fecha porque, a seu lado, uma criança «vestida» de

150
inocente nudez, com uma mão tocando no regaço da mulher, orienta o seu olhar
ligeiramente para cima (para o futuro?... o sonho?...a ilusão?) enquanto sopra uma
flor de dente-de-leão, numa sugestão de recomeço, de «eterno retorno», conceito
nietzschiano que se ia afirmando à época. E tudo isto numa paleta cromática de
cores ténues e tintas aguadas, bem longe do que a sua geração fazia em Portugal, e
que se foi tornando uma imagem de marca do pintor.
A ilustração marcou também a carreira de António Carneiro, tendo colaborado
em várias revistas para além de A Águia, como a Ilustração Portuguesa, a Atlânti-
da, a Contemporânea, a Alma Nova, entre outras, e ilustrado livros de autores de
nomeada, como Jaime Cortesão, António Botto, Teixeira de Pascoaes, Raúl Bran-
dão, Leonardo Coimbra, Eça de Queiroz e muitos outros.
Não obstante algum reconhecimento e os vários prémios que recebeu, António
Carneiro viveu sempre com algumas dificuldades, só conseguindo o muito alme-
jado atelier, com o conforto e as qualidades de iluminação que a sua obra de pintor
carecia, em 1925, próximo já do final da vida e numa fase de grande sofrimento e
tristeza, motivados pelo agravamento de saúde da sua filha que, dois anos mais
tarde, viria a falecer.
António Carneiro ainda pôde beneficiar do conforto do seu recente atelier du-
rante cinco anos, tendo nele elaborado alguns belos e icónicos trabalhos, com o
é o caso das várias versões da obra «Camões lendo os Lusíadas aos Frades de São
Domingos» ou os estudos para a Divina Comédia de Dante.

Acabaria por falecer em


1930, com apenas 57 anos,
mas ficará na história da pin-
tura portuguesa como o «re-
tratista das almas» e o único
pintor simbolista do país.

António Carneiro no seu atelier


(ca.1928) Gelatina e sais de
prata. Coleção Museu da
Cidade do Porto.
ASC

151
ASC

SOBRE A ESCULTURA «DESTERRADO», DE SOARES DOS REIS


Comecemos este breve texto, com o que nos diz o filósofo Leonardo Coimbra
sobre a famosa escultura de Soares dos Reis, o Desterrado:

«As árvores da nossa saudade estão diante de nós em vivo corpo


de lembrança, as aves de nossas recordações procuram seus ramos
e voam de novo a um misterioso rumo, e, cismático, profundo como
os abismos, o homem sonha em degredo ... I? a Última imagem que
desperta, é cada um de nós que se viu de pronto a si mesmo e no
fundo da alma, como se, ao debruçar-se na cisterna interior, a água
inquieta o refletisse mais vivo e real; é a própria estátua da saudade
- o Desterrado de Soares dos Reis».

Independentemente das diferentes interpretações que críticos e historiadores de


arte fazem desta obra de Soares dos Reis, da sua motivação e origem, e das circuns-
tâncias e do temperamento, melancólico ou não, do seu criador, e tendo em conta
que não somos historiadores de arte, ousamos contudo afirmar que o Desterrado
é, não só uma obra-prima da escultura portuguesa -porventura até um dos seus
pontos mais altos, como também da própria escultura ocidental.

152
Em todo o caso, poetas e filósofos da Saudade, que a
entendem (à saudade)numa dimensão e amplitude em
que é núcleo essencial do pensamento e ser português,
tomaram-na (à escultura) como expressão maior do
seu ideal, que lhes servia e representava por
inteiro.
No seu livro A Arte em Portugal no
século XIX, Bertrand,Lisboa, 1966, o
prolífico historiador de arte José-Au-
gusto França, refere-se-lhe da seguinte
forma: «Obra ‘espiritual’ e ‘natural’, o
Desterrado tem uma carga simbólica
que lhe é interior; não nasce de uma
ideia, mas de um programa vivido
e exigido pela própria vivência do
artista. É, por assim dizer, uma
obra existencial». Somos tenta-
dos a concordar.
Feita em mármore de Carra-
ra, em 1872, quando o artista se
encontrava em Roma no cum-
primento de uma bolsa de estudo,
apresentada como prova final do curso de
escultura e, supostamente inspirada no
poema de exílio de Alexandre Hercu-
lano, as Tristezas do Desterro, a es-
cultura Desterrado, que receberá a
medalha de ouro da Exposição Inter-
nacional de Madrid, de 1881, transmi-
te, com efeito, toda uma emotividade
nostálgica e saudosista que, exprimin-
do inequivocamente, um mergulho
nas profundezas abissais do eu, pode
assumir também uma dimensão de
representação coletiva, se interpre-
tarmos a figuração da onda do mar
ALAMY

que bate na rocha que lhe serve


como base, como simbolizando
a experiência marítima saudosa
dos portugueses.
Há na figura uma expressão de
desalento introspectivo, uma
espécie de angústia contida, de
impossibilidade existencial, que
se manifesta na expressão do
olhar, ausente e perdido no inte-

153
rior de si próprio, na posição curvada do torso, assim evidenciando um profundo
abatimento, que os dedos entrecruzados reforçam, pela sua sugestão de aprisio-
namento e crispação.
Obra enigmática, como toda a grande obra de arte, o Desterrado, nú, é dester-
rado de quê? Da sua terra pátria? De si próprio? Da passageira juventude e beleza
do seu corpo? Da própria vida, enfim... tão efémera? Talvez que a Saudade esteja
neste sentido de enigma que transporta.

«Terra cara da pátria, eu te hei saudado


D’entre as dores do exilio. Pelas ondas
Do irrequieto mar mandei-te o choro
Da saudade longínqua. Sobre as aguas,
Que de Albion nas ribas escabrosas
Vem marulhando branqueiar de escuma
A negra rocha em promontório erguido,
D’onde o insulano audaz contempla o imenso
Império seu, o abismo, aos olhos turvos
Não sentida uma lagrima fugiu-me,
E devorou-a o mar. A vaga incerta,
Que rola livre, peregrina eterna,
Mais que os homens piedosa, irá depô-la,
Minha terra natal, nas praias tuas.
Essa lagrima aceita: é quanto pode
Do desterro enviar-te um pobre filho.

No silêncio da noite, em solo estranho,


Pátria minha gentil, em ti pensando,
Para os astros de Deus olhei: fulgiam,
Neste céu achatado, tristemente
Com luz mortiça e pálida, não ricos
De inspiração e amor, quais lá refulgem.
Pela sombra ameníssima, que chama
Do afastado oriente o sol no ocaso,
No teu profundo céu hás de tu vê-los:
Do desterrado filho os votos levam:
Aceita-os deles, desgraçada pátria!»

Fragmento do poema «Tristezas do Desterro» de Ale-


xandre Herculano, que terá inspirado Soares dos Reis a
realizar o Desterrado.
ASC

A Saudade.

154
Retrato de Soares dos
Reis, por Marques de
Oliveira, 1881. MNSR.

ASC

SOARES DOS REIS

S
oares do Reis nasceu em 1847, em Vila Nova de Gaia. Aos 14 anos inscre-
veu-se no curso de Escultura da Academia Portuense de Belas Artes, que
concluiu em 1866, tendo obtido o 1.º prémio em várias cadeiras. Aos 20 anos
partiu com uma bolsa do Estado para Paris, onde frequentou o atelier de François
Jouffroy e a École Imperiale et Speciale des Beaux Arts, também aqui classificado
como o primeiro do seu curso. Em 1871 partiu para Roma para concluir o seu pen-
sionato, regressando ao Porto no ano seguinte, onde foi recebido com aplausos e
honras. Em 1878 recebeu uma Menção Honrosa na Exposição Universal de Paris
e em 1881, uma medalha de ouro na Exposição Internacional de Madrid. Realizou,
durante a sua curta carreira, uma obra de escultura ímpar, tendo sido também obri-
gado a aceitar outras encomendas menores para sobreviver. Criou o Centro Artísti-
co Portuense e foi nomeado professor da Escola de Belas Artes do Porto, tentando
renovar o ensino da escultura, mas sofrendo sempre forte oposição das instituições
da época. Atormentado com isso e com a acusação de plágio que lhe tinha sido
feita, a qual nunca conseguiu ultrapassar, acabou por cometer suicídio aos 41 anos.
Na sua sepultura foi colocado um busto da sua autoria, intitulado Saudade.

155
PROTAGONISTAS

TEMPUS ART
DA SAUDADE
B
revíssima seleção de autores que deixaram a sua marca, seja na poe-
sia, seja no ensaio, na reflexão sobre o tema da Saudade. Ficamo-nos
apenas pelos saudosos, por aqueles que já partiram da terra dos vivos.
A alguns dos muitos e bons que ainda se encontram entre nós, demos
diretamente a palavra nesta edição temática especial.

D. Sancho I, ilustração
ANÓNIMO - CC BY-SA 4.0

de Juan Caramuel’s
‘Philippus Prudens’.
British Museum.

D. SANCHO I (1154-1211)

É
-lhe atribuída a canção «Ai eu coitada, como vivo em gram cuidado», mas não
são conhecidas mais cantigas de sua autoria. Foi filho de Afonso Henriques,
o primeiro rei de Portugal, tendo nascido em Coimbra em 1154 e falecido em
1211. Subiu ao trono em 1185. Casou-se com D. Dulce de Aragão, de quem teve
11 filhos. Depois da morte da esposa, foi amante de Dona Maria Aires de Fornelos,
de quem teve dois filhos e mais tarde de Dona Maria Pais Ribeiro, a célebre Ribei-
rinha (de quem teve seis filhos), de que fala a canção de amor de Paio Soares de
Traveirós.

157
D. DUARTE
(1391-1498)

D
uarte I, conhecido como o rei-
-filósofo pelo seu interesse pela
cultura e pelos textos que es-
creveu, entre os quais se destaca o
Leal Conselheiro, obra realizada num
contexto histórico decisivo para a
afirmação de Portugal e que assumirá
uma importância fundamental na con-
solidação da identidade e da língua
portuguesas. É considerado o primei-
ro texto de filosofia redigido em por-
ASC

Retrato contemporâneo de Dom Dinis no tuguês. Sendo uma obra fragmentária


manuscrito castelhano Compendio de e especialmente concebida como um
crónicas de reyes (...), c. 1312-1325. tratado de ética e moral, o Leal Con-
selheiro tem a particularidade de nele
o rei fazer uma reflexão sobre a iden-
D. DINIS tidade portuguesa e a personalidade
dos portugueses. É nesta obra que a
(1261-1325) saudade aparece, pela primeira vez,
«teorizada», sendo descrita como ex-

D
inis é considerado o primeiro pressão simultaneamente de prazer e
rei português realmente letrado. tristeza, desejo e lembrança.
Tal consideração deve-se ao
seu patrocínio das artes e a ter sido
um dos grandes autores de literatu-
ra trovadoresca da época. Compôs
cantigas de amigo, cantigas de amor
e cantigas de escárnio e de maldizer,
das quais sobreviveram um total de
137 composições, que estão reunidas
no Cancioneiro da Biblioteca Nacional.
Todas as canções estão escritas em
galaico-português, o que contribuiu
para a unificação linguística do país.
Rei de notabilíssimos feitos durante o
seu longo reinado, D. Dinis foi também
um grande impulsionador da educa-
ção. Centralizou o poder político,
avançando ao arrepio das monarquias
europeias da época, criou a primeira
Universidade portuguesa, protegeu e
estimulou a criação de novas ordens
militares, como a Ordem de Cristo, que
viria a ter um papel decisivo no perío-
do dos Descobrimentos e demonstrou
enorme habilidade diplomática, o que
ASC

lhe valeu grande respeito e prestígio


entre os reinos vizinhos, sendo cha- O rei D. Duarte escrevendo “Leal
mado a mediar conflitos. Conselheiro”, ilustração por Enrique
Casanova (1850-1913).

158
SAMUEL USQUE
(SÉC. XVI)

S
amuel Usque foi um judeu português nas-
cido em Lisboa no séc. XV, tendo fugido da
inquisição para Itália. Aí, na cidade de Fer-
rara, publicou em 1553, o seu livro Consolação às
Tribulações de Israel, considerado uma obra-pri-
ma da literatura portuguesa. Nele testemunha a
tragédia da história judaica e reflete o desejo de
regresso a Israel dos judeus da Península Ibérica e
dos demais judeus espalhados pelo mundo.
Inspirado nos textos bíblicos e na literatura sagra-
da, o texto é inicialmente marcado por um tom bu-
cólico e pastoril, a que corresponde talvez o pas-
ASC

Consolaçam ás tribulaçoens toralismo e nomadismo dos primeiros hebreus, a


de Israel - III. Edição de França sua «idade de ouro», mas de seguida, assume um
Amado, Coimbra,1908.
tom crescente de lamentação bíblica.

BERNARDIM RIBEIRO (1482?-1552?)

B
ernardim Ribeiro foi um poeta e escritor renascentista, contemporâneo de Gil
Vicente e de Sá de Miranda, tendo colaborado com Garcia de Resende
no Cancioneiro Geral. Considerado o introdutor do bucolismo em
Portugal, é o misterioso autor da primeira novela bucólica da Penísnula
Ibérica: Saudades, mais comummente designada de Menina e Moça.
Miguel Real considera que se trata do «primeiro diálogo introspetivo de
Portugal consigo próprio, queixando-se de amores desencontrados,
isto é, de, a partir da segunda metade do século XVI, fatigadamente
n unca acertar o passado vivido com o futuro desejado».
Acerca do autor da novela, Real havia referido no mesmo texto
que «antecipando em quatro séculos Fernando Pessoa, exila-
va-se dentro de si próprio, concentrando na sua obra a totali-
dade da tradição da literatura portuguesa (cantigas de amigo
e de amor, novela de cavalaria, novela pastoril, poesia lírica),
ostentando-se melancolicamente, enquanto reflexo cultural do
estado de Portugal, como primeiro escritor português dividido
‘entre mim mesmo e mim’.»
Já Hélder Macedo, num fascinante estudo de 1977, intitulado Do
Significado Oculto da Menina e Moça (Lisboa, Moraes) lhe atribuía
um significado esotérico e gnóstico, expressão de um proces-
so de iniciação religiosa. Macedo nota o «caráter revelatório
e transmundano do amor inspirado por quem ‘guarda
ASC

verdade desconhecida’» e recorda «a insistência na


condição de exílio, a definição do bem e do mal como Bernardim Ribeiro. Escultura em
forças opostas numa anormal coexistência, e a carate- mármore por António Alberto
rização de Deus e da relação que pode unir os homens Nunes, 1891, Museu de Évora,
a Deus em termos de conhecimento, ou gnose». Portugal.

159
Busto de Luís de Camões
na cidade de Lisboa. LUÍS DE CAMÕES
(1524-1580)

P
oeta de dimensão universal e o maior
de Portugal, Luís de Camões é figura in-
contornável no estudo da Saudade. Fiel
à tradição literária trovadoresca galaico-por-
tuguesa, são inúmeros os sonetos e rimas em
que a Saudade está presente, expressando
um neoplatonismo amoroso e filosófico. Os
temas que aborda estão ligados à transitorie-
dade da vida, à idealização da mulher amada,
ao conflito entre o amor carnal e espiritual e
à presença de uma tonalidade nacionalista...
Nos Lusíadas, a sua obra máxima, a palavra
Saudade aparece no Canto III, no episódio de
Inês de Castro, tema que, parecendo tempo-
ralmente deslocado da narrativa em curso,
assume, contudo, uma enorme repercussão
na literatura portuguesa e na de outras na-
PEDRO RIBEIRO SIMÕES CC A 2.0

ções. Nesta passagem, a saudade aparece


associada a um significado de perda e de au-
sência como resultado de uma grande tragé-
dia de amor.

ANTÓNIO FERREIRA
(1528 - 1569)

D
iscípulo de Sá de Miranda, e conhecido
como o Horácio português, este gran-
de humanista foi quem, depois de Ca-
mões, mais enobreceu a língua portuguesa,
destacando-se sobretudo pela sua tentativa
de introduzir em Portugal o Teatro Clássico.
A sua obra mais conhecida, a Tragédia de
Inês de Castro, ou A Castro, editada em 1587,
é uma tragédia de inspiração clássica em 5
atos que ainda hoje se representa nos palcos
portugueses, e é fonte de inspiração em va-
riados locais do mundo. A sua obra poética,
constituída por sonetos, elegias, epigramas,
odes e éclogas, foi reunida num volume inti-
tulado Poemas Lusitanos e neles faz eco do
seu lirismo amoroso apresentando uma visão
ASC

bucólica da Natureza. Capa de Castro da editora Vercial.

160
AGOSTINHO DA
CRUZ (1540-1619)

F
rei Agostinho da Cruz foi um dos
grandes poetas portugueses do pe-
ríodo do renascimento, já com uma
tonalidade algo maneirista no seu estilo.
O afastamento do mundo, o desassosse-
go humano, a solidão, a vida contempla-
tiva e as «saudades» do céu, são temas
abordados na sua poesia. Ruy Ventura,
um outro poeta da Arrábida, onde o fran-
ciscano Agostinho da Cruz se recolheu
como eremita, e sobre a qual escreveu,
refere no seu estudo Frei Agostinho da
Cruz: um poeta para o nosso tempo, que
«o frade arrábido apresenta uma obra só-
lida e teotópica que, expondo sem rebuço
os conflitos interiores e as psicomaquias
do sujeito poético, reflete sobre a erosão
da dignidade humana durante a ‘crise do
renascimento’, propondo linhas de fuga
universais e sempre contemporâneas,
baseadas na «saudade de Deus».

ASC
Frei Agostinho da Cruz,
painel de azulejos.

PADRE ANTÓNIO
VIEIRA (1606-1697)

O
Padre António Vieira não pode ser
colocado do lado de fora da vasta
corrente temática da Saudade, como
traço estruturante da psicologia cultural lusi-
tana. Fernando Pessoa, seu grande admira-
dor, a quem denomina de «imperador da lín-
gua portuguesa», tem com o célebre orador
um comum e dramático sentimento de exílio,
e ambos identificam o seu destino próprio
com o destino da nacionalidade portugue-
sa. A visão profética do «Quinto Império»
do enigmático prosador seiscentista, escora
ASC

Página do livro «Arte de Furtar» de muita da imaginação criadora dos autores da


António Vieira, composto em 1652 chamada Renascença Portuguesa e do pri-
e impresso em 1744. meiro modernismo português.

161
FRANCISCO MANUEL DE MELO
(1608-1666)

A
ristocrata, representante
maior da literatura barroca
da Península Ibérica, Fran-
cisco Manuel de Melo dedicou-se
à Poesia, ao Teatro e à História,
tendo editado dezenas de obras.
Preso pelo rei de Castela pelo seu
suposto envolvimento na causa
da restauração portuguesa, é li-
bertado em 1641, vindo a desem-
penhar missões diplomáticas ao
serviço do rei português, D. João
IV. Por obscuros motivos, polí-
ticos ou passionais, será preso
novamente em 1644, tendo per-
manecido no cárcere até 1655,
período durante o qual, compôs
várias das suas obras mais céle-

ASC
bres. Para além da poesia e do Francisco Manuel de Melo. Retrato a carvão
teatro, grande parte da sua obra de Victor Couto.
é de natureza didática e de crítica
literária, social e moral. A par das
diversas referências nos poemas, as suas reflexões teóricas sobre a Saudade
são apresentadas sobretudo na obra Epanáforas de Vária História Portuguesa,
concretamente na Epanáfora Amorosa III, de 1660.

ALMEIDA GARRETT
(1799-1854)

F
igura maior do romantismo português, Almeida Garrett
foi escritor, dramaturgo, jornalista, revolucionário e ora-
dor. Nascido no Porto, participou na Revolução Liberal
de 1820, partindo depois para o exílio em Inglaterra, onde
conheceu grandes autores britânicos como Shakespeare,
e mais tarde para França, onde escreveu o célebre poema
«Camões». Diplomata na Bélgica ao serviço do governo
português, lê Goethe e Schiller que muito o influenciam.
No plano literário pode considerar-se o autor mais repre-
sentativo do romantismo português, com obras de poesia,
romance, teatro e ensaio, de que destacamos, a célebre
novela Viagens na Minha Terra - com a sua magnífica per-
sonagem Joaninha dos olhos verdes - o romance O Arco
Almeida Garrett,
Litografia de Pedro de Santana, a peça teatral Frei Luís de Sousa, e o já referi-
Augusto Guglielmi do poema Camões ou ainda Folhas Caídas, entre inúmeras
(BNP). outras obras.
ASC

162
SOARES
DOS REIS
(1847-1889)

S
oares dos Reis foi
o maior escultor do
seu tempo e um
dos mais importantes es-
cultores de sempre em
Portugal.
A sua obra-prima «O Des-
terrado» é uma expres-
são sublime do tema da
Saudade, o que o coloca
como figura incontornável
da história do sentimento
saudosista português. In-
compreendido e obstruí-
do sistematicamente nos
seus intentos reformistas
do ensino da arte, aca-
bará por se suicidar com
Retrato de apenas 41 anos. Na sua
Sampaio Bruno. sepultura foi colocado o
busto «Saudade», de sua
ASC

autoria.
SAMPAIO BRUNO
(1807-1915)

F
ernando Pessoa deixou escrita numa folha
escondida no seu famoso baú a seguinte fra-
se: «Sampaio Bruno é hoje, em Portugal, o
único que sabe.»
Sampaio Bruno, filósofo português oitocentista
foi, de facto, figura de referência para a geração
da «Renascença Portuguesa», influenciando o
pensamento de importantes personalidades como
Fernando Pessoa, Teixeira de Pascoaes, Leonar-
do Coimbra ou Jaime Cortesão. O seu pensamen-
to é prenhe das preocupações fundamentais da
filosofia: a questão central da existência de Deus,
o Homem, a sua condição e destino, a origem e
sentido do Universo.
O fim do homem é ajudar a Natureza. Esta sublime
frase do poeta alemão Novalis que Bruno chama
para si, é bem reveladora do seu ideal e da missão
primordial que atribui ao homem na sua resistên-
cia e luta contra o mal: ser libertador-integrador,
Retrato de
diminuir a distância que o separa até à reintegra- Soares dos Reis.
ção final no Homogéneo ou Espírito puro.
ASC

163
CAROLINA
MICHAËLIS
(1851-1925)

C
arolina Michaëlis de Vasconcelos,
de origem alemã (nasceu em Ber-
lim e morreu no Porto), foi escrito-
ra, crítica literária e primeira mulher a dar
aulas numa universidade em Portugal.
De entre os muitos estudos e investiga-
ções publicados em livro sobre literatura
portuguesa, especialmente sobre poesia,
destacamos aquele intitulado A Saudade
Portuguesa, de 1914, ainda hoje um tex-
to de referência para os estudiosos desta
temática. Carolina Michaëlis foi uma das
primeiras mulheres a entrar na Academia
de Ciências de Lisboa.

Retrato de Carolina Michäelis de


Vasconcelos por Karl Zimmernan (1867).
ASC

ANTÓNIO NOBRE
(1867-1900)

C
onsiderado por Leonardo Coimbra
como um dos poetas da Saudade, An-
tónio Nobre é figura indispensável neste
breve alinhamento de personalidades da filo-
sofia e da poesia de teor saudosista. Susa-
na Relvas em O Espaço Poético da Saudade
em António Nobre Revisitado por Leonardo
diz-nos que nas suas obras, «sintetizam-se
as estéticas finisseculares em efervescência,
desde o tardo Romantismo, ao Decadentismo
e Simbolismo, a que não são alheios laivos de
Lusitanismo, Nacionalismo e Sebastianismo,
cultivados na época por uma plêiade de es-
critores, de Fernando Pessoa a Afonso Lopes
Vieira, e anunciadores do advento do Moder-
nismo.» e mais à frente acrescenta: «em An-
tónio Nobre, a memória atinge uma dimensão
ontológica, metafísica e escatológica, con-
templando diferentes níveis de temporalidade,
ASC

da génese à eternidade, da lembrança à sau-


dade do futuro». Retrato de António Nobre.

164
ANTÓNIO
CARNEIRO
(1872-1930)

A
ntónio Carneiro foi pintor, poe-
ta e professor, um dos raros
casos de pintura simbolista
em Portugal. Aproxima-se do movi-
mento saudosista, tendo integrado a
sociedade Renascença Portuguesa e
dirigido ,com Teixeira de Pascoaes, a
revista A Águia. Nessa linha de sensi-
bilidade saudosista podemos desta-
car o tríptico A Vida, uma obra original
e única, que rompe com o naturalis-
mo e aborda a essência da existência
humana numa perspetiva simbolista,
não alegórica, em que que se pode
fazer uma leitura simbólica da Espe-
rança, Amor e Saudade - títulos de
cada um dos painéis do tríptico - num
Retrato de António Carneiro
ciclo de vida que se renova, fruto do
por M. Nogueira da Silva, 1880.
amor, através da criança, para a ge-
Biblioteca Nacional. ração seguinte.
ASC

AFONSO
LOPES VIEIRA
(1876-1946)

P
oeta eminente, ligado à
corrente da Renascença
Portuguesa, é considera-
do um dos primeiros represen-
tantes do neogarrettismo, com
vastíssima e multifacetada obra
publicada em livro e em diver-
sos jornais e revistas literárias.
Foi fundador e redator da re-
vista Lusitânia, de que Carolina
Michaelis de Vasconcelos será
diretora, e dinamizador de um
vasto conjunto de atividades vi-
sando o «reaportuguesamento»
do país, indo buscar à tradição
portuguesa, grandes obras e au- Afonso Lopes Vieira.
tores como Gil Vicente, Camões, Retrato por Columbano
ou Almeida Garrett. Bordalo Pinheiro.
ASC

165
TEIXEIRA DE
PASCOAES
(1877-1952)

T
eixeira de Pascoaes é o gran-
de poeta e teórico do Saudo-
sismo português do início do
século XX. O seu entendimento
da poesia como fenomenologia
da alma e a poética da saudade
como integradora da totalidade da
natureza humana: corpo, alma e
espírito, aproxima-o da visão on-
tológica de Heidegger. Fundador
do movimento da Renascença e
da revista A Águia, seu órgão ofi-
cial, publicou inúmeras obras de
poesia e prosa, de que se destaca
para o tema em causa, Marânus,
de 1911, Regresso ao Paraíso, de
Retrato de Teixeira de
Pascoaes. 1912 e A Arte de Ser Português,
de 1915.
ASC

ANTÓNIO
PATRÍCIO
(1878-1930)

A
ntónio Patrício manteve
sempre uma aristocrá-
tica independência em
relação a escolas literárias e
de pensamento do seu tempo.
Contudo, é possível encontrar
na sua obra proximidade com
os poetas da Renascença Por-
tuguesa, partilhando com es-
tes uma nostalgia messiânica
e um imaginário de grandeza
mística, que arrasta consigo,
inevitavelmente a temática da
Saudade, bem presente em
vária da sua poesia e da sua
arte dramática, de que desta-
camos como exemplo, Pedro,
o Cru, que nos traz de novo
Retrato de António Patrício.
o drama amoroso de Inês de Biblioteque National de France.
Castro.
ASC

166
ANTÓNIO
CORREIA
DE OLIVEIRA
(1879-1960)

O
poeta António Correia de
Oliveira aproximou-se do
saudosismo em 1907, foi
sócio da Renascença Portugue-
sa, tendo colaborado nos primei-
ros números da revista A Águia.
Foi notado por Teixeira de Pas-
coaes e por Fernando Pessoa,
que o referiram em textos publi-
cados na revista. Contudo, com
o aparecimento do movimento
do integralismo lusitano, o poe-
ta afasta-se cada vez mais de A
Aguia, tendo mesmo sido dura-
mente criticado por José Mari-
nho, que o acusou de um nacio-
nalismo fechado. Entre as suas
ASC

obras mais conhecidas, desta-


Retrato assinado de António Correia de Oliveira. que-se Saudade Nossa.

JUDITH TEIXEIRA (1880-1959)

S
eria injusto deixar de fora desta breve enu-
meração de autores, Judith Teixeira que
ocupa um lugar invulgar na história
da literatura e do modernismo portu-
guês. Não obstante o seu manifesto
datilógrafo inédito Da Saudade, em
que a renega (à saudade) e a Con-
ferência De Mim, em que a consi-
dera apenas como um mal, uma
sombra doentia, que não deve já
ser considerada como tema da
ASC

modernidade, toda a sua obra


poética está eivada da palavra e
da temática da saudade, de uma
forma muito própria, mais eróti-
ca, sensual e amorosa. Meu amor
como eu sofro este tormento/da tua
ausência... Este primeiro verso do
seu poema Ausência evidencia o re-
tomar permanente da tradição da lírica
trovadoresca, comum a outros autores da
Saudade...

167
LEONARDO
COIMBRA
(1883-1936)

L
eonardo Coimbra, um dos mais in-
signes pensadores portugueses,
estabelecendo uma forte relação
dialética entre filosofia e arte, confere à
poesia uma espécie de missão profética
da humanidade, e atribui aos poetas por-
tugueses a mais alta função de intérpre-
tes da alma nacional. A sua antropologia
filosófica, centrada na pessoa moral, fun-
damenta o seu pensamento criacionista
que concilia o espírito e a matéria, o real
e o ideal, valores de unidade revelados
no sistema filosófico do saudosismo de
poetas como Teixeira de Pascoaes, entre
outros. As suas obras completas foram
editadas pela INCM. Destacamos os tex-
tos Camões e a Fisionomia Espiritual da
Retrato de Leonardo Coimbra. Pátria e A Alegria, a Dor e a Graça.
ASC

ANTÓNIO
SÉRGIO
(1883-1969)

A
ntónio Sérgio, figu-
ra incontornável da
cultura portuguesa
da primeira metade do sé-
culo XX, entra neste breve
alinhamento de poetas e
pensadores da Saudade,
pelo lado da oposição.
Com efeito é de destaque
a polémica que manteve
com Teixeira de Pascoaes,
opondo-se à orientação
saudosista que este impri-
miu à revista A Águia, órgão
da Renascença Portugue-
sa. Para Sérgio, o saudosis-
mo representava um nacio-
nalismo místico decrépito
Retrato de
do ponto de vista estético, António Sérgio.
psicológico e político.
ASC

168
JAIME
CORTESÃO
(1884-1960)

F
undador, com Teixeira de Pas-
coaes e Leonardo Coimbra,
do movimento da Renascença
Portuguesa, Jaime Cortesão é figura
maior da cultura nacional do sécu-
lo XX, com uma vasta e diversifica-
da obra nos campos da história, da
política, da pedagogia, da poesia e
da ficção. A sua poesia, imbuída de
panteísmo, misticismo naturalista e
espiritualismo, enquadra-se no movi-
mento literário do saudosismo, ainda
que se defina também como «poeta
de ação». Afastando-se da ideologia
mais prospetiva de Pascoaes, e apro-
ximando-se da visão de Raul Proença
e António Sérgio, procurou sempre
conciliar os dois polos que se dividiam
no seio do movimento da Renascen-
ça que, acreditava, seria mais forte se
integrasse ambas as correntes.

Retrato de
Afonso Duarte.

ASC
AFONSO
DUARTE
(1884-1958)

P
oeta inicialmente influencia-
do pelo saudosismo, como é o
caso do volume publicado em
1929 Os Sete Poemas Líricos, Afonso
Duarte foi evoluindo a sua produção
poética para um registo mais simples,
impressionista e marcado por uma
poética de fundo popular, que acabou
por influenciar poetas posteriores da
geração neorrealista, como Carlos de
Oliveira. Na coletânea Ossadas, que
reúne poemas escritos entre 1922 e
ASC

1946, podemos aperceber-nos da sua


Capa de livro com desenho de António
evolução poética.
Carneiro.

169
FERNANDO
PESSOA
(1888-1935)

N
o consagrado poeta da mo-
dernidade abundam as re-
ferências à Saudade, ainda
que o seu autor não a tenha nun-
ca teorizado, talvez porque desde
muito cedo imaginou o seu pró-
prio projeto literário e filosófico,
que haveria de suplantar o génio
do Marão e o próprio Camões.
Diz-nos Paulo Borges no seu texto
Fernando Pessoa e a saudade «do
que nunca houve»: «Cremos haver
também uma saudade implícita
em muitos poemas de Fernando
Pessoa, a começar pela poesia
em língua inglesa, onde se respi-
Retrato de Fernando ra a atmosfera da anamnese e do
Pessoa, numa Pintura a desejo de regresso a uma vida ra-
óleo do espanhol Adolfo
dicalmente anterior a tudo o que é
Rodriguez Castñé.
manifesto e conhecido...»
ASC

JOAQUIM DE CARVALHO
(1892-1957)

D
istinto professor de filosofia da Uni-
versidade de Coimbra e grande es-
pecialista internacional da obra de
Espinosa, foi também ensaísta de rigo-
rosa metodologia, da literatura e da His-
tória das Ideias, com estudos sobre vá-
rios autores portugueses, como Luís de
Camões ou Teixeira de Pascoaes. Sobre
a Saudade, Joaquim de Carvalho enten-
de-a como «ausência» e «desejo», des-
valorizando a sua dimensão de memória
ou lembrança. Interrogando-se sobre a
especificidade galaico-portuguesa da
saudade, refere que «a saudade é um fe-
nómeno essencialmente humano Como
vocábulo, é um idiomatismo privativo de
luso-galaicos; no entanto, o que ela ex-
prime é próprio da constituição psíquica
ASC

humana e como tal exprimível por pala-


Retrato de Joaquim de Carvalho.
vras de som e grafias diferentes».

170
FLORBELA
ESPANCA
(1894-1930)

N
ão tendo nunca aderido formal-
mente a qualquer movimento,
e, por conseguinte, também
não ao movimento do Saudosismo,
Florbela Espanca não deixa, por via
da sua obra poética – que fala de
amor, sofrimento e saudade – de se
constituir como um dos mais eleva-
dos expoentes poéticos da temática
da Saudade.
Voz feminina que ousa falar de sen-
sualidade, não é, evidentemente, bem
aceite numa sociedade altamente
conservadora, pelo que a sua obra
só muito mais tarde terá o mereci-
do reconhecimento. A sua obra-pri-
ma Charneca em Flor será editada já
Retrato de Florbela Espanca.
após a sua morte.
ASC

JOSÉ MARINHO
(1904-1975)

J
osé Marinho foi discípulo de Leonar-
do Coimbra na Faculdade de Letras
do Porto, tendo-se licenciado em
1925 com uma dissertação sobre Teixei-
ra de Pascoaes, o qual considerava ser
o mais importante poeta português do
seu tempo, superior mesmo a Fernando
Pessoa.
Autor de uma obra extensíssima, em
grande parte ainda por estudar, José
Marinho referiu-se à saudade como
expressão da vida humana em face do
tempo. E fala do contato original com
Deus no início dos tempos, estabele-
cendo uma relação entre a ontologia
da saudade e a teoria do mito. Entre
os seus textos fundamentais, refira-se
ASC

Verdade, Condição e Destino no Pensa-


Cartaz do lançamento do II Tomo de Teoria
mento Português Contemporâneo.
do Ser e da Verdade.

171
Álvaro Ribeiro.

ASC
ÁLVARO RIBEIRO (1905-1981)

Á
lvaro Ribeiro, discípulo de Leonardo Coimbra e de Teixeira Rego na Faculdade
de Letras do Porto, mais tarde extinta pelo regime político, participou ativa-
mente nas últimas atividades da Renascença Portuguesa. Encerrada também
esta Associação e dispersos os seus colaboradores, Álvaro Ribeiro assinou o mani-
festo da Renovação Democrática que durou até 1943, ano em que publicou o seu
livro O Problema da Filosofia Portuguesa, a qual (filosofia portuguesa) se pretendia
constituir como movimento cultural herdeiro da Renascença Portuguesa.

AGOSTINHO DA
SILVA (1906-1994)

C
hamamos aqui à liça Agostinho da Silva,
figura real e idiossincraticamente singular
da cultura portuguesa do século XX, pela
sua interpretação da saudade que lhe advém
duma visão profética da história, em que passa-
do e futuro não são um processo de sucessão
(passado-presente-futuro). Nessa linha, a sauda-
de para ele não é o saudosismo passadista, mas
a saudade do futuro, uma saudade que anula o
tempo histórico, que é capaz de reintegrar a mul-
tiplicidade do ser, numa unidade do ser que age
na temporalidade. É uma visão metafísica que
anseia a realização do Paraíso na Terra, o Reino
do Espírito, o célebre Quinto Império, uma civili-
ASC

zação de homens «conversáveis», livres do eco- Biografia de Agostinho da


nomicismo, do individualismo e da tecnocracia. Silva,por António Cândido Franco.

172
AFONSO
BOTELHO
(1919-1996)

A
fonso Botelho, en-
saísta e escritor,
participou no mo-
vimento da Renascença
Portuguesa e da Escola
da Filosofia Portuguesa,
tendo sido discípulo de
Álvaro Ribeiro e de José
Marinho. Especializou-se
na temática da Saudade,
a partir do estudo de Leal
Conselheiro de D. Duarte Afonso Botelho.

ASC
e da obra de Teixeira de
Pascoaes. Na sua teoria
da saudade, Botelho de-
fende que o homem sen-
te-se e sabe-se separado DALILA
da origem - Deus - e que,
através do sentimento da PEREIRA
saudade pode retornar ao
paraíso perdido.
DA COSTA
(1918-2012)

E
scritora, ensaísta e filósofa,
Dalila Pereira da Costa, cuja
obra se encontra ainda par-
ca de estudos aprofundados, não
entende a saudade como concei-
to, mas como movimento e ação,
como algo concreto e vivido, nas-
cido de um esforço de recupera-
ção do vínculo original com Deus.
Citando Arnaldo Pinho, «Talvez
que, a originalidade mais profunda
de Dalila tenha estado na supera-
ção do dualismo paganismo/cris-
tianismo, mito/razão, pela sauda-
de, como espécie de sintetizador
de toda a história de Portugal».
Refiram-se, a título de exemplo,
as obras O Esoterismo de Fernan-
do Pessoa, Introdução à Saudade
e Da Serpente à Imaculada, entre
tantas outras de extraordinária e
mística sensibilidade.

Retrato à janela de Dalila Pereira da Costa.


ASC

173
ANTÓNIO QUADROS
(1923-1993)

P
ensador, crítico, professor, poeta e fic-
cionista, o autor de Portugal, Razão e
Mistério pertenceu ao Grupo da Filoso-
fia Portuguesa, tendo sido um dos fundado-
res da revista/movimento 57, da Sociedade
Portuguesa de Escritores e do IADE. São
obras fundamentais no que respeita à pers-
crutação da «alma» portuguesa: Poesia e
Filosofia do Mito Sebastianista, o já referido Retrato de António quadros (foto
Portugal, Razão e Mistério e A Arte de Conti- retirada do website Fundação
nuar a ser Português. António Quadros).

EDUARDO LOURENÇO (1923-2020)

P
or muitos considerado o mais importante
pensador da identidade portuguesa e in-
ternacionalmente reconhecido como uma
das consciências culturais da Europa, a par de
Morin ou Habermas, Eduardo Lourenço, com o
seu modo próprio de ensaísta trágico, escre-
veu algumas das mais lúcidas reflexões sobre
a saudade e a identidade nacional. O Labirin-
to da Saudade – Psicanálise Mítica do Destino
Português, ou Portugal como Destino, seguido
de Mitologia da Saudade são obras incontor-
náveis para um entendimento do tema da sau-
dade e para que Portugal se veja «tal como foi
e é, apenas um povo entre os povos. Que deu
a volta ao mundo para tomar a medida da sua
Eduardo Lourenço. Capa de
maravilhosa imperfeição.»
Fotobiografia, Contraponto Editores.

ANTÓNIO TELMO (1927-2010)

A
ntónio Telmo ocupa um lugar de direito na tradição da
Escola de Filosofia Portuguesa. Diz Miguel Real: «o lu-
gar de António Telmo na cultura portuguesa releva-se
por ter sido o grande pensador da segunda metade do século
XX, na esteira de Sampaio Bruno e Fernando Pessoa, a teo-
rizar o esoterismo, atribuindo-lhe um estatuto de testemunho
e prova tão positivo quanto a prova factual mais concreta...»
A sua teorização da temática da saudade encontra-se disper-
sa em várias obras, desde logo na História Secreta de Portu-
gal, no capítulo VIII dedicado a Teixeira de Pascoaes, e que
ASC

António Quadros considerou um dos melhores senão o me- Cartaz de Colóquio sobre
lhor texto dedicado a Pascoaes. António Telmo, 2011.

174
LIMA DE
FREITAS
(1927-1998)

L
ima de Freitas foi pin-
tor, ilustrador e ensaísta.
António Quadros, seu
amigo próximo, refere-se do
seguinte modo à fase que Gil-
bert Durand apelidou de «Mi-
tolusismos» na obra de Lima
de Freitas, e com isso justifi-
camos a sua inclusão nesta
breve resenha de autores: «(…)
Nos seus mitolusismos atinge
aquele ponto limite em que
o artista não é já o expressor
de uma subjetividade, de uma
realidade, mas o desvelador, o
narrador e o reinventor de uma
objectividade, de uma realida-
de, de um projeto coletivo, que
transcendem o tempo e o es-
paço, exprimindo a sabedoria
das nações ou de uma estru-
Lima de Freitas,
tura cultural-nacional.» (Qua-
Autorretrato, 1948.
dros,1998).
ASC

PINHARANDA GOMES
(1939-2019)

H
istoriador, filósofo e ensaísta, autor de di-
versas obras sobre a história do pensamen-
to e da filosofia portuguesa, Pinharanda
Gomes fez parte do Movimento da Cultura Portu-
guesa, mais conhecido por Movimento 57. Pere-
grino do Absoluto, sua primeira obra, Dicionário
de Filosofia Portuguesa, Meditações Lusíadas, A
Patrologia Lusitana, são alguns dos títulos deste
dedicado historiador do pensamento português
na perspetiva espiritualista que, com a sua vasta
obra, nos proporciona uma visão clara da linha
de continuidade de pensadores portugueses,
que ao longo dos tempos vêm fazendo uma
interrogação da história, mais espiritualista e
transcendente. Pinharanda Gomes fala da sau-
dade como um vínculo com o Divino, confe-
rindo-lhe uma realidade ontológica, na medida
ASC

em que, existindo , se opõe à nulidade. Pinharanda Gomes.

175
«É então que o homem compreende a essência
transcendente da Saudade. Ele vê assim que fora
incessante peregrino na terra, porque nenhum
lugar é seguro e estável, inquieta ansiedade de
posse porque nenhum tempo poderá guardar-
lhe na Vida a conservação das flores do seu jardim
interior. E a Saudade cresce sobre si mesma,
agigantando seu formidável corpo imanente,
de terra e poeira de luz cósmica, dum infinito
corpo transcendente de céu e luz espiritual.»
....
O homem é opaco à luz do Sol, por isso se alonga a seu
lado a sombra do seu corpo; no corpo do homem há
opacidades que resistem à luz do espírito, por isso a
sombra da Saudade em que este sempre se envolve.
Suprimir o espírito ou o corpo eis, na aparência, os dois
únicos processos de suprimir a Saudade. Suprimir o
espírito é impossível como o demonstram as tentativas
materialistas; suprimir no corpo as opacidades, isto é,
glorificá-lo, é só possível a Deus e ainda não suprimiria
a Saudade, porque sendo Deus infinito a sua visão
aumentará nas almas a ansiedade da posse do amor.
...
«Por todos os cantos do Espaço, por todos os caminhos
da Terra e por todas as estradas do Céu, fomos lançando
fios de desejo e sonho que a vida vai partindo em
seu desajeitado caminhar, e em nós fica a lembrança
desses sonhos em corpo espectral de saudade».

– Leonardo Coimbra, 1883-1936

176
«Se por filosofia se entender a teoria geral do
mundo como síntese do saber ou a fundamentação
crítica da possibilidade do próprio saber, a saudade
é um acontecimento individual que se submerge
apagadamente na interpretação geral da vida
psicológica; porém, se se entender que para além do
mundo que nos é dado, do qual somos espectadores,
há o mundo das qualidades e das significações, do qual
somos criadores pela arte, pela ética e pela metafísica,
e que a filosofia é fundamentalmente interpretação
qualitativa, então a saudade pode ser elemento capital
de uma interpretação metafísica da existência, por
implicar uma tomada de posição perante o mundo, a
qual afeta a totalidade da existência vivida e a viver....
A presença espiritual da ausência outrora vivida
e agora desejada, que é porventura a essência da
saudade, desentranha alguns problemas, como o da
realidade vital do tempo, o da realidade da mudança
e da alteração e o da existência da multiplicidade
irredutível dos seres e das consciências, cujas
soluções são elementos indispensáveis de qualquer
configuração metafísica da existência e da conceção
da vida. Com serem importantes, creio não
obstante, que a significação suprema da saudade
consiste em conduzir o pensamento a interrogar-
se e a interrogar a existência vivida e a viver,
percetível e desejável, na sua expressão concreta,
e não meramente abstrata e menos ainda como
espetáculo de que a mente e o coração humanos
sejam meros espectadores, passivos e indiferentes»

– Joaquim de Carvalho, A Alma Portuguesa.


Problemática da Saudade. 1958

177
©JOSÉ FRADE_EGEAC

Museu do Fado.

178
MUSEU
DO FADO
Um Museu
sobre todos nós,
portugueses, postos
em música
SARA PEREIRA
Diretora do Museu do Fado

179
O
Fado somos nós portugueses, postos em música. Esta definição tão
feliz do Fado é de Rui Vieira Nery. No Fado celebramos toda a nossa
poesia - da tradição popular à criação literária contemporânea - e
os momentos mais marcantes da nossa história. Património intrin-
secamente ligado às nossas raízes culturais, o Fado é também hoje,
reconhecidamente, uma imagem de marca de modernidade da cidade de Lisboa e
do País. Uma visita ao Museu do Fado permite-nos redescobrir o diálogo cúmplice
que a canção urbana de Lisboa desenvolveu, desde cedo, com outras artes e a com-
preender o papel fundamental que o Fado tem no nosso olhar sobre nós próprios.
Porque no Fado a ligação à tradição foi sempre desejo de futuro. Igual e diferente de
si-mesmo, em cada metamorfose o Fado recria-se e reinventa-se, surpreende-se
e surpreende-nos.
Único no mundo, o Museu do Fado propõe uma viagem fascinante pela história
de um património vivo, que partilhamos orgulhosamente com o mundo.
Arte da música e dos sons que a fa-
zem, o Fado é também a imagem com
que se mostra e nos fascina. Poderosa
imanência de um colectivo, a história
do Fado é também a história de to-
dos aqueles que o recriam e celebram
noutros domínios da criação artísti-
ca. Obra-prima de um colectivo, ars

©JOSÉ FRADE_EGEAC
populi que continuamente nos reme-
te para um espaço de emoção parti-
lhada, identificando-nos entre nós e
perante o outro. Ao longo de aproxi- A Casa da Mariquinhas.

©JOSÉ FRADE_EGEAC

Quadro O Fado de José Malhoa.

180
ÚNICO NO MUNDO, O MUSEU DO FADO
PROPÕE UMA VIAGEM FASCINANTE PELA
HISTÓRIA DE UM PATRIMÓNIO VIVO

madamente dois séculos, o Fado desenhou um percurso de sucesso e consagração


construído em permanente diálogo com outras áreas artísticas.
No Teatro de Revista, o Fado marcou presença desde 1870, encantando sucessivas
gerações de atores, encenadores e produtores teatrais, que cedo contribuíram para
a sua disseminação junto de públicos cada vez mais alargados. Com o Cinema man-
teve um diálogo antigo e cúmplice, desde a época do cinema mudo das primeiras
décadas do século XX, até à produção cinematográfica contemporânea. Também
nas artes visuais portuguesas dos séculos XIX-XXI, ecoa a celebração colectiva do
valor excepcional do Fado como símbolo identificador da cidade de Lisboa, o seu
enraizamento profundo na tradição e história cultural do País, o seu papel na afir-
mação da identidade cultural, enfim, a sua importância como fonte de inspiração
e de diálogo cultural entre povos e comunidades. A representação do Fado na arte
portuguesa ilustra o profundo enraizamento do género à escala nacional, bem co-
mo a transversalidade da sua representação, como objecto de fascínio e de ines-
gotável citação e recriação plástica por sucessivas gerações de artistas, no quadro
de distintas disciplinas, motivações e constrangimentos estéticos, ideológicos ou
simbólicos. À luz da representação visual do Fado, podemos destrinçar o percurso
de evolução e disseminação da canção urbana, nos diferentes períodos cronoló-

©JOSÉ FRADE_EGEAC

«Ao longo de aproximadamente dois séculos, o Fado desenhou um percurso de sucesso e


consagração, construído em permanente diálogo com outras áreas artísticas»

181
gicos que presidiram à sua génese e implantação na Lisboa oitocentista, passando
pela sua institucionalização no primeiro quartel do século XX, até conquistar o
protagonismo que lhe reconhecemos hoje, enquanto imagem de marca, em plena
afirmação no circuito internacional da world music.

UM MUSEU DE MEMÓRIA E MODERNIDADE


Nas últimas décadas o Fado adquiriu uma visibilidade crescente no conjunto da
vida cultural portuguesa. Para além de se tratar do género musical português com
maior capacidade de afirmação internacional e de viver actualmente um período
de grande dinamismo e vitalidade, hoje reconhecemos nele um objecto de estudo
científico, de legitimidade incontestada. Fazendo a ponte entre o século XIX e o
século XXI o Museu do Fado proporciona uma viagem no tempo pela nossa história
coletiva.
Salvaguardando a memória, o Museu do Fado aposta nas novas tecnologias no seu
circuito expositivo, através de registos audiovisuais, de postos de consulta permi-
tindo a pesquisa sobre centenas de artistas, de um audioguia facultando a audição
de centenas de fados gravados, de um Roteiro de Fado disponibilizando ao visitante
informação sobre as Casas de Fado de Lisboa, ou ainda do Arquivo Sonoro Digital,
a partir do qual podemos escutar milhares de gravações históricas.
A partir da sua localização privilegiada no histórico bairro de Alfama, o Museu
do Fado desenvolve uma vasta programação que inclui a realização regular de con-
certos, exposições temporárias, a programação da editora Museu do Fados Discos,
as edições de livros, seminários e workshops, a par de atividades de investigação
científica, fomentando parcerias com instituições do ensino superior, enquanto
dialoga abertamente com os detentores do conhecimento sobre esta prática: intér-
pretes, músicos, autores, compositores ou construtores de instrumentos.

©JOSÉ FRADE_EGEAC

Sala Amália.

182
UMA CASA DE TODOS OS ARTISTAS
De Severa a Amália, de Alfredo Marceneiro a Carlos do Carmo e aos artistas das
novas gerações, o Fado tem uma história vivíssima e é uma arte em permanente
evolução. A ligação à comunidade artística é um dos pressupostos fundamentais da
actividade do Museu do Fado e para a consagração do fado como Património Cultu-
ral Imaterial da Humanidade em 2011 (UNESCO), foi determinante a participação
dos artistas que fizeram desta a sua causa, assumindo-a com vigor e determinação,
com memória e modernidade.

UM MUSEU À MEDIDA
Disponibilizando instrumentos de visita para públicos de distintas geografias e de
diferentes gerações, o Museu do Fado promove uma oferta educativa regular atra-
vés de uma Escola com cursos de guitarra portuguesa, viola e ateliers de canto, de
oficinas pedagógicas dirigidas a todos os níveis de ensino, mas também uma oficina
de construção de guitarra, visitas cantadas, workshops para públicos estrangeiros e
projectos à medida, construídos directamente com as Escolas do Ensino Básico e Se-
cundário, em função dos programas curriculares e das metas educativas delineadas.

UM CONVITE À DESCOBERTA DE UM OUTRO MUSEU SEM PAREDES


O Museu do Fado desenvolve uma programação regular de exposições e de con-
certos, dentro e fora de portas, edições de livros, discos, conferências, enquanto
dialoga abertamente com intérpretes, músicos, autores, compositores e construto-
res de instrumentos que participam activamente na programação. A todos o Museu
do Fado presta homenagem, assumindo-se como ponto de partida e de descoberta
do Fado nesse outro vastíssimo museu sem paredes, que se abre de Lisboa aos
grandes palcos do mundo.
©JOSÉ FRADE_EGEAC

O museu inclui oferta educativa com


cursos de guitarra portuguesa, viola e
ateliers de canto.

183
O MIL, A
NOVA ÁGUIA
E A SAUDADE
RENATO EPIFÂNIO
Presidente do MIL e Diretor da
Revista NOVA ÁGUIA

Capas da revista NOVA ÁGUIA


dedicadas a grandes figuras da
Saudade e da Filosofia Portuguesa.
A
poiado por muitas das mais relevantes personalidades da sociedade
civil portuguesa, o MIL (Movimento Internacional Lusófono) é uma
Associação Cultural e Cívica registada notarialmente no dia quinze de
Outubro de 2010, que conta já com mais de uma centena de milhares
de adesões de todos os países e regiões do espaço lusófono. Entre
os nossos órgãos, eleitos em Assembleia Geral, inclui-se um Conselho Consultivo,
constituído por mais de meia centena de pessoas, representando todo o espaço da
lusofonia.
No essencial, defendemos o reforço dos laços entre os países e regiões do espaço
lusófono – a todos os níveis: cultural, social, económico e político –, visando a
criação de uma verdadeira comunidade lusófona, numa base de liberdade e frater-
nidade. Enquanto Associação Cultural e Cívica, que neste momento preside à PASC:
Plataforma de Associações (Portuguesas) da Sociedade Civil/ Casa da Cidadania, o
MIL tem sobretudo apostado num caminho de cariz cultural, aquele que a nosso
ver mais resultados terá a médio/ longo prazo.
Daí, desde logo, a nossa Revista, a NOVA ÁGUIA, que procura honrar o espírito
da Revista A ÁGUIA (1910-1932), órgão do movimento da «Renascença Portugue-
sa», que reuniu a elite cultural da sua época. À semelhança da revista A ÁGUIA,
que procurou dar uma orientação maior à República (lembramos que ela foi lan-
çada a 1 de Dezembro de 1910), a NOVA ÁGUIA, procura, com o mesmo espírito,
repensar a nossa situação no século XXI. Ela foi lançada em 2008 para, sobretudo,
promover o conhecimento da nossa tradição filosófica e cultural numa perspetiva
futurante – na premissa de que nenhum povo que despreze a sua tradição poderá
ter real futuro.
A par da Revista NOVA ÁGUIA, temos promovido uma série de outras publica-
ções, nomeadamente, também desde 2008, as Actas dos Colóquios Luso-Galai-
cos sobre a Saudade: III Colóquio (2008), IV Colóquio (2012), V Colóquio (2017),
VI Colóquio (2018) e VII Colóquio (2022). Estes Colóquios iniciaram-se ainda no
século passado, em 1993, promovidos, em particular, pelo Instituto de Filosofia
Luso-Brasileira, em parceria com outras entidades, portuguesas e galegas. Desde a
nossa fundação, o MIL tem sido uma dessas entidades parceiras.
A nosso ver, estes Colóquios têm sido sobretudo uma ponte de diálogo cultural
entre Portugal e a Galiza – e não apenas a respeito da temática da Saudade. De tal
modo que temos ampliado o âmbito desses Colóquios: para Encontros sobre Filo-
sofia e Cultura Luso-Galaica. O próximo será já em 2024 e, uma vez mais, iremos
aprofundar esse diálogo cultural entre a Galiza e Portugal, sendo que a temática da
Saudade extravasa em muito o espaço luso-galaico, como muito bem demonstrou
António Braz Teixeira num recente livro, publicado pelo MIL: «A saudade na poe-
sia lusófona africana e outros estudos sobre a saudade» (2021). Na Revista NOVA
ÁGUIA, ao longo de todos os seus números já lançados – mais de três dezenas,
desde 2008 –, podemos também encontrar diversos ensaios que o comprovam.

185
VisoVox
POESIA VISUAL E SONORA
A N A H A T H E R L Y
A N T Ó N I O A R A G Ã O
( P T )
( P T )
B A R T O L O M É F E R R A N D O ( E S )
C H R I S T I N E W I L K S ( G B )
D A V I D J H A V E J O H N S T O N ( C A )
E. M. D E M E L O E C A S T R O ( P T )
E N Z O M I N A R E L L I ( I T )
F E R N A N D O A G U I A R ( P T )
F R A N K L I N V A L V E R D E ( B R )
J A A P B L O N K ( N L )
J I M A N D R E W S ( C A )
J O H A N N A D R U C K E R ( U S A )
J Ö R G P I R I N G E R ( A T )
J O R G E D O S R E I S ( P T )
J U L I E N B L A I N E ( F R )
L U Í S A F A R I A ( P T )
M A R Í A M E N C Í A ( E S )
M I G U E L A Z G U I M E ( P T )
P A T R I K D U B O S T ( F R )
S A L E T T E T A V A R E S ( P T )
S T E V E M C C A F F E R Y ( C A )

VisoVox,
Exposição de
Poesia Visual
e Sonora,
organizada pelo
Centro de Arte
da Fundação
Eugénio de
Almeida.

EXPOSIÇÕES
DE LETRAS
Nova estética, novo
modernismo
MARCOS ALMENDROS
Editor de Ya lo dijo Casimiro Parker

186
P
ercorremos as cidades e as principais figuras da poesia portuguesa do
século XX, os laços que teceram histórias com a inconsciente intenção
de quebrar as tradições. Aqui vive a face da literatura portuguesa: A
prática poética e cultural que reside no abismo por vontade própria.
A rua de Miguel Bombarda é uma rua do Porto que nos encaminha
para fora do centro da cidade – deixamos para trás esse núcleo histórico repleto de
turistas – onde se situam as galerias de arte que parecem competir para serem mais
modernas do que o «Balloon Dog» de Jeff Koons. De entre as pedras aparece Maté-
ria Prima: uma estrutura ingovernável dedicada à venda de discos, livros, revistas
e fanzines de moda onde prevalece o tato, as formas várias e a experimentação em
cada peça realizada por artistas, editoras, etiquetas discográficas ou aventureiros
que encontram o seu lugar num espaço que deixa voar as mentes das pessoas dis-
postas a aventurar-se neste outro mundo.

BEM-VINDO À OUTRA CULTURA PORTUGUESA


Mas o Porto, Portugal em geral, constrói a sua vanguarda junto ao passado. A dez
minutos a pé desta Materia Prima está localizada a Livraria Lello (a mais emblemá-
tica de Portugal junto à lisboeta Bertrand, fundada em 1732, a livraria mais antiga
do mundo), construída em 1869 e que se tornou popular porque serviu como inspi-
ração para J.K. Rowling para a saga de Harry Potter. Foi descrita por Enrique Vila-
-Matas como «a livraria mais bonita do mundo». Não vou deter-me a descrever o
discutível catálogo literário que ocupa as suas prateleiras, nem o numeroso público
que se apinha para se fotografar nesta livraria neo-gótica de madeira talhada à mão,
com arcos quebrados, uma escadaria vermelha de sonho em espiral e um vitral que
oferece uma grande luminosidade.
Estas duas livrarias mostram o contraponto cultural que coexiste em Portugal,
de um lado encontramos um local de investigação e desenvolvimento cultural, por
outro o reconhecimento que transformou esta livraria numa atração turística para
visitantes da cidade.
Outra livraria do Porto é a Poetria. Praticamente tudo o que oferece é poesia e os
seus proprietários apoiam uma nutrida editora -chamada «Fresca» - principal-
mente destinada a escritores contemporâneos portugueses. Uma livraria pequena
com muitos nomes desconhecidos para os leitores menos doutos na poesia deste
país.
O Porto tornou-se o nosso ponto de partida, mas geraremos alianças. Estamos
a aproximar-nos da essência : a literatura experimental portuguesa e a sua nova
estética.
O arquivo digital Po.Ex (https://po-ex.net/) é um projeto que terminou em
2013 depois de catalogar 5000 obras, mas é mantido atualizado graças a um dos
seus criadores: Rui Torres (Porto, 1973. Professor de Ciências da Comunicação na
Universidade Fernando Pessoa e membro da Electronic Literature Organization,
fundada em Chicago em 1999), graças a este arquivo podemos conhecer o eixo
performativo que se desenvolve por todo o país. O nome de este arquivo digital,

187
segundo se reconhece na própria web, tomaram-no da importante exposição «PO.
EX.80» que teve lugar em Lisboa, 1980, na Galeria Nacional de Arte Moderna (apre-
sentando obras de António Aragão, António de Campos Rosado, Ana Hatherly, EM
de Melo e Castro, José-Alberto Marques, António Barros, Salette Tavares e Silvestre
Pestana), e do livro «PO.EX: Textos teóricos e documentos da poesia experimental
portuguesa» (Moraes Editores, 1981).

POESIA EXPERIMENTAL
Este movimento literário é pouco conhecido fora de Portugal, mas com uma lon-
ga trajetória que contém diferentes marcos como foi a exposição «PO-EX», orga-
nizada e apresentada em 1999 no maravilhoso e imprescindível Museu Serralves.
A poeta Salette Tavares (Maputo, Moçambique, 1922-Lisboa, 1994) fez parte da
«PO.EX.80», a exposição coletiva mencionada acima (que foi um importante
ponto de inflexão do movimento da Poesia Experimental em Portugal). Também
participou nos Cadernos Antológicos de Poesia Experimental (nº1, publicado em
1964, e nº2, em 1966. Neles mostram-se obras de António Aragão, António Barah-
ona da Fonseca, António Ramos Rosa, E. M. de Melo e Castro, Herberto Helder,
Salette Tavares, Jorge Peixinho, Álvaro Neto, Ana Hatherly,....), estes cadernos
coletivos podem ser considerados como o ponto de partida do experimentalismo
poético. Salette Tavares foi uma proeminente poeta e tradutora, pioneira da per-
formance, da poesia concreta e da arte conceptual, mas também exerceu como
animadora cultural e dirigiu várias associações. Realizou uma extensa obra radical
e provocadora.
Em 2022, foi realizada em Cascais (Fundação D. Luis, Casa das Histórias) uma
exposição de Salette Tavares e da pintora Paula Rego: Cartografias da criatividade

Rua de Miguel
Bombarda, no
Porto.
ASC

188
ASC

O Menino Ivo, 1978. Tapeçaria de Portalegre. Coleção de João Aranda


Brandão. Poema de Salette Tavares.

feminina nos anos 1970. As protagonistas desta exposição viveram de diferentes


formas os acontecimentos que se seguiram à queda da ditadura em Portugal. Paula
Rego viveu este período com grande pessimismo (não só enfrentou dificuldades
económicas e um bloqueio criativo, como se desencantou com o rumo que estava
a tomar o país). Para a capa da reedição em 2020 do livro «Lex Icon» de Salette
(originalmente publicado em 1971), utilizou um desenho que Rego ofereceu à poeta
em 1972. Continuamente se fecham os círculos que continuamente se estão a abrir.
Graças ao citado arquivo digital Po.Ex [se ao menos todos os acontecimentos cul-
turais tivessem este registo vivo] podemos consultar o catálogo da exposição Vi-

189
soVox, dedicada à Poesia Visual e Sonora, que contou com artistas europeus (entre
os quais se encontravam os espanhóis Bartolomé Ferrando e María Mencía). Este
encontro entre a poesia escrita e melódica teve lugar em Évora, conhecido muni-
cípio onde nasceu, em 1894, a poetisa Florbela Espanca (nasceu em Vila Viçosa,
exatamente a 45 minutos de Badajoz).

POESIA E SAUDADE
A poesia de Florbela era praticamente inédita em espanhol (com a exceção de
duas humildes publicações nas editoras Olifante e Torremozas, 2002 e 2013 respeti-
vamente) mas em 2023, paradoxalmente, viram a luz – em forma quase simultânea
– duas traduções dos seus últimos textos: «Diario del último año» (nas editoras El
Gallo de Oro e Pregunta). Tratava-se de uma poeta romântica que se aproximava
mais à galega Rosalía de Castro que ao modernismo da geração Orpheu – que trata-
remos mais mais adiante –. Esta autora neorromântica é para Portugal o que foi a sua
contemporânea Sara Teasdale para a poesia norte americana (primeira mulher a ga-
nhar o Prémio Pulitzer de Poesia e grande esquecida das letras nos Estados Unidos).
Florbela Espanca, de carácter liberal, foi pioneira da literatura feminista portuguesa
e uma das primeiras mulheres a estudar na Universidade de Lisboa. Teve três casa-
mentos. Sofreu profundamente a morte do seu irmão e o facto de não ter consegui-
ASC

Paula Rego, Vanitas, 2006

190
do ser mãe (teve dois abortos espontâneos). No mesmo
dia em que fazia 36 anos de idade, suicidou-se com uma
overdose de barbitúricos; era a sua terceira tentativa de
suicídio. Durante um período de tempo, Florbela foi pro-
fessora e tradutora aquando da sua estada em Lisboa,
aí coincidindo com o poeta mais internacional da lite-
ratura portuguesa: Fernando Pessoa.
Pessoa nasceu em Lisboa mas, ainda criança, foi para
viver para África do Sul, pelo que foi educado em lín-
gua inglesa. Traduziu para português obras
de Shakespeare e Edgar Allan Poe. Per-
tenceu à geração de escritores mo-
dernistas Orpheu (cujo nome é
retirado da revista homónima
que Pessoa editava juntamente
com Mário de Sá-Carneiro).
Publicaram dois números da
revista Orpheu e provocaram
uma rutura com as tradições
literárias pela sua ousadia e estilo Aranha. Tipografia,
40cm x 40 cm. De Brin
vanguardista dos seus textos. Prepa-

ASC
cadeiras, in: Poesia
rou-se um terceiro número que nunca viu Experimental-1, 1964.
luz, devido a problemas no seu financia-
mento e à morte de Mário de Sá-Carneiro
(suicidou-se em Paris aos 25 anos).
Lisboa sustenta essa nostalgia que mantém vivo, por exemplo, Fernando Pessoa:
passear pelas suas ruas, encontrar os cafés em que bebia aguardente, entrar na li-
vraria Bertrand revestida de azulejos no bairro do Chiado, atravessar a cor cinzenta
suspensa no ar enquanto se escuta a música profunda que lança raízes.
Portugal é um país de contínuos encontros, de caminhos cruzados. De artistas e
poetas que se dão a mão. De ruas pavimentadas que se afastam do Nobel Saramago
ou do mediático Nuno Júdice. Portugal é um país que se redesenhou sob o peso dos
seus antepassados.
O movimento da poesia experimental que iniciámos no Porto, serviu-nos para
atravessar o país e entrelaçá-lo com diferentes pontos e figuras fundamentais da
cultura portuguesa do último século; os passos que nasceram com a necessidade de
romper com o passado; os fios que foram traçados e as mãos que foram entrançadas
para criar outras histórias que partiram da história comum: Saudade; as raízes que
sustentam a literatura e o pensamento português. É contraditório ler um artigo que
trata dos nexos artísticos e que termina com a saudade (palavra de que não existe
uma tradução exata), cuja origem poderia vir do latim solitate («soledad» em es-
panhol) ou do árabe saudi («melancolia», «desânimo» ou «mal de corazón» em
espanhol). Parece que tudo se constrói sob a necessidade de deitar abaixo o senti-
mento de ânsia nostálgica com que se nasce em Portugal, uma perspetiva filosófica
que criou raízes na terra/útero de onde nascem as características emocionais dos
artistas portugueses .

191
BIBLIOGRAFIA GERAL
o BORGES, Paulo – Presença Ausente. o MACEDO, Hélder – Camões e a
A Saudade na Cultura e no Viagem Iniciática – Abysmo,2013.
Pensamento Portugueses - Nova
Teoria da Saudade. Âncora, 2019. oM
 ACEDO, Hélder – Do Significado
Oculto da “Menina e Moça”.
o BORGES, Paulo – Uma Visão Armilar Guimarães Editores, 1999.
do Mundo, Verbo, 2010.
o MARINHO, José - Verdade, Condição e
o BOTELHO, Afonso – D.Duarte, Livro 1. Verbo, 1991. Destino no Pensamento Português
Contemporâneo. Lello Editores, 1976.
o BOTELHO, Afonso - Da Saudade ao
Saudosismo. Instituto de Cultura o MARINHO, José - Teixeira de Pascoais,
e Língua Portuguesa, 1990. Poeta das Origens e da Saudade e
Outros Textos - Volume VI. INCM, 2004.
o BOTELHO, Afonso – Saudade,
Regresso à Origem. Instituto de o MARTINS, Pedro – Teoria Nova da
Filosofia Luso-Brasileira, 1997. Saudade. Prefácio de Miguel Real.
Posfácio de António Cândido Franco.
o CARVALHO, Joaquim de – Elementos
Constitutivos da Consciência Saudosa e o NORONHA, Maria Teresa de - A Saudade
Problemática da Saudade. Lisboa Editora, 1998. – Contribuições Fenomenológicas,
lógicas e Ontológicas. INCM, 2007.
o CARVALHO, Joaquim de – Obra Completa.
Volume V. Fundação Calouste Gulbenkian. oP
 ASCOAES, Teixeira de - A Arte
de Ser Português. Sociedade
o COSTA, Dalila Pereira da e GOMES,
Editora de Livros de Bolso.
Jesué Pinharanda – Introdução à
Saudade. Lello Editores, 1976.
o QUADROS, António - Memórias das Origens,
Saudades do futuro, Valores, Mitos,
o DIMAS, Samuel - A Metafísica da
Arquétipos, Ideias. Europa-América, 1992.
Saudade em Leonardo Coimbra.
Estudo sobre a Presença do Mistério e
a redenção integral. UCP Editora, 2013. o SÁ, Maria das Graças Moreira de – Estética
da Saudade em Teixeira de Pascoaes.
o FRANCO, António Cândido – Eleonor Na Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1992.
Serra de Pascoaes. Átrio, 1992.
o SOTO, Luís G.- Meditação sobre
o FRANCO, António Cândido - A Rainha a Saudade. Zéfiro.
Morta e o Rei Saudade. O Amor de
Pedro e Inês de Castro. Ésquilo, 2003. o TEIXEIRA, António Braz – A Filosofia
da Saudade. Quidnovi, 2006.
o GOMES, Jesué Pinharanda - Pensar Português.
Texto inédito e estudos de José Eduardo Franco o TEIXEIRA, António Braz, NATÁRIO, Maria
e José Maria Silva Rosa. Theya Editores,2019. Celeste, VILLAVERDE, Marcelino Ágis,
EPIFÂNIO, Renato – Sobre a Saudade. VII
o LOPEZ, Ramon Piñeiro – Filosofia da Colóquio Luso-Galaico. Zéfiro, 2020.
Saudade. Editorial Galáxia, 1984.
o TELMO, António – A Verdade do Amor,
o LOURENÇO, Eduardo - Portugal como seguido de “Adoração – Cânticos de
Destino Seguido de Mitologia Amor” de Leonardo Coimbra. Zéfiro, 2020.
da Saudade. Gradiva, 1999.
oV
 ASCONCELOS, Carolina Michaëlis –
o LOURENÇO, Eduardo – O Labirinto da A Saudade Portuguesa. Prefácio
Saudade- Psicanálise Mítica do de Maria Manuela Gouveia Delille.
Destino Português. Gradiva, 2001. A Bela e o Monstro, 2022.

192
«A saudade e o amor, no seu primeiro momento fenomenológico que
é o da relação terrestre do amante com a amada, oferecem-se-nos
como as duas faces do mesmo. Assim, no amor, a presença corporal
da amada acorda no amante o sentimento do fugaz e inapreensível, do
que estando presente está ao mesmo tempo ausente, do inviolável; pelo
contrário, na saudade, ela é presença na imagem vivida em lembrança
e ausência no seu corpo e seu lugar longínquo no espaço e no tempo.

O amor à distância de todo o espaço e de todo o tempo que há


entre os dois é saudade; a saudade que se tem do que se possui na
proximidade é amor. Nos dois casos, há sempre uma elipse, de que
um foco é visível e o outro invisível. Num desses focos está a imagem
luminosa e directamente visível; no outro o seu reverso nocturno e
inacessível. O movimento de amor ou de saudade é elíptico como o
da terra à volta do sol. Se não há, porém, a consciência simultânea
do acessível e do inacessível, da presença e da ausência não há
amor nem saudade. Haverá lembrança com dor, mas sem alegria,
presença satisfeita, mas sem o sentido do mistério que é a amada»
– António Telmo, 2018

Direção Carmen Sabalete (csabalete@zinetmedia.es)

REDAÇÃO
Redatora chefe Cristina Enríquez (cenriquez@zinetmedia.es).
Coordenação de design Óscar Álvarez (oalvarez@zinetmedia.es). Consultora Marta Ariño
Diretor Geral Financeiro Carlos Franco
CRO (Diretor Comercial) Alfonso Juliá (ajulia@zinetmedia.es)
REDAÇÃO EM MADRID
Diretor de Desenvolvimento de Marca
C/ Alcalá, 79. 1º A. 28009 Madrid; Teléfono +34 810 583 412.
Óscar Pérez Solero (operez@zinetmedia.es)

Colaboradores: Alberto de Frutos, Allen Pires, António Cândido Franco,


DISTRIBUIÇÃO:
Carlos Nogueira, João Dionísio, José Augusto Cardoso Bernardes, V.A.S.P. Distribuidora de Publicaçöes, S.A.
José Carlos Fernández, Marcos Almendros, Miguel Real, Paulo Borges, A Super Interessante é uma publicação
Museu do Fado, Nuno Júdice, Nuno Ribeiro, Renato Epifânio, registada na Entidade Reguladora
para a Comunicação Social com o n.º 118 348.
Tempus Art Edições
Depósito legal: 122 152/98.

© Zinet Media Global, S.L. Esta publicação é propriedade exclusiva da Zinet Media Global, S.L., e a sua reprodução total ou parcial, não autorizada, é totalmente proibida, de acordo
com os termos da legislação em vigor. Os contraventores serão perseguidos legalmente, tanto a nível nacional como internacional. O uso, cópia, reprodução ou venda desta revista só
poderá realizar–se com autorização expressa e por escrito da Zinet Media Global, S.L.

193
Pintura de José Malhoa O Fado, 1910.

Você também pode gostar