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Esta obra é dedicada a todos que já experimentaram o temor diante

da mudança. Iniciar novamente a partir do zero é um ato de


coragem.
A DANÇA DA MEIA NOITE E O
SOL NASCENTE
SINOPSE

“A multidão assiste com fascínio, aplaudindo cada movimento


habilidoso, embevecida pela grandiosidade do Torneio que se
desdobra diante dos nossos olhos”.
TRAIÇÕES. CALÚNIAS. MORTES. MENTIRAS. AMORES
PROIBIDOS. DIFAMAÇÕES.
O que faria se seu pai sediasse um torneio e você fosse posta como
prêmio?
Para a princesa mais nova da família Grinffos, obedecer às ordens
do rei é um modo de manter a vida segura e estabilizada dentro do
palácio. Por outro lado, será mesmo que vale a pena ceder às
vontades do monarca para distrair o povo da vida monótona que
elas levam?
Afinal:
Nem toda princesa anseia pelo centro do reino.
Nem todo príncipe aspira a erguer a coroa.
Nem todo rebelde merece ser levado à forca.
A capacidade de tirar uma vida, mesmo em nome da proteção, deixa
cicatrizes indeléveis na alma? E, se sim, até que ponto essas cicatrizes
comprometem a minha humanidade?
Princesa Saravana Grinffos
PREFÁCIO

Observo as pessoas nas arquibancadas com os rostos iluminados por


uma mistura de fascinação desumanizada. Penso em como elas gastam seus
ganhos para assistir a este espetáculo de horrores. É um paradoxo
fascinante, como a atração pela luta e pelo sangue derramado tem o poder
de atrair multidões ávidas por experiências que desafiam os limites do
conforto e da compaixão. Cada grito da plateia, cada expressão de surpresa
ou terror, é uma contribuição para o Torneio continuar sendo realizado. As
arquibancadas se transformam em um mar de emoções, onde o desconforto
se mistura com a satisfação de ver seu semelhante ser assassinado a sangue
frio.
CAPÍTULO 1

Hoje é o grande dia.


Penteio meus cabelos com as mãos enquanto me observo através do
espelho preso a escrivaninha de maquiagem. O leve batom rosado dá um
equilíbrio perfeito à expressão neutra do meu rosto. No entanto, por mais
que pareça tranquila, estou profundamente entediada. É o dia do Torneio do
Sol Nascente e as pessoas devem estar bastante agitadas.
O Torneio ocorre a cada quinquênio, reunindo dez competidores com
o objetivo de conquistar o coração de uma única pessoa – neste caso, o
meu. Os participantes que avançarem até a etapa final deverão enfrentar
uma batalha letal entre si, e somente o vencedor terá o privilégio de
ingressar na nobreza como membro da família real.
E quem inventou essa palhaçada toda? Simplesmente o meu pai,
Kalayo, rei e sacerdote de Mirassol. Ele afirmava que a população estava
desanimada, presa a rotinas monótonas e desinteressantes. Alegava,
portanto, que era necessário proporcionar uma distração para o povo.
No entanto, eu não sou ingênua e percebo claramente que a situação
financeira da minha família está se deteriorando. Tanto é verdade que, para
assistir ao evento, as pessoas são obrigadas a desembolsar 250 gileades por
cada etapa. Isso é um terço do salário mínimo do reino.
Por outro lado, o Torneio do Sol Nascente tem sido um sucesso.
Pessoas altamente desalinhadas, viajam por horas, dias e até semanas só
para assistirem a mortes sangrentas na arena.
Olho para Fadye, minha auxiliadora, parada ao lado da porta, de
cabeça baixa. Sinto muito por ela ter a vida que tem aqui no palácio.
Infelizmente, ela tinha sido uma das escravas que foram compradas ainda
criança para servir a família real. Nunca soube dos seus pais depois disso.
Seus cabelos são tão brancos que parecem uma nuvem de algodão.
— Como a senhora está se sentindo hoje? — zomba ela, segurando
uma risada.
— Você tem sorte de ser minha amiga ou mandaria os carrascos
enforcá-la — brinco, mostrando a língua para ela. Não consigo imaginar
minha vida sem Fadye ao meu lado. Ela sempre foi meu apoio inabalável,
pronta a atender todos os meus pedidos.
— Sorte que trabalho para uma família que não é má comigo —
continua, levantando a cabeça. Seus olhos azuis são tão hipnotizantes que é
impossível não repará-los. — Imagina só ter que trabalhar para a família
Kavinsky.
Estremeço. A família Kavinsky é a terceira mais poderosa do reino.
Há boatos de que os escravos são tratados como lixos na propriedade deles
— algo que meu pai desaprova drasticamente. Se ele souber que membros
de nossa família estão maltratando um dos nossos serventes, é punido
imediatamente.
— Você nunca será maltratada aqui, Fadye — digo.
Ela faz que sim com a cabeça enquanto mexe na barra do seu vestido.
Ele é todo bordado de borboletas azuis e amarelas.
— Quem serão os valentes deste ano? — pergunto, mudando de
assunto.
— Não faço ideia, Sara. Mas o chefe de cozinha me disse que o
sobrinho dele, Oed de Assunção, iria participar.
Oed de Assunção. Não tem nome de príncipe.
— Caso ele ganhe, terá que mudar de nome.
— Oed é um nome bonito, você não acha? — pergunta, franzindo o
cenho.
— A questão não é o que eu acho, mas como as regras são dirigidas
aqui.
— O rei Kalayo é chato — rebate, dando de ombros.
Afirmo com a cabeça.
A porta do meu quarto se abre e Madame Zahir entra agitada.
— Caramba, princesa Saravana! Não acredito que a senhorita ainda
está com a roupa de dormir — expressa a estilista do palácio. A peruca rosa
que ela usa me dá vontade de gargalhar, mas não faço isso.
— Eu não sei o que usar para o evento.
— Você pode usar o que quiser, senhorita. Hoje é o seu grande dia —
fala, com uma leve excitação na voz. Ela acha que isso me agrada.
A realidade é que sou contra o Torneio do Sol Nascente. Ele não traz
benefício algum para a população do reino. As pessoas gastam seu dinheiro
suado para assistirem a um banho de sangue entre homens sedentos pelo
poder e status. Simplesmente é assim. Além disso, perco totalmente minha
liberdade de escolha. Não há mais a opção de simplesmente dizer "não
quero casar e ponto final". Agora, sou compelida a participar do jogo de
meu pai se quiser manter minha liberdade no palácio e ter uma vida
confortável.
— Eu quero usar o vestido mais simples que estiver disponível —
digo, olhando para Madame Zahir através do espelho.
Ela morde os lábios, deixando claro que a minha decisão foi péssima.
— Eu vou buscá-lo e volto num instante — fala e sai do quarto.
Fadye me olha de soslaio e dou de ombros.
— Ela disse que eu poderia usar o que quiser.
— Você tem razão, bebê.
Um apito agudo soa do lado de fora.
— Chegaram? — pergunto, ficando de pé.
Fadye corre até a sacada e fecha as portas com brutalidade.
— Você ainda não pode vê-los, princesa. Sua mãe me alertou sobre
trazer má sorte, e bem, sabemos que as mães sempre estão certas, não é
mesmo? — questiona, demonstrando uma certa preocupação na própria
fala.
— Fadye, desde quando a sorte é má?
— Perdão?
— Desde quando alguém pega má sorte? — indago, sentando na
poltrona vermelha. — Isso é superstição.
— Negativo! Eu vi o que aconteceu com a sua irmã de pertinho.
Reviro os olhos.
Desde que Téssia, minha irmã mais velha, contraiu tuberculose,
minha mãe adotou a crença de que olhar os competidores antes do tempo
trazia azar. Não acredito que a doença de minha irmã esteja relacionada a
espiar os homens que participaram do Torneio em sua época.
— Tudo bem, então. Sem mimimi. Você pode arrumar o meu cabelo?
— Trança? Platinado com duplo nó? Cacheado com argolas? —
sugestiona ela, animada.
— O mais simples de todos — respondo e vejo o brilho nos seus
olhos desaparecendo.
CAPÍTULO 2

Fadye abre a porta e saio do quarto.


Vejo alguns guardas reais parados do lado de fora, e faço uma breve
reverência enquanto eles batem as estacas de madeira no chão.
Caminho em direção às escadas, com minha auxiliadora ao meu lado.
O corredor do palácio se estende majestosamente, exibindo uma arquitetura
grandiosa que reflete a opulência e o esplendor da realeza. As paredes são
revestidas com painéis de madeira ricamente entalhados, adornados com
intrincados padrões que contam histórias de épocas passadas. Uma
tapeçaria luxuosa, tecida com fios de ouro e prata, pende elegantemente,
retratando cenas de conquistas gloriosas e momentos significativos da
história do reino.
Olho para o chão que é revestido por um tapete suntuoso, cujos
padrões elaborados complementam a beleza do ambiente. Acima das nossas
cabeças, os lustres pendem do teto alto, irradiando uma luz suave que
destaca a riqueza dos detalhes ao longo do corredor. Suas inúmeras
lâmpadas de cristal lançam reflexos cintilantes, criando uma atmosfera de
elegância e magnificência.
— O palácio é tão lindo! Você não acha? — pergunto a Fadye.
— Sem sombras de dúvidas, princesa — responde, abaixando o tom
de voz. Do lado de fora, na frente de outras pessoas, o protocolo pede para
que ela me trate como princesa e não como minha amiga. Coisa que sempre
acho um absurdo.
Ao longo das paredes, grandes espelhos ampliam o espaço e refletem
a grandiosidade do corredor, dando a sensação de infinitude. Entre as
janelas altas, cortinas de seda em tons ricos filtram a luz do sol, criando
uma aura de serenidade e beleza.
— Papai sabe mesmo como decorar esse lugar — digo para mim
mesma.
Os móveis ao longo do corredor são peças de arte por si só, talhadas
com maestria e enfeitadas com materiais nobres. Bancos estofados,
consolos e vasos de flores finamente trabalhados são dispostos com
precisão, adicionando um toque de requinte.
— Bom dia, princesa — cumprimenta minha prima Michelle, fazendo
uma reverência exagerada. — Está ansiosa para o Torneio deste ano?
— Bom dia, Michelle. É muito bom ver você — respondo, ignorando
a pergunta dela. Michelle é aquele tipo de prima que escuta A e conta para o
resto do palácio o abecedário todo.
Faço um sinal com a cabeça e continuo andando.
— O vestido da Maria Fofoqueira estava horrível — sussurro para
Fadye.
— Igual a cara dela — complementa, e eu rio.
Enquanto percorro o corredor, o som suave dos meus passos ecoa no
chão polido, criando uma sinfonia discreta que ressoa pela grandiosidade do
ambiente. Cada detalhe reflete a tradição, criando um espaço que
transcende o tempo e exala a majestade de um palácio real.
Desço as escadas com cuidado, segurando a barra do meu vestido
azul celeste com uma mão, e a outra segurando a mão de Fadye.
— Bom dia, princesa. Como está se sentindo hoje? — pergunta
Fredd, o mordomo real da família. Ele usa um terno preto com gravata
borboleta azul.
Fredd é o típico tio babão que presenciou o meu crescimento e esteve
sempre ao lado do papai quando necessário.
— Fredd, querido. É uma honra ser recebida por você — falo, dando
um leve e rápido abraço nele. — Estou um pouquinho nervosa, mas logo
passa.
Ele assente gentilmente.
— Saiba que sempre estarei por perto para socorrê-la.
— Eu sei que sim, obrigada — digo, continuando a caminhada.
Preciso chegar ao jardim antes que meu pai.
Assim que viramos a esquerda, dou de cara com o salão de entrada do
palácio. Ele é uma obra-prima arquitetônica que sempre cativa os visitantes
desde o momento em que cruzam as portas de madeira. As dimensões do
salão proporcionam uma sensação de grandeza, com um pé-direito alto e
uma cúpula ornamentada que se ergue acima.
No centro, há um suntuoso tapete persa, tecido com fios de seda e
ouro, que se estende por uma vasta extensão, guiando os visitantes com
suas cores ricas. Ao redor, as colunas esculpidas em mármore sustentam
arcos elegantes, cada um detalhado com relevos que contam a história da
humanidade.
As paredes são revestidas por painéis de madeira entalhada,
enriquecidos com folhas de ouro e detalhes que pintam cenas da mitologia
que um dia foi aclamada pelo povo. Espelhos ornamentados ampliam
visualmente o espaço, refletindo a opulência que permeia o ambiente.
— Há quanto tempo não venho até aqui? — pergunto para a minha
amiga.
— Acho que desde o último Torneio.
— Uau. Eu não me lembrava que o salão era tão grande assim. Estou
impressionada de verdade.
Ela dá risada e aperta minha mão.
— A senhorita disse exatamente a mesma coisa da última vez.
Franzo o cenho.
— Eu disse?
Ela confirma com a cabeça.
Uma cascata de lustres enormes pende do teto, com seus cristais
lapidados capturando e dispersando a luz em uma dança brilhante. A
iluminação suave destaca as obras de arte que adornam as paredes e os
móveis esculpidos, desde consolos e esculturas até vasos de flores exóticas.
— Como esse lugar é majestoso, Fadye — digo, arfando ao mesmo
tempo. — Precisamos vir mais vezes aqui.
— Quando quiser, princesa.
Ao fundo do salão, uma escadaria de mármore se eleva em curvas
suaves, levando aos andares superiores do palácio. No patamar, há uma
estátua de um monarca, esculpida em mármore branco, personificando a
força e a sabedoria do reino.
— Aquilo ali é novo, não é?
— O rei pediu para instalar no ano passado.
— Nada bobo ele.
Vejo mais guardas reais, vestindo uniformes resplandecentes,
permanecendo em postos estratégicos, adicionando uma aura de autoridade
ao ambiente. O silêncio reverencial é quebrado apenas pelos murmúrios
discretos dos cortesãos que aguardam a permissão para avançar, imersos na
grandiosidade do salão.
— Bom dia, princesa Saravana — deseja o meu professor de piano,
Terafilde.
— Bom dia, Terafilde — respondo. Ele também usa um terno preto e
gravata borboleta azul.
Sinto um certo desconforto ao notar que agora sou mais alta do que
ele.
Seis guardas reais abrem a porta que conduz para fora do palácio, ao
mesmo tempo em que uma buzina ressoa.
Ao atravessar, sou recebida pelo esplendor do pátio real.
À minha frente, um vasto espaço se abre, enfeitado por uma fonte
central que lança águas cristalinas ao ar. O som sereno do líquido dança na
atmosfera, criando uma melodia tranquila que ecoa pelo local. Os raios do
sol filtram através das folhas frondosas das árvores altas que cercam toda a
extensão do ambiente, lançando sombras delicadas sobre os caminhos de
pedra que o cruzam. O chão, feito de lajes polidas, reflete a luz como um
espelho, ampliando ainda mais a sensação de espaço aberto.
— Lugar mágico? — pergunto para Fadye.
— Um lugar perfeito para nos divertirmos com os rapazes — sussurra
ela, deixando-me um pouco corada.
À minha volta, os jardins meticulosamente cuidados exibem uma
profusão de cores e aromas. As flores exóticas desabrocham em canteiros
organizados, enquanto arbustos podados formam desenhos geométricos que
adornam o perímetro do pátio. O perfume do jasmim paira no ar, se
misturando com a frescura da grama recém-cortada.
Estatuetas de mármore, representando figuras mitológicas, enfeitam
nichos estrategicamente posicionados ao longo das paredes do pátio. Há
também um grupo de bancos de pedra que oferecem um local tranquilo para
apreciar a beleza ao redor.
— Onde está o rei Kalayo? — pergunto para Fredd.
— Ele ainda está na cama, princesa.
Fico espantada.
— O que? Não. Como assim?
Fredd engole em seco.
— Parece que ele acordou meio febril esta manhã e pediu para deixá-
lo descansar até a hora do Torneio começar — explica, parecendo esconder
alguma coisa importante.
Um leve tremor percorre meu ser.
Meu pai jamais deixou de cumprir qualquer compromisso familiar.
Sempre foi um homem íntegro em suas promessas, mesmo quando estava
doente.
Olho para Fadye que abaixa o olhar.
— Fadye? Você sabe de alguma coisa? — pergunto, desconfiada de
sua lealdade.
Ela balança a cabeça negativamente.
— Sua atenção deve se voltar para o Torneio do Sol Nascente,
princesa — diz, quase sussurrando. — Foi a ordem direta da rainha para
mim.
CAPÍTULO 3

Estou na sacada da arena com os meus familiares. Desde que recebi a


notícia sobre o meu pai, sinto vontade de chorar e desistir dessa palhaçada
toda. Qual é o sentido de continuar com o Torneio sem o rei para apresentá-
lo?
— O papai não vem mesmo? — pergunto para minha irmã Cássia, a
segunda mais velha. Ela usa um vestido branco que contrasta com seus
cabelos dourados.
— Parece que não. Ele não consegue ficar de pé. Disse que estava
muito cansado para sair da cama hoje — explica, trançando os cabelos com
as mãos.
— Está tranquila, princesinha? — pergunta Arnaldo, marido da minha
irmã Téssia. Arnaldo ganhou o primeiro Torneio sediado no reino, depois
que quebrou a cabeça de Glaucio com uma joelhada certeira no rosto dele.
Observo que ele veste o clássico terno azul marinho, uma escolha
tradicional entre os homens pertencentes à realeza.
— Minha condição está melhor do que a sua — respondo, recebendo
uma olhada feia de Cássia. Arnaldo sempre teve dificuldades com o
nervosismo. No dia em que papai o apresentou ao povo, ele soltou uma
série de gases fedendo a ovo podre, oito vezes seguidas. Essa foi a
descrição exata que minha mãe usou ao me contar.
Fadye se junta a nós, trazendo um copo de água bem gelada.
— Obrigada, querida.
Rubens, o marido de Cássia, bufa.
— Chega de tratar seus empregados como se fossem da realeza,
Saravana — afirma ele, com autoridade em sua voz.
— A começar de você, então. O que acha?
— Saravana! Modos, por favor — pede Cássia.
— Mas foi seu marido idiota que começou — rebato, cruzando os
braços.
Fadye se afasta, fingindo não ter escutado nada.
Olho para o vasto quintal do palácio, onde uma arena gigante foi
montada para sediar o Torneio real. As estruturas temporárias erguidas para
o evento são verdadeiras obras de engenharia, destacando-se contra o pano
de fundo do palácio.
As arquibancadas se estendem em curvas graciosas, proporcionando
assentos elevados para a nobreza e convidados especiais. Os degraus,
revestidos por tecidos luxuosos, são decorados com estandartes coloridos
que ostentam as cores e emblemas da realeza. Candelabros suspensos
iluminam a arena, prometendo um espetáculo igualmente impressionante
mesmo sob a luz do luar.
No centro da arena, o campo de batalha é meticulosamente preparado.
Uma camada de areia fina cobre o solo, absorvendo o impacto dos passos
dos combatentes e proporcionando uma superfície uniforme. Uma série de
estandartes e bandeiras sinalizam as áreas designadas para diferentes
competições, desde torneios de luta até duelos de esgrima.
— Quanto tempo levou para montar essa estrutura? — pergunto a
Cássia, sentada ao meu lado.
— Duas semanas. O papai teve que dispensar o engenheiro do
Torneio passado — responde, dando de ombros. — Parece que ele criou um
bocado de problemas com os competidores.
Dispensar significa ser levado à forca no mundo da realeza.
Ao redor da arena, barricadas decorativas delineiam o perímetro,
ornamentadas com escudos e lanças que remetem à herança guerreira do
reino. Colunas altas sustentam draperies de seda, movendo-se suavemente
com a brisa, criando um cenário teatral que evoca a atmosfera de eventos
históricos.
Os estandartes reais tremulam nos cantos da arena, vivenciando a
grandiosidade do Torneio. Músicos e artistas ocupam áreas designadas,
prontos para proporcionar trilhas sonoras épicas e performances que
enaltecem a energia do evento.
— Quem assumirá a presidência do Torneio, então? — questiono, um
tanto exausta com toda essa situação. No momento, só desejava estar em
meu quarto, lendo algum livro de romance clichê.
— O papai queria que fosse o Fredd, mas ele disse que não tinha
franqueza. Então, ele e a mamãe optaram por Arnaldo, já que ele é casado
com a princesa mais velha.
Arregalo os olhos.
— Arnaldo? Mas Cássia, se o povo começar a confundir as coisas e
achar que ele será o próximo…
Erguendo a mão, ela interrompe minha fala. Arnaldo segue para o
outro lado, aparentemente ignorando nossa presença.
— Isso não vai acontecer, pequenina — explica, suavizando a voz.
Tenho 22 anos. Detesto quando ela ou a mamãe me chamam assim. —
Téssia assinou um contrato que, se Arnaldo cogitar em se declarar rei ou
algo parecido, ela arranca a cabeça dele fora.
— Espero que isso aconteça — digo, e minha irmã dá risada.
Enquanto a multidão se acomoda nas arquibancadas, uma sensação de
antecipação toma conta do ar. O palácio e a arena temporária se unem para
criar um espetáculo que celebra não apenas a habilidade atlética, mas
também a cultura e a tradição que permeiam o reino. Tradição essa que, se
eu tivesse o poder e a glória do papai, terminaria muito antes de começar.
CAPÍTULO 4

Ao som solene das trombetas, um silêncio se instaura na multidão.


Meu cunhado Arnaldo, um pouco nervoso, sobe ao pequeno palanque
de vidro enquanto segura a ficha com os nomes dos competidores. Téssia
fecha os olhos e balbucia algumas palavras para que tudo ocorra conforme
o combinado.
Ele limpa a garganta antes de iniciar:
— Nobres senhores, senhoras e distinguidos convidados, É com
grande honra e regozijo que vos dou as boas-vindas a esta magnífica arena,
que se torna palco de um torneio grandioso em honra da bravura, destreza e
nobreza que caracterizam nosso reino. Hoje, reunimo-nos não apenas como
súditos, mas como uma comunidade unida pela paixão, pela competição
justa e pela celebração de nossos valores mais nobres — fala, com a voz um
pouco trêmula.
— Até que ele está se saindo muito bem — sussurra Téssia para
Cássia.
— Este Torneio não é apenas uma exibição de habilidades marciais,
mas um tributo à nossa rica herança, à coragem que define nossa história e à
camaradagem que une nossos corações. Nossos competidores, vindos de
diversos cantos do reino, estão aqui para demonstrar sua destreza e
dedicação, elevando nossos espíritos e proporcionando um espetáculo que
será gravado em nossos corações por gerações — continua e quase coloco
o café da manhã para fora.
As palavras do discurso deste ano estão piores que as do último
Torneio.
— Parece que ele está exagerando — murmuro.
— Mas ele não foi o autor do discurso — responde Cássia.
— Nestes terrenos sagrados, onde a areia testemunhou as proezas de
muitos, saudamos aqueles que, corajosos e intrépidos, se lançarão ao calor
da batalha. Que cada duelo seja um marco do espírito indomável que habita
em nossos combatentes, e que cada vitória seja uma homenagem à força, à
estratégia e à graça — continua ele, estendendo os braços.
— Olha que valentia. Queria que ele caísse lá embaixo — digo, e
minha irmã reclama.
— Neste torneio, não somente exaltamos a bravura dos nossos
competidores, mas também celebramos a unidade que existe entre nós.
Hoje, na presença da realeza, da nobreza e de todo o povo, renovamos
nossos laços, lembrando-nos de que somos um povo unido por um passado
glorioso e um futuro promissor. Que este Torneio seja um momento de
alegria, em que as diferenças se dissipam diante do esplendor do evento.
Que a amizade floresça, não importa o resultado, e que todos nós possamos
sair destes dias de competição com corações plenos de gratidão pela
experiência que vivenciaremos juntos.
As trombetas voltam a tocar.
— Ele foi perfeito! — exclama Téssia, abraçando Cássia.
— Que o torneio comece! Que os bravos se destaquem, e que o
espírito da competição ilumine nossos corações com o fulgor da nobreza
que define o nosso reino!
A multidão da arquibancada, fica de pé e começa a bater palmas
freneticamente.
— Ele não vai falar do papai? — pergunto, desconfiada.
— O papai não quer levantar rumores no meio do povo — responde
Téssia.
— Que a justa batalha comece, e que o favor dos deuses esteja
conosco! Viva o reino! Viva a nobreza! Viva o torneio! — brada a última
fala.
— Viva o reino! Viva a nobreza! Viva o torneio! Viva o reino! Viva a
nobreza! Viva o torneio! Viva o reino! Viva a nobreza! Viva o torneio! Viva
o reino! Viva a nobreza! Viva o torneio! Viva o reino! Viva a nobreza! Viva
o torneio! Viva o reino! Viva a nobreza! Viva o torneio! — grita a multidão,
em uníssono.
Vejo quando os portões metálicos da arena se abrem e um grupo de
competidores entra triunfante, todos adornados em armaduras
resplandecentes
— Olha lá, Saravana! O seu futuro marido está lá embaixo — grita
Cássia, no meu ouvido.
Dou um tapa no braço dela.
— Não precisa gritar que não sou surda — digo, meio rabugenta.
A multidão berra bem alto enquanto os competidores avançam com
confiança e agilidade. Os elmos ornamentados refletem a luz do sol que se
derrama sobre a arena e percebo que os visores das armaduras permanecem
fechados, ocultando as expressões de seus rostos.
Os músicos iniciam uma melodia confusa de acordo com as notas que
ressoam pela arena como suaves murmúrios da história.
— Eu não estou entendendo nada — falo para Cássia.
— Muito menos eu.
De repente, uma voz celestial se destaca e, com a ampliação do
microfone, as palavras surgem amplas e claras:
No campo de batalha, corações em chamas,
Guerreiros valentes, lutando por suas damas.
Com espadas erguidas, sob o céu estrelado,
Pela força do amor, estão destinados a lutar.
Num reino distante, onde o sol se põe,
Guerreiros destemidos, onde a coragem floresce.
Pelas muralhas do castelo, eles avançam com fervor,
Em nome do amor verdadeiro, juraram seu ardor.
Cássia e Téssia olham para mim e fazem beicinho.
— Não comecem ou eu empurro vocês lá embaixo — ameaço.
Sob a lua prateada, as promessas se entrelaçam,
A batalha começa, mas o coração não se desfaz.
Por entre os clarões de aço e faíscas no ar,
A busca pelo amor, um destino a alcançar.
No campo de batalha, corações em chamas,
Guerreiros valentes, lutando por suas damas.
Com espadas erguidas, sob o céu estrelado,
Pela força do amor, estão destinados a lutar.
— A melodia de Saravana supera a nossa, Cas — comenta Rubens.
— Concordo. Nossa música tinha versos mais sombrios — responde
ela.
— Chega disso. Essa música não pertence a mim nem a ninguém.
Todos sabem que estou aqui contra minha vontade — rebato, enfatizando
claramente.
Rubens olha para minhas irmãs e, ao mesmo tempo, dizem:
— Tá emocionada! Tá emocionada! Tá emocionada!
Reviro os olhos e finjo que eles não existem. As vezes é melhor
ignorar algo do que tentar consertar aquilo que você não quebrou.
Pelos campos verdejantes, onde a esperança floresce,
Guerreiros marcham, seus votos não desvanecem.
Em cada passo, uma lembrança do toque suave,
O amor que os guia, um farol que nunca se apaga.
Sob a bandeira do amor, eles enfrentam o perigo,
Juramentos feitos, como um antigo abrigo.
Por cada beijo roubado, por cada lágrima derramada,
A batalha prossegue, pela promessa sagrada.
No campo de batalha, corações em chamas,
Guerreiros valentes, lutando por suas damas.
Com espadas erguidas, sob o céu estrelado,
Pela força do amor, estão destinados a lutar.
Olho para o outro lado e busco apoio moral de Fadye que,
ridiculamente, está cantarolando a música junto com a cantora.
Nas estrelas cintilantes, uma história é contada,
De guerreiros e amor, uma epopeia consagrada.
Com coragem nos olhos e amor nos corações,
Seguem adiante, enfrentando as aflições.
No campo de batalha, corações em chamas,
Guerreiros valentes, lutando por suas damas.
Com espadas erguidas, sob o céu estrelado,
Pela força do amor, estão destinados a lutar.
E assim, na alvorada da vitória ou da derrota,
Guerreiros persistem, sem nunca perder a rota.
Pois no calor da batalha, onde a bravura se revela,
O amor triunfa, eterno em sua chama singela.
Por sorte, a música termina.
— Vou falar para o papai contratar essa cantora no seu casamento —
zomba Cássia, me abraçando bem forte.
— Isso não tem graça, ridícula — digo, soltando-me do seu aperto.
O rugido da multidão cresce conforme os competidores tomam
posição nos lados opostos da arena. O calor da expectativa paira no ar,
criando uma atmosfera eletricamente carregada. Sob os olhares atentos da
realeza e dos súditos, a arena se transforma em um teatro de emoções e
habilidades.
Percebo que Arnaldo ainda está parado, apenas observando.
— Você precisa apresentar o nome dos competidores, idiota — digo.
— Obrigado, sarnenta.
Decido não dar importância à provocação.
Nossa relação sempre foi marcada por uma certa indiferença desde
que o conheci. Não aprecio muito seu jeito, e ele também não aprecia o
meu. Contudo, considerando que foi ele o vencedor do Torneio há quinze
anos e conquistou o direito de se casar com minha irmã, parece que teremos
que nos suportar.
— Show maravilhoso, Glória. Muito obrigado pela apresentação —
agradece meu cunhado. — Agora, tenho o prazer de apresentar os nossos
competidores galantes, cativantes, fortes e encantadores que estarão
disputando o coração da nossa queridíssima e adorável filha do rei de
Marissol, a Princesa Saravana! — anuncia.
— O que ele está fazendo? — pergunto.
— Sorria e acena, querida — fala Cássia, entre os dentes.
Noto que há um pequeno drone parado na minha direção. Ai não, não,
não! Eu estou sendo televisionada para todo o reino?
Cássia belisca meu braço e, por causa da dor, faço careta enquanto
mando um tchauzinho para o pessoal de casa.
O drone se vira na direção de Arnaldo e belisco minha irmã.
— Nunca mais faça isso.
— Nossa, doeu — reclama ela. — Eu só estava tentando ajudar.
— Desde quando temos drones? — pergunto, enfurecida.
— Papai encomendou ano passado. Ele quer que as pessoas de casa
tenham mais acesso ao canal dele — responde Téssia.
— Desde quando o papai tem um canal? — bufo, irritada por ser a
última a saber das coisas. — Isso não é tecnologia dos Outros?
Rubens olha feio para mim.
— Depois a gente te explica — ameniza Téssia.
Franzo a testa, encabulada.
Meu pai sempre proibiu a entrada da tecnologia dos Outros em nosso
reino. Ele tinha a convicção de que esses avanços tecnológicos eram uma
espécie de olho indiscreto, capaz de espionar cada movimento e estratégia
por meio de satélites. No reino, apenas uma única câmera estava instalada
na central de segurança do palácio, onde o comentarista Eldarion
apresentava a previsão do tempo e os próximos eventos. Todas as demais
informações, incluindo as narrações do Torneio do Sol Nascente, eram
transmitidas por rádio.
Olho para os juízes, vestidos com trajes formais, que fazem gestos
cerimoniais para iniciar os primeiros confrontos. O silêncio cai sobre a
multidão, enquanto os combatentes se preparam para a batalha que definirá
seus pontos.
— Do lado direito, temos Legolas Lokwheel, de 29 anos — apresenta
Arnaldo.
— Esse tem nome de príncipe — sussurra Cássia.
Olho para Fadye que faz sinais positivos com os polegares.
— Do lado esquerdo, recebam Oed de Assunção, de 25 anos!
A multidão bate palmas.
— Esse tem nome de ajudante de cozinha — continua minha irmã.
Faço que sim com a cabeça, lembrando que esse é o sobrinho do
cozinheiro chefe.
— Como vocês já conhecem de cor e salteado, a primeira etapa do
Torneio não consiste em mortes. Vocês podem quebrar a perna ou o braço
do seu oponente, mas nada de feridas graves. Morte se justificará com
morte. Não tem desculpas. Boa sorte.
O gongo soa 10 vezes e o juiz libera a batalha.
As lâminas reluzem, os escudos ressoam, e os competidores se
entregam à arte da guerra, exibindo não apenas força física, mas também
astúcia e estratégia.
A multidão assiste com fascínio, aplaudindo cada movimento
habilidoso, embevecida pela grandiosidade do Torneio que se desdobra
diante dos nossos olhos.
CAPÍTULO 5

Mais de três horas se passaram, e ainda restam quatro competidores


aguardando o duelo. Até o momento, nenhum deles sofreu ferimentos
graves, e nenhum perdeu a vida.
— Esse Torneio é um tédio tão grande — cochicha Rubens, esticando
o corpo sobre a cadeira real. Ele perdeu os músculos desde que ganhou o
direito de se casar com a minha irmã, e agora uma leve pancinha está
começando a ficar visível. — Eu queria comer alguma coisa.
— Não podemos deixar este lugar até a conclusão da primeira etapa;
do contrário, ficaremos sem comida — argumenta Téssia, se abanando com
um leque dourado.
O sol do meio dia tem esquentando bastante a nossa sacada.
— Acho que já bebi mais de cinco copos de água — reclama Cássia.
Olho para Arnaldo e percebo que ele não parece muito bem.
— Por que o Arnaldo está tão pálido? — questiono, fazendo com que
todos prestem atenção nele.
Téssia fica de pé, se aproxima do marido e sussurra algo em seu
ouvido. Ele nega com a cabeça quatro vezes, antes de sair do palanque e
cair com tudo no chão.
Rubens corre imediatamente para socorrê-lo enquanto Téssia,
discretamente, chama os guardas reais para criarem uma barreira contra a
visão da multidão.
— Alguém deve dar continuidade às apresentações — comenta
Cássia, dirigindo o olhar para mim.
— De jeito nenhum, Cássia. Você tem mais experiência. Sinta-se à
vontade.
— Cássia, preciso da sua ajuda aqui — convoca Téssia.
— Boa sorte — deseja minha irmã, beijando minha testa.
Olho para Fadye, em busca de sua aprovação. Ela assente com a
cabeça, estampando um sorriso sincero no rosto.
Com dificuldades, subo ao palanque e seguro um grito. A visão
panorâmica do Torneio do Sol Nascente me deixa maravilhada e
aterrorizada ao mesmo tempo. Daqui consigo ver todas as arquibancadas, a
área nobre, os guardas e até através do muro que cerca o palácio real.
O que eu estou fazendo? Não seria melhor que tivessem cancelado ou
atrasado o Torneio deste ano?
Noto que as pessoas olham na minha direção, confusas, não
entendendo absolutamente nada. Primeiro o rei, depois o genro dele, e
agora a princesa?
— É… vamos continuar — falo e minha voz sai ampliada para todos
os lados.
— O que ela está fazendo ali?
— O que está acontecendo?
— Mudaram as regras do Torneio?
A multidão começa a lançar perguntas na minha direção. Não sei o
que fazer. Não sei como reagir a esse mar de olhos que me olham
fixamente.
Então, fecho os olhos e tento controlar minha respiração que está
desregulada. Eu sou a Princesa Saravana. Filha do rei Kalayo. Herdeira do
trono do reino de Mirassol. Eu posso lidar com essa pressão. Eu preciso. Eu
consigo.
Abro os olhos e continuo, com a voz bem firme:
— Do lado direito, conheçam o nosso maravilhoso combatente,
Carlos Eduardo, de 27 anos — anúncio, e a plateia fica em silêncio.
Percebo que gosto disso.
Carlos Eduardo levanta os braços e tenta agitar a multidão, que ainda
permanece petrificada com a minha apresentação.
— Bem, obrigada Carlos — agradeço, me sentindo menos nervosa.
— E agora, do lado esquerdo, temos o combatente mais temível de todo o
reino, Francio Polak, de 35 anos.
Francio, cheio de si por causa da minha apresentação, solta um berro
monstruoso que agita a multidão. Percebo que Carlos fica meio apreensivo,
mas não perde a compostura.
O gongo soa e Francio parte para cima do oponente com violência. As
lâminas de aço cintilam à luz do sol que se derrama sobre o campo de
batalha.
Carlos, com sua armadura reluzente, brande uma espada majestosa,
cuja lâmina reflete a determinação em seus olhos. Seu corpo é uma mistura
de força e agilidade, dançando com destreza sobre a poeira que se ergue a
cada passo. Seus movimentos são calculados, um equilíbrio perfeito entre
ataque e defesa.
Do outro lado, Francio, vestindo uma armadura mais sombria,
empunha uma lança longa com maestria. Seus olhos, frios como o aço que
carrega, revelam uma concentração feroz. Cada movimento dele é
estratégico, mirando nos pontos fracos de seu oponente com precisão
mortal.
A batalha começa com um estrondo, as lâminas se chocando em um
espetáculo de faíscas e ressonância metálica. Carlos avança com uma série
de golpes rápidos, sua espada cortando o ar em arcos elegantes. Porém
Francio, ágil como uma pantera, esquiva-se habilmente e contra-ataca com
golpes precisos de sua lança.
Sinto um nó na garganta e percebo que já tenho um preferido nessa
batalha.
A dança mortal continua, com os competidores se movendo em um
duelo de estratégia e habilidade. Cada desvio, cada parada, me fazem
prender a respiração. A multidão assiste, hipnotizada pela intensidade da
luta, aplaudindo e exalando suspiros a cada movimento astuto.
A poeira se mistura com o suor dos combatentes, criando uma
atmosfera intensa e épica. Ambos estão determinados a não ceder, seus
rostos mascarados pela seriedade da luta. Noto que Carlos luta em silêncio,
mas Francio grita barbaridades a cada golpe desferido.
Então, inesperadamente, Carlos corre em direção ao adversário, mas
Francio, vencido pelo cansaço e com medo de ser golpeado, pega um pouco
de areia e joga no rosto do seu opositor. Carlos perde a noção da direção e
fecha os olhos, incomodado. Francio, invadido pela tensão do momento, se
empolga, pega a espada de Carlos e arranca a cabeça dele em um só golpe.
Meu coração bate forte enquanto a plateia fica de pé e lança grito de
protestos. Um grupo de trompetista toca o instrumento bem alto,
sinalizando a infração.
Cássia e Rubens retornam para a tenda, de olhos arregalados,
esperando a minha declaração.
Isso não pode ser real. Não. Não está acontecendo de verdade. Eu
devo estar dormindo ainda, enquanto participo de um terrível pesadelo.
Uma tontura toma conta do meu corpo e quase caio para trás do
palanque.
— Morte por morte! Morte por morte! Morte por morte! Morte por
morte! — grita a multidão para mim.
Olho na direção de Rubens que acena afirmamente com a cabeça.
— Não, eu não posso fazer isso — balbucio, com lágrimas nos olhos.
Um dos juízes acende uma luz vermelha, chamando a minha atenção.
Ele segura a espada de Carlos enquanto pisa na cabeça dele.
Francio está ajoelhado, reconhecendo o erro que cometeu. Ele tira o
elmo com brutalidade e eu consigo ver sua expressão facial. Seu olhar é tão
tenebroso quanto as trevas, e as profundas olheiras ao redor dos olhos não
ajudam muito.
Estou completamente encurralada nessa situação. Até que eu conceda
a permissão, o Torneio permanecerá suspenso.
Não resta mais nada a ser feito a não ser ceder ao pedido do povo.
Respiro fundo e digo:
— Morte por morte.
A multidão vai à loucura enquanto o juiz arranca a cabeça do infrator
e a joga para o canto da arena.
CAPÍTULO 6

Fredd me traz um copo de água enquanto Fadye seca minha testa com
um lencinho azulado. O enjoo que sinto é tão forte que temo cair do
palanque e me quebrar todinha no chão.
Eu matei um homem, não diretamente com as minhas mãos, mas com
as minhas ordens.
Neste instante, percebo que quebrei várias regras do reino e que elas
podem me levar a forca a qualquer momento. Bebo mais um gole de água.
Meu pai vai me matar. Jamais uma mulher deu ordem para os guardas reais
ou os juízes do rei tirarem a vida de alguém. É como se eu tivesse tomado
posse da força do rei Kalayo e possuído o seu lugar de dominio.
Fadye segura minhas costas, temendo que eu desmaiei diante dessa
situação. É demais para mim. É demais para a minha consciência. Como é
que irei dormir agora? Jamais me esquecerei do que fiz. Jamais me
esquecerei deste momento infeliz.
Cássia se aproxima e fala no meu ouvido:
— O show precisa continuar.
Olho para ela confusa e extremamente desorientada.
— Eu não posso mais fazer isso. Alguém tome o meu lugar, por favor.
Minha irmã nega com a cabeça e segura a minha mão. Ela está prestes
a chorar, mas segura o choro.
— Minha querida, acho melhor você terminar essa etapa de hoje. Já
trocamos de condutor duas vezes e o papai não vai ficar nada contente
quando souber o que houve — ela suspira profundamente e tenta me
motivar. — Não se preocupe com o que aconteceu. Você é uma princesa.
Tem o sangue de Kalayo nas veias. Erga a cabeça e encare toda a situação
com dignidade.
— Dignidade? Eu matei um homem, Cássia. Eu. Matei. Um. Homem.
— Saravana, eu…
— Você não sabe de nada. Não sabe de nada. Você não está sentindo
o peso que isso traz a minha consciência — choramingo, com lágrimas nos
olhos. — Isso não é justo. Não é. Eu… eu só queria ter uma vida normal,
sem essas restrições idiotas que o papai criou.
Rubens se aproxima e segura meu braço com força.
— Depois a gente conversa sobre isso, Saravana. Agora volte a
encarar esse povo e mostre que você está no controle de tudo — fala ele,
entre os dentes.
— Você está me machucando — reclamo, tentando me livrar do
aperto dele.
— Solta ela, Rub — pede Cássia, preocupada.
Ele me encara dentro dos olhos.
— Isso não é nada comparado com as consequências que virão caso a
multidão crie uma algazarra no Torneio. Lembre-se que eles pagaram para
ver o espetáculo. Lembre-se que, do lado de fora, tem gente apostando tudo
nos competidores. Lembre-se que é o seu nome que está diante de todo o
reino. Se você falhar agora, talvez não haverá conserto — diz, apertando
ainda mais o meu braço. — Acorda garota. Seja adulta. Você em breve vai
ter que se casar com um dos competidores que está lá embaixo, neste
momento, observando tudo.
Por mais que eu queira gritar com Rubens, algo me diz que ele está
certo. Papai tem trabalhado duro para ter um reino próspero e pacífico.
Graças ao seu modo de governar o dinheiro arrecadados dos impostos, o
povo não passava fome.
Rubens me solta e volta a se sentar na cadeira. Cássia me olha com
uma expressão piedosa no rosto, mas não diz nada.
Assoo o nariz no lencinho que Fadye secou minha testa e me viro
para a multidão que ainda vibra com a morte de Francio, ordenada pelas
minhas mãos.
— Vamos continuar com… a programação — grito, chamando
atenção de todos para mim. Infelizmente o drone sobrevoa na minha frente,
me deixando ainda mais nervosa. — Certo. Do lado direito da arena, uma
salva de palmas para Ad Pomodoro, de 23 anos.
Ad surge com a postura ereta e não faz nenhum gesto para animar a
multidão. Ele segura duas adagas pequenas que parecem meio enferrujadas.
— E do lado esquerdo, Salomé Valktran, de 26 anos — apresento,
com a boca seca novamente.
Salomé caminha até o centro da arena, acena para o céu e faz uma
reverência para Ad. Ele usa uma armadura impecável que reluz conforme a
luz do sol bate no espelho. A espada que o competidor segura é de ouro
puro e nota-se que nunca foi usada em batalha.
Ele é rico. Muito rico.
— É o filho do Duque que trabalha com o papai — escuto minha irmã
sussurrando para o marido.
Me esforço para lembrar do filho do Duque Salazarjo, porém,
nenhum rosto vem à minha mente.
— Boa sorte aos competidores e que vença o melhor — digo, e apoio
o meu corpo no púlpito.
Na vasta arena, sob o olhar atento das arquibancadas repletas de
espectadores ansiosos, os combatentes de estilos completamente diferentes
se preparam para lutar.
O gongo soa mais uma vez e os competidores começam.
Percebo que Ad é extremamente ágil e destemido. Ele empunha as
adagas enferrujadas com destreza e precisão. Por outro lado, sinto que
Salomé, totalmente equipado, confia apenas em suas habilidades e
agilidade.
Os competidores circulam um ao redor do outro, calculando cada
movimento, com seus músculos tensos. A arena ressoa com o som dos
passos ágeis e do tilintar metálico das armas. Ad avança primeiro, girando
suas lâminas em movimentos complexos, criando um redemoinho de aço no
ar. Salomé, movendo-se com uma graça felina, evita os golpes com uma
série de acrobacias impressionantes. O público, cativado pela agilidade e
destreza dos combatentes, irrompe em aplausos e gritos de encorajamento.
Torço mentalmente para que a luta termine o mais rápido possível,
sem mortes, para que eu possa me esconder no meu quarto e me preparar
mentalmente para conversar com Kalayo.
A luta se desenrola como uma dança mortal, com os competidores
trocando golpes rápidos e bloqueios precisos. Ad, apesar de não ter armas
de qualidade, utiliza seus punhos e pernas como extensões de sua vontade,
demonstrando uma técnica formidável e uma velocidade surpreendente. Em
todos os Torneios em que tenho participado, ele é a primeira pessoa que luta
completamente diferente, fora dos padrões.
A arena vibra com a energia do confronto. A cada movimento, o
equilíbrio entre ataque e defesa oscila, mantendo a multidão em suspense. A
tensão é grande enquanto observo que os combatentes exploram as
fraquezas e os pontos fortes um do outro.
Conto doze minutos consecutivos e ainda os vejo se enfrentando com
determinação. Embora desconheça os critérios pelos quais os juízes avaliam
os competidores, parece evidente que ambos alcançam as notas máximas
nesta etapa.
No ápice da batalha, um momento de silêncio paira sobre a arena. Ad
e Salomé se encaram, ambos exaustos, mas ainda repletos de determinação.
Então, num instante de clareza, Ad realiza uma série de movimentos
acrobáticos e, com um golpe preciso, desarma o oponente.
O povo prende a respiração.
Como isso é possível? Será que Ad é artista de circo?
O juiz caminha até o centro da arena, apita e aponta para Ad,
encerrando a luta.
A multidão irrompe em aplausos e aclamações, reconhecendo a
maestria do competidor.
Ambos os combatentes, cansados mas respeitosos, se cumprimentam
no centro da arena, honrando a tradição de respeito e cavalheirismo que
permeia a arte do Torneio do Sol Nascente.
Solto um suspiro demorado.
Chegamos ao fim da primeira etapa, agora com a ausência de dois
competidores. Isso, conforme minha compreensão básica, certamente
desencadeará uma discussão intensa entre os meus familiares. E serei
culpada por tudo, mesmo sem ter tido escolha.
CAPÍTULO 7

Estou deitada na minha cama, de barriga para cima, olhando para o


majestoso teto do meu quarto. Ainda não consigo absorver tudo o que tem
acontecido no dia de hoje. Papai, misteriosamente amanheceu doente.
Arnaldo, teve queda de pressão durante o Torneio e teve que ir a ala
hospitalar às pressas. Francio matou o Carlos. Eu matei o Francio.
Impossível não receber uma punição por isso.
Fadye aparece na porta do banheiro e diz:
— A banheira já está preparada, Sara.
— Obrigada. Eu preciso mesmo de um banho bem quente.
Ela assente e sai do meu quarto.
Vou até o banheiro, me desfaço do vestido impregnado de suor e
mergulho na banheira, permitindo que a água alcance não apenas meu
corpo, mas também meu cabelo. Fico quase 2 minutos com a cabeça
debaixo d’água, tentando clarear meus pensamentos que se encontram
desalinhados.
Assim que emerjo de volta, relaxo.
O banheiro do palácio é um ambiente que combina elegância e
praticidade, projetado para proporcionar conforto e luxo ao mesmo tempo.
Ao adentrar, é possível sentir a atmosfera refinada que permeia cada detalhe
do espaço.
As paredes são revestidas por um mármore delicadamente esculpido,
exibindo padrões que acrescentam uma sensação de extravagância ao local.
Sutilmente iluminado por lustres arredondados, o banheiro emana uma luz
tranquila, criando uma atmosfera relaxante.
Os espelhos, de molduras requintadas, refletem a beleza do design.
Uma penteadeira luxuosa, adornada com delicados frascos de perfume e
utensílios de maquiagem, acrescenta um toque de glamour ao ambiente.
A banheira de estilo clássico é um ponto focal, posicionada
estrategicamente para aproveitar a vista para os jardins exuberantes do
palácio. Seus pés esculpidos e torneiras de ouro conferem uma aura de
indulgência real. Toalhas felpudas e roupões bordados estão dispostos,
oferecendo conforto para quem os usar.
Ao lado da banheira, uma ampla pia de porcelana repousa sobre uma
bancada de mármore, acompanhada por elegantes dispensadores de
sabonete e loções. Um espelho de aumento está estrategicamente
posicionado, proporcionando praticidade para tarefas detalhadas de cuidado
pessoal.
O piso, coberto por um tapete macio e antiderrapante, complementa a
sensação de conforto. Plantas verdes em vasos decorativos adicionam um
toque de frescor na atmosfera.
Para garantir privacidade, cortinas ou persianas podem ser ajustadas,
permitindo que eu desfrute do meu momento de tranquilidade longe do
escrutínio do mundo exterior.
— O designer desse palácio merece uma estatueta de ouro — digo
para mim mesma.
Fecho os olhos e controlo a minha respiração. A sensação de
segurança que esse lugar transmite é surreal. As vezes, prefiro mil vezes
permanecer aqui dentro do que comparecer aos jantares de família, que
acontecem todos os domingos. Tradição da família real, especificamente de
minha mãe. Ela acredita que o ajuntamento é vínculo de união.
Meus pensamentos se voltam para as atitudes recentes de meu pai. A
aquisição de drones para circularem durante o Torneio do Sol Nascente me
causa inquietação. Essa atitude está longe de ser comum vindo de um
homem mais velho, que sempre demonstrou desconfiança em relação à
tecnologia. Uma mudança tão drástica de postura não pode ser ignorada.
Preciso abordá-lo e descobrir qual é o verdadeiro motivo por trás desse
monitoramento excessivo. Será que o reino enfrenta ameaças que
desconheço? O fato de Téssia e Cássia estarem a par dessa compra levanta
mais perguntas. O que eles estão escondendo de mim?
Inalo profundamente, buscando toda a serenidade disponível. É
possível que esse seja o motivo pelo qual Donabella, minha terceira irmã,
partiu assim que contraiu matrimônio. Ela sempre se queixava de não estar
a par dos acontecimentos no reino, sentindo-se excluída da vida da família
real.
Meus olhos, por um instante, se fixam no chão antes de um grito
escapar de meus lábios. Pisco repetidas vezes, tentando dissipar qualquer
lembrança dolorosa da morte de Francio.
Fadye abre a porta com violência.
— Sara, você está bem? — pergunta, com os olhos arregalados.
Olho para o chão novamente e não vejo mais nada.
— Eu tinha visto a cabeça de Francio aqui, agora, perto da porta —
digo, me sentindo uma completa idiota. — Mas eu sei que não foi real.
Ela se aproxima de mim e esfrega os meus cabelos com delicadeza.
— Você sabe que isso vai permanecer te assombrando durante algum
tempo, não sabe? Saiba que é normal, ainda mais depois de toda a pressão
que o povo colocou nas suas mãos. Não se preocupe, Sara. Você fez o que
era correto fazer. Se não desse ouvidos a voz da multidão, com certeza
aquilo se tornaria uma chacina. Imagina só, um bando de pessoas se
matando por causa da decisão de uma pessoa? Foi melhor assim.
— Ele tinha uma família, Fadye. Talvez uma mãe preocupada com o
estado emocional do filho ou um pai que o admirava por ser um homem de
valores. Sei lá. Jamais vou me perdoar pelo que fiz. Mesmo que você insista
que tomei a decisão certa, ainda existe algo dentro de mim... algo que clama
ser errado tirar a vida de alguém.
Ela molha meu rosto e acaricia minhas têmporas.
— Você foi forte e corajosa. Teve atitude de princesa…
— Assassina. Tive atitudes de uma pessoa assassina que não pensou
duas vezes antes de aniquilar outra vida. Não adianta falar, Fadye.
— Tudo bem. Vamos mudar de assunto, então. Você reparou que o
filho do Duque estava na arena?
Faço que sim com a cabeça.
— Você acredita que eu não me lembro mais dele?
— Isso ocorre porque faz 10 anos desde que ele deixou o reino. Ele
realizou um intercâmbio no exterior e se apaixonou pelo país em que estava
estudando. Soube que o Duque chegou a considerar deserdá-lo por causa
disso. No entanto, parece que algo o trouxe de volta, não é mesmo? — ela
me cutuca.
— Exatamente. O trono. É a única coisa que faz com que um homem
lute até a morte. Ou você acha mesmo que esses competidores arriscam a
própria vida pelas filhas do rei? — questiono.
Ela demora um tempo para responder.
— Ainda sustento minha fé no amor à primeira vista, sabe? Tenho a
convicção de que o príncipe Rubens e o príncipe Arnaldo desenvolveram
amor por suas irmãs. Enquanto isso, o príncipe Erasmo amou Donabella de
forma sincera. Eles decidiram deixar para trás a opulência em troca de uma
vida mais simples fora do palácio. Isso não é amor?
— Não acho que o amor seja apenas isso. Ele vai muito mais além do
que se livrar da aba dos pais. Aliás, não sabemos como é a vida dela agora.
Ela mantém total sigilo sobre tudo. Minha mãe se sente angustiada pela
ausência de informações.
— Uma pena que a rainha Elizabelly não possa sair do palácio. A
vida do lado de fora é muito diferente.
— Como você pode ter tanta certeza assim? Você praticamente
cresceu junto comigo.
— O chefe de cozinha sempre me conta as coisas que acontecem do
lado de fora. Sabia que existe um baile chamado Dança da Meia Noite?
— Dança da Meia Noite? — questiono, intrigada. — Me conta como
é isso, por favor — peço, curiosa.
— A Dança da Meia Noite é um evento realizado nos jardins da casa
de um padeiro chamado Conde de Bogoréa. É um lugar extremamente
iluminado por tochas. Ele me disse que existe uma passarela ornamentada,
alinhada com pétalas de rosas que guia os convidados até a área central,
onde um pavilhão de dança é montado. O pavilhão é decorado com tecidos
esvoaçantes em tons de azul e prata que capturam o brilho da lua e das
estrelas. Parece que o Conde também contrata uma orquestra amadora para
animar a multidão com melodias românticas.
— E a vestimenta das pessoas? — pergunto, totalmente imersa no
assunto. — Existe algum tipo de padrão?
— Claro. Os convidados vão vestidos com trajes deslumbrantes e
máscaras elegantes que escondem boa parte do rosto. Sem contar nos
cheiros de flores exóticas que perfumam o ar, se misturando ao aroma suave
das velas que adornam as mesas dispostas ao redor do pavilhão.
Imagino o quanto deve ser bonito participar desse lugar.
— E qual é o propósito, afinal?
— Oras, Sara! O que você faria se fosse convidada para um baile? —
indaga ela, indignada com a minha pergunta.
— Eu nunca fui a bailes que não fossem dentro do palácio. Você sabe
disso.
— Eu também nunca fui, então estamos quites.
Dou um tapa de leve na mão dela.
— Continue.
— Enfim. Há também uma variedade de quitutes e bebidas refinadas
que são oferecidas em mesas decoradas com arranjos florais exuberantes.
Você acredita nisso?
— É praticamente o palácio do lado de fora.
Ela nega com a cabeça.
— É melhor do que isso, Sara. Desculpa o que eu vou falar, mas o
chefe disse que não há guardas reais monitorando os passos das pessoas o
tempo todo. O padeiro contrata dois seguranças para guardarem a entrada
do evento e só.
Sinto um grande desejo de participar desse baile.
— E quando ele acontece? Existe alguma data específica?
Fadye coloca minha cabeça para trás e olha dentro dos meus olhos.
— Você está pensando em participar do baile? — pergunta,
preocupada.
— Eu só quero saber quando é — digo, não respondendo a pergunta
dela.
Ela dá de ombros.
— Eu não faço ideia. O chefe de cozinha não me contou a data.
Cerro meus olhos.
— Por que ele não contaria para você?
Ela dá um beijo na minha testa.
— Porque ele sabe que eu tentaria fugir do palácio só para descobrir
como a festa realmente é — responde, soltando meus cabelos.
CAPÍTULO 8

Alguém bate na porta.


Olho para o relógio da parede e constato o quão avançada está a hora
da noite. Quem poderia ser agora? Fayde não espera permissão para entrar.
Minhas irmãs não aguardam mais do que dez segundos antes de invadirem
meu território. Quanto aos meus pais, nem é preciso considerar.
Me levanto, meio sonolenta, visto meu roupão gigante e abro a porta.
— Ad? O que você está fazendo aqui? — pergunto, assustada.
O competidor parece assustado ao me ver.
— Princesa? Mil desculpas… é que eu, sei lá, esses corredores me
deixam confusos — fala, envergonhado.
Como é que eu sabia que ele era o Ad Pomodoro, se o competidor
usava o elmo de prata durante a luta?
— O que você está procurando? — pergunto, meio encabulada com a
situação.
— O banheiro — responde, olhando para o chão.
Percebo que ele chama bastante atenção. Sua estatura é imponente,
com uma postura ereta que irradia confiança e carisma ao mesmo tempo.
Seus traços faciais são distintos, com uma combinação perfeita conforme a
simetria do rosto.
O rosto apresenta uma barba medidamente aparada que enfatiza a
linha angular da mandíbula. Os olhos castanhos, intensos e expressivos,
capturam a atenção com um brilho singular, revelando uma mistura curiosa
entre o anseio de ser e o saber. Sob as sobrancelhas bem definidas, um olhar
penetrante sugere uma mente aguçada, inteligente e muito observadora.
O cabelo, seja ele cortado impecavelmente ou selvagemente
estilizado, se destaca como um elemento distintivo. A escolha da cor
castanha, seja natural ou ousadamente tingida, é única e ressoa com a
personalidade que ele demonstra no restante do corpo.
Sacudo a cabeça, tentando afastar a distração que domina a minha
mente.
— Você quer usar o meu? — pergunto, olhando para o outro lado do
corredor.
— Como é que é?
— O banheiro? Você não disse que estava procurando por ele?
Ad cora imediatamente.
— Ah, sim. Nossa. Que susto. Eu pensei em outra coisa. Que horror.
Fico quente.
— O que você pensou? — pergunto, com a tonalidade da voz fina
demais.
Não consigo deixar de notar que ele usa um traje cuidadosamente
selecionado, realçando sua figura atlética e revelando um gosto refinado
para a moda. As cores e padrões escolhidos transmitem uma confiança
estilística.
Ad tem músculos bem definidos que são evidentes sob a vestimenta.
A forma como ele se movimenta exala uma combinação de força e graça.
— Deixa para lá. E sobre o banheiro, é… então. Eu já usei. Acabei
me perdendo na volta para o meu quarto
Faço que sim com a cabeça, não acreditando muito nas desculpas
dele.
— Certo. Mas você sabe que os quartos dos competidores estão do
outro lado do palácio, né? — questiono, avaliando sua reação.
— É? Não sei. Tô confuso demais.
Mentiroso.
— E você sabe que essa ala do palácio só está reservada para a
realeza, né?
— Sério? Não. Eu não sabia. Mil perdões, princesa.
Ele se vira para ir embora, mas para.
— Então, tchau — digo, fechando a porta.
— Não, espera. É… aí caramba, eu estou muito nervoso. Desculpa.
Eu não sou assim…
Abro um sorriso apertado.
— Tudo bem, fique calmo. Respire. Eu não vou te morder.
— Mas eu deixaria.
— Deixaria o que? — pergunto, segurando meu roupão.
Ad parece ter perdido a noção.
— A senhorita me morder, se quisesse.
Arregalo meus olhos.
— Você tem problema?
— É, acho que sim. Desculpa.
— Para.
— Para com o que?
— De me pedir desculpas. Está me deixando irritada.
Ele dá risada.
— Eu irrito você?
— Irrita e muito. E… por que você está me olhando desse jeito? —
pergunto, nervosa.
— Como assim? Eu não estou fazendo nada, princesa.
— Nada, esquece.
— Fala princesa.
— Olha, eu não deveria estar conversando com você agora. Isso está
fora do cronograma — explico, ainda olhando para o corredor.
— Que cronograma?
Ele não vai parar de fazer perguntas?
— Aí, será que eu tenho que explicar tudo?
— Por que você está gritando comigo?
— Eu não estou gritando com você! Eu só…. Ei. O que você está
fazendo?
Ad me empurra para dentro do quarto e fecha a porta.
— Xiu. Silêncio, por favor — sussurra ele.
— Me solta! Caso contrário, vou gritar.
Ele segura meus pulsos, encosta as costas na porta e me puxa na
direção dele.
— Você tem cheiro de rosas frescas.
— Do que você está falando? — pergunto, com o coração na
garganta.
— Do seu perfume. É bom. Eu gosto.
Agora sinto vontade de desmaiar.
— O que você quer comigo?
— Tem dois guardas do lado de fora, princesa.
Reviro os olhos.
— E qual é o problema?
— Qual o problema? A madame me pergunta qual é a droga do
problema?
— Não fale assim comigo.
— Assim como? MADAME? — ele sussurra a palavra com mais
veracidade.
— É. Assim parece que você está se referindo a uma velha.
Ele dá risada, mas se contém logo em seguida.
— Desc.. quer dizer. Esquece. Se os guardas me virem fora do meu
quarto, do outro lado do palácio, conversando com a princesa, o que eles
vão pensar?
— Que você se perdeu e estava pedindo ajuda para voltar para o
quarto?
— Não, né. Deixa de ser burra.
Ele me chamou de burra? Será que Ad não tem medo de morrer?
— Burra? Eu? Com quem você pensa que está falando?
Agora é a vez dele revirar os olhos.
— Aí alteza, eu não tenho esses mimimi ainda.
— Mimimi? São modos, meu bem.
— Eu sou o seu bem?
— Tchau, Ad. Vai embora, por favor.
Ele me solta com cuidado.
— Deixa eu ver se os guardas desapareceram — fala, preocupado.
— Rápido, porque eu quero dormir — reclamo, embora eu quisesse
dormir uma noite com ele.
Ele abre a porta com cuidado e coloca a cabeça para o lado de fora.
— Certo. A área está limpa. Boa noite, princesa.
— Boa noite.
— E desculpa por…
— VAI EMBORA! — falo um pouco alto demais.
Ad, surpreso, recua e deixa o quarto, seguindo na direção oposta à
qual havia se aproximado.
CAPÍTULO 9

— O Ad esteve aqui no meu quarto ontem a noite — conto para


Fadye, enquanto ela penteia os meus cabelos.
— O que? — pergunta, desacreditada.
Afirmo com a cabeça.
— Sim. Ele estava perdido nos corredores.
— Vocês fizeram amor? — pergunta minha amiga, sem olhar nos
meus olhos.
— O que? Claro que não! Fadye que isso?
Ela finge estar envergonhada.
— Desculpa. É que ele é muito gostoso.
Franzo o cenho com vontade.
— Onde você está aprendendo esse linguajar? Estou ficando
preocupada.
Ela abre um sorriso empolgado.
— Perdão. Mas você não acha que ele é muito bonito?
Lembro do corpo de Ad colado ao meu e fico meio excitada.
— Sim. Realmente, ele é bonitão.
Fadye morde os lábios. Ultimamente ela tem agido um pouco
estranha comigo. Não comigo diretamente, mas a maneira como ela tem
falado.
— Posso te pedir um favorzinho?
Cruzo os braços e faço cara de madame enjoada.
— Lá vem. Diga.
Ela pigarreia antes de perguntar:
— Se ele permanecer vivo até o término do Torneio, o que eu
sinceramente espero, e não conquistar o título de campeão... será que você
poderia agitá-lo por mim?
Percebo uma pontada estranha, uma espécie de ciúmes? Opa. Opa.
Opa. Não, não posso estar sentindo ciúmes da minha melhor amiga. Afinal,
ainda nem conheço Ad direito. Apesar de reconhecer sua beleza intrigante e
excitante, ele definitivamente não faz parte do meu tipo. Essa sensação é
passageira, com certeza.
Olha em sua direção e percebo que ela espera minha resposta.
— Eu não controlo o coração de ninguém, pimentel, mas posso tentar.
Fadye me dá um abraço apertado e beija o topo da minha cabeça.
— Muito obrigada, Saravana — agradece. — Eu sabia que podia
contar com você.
A porta do meu quarto se abre e Madame Zahir entra com
graciosidade.
— Bom dia. Bom dia. Bom dia. Como você está hoje? — pergunta,
tirando minha roupa de um saco transparente. — Está pronta?
— Perdão?
— Sua mãe está convocando toda a família real para o café da manhã
— explica, desamassando meu vestido preto azulado. — Então, você
precisa se apressar um pouquinho. Não quero levar bronca por causa do seu
atraso, princesa.
— Mas hoje eu havia combinado de tomar o café da manhã com a
Fadye. Acho um tanto indelicado que a rainha demande a presença de todos
os membros da família real neste momento, ignorando compromissos pré-
agendados.
— Fadye é quase parte da família, e estou certa de que ela
compreenderá perfeitamente, não é mesmo? — indaga à minha auxiliadora.
— Sim, senhora. Estarei aqui, nos aposentos da princesa, caso ela
precise de alguma coisa.
— Excelente, então…
— Não permitirei que ela fique enclausurada aqui — afirmo,
levantando-me.
— Senhorita? — pergunta minha estilista, surpresa com minha
decisão.
— Se ela é QUASE da família, então eu exijo que ela participe do
café da manhã junto comigo — disparo, percebendo minha amiga perder a
cor.
— Princesa, eu…
— Silêncio, Fadye — solicito, pela primeira vez em minha vida. Uma
tristeza repentina invade meu coração ao tratá-la assim. — Você vestirá um
dos meus vestidos e ocupará um lugar ao meu lado.
Madame Zahir olha para Fadye e depois para mim, sem reação
alguma.
— Acho melhor avisar a rainha antes que…
— Claro, me faça esse pequeno favor, está bem? — falo, dirigindo-
me até o meu guarda-roupa. — Deixe que eu me encarrego de preparar a
Fadye para hoje.
Minha estilista sai imediatamente, deixando a tensão no meu quarto
ainda mais carregada.
— Saravana, eu não vou. Eu não posso.
Permaneço calada, escolhendo um vestido para ela. Escolho um
vestido bege e analiso como o tom de pele dela se harmoniza com a cor. No
entanto, reconsidero, optando por um vestido mais escuro e menos
volumoso.
— Por favor, Saravana. Eu não quero causar confusão.
— Você gosta mais de marrom escuro ou cinza queimado? —
pergunto, ignorando-a.
Minha amiga percebe a minha insistência e começa a chorar baixinho.
— Sinto muito, princesa. Mas… estou me retirando.
Paro de mexer nos meus vestidos e olho para ela.
— Isso não é um pedido, é uma ordem. Você vai participar desse café
da manhã comigo. Nem que eu te arraste pelos cabelos. E se ainda gritar, eu
mando os guardas colocarem esparadrapos na sua boca até o salão
principal.
— Por que você está fazendo isso comigo? — pergunta ela, limpando
as lágrimas dos olhos com as costas da mão.
Vou até minha amiga, seguro suas mãos e começo a balançar nossos
braços.
— Acho que aquela canção explica muita coisa — digo e ela dá
risada.
— Ah não. Você canta muito mal — dispara, reclamando.
Sendo assim, começo a cantar:
Oh, melhores amigas, como estrelas brilhantes,
Caminhando juntas, através de dias radiantes.
Risadas e segredos, como uma melodia,
Nossa amizade é eterna, uma doce harmonia.
No parque da infância, sob o sol a brilhar,
Caminhamos juntas, sem perceber o tempo passar.
Compartilhamos sonhos, como sementes a crescer,
Melhores amigas, lado a lado, para sempre a florescer.
Oh, nas alegrias e nas dores,
Somos como as estações, mudando cores.
Mas nossa amizade, forte e fiel,
É a âncora que nos mantém de pé no vendaval.
Cutuco a barriga de Fadye, e ela começa a cantar junto comigo:
Oh, melhores amigas, como estrelas brilhantes,
Caminhando juntas, através de dias radiantes.
Risadas e segredos, como uma melodia,
Nossa amizade é eterna, uma doce harmonia.
No livro da vida, capítulos a escrever,
Você e eu, juntas, a história a tecer.
Compartilhamos lágrimas, sorrisos e canções,
Nossa amizade é como uma poesia de corações.
Oh, nos altos e baixos da jornada,
A amizade é a luz que nunca se apaga.
Cada passo, cada abraço apertado,
Melhores amigas, lado a lado, no caminho marcado.
A porta do meu quarto se abre discretamente, e Cássia espreita,
tentando compreender a situação. No entanto, sigo inabalável, continuando
a cantar:
Oh, melhores amigas, como estrelas brilhantes,
Caminhando juntas, através de dias radiantes.
Risadas e segredos, como uma melodia,
Nossa amizade é eterna, uma doce harmonia.
E quando a tempestade da vida nos abraçar,
A força da amizade nos fará superar.
Unidas, como o sol e a lua a dançar,
Melhores amigas, para sempre a brilhar.
Oh, melhores amigas, como estrelas brilhantes,
Caminhando juntas, através de dias radiantes.
Risadas e segredos, como uma melodia,
Nossa amizade é eterna, uma doce harmonia.
Nossa jornada continua, lado a lado a voar,
Melhores amigas, para sempre a caminhar.
Como um tesouro, em nosso coração,
A amizade verdadeira, uma doce canção.
Fadye me abraça e começa a chorar copiosamente.
— Eu te amo tanto, Saravana — diz, entre lágrimas e soluços.
— Saiba que eu também te amo muito, Fadye — confesso, encarando
diretamente os olhos da minha irmã. Ela, compreendendo a intensidade do
nosso vínculo, enxuga as lágrimas e assente com a cabeça.
Cássia, infelizmente, perdeu sua melhor amiga e auxiliadora para a
leptospirose quando ambas tinham apenas 14 anos. Desde então, ela nunca
mais considerou a possibilidade de permitir que outra pessoa entrasse em
sua vida.
CAPÍTULO 10

Os guardas reais abrem as portas duplas do salão principal do palácio.


Ao adentrarmos, somos recebidas por um ambiente que transcende a
mera funcionalidade, incorporando a majestade de uma tradição real que
perdura por anos.
As dimensões do salão são acentuadas por um teto abobadado
adornado com afrescos espetaculares que também contam a história da
linhagem real e os eventos significativos do reino. Por mais que alguém não
queira saber como foi o processo das conquistas e evoluções da realeza, é
impossível não decorá-las.
Os lustres suntuosos pendem do teto, lançando uma luz dourada que
banha o espaço em uma luminosidade excelente. O piso, composto por lajes
de mármore polidas, reflete a magnitude do lugar. Uma longa mesa de
jantar, esculpida em madeira nobre e adornada com entalhes delicados, se
estende pelo centro do salão, ladeada por cadeiras ornamentadas para a
família real e os convidados de honra.
A louça e talheres são verdadeiras obras de arte, feitas de prata
finamente trabalhada e porcelana delicadamente decorada. Os guardanapos
de linho são bordados com flores azuladas, e taças de cristal completam o
cenário de requinte, mostrando que cada detalhe foi cuidadosamente
considerado para criar uma atmosfera de opulência.
As paredes são revestidas com painéis de madeira esculpida,
decoradas com brasões da minha família. As tapeçarias retratam momentos
significativos, escolhidos pelo antigo rei de Mirassol, Galacios, pai do meu
pai e também meu avô. As janelas altas, enfeitadas com cortinas de seda,
permitem a entrada de luz natural durante o dia e proporcionam vistas
deslumbrantes dos jardins do palácio.
Ao fundo do salão, um imponente trono de ouro se encontra elevado,
simbolizando a autoridade do rei Kalayo. Sua presença domina o ambiente,
adicionando um toque de poder e prestígio, embora ele seja somente a cópia
do trono original.
Enquanto admiro cada detalhe, percebo que Fadye diminui os passos,
com medo do que pode acontecer com ela.
— Há algo errado, Fadye? — questiono, acompanhando seu passo
ansioso.
— Estou nervosa, princesa. Muito nervosa mesmo.
Estendo minha mão para segurar a dela.
— Nada de mal acontecerá a você, está bem?
Fadye concorda com a cabeça, engolindo em seco.
Fredd se aproxima e realiza uma reverência calculada.
— Bom dia, princesa Saravana. É uma honra recebê-la esta manhã.
— Bom dia, Fredd. Muito obrigada pelo serviço, mas eu já conheço o
caminho até a mesa — digo, dispensando o mordomo do papai. — A
propósito, Fadye vai se sentar comigo hoje.
Ele assente, mantendo a cabeça baixa.
— Fui informado sobre isso, senhorita. Sua mãe solicitou a reserva de
uma cadeira ao seu lado. Mais precisamente, a da esquerda.
Abro um sorriso triunfante.
— Obrigada — agradeço e sigo em direção a mesa. Eu sabia que
minha mãe não ia se incomodar com a presença da minha melhor amiga.
Léo, filho da irmã do rei Kalayo, se aproxima e se curva na minha
frente. Ele usa um terno azul celeste e os cabelos acinzentados penteados
para trás.
— Princesa, é uma honra tê-la no café da manhã — fala, com a voz
rouca.
Fico vermelha imediatamente.
Meu primo sempre usa falas em duplo sentido e, além disso, foi o
responsável por tirar a minha virgindade.
— O prazer é todo meu, Léo — respondo.
Michelle surge do nada, tropeça e quase cai de cara no chão.
— Bom dia, princesa. Como você está?
Ela usa uma tiara de pérolas brilhantes que combina perfeitamente
com o seu vestido rosado.
— Estou bem, obrigada. E, a propósito, seu visual hoje está incrível.
Parece que alguém está se tornando uma expert em moda — comento, e
Fadye mal segura uma risada.
Michelle exibe um sorriso radiante, claramente satisfeita com o
elogio.
Vou até a mesa e encaro todos os convidados.
Vejo minha mãe, a rainha Elizabelly, conversando com Marcellyne,
irmã do meu pai. Ela usa um vestido dourado, contrastando com o brilho da
coroa na cabeça. Porém minha tia escolheu um vestido bege amarelado,
combinando com a pele dela.
Sentados à mesa no lado esquerdo, observo meus primos Talles,
Deriko, Artaxis e Leilane, seguidos pelos meus tios Jhonas e Ricarda. Logo
depois, vejo meus primos Charles e Mendy, acompanhados pelos meus tios
Robert e Dangarla. A última fileira é marcada pela cadeira vazia de Léo e
Michelle, seguida pela ausência de Marcellyne e meu tio Heleno.
A parte direita da mesa é destinada à família real, com Arnaldo
liderando, seguido por Téssia, Rubens acompanhado por Cássia, às cadeiras
agora vazias de Erasmos e Donabella, o meu lugar e por último Fadye.
Cumprimento alguns primos com um aceno de cabeça e tomo assento
na cadeira opulenta do salão. Fadye hesita por um momento, lançando um
olhar de soslaio à minha família, mas logo se junta a mim na mesa.
— O cardápio de hoje são ovos mexidos com salada de manga e
vinagre, senhorita — detalhe o garçom real, usando um terno preto
acinzentado. — Para a bebida, temos café, leite, chás e sucos de frutas.
— Eu quero um suco de suco de limão sem gelo, por favor.
— E a senhorita? — pergunta ele para Fadye. Ela se sente
constrangida.
— O mesmo que a princesa — pede, olhando para mim.
O garçom sai, e Cássia chega para nos cumprimentar.
— Vocês estão deslumbrantes, meus parabéns — elogia minha irmã,
envolvendo-me em um abraço por trás.
— Obrigada. Onde está o papai? — pergunto, ainda preocupada.
— Ainda não se sente forte o suficiente para sair da cama.
— Será que posso visitá-lo mais tarde?
Ela olha para a mamãe antes de responder:
— Talvez seja mais prudente esperar. Nos últimos dias, tantos
acontecimentos tumultuaram o palácio que seria sensato aguardar que ele
mesmo a convoque para seus aposentos. Mamãe, desde ontem, se encontra
bastante irritada. Está assumindo as responsabilidades do papai sozinha e
afirmou que dispensa a ajuda de qualquer pessoa, mal dirigindo a palavra a
nós.
Noto que minha mãe tem profundas olheiras ao redor dos olhos.
— O que aconteceu? — pergunto.
Antes que Cássia pudesse responder, minha mãe pega um talher e
bate no copo para chamar a atenção de todos. Minha tia e meus primos se
sentam em seus lugares, e um silêncio repentino toma conta do lugar.
Em seguida, os garçons trazem os nossos pedidos e vão embora.
— Podem se servir — permite a rainha.
Pego um pedaço de manga e coloco na boca. Está azedo demais.
Alguém exagerou no vinagrete. Bebo um pouco de suco de limão. Está
doce demais. O que está acontecendo na cozinha hoje?
— Acho que o chefe de cozinha exagerou na dose — sussurro para
Fadye que assente com a cabeça.
Observo minha tia Ricarda enfrentando desafios para fazer com que
os gêmeos se alimentem. Enquanto isso, noto que Michelle, ao invés de se
concentrar na refeição, está ocupada retocando o batom, aparentemente
indiferente ao restante do ambiente. Embora Léo argumente que eu sou um
pouco exigente com ela, a realidade é que considero sua presença intrusiva.
Michelle raramente respeita meu espaço, e sua tendência a ser expansiva
apenas complica a situação.
Dez minutos depois, a rainha fica de pé e todos paramos de comer.
— Membros da nobreza, e estimados convidados. Hoje, diante de
vós, sinto-me profundamente grata pela dádiva que é ter vocês como a
minha família. Em tempos de desafio, a força que encontramos uns nos
outros é um tesouro inigualável. Agradeço, de coração, por cada um de vós
que contribui para a riqueza e a grandeza deste reino — fala, parando por
alguns instantes. — No entanto, como líder desta terra, é minha
responsabilidade compartilhar verdades que, por vezes, são sombras que
tentam ofuscar nossa luz. Nos últimos tempos, nossa unidade e paz foram
ameaçadas por um grupo de rebeldes que ousaram trair não apenas a coroa,
mas a confiança de todo o povo. Estes, infiltrados entre nós, têm conspirado
contra a paz e a estabilidade do reino.
Fico perplexa. Um grupo rebelde? Aqui, em nosso reino?
Conspirando contra o povo de Mirassol? Não faz sentido.
Meus primos, sentados do outro lado da mesa, começam a sussurrar
entre si. Meus tios trocam olhares surpresos, evidenciando que estão tão
atônitos quanto eu diante dessa revelação.
— Descobrimos que esse grupo traidor, em sua ambição desenfreada,
estava secretamente colaborando com um contingente militar de uma nação
estrangeira. Informações cruciais sobre nosso palácio, nossas estratégias e
até mesmo os segredos mais íntimos do reino foram deliberadamente
compartilhadas com nossos inimigos, minando a segurança de todos nós —
continua a rainha e, pela primeira vez, não a vejo como minha mãe, mas
como uma líder de verdade.
— Como isso é possível? — questiona minha prima Mendy,
horrorizada.
— Quieta, Mendy! — pede a mãe dela.
— Diante dessa traição, não poderiamos ficar impassíveis. A justiça
prevaleceu, e aqueles que conspiraram contra nós enfrentaram as
consequências de suas ações. A partir de agora, nossos esforços para
fortalecer as defesas do reino serão redobrados, e a lealdade será alicerçada
em medidas ainda mais robustas.
Ao concluir as palavras finais do discurso, vinte garçons entram em
uma marcha sincronizada, cada um segurando bandejas metálicas. Em um
movimento coreografado, cada garçom se posiciona ao lado de um membro
da realeza, e meu coração acelera, subindo até a garganta.
— Conheçam a face miserável dos nossos inimigos — ordena minha
mãe, com o tom de voz mais duro que já ouvi.
As bandejas metálicas repousam sobre as mesas, e de forma
simultânea, os garçons retiram as tampas dos recipientes.
Todos, sem exceções, gritamos horrorizados.
Diante de nós, há vinte cabeças expostas, cada uma exibindo
expressões de agonia.
A visão perturbadora invade meus sentidos.
A cabeça posicionada à minha frente pertence a uma mulher de
cabelos brancos e longos. Não sei se era uma senhora ou se a natureza do
degolamento a deixou com aquela aparência enrugada.
Fadye vomita em cima da mesa.
— Ah, sim. Quase deixei passar — prossegue minha mãe, com um
tom sombrio. — Agradeço por você ter vindo hoje, Fadye. Se não fosse por
sua presença, eu teria que considerar sua cabeça como prêmio.
Fadye coloca as mãos no rosto e chora exageradamente. Tento abraçá-
la, mas ela afasta a minha mão. Por mais que eu me sinta apavorada, estou
acostumada com as barbaridades dos meus pais.
— Fadye, eu…
— Eu te odeio, Saravana! Eu te odeio! — sussurra minha amiga,
soluçando.
Franzo o cenho, confusa.
— O que foi que eu fiz? — pergunto, escutando minha prima Mendy
vomitar também.
Fadye olha dentro dos meus olhos e consigo ver a mágoa profunda
que ela carrega.
— É a minha irmã — sussurra, arranhando as bochechas com as
unhas. — Vocês mataram a minha irmã!
Fico paralisada. Sobre o que ela está falando? Fadye foi criada no
palácio, distante de seus pais. Ela mal se recorda da aparência deles.
Com terror estampado em seu rosto, minha amiga se levanta
abruptamente e corre para fora do salão principal. De maneira
surpreendente, Talles abandona a mesa e a segue com determinação.
— Pobrezinha. Acredito que ela não estava se sentindo bem —
debocha minha mãe, com um olhar carregado de desprezo.
Meu olhar se volta para a cabeça que repousa na bandeja diante do
lugar de Fadye, e um grito involuntário escapa de meus lábios, enquanto
cubro a boca com as mãos.
Não. Não. Não. O rosto da cabeça decepada é idêntico ao da minha
auxiliadora.
CAPÍTULO 11

Fadye tinha uma irmã gêmea.


Faz mais de duas horas que estou andando pelo palácio, procurando a
minha melhor amiga. Fui ao quarto de Talles duas vezes e o encontrei
vazio. Onde será que eles estão escondidos?
Pergunto para uma camareira real se ela viu o meu primo.
— Eu acabei de vê-lo entrar no quarto dele — responde, equilibrando
uma montanha de lençóis branco.
Agradeço e sigo na direção oposta ao meu quarto.
Três minutos depois, eu invado o aposento com tudo. O quarto de
Talles é bastante elegante e espaçoso, refletindo o status e o gosto refinado
que ele tem. As paredes são revestidas com um rico painel de madeira
arroxada com detalhes dourados. A paleta de cores é uma fusão de tons
suaves, com tapeçarias luxuosas que combinam com a personalidade dele.
No centro, a cama se destaca com lençóis grossos e perfumados, além
do dossel esculpido e cortinas de seda que caem graciosamente. Ao lado da
cama, uma escrivaninha arrumada com instrumentos de escrita elegantes e
papéis finos sugere um espaço onde ele pode refletir, estudar e lidar com os
assuntos do reino, já que ele também ajuda na parte da manutenção do
palácio. Uma cadeira estofada, gravada com o emblema real, proporciona o
conforto necessário para horas e horas de reflexão.
O chão é revestido por um tapete branco, cujo padrão adiciona uma
pitada de extravagância ao ambiente.
— Você chegou — fala ele, saindo do banheiro com o cabelo
molhado. Meu primo veste uma calça moletom e camiseta regata branca.
— Onde ela está? — pergunto, procurando minha amiga aos
arredores. — Me diga… onde ela está?
Ele me olha de soslaio enquanto pentea o cabelo.
— Você diz ser tão amiga dela que não soube nem por onde começar
a procurar — dispara, com o tom de voz calmo. — Ela está na ala
hospitalar.
— Obrigada — digo, seguindo para a porta.
— Sem chances agora. Ela está medicada, dormindo desde que
chegou lá. Fadye desmaiou quando alcançou o corredor do palácio. Por
sorte, eu fui o único que se importou com ela de verdade, e fui atrás dela.
Olho diretamente nos olhos do meu primo.
— O que você está querendo dizer com isso?
— Que você sabia que a cabeça da irmã dela estaria na mesa —
dispara.
Irritada, pego um bloco de anotações e arremesso na direção dele.
— Isso é uma acusação?
Ele dá risada e se senta na cama.
— Interprete como quiser. Primeiramente, você pressiona Fadye a
participar do café da manhã, insistindo como se fosse uma tradição
inquestionável da família. Em seguida, permite que ela se depare com a
horrível visão da cabeça degolada de sua própria irmã e não toma nenhuma
providência diante desse cenário. Será que sua amizade com Fadye era
realmente de verdade, Saravana?
— Como você se atreve a questionar minha amizade com Fadye?
— Eu questionaria qualquer pessoa que agisse como você agiu. Porra,
que tipo de amiga fica parada sem fazer nada?
Desorientada e consumida pelo ódio das acusações, dirijo-me
furiosamente em sua direção. A raiva cresce rapidamente dentro de mim, e,
sem hesitar, começo a atirar todos os objetos que alcanço contra ele.
— Você não sabe do que está falando! Seu escroto de merda! — grito,
com lágrimas nos olhos.
Atiro um livro de capa vermelha diretamente no rosto de Talles, que
protesta com o impacto.
— Por que essa reação tão impulsiva de repente, hein? Só falei a
verdade. Será que descobri que você é tão cruel quanto seus pais?
Um misto de emoções explode dentro de mim, e não consigo me
controlar.
— Eu exijo que pare de falar comigo desta maneira. Quem você
pensa que é?
— Sobrinho do rei Kalayo. Estou a sua disposição — zomba ele,
fazendo uma reverência exagerada.
Paro de jogar os objetos.
— E quanto a você? Por que se preocupa tanto com ela? —
questiono.
Talles pega o livro da capa vermelha do chão e o coloca em cima da
cama.
— Eu tenho um caso com a sua auxiliadora.
Prendo a respiração.
— Você está mentindo.
— Não. Eu não estou. A gente perdeu a virgindade juntos e desde
então, mantemos a nossa relação sexual ativa. O que foi? Por que está com
a boca aberta?
A revelação me faz pensar na maneira sexualizada que Fadye tem
adquirido ao falar comigo. Não pode ser. Minha amiga seria capaz de se
envolver com um membro da realeza só por causa do sexo? Ela está ciente
de que tal ato é proibido. Caso meu pai descubra, ele a entregaria à forca
imediatamente.
— É um ato proibido no palácio — digo, quase num sussurro.
— Você transou com o Léo — explana ele, abrindo um sorriso. —
Também é um ato extremamente proibido.
— Como você sabe disso? — pergunto, sentindo um pouco de medo.
— Quem você acha que me contou?
— Ele não faria isso.
Talles deita na cama e cruza os braços atrás da cabeça.
— Não faria mesmo. Você sabe. A gente não se suporta.
Sinto um aperto no coração por saber que Fadye me traiu dessa
maneira.
— Este é um segredo que precisa ser guardado — eu alerto.
— Estamos quites, bebê. Agora que você está ciente do meu
envolvimento com Fadye, será mais simples liberá-la nos fins de semana.
Olha, pode parecer mentira, mas eu realmente tenho um carinho por ela. Ela
é a única pessoa neste palácio que compreende verdadeiramente quem eu
sou.
Um silêncio opressivo preenche o quarto enquanto avalio minha
própria situação. Talles está tentando me chantagear. No entanto, ele se
esquece de que, ao fazê-lo, também coloca sua própria cabeça na corda. Ele
precisa manter o sigilo tanto quanto eu, pois qualquer revelação
comprometedora resultaria em sua própria condenação, tão severa quanto a
minha.
Além disso, é vital que ele apresente evidências sólidas para nos
incriminar diante do rei. Por mais que ele tente, a fuga abrupta dele durante
o caos matinal é uma testemunha silenciosa e contundente de seu
envolvimento com Fadye. Enquanto eu posso emergir ilesa, ele se encontra
em uma posição vulnerável, com a espada da justiça pairando sobre sua
cabeça.
— Eu vou visitá-la na ala hospitalar — digo, dando as costas para ele.
— Só tome cuidado, pois ela pode tentar arrancar seu olho — dispara
ele.
CAPÍTULO 12

Enquanto caminho até a ala hospitalar, penso nas barbaridades que


me aconteceram hoje. A indignação ferve dentro de mim como se um
vulcão estivesse prestes a entrar em erupção. Cada célula do meu corpo está
impregnada com a intensidade da injustiça que testemunhei, e meus olhos
ardem com a fúria contida que mal consigo conter.
Ainda não entendo muito bem o que está acontecendo, mas como
princesa, fui criada em um mundo onde a etiqueta e a diplomacia são tão
essenciais quanto a respiração. No entanto, diante da maldade da minha
mãe ao servir as cabeças dos rebeldes no café da manhã, ironizando a
presença de Fadye por causa da irmã dela, a etiqueta parece ser um véu
frágil, prestes a ser rasgado pelo meu desprezo por aqueles que ousam
desafiar a vida das pessoas que eu amo.
É inaceitável! A confiança depositada nos meus pais se revelou um
castelo de cartas, desmoronando diante dos meus olhos. Como podem agir
daquela forma? Sem compaixão. Sem misericórdia. Fadye faz parte da
minha vida e eles sabem disso. Por que?
Cada palavra proferida pelos lábios da rainha ressoa em minha mente
como um eco de deslealdade. Ela não apenas feriu a minha melhor amiga,
mas a mim também. O respeito que eu esperava dela parece evaporar como
a neblina ao nascer do sol. Eu não posso ser complacente diante dessa
atitude, dessa mácula desnecessária.
Não ficarei em silêncio. Não permitirei que o desrespeito manche a
honra da minha linhagem, ainda que ele venha da minha própria família.
Viro à esquerda e os guardas reais abrem as portas para mim.
— Obrigada — agradeço.
Ao entrar no local, sou recebida por uma atmosfera serena. As
paredes são pintadas de tons claros, com janelas amplas que deixam a luz
natural banhar o ambiente. O piso é extremamente limpo e revestido por um
material azulado. Os quartos são espaçosos, cada um equipado com uma
cama dobrável, lençóis brancos e travesseiros de qualidade. A mobília é
projetada para equilibrar a estética real com as necessidades médicas,
incluindo mesas auxiliares com espaço para medicamentos, cadeiras
confortáveis para visitantes e iluminação ajustável para criar ambientes
adaptados às diferentes fases da recuperação.
As janelas deste lado do palácio também oferecem vistas para os
jardins, proporcionando um ambiente relaxante para auxiliar na
convalescença. As instalações médicas são de última geração, com
equipamentos modernos discretamente incorporados ao lugar.
Por mais que eu tenha visitado a ala hospitalar uma única vez na vida,
quando Téssia pegou tuberculose, sei que há uma equipe médica altamente
qualificada que está à disposição para fornecer cuidados personalizados.
Passo por uma área de recepção bem organizada enquanto a
recepcionista faz uma reverência educada.
— Bom dia, princesa.
— Bom dia. Eu vim visitar a minha auxiliadora, Fadye Albutark.
A moça dá uma olhada numa prancheta de vidro.
— Ela está no quarto B, cama 4.
— Agradecida.
Sigo as instruções da recepcionista até encontrar o quarto indicado.
— Cássia? — pergunto, ao ver minha irmã acariciando a cabeça de
Fadye.
— Até que fim você chegou, Saravana. Pensei que estava com medo.
— Medo? Por que eu teria medo de vir até aqui?
Ela dá de ombros.
— Sei lá. Muitas pessoas sentem medo do ambiente hospitalar. Talvez
seja por causa das máscaras dos médicos ou algo assim — ela suspira. —
Mas estou feliz em saber que você está bem.
Me aproximo com cuidado e abaixo o tom de voz.
— O que você está fazendo aqui? Pensei que estaria lidando com os
problemas dos nossos pais. Pelo visto, o grupo rebelde tem deixado todos
desalinhados.
— Esses assuntos eu deixo para o Rubens resolver, sabe? Não gosto
de nada que envolva tirar a vida de outra pessoa… ah, desculpa.
Ela sabe que o comentário foi como um tapa na minha cara.
— Eu fui obrigada a fazer aquilo. Eu não queria tirar a vida de
ninguém.
— Eu sei, minha querida. Sente-se aqui — indica, empurrando um
banquinho de madeira na minha direção.
Olho para o rosto de Fadye que parece tranquila e despreocupada.
— Há quanto tempo ela está dormindo? — pergunto, segurando a
mão da minha amiga com delicadeza.
— Desde que chegou aqui. Os médicos disseram que ela teve um
transtorno de estresse excessivo que acabou mexendo no funcionamento do
sistema nervoso dela. Parece que o corpo de Fadye liberou cortisol em
excesso, prejudicando uma região relacionada à memória e ao aprendizado,
chamado de hipocampo. Eles terão que examiná-la durante alguns dias para
ver se encontra algum tipo de atrofia nessa região do cérebro — explica
Cássia, como se ela própria fosse a médica.
— É perigoso?
Ela faz que sim com a cabeça.
— Ela pode ter inflamado o cérebro ou desequilibrado os
neurotransmissores que poderão contribuir para distúrbios do humor, como
a ansiedade e a depressão.
— Pobre Fadye. Ela não merece estar passando por isso, Cássia. Por
que a mamãe agiu daquela maneira? Foi horrível demais. Ainda mais
colocando a cabeça da irmã dela na mesa. Você sabia que ela tinha uma
irmã gêmea? — questiono, controlando as minhas emoções.
Cássia prende o cabelo e pega um copo de água na cômoda ao lado.
— Primeiramente, eu nem tinha ideia de que ela tinha uma irmã
gêmea — comenta, dando um gole na água. — Em segundo lugar, a mamãe
está lidando muito mal com tudo: a doença do papai, os incidentes do
primeiro dia do Torneio do Sol Nascente e até mesmo com o grupo rebelde
que não estava contente com o reino. Ela disse a Téssia que não sabia que a
irmã de Fadye estava envolvida com os traidores, mas ficou realmente
furiosa quando a Madame Zahir meio que implorou para que sua amiga
participasse do café. Acho que, diante de tantas responsabilidades e ao
saber sobre Fenya, a irmã de Fadye, ela decidiu descontar de alguma forma.
Talvez para deixar claro o que acontece com aqueles que traem a coroa de
Mirassol.
Minha auxiliadora tosse, mas não acorda.
— Nunca perdoarei a mamãe pelo o que fez — disparo, arrumando o
cabelo branco da minha amiga.
— Não diga isso, Saravana — sussurra Cássia, olhando ao redor com
destreza. — Não vamos criar um caos dentro do palácio, por favor. Sem
contar que estamos correndo perigo dentro da nossa própria casa.
Gelo, totalmente arrepiada.
— Que história é essa, Cássia?
— A mamãe contou que o último rebelde degolado disse, antes de
morrer, que há ainda um integrante infiltrado no palácio e que esse
indivíduo pretende concluir o que o grupo havia planejado.
CAPÍTULO 13

Cansada e inundada por assuntos políticos, decido ir à biblioteca do


palácio.
Ao cruzar as portas de madeira maciça, adentro em um outro mundo
totalmente fora da minha realidade. As prateleiras de madeira escura se
estendem até o teto abobadado, repletas de volumes encadernados em couro
e obras antigas que exalam o aroma característico de papel envelhecido. A
luz suave dos lustres paira sobre os corredores intermináveis de estantes,
criando uma paisagem surreal.
As janelas, emolduradas por pesadas cortinas de veludo, permitem
que a luz do sol se derrame em feixes dourados, iluminando as páginas dos
livros e destacando as preciosidades literárias que adornam cada prateleira.
Tapetes persas repousam sobre um chão de madeira polida que reflete a luz
do dia. Mesas de leitura e cadeiras com estofados vermelhos são
estrategicamente posicionadas, longe uma das outras. Globos terrestres e
bustos de filósofos antigos enfeitam espaços de estudo, imbuindo o
ambiente pela busca do conhecimento.
Uma escada em espiral, esculpida com detalhes prateados, leva a
níveis superiores, onde galerias adicionais de livros se desdobram como um
labirinto literário. A escrivaninha de mogno maciço ocupa um lugar de
destaque, com penas de escrita e tinteiros importados.
Vou até o corredor de ciências e suas tecnologias e tiro um livro de
capa dura chamado A revolução do século, do ano de 2005. Escolho uma
das cadeiras de leitura e abro o livro.
Panorama Tecnológico de 2005: Inovações e Desenvolvimentos
Marcantes
O ano de 2005 marcou um período significativo na história recente
da tecnologia, caracterizado por avanços notáveis em diversas áreas, desde
a computação até as comunicações. Este artigo busca proporcionar uma
visão abrangente das tecnologias proeminentes deste ano, destacando
contribuições fundamentais e inovações que moldaram o cenário
tecnológico.
1. Computação e Eletrônicos:
No setor de computação, a transição para processadores de múltiplos
núcleos foi um marco. Empresas líderes, como Intel e AMD, lançaram
produtos que apresentavam uma abordagem inovadora para aumentar a
capacidade de processamento, permitindo maior eficiência e desempenho
em multitarefas.
A disseminação de dispositivos de armazenamento portáteis, como
pen drives e discos rígidos externos, revolucionou a maneira como dados
eram transportados e compartilhados. Além disso, os avanços em telas de
LCD e plasma proporcionaram uma experiência visual mais imersiva,
influenciando diretamente o design de monitores e televisores.
2. Comunicações e Internet:
A proliferação da tecnologia Wi-Fi foi um dos destaques de 2005,
permitindo a conectividade sem fio em residências e locais públicos. Isso
impulsionou a disseminação de dispositivos móveis, como laptops e
smartphones, que se tornaram cada vez mais interconectados e dependentes
da internet.
A popularização do protocolo VoIP (Voz sobre Protocolo de Internet)
trouxe mudanças significativas para as comunicações. Empresas como
Skype e Vonage ofereceram alternativas acessíveis para chamadas
telefônicas, impactando as indústrias de telecomunicações tradicionais.
3. Entretenimento e Mídia:
A transição para a alta definição (HD) na indústria do
entretenimento foi um dos principais acontecimentos de 2005. Televisores,
câmeras e reprodutores de mídia adotaram a resolução HD, oferecendo
uma qualidade de imagem superior.
A ascensão do YouTube em 2005 revolucionou a forma como
conteúdo audiovisual era compartilhado e consumido na internet. Essa
plataforma se tornou um precursor para a era da mídia social e contribuiu
para a democratização da produção e distribuição de vídeos online.
O ano de 2005 foi marcado por uma série de avanços tecnológicos
que pavimentaram o caminho para a era digital em que vivemos hoje.
Essas inovações não apenas transformaram a maneira como interagimos
com a tecnologia, mas também influenciaram a sociedade, a economia e a
cultura de maneira significativa. O legado dessas realizações continua a
moldar o cenário tecnológico contemporâneo, destacando a importância
crucial desse período na história da inovação.
Termino o primeiro tópico, encabulada.
— Boa tarde, princesa — uma voz me cumprimenta e quase solto um
grito.
Olho para o outro lado da sala e vejo um homem sentado de forma
elegante, com um livro verde nas mãos. Ele é alto, forte e tem o rosto
bastante simétrico, como se tivesse feito algum procedimento cirúrgico. A
camisa polo amarela não combina com a calça jeans desbotada, embora isso
não seja desculpa para ignorar a beleza que ele transmite.
— É… boa tarde? — falo, tentando recuperar a postura. — Perdão,
mas eu conheço você?
Ele fecha o livro e abre um sorriso de matar qualquer pessoa. Os
cachos louros do cabelo escorrem pelas têmporas, deixando-o meio
angelical.
— Sou Salomé Valktran, filho do Duque Salajarzo.
Caramba! Esse pedaço de mal caminho é o filho do Duque que ajuda
o papai?
— Nossa, como você mudou — digo, tentando parecer um pouco
indiferente.
— Pois é. O que morar no estrangeiro não faz com a gente, né?
— Onde você mora? — pergunto, curiosa.
— Em um lugar bem distante daqui — responde, não respondendo
nada do que perguntei. — Aliás, o que você está lendo?
Mostro o livro para ele.
— Coisas sobre a tecnologia passada — pauso, franzindo a testa. —
Por acaso você sabe o que é youtube?
Salomé dá risada, afirmando com a cabeça.
— É isso que acontece quando se vive preso em um reino como este.
Youtube é uma plataforma de vídeos, onde as pessoas compartilham
momentos ou coisas engraçadas. Se eu tivesse com o meu celular, mostraria
como funciona.
— Você sabe que esse tipo de aparelho é proibido em Mirassol.
— Exatamente. Por isso tive que deixá-lo com meus amigos de
faculdade. Eles acham super estranho o modo como vocês vivem aqui.
— Você esquece que saiu do mesmo lugar que a gente — lembro-o,
cruzando as pernas.
— Você disse corretamente. Eu saí de Mirassol há mais de 10 anos e
essa decisão tem me feito muito bem, pois tive acesso a milhares de
informações sobre o mundo, além de vivenciá-las de verdade. Sabe, o rei
Kalayo não aceita que o povo tenha acesso a nada que está do lado de fora,
mas ele não entende o quanto isso poderia beneficiar o país.
— Reino. Aqui nós chamamos este lugar de reino — rebato.
— Tanto faz, princesa. É a mesma coisa. Agora me tire uma duvida:
por que seu pai permite que as pessoas tenham televisores em casa?
— Para receber as notícias do dia. É por ela que o povo fica sabendo
dos eventos reais, dia da colheita e essas coisas. Também temos a previsão
do tempo que quase sempre acerta a climatização de cada região.
Salomé fecha os olhos e estala os lábios enquanto pensa.
— E quanto aos drones? — questiona.
Confesso que sou pega de surpresa.
— Essa é uma pergunta da qual ainda não possuo a resposta.
— Os drones captam as imagens do Torneio do Sol Nascente e
mostram para todo o reino em tempo real. Para isso, a transmissão precisa
do acesso a internet que é via satélite, o mesmo que o resto do mundo
utiliza para os mesmos fins. É estranho engolir que o rei permita que uma
tecnologia mega avançada seja implantada em Mirassol, mas o uso dos
celulares não. Sabe o que eu acho, princesa? Acredito que o rei quer
continuar mantendo o povo sob a autoridade dele, bloqueando o contato das
pessoas e evitando que pensamentos divergentes se espalhem e incentive o
povo a se rebelar contra as leis estabelecidas por esse sistema. Até porque,
conhecimento gera conhecimento que gera entendimento que gera
despertamento e amplia a visão panorâmica da realidade.
Permaneço calada, absorvendo cada palavra que ele compartilha
comigo. Por mais estranho que pareça, eu concordo com o filho do Duque.
Eu também acredito que meu pai tem medo de perder o controle e ser tirado
do trono à força. É por isso que a tecnologia soa como uma ameaça à vida
das pessoas. Ter acesso à informação constrói o ser humano, mas também
destrói tudo aquilo que um dia ele acreditou ser o certo.
Por outro lado, não posso dizer isso a ele. Jamais.
— Por que você quer vencer o Torneio, Salomé? — pergunto,
vasculhando cada pensamento que ele expõe.
— Posso ser sincero contigo, princesa? — pergunta, cruzando as
mãos.
— Sinceridade é algo que eu priorizo bastante.
— Não almejo a vitória no Torneio apenas para garantir um
casamento. Meu verdadeiro desejo é obter pleno acesso à administração do
reino, de modo que, se o destino assim o permitir, eu possa um dia libertar
esse povo de leis obsoletas e desnecessárias. Quero deixar claro, do fundo
do meu coração, que não pretendo usar essa união como moeda de troca.
Acredito que o seu povo, que também é o meu, merece a oportunidade de
explorar o mundo além desses muros.
— Então, você deseja desestabilizar a ordem que meu pai sustenta há
anos?
Ele nega com a cabeça.
— De maneira alguma. Eu anseio por inovação. Quero proporcionar
liberdade real, conhecimento para os sedentos de sabedoria e experiência
para aqueles que desejam vivenciar. As leis deste reino são antiquadas
demais, princesa. Você acha justo ser compelida a se casar com o campeão
do Torneio sem ao menos ter o direito de decidir se o indivíduo é ou não
compatível com seus desejos? Realmente acredita que alimentar essa ideia
para o povo os torna mais obedientes às normas impostas pela corte?
— Se meu pai descobrir sobre seus planos, ele o expulsará do reino
imediatamente — alerto, lançando-lhe um olhar de cima a baixo.
— Não mudaria absolutamente nada em minha vida, querida. Já
conheci o mundo lá fora e estou ciente das oportunidades que me aguardam.
Agora, e quanto a vocês? Continuarão presos a essa ideologia antiquada de
monarquia.
— E por que deveria ser você a pessoa a assumir o controle do meu
reino? — questiono, deixando claro que, mesmo sendo meu futuro marido,
eu seria a responsável por todas as decisões.
Salomé dá de ombros, exibindo um sorriso um tanto arrogante.
— Porque eu mereço.
CAPÍTULO 14

Esfrego meus cabelos com shampoo de lavanda.


A conversa que tive com Salomé não sai da minha cabeça desde que o
deixei na biblioteca. Ele tem um propósito, e não tem nada a ver com o
sentimento que ele sente por mim. Pelo menos, ele foi sincero.
Por outro lado, preciso garantir que ele não consiga alcançar a última
etapa do Torneio ou terei que enfrentar grandes problemas.
Assim que termino de tomar banho, saio da banheira e visto meu
roupão. Preciso me arrumar para o segundo dia do Torneio e, sem a ajuda
de Fadye, as coisas parecem mais difíceis.
Abro a porta e paro imediatamente.
Na sacada do meu quarto, vislumbro a sombra de um homem,
trajando vestes escuras, enquanto ele dispõe algo cuidadosamente no chão.
— Quem é você? — pergunto, com a voz trêmula.
O vulto se assusta, olha na minha direção e pula para fora.
Saio do banheiro e sinto um cheiro estranho permeando o ar, até que,
subitamente, o silêncio do quarto é rompido por um estrondo ensurdecedor.
Imediatamente, sou lançada para cima e caio de barriga no chão,
totalmente desnorteada. Um zunido toma conta dos meus ouvidos enquanto
sinto vontade de vomitar.
Rapidamente, percebo que as paredes de ambos os lados tremem sob
a força do impacto. O som estridente me causa tontura e não consigo mais
distinguir o que é céu do que é terra. A luz dourada que ilumina o meu
quarto é instantaneamente substituída por uma erupção de fagulhas
brilhantes, criando uma tempestade de destroços e detritos que pairam
momentaneamente no ar.
A explosão atinge cada canto do meu quarto com uma mistura de
cores intensas e fumaça, obscurecendo os móveis finamente entalhados e as
cortinas delicadas que, por um breve instante, parecem flutuar no caos.
Fragmentos de cristais e vidro se espalham como estrelas cadentes,
desenhando um padrão efêmero no ar antes de atingir o chão com um retinir
inquietante. Minha cama fica completamente despedaçada, coberta por
escombros e destroços. As paredes, antes enfeitadas com tapeçarias, estão
marcadas por rachaduras e manchas de fuligem.
Uma dor de cabeça pulsa fortemente na minha nuca enquanto tento
respirar no meio da escuridão. Tusso várias vezes, tateando o chão em
busca da direção para fora do quarto.
— Alguém me ajuda — sussurro, confiante que alguém pode me
escutar.
De repente, olho para a direção de uma forte luz alaranjada que
começa a se manifestar do outro lado do aposento e solto um grito
desesperado. Uma parede de fogo vem queimando tudo o que encontra pela
frente, destruindo ainda mais os objetos espalhados pelo chão.
Do meu lado esquerdo, um turbilhão de chamas ardentes dançam
vorazmente pelos ornamentos e móveis antes delicados, consumindo as
cortinas por labaredas que lambem o ar em um frenesi insaciável. Escuto o
crepitar do fogo ressoando pelo chão, misturando-se com o estalar das vigas
em combustão.
O calor que sinto sobre o meu corpo é tão abrasador que tenho a
sensação de estar sendo assada viva.
O ar impregnado com o odor acre de madeira queimada e tecidos em
chamas sinaliza a tragédia que se desenrola, porque consigo ouvir gritos
desesperados do lado de fora.
Outro barulho ensurdecedor chama a minha atenção, e percebo que
alguém está tentando arrombar as portas duplas que dão acesso aos meus
aposentos.
Eu vou morrer, penso, e se não for carbonizada, será asfixiada.
Começo a perder os sentidos da minha consciência e luto para
permanecer de olhos abertos, porém a fraqueza que domina meu corpo é
forte demais para eu resistir.
Então, segundos antes de eu finalmente desmaiar, avisto, com os
olhos embaçados, o brilho de uma armadura dourada se aproximando de
mim. Ela levanta o meu corpo com brutalidade e gira 360 graus com
agilidade.
Neste momento, tudo roda desconfigurado e apago imediatamente.
CAPÍTULO 15

Deixo para trás os muros opulentos do reino, desbravando um


caminho que me conduz até a colina além da cidade murada. O sol poente
pinta o céu com tonalidades de laranja e rosa, lançando um brilho dourado
sobre as campinas que se estendem diante de mim. As sombras longas das
árvores dançam suavemente ao vento, enquanto eu me aproximo do topo da
colina.
Ao alcançar a crista, sinto a brisa fresca acariciar meu rosto. Sob
meus pés, a grama ondula como um mar verdejante, e eu me deparo com
um oceano de flores selvagens espalhadas pela natureza.
Olho para baixo e vejo o pequeno reino de Mirassol, os telhados de
pedra e as torres altas agora parecendo pequenas miniaturas. Aqui, no alto,
as preocupações do reino parecem distantes e insignificantes. Me sinto livre
das amarras dos meus pais. Me sinto livre para finalmente ser quem eu sou.
Os pássaros desenham padrões no céu enquanto suas asas cortam o ar
em um balé aéreo. O som distante de música ecoa de algum lugar nas
redondezas, talvez uma vila além da próxima colina.
Meus olhos se enchem de lágrimas e me sinto a mulher mais feliz do
mundo, desprovida das restrições da corte e do peso das responsabilidades.
As preocupações do reino são como poeira ao vento, dissipando-se na
vastidão do horizonte que se estende à minha frente. A paz que encontro
neste lugar é um bálsamo para a alma, deixando bem claro que a vida além
das fronteiras é pura e verdadeira.
CAPÍTULO 16

Abro os olhos e sinto um gosto amargo na boca.


Pisco várias vezes para que meus olhos se acostumem com a
intensidade da luz. O mundo retorna gradualmente à minha consciência
como uma pintura embaçada ganhando nitidez. Sinto um torpor, uma
espécie de névoa que ainda paira sobre meu pensamento, enquanto tento
reconstruir a realidade ao meu redor. Me sinto confusa, como se estivesse
emergindo de um sonho profundo.
Noto que o ambiente ao meu redor está difuso e estranho, como se eu
tivesse entrado em um universo paralelo por um breve instante. O que
aconteceu comigo? Minha mente está tateando nas sombras do
desconhecido, procurando ancoragem em algo tangível.
A primeira coisa que noto é o eco distante de vozes, sussurros que
ainda não formam palavras concretas. Os sons são como murmúrios através
de uma parede fina enquanto a minha audição se ajusta ao ambiente.
Sinto um peso em minha cabeça e uma leveza que se estende por todo
o meu corpo. Cautelosamente, movo os membros, testando a resposta do
meu corpo ao comando da mente.
De repente, como se algo arrancasse o véu dos meus olhos, o
ambiente ganha foco novamente. Vejo os rostos das minhas irmãs, Téssia e
Cássia, preocupados ao mesmo tempo que analisam a minha situação.
Estou na ala hospitalar. A luz do quarto parece intensa, causando um
piscar reflexivo para me ajustar à luminosidade.
Tenho um breve vislumbre do meu quarto pegando fogo antes de eu
desmaiar, só que de forma fragmentada..
— Princesa Saravana? Você pode me ouvir? — pergunta a voz meiga
de uma senhora. — Diga sim, se conseguir me escutar com clareza, tudo
bem?
— Sim — digo e minha voz soa fraca.
— Graças aos Céus, ela está bem — fala Téssia, aliviada.
— Está com sede, querida? — pergunta Cássia, empurrando um copo
de água na minha boca.
Bebo todo o líquido em três goles e me engasgo.
— O que aconteceu comigo? — pergunto, ainda desorientada.
— Você sofreu um ataque terrorista, Sara. E acabou desmaiando pelo
impacto — responde Téssia, olhando de soslaio para minha outra irmã.
A médica, uma senhora de cabelos grisalhos, mede a minha pressão e
passa um paninho úmido no meu rosto.
— Prontinho, senhorita. Em breve você terá alta — diz, fazendo uma
reverência e nos deixando sozinhas.
Téssia segura minha mão direita enquanto Cássia pega a esquerda.
— A mamãe e o papai estão muito preocupados com você, pequenina
— fala Cássia, suavemente. — Sabia que não consegui dormir desde o dia
do atentado?
— Por quanto tempo eu fiquei apagada?
— Quase três dias inteiros — responde Téssia, acariciando meu
braço.
— Como assim? E o Torneio? Onde está Fadye?
— Calma, calma, calma. Vamos com calma, combinado? Você
acabou de sofrer um atentado de morte e sobreviveu. Então, acho que é
mais prudente você dar uma diminuída nos esforços por um tempo. Não se
preocupe, querida. Vamos explicar tudo detalhadamente para você. —
repreende Téssia.
Cássia puxa um banquinho de madeira e se senta ao meu lado.
— Vamos começar pelo pedido de desculpas do papai por não poder
estar presente agora. E pela mamãe que está atolada de compromissos com
a corte. Sobre o atentado, o responsável por instalar as pólvoras no seu
quarto foi encontrado morto, do lado de fora. Deduzimos que ele se
suicidou de propósito, perdendo sua vida na queda contra o solo.
Os detalhes que ela conta batem com o vulto que eu vi pulando da
sacada.
— Quem era o rebelde?
— Henrico Nordelo, um dos competidores do Torneio do Sol
Nascente. Acreditamos que ele era o traidor infiltrado no palácio — explica
Cássia, trançando o cabelo. — Lembra da nossa última conversa?
Faço que sim.
— Inclusive, foi aqui mesmo que conversamos — acrescento.
— Ele instalou pequenas bombas relogios que tinham a finalidade de
espalhar a polvora pelo ambiente do seu quarto, acionando um maquinario
esquisito que soltava fogo pela entrada. O fogo começou na sacada.
Pequenos reflexos explodem por trás dos meus olhos.
— Eu me lembro de tê-lo visto agachado, colocando alguma coisa lá,
e depois se jogado pela grade de proteção — narro a minha versão.
— Pelo menos agora estamos seguras — comenta Téssia, parecendo
aliviada.
— E como vocês conseguiram me tirar do quarto? Eu me lembro que
a porta estava trancada.
— Agradeça ao competidor que se chama Ad — revela Cássia,
abrindo um sorriso caloroso na minha direção. — Que homem valente!
— Se não fosse pela ideia dele de usar a armadura do filho do Duque,
que é a prova de fogo, e entrar para salvá-la, você estaria morta — continua
Téssia.
— Espera um momento! Foi o filho do Duque que me salvou? —
pergunto.
— Não, boba. O filho do Duque ficou morrendo de medo de morrer
asfixiado também. Disse que o que estava acontecendo não fazia parte do
Torneio e por isso ele não iria arriscar a vida por você — explica Cássia.
— Então aquele gostoso do Ad tomou a armadura do fracote,
arrombou a porta e se jogou no meio do fogo! Pontos para ele, não se
esqueça disso — fala Téssia.
Ad, o competidor que invadiu o meu quarto na primeira noite do
Torneio, me salvou. Ele me salvou sem pensar duas vezes.
Um sentimento de gratidão toma conta do meu coração. Se
esperassem por Salomé, eu não estaria aqui para contemplar o resto da
história.
— Preciso agradecê-lo de alguma forma — digo, um pouco
emocionada.
— Que tal um jantar à luz de velas? — sugere Téssia, olhando
maliciosamente para Cássia.
— Um jantar? Não acho que seria a escolha certa a fazer. O que ele
vai pensar de mim? Que estou apaixonada pelo ato de valentia que ele teve
ao me salvar do fogo que poderia arrancar a minha vida em poucos
minutos? Sem chances.
— Por que você usou uma frase tão comprida para se expressar? Se
não existe nenhum sentimento, ainda, então não vejo motivos para não
preparar um jantar — cutuca minha irmã mais velha.
— Eu vou pensar sobre isso — aviso, tirando o lençol branco de cima
de mim. — E quanto ao Torneio?
— Papai disse que só voltará quando você se sentir melhor. Arnaldo
acha que você deveria intervir e cancelar o evento, escolhendo Ad como seu
marido. Porém Rubens acredita que os outros competidores deveriam ser
levados ao extremo para demonstrar lealdade como fizera Ad. Ele está
tentando mudar os desafios do Torneio, para torná-lo mais convincente de
que o homem que está participando realmente daria a vida por você. Eu não
acho que isso seja uma boa ideia, mas parece que mamãe adorou —
comenta Cássia, roendo as unhas.
— E o que o seu marido quer agora? Lançar labaredas de fogo nos
competidores enquanto me amarram no alto de uma pilastra repleta de
combustível?
— Bem pensado, irmãzinha — zomba ela. — Acho que posso
compartilhar essa proposta com ele.
Percebo um vulto todo vestido de branco parado na porta de entrada.
— Com licença, será que eu posso conversar um pouco com a
princesa? — escuto a voz de Fadye e meus olhos se enchem de lágrimas.
— Fadye, querida. Claro. Saravana deve estar enjoada por ouvir a
nossa voz — brinca Cássia, dando um beijo na minha testa.
Téssia beija minha bochecha e coloca o copo de água na cômoda ao
lado.
— Até mais tarde, pequenina.
— Tchau, Téssia.
Minhas irmãs saem do quarto enquanto espero Fadye parada na porta.
— Não vai entrar? — pergunto, reparando o quanto minha amiga
emagreceu nos últimos dias.
— Eu estava aguardando a ordem da princesa — responde,
aproximando-se com a cabeça baixa.
— Fadye! Desde quando conversamos dessa forma? Eu ainda sou sua
amiga, lembra?
Minha auxiliadora para a alguns metros de mim e começa a cantar:
Oh, melhores amigas, como estrelas brilhantes,
Caminhando juntas, através de dias radiantes.
Risadas e segredos, como uma melodia,
Nossa amizade é eterna, uma doce harmonia.
No parque da infância, sob o sol a brilhar,
Caminhamos juntas, sem perceber o tempo passar.
Compartilhamos sonhos, como sementes a crescer,
Melhores amigas, lado a lado, para sempre a florescer.
Oh, nas alegrias e nas dores,
Somos como as estações, mudando cores.
Mas nossa amizade, forte e fiel,
É a âncora que nos mantém de pé no vendaval.
Uma torrente de lágrimas caem dos meus olhos e não consigo parar
de chorar.
Oh, melhores amigas, como estrelas brilhantes,
Caminhando juntas, através de dias radiantes.
Risadas e segredos, como uma melodia,
Nossa amizade é eterna, uma doce harmonia.
No livro da vida, capítulos a escrever,
Você e eu, juntas, a história a tecer.
Compartilhamos lágrimas, sorrisos e canções,
Nossa amizade é como uma poesia de corações.
Fadye também deixa as lágrimas caírem como se elas estivessem
aliviando toda a tensão daquele momento.
Oh, nos altos e baixos da jornada,
A amizade é a luz que nunca se apaga.
Cada passo, cada abraço apertado,
Melhores amigas, lado a lado, no caminho marcado.
Limpo a garganta e canto junto com ela:
Oh, melhores amigas, como estrelas brilhantes,
Caminhando juntas, através de dias radiantes.
Risadas e segredos, como uma melodia,
Nossa amizade é eterna, uma doce harmonia.
E quando a tempestade da vida nos abraçar,
A força da amizade nos fará superar.
Unidas, como o sol e a lua a dançar,
Melhores amigas, para sempre a brilhar.
Oh, melhores amigas, como estrelas brilhantes,
Caminhando juntas, através de dias radiantes.
Risadas e segredos, como uma melodia,
Nossa amizade é eterna, uma doce harmonia.
Nossa jornada continua, lado a lado a voar,
Melhores amigas, para sempre a caminhar.
Como um tesouro, em nosso coração,
A amizade verdadeira, uma doce canção.
Ela avança em minha direção com pressa e, de maneira um tanto
desajeitada, me envolve num abraço apertado.
Não hesito em retribuir sua demonstração de afeto com toda a
sinceridade do meu ser. Fadye não é apenas minha melhor amiga; ela é
como uma irmã mais nova para mim, considerando a diferença de dois anos
entre nós.
Ao longo de todos os momentos da minha vida, ela sempre esteve
presente. Fadye é a única pessoa que compreende verdadeiramente meus
sentimentos em determinadas situações. A ideia de imaginar minha
existência sem a presença constante dessa garota é algo que simplesmente
não consigo conceber.
— Você foi o melhor presente que já ganhei na vida, Fadye —
confesso, sem soltá-la. — Em momento algum, considere que eu causaria
algum dano a você ou à sua família anterior. Por sua causa, eu enfrentaria
até mesmo meus próprios pais. Por sua causa, eu abriria mão de metade dos
meus bens diante do mundo. Por sua causa, renunciaria à reivindicação ao
trono da família real.
— Me desculpa. Me desculpa. Eu não deveria ter tratado você
daquela maneira, Sara. Me desculpa. Eu estava aterrorizada, sem saber
como reagir. Eu precisava descontar em alguém e acabei misturando as
coisas. Me desculpa — pede ela, choramingando.
— Peço desculpas em nome da minha família, Fadye. O que ocorreu
naquele café da manhã foi inaceitável. Jamais poderei esquecer a crueldade
que minha mãe teve contigo. Prometo abordar essa questão com ela quando
a situação no palácio se acalmar.
— Não, Sara — pede, preocupada. Ela se solta do abraço. — Por
favor, esqueça o que aconteceu. Não quero que você seja punida por
afrontar a rainha Elizabelly.
É notável que minha amiga está começando a ficar em choque.
Embora ela ache que eu deva deixar para lá, minto:
— Tudo bem, querida. Não vou mais tocar neste assunto com
ninguém.
CAPÍTULO 17

Dois dias se passaram desde que saí da ala hospitalar.


Sinto algumas dores pelo corpo, mas nada com que me incomode
tanto. Tomo duas pílulas de Dorflex assim que acordo e mais duas antes de
dormir, para relaxar os músculos durante o sono.
Fadye desamassa meu vestido enquanto passo o delineador ao redor
dos olhos, borrando um pouco e corrigindo os erros. Não gosto de me
maquiar sozinha, mas quero poupar minha amiga desta tarefa.
Através do espelho, olho para o meu novo quarto. As paredes são
pintadas com uma tonalidade delicada de branco pérola, criando um fundo
suave que ressalta a beleza dos detalhes da decoração. No alto da minha
cama, um dossel se destaca com um leve tecido branco transparente. Ao
redor, vejo móveis de estilo clássico meticulosamente trabalhados e
cobertos por marcas onduladas nas laterais. Uma elegante penteadeira, com
um espelho oval e frascos de perfume, também foi instalada com perfeição.
A mesa de trabalho no canto direito do quarto está coberta por
pergaminhos e livros com capas amareladas, refletindo o meu gosto pela
leitura. A iluminação é suave e difusa, proporcionando uma atmosfera
aconchegante durante a noite. Candeeiros de cristal pendem do teto,
lançando um brilho cintilante sobre os móveis ornamentados.
Percebo que Fayde colocou velas perfumadas em cima das cômodas,
adicionando uma nota sutil de fragrância na atmosfera.
O chão é coberto por um tapete felpudo vermelho, onde padrões
intrincados se entrelaçam em uma mescla delicada. Nos cantos, cadeiras de
leitura com acolchoados também vermelhos se juntam ao restante da beleza
do meu aposento.
— Você tem certeza que usar um vestido branco é a melhor escolha
para o jantar de hoje? — pergunto para Fadye, ainda não concordando com
a escolha dela.
— Sem dúvidas, Sara. O branco simboliza a paz e a pureza, além de
proporcionar um clima leve e agradável ao ambiente. Tenho certeza que Ad
vai adorar.
— Eu não estou preocupada com isso. Não me importa se ele vai
gostar ou não da minha roupa, entende? Só não quero parecer estar
pedindo-o em casamento indiretamente.
— Você gosta dele? — questiona.
— Como é que eu posso gostar de alguém que não convivo? Eu não
sei absolutamente nada sobre ele.
— Ele luta bem, é bonito e parece ser engraçado também. Agora você
precisa descobrir se ele é tão inteligente quanto seu pai — aconselha ela,
abrindo um sorriso ansioso no rosto.
— Eu não quero descobrir nada — rebato, um pouco irritada. —
Lembre-se que é um jantar de agradecimento.
— Agradecimento por ele ter salvado sua vida, Sara. Isso é muita
coisa para alguém que não tem vínculo com o sangue real. Considere o ato
como um gesto de amor ou algo parecido com isso.
— Você é tão romântica — reclamo.
— E você é insensível demais, poxa! Permita-se amar um
poucochinho.
— Eu amo você. Amo minha família. Amo o povo de Mirassol. Acho
que já é o suficiente. Não me iluda com esse papinho de amor à primeira
vista, Fadye. Eu não acredito em nada disso.
Fadye permanece em silêncio. Ela sacode o vestido no ar e o vira de
cabeça para baixo.
— Sabe o significado do meu nome? — pergunta.
— Fadye? Aquela que acredita em fadas? — brinco, tirando um
pouco de pó da minha bochecha.
— Não. Aquela que nasceu para crê.
A porta do meu quarto se abre e Elouise, a responsável pelas
cerimônias do palácio, entra com graciosidade. Seus cabelos cacheados
parecem uma fonte sendo expelida para os lados, caindo sobre os ombros.
A pele negra entra em contraste com a luz, dando a sensação que o brilho
emana dela.
— Elouise, querida. Que vestido maravilhoso! — elogio, realmente
espantada. Ela usa um vestido amarelo ouro tão lindo que sinto um pouco
de inveja.
— Princesa, Fadye — cumprimenta, fazendo a reverência
tradicional.
— Se eu fosse a princesa, mandaria você para a forca, Elouise —
zomba Fadye, esticando as barras do meu vestido em cima da cama. —
Que modos são esses de entrar no aposentado real sem bater na porta?
Elouise joga um pedaço de chocolate para a minha amiga e outro para
mim.
— O espaço improvisado para o jantar no jardim está pronto,
princesa. Precisa mais de alguma coisa? — pergunta Elouise, ignorando a
zombaria da minha auxiliadora.
— Posso enviá-la para a forca?
— Seria uma honra morrer através das suas ordens, senhorita.
Dou risada, vou até ela e a abraço bem gostoso.
— Elouise, que saudades eu estava sentindo de você. Como foi a
viagem?
— Eu também, princesa. A viagem foi bastante cansativa. Não fazia
ideia que o norte do reino era tão longe assim. Por outro lado, conheci
muita gente importante e aprendi mais sobre eventos e cerimoniais.
Acredita que, quando disse que trabalhava no palácio, muitas mulheres
sentiram inveja de mim? Algumas até cogitaram voltar comigo para
tentarem ser contratadas aqui.
— Bacana, Lo. Fico muito feliz que tudo tenha corrido bem.
— E quanto a você, princesa? Eu quase morri do coração quando me
contaram sobre o atentado dentro do palácio. Claro que os noticiários
demoraram quase dois dias para chegarem na zona norte. Sem contar que
tive que compartilhar meu televisor com todas as mulheres do meu quarto.
— Eu fiquei sabendo que os roteiristas filmaram os destroços do
aposento depois que apagaram o fogo — fala Fadye.
— Filmaram o meu antigo quarto? — pergunto, pega de surpresa.
— Sim. Ele ficou totalmente destruído. Ninguém acreditou quando
disseram que você estava viva — responde Elouise.
— Por que não usaram os drones? — questiono.
— Os drones? Como assim, princesa?
— Sim. Eles têm um sistema que filma, converte e faz a transmissão
em tempo real. É assim que o Torneio deste ano está sendo televisionado
para todo o reino — explica Fayde.
— É a primeira vez que escuto sobre existir uma tecnologia que
mostra o que está acontecendo ao vivo para as pessoas de casa — admite
Lo.
— É tecnologia dos outros — digo.
— Dos outros? Por que o rei permitiu uma coisa dessas no reino? —
pergunta, encabulada.
— Boa pergunta, Lo. Eu ainda não tive oportunidade de perguntar
para o meu pai sobre essa decisão. Na verdade, eu nem sei como ele
conseguiu implementar os drones em Mirassol, já que para isso ele teria que
acessar o satélite mundial.
— Talvez essa nova tática seja boa. Vejamos. Tudo o que é filmado
no reino demora quase dois dias para ser transmitido nos televisores. Com
os drones, o povo é atualizado instantaneamente — opina ela, tossindo.
— Isso é mais do que deixar o povo atualizado em tempo real,
querida. Acho que está acontecendo alguma coisa mais profunda, algo que
não estamos conseguindo enxergar por falta de informação.
Fadye estende o meu vestido branco e pergunta:
— Pronta para se encontrar com o cara mais gostoso do Torneio?
Louise bate palmas enquanto eu reviro os olhos de forma debochada.

CAPÍTULO 18

Sob o céu estrelado, encontro uma pequena mesa de madeira


decorada com elegância, iluminada por lanternas penduradas em ramos de
árvores e velas votivas dispostas no centro. Guardanapos de linho esvoaçam
suavemente com a brisa noturna enquanto arranjos de flores silvestres
adornam o cenário com uma beleza encantadora.
— Elouise realmente arrasou no improviso — digo para mim mesma.
Sento na cadeira de frente para o jardim e espero.
Enquanto me encontro sob o vasto manto noturno, meu olhar se perde
na imensidão do céu estrelado. A lua, grande e luminosa, paira no
firmamento como uma sentinela celestial, lançando seu brilho prateado
sobre tudo o que toca. As estrelas, pontilham o escuro veludo celeste,
criando um verdadeiro espetáculo no céu.
Esse é o verdadeiro evento que todos deveriam observar, penso. Cada
estrela é como um farol distante, uma centelha de luz que se destaca na
vastidão do cosmos.
Olhando para elas, me sinto transportada para além dos limites do
meu pequeno mundo, imersa na magnitude do universo.
A quietude da noite é interrompida pelo farfalhar de passos suaves,
esmagando as folhas das árvores espalhadas pelo chão. Olho para o outro
lado e percebo que Ad manca da perna esquerda, conforme se aproxima da
mesa. Ele usa uma camisa polo branca, que define muito bem os seus
músculos, e calças moletom preta.
— O que aconteceu com a sua perna? — pergunto.
— Tive uma leve queimadura quando salvei você — responde, e faz
uma reverência.
— Leve queimadura? Deixa eu dar uma olhada — peço, ficando de
pé.
— Está tudo bem, princesa. Não precisa se preocupar.
— Não. Preciso sim. Você salvou a minha vida. Eu quero ver como
ficou sua perna.
Ele bufa exageradamente, mas cede ao meu pedido. Ad levanta a
barra da calça e uma mancha escura aparece, cobrindo toda a extensão da
canela.
— Está doendo muito? — pergunto, voltando a me sentar.
Ele se senta também.
— Só um pouco. Os médicos estão cuidando para que eu melhore o
mais rápido possível.
— Sinto muito.
— Pelo que?
— Por ter inspirado você a passar por isso.
Ele abre um sorriso caloroso e quase deixo minha boca aberta.
— Princesa, isso foi decisão minha. Ninguém ameaçou arrancar
minha cabeça pelo o que fiz. Fiz porque senti que era o certo a ser feito.
Estamos quites.
— Quites? Eu nunca fiz nada por você.
Ele afirma com a cabeça.
— Fez sim. Você deixou que eu me escondesse no seu quarto na
primeira noite do Torneio. Se os guardas me apanhassem aquela hora da
noite, talvez eu nem estaria aqui para contar a história. Como eles
acreditariam que eu havia me perdido no palácio e parado no corredor da
princesa que está sendo disputada no Torneio do Sol Nascente deste ano?
Franzo o cenho, incomodada pela última fala dele.
— Eu não estou sendo disputada por ninguém.
— Claro que está. Todos querem pedir sua mão em casamento. Os
outros competidores não param de falar de você nas refeições.
Fico um pouco surpresa, pois não esperava que isso acontecesse entre
eles.
— É mesmo? O que eles dizem? — pergunto, curiosa.
Ele faz beicinho e minha vontade de beijá-lo começa a mexer comigo.
— Quer mesmo saber?
— Claro. Eu não quero causar uma má impressão entre os
competidores.
Fredd, o mordomo real do papai aparece, trazendo dois pratos de
macarrão com queijo.
— Obrigada, Fredd — agradeço.
Ele dá uma piscadela para mim e se afasta.
— Faz tempo que não como macarrão — comenta Ad, pegando os
talheres.
Espero ele dar a primeira garfada antes de perguntar:
— E então?
Ele olha na minha direção e para de mastigar.
— Eles acham você bonita, delicada e muito inteligente. Entretanto,
eu discordo totalmente dessa ideia.
Sinto como se Ad tivesse socado meu estômago.
— Como assim? Você não me acha bonita, delicada e muito
inteligente?
Ad não hesita.
— Não. Não acho. Você é mimada, fresca e tem uma expressão facial
estranha. De longe não é tão notável, mas agora posso ter certeza do que
estou dizendo. A única coisa boa é o seu cheiro. Ele é bom. É meio
excitante. Mas nada diferente do que eu já senti das mulheres de onde
venho.
Agora ele surtou de vez. Será que ele não percebe que acabou de
humilhar uma das princesas herdeira do trono de Mirassol? Com quem ele
acha que está jantando? Eu poderia mandar o carrasco arrancar a cabeça
dele agora mesmo.
— Acho melhor terminarmos esse jantar — peço, extremamente
irritada.
— Por que? Você não gosta quando as pessoas são sinceras e
verdadeiras? — questiona, erguendo uma das sobrancelhas.
Como ele ainda tem coragem de continuar falando comigo?
— Eu agradeço muito por você ter salvado a minha vida, de verdade.
Se não fosse pela sua valentia, eu não estaria aqui agora. Pode deixar que
vou sussurrar o seu nome nos ouvidos do meu pai, e tenho certeza que será
recompensado por isso. Quem sabe um salário mínimo todos os meses
durante dois ou três anos? Está bom para você?
Ele arregala os olhos.
— Você faria isso por mim?
Depois de tudo o que ele disse, não deveria.
— Claro. Você merece isso e muito mais — ironizo e fico de pé.
— Princesa, não vá agora — pede, segurando minha mão com
delicadeza. — Desculpa se a tenho ofendido com as minhas palavras. Eu
sou um cara caipira e não consigo romantizar as coisas.
O gesto faz meu coração pulsar diferente.
— Tudo bem. Acho que vou experimentar essa taça de vinho —
decido, voltando a me sentar na cadeira.
— Me diga: o que a senhorita mais gosta de fazer? — pergunta,
colocando mais uma garfada de macarrão na boca.
— Além de servir o povo de Mirassol?
— Além de servir o povo de Mirassol.
Pego a taça de vinho e bebo dois goles pequenos.
— Eu gosto de ler bastante livros antigos e você?
— Gosto de sair com os meus amigos durante as madrugadas.
É estranho saber que os competidores têm uma vida totalmente
diferente fora do palácio.
— O que vocês costumam fazer?
— A gente acende uma fogueira e passa a noite cantando e tocando
músicas.
Algo desperta a minha curiosidade.
— O que você faz lá na cidade?
— Trabalho com meu pai. Ele é ferreiro e construtor civil.
— Então é por isso que você possui braços fortes? — disparo, me
arrependendo imediatamente.
— Você reparou nos meus bíceps? — pergunta Ad, segurando uma
risada.
— Não. Quero dizer, sim. É notável. Quem não reparou? —
questiono.
— Você gosta?
Sinto um calor diferente percorrer meu corpo e percebo que está na
hora de mudar de assunto.
— Isso não vem ao caso — respondo. Bebo mais um gole de vinho.
— Como você aprendeu a lutar daquela maneira?
— Minha mãe trabalhou no circo quando eu era pequeno, então tive a
oportunidade de aprender muitas acrobacias. Quando ela morreu, fui morar
com meu pai e ele me ensinou a usar as adagas, caso eu precisasse me
defender um dia.
— Se defender de quem?
Ele suspira.
— A vida fora do palácio é bem diferente do que você imagina,
princesa. Há saqueadores espalhados por todos os lados, esperando apenas
o deslize de uma pessoa para se aproveitarem da situação — explica,
empurrando o prato para frente.
Reparo que o rumo da conversa está se tornando pesado e mudo de
pauta.
— Quero conhecer os seus amigos
— O que? Por que? — Ad parece surpreso.
— Fiquei curiosa pelo o que me contou.
Ele parece um pouco pensativo.
— Certo. Se eu ganhar o Torneio, prometo apresentá-la para a Trope.
— Trope? É assim que você se refere a eles? — pergunto, achando
totalmente deselegante.
— Qual é o problema?
— Nenhum — digo, e fico de pé. — Só mais uma pergunta, Ad. Por
que você se inscreveu no Torneio?
Ele demora muito tempo para me responder.
— Talvez seja por esperança.
— Esperança?
Ele faz que sim e, pela primeira vez desde que se sentou à mesa, bebe
um pouco de vinho.
— Esperança de que tudo pode mudar a qualquer momento.
Inclusive, os sentimentos do meu coração.
Permaneço parada, olhando para ele enquanto absorvo cada palavra.
O que ele quer dizer com isso? Não consigo compreender a profundidade
da resposta dele, e isso me assusta. Algo no meu interior parece florescer,
como se estivesse sendo regado por um bálsamo consolador. É uma
sensação confusa entre o pavor e a ternura. É um toque meio doce que se
mistura com algo sem sabor.
Meu coração bate acelerado, mas minha mente distorce o foco da
realidade. Suspiro. Preciso ir embora agora.
Depois disso, saio e não olho para trás.
CAPÍTULO 19

É o segundo dia do Torneio do Sol Nascente, quero dizer, a segunda


etapa do evento. Téssia está sentada ao meu lado, de cabeça baixa. A
pesada maquiagem ao redor do seu olho esquerdo esconde uma mancha
levemente arroxada.
— O que aconteceu com o seu olho? — questiono, preocupada.
Ela coça a cabeça e disfarça.
— Eu caí das escadas ontem a noite. Você sabe, não enxergo muito
bem quando o palácio está escuro — mente, mordendo o lábio inferior.
Arnaldo está sendo retocado pela auxiliadora da minha irmã, Xanthe,
uma mulher de mais ou menos 38 anos, cabelos longos, enegrecido como a
noite. Ela usa um vestido cinza que apaga sua presença no meio da família
real.
— Como estou, Téssia? — pergunta o meu cunhado.
— Perfeito, querido — responde, cabisbaixa.
Cássia, que usa um vestido perolado, ajeita a gravata borboleta de
Rubens. Ele olha na minha direção e mostra a língua.
Penso em Ad. Desde a nossa última conversa, não consigo decifrar o
que ele quis dizer com a esperança de que algo pudesse mudar os
sentimentos do coração dele. Será que isso significa que ele se inscreveu no
Torneio por causa de outra coisa que não seja por mim? É provável. Tenho
uma teoria de que os homens que colocaram suas vidas em risco por um
vislumbre de poder já abriram mão de sua dignidade.
Ouço um zumbido irritante e percebo dois drones pairando nas
proximidades da tenda. Eles são tão pequenos que consigo assemelhá-los ao
tamanho de uma laranja.
Arnaldo se prepara para subir no palanque.
— Rubens mudou o desafio de hoje — comenta minha irmã Cássia,
sentando ao meu lado. — Acho que o papai gostou da ideia.
— Não vai me dizer que precisarei ficar pendurada entre labaredas de
fogo até ser salva por eles? — zombo.
— Claro que não, raposinha. Rubens jamais colocaria sua vida em
risco.
— Não acredito muito nisso.
— Savarana! Ele faz parte da nossa família agora. Você precisa
confiar nele.
— Eu não consigo confiar em ninguém que tenha crescido fora do
palácio.
Ela assente, mas não diz nada.
Olho para o quintal do palácio, observando as estruturas temporárias
da arena. As arquibancadas estão lotadas de pessoas sedentas pelo sangue e
isso me faz questionar se elas não precisam de ajuda, afinal, sentir prazer
pelo sofrimento humano não deve ser considerado normal.
No centro da arena, o campo de batalha está preparado, coberto pela
camada de areia fina cobre o solo, para absorver o impacto dos passos dos
combatentes. Ao longe, há cartazes de fanáticos erguidos entre a multidão,
mas não consigo enxergar o que está escrito.
— Segundo as pesquisas do reino, o filho do Duque é aclamado o
favorito do povo — fala Rubens, alisando os cabelos pretos com as mãos.
— O rapaz realmente é bom, ágil e inteligentíssimo. Mas não acho que seja
forte o suficiente no combate. Espero que ele não morra hoje.
— Do que você está falando, Rubens? — questiono, porém meu
cunhado ignora a minha pergunta.
Arnaldo pigarreia no microfone e a multidão fica em silêncio
imediatamente.
— Nobres senhores, senhoras e distinguidos convidados. É com
grande honra e regozijo que vos dou as boas-vindas a segunda etapa do
Torneio do Sol Nascente — inicia ele, arrancando aplausos da multidão. —
Hoje, reunimo-nos não apenas como súditos, mas como uma comunidade
unida pela paixão, pela competição justa e pela celebração de nossos
valores mais nobres. E é com grande satisfação que anuncio um novo
desafio aos nossos competidores, criado pelo meu cunhado e aprovado pelo
rei Kalayo. Teremos dois combates triplos e um combate duplo, já que
ainda restam oito competidores. A regra é simples… a cada combate, um
dos nossos valentes deve perder a vida, deixando os vivos seguirem o
Torneio livremente. A luta só vai ser considerada finalizada quando um
competidor deixar de respirar e partir para o mundo do além.
— O que ele está fazendo? — pergunto, extremamente indignada.
— Eu sabia que você ia gostar — responde Rubens, com um sorriso
malicioso no rosto.
Sinto vontade de socá-lo ali mesmo.
— Por que você sugeriu uma coisa dessas? A regra é clara: a morte só
é válida na última etapa do Torneio.
— Parece que as coisas mudaram desde o início deste evento,
princesinha. O que é adaptar uma nova regra agora?
Penso em Ad e na condição que ele se encontra.
— Há um competidor em desvantagem. Não é justo que ele lute
machucado.
— Lamento por ele — fala, fingindo estar triste. — Os competidores
são obrigados a assinar um termo no momento da inscrição,
comprometendo-se a acatar todas as regras do Torneio.
— Ad se machucou salvando a minha vida! — protesto, indignada.
— Um ato de bravura daquele homem, sem dúvidas. Mas regras são
regras.
Cruzo os braços, aflita com aquela decisão.
— E por que tem oito competidores e não sete? — pergunto,
lembrando que dois foram eliminados na primeira etapa e o outro era o
rebelde que se suicidou.
— Parece que o pai de um dos combatentes comprou um ingresso
milionário para colocar o filho no Torneio — explica meu cunhado,
coçando a barba.
— Isso também não é justo!
Rubens faz uma careta debochada e ignora o meu protesto.
— Querida, eu sinto muito — pede Cássia, alisando meu cabelo.
— Sente muito? Se você sentisse alguma coisa de verdade interferiria
na ideia do seu marido. Agora, Ad vai ser atacado em desvantagem e corre
o risco de perder a vida por causa disso. Obrigado Cássia. Muito obrigado
por me ajudar.
Minha irmã abre a boca, mas não sabe o que falar.
Fredd, o mordomo real, vai até Arnaldo, segurando um saquinho de
pano nas mãos.
— Agora chegou a hora de eu sortear o primeiro grupo da segunda
etapa — explica meu cunhado, enfiando as mãos dentro do saquinho. Ele
tira três pedaços de papéis e lê em voz alta: — Sandrino Belchior, Wastos
Ferthonare e Oed de Assunção.
Oed, o sobrinho do chefe de cozinha.
Olho para Fadye, que parece meio enjoada. Ela aperta a barriga com
as mãos e esboça pequenas caretas irregulares. Fico preocupada. Será que é
por causa de Oed?
O primeiro competidor entra na arena segurando uma espada afiada e
pouca armadura no corpo. Um pequeno grupo grita o nome Belchior, talvez
a família do rapaz, e ele raspa a ponta da espada nas barricadas.
— Esse é queridinho de alguns — comenta Cássia, porém não
respondo.
O segundo competidor, totalmente equipado da cabeça aos pés, entra
na arena segurando uma lança de duas lâminas. Escuto um grupo maior de
pessoas gritarem Wastos enquanto ele dá três piruetas para trás.
O terceiro competidor, provavelmente Oed, entra de cabeça erguida e
joga uma espécie de machado para cima, pegando-o novamente.
— Quem luta com um machado? — questiona Rubens. — Esse vai
morrer rapidinho.
Os combatentes se posicionam nos cantos da arena, o gongo bate dez
vezes e a luta se inicia.
Com um estrondo, os três competidores colidem no centro da arena.
A poeira se ergue, obscurecendo temporariamente a visão, enquanto
lâminas se entrelaçam e golpes são trocados em um turbilhão de
movimentos.
Sandrino dança habilmente entre os outros, evitando investidas
brutais e retalhando com golpes precisos. Wastos avança com sua lança,
buscando manter uma distância segura enquanto perfura a defesa de seus
adversários. Oed investe impiedosamente, desferindo golpes devastadores
com seu machado e desafiando todos ao seu redor.
Sinto um certo calafrio tomar conta do meu corpo, imaginando o que
pode acontecer com Ad daqui a alguns minutos.
A dinâmica da luta muda constantemente e percebo que cada
combatente busca oportunidades estratégicas. A arena se torna um palco
caótico, onde os contendores se destacam em momentos de agressividade
calculada e manobras astutas.
A multidão, em um frenesi de emoções, assiste a cada reviravolta,
aplaudindo os feitos extraordinários e lamentando as derrotas temporárias
dos competidores. Oed quase acerta o braço de Wastos que se esquiva do
golpe em poucos segundos. Sandrino também percebe que Wastos é o
combatente menos convincente, devido a quantidade de armadura que ele
usa. Entretanto, o que parecia ser a presa ideal para a matança se vira com
agilidade e acerta a lança na perna de Sandrino. Ele grita de dor e se joga no
chão.
Todos, incluindo a mim, ficamos de pé, atentos ao último golpe do
competidor. Porém, como se estivesse esquecido pelo resto dos
combatentes, Oed, extremamente tomado pelo cansaço lança o machado nas
costas de Wastos e termina a partida.
O corpo de Wastos faz um baque terrível quando cai no solo e a
multidão vai à loucura. Oed se joga no chão, respirando com dificuldades.
Os gritos de Sandrino são horríveis e vejo uma boa cama de sangue
espalhado na areia.
— Uma salva de palmas para Sandrino Belchior e Oed de Assunção
— grita Arnaldo, completamente feliz pela disputa.
— Isso foi aterrorizante — argumenta Téssia, com cara de nojo.
— Isso foi melhor do que eu pensava — dispara Rubens, voltando a
se sentar.
Perto do corpo de Wastos, um dos drones captura todos os ângulos do
competidor, girando ao redor dele. Então me lembro que todas as pessoas
do reino estão assistindo a esse show de horrores ao vivo. É animalesco
demais.
Fayde vomita e corre para fora da sacada.
Antes que eu pudesse segui-la, Cássia segura meu braço.
— Negativo. Você não pode sair daqui enquanto a segunda etapa não
acabar.
— Mas Fadye pode precisar de mim.
— Ela sabe se cuidar sozinha.
Fredd estende o saquinho de pano para Arnaldo e ele anuncia os
próximos competidores:
— Félix Rodrine e Caladlon Solvero.
O primeiro competidor entra no momento em que dois guardas reais
arrastam o corpo de Wastos para longe da arena. Ele é alto, mesmo de
longe, forte e carrega duas cimitarras de lâminas curvas.
— Caladlon é realmente assustador — comenta Rubens,
impressionado.
— Como você sabe quem ele é? — pergunto, desconfiada.
— Ele trabalha na fábrica de armas que fornece escudos para o
palácio.
O outro competidor aparece correndo enquanto avalia todo o local.
Ele é extremamente magro, parecendo uma criança perto de Caladlon. Félix
segura um mangual de duas cabeças, arma totalmente inútil contra as
cimitarras do oponente.
Os competidores se encaram e a plateia segura a respiração. O gongo
soa e o duelo começa. A poeira se levanta enquanto eles circulam um ao
redor do outro, cada um calculando o momento preciso para atacar. Félix
inicia o embate com um giro feroz, a esfera de ferro zunindo pelo ar antes
de se chocar contra o solo. Caladlon, ágil como uma lebre, esquiva-se
habilmente, girando suas cimitarras para desviar do impacto.
O som metálico ressoa pela arena, ecoando a ferocidade da luta.
Caladlon avança com uma série de ataques rápidos com suas lâminas
cortando o espaço com graça mortal. Félix responde com movimentos
calculados, balançando a maciça arma em arcos amplos, buscando golpear
o outro. Cada encontro de metal é uma explosão de faíscas, criando um
espetáculo visual para quem assiste.
A arena se torna um redemoinho de movimentos. Félix ataca com
golpes devastadores, mas Caladlon dança entre os ataques, buscando
oportunidades para contra-atacar.
Após cerca de 38 minutos, a luta prossegue com uma intensidade
crescente. A tensão entre eles é notável enquanto os dois competidores se
confrontam, buscando a supremacia e o momento exato para um finalizar o
outro.
Quando penso em pedir um copo de água para a auxiliadora de
Téssia, um grito repentino ressoa pela arena com o mangual cravando-se na
nuca de Caladlon. Ele cai meio desorientado e solta uma das cimitarras.
Félix não pensa duas vezes, pega a arma solta no chão e arranca a cabeça de
Caladlon com um só corte.
A multidão, embora dividida na torcida, reconhece a maestria Félix e
bate palmas exageradamente.
— O vencedor desta rodada é Félix Rodrine — anuncia Arnaldo,
dando uma pausa no espetáculo para se hidratar.
CAPÍTULO 20

A multidão grita o nome de Salomé enquanto ele não entra na arena.


— Não será uma luta justa — reclamo, torcendo as mãos. — Ad não
está capacitado o suficiente para enfrentar dois combatentes ao mesmo
tempo.
— Ele deu um baita espetáculo na primeira etapa. Duvido que não
tenha uma carta na manga, afinal, só precisa de um competidor morto para
finalizar a rodada.
— Você não tem vergonha de dizer isso, Cássia? — pergunto para a
minha irmã. — Imagina se fosse o Rubens lá embaixo com a perna ferrada.
Acha mesmo que ele teria chances de sobreviver? Se eu estivesse lutando
na arena, ele seria o primeiro que eu iria caçar.
Um garçom aparece segurando uma bandeja repleta de sucos de
maracujá bem gelado. Ele oferece um copo para Cássia e o outro para mim.
— O segundo Torneio do Sol Nascente foi completamente diferente
do que está acontecendo agora. Rubens não precisou matar Finrod, porque o
oponente simplesmente desistiu.
— Claro, depois de apanhar tanto e quebrar os dois pulsos, até eu
desistiria — rebato, bebendo um gole do suco.
Arnaldo dá um selinho em Téssia e sobe ao palanque improvisado.
— Queridos e queridas de Mirassol. Estamos de volta com a última
rodada da segunda etapa, e os competidores que restaram são… — Fredd
estende o saquinho de pano e Arnaldo tira os três nomes. — Legolas
Lokwheel, Salomé Valktran e Ad Pomodoro.
Um homem negro corre até a arena e dá cinco cambalhotas antes de
ficar em pé. Legolas Lokwheel. Ele segura um bastão de madeira e o gira
ao redor do corpo.
Em seguida, Salomé e Ad entram juntos, conversando entre si de
forma pacífica. Será que eles estão fazendo uma aliança? Que eu saiba,
aquilo não seria contra as regras. Ad carrega apenas uma adaga enquanto
manca com dificuldades. Salomé traz consigo uma espada de lâmina larga,
vestido de uma armadura reluzente.
O sol poente pinta o céu com tons de laranja e vermelho, lançando
uma luz dourada sobre o campo de batalha onde a emoção da multidão
fervilha.
A multidão observa com antecipação, enquanto os três competidores
se encaram no centro da arena. Então, o silêncio é quebrado pelo estrondo
do gongo, marcando o início da batalha tripla.
A ação dos combatentes irrompe em uma dança frenética de ataques,
desvios e paradas. Salomé investe com ferocidade, usando sua espada
cortando o ar em arcos amplos. Legolas, ágil como uma sombra, dança ao
redor, esquivando-se dos golpes e retalhando com ataques precisos de sua
lança. Enquanto isso, Ad tenta encurralar Legolas, ameaçando atacá-lo por
trás.
A arena se transforma em um cenário caótico enquanto eles alternam
entre momentos de confronto direto e estratégias elaboradas. O sol continua
a mergulhar no horizonte, lançando sombras longas que se movem com os
movimentos frenéticos dos competidores.
De repente, Legolas fica de costas para Salomé e encara a perna de
Ad. Ele sabe. Ele sabe que Ad está em menor desvantagem. Ad percebe o
olhar do oponente e se afasta com um pouco de dificuldade, tentando
encontrar a melhor maneira para se defender.
Salomé aproveita a distração para crava a espada nas costas de
Legolas, mas, por uma fração de segundos, o competidor olha para a
sombra de Salomé no chão e se agacha imediatamente. O filho do Duque
perde o equilíbrio e cai de barriga no chão.
Os aplausos e gritos da multidão acompanham cada movimento.
Com a velocidade necessária, Legolas chuta a espada de Salomé para
longe, pisa nas costas do competidor e começa uma série de chutes no rosto
dele. Uma boa quantidade de sangue espirra na areia da arena, manchando-a
de vermelho. O filho do Duque não aguenta a força dos chutes e desmaia.
Prendo a respiração. Infelizmente Salomé está prestes a morrer.
Legolas ergue o bastão acima da cabeça, vira a ponta mais afiada na
direção da cabeça de Salomé e desce a arma com bastante força. Porém, em
questão de milésimos de segundos, a adaga de Ad é lançada e corta o bastão
ao meio, tirando a força que ele carregava até a cabeça de Salomé. Pelo
impacto, Legolas cai sentado para trás e torce o tornozelo.
O povo de Mirassol vai à loucura, admirados pelo espetáculo dos
competidores.
Horrorizado, o competidor pega a parte do bastão pontudo e corre na
direção de Ad, pronto para enfrentá-lo. Ad tenta fugir, mas por causa da
perna machucada tropeça e cai de lado no chão. O oponente usa a
oportunidade para cravar o bastão em Ad. Ele ergue a arma acima da cabeça
e desce com toda a força que consegue. Ad, habilidoso como sempre, rola
no chão e o bastão afunda na areia.
Se sentindo humilhado, Legolas pula em cima de Ad e começa a
socá-lo incansavelmente, tirando sangue do competidor. Ad tenta se livrar,
mas não consegue. Percebo que ele está desorientado e desesperado ao
mesmo tempo.
Em seguida, Legolas afunda a cabeça de Ad na areia, sufocando-o
com brutalidade.
Não. Ad não pode morrer agora.
Desesperada, vou até o palanque e tento empurrar Arnaldo para fora
dele.
— O que você está fazendo, garota?
— Você precisa interromper a luta agora!
Ele nega com a cabeça.
— Volte para o seu lugar, Saravana — ordena ele, segurando o
microfone do púlpito com força.
Apavorada, piso no pé do meu cunhado com a ponta do salto e o
empurro de cima do palanque. Ele grita e cai de costas no chão.
— Arnaldo! — grita Téssia, correndo para ajudar o marido.
Rubens se levanta e tenta me impedir, mas dois guardas reais se
sobrepõem entre nós, formando uma barreira.
Olho para a luta na arena e vejo o corpo de Ad desfalecido.
— Interrompam a luta agora! — berro no microfone e um silêncio
desconfortável toma conta do ambiente. Legolas solta a cabeça de Ad e o
competidor se engasga, voltando a respirar com dificuldades. — Você não
tem vergonha de tentar matar um homem desacordado e o outro debilitado?
— pergunto para Legolas, friamente.
O combatente me olha confuso, não entendendo nada do que está
acontecendo.
Inesperadamente, Ad usa o momento da distração para sacar a outra
adaga escondida na armadura e, de forma rápida, corta a garganta do
oponente que arregala os olhos e cai morto no chão
A multidão volta a gritar enlouquecidamente, uns protestando a favor
e outros contra.
Ad coloca o corpo de Legolas de lado e rasteja até o corpo desmaiado
de Salomé, verificando se ele está bem. Mesmo fraco e todo ensanguentado,
ele ainda quer saber da condição do filho do Duque. É então que percebo
que aquilo sim é a postura de um rei de verdade.
Inspirada pelo cuidado de Ad, seguro o microfone com força e grito
um pedido de silêncio entre a multidão. Todos, sem exceção, obedecem
minhas ordens.
— Uma salva de palmas para os nossos vencedores — digo e, mesmo
hesitante, o povo bate palmas.
Desço do palanque e olho para o meu cunhado Arnaldo.
— Encerre a etapa de hoje, por favor — peço.
— Depois do que você acabou de fazer? Claro que não. Não vou
aceitar essa humilhação ridícula de uma garota que não sabe nem como
funcionam as coisas do reino.
Seguro meu cunhado pelo colarinho e digo:
— Seja homem e obedeça às minhas ordens, Arnaldo. Lembre-se que
você não tem sangue real de verdade, ainda que tenha se casado com minha
irmã. Lembre-se que meu pai ainda está vivo e observando tudo.
Arnaldo me encara com ódio nos olhos, mas sobe ao palanque e
encerra o evento.
CAPÍTULO 21

Estou deitada na cama, envolta pela penumbra do meu quarto. Fadye


trouxe um pouco de chá de camomila e me deixou sozinha, para descansar
um pouco.
O dia tenso de hoje tem me causado muitas dores de cabeça. Comprei
uma briga que, provavelmente, não vou conseguir ganhar. Depois das
minhas atitudes no Torneio do Sol Nascente, tenho certeza que o rei me
punirá. Ninguém jamais fez o que eu fiz. Ninguém jamais teve a capacidade
de confrontar a família real. Existe uma hierarquia na corte onde as filhas
do rei só deverão obedecer os agregados, homens casados com uma das
princesas, quando ele morrer. Essa é a lei. É a regra. Sendo assim, o fato de
ter ordenado que meu cunhado fizesse o que eu estava pedindo não
infringiu regra alguma.
Por outro lado, nunca houve um Torneio sem a presença do rei, e
talvez isso mude tudo. Sei que serei punida por ter dado segundos de
vantagens para Ad virar a luta. Eu simplesmente declarei o meu favoritismo
diante do povo de Mirassol, coisa que não podia ter acontecido. Embora Ad
não seja realmente o combatente que eu quero, senti que deveria
recompensá-lo pelo que fez por mim. Ele salvou a minha vida e nunca
deixarei de ser grata por isso.
Cubro o meu rosto com o travesseiro e permaneço imovel.
Ser membro da realeza não é uma incumbência fácil.
Ouço um farfalhar delicado que não se encaixa nos sons habituais do
meu quarto e prendo a respiração. Tem alguma coisa se mexendo aqui
dentro, além de mim.
Reparo que meu quarto está mergulhado na escuridão, iluminado
apenas pela luz fraca do lado de fora filtrada pelas cortinas entreabertas, e
não consigo enxergar nada fora do normal.
Respiro sem fazer barulho e me concentro, tentando identificar a
origem do som. Então, lá está ele novamente, um ruído sutil, quase como se
algo estivesse se movendo nas sombras.
Saio da cama e me aproximo devagar, enquanto meus pés deslizam
silenciosamente no carpete. O som persiste de novo e escuto uma espécie de
arranhar suave, quase como se fossem garras deslizando por uma superfície
macia. Minha mente começa a formar imagens de possíveis intrusos, até
que, ao alcançar a origem do som, sou surpreendida por um pequeno miado.
Não pode ser possível, penso.
No canto do quarto, onde a escuridão é mais densa, avisto dois olhos
brilhantes refletindo a luz tênue que invade o espaço. Meu coração acelera
ao perceber que o som estranho era, na verdade, de um gatinho gordinho
escondido nas sombras. Ele me encara com olhos curiosos, permanecendo
imovel ao ser descoberto.
— Como é que você conseguiu entrar no palácio? — pergunto,
admirada. Infelizmente meu pai não permite animais domésticos dentro de
casa. Ele mia baixinho, parecendo sentir um pouco de medo. — Ah,
pequeno intruso peludo, o que está fazendo aqui?
Estendo minha mão na direção do gato. Ele se aproxima cauteloso, se
deixando acariciar. Percebo que está com fome.
Pego um pouco de bolacha de sal, molho dentro do bule de chá e
amasso com as mãos, fazendo pequenas massinhas umedecidas. Coloco na
boca do bichano e ele devora imediatamente.
— Não posso entregá-lo para os guardas, querido. Eles matariam
você assim que virassem para o próximo corredor — converso com ele, que
mia em resposta. — Vou cuidar de você, tudo bem? Mas para isso, precisa
de um nome. Hmmmmm, que tal Felpudo?
O gato mia, corre para minha cama e pula em cima dela.
— Você é folgado, emmm? — digo, subindo na cama também. — Só
que vamos fazer um trato. Você não pode passear pelo palácio, combinado?
Se quiser permanecer vivo terá que ficar escondido aqui.
Ele se aconchega entre minhas coxas, fechando os olhinhos cansados.
Sua pelagem exibe uma mescla de tons preto e amarelo.
Com delicadeza, escolho um livro de literatura clássica e leio em voz
alta, capítulo por capítulo, até que o sono nos envolva.
CAPÍTULO 22

Alguém bate na minha porta.


Olho para o relógio da parede e suspiro. São 23:00 da noite. Quem
pode ser uma hora dessas?
Prendo o cabelo em um coque alto e visto meu roupão branco. Assim
que abro a porta, me deparo com um rapaz bastante conhecido no palácio:
Oed de Assunção.
Ele segura uma sacola de plástico.
— O que você está fazendo aqui? — pergunto, surpresa.
Oed coça a cabeça, meio sem jeito, antes de responder:
— Ad pediu para eu vir até aqui — responde, com um tom de voz
grave.
A presença de Oed irradia uma energia positiva. O sorriso meio
engraçado ilumina seu rosto, alcançando os seus olhos numa naturalidade
bonita. Observo detalhadamente o contorno da mandíbula dele, onde traços
fortes e simétricos contribuem para a beleza singular da sua expressão. Os
olhos, brilhantes e expressivos, possuem uma cor castanha que lembra
muito um caroço de feijão. A pele negra parece ser bastante macia e os
cabelos encaracolados muito bem tratados. O corpo é atlético e
disciplinado, marcando cada músculo através da camiseta regata que ele
usa.
Confesso que Oed é muito bonito, mas parece jovem demais para
mim.
— Ele está bem? — pergunto.
— Ele vai ficar bem.
— Onde ele está?
— Na ala hospitalar junto com Salomé — responde, riscando o chão
com o pé.
Suspiro aliviada.
Pelo menos eu sei que ele está sendo bem cuidado por excelentes
profissionais.
— E o que você quer comigo? — questiono, apoiando meu corpo na
porta.
— Ad pediu para buscá-la, princesa. Ele quer agradecê-la por tudo
que a senhorita tem feito até agora — responde, enfiando as mãos nos
bolsos. — Ele poderia está morto se a senhorita não interferisse na luta
— Não precisa me chamar de senhorita o tempo todo. Pode se referir
a mim como você.
— Desculpa.
— E o que ele quer fazer a essa hora da noite?
— Sei que não deveria compartilhar esse tipo de informação com
você, mas nós descobrimos um túnel dentro do palácio que leva à floresta
— explica, sem olhar nos meus olhos. — Ad quer levá-la para conhecer a
Trope dele.
Franzo o cenho.
— Hoje?
— Sim.
— E por que agora?
Oed dá de ombros.
— Nós não sabemos quais serão as próximas etapas do Torneio, então
Ad acha melhor cumprir o que ele prometeu o mais rápido possível.
Por mais que eu não queira admitir, ele está certo. Não sei se serei
capaz de salvar a vida de Ad outras vezes.
— Certo. Mas eu não posso sair desse jeito. E há também a
consideração sobre os guardas reais que patrulham os corredores durante a
madrugada.
Ele abre um sorriso caloroso.
— É por isso que Ad me pediu para trazer as roupas dele. Ele disse
que a senhorita deveria usá-las para se disfarçar — diz, erguendo a sacola
na minha direção. — E quanto aos guardas, deixe comigo. Eu conheço
praticamente todos os movimentos reais e sei quando eles trocam de turno,
que no caso será daqui a 10 minutos.
Pego a sacola da mão de Oed.
— Espere aqui dentro do meu quarto enquanto me troco no banheiro
— sugiro.
Oed hesita um pouco, mas entra, parecendo incomodado por invadir
os aposentos reais.
— Uau. Esse quarto é incrível.
Faço que sim.
— Fique à vontade. Tem chá na mesinha do canto e bolacha salgada
no pote de vidro. Pode sentar na minha cama, se quiser.
Dito isso, entro no banheiro.
O que eu estou fazendo? Não acredito que estou prestes a fugir do
palácio por um tempo. Tudo por causa de uma promessa. Tudo por causa da
gratidão de Ad.
Tiro um casaco de capuz preto e uma calça moletom branca de dentro
da sacola. Inalo o aroma da roupa e quase desmaio. Tem o cheiro dele. Tem
um cheiro meio cítrico misturado com silvestre.
Desfaço o coque e amarro meu cabelo em um rabo de cavalo. Visto o
casaco e coloco o capuz na cabeça. Experimento a calça e ela fica larga
demais.
— Não tem problema, eu dou um jeito.
Vou à cômoda mais próxima e vasculho cinco gavetas até encontrar
um elástico resistente o suficiente para segurar a calça. Pronto. Perfeito.
Olho meu reflexo no espelho e dou risada de mim mesma.
— Pareço um malandro caipira — digo, saindo do banheiro.
— Quem é você? — pergunta Oed, de olhos arregalados. — Nem
parece mais uma princesa.
— A partir de agora, pode me chamar de Camille.
— Você não tem a cara de Camille, princesa.
— E nem você de Oed — rebato.
— Oed é melhor do que Camille.
— Camille é melhor do que Assunção.
— O que você quer dizer com isso? — pergunta, encabulado. — Que
saber, esquece. Acho melhor nós irmos andando logo.
Olho para o armário do qual tenho escondido o Felpudo e dou um
tchauzinho. Espero que ele não mie muito alto ou será encontrado, e morto
asfixiado.
Oed me tira do quarto e segue em direção ao lado leste do palácio.
O brilho fraco das velas acentua as texturas elaboradas das paredes
entalhadas, enquanto tentamos passar despercebidos, como sombras se
movendo furtivamente na noite. Ele evita as áreas iluminadas pelos
candelabros, onde os guardas patrulham com olhares atentos, fazendo com
que a gente refaça o caminho várias vezes até o encontrar vazio.
Contornamos colunas elaboradas e móveis luxuosos até finalmente
alcançarmos uma área mais obscura e menos frequentada do palácio.
Respiro aliviada, mas a tensão ainda persiste no meu coração.
Oed tira um mapa clandestino e o analisa duas vezes, conferindo se
estamos seguindo os corredores certos que nos guiarão até o ponto de fuga
secreto.
Dez minutos depois, chegamos a uma porta discreta, camuflada pela
opulência do palácio. Oed abre a fechadura com um estalido suave,
revelando um esconderijo há muito guardado. Entramos rapidamente,
fechando a porta com cautela, e nos deparamos com uma passagem
sombria.
— Não me diga que temos que atravessar essa passagem? —
pergunto, com medo.
— Se quisermos encontrar com o Ad do outro lado, sim.
Oed se aproxima da parede e, de repente, à luz de uma pequena tocha
se acendem, revelando um túnel estreito e escuro que se estende para longe
do palácio.
— Não estou gostando nada disso.
— Relaxa, Camille. Você vai gostar de ver o que tem no final.
A umidade do solo atinge os meus sentidos enquanto seguimos pelo
caminho subterrâneo. O ar é pesado demais. O ambiente é muito abafado. A
brisa que circula é quente e arrepiante.
Noto que o túnel serpenteia sob os fundamentos do palácio, e percebo
que o cheiro da terra molhada pode ser sentida a quilômetros de distância.
— Não se preocupe, princesa — fala Oed, segurando a minha mão.
— Em 15 minutos, estaremos em um outro mundo.
CAPÍTULO 23

A luz no final do túnel deixa meu corpo aliviado, dissipando a tensão.


Na entrada, uma sombra aguarda nossa chegada com os braços
cruzados.
— O futuro príncipe de Mirassol nos espera — solta Oed.
— Do que você está falando? — pergunto, incomodada.
— Ah, princesa. Está na cara que você está apaixonada por ele.
Tusso.
— Eu não estou apaixonada por Ad. Eu nem sequer o conheço ainda.
— Você preparou um jantar exclusivamente para ele. Você o salvou
das mãos de Legolas. Eu vi a sua expressão de alívio quando mencionei que
ele estava bem na ala hospitalar. A senhorita nem sequer perguntou da
condição de Salomé — menciona, parecendo achar graça.
Não sei como reagir.
— Eu não devo satisfações a você, Oed — digo, extremamente seca.
— O que eu faço ou deixo de fazer é problema meu.
Ele solta a minha mão.
— Eu não quis ofendê-la, princesa.
Ad acena para nós e corro na direção dele.
— Ad, como você está? — pergunto, ignorando a conversa que tive
com Oed.
O semblante de Ad exibe sinais evidentes de inchaço, com marcas e
cortes pronunciados nas bochechas. Uma faixa adesiva oculta sua orelha
esquerda, enquanto pedaços de gaze repousam cuidadosamente no pescoço.
— Tirando a minha aparência horrível, eu estou bem — responde. Ele
se aproxima de mim e me abraça com cuidado. — Obrigado por salvar a
minha vida na arena, princesa.
Sinto o impulso de permanecer em seus braços, mas a lembrança de
Oed me faz recuar imediatamente.
— Agora sim, estamos quites — respondo, apertando seu ombro
como forma de gratidão. Ad geme um pouco. — Desculpa.
Ele nega com a cabeça.
Reparo que Ad veste a mesma roupa que usava na noite em que nos
encontramos pela primeira vez no palácio.
— Obrigado por trazê-la em segurança, Oed — agradece o
competidor.
Oed faz uma reverência debochada e diz:
— Vocês têm duas horas, senhor.
— Senhor? — pergunta Ad, erguendo uma das sobrancelhas.
Reviro os olhos.
Olho para a imensidão da floresta atrás dele. É a primeira vez que
tenho um contato tão próximo com a natureza.
— Aonde você vai me levar?
— Segredo.
Ele segura a minha mão e juntos seguimos em direção a um caminho
de terra batida. Oed assobia bem alto, porém não olho para trás.
— Não liga para as brincadeiras de Oed. Ele é assim mesmo. Acho
que por isso nos tornamos amigos tão rápido no dormitório. É um bom
rapaz.
— Não suporto gente chata — falo, admirando a paisagem. — Ele
tem umas brincadeiras que não são nada engraçadas. Quantos anos ele tem?
Quinze? Nem as crianças da minha família agem como ele.
— Ele foi o único que eu pude confiar em trazê-la até aqui.
— Tudo bem. Vamos esquecer da existência dele, por favor.
— Seu pedido é uma ordem, princesa — brinca Ad, encostando o
ombro no meu braço de propósito.
Caminhamos silenciosamente pela floresta, envolvidos pela escuridão
e pelo mistério que pairam sob as copas das árvores altas. As folhas,
cobertas pelo orvalho noturno, cintilam suavemente à luz da lua, criando
um manto prateado que se estende até onde a minha vista alcança. As
árvores, extremamente gigantes, erguem-se como sentinelas antigas com
seus troncos escuros e rugosos. Ramificações se entrelaçam formando uma
tapeçaria natural que oscila sob a brisa da noite, criando sombras dançantes
no chão. Os galhos se entrecruzam criando um dossel celestial que filtra os
raios da lua, pintando padrões de luz e sombra sobre o solo coberto de
musgo.
Cada passo que dou é abafado pelo tapete que se estende sob meus
pés enquanto uma sinfonia suave contrasta com a quietude da noite.
Os insetos, em sua serenata tradicional, cantam um coro de sons
melodiosos. Grilos entoam sua música peculiar, enquanto sapos contribuem
com suas notas profundas, harmonizando-se com a trilha sonora noturna da
natureza. O zumbido distante de vaga-lumes cria uma cadência luminosa
que acompanha a sinfonia natural. O farfalhar das folhas ao vento e o
ocasional sussurro de uma criatura ambulante acrescentam uma camada
adicional à tapeçaria sonora. Uma coruja, guardiã silenciosa da noite, solta
seu chamado distante, ecoando entre as árvores como uma voz da floresta.
A escuridão, longe de ser opressiva, é como um manto que envolve o
ambiente em mistério. A lua, refulgente no céu, lança um brilho prateado
sobre as árvores, revelando detalhes fugazes no cenário.
— Você já esteve numa floresta antes? — pergunta Ad,
interrompendo o silêncio da noite. — Está com uma expressão espantada.
— Nunca. É a primeira vez que posso vivenciar uma proeza dessas.
— Você já saiu do palácio alguma vez na vida?
Dou risada.
— Claro que sim. Anualmente somos compelidos a percorrer as
quatro partes do reino em uma sequência cronológica predeterminada.
Primeiramente, é a vez do rei e da rainha, em seguida, minha irmã Téssia
acompanhada de seu marido Arnaldo. Posteriormente, Cássia com seu
esposo Rubens assume a responsabilidade, seguidos por Donabella e o
príncipe Erasmos, que apenas enviam cartas sobre as condições dos campos
fora da cidade. Depois chega a minha vez. Por eu ser solteira, não sou
obrigada a sair do carro. Aproveito a oportunidade para observar a cidade
furtivamente, registrando detalhes sobre a condição das ruas, dos edifícios e
todos os aspectos relacionados à habitação. Ao retornar ao palácio, entrego
o relatório diretamente nas mãos de meu pai, e ele utiliza os fundos
provenientes dos impostos para implementar melhorias na cidade. Sabe, o
rei Kalayo, de fato, é um administrador competente, compreendendo as
nuances dos investimentos. Entretanto, suas políticas opressivas deixam a
desejar — explico.
— Por que ele não coloca quatro governadores para cuidarem da zona
norte, sul, leste e oeste? Não seria mais viável assim? Pouparia tempo e
diminuiria o trabalho acumulado para a realeza.
— Meu pai mantém uma desconfiança generalizada em relação a
qualquer elemento externo ao palácio real. Ele sustenta a convicção de que
tal abertura resultaria na corrupção do povo e na concentração excessiva de
poder nas mãos de indivíduos não merecedores. Como resultado, ele opta
por assumir a responsabilidade total pela administração do reino.
— E por que uma única cidade para um reino tão grande? —
questiona.
— A razão está relacionada à administração dos setores. Com mais
cidades, haveria necessidade de mais investimentos, aumento de impostos e
uma demanda maior de trabalho. Além disso, o rei teme que isso resulte na
divisão do povo em Mirassol.
— Por que?
— Um povo fragmentado abriga uma diversidade de princípios. É
nesse cenário que emergem ideologias que instigam diferentes grupos a
defenderem suas crenças como o caminho correto. Não pode haver
dualidade na certeza, apenas uma direção. Uma única comunidade. Um
único reino. Um único líder.
Ad pensa um pouco antes de dizer:
— Embora eu tenha uma perspectiva diferente, consigo compreender
o seu pai. Parece que ele age como o chefe de família tentando manter
controle sobre os filhos dentro de casa.
— É exatamente isso — digo, deixando escapar um leve sorriso.
Talvez seja a hora de mudar de assunto: — Como está o filho do Duque?
— Salomé? Com a cara toda inchada, mas vivo.
— Sinto muito por vocês estarem passando por tudo isso.
— Não peça desculpas, princesa. Você esqueceu que estamos no
Torneio por vontade própria? Ninguém foi obrigado — avisa.
Chuto um pedaço de graveto e solto a mão dele.
— Você já ouviu falar do baile que se chama A dança da meia noite?
— pergunto, mudando de assunto mais uma vez.
— Sim. É um baile selecionado na cidade. Me falaram que é um
tédio.
— Você nunca participou?
Ele faz que não.
— Aquilo é mais um evento político do que qualquer outra coisa,
princesa. Ninguém vai ao baile senão para falar de negócios e troca de
terrenos clandestinos.
Fico desanimada com a revelação.
— Eu não sabia.
Ad percebe que fiquei chateada.
— Lamento deixá-la decepcionada. Mas aquele lugar não vale a pena.
— Não. Fique em paz. Está tudo bem… só que eu não imaginava que
era assim.
Ele me olha de soslaio e passa as mãos no cabelo.
— Você queria participar do baile? — pergunta.
Faço que sim.
— A maneira como Fadye havia me contado parecia algo mágico —
respondo, me sentindo totalmente insegura por revelar tanto sobre a minha
vida.
— Fadye?
— Minha auxiliadora — explico. — Ela é como se fosse a minha
irmã mais nova.
— Entendi.
De repente, um grupo de borboletas noturnas dançam em um
espetáculo encantador sob os raios de luz da lua. As asas, com tonalidades
suaves, capturam a luz prateada e lançam reflexos deslumbrantes ao meu
redor.
— Que lindo! — sussurro para mim mesma.
Cada borboleta exibe uma graciosidade única em seus movimentos.
Suas asas, adornadas com padrões intrincados e manchas iridescentes,
tremulam como pétalas delicadas carregadas pela brisa da noite.
— Dizem que quando elas surgem para um casal, é sinal de que
ficarão unidos para sempre — comenta Ad, falando em tom baixo.
Coro imediatamente. O que ele quer dizer com isso?
Envergonha, evito olhar para ele e continuo a observar as borboletas.
Conforme elas flutuam no ar, seus corpos finos e antenas sensíveis captam a
brisa suave, fazendo-as rodopiar várias e várias vezes.
Hipnotizada, me aproximo, e sinto uma suave brisa gerada pelo bater
ritmado de suas asas. Cada borboleta parece estar imersa em sua própria
dança, explorando o campo com uma leveza que faz parecer que estão
flutuando em um sonho. Suas cores se transformam à medida que mudam
de direção, revelando nuances que vão de tons suaves de azul celeste a
púrpuras profundas. Elas se movem em círculos, formando padrões
calculados que embelezam a complexidade da natureza.
— Nunca vi um espetáculo tão belo quanto esse.
Percebo que cada borboleta desempenha um papel vital na
coreografia, contribuindo para uma apresentação que transcende o simples
voo. É como se elas soubessem que estão sendo admiradas, transportando a
beleza da noite em suas asas delicadas.
Ad se aproxima e me abraça por trás, apoiando o queixo machucado
no meu ombro esquerdo. Sinto uma onda de calor começar a percorrer meu
corpo, enquanto borboletas inquietas, agora dentro do meu estômago,
dançam em um frenesi delicado.
Fecho os olhos e permito que Ad entrelace seus braços sobre os meus.
Seu toque delicado acaricia a pele dos meus pulsos, provocando uma
sinfonia de choques elétricos emocionais. Fico arrepiada, e seguro um
suspiro contido. Ele tem um toque suave, capaz de provocar sentimentos e
desejos profundos.
Ad sabe como tocar numa mulher. É notável.
— Vamos continuar a caminhada ou perderemos o momento crucial
do ajuntamento — sussurra no pé do meu ouvido, se afastando mais rápido
do que o necessário.
CAPÍTULO 24

A noite na floresta se desenha com uma escuridão aveludada, e a luz


da lua é a única capaz de iluminar nosso caminho.
E então, eu ouço alguém cantar:
Sob o dossel verde, à luz da lua brilhante,
Um convite sussurra, a cada coração pulsante.
Vamos nos perder entre árvores e folhas,
Onde a magia da natureza canta em nossas almas.
É a voz de uma menina.
— Quem está cantando? — pergunto para Ad.
— É a voz de Calantha — responde, tirando um pedaço de tronco do
caminho. — Minha prima.
Caminhamos juntos, passos leves na trilha,
A fogueira aguarda, a noite nos chama.
Cada riso, uma estrofe, cada olhar, uma rima,
Na floresta, a harmonia da amizade se inflama.
À curta distância, vejo a luz crepitante de uma fogueira, lançando tons
dourados e alaranjados sobre os rostos de um grupo de pessoas.
À medida que nos aproximamos, as sombras das árvores se estendem,
adicionando uma aura mágica ao ambiente. Sentados em troncos e pedras
ao redor do calor reconfortante, cada indivíduo segura um copo de vidro
brilhante, enquanto movimentam seus corpos de acordo com a melodia.
Ao centro, uma jovem de cabelos cacheados se destaca, imersa em
seu momento. Vestindo uma camiseta branca que realça o tom mulato de
sua pele, ela permanece de pé, com os olhos fechados em concentração.
Na floresta, sob o luar,
Amigos se reúnem para cantar.
Notas e risos, ecoando no ar,
Uma canção de amizade a ressoar.
Um homem de mais ou menos 40 anos se levanta, segurando uma
viola caipira de tonalidade azulada, e se prepara para tocar. Ele usa um
macacão jeans por cima de uma camiseta listrada.
Cigarras sussurram acordes, como o vento entre as folhas,
Vozes se elevam, como pássaros em sinfonias risonhas.
Ritmo de tambores, como o pulsar da própria terra,
Cantamos histórias, segredos que o vento leva.
As primeiras notas ressoam da viola, ecoando entre as árvores como
um chamado suave. A melodia se entrelaça com o som do instrumento,
enquanto o ritmo é mantido por um tambor do outro lado da fogueira. Os
acordes e as batidas se fundem organicamente, criando uma trilha sonora
diferente de tudo o que eu já havia escutado.
A fogueira dança, sombras em movimento,
Em união, criamos nosso próprio momento.
Cada nota, um elo, cada acorde, um laço,
Na floresta, encontramos nosso próprio espaço.
Agora uma garota ruiva também fica de pé e canta junto com a prima
de Ad, acelerando o ritmo dos instrumentos numa alegria contagiante.
Sinto vontade de bater os pés, mas me contenho porque não sei se é o
certo a ser feito.
Os raios da lua abraçam a clareira,
Enquanto cantamos, a noite inteira.
O fogo crepita, uma melodia de luz,
Em harmonia, criamos nossa própria cruz.
E quando a aurora desperta, pintando o céu,
Nossas vozes se entrelaçam, num derradeiro adeus.
Mas as notas permanecem, no coração da floresta,
Onde a canção da amizade nunca cessa.
Ad para de caminhar, segura meu braço e começa a me rodopiar na
velocidade da cantoria. Ele dá risada quando percebe que não tenho jeito
para a dança, mas continua conduzindo meus passos com agilidade.
Na floresta, sob o luar,
Amigos se reúnem para cantar.
Notas e risos, ecoando no ar,
Uma canção de amizade a ressoar.
E assim nos reunimos, mas nas lembranças,
A canção ecoa, eterna esperança.
Na floresta, onde a música se fez real,
A amizade é a melodia principal.
A música termina e todos batem palmas para as meninas.
— Você está bem? — pergunta Ad, rindo da minha cara. — Pensei
que você ia vomitar a qualquer momento, princesa.
— Eu estou bem, obrigada — respondo, um pouco enjoada. —
Camille. Aqui fora o meu nome é Camille — aviso, não querendo ser
reconhecida pelos amigos dele.
Ele segura uma risada, mas assente.
— Tudo bem, Camille. Está pronta para conhecer minha família?
Meu coração acelera.
— Não, não me sinto preparada para esse momento, Ad. E se alguns
de seus amigos me reconhecerem? Eu não sei como reagir. Afinal, o que
devo dizer a eles? — pergunto, bastante preocupada.
Ad me abraça mais uma vez. Acho que estou ficando mal
acostumada.
— Primeiro: não precisa tirar o capuz da cabeça. Segundo: qualquer
coisa, você é uma das auxiliadoras do palácio e não precisa dizer mais nada
sobre isso. Eles não são pessoas invasivas, muito pelo contrário. Terceiro:
seu rosto mal aparece nos televisores, sendo assim, a probabilidade de
alguém descobrir quem você é de verdade é baixa.
Suas palavras acalmam o meu coração e, por um instante, sinto que
posso confiar nele. Ad demonstra uma sincera preocupação com meu bem-
estar aqui fora, revelando uma faceta de sua personalidade que contrasta
com o Ad que encontrei nos corredores do palácio.
— Ad, é você mesmo? — uma voz masculina pergunta, e um rapaz se
aproxima da gente. — Galera, o Ad voltou.
Ad se vira lentamente em direção ao grupo e abre um sorriso discreto.
— Voltei mesmo. E também trouxe alguém comigo.
Ele segura minha mão e me puxa para fora dos arbustos, deixando-me
totalmente visível para a Trope.
CAPÍTULO 25

Acomodada em um pedaço de tronco escuro, percebo que uma


melodia começa a ser entoada por alguém, a voz fluindo como um riacho
sereno.
As palavras da melodia ecoam pelos troncos das árvores, contando
histórias de amizade, aventura e a magia do momento. O fogo responde às
notas, dançando em sintonia com o som suave das cigarras, como se fosse
um parceiro invisível na celebração musical.
À volta da fogueira, as risadas do grupo se entrelaçam
harmoniosamente com as canções. Instrumentos de percussão
improvisados, habilmente manejados pelos amigos de Ad, produzem
batidas espontâneas que se mesclam perfeitamente à atmosfera animada que
permeia o ambiente.
— Quem é ela? — pergunta uma mulher morena, descascando uma
banana. Seus olhos azuis brilham em reflexo da luz do fogo.
— Uma amiga que queria muito conhecer vocês — responde Ad,
afinando as cordas de um violão.
— Qual é o seu nome? — pergunta ela, se sentando no chão, de
pernas cruzadas.
— Camille — respondo, um pouco envergonhada.
— Muito prazer em conhecê-la, Camille. Eu sou Kaida, uma das
patriarcas da Trope.
— Patriarca?
— Ela quer dizer que quando a Trope começou a se reunir, ela já fazia
parte do grupo. Kaida, Galadriel e Aranwe eram uma banda profissional na
cidade, mas foram proibidos de se apresentarem nos eventos devido à
quantidade de pessoas que criticavam as letras das canções — explica Ad.
— Os donos dos estabelecimentos achavam que nossas músicas eram
românticas demais e que não combinavam com o clima do ambiente.
Afinal, pessoas bêbadas não prestam atenção em nada — continua Kaida,
mordendo um pedaço da banana. — Sendo assim, resolvemos criar o nosso
próprio espaço, cantando e tocando na floresta, claro que de forma gratuita,
para quem quisesse escutar. E de repente, BOOM, a Trope estava cheia de
gente com bom gosto musical.
— Tive aulas de violão com Aranwe e, em troca, o ensinei a se
defender com adagas. Essa é a forma como retribuímos a Trope,
compartilhando nosso conhecimento em uma troca mútua — diz Ad, ao
estourar uma corda do instrumento. — Que despautério!
Um homem de cabelos grisalho se aproxima.
— Boa noite, crianças — cumprimenta ele. — Ad, meu filho amado
do coração. Que bom vê-lo novamente — diz, apertando a mão de Ad. —
Como estão as coisas no palácio?
— Galadriel, meu amigo querido do coração, também é muito bom
ver você — responde Ad, usando a mesma expressão que o velho. — As
coisas no palácio estão fluindo como devem, sabe?
— Ouvi dizer que você quase perdeu a vida na segunda etapa. Isso é
verdade? — pergunta Kaida, de olhos arregalados.
— Espera um momento — eu interrompo, indignada. — Você não
assistiu à luta?
Kaida parece chocada com a pergunta.
— Quem assiste aquela porcaria?
— Porcaria? É o evento mais esperado em cinco anos! — rebato.
— Aliás, quem é a senhorita? — questiona Galadriel.
Permaneço calada.
— Essa é uma amiga que conheci no palácio, Camille — responde
Ad.
— Conheceu no palácio? — pergunta Kaida, aliviando a expressão
tensa em seu rosto. — Agora está explicado porque ela se doeu quando eu
disse que o Torneio é uma porcaria.
— Querida Camille que ainda não faz parte do meu coração — fala
Galadriel, fingindo estar sendo educado comigo. Por algum motivo, não
gosto dele: — Este tipo de espetáculo só serve para duas coisas. Primeiro:
arrancar dinheiro de pessoas ricas e pobres que não sabem dar valor de
verdade às próprias economias. E segundo: criar uma falsa expectativa de
vida glamourosa para aqueles que, assim como o nosso amigo aqui, se
inscreveram no Torneio.
Ad fica rígido ao meu lado.
— Isso não é verdade, Galadriel — expõe o combatente, deixando o
violão no chão. — Eu tenho meus motivos para participar do Torneio.
— Eu espero que não seja por causa da Phoenix — fala Kaida.
— Phoenix? — pergunto, sentindo ciúmes.
— O Ad não contou a você sobre a ex-namorada dele?
— Cala a boca, Kaida — Ad fala entre os dentes. — Não se fala de
defunto na frente das pessoas que não tem nada a ver com o passado.
Kaida e Galadriel são chamados para mais uma apresentação de canto
e música.
— Toma jeito, Ad — aconselha o velho, estendendo as mãos para
Kaida ficar de pé. — Se não quiser acabar morrendo sem necessidade.
Ad simplesmente ignora o comentário.
— Eu vou buscar um pouco de frutas para você.
— Quem é Phoenix? — insisto, curiosa. — Você sabe que não precisa
esconder nada de mim, não sabe?
Ad fica de pé e segura meu queixo.
— Esqueça esse nome, princesa. Eu volto já — encerra o assunto.
À medida que a noite avança, a fogueira projeta sombras mais longas
e o céu estrelado se revela acima de nós. O calor do fogo aquece meu corpo,
enquanto a música ressoa pelos confins da floresta.
— Camille, minha vida. Está gostando da Trope? — pergunta Opho,
o rapaz que nos recepcionou na chegada. Ele usa um boné preto que
combina com a barba grossa do rosto. A camiseta laranja por cima da
branca o deixa meio sexy diante dos meus olhos.
— Opho.
— Posso te fazer uma pergunta? — pergunta, sentando ao meu lado.
— Desde que não seja invasiva.
— Claro que não. Só queria saber se Ad já fez sexo contigo ou se
ainda esta enrolando como ele sempre faz.
Seguro um suspiro. Que tipo de pergunta é essa?
— Sexo comigo? — gaguejo. — Ad e eu somos apenas amigos.
Ele semicerra os olhos e abre um sorrisinho malicioso no canto da
boca.
— Eu não acredito em você. Ad nunca traria uma mulher para
conhecer a Trope se não estivesse transando com ela.
Finjo que não estou surpresa com a revelação.
— Ad é livre para fazer o que quiser, Opho. Você não pode rotulá-
lo…
— Foi assim com a Phoenix.
— Phoenix? — questiono, tentando manipulá-lo: — Com ela foi uma
situação diferente. Ele não nutria tanto interesse por ela.
— Não nutria tanto interesse por ela? Ad mataria 300 homens só para
satisfazer os desejos de Phoenix. Aquela vagabunda. Confesso que não
gostava dela — comenta, como se eu soubesse do assunto. — Fico feliz que
ela foi embora.
— Embora? Para onde ela foi?
— Para a terra dos outros. Ela conheceu um estrangeiro e engravidou
dele na primeira noite que saíram. Ad ficou transtornado. Ele queria matar o
cara, mas o pai dele não deixou. Depois disso, Phoenix foi expulsa de casa e
o cara a pediu em casamento. Ela, como estava na merda, aceitou e foi
embora com ele.
Fico chocada.
— Quando isso tudo aconteceu? — questiono, lembrando da conversa
que tive com Ad durante o jantar no jardim do palácio.
— Quatro meses antes do Torneio começar. Sabe, as vezes acho que
Ad se inscreveu no evento para esquecer a vida do lado de fora do palácio.
Eu não o julgo. Talvez faria o mesmo. Mas é arriscado demais.
Franzo o cenho, não entendendo a última frase.
— O que é arriscado demais?
Opho olha dentro dos meus olhos antes de responder:
— Que ele se transforme em uma pessoa completamente diferente do
que é, descontando sua mágoa no status que o nome da família real pode
proporcionar.
Ad volta carregando um cesto repleto de frutas.
— Espero que goste de jabuticaba — fala ele, abrindo um sorriso para
mim.
— Nunca comi, mas eu posso experimentar — digo, perdida na
conversa que tive com Opho.
Kaida termina de cantar a última frase e a Trope aplaude com bastante
entusiasmo.
— Você tem cheiro de realeza — comenta Opho, se aproximando do
meu pescoço.
— Ela trabalha no palácio desde que nasceu. Você queria o que? Que
ela cheirasse a esterco de porco como você? — zomba Ad, sentando no
chão.
— Não enche, Ad. Sorte que eu estava com saudades de você.
— Eu também…
Pego uma jabuticaba e coloco na boca.
— Gostou?
Faço uma careta reprimida. O sabor da fruta é bastante azedo.
— Acho que ela prefere comer banana — diz Opho, rindo da minha
expressão.
Cuspo no chão.
— Essa fruta tem um sabor horrível. Nunca imaginei que colocaria
comida para fora da boca em público — digo, limpando minha língua com
a manga do casaco.
— Sempre tem a primeira vez — brinca Ad. Ele descasca uma banana
para mim.
— Não precisa se sentir constrangida, Camille. Você não é da realeza
— fala Opho, colocando duas jabuticabas na boca. Ele mastiga com
bastante vontade enquanto observa a minha reação. — Tem gostinho de
limão.
— Que tipo de limão você come?
— Os que são plantados lá no quintal de casa. Eles tem um gosto
completamente diferente daqueles que são comprados nas vendas da cidade.
De repente, todos nós escutamos o som de um raio ao longe.
— Recolham todas as coisas e me sigam! — grita Kaida.
A Trope obedece o mandado imediatamente.
— O que está acontecendo? — pergunto.
— Vem vindo chuva por aí — responde Opho, me ajudando a ficar de
pé. — Kaida nos levará para a caverna.
— Caverna?
— Não se preocupe, Camille. Não vamos ficar por muito tempo —
fala Ad, me entregando a banana descascada. — Coma enquanto recolho os
instrumentos musicais.
— Mas eu preciso voltar para o palácio, Ad.
— A chuva na floresta é perigosa demais, Camille. Tenho certeza que
não daria tempo de vocês chegarem lá — explica Opho, segurando um
monte de sacolas nas mãos.
Olho na direção de Ad, assustada.
— Não tenha medo, princesa — sussurra no meu ouvido. — Eu cuido
de você.
CAPÍTULO 26

Faz mais de 25 minutos que não para de chover.


Observo as paredes rugosas e as estalactites pendentes que formam
um cenário surreal dentro da caverna, como se eu estivesse em um santuário
esculpido pela passagem do tempo.
O som da chuva do lado de fora é como uma sinfonia rítmica, um
tamborilar constante que ecoa na entrada da caverna. Gotas d'água resvalam
pelas pedras e formam pequenos riachos temporários que serpenteiam pelo
chão irregular. O aroma da terra molhada permeia o ar, intensificando a
atmosfera enigmática e terrena da gruta.
A luz escassa que penetra na caverna cria sombras nas formações
rochosas. Percebo que a luz muda com a intensidade da chuva, coisa que
nunca havia vivenciado na minha vida. Cada goteira cintila quando recebe
uma enxurrada de água que escorre do lado de fora.
Enquanto admiro o espetáculo da tempestade, um sentimento de
calma e isolamento se instala dentro de mim. Estou protegida da fúria da
chuva, mas não sei se o meu coração está protegido dos sentimentos que
sinto por Ad. Ele tem se mostrado um ótimo companheiro até agora, porém
as coisas que Opho me disse pairam nos meus pensamentos. E se ele ainda
sente algo pela tal Phoenix? Será que Ad está me usando para esquecer o
romance frustrado que ele teve?
O calor da terra, que se infiltra sutilmente nas paredes, contrasta com
a frescura trazida pela chuva lá fora e isso me traz de volta a realidade que
me encontro neste momento.
— Está tudo bem com você? — pergunta Ad, se aproximando de
mim.
Assinto com a cabeça enquanto envolvo meus braços ao redor de mim
mesma.
— Conseguiram armar as barracas?
— Sim. Galadriel queria montar uma para nós, mas eu disse que logo
iríamos para o palácio quando a chuva parasse.
No fundo da caverna, eu conto sete barracas azuladas, em volta das
coisas que a Trope trouxe. Há mais ou menos 20 pessoas abrigadas aqui
dentro, dando a entender que a cada barraca há três indivíduos alojados.
— Não parece que foi difícil.
— O solo da caverna é firme, mas úmido, então as estacas se fixaram
com firmeza.
A prima de Ad, Calantha, nos entrega duas garrafas de água.
— Obrigada — agradeço.
A menina faz um reverência e gelo imediatamente.
— De nada, princesa.
— Como você sabe quem eu sou? — pergunto, preocupada.
Ad segura o braço da prima e olha dentro dos olhos dela.
— Você contou para alguém?
— Não, Ad. Calma, solta o meu braço — reclama Calantha, se
desvencilhando da mão do primo. — Eu não sou louca de alertar a Trope
sobre a princesa. Não quero ter a minha cabeça cortada por ser considerada
fofoqueira.
Dou risada do comentário dela.
— Você tem juízo — digo.
— E a senhorita não. O que está fazendo aqui fora? Sabia que existem
pessoas que odeiam a família real? Galadriel é uma delas. Por favor, vá
embora o mais rápido possível quando a chuva cessar.
— Se Galadriel encostar um dedo em Saravana, eu mesmo mato ele
com minhas mãos. Do lado de fora do palácio, ela é responsabilidade
minha. Mato e morro por ela se for preciso.
As palavras de Ad enchem o meu coração de ternura. Como não me
apaixonar por ele? A maneira como se refere a minha pessoa é fofa demais.
Seu jeito despreocupado de viver, longe das formalidades, se torna um
costume no qual eu começo a encontrar conforto.
Ao observá-lo, percebo como ele está conectado tanto ao lado de
dentro quanto ao lado de fora do palácio, como se cada raio de sol e gota de
chuva fossem parte de sua essência. Seus olhos profundos revelam uma
sabedoria calculada, um conhecimento que transcende as páginas dos livros
e os protocolos da nobreza. Nele, descubro que encontro uma pureza de
espírito que é inspiradora para a minha vida. É como se o caipira trouxesse
consigo um pedaço do mundo exterior para o meu reino fechado. Seu
mundo, embora tão diferente do meu, torna-se uma fonte de descoberta para
a minha existência.
— Eu tenho certeza disso, primão. Bom, sendo assim, foi um prazer
conhecê-la pessoalmente, princesa — agradece Calantha, abrindo um largo
sorriso para mim.
— Eu que agradeço por manter esse segredo em silêncio — digo,
retribuindo o sorriso.
— Quer que eu abra a tampa para você? — pergunta Ad.
— Não. Não precisa.
— Eu insisto, Camille. Não quero que você quebre as unhas —
zomba.
— Muito engraçado. Não sou tão delicada quanto você pensa.
— Não?
— Claro que não.
Ele coloca as mãos sobre as minhas e volto a sentir o mesmo arrepio
percorrer meu corpo. O seu toque mexe tanto comigo que quase perco as
forças das pernas
— Princesa! — fala Ad, segurando meus braços para eu não cair no
chão. — Você está bem?
— Sim. Estou. É… você ainda me acha mimada? — pergunto,
trazendo a conversa do jantar no jardim do palácio à tona.
Ele me olha confuso.
— Como é que é?
— Você disse que me achava mimada, fresca e com uma expressão
facial estranha — digo, sentindo meu rosto corar pelo insulto.
Ad dá risada e aproxima a boca perto da minha.
— Eu estava brincando com você, princesa. Só queria ver como você
reagia às minhas provocações. Entenda como se fosse um teste de
intimidade.
Seu hálito, quente e suave, bate nos meus lábios.
— E? Eu passei nesse teste? — pergunto, esquecendo quem sou e
onde estou.
Seus olhos, tão profundos quanto os céus noturnos que se revelam do
lado de fora da caverna, encontram os meus. Há uma expressão de ternura e
coragem no seu olhar, algo que ultrapassa a diferença entre os mundos que
habitamos. O silêncio, carregado de antecipação, nos envolve enquanto ele
se aproxima mais um pouco, e eu posso sentir meu coração acelerando,
como um poema prestes a ser declamado.
E então, Ad não espera nem mais um segundo e me beija.
Seus lábios encontram os meus num encontro tímido, como se a
magnitude desse momento nos pegasse de surpresa. O calor do seu beijo
irradia em minha pele, uma sensação nova e eletrizante que envolve nossos
corpos como um feitiço.
O sabor do beijo é agridoce, misturando a doçura da descoberta com a
intensidade da paixão que se desenha no horizonte. Nossos lábios dançam
em harmonia, uma dança que transcende as barreiras sociais e revela a
simplicidade poderosa do amor. Sinto a ternura e a promessa contidas em
cada toque, como se nossos destinos estivessem entrelaçados desde tempos
imemoriais.
Aos poucos, o beijo se aprofunda, como se estivéssemos nos
perdendo em um reino só nosso, onde o julgamento e a expectativa não têm
lugar. Na penumbra da madrugada, nosso reino particular se revela entre as
sombras. O caipira, com sua simplicidade encantadora, e eu, a princesa cujo
coração balança em compasso com o inesperado.
A brisa suave do crepúsculo da noite parecem sussurrar segredos
enquanto nos perdemos neste momento desesperado. A maneira como ele
acaricia o contorno da minha cintura é cheia de ternura, como se estivesse
admirando uma pedra preciosa com as mãos.
Quando finalmente nos separamos, o mundo ao nosso redor parece ter
se transformado. Parece que tudo se tornou mais límpido e com significado.
— Eu acho que estou gostando de você — confessa Ad, cheirando
meu pescoço.
Não acredito que um caipira, um homem da terra, cujo coração
despretensioso acabou de conquistar o meu reino interno.
— Eu acho que estou gostando de você também — admito, fechando
os olhos.
A chuva do lado de fora cessa, e percebo que está na hora de
voltarmos à nossa realidade.
CAPÍTULO 27

Os primeiros raios do sol começam a se infiltrar pela janela,


pintando o meu quarto com tons suaves de rosa e dourado.
Desperto do sono, ainda envolta na névoa dos sonhos, e observo
como a aurora pinta o céu com promessas renovadas. O novo dia surge com
a mesma ternura com que o beijo de Ad tocou meus lábios na noite passada.
As lembranças daquele momento ainda continuam frisadas em minha
mente, como uma melodia suave que ecoa pelas paredes do meu coração. A
simplicidade do beijo, a troca de promessas silenciosas que se escondiam
em cada toque, ainda pairam no ar como uma magia que desafia a lógica da
realeza.
Ad beija excepcionalmente bem. Suas habilidades nesse aspecto são
verdadeiramente notáveis.
Cada detalhe do beijo é um capítulo que se desdobra em minha
memória, como se aquele momento singular fosse um tesouro a ser
guardado.
Não posso contar para ninguém. Nem mesmo para Fadye, que
manifestou interesse nele, apesar de manter um relacionamento proibido
com meu primo Talles. Até agora, não a questionei sobre o motivo de ter
mantido esse segredo escondido de mim. É como se ela não confiasse na
minha amizade completamente.
Suspiro. Não consigo sentir tristeza diante dessa atitude dela,
especialmente depois da experiência de ontem.
Depois que saímos da caverna, Ad me beijou duas vezes antes de
chegarmos à entrada do túnel que dava acesso aos aposentos do palácio.
Não fizemos nenhum tipo de promessa repentina, mas combinamos guardar
segredo até o fim do Torneio do Sol Nascente.
Por outro lado, fico preocupada. E se Ad não sobreviver nas próximas
etapas? Uma sensação de angústia invade meu coração, mas me esforço
para direcionar meus pensamentos para aspectos mais positivos.
Percebo que minha cama parece mais macia, e tenho vontade de tê-lo
aqui comigo, agora, só nós dois, entregues a beijos que desafiam as alturas
da madrugada. Talvez despidos, com suas carícias percorrendo minhas
pernas enquanto meus lábios exploram cada centímetro da pele dele.
A luz do sol acaricia meu rosto, trazendo consigo a clareza da
realidade. Eu sou uma princesa com responsabilidades e deveres que
transcendem as barreiras do coração. Contudo, a chama do inesperado, a
centelha do amor que brotou na escuridão da noite, permanece acesa dentro
de mim. Eu quero Ad Pomodoro ao meu lado, e estou determinada a tê-lo
comigo. O caipira não me conquistou com títulos ou riquezas, mas com a
autenticidade da sua alma e a simplicidade de seus gestos.
Abro um sorriso.
Quem diria que eu me apaixonaria pelo homem que me insultou no
primeiro encontro.
A porta do meu quarto se abre e Louise entra com graciosidade.
— Princesa? Por que ainda está deitada na cama? — pergunta,
preocupada.
— Não consegui dormir cedo ontem a noite — minto, espreguiçando-
me.
— Lendo outra vez?
— Como sempre, Lo. Obrigada por ter me indicado um livro tão bom.
Um sorriso contente ilumina seu rosto, enquanto ela se acomoda na
ponta da minha cama.
— Preciso te contar um babado, mas estou com medo da sua reação.
A tensão no meu quarto aparece como um acender de luz.
— Está acontecendo alguma coisa? — pergunto, me ajeitando na
cama.
Louise me olha de soslaio, suspira fundo e fecha os olhos.
— Estou tendo um caso com o seu primo — dispara.
Por alguma razão, não me sinto surpresa. Louise é bonita e tem todo o
direito de se relacionar com o sangue real. Diferente de Fadye, ela não foi
comprada, mas convidada a trabalhar no palácio desde cedo.
— Que maravilha, Lo! Quem é o felizardo desta vez? — pergunto,
tentando deixá-la mais à vontade com o assunto.
— Esse é o problema. Estou meio que envolvida romanticamente com
o Léo.
Léo. O primo que tirou a minha virgindade.
— E qual é o problema? — questiono.
— Qual é o problema? — pergunta de volta, com os olhos
arregalados. — Saravana, você teve um caso com ele.
Gelo. Como ela sabe daquela informação?
— Quem te contou isso?
— Por favor, princesa. Não é necessário confrontá-lo, mas foi o
próprio Léo quem abriu o jogo. Ele me propôs um namoro duas semanas
antes da viagem. A confissão me pegou de surpresa, embora eu apreciasse
muito a companhia dele. Respondi que precisava ponderar sobre o assunto e
que daria uma resposta ao retornar. Preocupado com minha indecisão, ele
compartilhou esse segredo comigo, afirmando que só revelaria algo tão
sério porque realmente gostava de mim.
Não tenho dúvidas de que meu primo é um cretino. No entanto, não
sinto preocupação alguma ao ouvir isso da boca de Louise. Ela não é uma
pessoa invejosa como minha prima Michelle, irmã do Léo, que faria
qualquer coisa para me ver enforcada diante do povo de Mirassol.
— Louise, se você se comprometer a manter esse segredo, nada de
mal nos afetará. O que compartilhamos no passado foi resultado de atitudes
inconsequentes de adolescentes. — afirmo.
Ela assente e suspira aliviada.
— Então você aprova? — pergunta, segurando minhas mãos.
— Claro que aprovo — respondo, retribuindo o gesto carinhoso.
Fadye abre a porta e entra no meu quarto, trazendo uma bandeja de
café da manhã.
— O que a senhorita aprova? — pergunta ela, colocando a bandeja
em cima da cama. — Também gostaria de saber da fofoca.
Louise olha na minha direção e balança a cabeça negativamente.
— Eu aprovo que Louise seja a responsável por todos os detalhes do
meu casamento — invento, pegando um pedaço de torrada preta com geleia
de algodão.
— Até mesmo os detalhes do seu vestido de casamento? — questiona
a minha auxiliadora, desconfiada. — E como a Madame Zahir ficará diante
disso?
Mordo um pedaço da torrada e beberico um pouco de café.
— Deixa que eu cuido de tudo, Fadye. Afinal, eu sou a noiva, não é?
Fadye concorda com a cabeça e corre para o banheiro.
— Está tudo bem com você? — pergunta Louise, indo atrás dela.
Escuto minha amiga vomitar.
— Desculpem. Faz quatro dias que não paro de vomitar — fala ela,
gritando do banheiro. — Já tomei tudo quanto é tipo de chá e parece que só
piora.
Louise para no meio do caminho.
— Será que você está grávida? — pergunta.
Engasgo com a torrada.
— Grávida? Fadye? — indago, completamente desorientada.
Fadye não responde e sua atitude me deixa desconfiada.
— Não acredito que ela esteja grávida, Lo. Fadye não tem se
relacionado com ninguém há um bom tempo. Não é verdade? — pergunto,
elevando um pouco a voz para garantir que ela me ouça.
Ela vomita novamente.
De repente, alguém bate na porta.
— O palácio todo resolveu me visitar hoje? — pergunto, incomodada.
Louise vai até a porta e a abre logo em seguida.
A serpente da minha prima Michelle surge e indaga à minha amiga se
tem permissão para entrar. Lo me encara, e eu concordo com a cabeça,
embora esconda uma expressão de desagrado logo pela manhã.
— Com licença, princesa — fala, e faz uma reverência. Michelle está
usando um vestido laranja tão chamativo que só pode estar querendo
chamar a atenção do sol. — Nossa, que espaço lindíssimo.
— Diga logo, Michelle — digo, de forma ríspida. — Você está
atrapalhando o meu café da manhã.
Minha prima olha para a minha cama e lambe os lábios, como se
estivesse com fome.
— Perdão, princesa. A rainha solicitou que eu a chamasse
pessoalmente. Ela está organizando uma reunião familiar e deseja a
presença da senhorita imediatamente — anuncia, me deixando com um frio
na barriga.
— Ela relatou qual era o assunto? — questiono, ficando de pé.
— Negativo.
— Tudo bem. Louise, escolha um vestido simples para que eu possa
comparecer aos aposentos da rainha — peço, seguindo em direção ao
banheiro. — Michelle, pode terminar o meu café da manhã, se quiser. E
Fadye, calma ai que estou chegando para te ajudar.
CAPÍTULO 28

A lareira está ligada. A rainha nunca deixa a lareira acesa numa


reunião.
Os aposentos da minha mãe são uma prova de elegância e
grandiosidade, refletindo a majestade e o poder que ela detém sobre o reino.
Ao adentrar nos aposentos, sou recebida por um esplendor que se
desdobra em cada detalhe delicadamente planejado. As paredes são
adornadas com tapeçarias tecidas, retratando cenas dos campos de Mirassol.
Os tons calorosos e opulentos das tapeçarias contrastam com a madeira
escura dos móveis, criando uma atmosfera de glamour e vaidade ao mesmo
tempo. O chão é coberto por tapetes luxuosos, cujos padrões
complementam a riqueza visual do ambiente.
No centro do quarto, há uma cama de casal com dossel, envolta em
cortinas de seda que fluem como cascata. Os tecidos são bordados com fios
de ouro, adicionando um toque de realeza à peça central do aposento. Os
travesseiros e almofadas cuidadosamente arrumadas conferem um aspecto
da personalidade da minha mãe. Ao redor do quarto, móveis finamente
esculpidos, como cômodas e mesas, exibem o talento dos artesãos do reino.
Objetos de valor, como jóias e artefatos preciosos, estão exibidos em
vitrines elegantes, exibindo a riqueza acumulada ao longo dos anos.
As janelas permitem a entrada de luz e oferecem vistas deslumbrantes
dos jardins do palácio. As cortinas de tecido amarelo podem ser puxadas
para garantir a privacidade quando necessário, criando uma atmosfera mais
íntima e isolada.
Um canto do aposento é dedicado a uma pequena área de descanso,
onde a rainha pode refletir sobre documentos reais, cartas e registros do
reino.
Há uma escrivaninha entalhada e uma cadeira estofada
proporcionando um espaço elegante para minha mãe conduzir seus assuntos
reais. E é ali mesmo que Téssia, Arnaldo, Cássia e Rubens estão em pé,
parados um ao lado do outro, esperando pela presença dela. Tanto minha
irmã mais velha quanto a outra usam vestidos verdes escuros, a cor
preferida da rainha Elizabelly. Noto que meus cunhados escolhem os ternos
azul marinho, não fugindo do tradicional.
Na extremidade oposta do aposento, uma área de vestir revela um
guarda-roupa esplêndido, repleto de trajes dignos de uma monarca. Vestidos
bordados com pedras preciosas e detalhes dourados estão dispostos de
maneira organizada, esperando para serem escolhidos de acordo com a
ocasião.
— Vocês chegaram cedo — zombo, me posicionando ao lado de
Rubens.
— Se eu fosse você, pouparia as palavras no dia de hoje — avisa
Arnaldo, irritado.
A porta do banheiro bate com um estrondo e minha mãe aparece no
quarto.
Por mais que a rainha esteja com o semblante fechado, é impossível
não admirar a beleza dela. Os cabelos loiros, longos e fluidos como raios de
sol, adicionam um toque etéreo à sua presença. Cada fio parece ser banhado
pela luz, emitindo um brilho sutil que acentua sua aura real. A seda dourada
de suas madeixas cai graciosamente, moldando suavemente o rosto de
traços nobres. Eles escorrem em cascata pelos seus ombros e costas, uma
cascata luxuosa que adiciona uma dimensão surreal.
O penteado que ela escolheu para o dia de hoje é uma extravagância
de elegância, combinando praticidade e beleza. Às vezes, ela opta por
deixar seus cabelos soltos, permitindo que caiam em ondas suaves ao redor
de seu rosto. Em outras ocasiões, minha mãe os prende em elaboradas
tranças ou coques, exibindo uma sofisticação que ecoa através dos séculos
de tradição.
O vestido que ela usa é simplesmente perfeito. Um tecido verde
perolado que cobre toda a extensão do seu corpo, deixando só os braços à
mostra.
Téssia e Cássia estão de cabeça baixa, demonstrando respeito e
submissão.
— Você não aprende nunca, Saravana — a rainha chama a minha
atenção. — Enquanto não souber os costumes reais de cor e salteado, não
herdará o trono de Mirassol.
Abaixo a cabeça, não para demonstrar arrependimento, mas para
esconder o deboche que preenche o meu rosto.
— Ao longo desta semana, tenho ouvido reclamações e
descontentamentos das pessoas que valorizam este reino com unhas e
dentes. Tenho visto atitudes mal planejadas serem feitas publicamente,
manchando a conduta da família real diante do povo — fala minha mãe,
andando de um lado para o outro. — Não posso mais ignorar o eco destas
vozes e atitudes no meu reino. Reconheço que algumas queixas são justas, e
sinto profundo pesar por qualquer descontentamento que tenha permeado na
vida das pessoas. Sei que há questões prementes que clamam por solução, e
que muitos têm sofrido em silêncio. Hoje, o rei se encontra bastante
enfermo, e essa responsabilidade recai sobre os meus ombros. Não quero
mais ser uma rainha pacífica com a minha própria família, envolta por um
véu de indiferença. A partir de agora, comprometo-me a estar mais próxima
de todos os assuntos reais. Não desejo governar um reino onde as queixas
superem os louvores, mas sim um reino onde o bem-estar de todos seja a
prioridade.
Um frio agonizante sobe pela minha espinha e sinto um pouco de
falta de ar. É claro que a rainha está dizendo sobre tudo o que tenho feito
desde que o Torneio do Sol Nascente começou. Minhas atitudes provaram
que sou uma pessoa desalinhada diante das ordens dos meus pais, e que eu
preciso ser contida antes que o povo se rebelasse contra nós.
— Anuncio hoje, diante de todos, que instituirei mudanças
significativas em nossas práticas governamentais. Convocarei conselhos
abertos, onde as preocupações do povo serão ouvidas diretamente por mim
e por aqueles a quem confiei a administração do reino. Vamos implementar
medidas concretas para corrigir as injustiças e construir um reino mais justo
e equitativo. Saravana, você tem infringido várias regras estabelecidas pelo
seu pai. É vergonhoso saber que tenho uma filha tão estúpida e sem
entendimento como você. Entretanto, quatro destas regras são meramente
impossíveis de serem ignoradas.
Se eu fosse uma princesa em busca pela aprovação dos meus pais,
estaria chorando horrores neste exato momento. Mas tudo o que sinto é
medo. Medo da rainha querer punir não somente a mim, mas Ad também.
— Compreendo que palavras por si só não são suficientes, e que
ações impensáveis devem ser reformuladas através de ações educacionais.
Obediência gera estabilidade. Não quero ser uma rainha que reina sobre um
trono de queixas, mas sim uma líder que constrói pontes para um futuro
ainda mais brilhante e controlado.
— Qual será minha punição, então? — pergunto, antes mesmo que
ela diga.
— Por outro lado, todos concordam que, se não fosse pela fragilidade
de Arnaldo, minha filha não teria cometido erros incorrigíveis — acusa
minha mãe, mudando o peso das minhas acusações para o meu cunhado.
— Perdão, senhora? — questiona ele, dando um passo para frente.
— Você ainda continua sendo um homem frouxo, imaturo e
delinquente, Arnaldo. Confiamos a apresentação do Torneio do Sol
Nascente em suas mãos. E olha o estrago que ele deixou em dois dias de
evento. Isso mostra o quanto você não está preparado para assumir o trono
de Mirassol.
— Senhora, eu não tive culpa alguma. Pode perguntar para as pessoas
que estiveram com a gente durante os acontecimentos no Torneio. No
segundo dia, os guardas reais me impediram de subir ao palanque e tomar o
controle da luta entre os combatentes na arena — justifica ele, com um leve
tremor na voz. — Não acho justo que eu tenha que ser punido pelas ações
de outra pessoa.
A rainha se aproxima do meu cunhado e dá um tapa no rosto dele.
— Você não é nada, Arnaldo. Seu ponto de vista não tem autoridade
alguma para julgar se o que estou fazendo é justo ou não. Embora Saravana
tenha cometido erros significativos, sua maior falha foi não conseguir
controlá-la.
Arnaldo permanece calado, olhando fixamente para o chão.
— Mamãe, não seria prudente reconsiderar o que aconteceu? —
pergunta Téssia, também levando um tapa bem forte no rosto.
— Calada! Eu não estou me dirigindo a você, Téssia. — repreende a
rainha, fuzilando minha irmã mais velha com os olhos. — Não concorda
com as minhas atitudes, minha filha? Acha que também deve ser punida por
não aconselhar o seu marido de merda no momento que ele precisava de
conselhos? — pergunta, irritadíssima.
Téssia não devia ter aberto a boca para falar nada.
— Desculpa, senhora — sussurra ela, reprimindo o choro.
— Vou perguntar pela última vez: todos estão de acordo que Arnaldo
foi o único responsável pelos acontecimentos indesejáveis dos últimos dias?
Todos, com medo da rainha, falam que sim
Minha mãe assobia, e em resposta, o carrasco entra no aposento.
Vestindo um capuz negro que oculta completamente sua figura, ele assume
sua posição no centro do quarto, enquanto carrega uma banqueta de pedra e
um machado pequeno.
— Em decorrência de quatro violações, o carrasco procederá à
remoção das extremidades dos quatro dedos da sua mão direita, exceto o
polegar. — ordena minha mãe, se sentando na poltrona de veludo vermelho.
Dois guardas reais surgem e, agarrando cada um dos braços do meu
cunhado, o arrastam até a posição indicada pelo carrasco.
— Isso não é justo! — ele grita, descontrolado.
O carrasco se aproxima e soca o estômago dele.
— Arnaldo, quanto mais você protestar, mais será punido. Lembre-se,
menos é mais— avisa a rainha Elizabelly, se abanando com um leque
rosado.
Arnaldo funga feito uma criança, mas obedece e permanece em
silêncio.
Sinto pena dele. Ele sabe que se continuasse protestando poderia
perder a cabeça diante do povo. Foi assim que aconteceu com a última
auxiliadora da minha mãe, Florencia. Ela foi acusada de roubar duas jóias
reais dos aposentos do papai e não conseguiu provar sua inocência. Até
hoje, ninguém encontrou as joias no palácio, deduzindo que Florencia havia
vendido na cidade.
O carrasco pega a mão de Arnaldo e a posiciona em cima da
banqueta. Percebo que meu cunhado está suando horrores, engolindo em
seco várias vezes, com medo do que está prestes a acontecer.
Por outro lado, sei que ele merece. É evidente que ele tem maltratado
Téssia há algum tempo. Ele não tem sido um bom marido para ela.
A tensão no aposento da rainha é quebrada quando a primeira
machadada desce sobre o primeiro dedo dele. Sangue espirra para fora da
bancada, sujando o chão com pequenas gotículas avermelhadas. Ele solta
um grito animalesco, com a cabeça virada para o outro lado, enquanto seu
corpo treme violentamente. O carrasco não espera que o sangue dele esfrie,
e com uma agilidade perfeita desce o machado no segundo dedo.
Desta vez, posso ver o pedacinho de carne voar em direção ao
carpete, desaparecendo entre os fios do tapete. O urro de Arnaldo invade
meus ouvidos e me encolho um pouco. É agoniante demais presenciar uma
cena dessas, embora eu tenha participado de punições piores.
Enquanto isso, a rainha boceja tranquilamente, como se estivesse
assistindo a mais um evento de artesanato do reino. O corpo relaxado
mostra o quanto ela se sente à vontade naquela situação de extrema
violência.
O carrasco, sem esperar muito, dá a terceira machadada e limpa a
espessura de ferro da arma com a própria vestimenta. Ele não parece se
importar muito com o que está fazendo. Por causa do capuz, não consigo
enxergar o rosto dele, mas acredito que seja um homem velho pela posição
curvada do corpo.
O som da última machadada ecoa, estilhaçando pedaços da banqueta
e rachando boa parte do objeto de pedra. Arnaldo, então, perde as forças nas
pernas, caindo de joelhos no chão, contorcendo-se e gemendo com
intensidade. Os guardas reais o soltam com brutalidade e saem do aposento
como se nada estivesse acontecido.
— Espero que isso sirva de lição para todos vocês — finaliza minha
mãe, cruzando as pernas.
Os guardas reais, que haviam se retirado momentos antes, regressam
com expressões de espanto, os olhos arregalados e a palidez tomando conta
de suas faces.
— Senhora? — cumprimenta o da direita, fazendo a reverência
tradicional.
— Prossiga — permite a rainha.
— Lamento interrompê-la, mas recebemos a notícia que o rei acabou
de falecer.
CAPÍTULO 29

O rei Kalayo foi encontrado morto.


Não demorou muito para que a notícia não só se espalhasse no
palácio, mas em todo o reino. Com a tecnologia implementada nos drones,
Eldarion, o comentarista de Mirassol, anuncia ao público o que aconteceu
naquela manhã.
— Nobre povo de Mirassol. É com pesar profundo que me dirijo a
vós neste momento de luto. Hoje, nossos corações estão envoltos na sombra
da perda, pois compartilho a dolorosa notícia do falecimento de nosso
amado rei Kalayo, que partiu deste mundo para o próximo — fala Eldarion,
com lágrimas nos olhos. Ele usa o terno azul marinho tradicional da realeza.
— O rei não foi apenas o governante de Mirassol, mas também um farol de
sabedoria, liderança e compaixão. Seu reinado foi marcado por uma
dedicação incansável ao bem-estar do povo, pelo desenvolvimento do reino
e pela promoção da justiça e igualdade. Ele deixa um legado de
generosidade, integridade e visão para o futuro que inspirará as gerações
vindouras — continua, ajeitando o cabelo lambido com uma das mãos. —
Neste momento de dor, solidarizo-me com cada um de vós, pois sei que a
partida de um líder tão amado deixa um vazio profundo em nossos
corações. O rei não era apenas o governante, mas também um pai para
todos nós, guiando-nos com sabedoria e cuidado ao longo dos anos.
Fadye, que está sentada ao meu lado, funga enquanto segura a minha
mão. Papai tinha um apreço especial por ela, embora não confessasse isso
diante da família real.
— Como reino, enfrentamos agora a tarefa de continuar seu legado,
honrando seus ensinamentos e trabalhando juntos para manter a grandeza
de Mirassol. Em meio à tristeza, devemos encontrar força na unidade e na
memória do rei, que sempre nos instigou a sermos melhores e a construir
um futuro brilhante para nosso amado reino.
— Por que ele usa palavras como se o rei não estivesse mais entre
nós? — pergunta Louise, sentada na outra ponta da minha cama. — Ele não
sabe que família real acredita que nenhum dos seus entes queridos deixa o
reino de verdade?
— Ele precisa dizer de uma forma que mexa com os corações das
pessoas, Lo. Elas acreditam que a morte é o fim da vida, por isso usam
preto em demonstração de luto. Não podemos mudar a essência daquilo que
elas creem. — explico, voltando meus olhos para o televisor que Fadye
instalou em cima da cômoda.
Percebo que Eldarion está nos aposentos da rainha, tomando todo o
cuidado para não esbarrar em nada.
— O luto é um processo difícil, e cada um de nós o enfrentará de
maneira única. No entanto, peço que nos apoiemos mutuamente durante
este período difícil. Juntos, compartilharemos a tristeza, a saudade e,
eventualmente, encontraremos consolo nas lembranças que cultivamos com
o rei ao longo dos anos — incentiva, olhando de soslaio para algo que está
fora da câmera do drone. — Tem certeza, alteza?
— Tenho, Eldarion — ouço a voz da minha mãe.
Então, inesperadamente, o drone vira para a esquerda e minha mãe
aparece, com o mesmo vestido, refletida no televisor. Ela não parece triste,
mas alguma coisa na sua expressão entrega o peso da responsabilidade que
ela carrega.
— Tem certeza que essa imagem está sendo transmitida ao vivo? —
pergunto para Louise, desconfiada. É muito estranho saber que tudo
acontece em tempo real.
— Sim, princesa. Se quiser, podemos ver o pronunciamento
pessoalmente — sugere.
Faço que não com a cabeça.
— Povo de Mirassol. Hoje, reúno-me convosco com um coração
pesaroso e uma alma mergulhada em tristeza profunda. Neste momento, a
sombra da tristeza paira sobre nosso reino, e a perda de um líder, de um
amigo, de um esposo, é um golpe que ressoa em nossos corações. O rei,
cuja vida foi dedicada ao serviço deste reino, cuja paixão e compromisso
eram inabaláveis, agora descansa em paz. Sua falta será sentida
profundamente, não apenas por mim, mas por todos vós que
compartilharam deste reino sob sua liderança — expõe a rainha, olhando
para o comentarista de vez em quando. Acho que ela também não está
acostumada com a tecnologia. — A morte do rei não marca o fim de uma
era, mas o início de um capítulo em que sua memória nos inspirará a
continuar construindo um futuro que honre seu espírito e os valores pelos
quais ele lutou. Que a paz nos envolva neste momento difícil, que a
memória do rei nos inspire a seguir adiante com coragem e sabedoria —
finalizada.
O drone volta a capturar a imagem pomposa de Eldarion.
— Muito obrigado, alteza — agradece ele. — As cerimônias fúnebres
em homenagem ao rei serão organizadas para proporcionar um momento de
despedida respeitoso e digno somente para a família real. Por outro lado,
convido todos a participarem através dos seus televisores, compartilhando
memórias e prestando suas homenagens a um líder que dedicou sua vida ao
bem de Mirassol. Que a luz da memória do rei continue a brilhar em nossos
corações, guiando-nos com sua inspiração e sabedoria. Que Mirassol
permaneça forte e unida neste momento difícil. Que a paz e a serenidade
estejam sobre todos nós. Atenciosamente, Eldarion, comentarista da corte
real.
A imagem de Eldarion desaparece, deixando uma tela preta no
televisor.
— Você está bem, princesa? — pergunta Fadye, ficando de pé.
— Sim, obrigada.
— Você precisa de alguma coisa? — pergunta Louise, desamassando
a barra do meu vestido. — Parece cansada.
Faço que não e abro um sorriso em forma de agradecimento.
Por mais que eu ame o meu pai, ainda não sinto o peso do luto sobre
mim. Tudo parece ser mais uma etapa natural da vida, onde a jornada dele
atingiu o momento predestinado.
O rei Kalayo, embora severo com algumas coisas, nunca foi um
homem mal. Sempre, quando tinha tempo, preparava jantares e cerimônias
no palácio só para observar a família reunida. Entretanto, ele nunca
permitiu que fossemos pessoas dependente da sua presença. Quando
necessário, Kalayo era frio e extremamente arrogante com a gente.
Mantenho essa consciência e talvez seja por isso que não me sinto
abalada
Alguém bate na porta e Fadye segue para atendê-la.
— Como está a princesa? — ouço a voz de Madame Zahir perguntar
do lado de fora.
— Ela está bem, Madame — responde minha amiga. — Ela assistiu o
pronunciamento da rainha pelo televisor e está ciente de quais serão os
próximos passos.
— Diga a ela que lamento muito a morte do rei — sussurra,
segurando um soluço.
— A senhora não quer entrar e conversar com ela?
— Não, eu não quero incomodá-la agora, mas preciso que pergunte a
ela se os competidores do Torneio do Sol Nascente podem vir desejar seus
pêsames pelo luto.
Fadye franze o cenho e olha para mim.
— A senhorita escutou? — balbucia, completamente desalinhada.
— Sim. Diga a ela que mande-os comparecer um por um, por favor. E
se possível, acompanhados por guardas reais. Não quero que minha mãe
surte se souber que eles vieram até meus aposentos sozinhos — aconselho,
sentindo um leve sentimento de alívio crescer dentro do meu coração.
Assim, terei a oportunidade de estar perto de Ad por alguns minutinhos.
Fadye avisa a Madame Zahir e fecha a porta.
— O que você acabou de fazer? — pergunta ela, horrorizada.
— Os competidores só querem demonstrar seu apoio neste momento
difícil, querida. Não vejo nenhum problema nisso — digo, prendendo o
meu cabelo no alto da cabeça. — Aliás, terei a chance de conhecê-los um
pouco. Eu não sei quase nada sobre eles.
— Sara, você sofreu um atentado terrorista dentro do seu próprio
quarto e…
Felpudo mia dentro do meu guarda-roupa e Louise dá um pulo.
— O que foi isso? — pergunta Lo, olhando para todos os lados.
— Eu acho que veio debaixo da cama — indica Fadye, se agachando
para verificar.
— Não é possível que tenha um bicho aqui dentro.
— Impossível. Os guardas já o teriam eliminado do lado de fora. Não
existe a possibilidade de qualquer animal adentrar o palácio sem ser
detectado por eles — fala minha auxiliadora, voltando a ficar de pé. —
Nada aqui embaixo.
Felpudo mia outra vez e as duas olham na minha direção.
— O que foi? — pergunto, totalmente despreocupada.
Fadye cerra os olhos e coloca as mãos na cintura.
— Onde está o bichano, princesa?
— Promete que o deixarão aqui? — questiono.
— A senhorita sabe que não pode ter animais no palácio. Se alguém
descobre que você esconde um gato dentro do seu quarto, e que nós
sabemos de tudo… eu não quero nem cogitar o que pode acontecer com a
gente — adverte Louise, olhando para o banheiro.
Fadye vai até o guarda-roupa e abre as portas com agressividade.
Felpudo, que estava encolhido em cima dos meus casacos, se assusta e pula
nos braços dela.
— Sai de cima de mim, monstrinho — grita ela, jogando meu gato no
chão.
Felpudo corre na minha direção e pula para a cama, tremendo de
medo.
— Ele não é um monstrinho, Fadye — digo, acariciando o gatinho. —
Monstros são as pessoas que maltratam os animais.
CAPÍTULO 30

Estou sentada de frente para uma pequena mesa de madeira. Ela está
repleta de petiscos como amendoim, granolas, frutinhas de verão, sementes,
bolinhas de chocolate, pedaços de cogumelos com açúcar e mais um
montão de coisas para saciar o apetite dos competidores.
Pedi a Louise que permanecesse ao lado de fora do meu quarto,
recepcionando a chegada de cada um. Fadye está no quarto dela,
descansando um pouco. Minha amiga estava meio pálida e parecia que ia
desmaiar a qualquer momento. Não sei o que de fato está acontecendo com
ela, mas estou bastante preocupada com sua situação.
Ouço uma leve batida na porta e, sem esperar por uma resposta,
Sandrino Belchior adentra no meu quarto com uma presença imponente.
Reparo que ele usa um traje digno da realeza. Ele é alto, não muito forte,
mas tem ombros largos. O cabelo cortado de forma baixa combina muito
com seu rosto arredondado. O queixo é pontudo, assim como as orelhas,
fazendo que ele se pareça a um duende de contos de fadas
Dois guardas reais surgem logo atrás dele, posicionando-se na
entrada.
Observo enquanto Sandrino ajusta os detalhes do seu traje, as dobras
meticulosas e os adornos que conferem uma aura de dignidade. Terno azul
marinho. Ele se aproxima e faz uma reverência graciosamente executada
antes de se sentar à mesa.
— Boa tarde, princesa. Como a senhorita está se sentindo? —
pergunta, de forma robotizada.
— Belchior, certo? Eu estou bem, obrigada. É um prazer finalmente
conhecê-lo pessoalmente — digo, soando um pouco forçada demais. —
Aceita uma xícara de chá?
Ele olha para a mesa e faz uma careta engraçada.
— Não estou acostumado com essas formalidades — comenta,
gesticulando para tudo o que Fadye preparou. — Mas não, obrigado. Eu só
queria dizer que sinto muito pela morte do rei Kalayo.
Pego uma xícara de porcelana e coloco um pouco de chá de maracujá.
— Há um tempo determinado para tudo, Sandrino. A vida é curta e
por isso devemos aproveitá-la — complemento, colocando o bulé de volta à
mesa. — Alias, vi como você tem se saído no Torneio até agora. Meus
parabéns.
Ele abre um sorriso abobado no rosto.
— Estou dando o meu melhor para vencer, princesa. Sabe, eu me
imagino com a senhorita quase todas as noites, acredita? Sempre acordo
excitado.
Paro a xícara de chá no meio do caminho, deixando-a suspensa no ar.
— Perdão? — pergunto, enojada. — Acho que entendi errado.
— Eu quero me casar com a senhorita. É um sonho que tenho desde a
adolescência, sabe? Quero encher esse palácio de criancinhas e ensiná-las a
como ser um combatente de verdade. Já pensou nos nomes que daremos aos
nossos filhos? — pergunta, sem nenhum pingo de noção. Quem esse babaca
pensa que é para cogitar minha vida interligada com a dele?
Coloco a xícara de chá na mesa e cruzo os braços.
— Quem disse que quero ter filhos, Belchior? — questiono.
— Bom… eu escutei o Ad conversando com Oed numa madrugada
sobre a senhorita ter mencionado isso no jantar. — revela, um pouco
envergonhado.
Reprimo um sorriso. Então Ad anda inventando coisas para os
competidores?
— Ele deve ter interpretado errado, querido — digo, maquinando
uma mentira para manchar a reputação de Ad. — Na verdade, acho que ele
é um baita de um fofoqueiro. Ficou sabendo que ele peidou durante o jantar
inteiro? Eu quase fui parar na ala hospitalar de tanto gás tóxico que inalei.
Sandrino não consegue segurar a risada e gargalha exageradamente,
batendo as palmas das mãos na mesa. Tenho quase certeza que ele tem
problema.
— Esse cara é muito nojento, princesa. Acredito que se a senhorita
tivesse o poder de eliminar alguém, ele estaria fora do palácio faz tempo —
fala, limpando as lágrimas dos olhos.
Faço que sim com a cabeça, sorrindo para ele.
— Pode ter certeza que sim — finalizo. — Muito obrigada por ter
vindo, Sandrino Belchior. E boa sorte na próxima etapa.
Ele fica de pé, faz uma reverência e sai do quarto, se segurando para
não dar risada outra vez.
Esse, sem dúvidas, foi o pior encontro que já tive em toda a minha
vida. Nunca conversei com um cara que fosse tão convincente assim. Se
Sandrino soubesse que o eliminado pelas minhas mãos seria ele próprio,
sairia chorando horrores daqui.
A porta do meu quarto se abre e Oed entra sem cerimônias. Ele veste
uma camisa amarela desbotada e calças jeans, totalmente o oposto de
Belchior.
— Você pensa que está entrando na sua casa, caipira? — pergunto,
indignada.
— Boa tarde, princesa — cumprimenta, fazendo a reverência. — Eu
já estou em casa.
Ergo uma das sobrancelhas.
— Desde quando você decidiu se estabelecer aqui definitivamente?
Ganhou o Torneio e eu nem fiquei sabendo? E sobre o seu casamento,
quando foi? Mudou de nome pelo menos? Não estou muito animada em
dividir meu sobrenome com a família Assunção — provoco, ajustando uma
mecha do meu cabelo.
Oed praticamente se joga na cadeira e começa a devorar tudo o que
ver pela frente.
— Pensei que nunca me levaria para um encontro.
— Encontro? — questiono, bebendo um pouco de chá. — Isso aqui é
uma reunião de negócios, meu bem. Minha família e eu decidimos que você
não precisa mais permanecer no palácio.
Ele para de comer e olha na minha direção, assustado.
— Você está brincando comigo, não está? — pergunta, mastigando
uma frutinha de verão lentamente. — Eu ainda nem comecei a me divertir
de verdade. Cadê suas primas?
— Respeite a minha familia, idiota. Não brinque com a presença das
minhas primas — repreendo, chutando a perna dele por debaixo da mesa.
— Sim, estou brincando com você. Mas bem que eu gostaria de mandá-lo
para casa ainda hoje. Sua presença me irrita.
— Coisas de melhores amigos.
— Melhores amigos? Quem disse que somos melhores amigos?
— Eu disse e determinei que somos os melhores dos melhores amigos
do mundo.
— Era só o que me faltava. Eu, a princesa mais linda, inteligente e
desejada do reino de Mirassol se tornando a melhor amiga de um caipira de
sobrenome Assunção! — zombo, achando graça disso tudo. — Até parece,
querido. Se toca.
— Se toca você, minha melhor amiga do meu coração.
— Se Fadye souber de uma coisa dessas, ela mata você — aviso.
— Fadye? Quem é que se chama Fadye? É nome de peixe?
Dou um tapa na mão dele.
— Respeite o nome da minha melhor amiga, saco de merda.
Oed para de comer novamente.
— Saco de merda? Desde quando você usa esse tipo de palavreado?
— pergunta, fingindo estar impressionado comigo. — O príncipe Pomodoro
não vai gostar nada disso.
Prendo a respiração.
— Pare de ficar cogitando que eu e Ad somos um casal. Isso só vai
deixar os outros competidores contra ele — argumento, incomodada. —
Você está querendo colocar lenha na fogueira antes do tempo?
Oed dá de ombros e coloca uma boa quantidade de amendoim na
boca.
— Eles já suspeitam que Ad é o favorito da princesa Saravana —
expõe, cuspindo fragmentos do alimento na mesa.
— Você passa fome no palácio?
— Por que a pergunta?
— Quero que me responda, por favor — insisto, afastando minha
xícara para o canto da mesa. Oed é uma pessoa sem classe e viver no
palácio exigiria muito dele.
— Acho que eles deveriam me dar mais comida, entende? Eu como
por quatro pessoas, sem brincadeira — fala, limpando a boca com a mão.
— Eu queimo muitas calorias diariamente devido à minha prática de correr
todas as manhãs.
Louise aparece na porta e sinaliza para eu terminar a conversa.
— Obrigado por ter vindo passar esses minutinhos comigo, Oed —
digo. — E pode deixar que providenciarei mais comida para você.
Ele pega um guardanapo, enche de petiscos e guarda no bolso.
— É por isso que eu gosto de você, princesa — agradece, fazendo
uma reverência curta.
Oed se prepara para sair, quando eu o interrompo:
— Só mais uma coisa. Você não está participando do Torneio do Sol
Nascente por causa de mim. Então é o que? — questiono, curiosa por saber
a verdade.
— Não, não estou — responde, coçando a cabeça. — Na verdade,
estou arriscando a minha vida só para passar um tempo longe da minha
família, recebendo um pouco de glamour — diz ele e sai.
Percebo que Oed nem sequer comentou sobre a morte do rei.
CAPÍTULO 31

Nunca parei para pensar que, talvez, alguns dos competidores estejam
aqui só para fugir da dura realidade da vida. Desconheço as adversidades
que eles enfrentam do lado de fora do palácio. As verdadeiras dificuldades
que encaram permanecem ocultas para mim.
No entanto, arriscar a própria vida como forma de escapar dos
problemas não se alinha com a minha visão de enfrentar as questões. Pode
ser que Oed tenha dissimulado ao mencionar o consumo excessivo de
alimentos como uma maneira de repor calorias. Ele pode ter vivenciado
momentos de extrema escassez, nos quais tomou decisões difíceis sobre
quem teria acesso à comida em determinados dias.
Embora o rei Kalayo tenha implementado medidas para evitar tais
situações, ouço rumores de que as pessoas fora do palácio se endividam
para suprir outras necessidades.
A porta se abre e Ad entra com uma expressão séria no rosto. Ele
veste uma camiseta de manga comprida em tom de azul, acompanhada de
calças jeans e botas pretas.
— É muito bom ver você, caipira — brinco, me sentindo mais
relaxada com sua presença aqui.
Ele faz uma reverência rápida.
— Posso me sentar? — pergunta, rispidamente. O que ele tem agora?
— Algum problema, Ad? Parece que está meio zangado — comento,
empurrando a cadeira dele com a ponta do pé. — Claro que pode.
— Obrigado — responde, se sentando com cuidado. — Sinto muito
pela morte do rei Kalayo, princesa. Acredito que seja um momento difícil
para a senhorita e toda a sua família. Saiba que eu sempre estarei aqui para
o que precisarem de mim.
Olho dentro dos seus olhos. Ad está incomodado com alguma coisa,
mas tenta esconder o problema com falas decoradas. Será que eu fiz alguma
coisa errada?
— Obrigada, de verdade — agradeço.
— Posso tomar uma xícara de chá?
Faço que sim com a cabeça.
Ad escolhe a menor xícara do tabuleiro e se serve logo em seguida.
Percebo que ele está presente fisicamente, mas sua mente parece vagar por
terras distantes. Seu sorriso, habitualmente radiante, está agora tingido por
uma sombra de preocupação, e seus olhos, normalmente expressivos,
parecem esconder algo.
Aproximo a minha mão na dele com cautela, percebendo que algo o
está perturbando, algo que ele hesita em compartilhar. O vestígio de um
suspiro escapa de seus lábios, mas ele não retribui o gesto com carinho.
No entanto, conheço Ad tempo suficiente para discernir quando algo
o está afligindo.
— O que está acontecendo, Ad? Você parece distante hoje —
pergunto, com um certo medo da resposta dele.
Seus olhos encontram os meus por um breve momento. Então, ele
balança a cabeça, como se tentasse afastar os pensamentos que o
atormentam.
— É só... são coisas da vida, princesa. Nada para se preocupar —
responde, cabisbaixo.
Instintivamente, pego suavemente em seu braço, transmitindo que
estou aqui para ele, independentemente do que esteja incomodando sua
alma.
— Ad, você é mais do que um simples amigo. Se algo estiver pesando
no seu coração, compartilhe comigo, por favor — peço, segurando as
lágrimas para não chorar. Tudo o que eu não quero agora é ter que me
afastar do homem que mudou o meu modo de ver o seu mundo.
Ele solta um suspiro resignado, seus ombros relaxando um pouco ao
reconhecer que talvez seja hora certa.
— É a responsabilidade, princesa. Às vezes, penso em como a minha
vida seria aqui no palácio, e percebo que não sou digno para tal
merecimento. Você tem sangue real. Eu sou só mais um caipira falido que
ainda precisa dos sustentos do pai. Não sei se sou capaz de dar o mundo
para você. Eu não tenho dinheiro para satisfazer os desejos mais simples
que um dia você possa ter. As expectativas, as decisões difíceis... tudo isso
— desaba, olhando para as nossas mãos entrelaçadas.
O silêncio paira por um momento enquanto absorvo suas palavras, e a
primeira coisa que descubro é que aquelas palavras não são do Ad que eu
conheci no dia de ontem. Não. Essas palavras são de um Ad manipulado
pela corte, ludibriado por alguém mais influenciável do que ele.
— Quem te disse isso? — questiono, sentindo uma raiva crescer
dentro de mim. — Quem foi a pessoa que colocou essas coisas na sua
cabeça?
Ele demora um tempo antes de confessar:
— O Duque, pai de Salomé, visitou o filho hoje de manhã. E então,
você já sabe o resto. Ele sussurrou palavras de desânimo no meu ouvido,
mostrando o porque seu filho teria mais chance com você do que eu. E ele
está certo. Salomé tem tudo o que você precisa, princesa. Embora ele esteja
aqui só por causa do status social.
— Status social? — pergunto, franzindo a testa. — Do que você está
falando?
Ele me olha com ternura antes de responder:
— Salomé só está no palácio porque foi ameaçado pelo pai. Ele nem
queria ter voltado para o reino, porém o Duque tem planos para o filho
cuidar da administração de Mirassol — explica.
Um desejo de algo mais profundo do que a amizade tradicional
estoura dentro do meu corpo. E é neste momento que, guiada pelo impulso
do meu coração, seguro o rosto de Ad entre minhas mãos e o beijo com
uma intensidade que reflete as emoções que estamos sentindo. O beijo é
carregado de significado, uma troca de confiança e apoio mútuo. Seus
lábios respondem aos meus com uma entrega que transcende as
formalidades da corte. É como se, naquele instante, o mundo ao nosso redor
desaparecesse, deixando apenas nós dois envoltos na magia do clima.
Assim que nos separamos, olhamos um para o outro, e vejo uma
mistura de surpresa e entendimento nos seus olhos.
— Princesa...— começa ele, mas eu o interrompo com um gesto
suave.
— Ad, não precisamos de palavras agora — sussurro e o beijo
novamente.
Ad é o tipo de homem que me deixa excitada só pelo toque. Ele tem
um jeito de acariciar minha pele diferente, concentrado, relaxante. Eu
poderia deixá-lo fazer o que quiser neste momento, mesmo com os dois
guardas reais parados na porta de entrada do meu quarto. Eu não me
importo se eles estão presenciando nosso amor de camarote. Eles foram
treinados para guardar segredos no palácio. Eu poderia transar com meu
caipira agora que eles permaneceriam parados, talvez excitados por
assistirem a dois jovens apaixonados.
Ad coloca uma das mãos sobre a minha coxa, e deixo escapar um
gemido suave. Como eu quero que ele me jogue na cama agora. Como eu
quero que ele me trate como sua garota exclusiva. Como eu quero que ele
entre e saia dentro de mim. Que gema quando me ouvir gemer…
Louise pigarreia na porta e quase caio para trás.
— Princesa, Félix está esperando a vez dele — fala, constrangida pelo
o que viu.
— Só mais um minuto, Lo — falo, arrumando meu vestido.
Ad fica de pé e arruma a calça com dificuldades.
— Espero que isso mostre o quanto eu quero você, Ad Pomodoro.
Não importa o que o Duque disse, porque eu nunca me casaria com o filho
dele. É você que precisa vencer o Torneio do Sol Nascente. É você que eu
quero como o meu campeão. E não aceito nada abaixo disso — disparo,
com a boca seca.
Ad me olha de cima a baixo e diz:
— Como quiser, minha princesa.
CAPÍTULO 32

— Você tem alguma coisa de diferente — digo, enquanto observo


Félix Rodrine se aproximando. Ele realmente tem um corpo bastante
infantil, mas as maçãs do seu rosto são fortes e proeminentes. A camisa
branca de botão é estilosa e combina com a calça moletom preta. Os cachos
castanhos dos seus cabelos são grossos e hidratados.
— Acho que é a minha aparência, princesa — responde, dando de
ombros. — Minha família não é daqui.
— Verdade? — questiono, interessada. — Você não nasceu no reino?
Félix faz a reverência e se senta.
— Sim. Eu, meus pais e meus avós somos de Mirassol, porém meus
bisavós nasceram em outra nação.
— Sério? E como ela se chama?
— Eu não faço ideia. A única coisa que os meus pais me contaram foi
que meus bisavós eram pessoas bastante ricas e estavam cansados de
viverem num país opressivo e repleto de tecnologia — explica, um pouco
empolgado com a conversa. — Eles decidiram gastar todas as suas riquezas
na compra de duas passagens só de vinda para Mirassol.
— E por que eles escolheram o reino? — pergunto, limpando a mesa
com as mãos.
Ele pensa um pouco antes de responder:
— Parece que eles queriam morar em um lugar mais arcaico.
— Está chamando o meu reino de antiquado?
— Menos evoluído, eu diria. A tecnologia era tão abundante neste
país que eles estavam fartos dela. Sem contar que havia um jogo
televisionado de perguntas e respostas suicidas, onde apenas uma única
pessoa poderia ser o vencedor e voltar para casa montado no dinheiro —
revela, parecendo indignado.
— Que horror! Acho que não gostaria de viver num país assim —
argumento, pensativa.
Ele assente.
— Mas não é tão diferente de Mirassol, a senhorita não acha? —
interroga ele.
Ele está certo. O Torneio do Sol Nascente também é um evento
carniceiro onde apenas um combatente fará parte da família real e receberá
todo o direito de um Sub-Príncipe. Não é tão diferente assim.
— Eu concordo com você, Félix. O reino segue o mesmo padrão.
— Pois é — diz, pegando um pedaço de tortinha de limão. — Depois
da Terceira Guerra, o mundo tomou medidas inimagináveis.
A Terceira Guerra. O evento mais marcante de toda a humanidade. O
mundo nunca mais foi o mesmo depois que a guerra acabou. Países inteiros
foram dizimados. Pessoas morreram sem saberem que estavam sendo
mortas. Mirassol se isolou do resto da humanidade global e nunca mais se
aliou a ninguém. Por sorte o reino sempre havia sido paficico, negociando
apenas pequenas quantidades de carvão e madeiras para os países vizinhos
— que infelizmente não existem mais. Cerca de 10% da zona sul de
Mirassol foi atingida pela Guerra, mas ninguém se feriu. As fronteiras dos
dois lados do reino foram trancadas e, desde então, para entrar aqui é
preciso investir muito dinheiro e comprar uma pequena residência nos
campos mais afastados da cidade.
— E quais são seus planos, caso você vença o Torneio do Sol
Nascente? — mudo de assunto.
— Acho que me casaria com você e a levaria para conhecer a fazenda
da minha família. Lá temos dois cavalos, cinco porcos e onze cachorros
espalhados pelo quintal.
Sinto dó de suas palavras. Félix é um rapaz extremamente fofo, mas
não é para mim. Ele combinaria perfeitamente com Fadye, se ela não
estivesse de rolo com o meu primo Talles.
— E se caso você não ganhe? O que tem em mente?
Félix me olha com os olhos brilhando de expectativas.
— Princesa, eu não sou um homem que perde batalhas — responde,
rindo do próprio comentário. — Eu vou vencer.
— Nem todos os homens que dizem ser bom, conseguem vencer uma
guerra — disparo, percebendo o quanto sou insensível.
Félix pega mais um pedaço de tortinha de limão e diz:
— Vou contar um conto para a senhorita. Era uma vez, em uma
pequena fazenda aninhada nos confins de uma terra distante, havia um
menino estrangeiro chamado Luca. Trazido por caminhos incertos da vida,
ele desembarcou naquelas terras como um viajante solitário. Com olhos
curiosos, ele olhava para os vastos campos abertos, mas seu coração ainda
guardava cicatrizes da incerteza. Luca cresceu acreditando que a força
residia apenas na musculatura física e na destreza nas batalhas, conceitos
que ele associava ao significado de ser forte. No entanto, a vida tinha outros
planos para o jovem. As tarefas diárias na fazenda eram árduas e exigiam
mais do que a força bruta. Luca descobriu que a verdadeira força era
encontrada na paciência, na resiliência e na habilidade de aprender com as
adversidades. Ele aprendeu a plantar e cultivar, a respeitar o ciclo natural
das estações e a conviver em harmonia com os animais. Ele percebeu que a
verdadeira força não era apenas a capacidade de enfrentar desafios, mas
também a humildade para aprender com eles. E assim, o menino que
pensava ser fraco descobriu que, na simplicidade da vida rural, ele
encontrou a verdadeira essência da força interior — termina, mordiscando a
tortinha.
— Que linda história, Félix — digo, realmente impressionada. — Não
entendi o que você quis dizer com ela.
— Eu sou o menino. A fazenda é o palácio. As tarefas diárias são as
etapas do Torneio do Sol Nascente. Os animais são os outros competidores
— explica, batutando o dedo indicador na ponta da mesa. — Está mais
claro agora?
— E quem sou eu? — questiono.
— A senhorita é o ciclo natural das estações.
Pego um guardanapo e seco a camada de suor que se formou no meu
rosto.
— Mas você esqueceu de um detalhe importante, querido — digo.
— A vida tinha outros planos para o jovem?
— Exatamente, Félix. A vida tem outros planos para o jovem —
enfatizo, deixando bem nítido a minha decisão.
CAPÍTULO 33

Depois da conversa com Félix, resolvo tomar um banho bem gelado.


Felizmente, Salomé não havia sido liberado pelos médicos para ir até
os meus aposentos. Então, tenho o resto do dia inteiro para pensar e refletir
sobre tudo.
No silêncio dos meus aposentos, onde a luz do findar da tarde tece
sombras suaves nas tapeçarias, reflito sobre a dolorosa realidade que a
morte do rei Kalayo trouxe a este reino. A morte, com sua implacável
inevitabilidade, se tornou uma presença estranha que paira sobre o trono
que um dia ele ocupou com graciosidade. O rei, meu pai, cuja sabedoria e
orientação moldaram o curso deste reino, agora descansa em um reino além
do nosso alcance, embora eu sinta a sua presença nos corredores do palácio.
O luto é um fardo pesado, mas também uma homenagem que carrego
em meu coração. Sinto a responsabilidade de continuar o legado do meu
pai, mas, ao mesmo tempo, me vejo confrontada com a realidade de um
reino que agora trilha um caminho incerto. A ausência de um rei é como
uma lacuna na corte, uma ausência que ressoa nos conselhos não dados, nas
risadas não reprimidas e nas decisões que agora recaem sobre os ombros da
minha mãe.
No entanto, não posso deixar de ponderar sobre o futuro deste reino
sem a presença física do rei Kalayo. Ele entendia tudo. Ele sabia de tudo.
Ele era um homem bastante experiente. Colocar outra pessoa no lugar dele
será uma tarefa difícil.
Louise entra no meu quarto de fininho e se aconchega na cama
comigo.
— Como você está, princesa?
— Até agora está tudo bem, obrigada — respondo.
Sei que Lo não veio até aqui só para saber sobre o luto que carrego,
mas porque ela quer saber o que está acontecendo entre Ad e eu.
— Foi o maior beijão que já presenciei no palácio — comenta ela,
apertando o meu braço. — Não sabia que a senhorita beijava tão bem.
— Não é porque eu sou uma princesa que não sei o que é paquerar de
vez em quando, Louise.
— Percebi — responde, brincando com a barra do meu edredom. —
Você realmente gosta dele ou é apenas diversão?
Fecho os olhos.
— Eu estou sendo leiloada no Torneio do Sol Nascente, Lo. Acha
mesmo que eu estaria brincando com os competidores do evento? Sei lá. Só
aconteceu. Estou deixando o rio flui naturalmente, sem colocar empecilhos
desnecessários. Mas respondendo a sua pergunta, sim, eu realmente gosto
dele.
— Entendi. E por que você não acelera o processo e pede para a
rainha cancelar o Torneio? Depois de tudo o que aconteceu, acredito que ela
consideraria o pedido.
Lembro da punição de Arnaldo e sinto um arrepio.
— Preciso contar uma coisa, mas quero que prometa sigilo. Ninguém
pode saber — aviso, falando em tom sério para ela.
— Morrerá no túmulo comigo — responde, fazendo um gesto com as
mãos sobre a boca, como se fosse um zíper sendo fechado.
— Minha mãe puniu as mãos de Arnaldo por causa das minhas
atitudes no Torneio.
Louise se endireita na cama.
— Como assim? O que o seu cunhado tem a ver com isso? —
questiona.
— Ela acredita que se ele fosse um homem preparado para assumir o
reino, controlaria minhas atitudes. Para a rainha, Arnaldo se mostrou frouxo
e delinquente. Não sei quais foram as quatro infrações que ela considerou as
mais graves, mas mandou o carrasco arrancar as pontas de quatro dedos
dele.
Ela tampa a boca com as mãos, horrorizada.
— Princesa, ele vai odiá-la para sempre.
— Não precisava me lembrar disso, Lo — ironizo. — Mas a minha
maior preocupação é com o Duque. Ele andou amedrontando Ad na ala
hospitalar, chamando-o de pobre e dizendo que ele não tem chances de
vencer o Torneio — compartilho.
— E o que a senhorita pretende fazer quanto a isso?
Não respondo. A verdade é que não tenho nenhuma ideia que possa
desclassificar Salomé do evento. Não que eu queria prejudicar o filho do
Duque, mas teriam menos chances do pai dele atormentar a vida de Ad
enquanto estivesse no palácio.
— Salomé precisa ser desclassificado de forma pacífica — digo.
Louise assente, ajeitando os cabelos cacheados.
— Compreendo a sua preocupação, no entanto, não considero a
desclassificação do filho do Duque a abordagem mais sensata — diz,
apertando a minha mão.
— Eu só estou refletindo. Não se preocupe — explico. — Tem falado
com o Léo?
— Ainda não. Ele está profundamente envolvido nas
responsabilidades do pai. Aparentemente, uma avaliação abrangente está
ocorrendo entre os guardas reais. Soube também que a rainha solicitou os
talentos de Madame Zahir para desenhar uniformes mais adequados a eles.
Parece que as vestimentas agora serão em verde perolado, atendendo às
novas diretrizes da sua mãe, em substituição ao azul tradicional.
— Enquanto minha mãe não decidir quem será o novo rei de
Mirassol, acredito que muita coisa vai acontecer. Arnaldo não tem a
aprovação dela. Rubens é despreparado para assumir o cargo agora.
Erasmos jamais aceitaria a proposta.
— Só resta você e o seu futuro campeão — cita.
— Negativo. Depois das minhas atitudes precipitadas, minha mãe não
ia querer uma rebelde diante do povo, ditando ordens e criando leis.
Imagina só? — questiono, totalmente desacreditada na possibilidade. —
Acho que ela vai sediar um outro Torneio.
— Um marido para ela?
— Um marido para ela. Alguém que já tenha experiência com o
palácio. Talvez os guardas reais do papai ou até mesmo a corte.
— Por que não o Fredd? Ele era a pessoa mais próxima do rei Kalayo.
— Fredd nunca aceitaria tomar o lugar do meu pai.
Louise permanece em silêncio, pensando em alguma coisa mais
profunda.
De repente, Felpudo sai do guarda-roupa e pula na minha cama, se
escorando entre nós. A fofura do bichano me deixa com vontade de apertá-
lo bem forte.
— Você precisa dar um jeito nesse gato, princesa. Se sua mãe
descobrir, é capaz de fazer a senhorita matá-lo com as próprias mãos. E a
senhorita nunca mais dormirá em paz.
Acaricio a cabeça peluda do Felpudo.
— Se a rainha fizer uma coisa dessas, eu mesma rasgo todos os
vestidos preferidos dela — ameaço, fazendo Louise dar risada.
CAPÍTULO 34

Estamos todos no velório do rei.


A sala do velório está banhada por uma atmosfera pesarosa. Noto que
as velas tremulam nos castiçais enquanto minha família se reúne para
prestar as últimas homenagens ao meu pai. O aroma suave de incenso
permeia o ambiente, criando uma sensação de reverência que paira no ar.
Ao entrar na sala, meu coração parece apertado diante do caixão
adornado, onde repousa o corpo do monarca. As cortinas pesadas e escuras
emolduram a cena, ampliando a gravidade do momento.
Minha família está reunida no canto, consolando-se entre eles. Minha
mãe está sentada com dignidade na poltrona vermelha, vestida de branco,
com seu olhar fixo no rosto sereno do rei. Suas mãos seguram um lenço
delicado, que ela usa para enxugar as lágrimas que teimosamente deslizam
por seu rosto. É muito raro vê-la chorar e sinto um nó na garganta por
presenciar aquilo.
Minhas irmãs, Téssia e Cássia, estão recebendo os convidados que
eram mais próximos do papai. Percebo que meus tios, Orophin e Tauron,
também vieram para homenagear o irmão mais velho. O palácio nunca foi o
lar deles, uma vez que suas responsabilidades os mantiveram ocupados com
a gestão da própria fábrica na cidade. Orophin se dedica à parte financeira,
negociando madeiras finas e projetando móveis luxuosos para empresas
estrangeiras. Enquanto isso, Tauron assume as demais responsabilidades
relacionadas ao funcionamento da fábrica.
— Meus pêsames, princesa — escuto a voz do meu primo Aranel,
filho do meu tio Tauron, atrás de mim.
— Aranel, querido. Muito obrigada — agradeço, assentindo com a
cabeça. Meu primo está muito diferente desde a última vez que o vi. Os
ombros agora são largos e proeminentes enquanto os músculos dos braços
marcam sobre o terno branco perolado. — Você cortou o cabelo — digo.
— E você deixou os seus crescerem. Ficou bonito — elogia, olhando
para os drones que voam de um lado para o outro. — E essas porcarias?
— Os drones? Papai inventou de implementá-los durante o Torneio
do Sol Nascente. Confesso que não sou fã desse tipo de exposição, pois os
considero excessivamente invasivos. Contudo, diante da decisão de manter
o velório fechado ao público, a corte optou por transmitir nos televisores os
últimos momentos do rei antes de enterrá-lo.
— Política. É por isso que não quero morar no palácio — admite,
dando de ombros. — E como estão as coisas com o evento? Está curtindo o
momento?
Reviro os olhos.
— Nunca senti prazer em ver sangue derramado na minha frente,
Aranel. Não vejo a hora de tudo isso terminar.
Eudora, filha do meu tio Orophin surge no meu campo de visão e
acena para mim. O vestido branco que ela usa é bem simples, com um leve
babado na cintura.
— Esse velório parece mais uma festa de casamento do que qualquer
outra coisa — reclama ela, se aproximando da gente. — Eu sinto muito,
princesa — diz, fazendo uma reverência.
— Eudora, é muito bom ver você novamente — digo, abraçando-a
com carinho. — Obrigada por ter vindo.
— Eu também não entendo essa obrigação de todo mundo usar
branco no velório de alguém — argumenta Aranel, ajeitando os cachos
dourados. — Vocês são supersticiosos demais, princesa.
Não respondo, pois não quero discutir com ele agora.
Eldarion, comentarista do reino, entra no meio da multidão,
segurando um drone nas mãos. Ele se posiciona ao lado do caixão do papai
enquanto a Madame Zahir arruma o terno dele.
— Não é perigoso? — pergunta minha prima.
— Perigoso?
— Esses drones, sobrevoando nossas cabeças, capturando tudo o que
estamos conversando aqui dentro.
— As imagens que estão sendo transmitidas para o reino estão
silenciadas, Eudora. O áudio só é aberto quando Eldarion ou qualquer outra
pessoa está anunciando um comunicado importante — explica minha irmã
Téssia, surgindo entre nós.
— Téssia, querida. Eu sinto muito pela morte do rei — fala Eudora,
fazendo uma reverência ao mesmo que Aranel. — Fiquei sabendo que o
príncipe Arnaldo está bastante doente e não pôde comparecer ao velório.
Minha irmã olha de soslaio para mim.
— Sim. Infelizmente a imunidade dele é fraca — explica ela.
— Quando o rei Kalayo foi encontrado morto, prima? — pergunta
Aranel.
— Ontem de manhã. Ele estava muito enfermo.
Rubens solta uma gargalhada alta ao falar com Orophin, chamando a
atenção de todos.
— Meu pai e suas piadas engraçadas no momento errado — comenta
Aranel, coçando os olhos.
O drone nas mãos de Eldarion flutua no ar, mirando a câmera no rosto
do comentarista. Madame Zahir se afasta e pede para as pessoas mais
próximas falarem mais baixo.
— Reino de Mirassol, bom dia. É com profundo pesar e o coração
repleto de tristeza que me encontro diante de vós neste momento solene,
para partilhar os detalhes emocionantes do velório do nosso amado rei
Kalayo. Nossos corações estão pesados, mas ao mesmo tempo, queremos
celebrar a vida e o legado extraordinário do rei que, por tantos anos, guiou
nossos destinos com sabedoria e compaixão — inicia ele, apontando para o
salão. O drone faz um giro de 360 graus, mostrando todos os cantos do
aposento. — O velório, que se desenrola nesta sala, é uma reverência que
todos nós nutrimos por Sua Majestade. A família real está vestida com
roupas brancas que refletem a seriedade do momento. Os membros da corte
e os súditos leais passam em fila, curvando-se diante do caixão do rei
enquanto suas expressões são marcadas por um misto de luto e gratidão.
— Isso é realmente necessário? — pergunta Eudora, horrorizada com
o que está presenciando.
— Para o reino, sim — responde Téssia.
— Este é um velório que não apenas marca a despedida de um
monarca, mas celebra a união e o apoio que a família real dá uns aos outros.
Que essa atitude seja de exemplo para todos nós. Que este momento de
despedida seja repleto de respeito e reverência, à altura do rei que partiu,
mas cujo espírito continuará a guiar-nos nos dias que se seguirão. Que a paz
esteja sobre todos nós neste momento de tristeza coletiva. Muito obrigado
— finaliza. O drone desliga e cai na mão dele.
Enquanto os membros da família real se reúnem em torno do rei, sinto
o peso da coroa sobre a cabeça da minha mãe, lembrando de que o reino
agora repousa em seus ombros. Ela não está nenhum pouco feliz com a
cerimônia, agoniada para terminar o mais rápido possível e voltar aos seus
aposentos.
— Você já falou com a mamãe hoje? — pergunta Téssia, se
aproximando do meu ouvido.
Nego com a cabeça.
— Desde a punição de ontem, eu não saí mais do meu quarto. Não sei
se estou preparada para conversar com ela pessoalmente. Alias, sinto muito
pelo o que aconteceu com o Arnaldo, Téssia. Não era a minha intenção
prejudicá-lo — justifico.
— Eu sei, querida. O problema agora não é esse. Não sei como as
coisas funcionarão a partir de hoje. Mandamos algumas pessoas para as
ruas, entrevistando o povo para sabermos se está tudo sob o controle. Neste
momento, precisamos focar em não desestabilizar a crença de Mirassol e
fazer com que as pessoas se sintam protegidas e acolhidas pela rainha.
— Donabella e o príncipe Erasmos comparecerão ao enterro? —
pergunto.
— Infelizmente não. Eles levariam quase três dias para chegar ao
palácio — responde, arrumando a barra do vestido. — Mas fiquei sabendo
que a probabilidade deles participarem do baile é grande.
Sou pega de surpresa.
— Baile?
— Eu não devia revelar agora, mas Eudora sugeriu fazermos um baile
para distrair o povo enquanto resolvemos se haverá um rei de imediato ou
não. Parece que existe um baile chamado Dança da Meia Noite na cidade
que é muito famoso. É um momento para as pessoas relaxarem um pouco e
esquecerem dos problemas da vida.
Meu coração quase sai pela boca. Téssia não pode estar se referindo
ao mesmo baile que ouvi pela boca de Fadye e Ad, pode?
— Será aberto para todos? — questiono.
— Não. Somente para os moradores do palácio, familiares e pessoas
importantes do reino. Precisamos evitar que o povo se aglomere em grande
quantidade.
— Por que? Parece até que eles estão planejando uma guerra —
comento.
Téssia não responde a minha pergunta, deixando a dúvida pairando na
minha consciência. É possível que ainda existam mais rebeldes contra o
nosso sistema? Provavelmente, sim. Mas qual seria a proporção deles?
Talvez 400 pessoas?
Pensar nessa hipótese me causa arrepios. O rei Kalayo havia mandado
matar muita gente durante o seu reinado e isso pode ser motivo suficiente
para vingança. Sem contar nas 20 pessoas que foram degoladas há alguns
dias atrás por criarem motins contra a ordem de Mirassol.
— Princesa, eu realmente sinto muito pela perda do rei Kalayo — fala
Michelle, empurrando Eudora com a cintura. — Ele era um homem tão
bom.
Léo aparece ao lado da irmã, de cabeça baixa, e acena para mim.
— Estamos aqui para apoiá-la em tudo — diz ele, demonstrando o
duplo sentido. Mesmo mantendo um caso válido com Louise, sei do que
meu primo é capaz. Ele gosta de arrumar desculpas para consolar as
mulheres.
— Obrigada, de verdade.
Aranel olha de cima a baixo para Michelle e engole em seco. Será que
casos proibidos entre primos sempre foi uma tradição na minha família?
Com certeza, quando acabar o velório, eles vão se encontrar às escondidas.
Há boatos de que Michelle gosta de se aventurar com os membros do
palácio, até mesmo com o cozinheiro chefe da cozinha.
Téssia se afasta enquanto Deriko, meu primo que é filho da tia
Ricarda, irmã da minha mãe, se aproxima, com as mãos enfiadas no bolso.
Ele tem os fios de cabelos tão loiros que quase brilham contra a luz do
lustre.
— Família. Princesa. Qual é a pauta que vocês estão discutindo? —
pergunta, olhando para nós com curiosidade. Esse é o único problema de
Deriko: ele é o membro polêmico da família. Política e religião são seus
temas favoritos, principalmente quando está bêbado.
— Estávamos apostando o quanto de química você tinge o cabelo —
responde Aranel, dando de ombros. — Ninguém acredita que você é loiro
de verdade.
Deriko parece ofendido, pois coloca as duas mãos no peito e abre a
boca com indignação.
— Isso é inveja, primo? Fique sabendo que a rainha adora a cor do
meu cabelo. É muito parecido com o dela. Claro, até porque a minha mãe é
irmã legítima dela — argumenta, fazendo a mesma expressão que Talles
quando demonstra superioridade a algo. Eles tinham que ser irmãos.
Téssia bate palmas, chamando a nossa atenção. Ela segura um pedaço
de papel amassado, esperando silêncio no salão. Eldarion lança o pequeno
drone no ar e ele flutua na frente da minha irmã, registrando tudo para o
reino.
Tia Ricarda, irmã da minha mãe, me abraça por trás e sussurra no
meu ouvido:
— Preciso falar contigo mais tarde, minha querida — diz,
caminhando em direção ao caixão. Ela tem curvas tão grandes que seu
corpo literalmente parece um violão.
Ricarda é a única tia do qual eu tenho afinidade. Ela também é contra
o Torneio do Sol Nascente e deixa isso declarado para todo mundo.
Téssia pigarreia antes de anunciar:
— Caros súditos, nobres da corte, amigos e familiares. Em meio à
tristeza que nos envolve, ergo-me diante de vós como a filha mais velha do
nosso amado rei Kalayo. Este é um momento em que as palavras, por mais
eloquentes que sejam, parecem insuficientes para expressar a magnitude da
perda que todos nós sentimos. Meu pai, foi mais do que um monarca; ele
foi o alicerce desta família, o guia sábio do nosso reino e, acima de tudo, o
pai que moldou os caminhos de nossas vidas. Ele deixou uma marca
indelével em nossos corações e em cada canto deste reino que ele dedicou a
proteger — ela pausa por uns segundos, suspira e continua: — Neste
momento, desejo recordar não a majestade do rei, mas a humanidade do
homem por trás da coroa. Pai, você foi a bússola que orientou cada decisão
difícil, a voz que consolou nas horas sombrias e a presença que tornou os
triunfos ainda mais significativos. Sua capacidade de ver o potencial em
cada um de nós nos inspirou a alcançar alturas que jamais imaginávamos.
Lembro-me das noites em que, sob um manto de estrelas, ele compartilhava
histórias que transmitiam lições valiosas de vida — expressa ela, fungando.
— Hoje, ao prestar esta homenagem, recordamos não apenas a tristeza da
despedida, mas também a comemoração de uma vida extraordinária. O
legado do rei estará cravado nas conquistas que alcançamos sob seu
reinado, na semente da bondade e coragem que ele plantou em cada casa,
em cada coração. Seu espírito será a luz que nos guiará nas estradas
desconhecidas que se estendem diante de nós. Que a paz esteja com todos
nós. Muito obrigada.
Ao ouvir as palavras sinceras e emocionantes da minha irmã mais
velha, a dor que habita no meu peito desabrocha, e as lágrimas começam a
fluir involuntariamente.
CAPÍTULO 35

Estou na sala de visitas do palácio, esperando minha tia Ricarda.


Reparo que as paredes são revestidas por um papel de parede sutil,
decorado por padrões clássicos que contam contos do passado.
A luz das luminárias de cristal paira no ar, criando uma atmosfera
tranquila, mas ao mesmo tempo repleta de extravagância. Os móveis são
maravilhas esculpidas em madeira nobre. As poltronas estofadas com
tapeçarias intrincadas convidam à contemplação, enquanto as mesas de
centro exibem delicadas peças de porcelana e livros que atestam a erudição
do palácio. As janelas emolduram uma vista deslumbrante da plantação do
palácio, onde a luz do sol cobre as folhas das árvores e pinta um quadro de
tranquilidade além dos limites do salão.
Uma lareira mediana, esculpida com detalhes requintados, adorna
uma parede, oferecendo calor e um ponto focal que atrai a atenção. Me
sinto como se estivesse imersa em um conto de época, onde o presente e o
passado se entrelaçam em um único lugar.
— Desculpa a demora, querida — fala minha tia, tropeçando nos
próprios saltos. — Tive que colocar os gêmeos para dormir — explica,
falando dos meus primos Artaxis e Leilane.
— Claro, tia. Compreendo que a vida de uma mãe de gêmeos deve ser
difícil, especialmente na fase em que eles estão. Quatro anos? — pergunto.
— Quase sete — responde, beijando o lado esquerdo do meu rosto.
— Podemos nos sentar um pouco? Estou muito cansada. Desde que os
meninos presenciaram as cabeças dos rebeldes no café da manhã, minha
vida nunca mais foi a mesma.
— Claro, fique a vontade — permito, cruzando as pernas. — E eu
sinto muito por aquele episódio horrível. Minha mãe simplesmente passou
dos limites.
Ela se joga na poltrona e tira os saltos com os pés.
— Com toda a certeza. Depois do ocorrido eu tentei falar com ela,
mas Fredd disse que todos os membros da família estavam proibidos de
entrar nos aposentos reais. No outro dia, falei com sua irmã Téssia, porém
foi o mesmo que nada. Elizabelly me ignorou em todos os momentos que
nos cruzamos nos corredores, dizendo que estava muito ocupada para ouvir
minhas lamentações.
— Quando a poeira baixar, eu falarei com ela a respeito disso.
— Não, minha filha. Esqueça esse momento. Temos assuntos mais
urgentes para tratarmos — explica, massageando os pés. — O Duque
Salazarjo veio falar comigo.
Estremeço. Desde o que Ad me contou, estou começando a suspeitar
de algumas coisas. O Duque nunca foi uma pessoa tão confiável assim.
Tanto que o meu papai deixou as coisas do reino para Fredd resolver ao
invés dele.
— E o que ele queria? — pergunto, tensa.
— Ele acredita que o filho é o homem mais coerente do Torneio para
se casar com você, mas eu discordo totalmente. Salomé não teve coragem
de salvá-la do fogo, deixando claro que a vida dele é mais preciosa do que a
vida da princesa de Mirassol. Não. Ele não é digno da família real. Félix é o
meu favorito, embora Ad tenha se mostrado bastante empenhado —
compartilha.
Finjo ignorar o último comentário dela.
— E o que a senhora disse para o Duque?
— O que você já sabe. Disse que sou contra o Torneio do Sol
Nascente e que não apoiava nenhum pouco o filho dele se casando com
você.
Relaxo ao saber que não foi nada grave.
— Preciso tirar Salomé do Torneio o mais rápido possível, porém não
faço ideia por onde começar.
Ela nega a cabeça com bastante força.
— É agora que o problema aparece — fala, fechando os olhos
enquanto encosta as costas na poltrona. — O Duque me ameaçou e não sei
como me livrar das suas chantagens. É por isso que estou aqui. Preciso
saber da verdade.
Solto um suspiro, tentando controlar as emoções.
— O que a senhora precisa saber?
— Salazarjo disse que o meu filho Talles está se envolvendo com a
sua auxiliadora — expõe, de forma calma e controlada. — Ele ameaçou
contar para a minha irmã caso eu não manipule você a encerrar o Torneio. E
você sabe melhor do que ninguém que a relação entre a família real com
escravos comprados é totalmente proibida, levando os envolvidos à morte.
Eu não quero forçá-la a nada, mas também não posso permitir que meu
filho seja morto pelas burrices dele — continua, olhando dentro dos meus
olhos. — A pergunta que não quer calar é a seguinte: existe a possibilidade
dessa acusação ser verdadeira, princesa?
Estou chocada. Uma onda de incredulidade se espalha por cada fibra
do meu ser. O impacto do babado reverbera no meu peito, deixando-me
momentaneamente sem fala, incapaz de processar completamente a
magnitude do que acabo de ouvir.
As palavras da tia Ricarda parecem suspensas no ar, ecoando como
um zumbido distante enquanto meu cérebro luta para assimilar a realidade
da situação. Como o Duque teve acesso a essa informação?
O choque se manifesta em um formigamento que percorre minha
espinha e uma sensação de desorientação nubla meus pensamentos. Meus
olhos permanecem fixos no olhar da minha tia, mas vejo sem realmente
enxergar. A pergunta impactante cria um véu temporário sobre a minha
visão, como se o mundo ao meu redor estivesse desfocado. Cada respiração
parece um esforço, cada pensamento uma tentativa de entender a gravidade
do que foi revelado.
— Eu não sei o que dizer — respondo, totalmente desalinhada.
O meu coração bate descompassado, e a pulsação nas minhas
têmporas ecoa o tumulto interno. Uma sensação de fragilidade se instala
dentro de mim, como se o chão sob meus pés tivesse se deslocado,
deixando-me à deriva em um mar de perplexidade.
Tento controlar minhas mãos que tremem levemente por causa do
reflexo físico da turbulência emocional que se desencadeia.
— Só preciso saber da verdade, Saravana. Não vou machucar a sua
amiga por causa disso. Eu só quero ter um norte para pensar em como
derrubar o Duque e toda a família dele — fala ela, compreensiva. — Mas
para isso preciso que colabore comigo.
Não sei como reagir. É um momento de tensão, de estar à mercê da
surpresa. Os segundos parecem uma eternidade, e as minhas emoções se
entrelaçam em um emaranhado de fios caóticos dentro de mim. A palavra
"impactada" parece pequena demais para abarcar a complexidade dessa
reação visceral diante do inimaginável.
Respiro fundo. Minha garganta está seca e meus lábios grudam entre
eles.
— Sim. É verdade — confesso, sentindo como se estivesse traindo a
minha melhor amiga. — Talles me confessou no dia do show de horrores
que minha mãe apresentou no café da manhã. Fadye passou muito mal ao se
deparar com a cabeça da própria irmã gêmea degolada. Uma barbaridade
que jamais esquecerei na vida — conto, com lágrimas nos olhos.
Minha tia parece pega de surpresa.
— Sua auxiliadora também era gêmea? — questiona, franzindo o
cenho.
— Sim. Até aquele momento, eu não sabia. Depois disso, percebi o
monstro que vivia dentro da rainha, pronto para destruir a sanidade mental
de qualquer pessoa — ofendo minha mãe, sentindo uma raiva crescer aos
poucos. — Se ela foi capaz de tanta brutalidade… acredito que a senhora
também possa fazer alguma coisa contra o Duque.
Ricarda prende a respiração, me olhando confusa.
— O que você está querendo dizer com isso, Saravana? — pergunta,
indignada. — Não sou como a minha irmã. Jamais teria a coragem de matar
uma pessoa, querida. Por favor, não se iguale com os monstros.
Naquele momento, percebo que estou me transformando em uma
pessoa que mal reconheço, guiada por uma necessidade instintiva de
proteger aqueles que amo. Questiono até que ponto posso preservar a
essência verdadeira de quem eu sou. Me sinto impelida a proteger, a
garantir que tanto Fadye quanto Ad encontrem segurança em meio às
incertezas do palácio. E isso revela a complexidade de sacrificar partes de
mim mesma em prol do bem-estar daqueles que são preciosos para mim.
Por outro lado, não posso ser igual à minha mãe. Deve haver alguma
possibilidade de reverter essa situação.
— Por favor, tia — suplico. — Não deixe que o Duque machuque a
minha amiga.
Ricarda abre um sorriso travesso no canto da boca e cospe um
pedaço de unha no chão.
— Você tem a minha promessa, princesa.
CAPÍTULO 36

Dois dias se passaram desde o velório do rei.


Eu e toda a minha família, menos minha mãe e algumas tias, estamos
reunidos na sacada da arena onde é realizado o Torneio do Sol Nascente.
Meu cunhado Arnaldo nem sequer teve coragem de olhar para mim.
Ele está com a mão direita enfaixada enquanto explica para Aranel o que
tinha acontecido. Michelle dá risada com os comentários sussurrados da
minha irmã Téssia, e Deriko conversa com Eudora que revira os olhos
várias e várias vezes, entediada com o assunto.
Bebo um pouco de água. Tanto Xanthe quanto Fadye oferecem
drinques de abacaxi para todos os convidados.
— Nervosa, princesa? — pergunta Cássia, se abanando com um leque
dourado.
— Um pouco — respondo. — Nunca se sabe o que Rubens pode
sugerir aos competidores. Aliás, você sabe qual é a prova de hoje?
Ela nega com a cabeça.
— Ele não me conta nadinha.
— A confiança é tudo numa relação — brinco, fazendo com que ela
me dê um tapa.
Léo se aproxima da gente e faz a reverência de sempre.
— Princesas, posso fazer uma pergunta bastante assustadora?
Olho para Cássia que dá de ombros.
— Vá em frente, querido — aceita ela.
— Por que há cinco panteras negras do lado de fora da arena? —
questiona, preocupado. — Digo, e se elas se soltarem das correntes e atacar
todo mundo?
— Panteras? — pergunto, ficando de pé. — Onde elas estão?
— Saravana! Não me diga que você quer conhecer esses monstros?
— adverte Cássia, agoniada com a notícia.
Rubens cumprimenta Arnaldo e se senta ao lado da minha irmã.
— Tudo pronto, familia.
— Família? — surto. — O que vocês estão planejando agora?
Meu cunhado me olha como se eu fosse louca e simplesmente ignora
a minha presença.
O gongo instalado no campo da arena soa estridente, chamando a
atenção de todos os presentes. Vejo um grupo de homens empurrando uma
estrutura de metal gigante que afunda na areia e deixa um rastro profundo
no chão. Noto que não há nenhum drone sobrevoando o local, e que os
competidores ainda não apareceram no hall reservado para eles.
Olho para o céu e percebo o quão nublado ele está. As nuvens
formam um manto denso que obscurece a luz do sol, lançando sombras
sobre o mundo lá embaixo. O azul claro que costuma dominar o firmamento
deu lugar a uma paleta de tons acinzentados, como se o próprio céu
estivesse em um estado de melancolia. Cada nuvem parece carregar um
sofrimento e seus contornos desenhados em padrões desengonçados
parecem desafiar a previsibilidade.
A atmosfera estranha provoca uma certa inquietude no meu coração.
O cenário habitualmente expansivo se transforma em algo que desafia as
expectativas. Como posso esperar coisas boas em um dia tão feio como
este?
O vento sopra de maneira suave, carregando consigo um frescor que
se mistura à sensação peculiar do dia. Algo de ruim está prestes a acontecer
e sinto que não poderei fazer nada a respeito disso.
Penso na proposta do Duque. Se eu conseguisse encerrar o Torneio do
Sol Nascente, Ad teria mais chances de continuar vivo. Talvez a gente
poderia maquinar um plano para fugir do reino e nunca mais voltar. Por
outro lado, seria difícil demais convencer a minha mãe de interromper algo
que o papai começou.
A sugestão de eliminar o Duque ecoa na minha mente outra vez: até
que ponto sou capaz de matar para proteger aqueles que amo? A resposta,
entrelaçada com nuances morais e éticas, não se apresenta de forma clara.
Considero que, em um momento de desespero, quando a ameaça paira sobre
os que considero meu alicerce, sinto uma ferocidade primitiva despertar em
mim. O instinto de sobrevivência e o amor incondicional colidem,
formando uma tempestade de emoções tumultuadas.
Neste turbilhão, a linha entre a moralidade e a necessidade de
proteção se torna tênue. Até que ponto posso ir para garantir a segurança
daqueles cuja presença dá sentido à minha existência? Será que eu seria
capaz de fazer uma dessas coisas? Talvez sim, talvez não.
No entanto, ao mesmo tempo, questiono se existe uma linha que, uma
vez cruzada, nos transforma irrevogavelmente. A capacidade de tirar uma
vida, mesmo em nome da proteção, deixa cicatrizes indeléveis na alma? E,
se sim, até que ponto essas cicatrizes comprometem a minha humanidade?
Cássia me olha de soslaio e segura minha mão.
— Sara, está tudo bem com você? — pergunta. Posso identificar o
tom de preocupação em sua voz.
Faço que sim.
— Comigo está tudo bem, mas com os competidores…
Arnaldo sobe ao palanque e a multidão vibra com a aparição dele.
— Não sabia que Arnaldo era tão aclamado pelo povo — comenta
Eudora, se sentando atrás de mim.
— E ele não é. O povo está vibrando pelo Torneio ter voltado a ativa.
Os últimos acontecimentos atrasaram as datas do evento, prejudicando
muitas pessoas que vieram de longe para assistir pessoalmente — explico,
arrancando o brilho do meu cunhado da opinião dela. — Não se engane,
Eudora. Arnaldo é a última pessoa do mundo que a multidão sentiria
admiração.
De repente, a estrutura de metal pisca duas vezes, revelando ser um
televisor gigante. A imagem do comentarista Eldarion aparece um pouco
borrada, conversando com um dos guardas reais, enquanto Oed faz piruetas
atrás deles.
— Onde eles estão? — pergunto.
— Na floresta — responde Rubens.
A câmera do drone faz um giro de 360 graus, mostrando os outros
competidores se alongando ou conversando entre si. Entre eles, Salomé
estica a coluna com habilidade, completamente recuperado.
— O filho do Duque está bem — comenta Cássia.
— Por que não ouvimos nada? — pergunta Léo.
— Porque ainda não começou de verdade — responde Eudora,
cruzando os braços. — Acho que eles estão explicando as regras.
Meu cunhado Arnaldo bate o dedo no microfone, despertando todos
da hipnose do telão.
— Caro povo de Mirassol. Ergo-me diante de vós com o coração
repleto de fervor e entusiasmo, pois é com imensa alegria que anuncio a
retomada do Torneio do Sol Nascente! — fala, fazendo o povo gritar
exageradamente. — Neste momento, unimos nossas vozes para saudar a
renovação desta grandiosa tradição que ecoa pelos corredores da história do
nosso reino. Não sabemos se será a último, já que temos o costume de
oferecer as princesas para o vencedor do evento, mas não fiquemos
preocupados, pois teremos cinco anos até decidirmos como iremos proceder
— explica, bastante animado.
Se depender de mim, penso, esse será o último Torneio de todos.
— Nem parece que perdeu os dedos — comento, recebendo uma
cotovelada da minha irmã.
— À medida que os estandartes tremulam e as trombetas ressoam,
convido todos a testemunhar o espetáculo que se desenrolará na floresta. A
terceira etapa foi organizada pelo meu queridíssimo cunhado, o príncipe
Rubens — revela, despertando aplausos na plateia. — Cinco panteras
treinadas para caçar suas presas serão soltas nos limites determinados pelos
arquitetos do Torneio. Um fio elétrico da cor laranja marca até onde os
competidores podem chegar, mas se ultrapassarem a sinalização, morrerão
eletrocutados — explica, deixando todos nós aflitos. — A regra é simples:
eles precisam se proteger da caçada dos animais se quiserem passar para a
próxima etapa, vivos.
— Por quanto tempo? — pergunto para Cássia, incomodada com a
prova.
— Eu não sei, Saravana. Acredito que Arnaldo avisará quando a
prova acabar.
— Essa explicação não é o suficiente para mim — reclamo, mal
humorada. Espero que Ad esteja com a perna recuperada.
Olho para o telão. Eldarion estende um saquinho de pano para Félix
que enfia uma das mãos no buraco, com bastante cautela. Ele tira um objeto
azul e mostra para a câmera do drone.
— A pantera da coleira azul perseguirá Félix Rodrine — anuncia
Arnaldo.
Em seguida, é a vez de Sandrino tirar o objeto do saquinho.
— A pantera da coleira laranja perseguirá Sandrino Belchior.
Depois disso, Ad fica com a cor vermelha e Salomé com a verde.
O comentarista do reino guarda o saquinho no bolso e fala alguma
coisa para Oed. O competidor aponta para Ad e se posiciona ao lado dele
— Nesta etapa, daremos uma vantagem para dois dos competidores.
Oed de Assunção teve a sorte de escolher com quem gostaria de dividir a
pantera. E pelo visto, Ad Pomodoro foi o felizardo — fala Arnaldo, olhando
diretamente para o telão.
Uma pantera para dois competidores. Me sinto aliviada por saber que
Ad e Oed podem revezar na perseguição do animal selvagem, confundindo-
o entre as sombras da floresta.
— Isso é justo? — pergunta Eudora, mascando chiclete.
— Claro. Todos tiveram a mesma chance que Ad de serem
escolhidos. Azar dos que não foram — responde Rubens, dando de ombros.
O som do telão é acionado e um ruído estrondoso estoura pela arena,
fazendo todas as pessoas taparem os ouvidos imediatamente.
— Probleminha técnico — explica meu cunhado. — Estamos quase
começando, pessoal.
O drone que transmite a imagem dos competidores sobe mais alto e
foca apenas na cabeça de Salomé. Então, o telão se divide em quatro partes
e mais três drones são ativados enquanto filmam os outros competidores.
Ad e Oed estão na tela 1. Salomé fica na tela 2. Félix abaixo da tela 1, na
tela 3, e a tela 4 foca em Sandrino.
— Foi você que teve essa ideia também? — pergunto para Rubens.
— Negativo. Isso é obra de Eldarion.
Cinco guardas reais se aproximam dos competidores e passam um
estilete no braço direito de cada um, fazendo um corte profundo expelir
uma boa quantidade de sangue. Em seguida, eles limpam os ferimentos com
lenços umedecidos e os levam para fora das câmeras.
— Agora os guardas reais estão esfregando os lençóis manchados de
sangue nos focinhos das panteras. Assim elas serão capazes de reconhecer o
cheiro de cada um dos competidores — explica Eldarion, olhando de
soslaio para a câmera.
De repente, o gongo da arena soa dez vezes e os competidores
começam a correr disparadamente.
— Em um minuto, as panteras estarão soltas e o pega-pega se iniciará
de verdade — comenta Arnaldo, completamente animado. — Vocês estão
prontos?
A multidão na arquibancada vai à loucura, e posso escutar alguns
nomes favoritos como o de Félix e Salomé. Vejo um grupo de pessoas que
ergueram uma faixa enorme com os dizeres”‘O REI KALAYO ESTARÁ
SEMPRE EM NOSSOS CORAÇÕES”. Eles realmente amavam o meu pai,
e acredito que estão sofrendo ainda mais do que a família real.
O som de uma trombeta grita alto o suficiente para incomodar os
ouvidos, e as cinco panteras são soltas no limite da demarcação da arena
improvisada na floresta.
Prendo a respiração. Ad não pode morrer agora.
Os competidores aliados percebem que não podem mais correr em
linha reta, então Ad segue para a direita e Oed, perseguido pela pantera,
para a esquerda. Na tela 4, Sandrino tropeça em algo que parecem ser raízes
de árvores mortas e urra imediatamente.
— Parece que Belchior acabou de torcer o tornozelo — anuncia
Arnaldo.
O competidor, extremamente desorientado, decide que a melhor
forma de se manter vivo e seguro é escalando a árvore mais próxima. Sendo
assim, mesmo com o tornozelo rompido, ele se arrasta com bastante
agilidade e começa a escalar o trono envelhecido da sua única esperança,
com muita dificuldade. O drone foca no rosto do competidor que está
coberto de suor, esboçando expressões de medo, dor e agonia.
— Não é possível que o meu preferido vai sucumbir em menos de dez
minutos de caça — reclama Léo, desacreditado. — Eu apostei o meu
melhor terno com Michelle que ele chegaria na final.
— Nem tudo está perdido, Léo. Sandrino é um homem preparado
para a situação — fala Cássia, olhando para ele com ternura.
Sandrino Belchior consegue chegar na metade do tronco segundos
antes do animal colidir com a árvore. Ele suspira extremamente aliviado,
fechando os olhos e balbuciando palavras de agradecimento.
A arquibancada vibra com o escape.
— Ainda não perdi o meu terno — comenta Léo.
Na tela 3, Félix se move silenciosamente entre as árvores. O chão
coberto de folhas secas sussurra sob seus pés, enquanto ele avança
cautelosamente, atento a cada som que quebra a harmonia natural.
De repente, uma tensão eletrifica o ar. Os pássaros escondidos entre
as copas das árvores voam em disparada, e um silêncio opressivo toma
conta do ambiente.
Félix instintivamente para, alerta para a presença iminente da caçada.
Em um piscar de olhos, a pantera negra de coleira azul emerge das
sombras com as pupilas dilatadas, refletindo a agudeza de seus instintos
predatórios. O pelo do animal reluz como a própria escuridão, camuflando-
a entre as folhagens e fazendo-a quase invisível na penumbra da floresta.
Félix, percebendo a presença mortal, se abaixa em movimentos
calculados. Ele observa a pantera como se também fosse a mesma espécie
do próprio animal. No entanto, a lógica prevalece, e ele compreende que a
melhor estratégia é a evasão.
— Ele não vai conseguir — comenta Eudora.
Sinto a adrenalina pulsar em minhas veias enquanto o meu coração
bate acelerado.
A pantera, ágil e cuidadosa, percebe a intenção de Félix e inicia a
perseguição. O competidor acelera entre as árvores, saltando sobre raízes e
esquivando-se de galhos baixos. Percebo que a floresta se torna um
labirinto de obstáculos naturais, onde a vida e a morte dançam em um jogo
perigoso.
O som das patas da pantera ecoa entre a arena. Por outro lado, o ritmo
persistente da caçada impulsiona Félix a se esforçar ao máximo. A cada
ziguezague, a pantera responde com curvas planejadas, mantendo-se
implacavelmente no encalço.
A luz filtrada pelas folhas das árvores forma padrões fugazes que
piscam sobre o competidor enquanto ele serpenteia por entre a vegetação.
Félix está com medo, mas não erra nenhuma passada na corrida.
A caçada desenfreada continua, até o momento que ele percebe estar
se aproximando do limite da arena improvisada. Sendo assim, o competidor
desacelera e para, de costas para a pantera.
— O que ele está fazendo? — questiono, com o coração na garganta.
Félix conta cinco segundos e se abaixa.
Neste momento exato, o animal pula na direção do competidor, mas o
ultrapassa no ar, colidindo de frente com o fio elétrico.
A multidão se levanta enquanto a imagem da pantera é registrada pelo
drone. O animal é arremessado para o outro lado da floresta e desaparece na
escuridão.
— Que jogada de mestre — fala Rubens, vibrando junto com o povo.
— Eu nunca imaginei que ele faria aquilo.
Cássia dá um beijo na boca do marido.
— Se Félix não morrer, prometo que te darei um filho — fala,
deixando-me enojada.
— E ele vai se chamar Feliciano — continua meu cunhado.
Olho para Eudora que revira os olhos.
Volto a prestar atenção na tela 1 e vejo Oed escalando uma árvore
enorme. A pantera que o perseguia desapareceu, deixando o competidor
livre para se esconder. Na tela 2, Salomé aparece próximo a um riacho,
esfregando lama em cima do braço machucado. Ele está tentando esconder
o seu cheiro, evitando ser rastreado pelo seu animal.
— Onde está Ad? — pergunta Téssia, pegando um drinque de
abacaxi.
— Deve estar escondido na região mais escura da floresta —
responde Rubens.
— Acho que Eldarion errou ao não calcular que os dois competidores
poderiam se separar — continua Cássia. — Seria melhor que outro drone
registrasse os passos de Ad.
Faço que sim com a cabeça.
Na tela 3, Félix recolhe algumas frutinhas no chão. É notável o
quanto ele está cansado e precisando beber água. A camisa preta que ele usa
está rasgada na lateral, manchada com o sangue que ainda escorre de seu
braço.
— No que você está pensando, Sara? — pergunta Léo.
Aponto para a tela de Félix.
— Que se Félix não morrer atacado pela pantera ou por desidratação,
talvez morra de infecção.
CAPÍTULO 37

Já se passaram cinco horas desde que a terceira etapa começou.


Oed está fazendo exercícios em cima de uma árvore enquanto Félix
tira um cochilo numa espécie de cabana natural, formada por raízes grossas.
Ele cobriu a entrada com um emaranhado de folhas pontudas que Téssia
explicou ser hortexis royales — uma planta que cheira a mirra e hortelã.
Salomé se esconde em algum lugar próximo do riacho enquanto Sandrino
ainda permanece abraçado no tronco da árvore.
— Ele não vai aguentar por muito tempo — comenta Rubens,
pegando uma torrada de amendoim da bandeja.
Embora não tenhamos permissão para nos alimentar durante o
Torneio do Sol Nascente, Arnaldo considerou que passar o dia inteiro sem
comer nada era o tipo de sacrifício que a família real não deveria pagar.
Ad ainda não apareceu diante da tela e isso me deixa bastante
preocupada.
— Será que Ad morreu? — questiona Eudora.
— Não morreu — respondo de imediato.
— Ad é o competidor favorito da princesa — comenta Michelle,
sorrindo para mim.
— Ninguém perguntou nada — digo, rispidamente.
Observo as pessoas nas arquibancadas com os rostos iluminados por
uma mistura de fascinação desumanizada. Penso em como elas gastam seus
ganhos para assistir a este espetáculo de horrores. É um paradoxo
fascinante, como a atração pela luta e pelo sangue derramado tem o poder
de atrair multidões ávidas por experiências que desafiam os limites do
conforto e da compaixão. Cada grito da plateia, cada expressão de surpresa
ou terror, é uma contribuição para o Torneio continuar sendo realizado. As
arquibancadas se transformam em um mar de emoções, onde o desconforto
se mistura com a satisfação de ver seu semelhante ser assassinado a sangue
frio.
Percebo que cada pessoa é, de certa forma, uma exploradora da
violência, disposta a trocar parte do seu tempo e dinheiro pela experiência
única de testar os limites da própria consciência.
— Parece que Sandrino Belchior vai se soltar a qualquer momento —
comenta Arnaldo, observando o telão.
Na tela 4, vejo o corpo de Belchior cedendo ao cansaço de estar
pendurado mais de cinco horas seguidas. A pantera da coleira laranja anda
de um lado para o outro, esperando a caça desabar no chão. Ela é uma
predadora paciente, acostumada com esse tipo de situação.
— Acho que vou perder o meu melhor terno — confessa Léo,
tristonho.
— Cala a boca. Você não percebe que é uma vida que está em risco?
— questiono, totalmente horrorizada por ele se preocupar com a merda do
terno dele.
— O tecido é importado.
— E a vida de Sandrino é o que?
— Saravana, ele se inscreveu no Torneio porque quis — fala Cássia,
defendendo meu primo. — Até quando você vai ficar questionando isso?
Ninguém obrigou os competidores a arriscarem a própria vida, querida.
Ignoro a todos.
Olho para o telão no momento exato que o competidor se solta e cai
de costas no chão. Fecho os olhos. Não quero ter que presenciar a morte de
mais uma pessoa por diversão. Escuto quando a pantera o ataca e ele grita
histericamente. É um grito de sofrimento. Um grito que ficará marcado para
sempre na minha vida.
— Sandrino Belchior… acaba de deixar o Torneio do Sol Nascente —
anuncia Arnaldo, com dificuldades.
Rubens suspira bem alto, e eu olho para ele.
— Às vezes, no jogo da vida é assim: ou você mata ou você morre —
fala, reflexivo.
Algo desperta a minha atenção.
— Ou você mata ou você morre — repito. — Ou você mata ou você
morre. É isso, não é? A terceira etapa só vai terminar quando os
competidores matarem o caçador.
Ele abre um sorriso sincero.
— Você decifrou a brincadeira, princesa.
Um rugido estrondoso soa no telão.
A pantera que perseguia Félix aparece outra vez, com o focinho todo
deformado.
— A pantera de Félix retornou das cinzas — comenta Arnaldo, se
apoiando no púlpito do palanque. — Isso será emocionante.
Félix sente a urgência do perigo iminente e, sem hesitar, corre, o mais
rápido que consegue, para a direção oposta do animal. A pantera, ágil como
uma sombra, segue o competidor de perto com as garras afiadas cravando
na terra com determinação predatória. Ela está completamente irritada pelo
o que aconteceu e não vai deixar que Félix a engane outra vez.
Cinco minutos mais tarde, Félix percebe que está correndo em círculo
e decide mudar a rota, correndo em direção a pantera.
— Ele quer se matar? — pergunta Rubens, confuso.
Assim que o animal se prepara para atacar, o competidor se joga no
chão e rola quatro vezes para a direita antes de se levantar novamente. A
pantera escorrega no limo ensebado, mas volta a se equilibrar com
agilidade.
— Ele sabe o que está fazendo — digo.
De repente, Félix cai em um campo íngreme, batendo-se entre árvores
e arbustos com bastante força enquanto o animal continua perseguindo-o.
— Essa doeu até em mim — fala Aranel, esboçando uma expressão
sofrida.
Lá embaixo, o competidor aterra com destreza, rolando para absorver
o impacto. Ofegante, ele olha para trás, percebendo que a pantera corre em
alta velocidade.
— Corre, idiota — diz Eudora.
Da altura do drone, percebemos algo que Félix não tem como
perceber. Na direção que ele se encontra, há um precipício bem alto.
— Mais um competidor deixará de respirar neste mundo — fala Léo.
— A esperança é a última que morre — lembro ele.
Ao alcançar a borda do precipício, Félix é confrontado com a escolha
de enfrentar o animal selvagem ou arriscar tudo em um salto para o abismo
abaixo.
Não sei quantos segundos ele leva para escolher a pior opção, pois
Félix, em um ato audacioso, impulsiona-se para fora do precipício e
desaparece de vista. A pantera, ainda achando estar sendo enganada,
também se lança e todos nas arquibancadas prendem a respiração.
Por um instante, a floresta retoma seu silêncio habitual, como se a
natureza aguardasse a conclusão desse duelo entre homem e fera. Nada
acontece. Tudo permanece como era antes.
Sinto um aperto no coração. Félix era um rapaz interessante que
merecia o melhor que a vida poderia lhe proporcionar.
Seguro o choro. Ainda que eu não o conhecesse o suficiente, algo na
nossa última conversa me fez admirá-lo. Ele era como se fosse um potinho
de conhecimento do qual eu gostaria de manter por perto. Talvez, o
competidor não tenha me revelado mais sobre os outros por simplesmente
desconfiar que não era o meu favorito.
— Infelizmente o Torneio é assim, imprevisível — fala Arnaldo. — O
competidor Félix Rodrine está… vivo?
Olho para a tela 3 e vejo quando um braço surge na borda do
precipício. Ele parece com dificuldades para erguer o próprio corpo.
— Como ele fez isso? — questiono, ficando de pé.
A cabeça de Félix aparece toda ensanguentada e o drone se aproxima
dele.
— É IMPOSSÍVEL. REALMENTE IMPOSSÍVEL — berra meu
cunhado no microfone.
O povo de Mirassol grita euforicamente, aterrorizados com a
participação de Félix no Torneio. O rapaz franzino que derrotou um gigante,
agora surge da morte triunfante.
— Félix Rodrine! Félix Rodrine! Félix Rodrine! Félix Rodrine! Félix
Rodrine! Félix Rodrine! Félix Rodrine! Félix Rodrine! Félix Rodrine! Félix
Rodrine! Félix Rodrine! — entoa a multidão.
Félix empurra o próprio corpo para cima e deita no chão, respirando
com dificuldades. O drone se aproxima cada vez mais do competidor,
registrando cada detalhe da sua aparição. Ele olha para a câmera, abre um
sorriso cansado e faz sinais com os polegares, enfatizando que ele está
bem… e vivo.
CAPÍTULO 38

Faz duas horas que Félix foi levado à ala hospitalar. Está quase
anoitecendo e a terceira etapa ainda não acabou.
A floresta repousa em um silêncio profundo, como se estivesse
envolta em um manto de tranquilidade.
Os últimos raios de sol se filtram entre as densas folhas das árvores,
criando padrões de sombra que pintam o chão de um verde escuro e
misterioso. Noto que o chão da floresta é um tapete de musgo macio que
absorve qualquer ruído, criando uma acústica natural que acentua o
silêncio. Os pássaros, que outrora cantavam enquanto voavam, agora
observam em silêncio, como se também estivessem esperando os próximos
passos dos competidores.
— Preciso usar o banheiro — sussurra Arnaldo para Rubens.
— Pede para Saravana ficar no seu lugar — expõe o marido de
Cássia, ignorando o fato que não estamos nos falando desde a punição. —
Ela já teve a experiência de conduzir o Torneio uma vez.
Arnaldo nem sequer olha na minha direção.
— Aranel, venha cá — chama meu primo.
— Arnaldo, não acho que…
— Fica quieta, Téssia. Eu sei o que estou fazendo — corta ele.
Aranel se aproxima e sobe ao palanque com graciosidade.
— O que eu preciso fazer?
— Se houver qualquer movimento dos competidores, fique atento.
Você só precisa anunciar caso eles morram ou vençam as panteras —
explica.
Dito isso, ele desce do palanque e some de vista.
O drone que perseguia Sandrino ainda continua ativo, mostrando
várias partes da floresta. Deduzo que ele esteja procurando por Ad, mas até
o presente momento não obteve sucesso. À medida que ele adentra mais na
vegetação, o silêncio se intensifica, e o leve soprar da brisa ganha
notoriedade. A quietude é tão profunda que o próprio ar parece estar em
repouso, em um estado de serenidade que transcende o tempo.
— Você quer descansar, Sara? — pergunta Cássia, com a cabeça
apoiada nas mãos. — Acho que não tem problema se quiser dormir um
pouco.
Nego, soltando um bocejo.
— Estou cansada, mas não ao ponto de ter que dormir agora — digo.
— Não quero perder o final dessa etapa por nada.
Ela me olha com amabilidade.
— Você está preocupada com ele, não está?
— Estou preocupada com todos, Cássia. Não acho justo que eles
morram competindo, por mais que vocês insistam que foram escolhas deles.
Todos os Torneios seguiram o mesmo padrão que só poderia haver mortes
na última etapa, caso um dos combatentes não cedesse. Agora tudo mudou.
Rubens tem sede por sangue e você não pode dizer que não é verdade.
— Embora você não acredite, eu também concordo. Porém estamos
sujeitas a esse tipo de situação, Sara. Nossos maridos conquistaram o direito
sobre nós. Devemos respeito a eles — expõem.
— Respeito? Eles são Sub-Príncipes, sangue agregado à realeza. De
acordo com a hierarquia, nossos primos possuem mais direitos do que eles
— rebato, usando a própria lei do reino contra ela. — Vivemos em um
mundo onde as mulheres têm o direito fundamental à igualdade. É um
direito que permeia todos os aspectos da vida, desde o acesso à educação
até as oportunidades profissionais. Não devemos deixar que nossos passos
sejam negados diante da sociedade.
— No mundo, Sara. Isso não diz respeito ao nosso reino — fala ela,
totalmente equivocada no assunto. — Aqui devemos nos sujeitar de corpo e
alma aos…
— As decisões sobre meu próprio corpo são exclusivamente minhas,
Cássia. Este é um direito meu e nada e ninguém poderá mudar minhas
escolhas.
Há um movimento na tela 1 que interrompe a nossa conversa.
A pantera de Oed parece sentir a presença de outra coisa se
aproximando entre os arbustos. A câmera do drone se vira um pouco para a
esquerda e a imagem da pantera da coleira laranja, a mesma que matou
Sandrino, aparece.
A quietude da floresta é rompida apenas pelo farfalhar das folhas sob
as patas dos animais, enquanto os músculos flexíveis dos predadores se
preparam para o confronto.
— Batalha extra — comenta Rubens.
As panteras se movem com graça e agilidade enquanto seus corpos
fluem como sombras entre as árvores.
O primeiro movimento é uma explosão de velocidade, um borrão de
agilidade que se desenrola em meio à folhagem. Gritos agudos rasgam o
silêncio da floresta, enquanto as panteras se enredam em uma luta mortal de
garras e presas afiadas. A força bruta e a destreza estratégica se encontram
em uma coreografia avassaladora, onde cada movimento é calculado para
superar o oponente.
Oed observa a batalha, tentando encontrar um meio de fugir dali.
Os rugidos dos animais ressoam como trovões distantes, criando uma
sinfonia de fúria selvagem. Tenho a impressão que a floresta parece se
contrair com a energia liberada na batalha. As folhas das árvores caem com
a força dos impactos que as panteras produzem ao baterem com os corpos
entre elas e a terra é marcada pelos rastros da pressão da luta intensa.
— As panteras exibem uma beleza selvagem admirável — comenta
Léo, impressionado com a brutalidade do confronto.
Cerca de sete minutos depois, a batalha atinge seu clímax. A pantera
da coleira laranja demonstra cansaço e parece que uma das patas está
machucada. Ela tenta recuperar o equilíbrio, mas é abocanhada pelos dentes
do outro animal. O sangue que jorra do seu pescoço é grosso e pegajoso,
manchando o solo imediatamente.
Percebo que ela tenta ficar de pé enquanto a outra volta a sua atenção
para Oed — que tenta pular para a árvore ao lado.
— O que ele está fazendo? — pergunta Cássia, tampando a boca com
a mão. — Ele só resolveu se mexer agora?
Antes que eu pudesse argumentar, Oed escorrega do galho da árvore e
cai de barriga no chão, de frente com a pantera assassina.
— Não! — exclamo, agoniada.
Ela se prepara para atacar, mas o outro animal ferido morde sua perna
traseira, fazendo com que a pantera da coleira vermelha urre de dor. Sendo
assim, o animal atacado se vira e finaliza a batalha com o seu semelhante,
mordendo o outro lado do pescoço dele.
Sem esperar nem mais um segundo, Oed corre na direção do animal
que o perseguiu até ali, pula e monta em suas costas, tentando estrangulá-lo
com a força do braço. A pantera se sacode violentamente, agoniada com o
peso do competidor sobre ela.
— Ele não percebe que vai morrer a qualquer momento? — comenta
Rubens.
— A esperança é a última que morre — fala Cássia, lembrando do
meu argumento mais cedo.
De repente, uma sombra surge entre a luta, e a fisionomia de Ad toma
o foco da câmera do drone. Ele está completamente sujo, coberto por algo
que parece terra molhada.
— Eu sabia que ele estava vivo — digo, feliz em vê-lo novamente.
Ad se aproxima do animal, ergue um pedregulho para cima e bate na
cabeça da pantera com bastante força. Ela fica desorientada por uns
instantes, mas ainda continua tentando derrubar Oed de suas costas. Então,
Ad se aproxima novamente, aproveitando a desorientação dela, e bate mais
uma, duas, três, quatro vezes antes do corpo do animal desabar no chão.
Em seguida, o silêncio paira pesado na floresta, como se as próprias
árvores segurassem a respiração. Na penumbra das sombras, tanto Ad
quanto Oed permanecem parados, olhando fixamente para o corpo da
pantera estendido no chão.
Meu coração bate acelerado, ecoando o suspense que se estende. A
tensão é quase tangível, como se o próprio ambiente estivesse suspenso no
tempo.
Um sopro de vento balança levemente as folhas das árvores, mas a
quietude persiste. Os olhares atentos da multidão buscam sinais de vida, de
movimento, na esperança de discernir o destino da pantera. E então, em
meio à expectativa ensurdecedora, um movimento sutil quebra o impasse
enquanto Ad vai até o corpo do animal e coloca a mão em seu pescoço.
— Ela está morta ou não? — questiona meu cunhado, um pouco
irritado.
Ad se deita no chão, parecendo estar aliviado pelo fim da
perseguição.
— Senhoras e Senhores, os competidores aliados vencem a terceira
etapa — anuncia Aranel, soando meio nervoso.
CAPÍTULO 39

É de noite e não houve nenhum movimento de Salomé na tela 2.


Estou cansada, tão cansada que me seguro para não dormir sentada.
Será que Salomé ainda não entendeu a finalidade da prova? Não é possível.
Por outro lado, acho estranho a pantera designada para persegui-lo
não ter aparecido no telão.
— A lama realmente camufla o cheiro de sangue? — questiono minha
irmã Cássia. — Não consigo acreditar que a pantera ainda não tenha
rastreado o cheiro de Salomé. Tem alguma coisa errada. Você não acha?
— Talvez a pantera tenha algum tipo de problema no olfato —
compartilha, dando de ombros. Noto as olheiras profundas ao redor dos
olhos dela. — Uma hora eles terão que se enfrentar.
Olho para baixo e percebo que várias pessoas estão cochilando na
arquibancada. Um silêncio profundo toma conta do ambiente de tal maneira
que sou capaz de escutar as cigarras cantando ao longe.
De todos os Torneios do Sol Nascente, este é o primeiro que está
sendo prolongado. Não sei o que a rainha pensa disso tudo, mas se não
interferiu até agora, significa que existem outros assuntos mais importantes
do que este.
Lembro do papai e de como ele era fascinado por dirigir cada etapa.
Ele fazia questão de passar horas e horas comentando sobre cada
competidor, decorando seus nomes e elegendo os favoritos. Tanto Arnaldo
quanto Rubens nunca estiveram na lista dele. No entanto, meu cunhado
Erasmos foi o competidor que, desde o início do Torneio, havia ganhado o
coração do público pela postura que demonstrava. Calmo, educado e
compassivo. Se fosse possível, eu entregaria a coroa de Mirassol em suas
mãos, pois confio plenamente na índole dele.
Téssia entrega um copo de água para o marido. Por mais que ele seja
um babaca, ela gosta muito dele. Acho que aprendeu a amá-lo durante seus
15 anos de casada.
Certa vez, a rainha perguntou sobre eles terem filhos e Téssia
simplesmente respondeu que Arnaldo não se sentia preparado ainda.
Diferente de Cássia que está tentando desde que casou e não conseguiu até
agora. Já Donabella sempre foi a princesa mais afastada da família, e não
faço ideia de quais são seus planos com relação a isso.
— Posso te fazer uma pergunta? — pergunta Eudora, puxando
assunto.
— Diz respeito a minha vida pessoal?
— Depende.
— Do que, por exemplo? — questiono, interessada.
— De como você vai interpretá-la.
— Então pergunte. Mas se for algo fora da minha zona de conforto,
ficarei calada — aviso, relaxando o corpo na cadeira.
— E se Ad não vencer o Torneio? Você está preparada para se casar
com um dos outros competidores? — pergunta, deixando-me totalmente
desalinhada. — Se ainda não pensou nisso, aconselho que comece agora.
Prepare seu psicológico para aceitar a realidade do resultado e seguir em
frente.
— Por que você está dizendo isso?
— Sacrifícios, princesa. A vida nos leva a fazer sacrifícios. É tudo
questão de ordem e estabilidade — explica, batendo no meu ombro
esquerdo. — Reflita sobre isso, priminha. Não quero que você sofra por
algo que nunca cogitou.
Cássia olha para mim e suspira.
— Ela tem razão, pequenina. Nem sempre as coisas acontecem como
nós queremos que aconteça, e está tudo bem. Aprendemos a lidar com as
situações que surgem inesperadamente no nosso caminho a partir do
momento que entendemos que nada do que é aparente está ao nosso
controle — expressa minha irmã, segurando minha mão.
O rugido da única pantera ainda viva assusta a todos os presentes.
Olho para o telão e descubro que ele não está mais dividido em
quatro, mas há somente uma única imagem.
Na penumbra da noite, a floresta está envolta em um manto de
escuridão — o que dificulta a nossa visão. Então, a silhueta de Salomé
aparece, movendo-se silenciosamente entre as folhas caídas no chão. Noto
que ele segura uma espécie de casca de madeira na mão enquanto olha para
todos os lados. Quando de repente, a pantera surge de entre as árvores com
seus olhos brilhando por causa da intensidade da luz da lua.
Salomé, desarmado, não espera nem mais um segundo sequer e
enfrenta a fera com a coragem. Ele observa cada movimento do animal,
ciente de que a destreza será sua principal arma nesta batalha.
— Tomara que ele não morra — comenta Rubens, apreensivo.
Infelizmente, não penso da mesma forma que ele.
O confronto se inicia em um silêncio quebrado apenas pelos
murmúrios da floresta. O competidor e a pantera se movem em um balé de
sombras, um movimento mortal onde a sobrevivência depende da agilidade,
instinto e pura força de vontade.
Salomé esquiva-se dos ataques rápidos da pantera, movendo-se com a
graça de quem conhece as artimanhas da natureza. Seus passos são
calculados, seus reflexos afiados, e ele utiliza a própria escuridão como
aliada. A pantera, por sua vez, é uma força implacável com seus olhos
amarelos fixos na caça. Ela ataca com ferocidade, mas o filho do Duque
desvia e contra-ataca com a astúcia.
— Como ele vai matar a pantera? — questiona Cássia.
— Acho que com as mãos — responde Eudora, com os olhos
arregalados.
O som das folhas sendo pisoteadas e o ocasional rugido da pantera se
misturam à atmosfera noturna.
Apesar da aparente desvantagem, o competidor não se deixa intimidar
pelas presas do animal. É como se ele já tivesse participado de uma luta
daquelas, onde ele foi o vencedor. Salomé chuta um grupo de folhas secas
no chão que levanta terra e poeira contra os olhos da pantera. Ela se
desorienta e espirra várias e várias vezes enquanto o oponente se afasta um
pouco.
— Ele está fugindo? — pergunto.
— Não. Ele está se preparando para o gran finale — responde meu
cunhado.
A pantera volta a se concentrar em Salomé e risca a pata direita no
chão, pronta para correr na direção da caça. Por outro lado, Salomé respira
fundo e encara o animal com um sorriso malicioso no canto da boca.
Como se fosse em câmera lenta, os combatentes correm, um na
direção do outro, sem hesitação. A pantera pula no momento exato que
Salomé escorrega de lado e enfia a ponta da casca de madeira contra a
barriga do animal, rasgando-a de cima a baixo. O sangue da pantera jorra
em cima do competidor, sujando-o da cabeça aos pés.
Depois disso, o felino tomba morto no chão.
A multidão mais uma vez vai à loucura, gritando como se fossem
animais.
— Senhoras e Senhores, povo de Mirassol. Acho que está na hora de
descansar — anuncia Arnaldo, aliviado pelo fim da etapa.
CAPÍTULO 40

Dois dias depois da terceira etapa, recebo a notícia de que a estrutura


de patrulhamento usada pelos guardas reais mudariam por questões
estratégicas.
— Existe algum motivo específico? — pergunto para Fadye que
dobra algumas roupas e as guarda na cômoda de madeira. — Papai nunca
precisou mudar nada.
Estico os meus pés na cama e aproveito para relaxar um pouco, pois
os últimos dias têm sido bastante estressantes. Solto os cabelos e desprendo
meu cinto da cintura, sentindo um alívio instantâneo.
— Talvez sua mãe queira ter a oportunidade de se sentir útil,
mudando algo que nunca foi mudado. Além do mais, viver na mesmice
pode acarretar muitos problemas — responde.
— Você cuida da princesa mais querida do reino e nunca acarretou
problemas para ela — brinco, mostrando a língua.
— Mas é diferente. Se eu criar qualquer motivo desagradável para
essa suposta princesa mais querida do reino, sou degolada — responde,
arrependendo-se logo em seguida. — Desculpa.
Fadye se senta no chão e começa a chorar.
— Fadye, não fique assim — peço, indo consolá-la. — Você não teve
culpa de nada do que aconteceu naquele dia — aviso, tentando não lembrar
da expressão que o rosto de sua irmã esboçava. — E eu estou aqui para
fazer o que você quiser. Tudo bem?
Ela apoia a cabeça no meu ombro esquerdo e afirma.
— Obrigada, Sara. Eu não sei o que seria da minha vida se você não
existisse para me dar forças. Sabe, depois daquele dia eu não me sinto mais
a mesma pessoa. É como se uma parte de mim tivesse morrido junto com
ela.
Seguro o choro.
— Eu posso imaginar, querida — digo.
Ela se afasta e limpa as lágrimas com o dorso da mão.
— Preciso te contar uma coisa.
— Diga.
Fadye olha para o chão antes de dizer:
— Eu acho que estou grávida — admite, com a voz embargada.
Fico extretamente chocada.
— Fadye!
— Calma. Calma, Sara. Eu não sei se estou certa quanto a isso, mas...
é uma possibilidade — explica, ainda olhando para o chão.
— E por que você não me contou antes? Poxa, Fadye. É a segunda
vez que me sinto deixada para trás. O que está acontecendo? Você não
confia mais em mim? O que foi que fiz para ser tratada desse jeito? Você
sabe que eu te amo, e muito. Mas parece que isso não é o suficiente —
ponho tudo para fora, cansada de guardar todo esse rancor dentro de mim.
— Não, Sara. Não é isso. Claro que eu confio muito em você, mesmo.
É que... você está tão atarefada com as coisas do Torneio que achei melhor
não preocupá-la ainda mais. Me desculpa. Eu não queria que você pensasse
mal de mim. Somos amigas.
— Somos mais que amigas — corrijo.
Ela dá risada.
— Sim. Somos irmãs e você sabe que sempre pode contar comigo.
Ainda que eu não tenha a capacidade de ajudá-la, farei o possível para
conseguir de alguma forma.
Abraço minha amiga com ternura.
Desde que o Torneio começou, sinto que a nossa amizade esfriou um
pouco.
Alguém bate na porta.
— Está esperando alguém? — pergunta ela, ajeitando o cabelo.
Faço que não e fico de pé.
— Louise não bateria na porta — falo, arrumando o amassado do meu
vestido.
Fadye coloca o resto da roupa em cima da cama e vai até a porta.
— Talles? O que você está fazendo aqui? — pergunta, surpresa.
— Queria saber se você não está afim de ler um livro na biblioteca —
sugere, falando no duplo sentido. Meu primo, assim como os outros, é
meramente safado.
— Agora eu não posso. Estou arrumando as roupas da princesa e...
— Saravana vai ficar ocupada por um tempo — interrompe ele,
acariciando o queixo da minha amiga. — Diga para a minha prima que tem
uma pessoa querendo conversar com ela aqui fora.
Fadye olha na minha direção e assinto, na esperança de ser Ad.
— Pode ir, Fadye. Quando eu terminar, peço para alguém chamar
você.
Minha auxiliadora sai e deixa a porta entreaberta.
Meu coração começa a bater mais forte, me deixando ansiosa pelo
momento. A última vez que vi o competidor que mexeu com o meu coração
foi quando ele venceu a terceira etapa com Oed. Depois que eles foram
levados para a ala hospitalar, não tive mais notícias.
Respiro fundo. Por que estou tão nervosa?
Assim que olho para fora, tomo um susto.
— Péricles? — questiono, surpresa com a aparição do líder dos
guardas reais. Faz mais ou menos cinco meses que não o vejo, pois ele
estava visitando as outras zonas do reino, recrutando e treinando novos
soldados para segurarem a paz. Péricles parece mais magro do que a última
vez que nos falamos, porém continua chamando muita atenção. Os ombros
largos e a pele bronzeada é o charme que mais mexe comigo. — O que você
está fazendo aqui? Pensei que estava de viagem.
Ele franze o cenho e estala os lábios, movimentando os olhos de
forma engraçada.
— Depois do que aconteceu com o rei, a rainha solicitou o meu
retorno ao palácio. Aliás, eu sinto muito pela morte do seu pai. O rei Kalayo
era um homem extraordinário, e deixará seu legado marcado por várias
gerações.
— Obrigada — digo, não sabemos muito como conduzir a conversa.
— Algum problema?
— Sua mãe quer que eu cuide da senhorita por tempo integral agora.
— O que isso quer dizer? — pergunto, espantada.
— Que serei seu guarda-costas oficial. Estarei posicionado na porta
do seu quarto durante a noite e irei revistar todos que entrarem em contato
contigo — responde, flexionando o joelho.
— Por que isso agora? Não preciso de um guarda-costas em tempo
integral.
— O último ataque rebelde provou que a revista do palácio estava
fraca e despreparada até então. Enquanto novos guardas reais não forem
treinados e qualificados para cuidar da família real, serei obrigado a tratá-la
diariamente. Vou deixar o turno da manhã com 4 dos meus melhores
guardas, assegurando a sua segurança.
Olho para ele, incrédula.
— Você, como um líder experiente, acha mesmo que isso é
necessário?
— Com certeza. Estamos quase na reta final do Torneio do Sol
Nascente, e a qualquer momento uma situação inesperada ou até mesmo
revolucionária pode surgir e desestabilizar tudo.
A palavra revolucionária me deixa um pouco nervosa.
— Você fala como se um possível grupo rebelde estivesse se
preparando para nos afrontar.
Péricles me encara com um olhar enegrecido e sinto arrepios.
— Princesa, até ontem eu estava lá fora, convivendo com o povo,
escutando seus boatos, resolvendo seus problemas. Acha mesmo que todos
estão contentes com a política do reino? O fato do rei permitir que drones
estrangeiros sobrevoassem a cidade deixou muita gente desconfortável.
Ninguém entendeu nada até agora.
— Há drones na cidade? — pergunto. Uma leve irritabilidade cresce
dentro de mim. Por que nunca me avisam nada?
— Sim. Seu pai implementou uma equipe de monitoramento no
palácio faz quatro meses — responde, acenando para um grupo de guardas
do outro lado do corredor. — Como você acha que conseguiram encontrar
os rebeldes?
Nunca tinha parado para pensar naquilo.
— E de quem poderia ter sido essa ideia? — questiono, até porque o
meu pai não teria visão o suficiente para planejar um esquema assim.
— Do Duque? O filho dele foi a única pessoa que teve contato direto
com os outros durante 10 anos — argumenta, com as mãos na cintura. —
Eu discordo totalmente que ele tenha essa liberdade de voltar a morar no
palácio assim do nada. Espero que me perdoe o que vou dizer, mas tenho
certeza que ele não está no Torneio por causa da senhorita. É claro que não
o conheço o suficiente para julgá-lo, porém eu o observo demais.
— Que despautério! Minhas irmãs sabem disso?
— Infelizmente, sim — responde com cautela. — Olha, eu não sei
quais são as intenções do Duque Salarzajo, e por isso lhe peço que se cuide.
Ele nunca demonstrou ser um homem ruim ou de má índole, mas eu
desconfio. A cobra antes de atacar observa em silêncio — avisa, dando de
ombros. — Mas talvez eu possa estar enganado também.
Sua acusação camuflada desperta uma nova linha de raciocínio dentro
da minha cabeça.
— Não acho que você esteja enganando, Péricles. Eu tive uma
conversa com Salomé e ele deixou claro quais eram suas intenções.
Inovação e liberdade.
Péricles permanece em silêncio, absorvendo todo o rumo da conversa.
Ele caminha de um lado para o outro, totalmente perdido em pensamentos.
O cabelo raspado combina perfeitamente com seu rosto liso. E a cor azul
petróleo do uniforme acrescenta a ele um ar de autoridade.
— Precisamos manter os olhos abertos, princesa. O que quer que a
família do Duque esteja aprontando, não é nada bom. Ele é um homem
esperto e bastante entendido com respeito ao reino. Implantar drones como
vigias aeros foi simplesmente uma sacada de mestre, ou se preferir, atingiu
dois coelhos numa cajadada só.
— Como assim? Me explica.
Ele suspira.
— Acabo de perceber que ele incitou o povo a desconfiar da
administração do rei ao mesmo tempo que obteve acessos a vários pontos
da cidade — explica. Ele abre a boca, horrorizado. — Golpe de poder.
— Golpe de poder? Eu ainda não consigo entender, Péricles —
pergunto, me sentindo bastante burra. As aulas de pensamentos militares
realmente não serviram para nada.
— O Duque só está esperando que o povo se revolte para que o
próprio filho se aproveite da situação, trazendo soluções cabíveis e se
tornando o favorito do reino. É assim que iniciam-se os impeachment e a
queda de um governo.
Neste momento, percebo que a conversa com Salomé foi pura
armação. Ele estava me persuadindo a duvidar das escolhas do meu pai
quanto a tecnologia dos outros, sendo que talvez tivesse sido ele próprio a
compartilhar essa ideia.
— Péricles, eu confio em você do mesmo modo que meu pai confiava
— digo, olhando dentro dos olhos dele. — Então preciso que você dê um
jeito do Salomé desistir do Torneio o quanto antes. Tenho a impressão que a
vida dos outros competidores está em risco.
Ele fecha a cara e endireita a postura.
— Claro, princesa. Mas como posso barrá-lo dentro do palácio? O
sujeito anda com dois seguranças particulares.
— Seguranças particulares? Desde quando é permitido que outra
instituição, a não ser a do rei, possa vagar dentro do palácio?
— Parece que o Duque recebeu autorização da rainha — compartilha.
— O Duque, sempre a porra do Duque — respondo irritada. — Faz o
seguinte: coloque cinco guardas reais no quarto dos competidores, por
favor. Não os quero sozinhos nem mais um segundo enquanto participarem
do Torneio. Se alguém reclamar, diga que são ordens da princesa Saravana.
Acabou. Chega. Estou exausta de sempre ser a última a ser informada sobre
os acontecimentos. Também tenho direito de fazer e desfazer as coisas.
— Com toda a razão, princesa. Seu pedido é uma ordem — concorda,
fazendo a reverência.
— E se o Duque reclamar de alguma coisa, peça que ele venha falar
comigo — sinalizo, sentindo a raiva crescer dentro de mim. Quem ele pensa
que é para mudar as ordens do palácio? — É agora que tiro ele do cavalo.
CAPÍTULO 41

Solicito a permissão para adentrar nos aposentos de Cássia e,


enquanto espero o guarda avisá-la, reflito sobre tudo o que vem
acontecendo.
Desde o primeiro dia do Torneio, tenho a impressão que minha vida
desandou dentro do palácio. Tive que conduzir a primeira etapa e sentenciar
Francio Polak a morte devido a infração cometida, presenciei a barbaridade
das cabeças de 20 rebeldes no café da manhã, fui alvo de um competidor
rebelde que explodiu todo o meu quarto afim de me matar, acidentalmente
dê segundos de vantagem para Ad matar Legolas e isso não agradou o
povo, saí do palácio pela primeira vez sem a segurança dos guardas reais,
me apaixonei pelo homem que havia me humilhado no primeiro encontro,
por causa das minhas atitudes o cunhado que eu mais odiava recebeu uma
punição severa, meu pai morreu e agora descubro que o Duque Salarjazo
quer acabar com a reputação da minha família. O que mais pode acontecer?
O guarda abre a porta e pede para eu entrar.
Os aposentos da minha irmã se desdobram em uma paleta de azuis
etéreos, criando um local de serenidade e elegância. As paredes, decoradas
com uma pintura suave que evoca a vastidão do céu, mergulham o ambiente
em tons que variam desde o azul celeste até o azul profundo da meia-noite.
O mobiliário é uma extensão da atmosfera celestial. A cama
majestosa com dossel elaborado está vestida com cortinas de um azul
pálido, criando uma ilusão de nuvens a envolver a própria realeza que
repousa ali. As almofadas e colchas, finamente bordadas, refletem a beleza
do azul, detalhando cada desenho como estrelas a adornar o céu.
Grandes janelas enfeitadas com cortinas de tecido translúcido,
permitindo que a luz do dia atravesse, lançam um brilho iridescente sobre o
piso de madeira polida, tingido de azul claro. Os móveis são esculpidos
com precisão e exibem detalhes dourados que adicionam um toque de luxo
ao conjunto.
Percebo que o ambiente está perfumado com notas suaves de lavanda
e almíscar, formando uma fragrância que complementa a serenidade do
espaço.
— Saravana, querida. É muito bom ver você aqui — ouço a voz da
minha irmã.
Ela sai do banheiro usando um roupão rosado.
— Você parece animada. Aconteceu alguma coisa? — pergunto,
sentando em uma das poltronas próximas à cama.
Ela afirma com a cabeça e começa a chorar.
— Desculpa, mas eu estou tão emocionada. Eu nem sei como te
contar — fala ela, com os olhos cheios de lágrimas contida.
Meu coração acelera, pressentindo que algo significativo está prestes
a ser revelado.
— Estou ficando um pouco assustada, Cássia — digo, com as mãos
sobre o peito.
— Estou grávida — pronuncia ela, e o silêncio instantaneamente se
instala no ambiente.
Sinto meu coração parar por um breve momento, enquanto tento
processar a revelação. Uma onda de emoções se mistura dentro de mim,
desde o choque até uma inesperada alegria. Cássia? Grávida? Depois de
quase 10 anos tentando?
Meus olhos encontram os dela, procurando por qualquer sinal de
confirmação. Cássia assente com ternura e enxuga as lágrimas com um
lencinho umedecido.
Estou sem palavras, incapaz de articular qualquer reação imediata.
— Nossa, Cássia… eu, eu não sei como reagir — falo, também com
lágrimas nos olhos. — Parabéns?
Minha irmã se aproxima de mim e nos abraçamos.
O silêncio inicial é quebrado por risos nervosos e mais abraços
afetuosos, enquanto a realidade da notícia extraordinária começa a se
estabelecer. Estou feliz, genuinamente feliz por ela, mas ainda me vejo
processando essa nova realidade. É como se o tempo tivesse desacelerado
por um momento, preenchendo meu coração com um sentimento que nunca
havia sentido antes.
— Eu vou ser titia, mesmo? — pergunto, segurando o rosto da minha
irmã. — Ai caramba! Eu vou ser titia. Cássia, eu não estou acreditando
nisso!
— Sim, Sara. Você vai ser titia — confirma ela, sorrindo para mim.
— E uma titia maravilhosa.
Ao absorver a notícia da gravidez, minha mente se aprofunda em
reflexões sobre o incrível processo que é trazer uma nova vida ao mundo.
Penso na beleza da concepção, no momento mágico quando duas vidas se
entrelaçam para criar uma terceira, na alegria de gerar um filho há muito
tempo esperado.
Imagino o vínculo especial que se formará durante esse tempo. Em
breve, a barriga de Cássia crescerá e a expectativa também aumentará. Cada
pontapé, cada movimento do bebê, será um motivo de alegria dentro da
nossa família.
A fase do parto será um verdadeiro milagre para ela e o meu cunhado,
que buscam ser pais há muito tempo. E me questiono se um dia decidirei ter
filhos também.
— Então, pequenina. O que você queria comigo? — pergunta ela,
soltando os cabelos do penteado. — É por causa das provas que Rubens
inventou? Você sabe que eu não posso fazer nada quanto a isso. Ele é um
homem cabeça dura e não consegue enxergar a vida como a gente. Você
sabe, ele é caipira. E os caipiras são assim, teimosos.
Cássia está tão animada com a realização de um sonho que perco as
forças de expor minhas queixas para ela. Minha irmã não merece ficar
preocupada comigo agora.
— Nada de mais. Eu só estava com saudades — invento, pegando um
pouco de água do jarro em cima da cômoda.
— Ah, deixa de ser sonsa, Sara. Vamos lá, fala logo o que você queria
comigo. Aconteceu alguma coisa fora do normal? Quero dizer, o que está
sendo normal ultimamente? — ironiza e ri da própria piada.
— Relaxa, Cássia. Está tudo bem — insisto, passando minha mão
livre na barriga dela. — Quando vocês descobriram?
— Hoje de madrugada. Rubens quase desmaiou quando viu o
resultado.
Dou risada.
— Já escolheram os nomes?
— Ainda não. Mas penso em colocar o nome do papai, caso seja
menino. O que acha?
Franzo o cenho.
— Kalayo? Hmmmm. Não sei.
— Quem sabe, Kalardan? Gosto de como soa cada sílaba. Parece
nome de valente que salvará o reino de Mirassol das garras dos monstros de
quatro pernas — inventa ela, cheia de graça.
— Nossa, exagerou agora.
— Devemos imaginar enquanto ainda temos liberdade para isso, Sara
— comenta, filosófica. — Não sabemos como será o dia de amanhã.
Alguma coisa naquela fala me deixa um pouco incomodada, como se
ela soubesse de algo que eu ainda não sei.
— Cássia, quer compartilhar alguma coisa comigo? — pergunto, bem
séria.
Minha irmã suspira bem forte, e começa a pentear os cabelos
dourados com as mãos.
— A esposa do Duque jantou com a gente ontem.
Cerro os punhos, completamente invadida pela irritabilidade. Será
que agora verei a marca do Duque em todas as partes do palácio?
— E sobre o que vocês conversaram? — pergunto, controlando as
emoções.
— Nada de interessante. A Duquesa só queria comentar sobre o
Torneio. Ela disse que está muito aflita com a participação do filho e não
ver a hora do evento acabar. A propósito, você nunca sentiu algum tipo de
atração por Salomé?
— Que pergunta mais ridícula, Cássia. Claro que não. Ele é bonito e
inteligente, mas só isso.
— Entendi — responde, prendendo uma presilha de borboleta na
lateral da orelha esquerda. — Por que você não marca um encontro com
ele? Só para se conhecerem melhor?
— Porque não quero — respondo, ríspida.
— Por que?
— Eu realmente devo me justificar?
— Claro. Somos irmãs. Só estou aqui para entender o seu ponto de
vista, querida. Jamais irei influenciá-la em absolutamente nada — expõe.
Arrumo o cinto do meu vestido. Cada dia que passa fico mais magra.
Talvez seja efeito dos estresses que venho enfrentando.
— Não gosto do jeito dele. Também não suporto o Duque andando
por aí como se fosse o dono do palácio. Eu quero ver essa família fora da
realeza o quanto antes — disparo, deixando a raiva transparecer nas
palavras.
Só de pensar na existência do Duque o meu olho direito treme.
— Por que tanta raiva, Sara? Eles fizeram alguma coisa com você?
— Ainda não — respondo, percebendo o olhar preocupado dela. —
Mas não se preocupe comigo. Mamãe colocou o melhor guarda-costas para
cuidar de mim.
Ela ergue uma das sobrancelhas.
— Péricles voltou?
Faço que sim com a cabeça.
— Voltou e foi falar comigo hoje cedo.
— Como ele está? Continua gato como sempre foi?
Abro um sorriso travesso.
— Sim, continua. É uma tentação de homem.
— Pena que você não teve a oportunidade de sair com ele —
comenta. Cássia se senta na ponta da cama e passa um creme cheiroso nas
pernas. — Você contou para ele que ele era seu crush no passado?
— Claro que não, Cássia. Você tem problema? — questiono, bebendo
um gole de água. — Ele não precisa saber disso agora. Estou em um
processo irreversível, sendo disputada por quatro homens totalmente
diferentes da minha pessoa. Acha mesmo que eu chegaria no pobre coitado
e daria falsas esperanças? Eu não sou como a Téssia.
Minha irmã bate o frasco do creme nas mãos e uma grande
quantidade do produto cai no chão, sujando o tapete peludo.
— Téssia fez isso só uma vez e quase deu certo.
Meneio a cabeça, inconformada.
— Existem coisas melhores do que homens, minha irmã.
— É mesmo? — pergunta ela, parecendo duvidar da minha opinião.
— Diga o que é?
— Eu mesma.
CAPÍTULO 42

Estou na sala de descanso junto com Madame Zahir, Eudora, Louise,


Fadye e, infelizmente, Michelle. Estamos resolvendo os preparativos para o
baile da Dança da Meia Noite no palácio.
A sala de descanso do palácio é um oásis de conforto, projetado para
proporcionar reuniões mais leves aos ocupantes do reino. As paredes são
pintadas de amarelo, com padrões belíssimos entre o liso e o riscado. Uma
paleta de cores com tons de marfim e dourado confere à sala uma aura
calorosa e sofisticada.
No centro da sala, um tapete opulento estende-se como um mar de
veludo sob meus pés. Noto que os móveis são peças de arte por si só, além
das poltronas estofadas com tecidos que convidam ao descanso. Também há
mesas de centro entalhadas em detalhes requintados que exibem arranjos
florais frescos.
O teto é uma arte arquitetônica, enfeitado com relevos que retratam
cenas mitológicas e motivos ornamentais. Um lustre pende do centro,
lançando uma luz forte e brilhante sobre toda a sala. Nas extremidades da
sala, estantes de madeira abrigam volumes encadernados com couro e
documentos importantes. Ao fundo, uma lareira enfeitada com pedras
preciosas incrustadas oferece um calor aconchegante, proporcionando um
local perfeito para momentos de tranquilidade.
— Bebidas — sugere Eudora, sentada de pernas cruzadas. O cabelo
preto está amarrado no alto da cabeça, parecendo um ninho de rato. —
Deve ter vários tipos de bebidas.
— Qual tipo de paleta você prefere, princesa? — pergunta Louise,
sentada ao lado da Madame Zahir. — O azul tradicional do reino?
— Tanto faz — respondo, entediada. Tudo o que eu queria agora era
estar nos braços de Ad e esquecer um pouco da minha vida.
— Por que não usamos vermelho bege? É sexy e muito sedutor —
expõe Michelle.
— Michelle, você quer um baile para se divertir ou um cabaré? —
pergunto.
— Perdão?
Dou um suspiro exasperado.
— Eudora, você tem certeza que minha mãe aprovou esse baile?
Madame Zahir pigarrear antes de dizer:
— Perdoe-me, princesa. Mas eu falei com a rainha pessoalmente
sobre a ideia de Eudora e ela aceitou no mesmo instante.
— Prima, a tia curte essas coisas — fala Eudora, totalmente fora da
formalidade — Até ela precisa esvair um pouco dos problemas que carrega
nas costas. Você vai ver. Todo mundo vai se divertir como nunca.
— Esse tipo de baile tem banda? — pergunta Louise, mordiscando
um pedaço de torrada com patê de frango. — Por que não conheço ninguém
que toque músicas para esse tipo de evento.
— Eu conheço um grupo chamado Trope — fala Fadye, fazendo-me
prender a respiração. De onde ela conhece os amigos de Ad? — Eles são
bons.
— O que você acha, princesa? — pergunta Madame Zahir, anotando
tudo numa prancheta de madeira. — Gostaria de acrescentar mais alguma
coisa?
— Temas. Eu gostaria que cada pessoa viesse caracterizada de
alguma coisa — sugiro, desfiando uma linha da poltrona. — Os casais
podem vir combinando.
— Excelente idéia, Sara. Também seria legal se todos usassem
máscaras — comenta Eudora, animada. Parece que estamos planejando a
festa surpresa do seu aniversário de 20 anos.
Olho para a imagem do meu pai pendurada na parede da esquerda e
reflito sobre o que ele pensaria a respeito desse baile. Será que é arriscado
demais?
Vivo em uma era onde as complexidades das relações humanas se
desdobram diante de mim, revelando uma gama diversificada de
personalidades e intenções. A índole das pessoas hoje em dia parece refletir
uma mistura intrigante de virtudes e razões, do qual a trama complexa exige
muito discernimento e cautela. Percebo que a confiança se tornou uma
moeda rara e preciosa. As experiências passadas, permeadas por desilusões
e decepções, moldaram o meu olhar para o mundo ao meu redor. Nos
últimos tempos, me sinto cautelosa, hesitante em depositar minha confiança
sem uma cuidadosa avaliação.
É evidente que vivemos em um tempo em que as interações são
muitas vezes influenciadas por fatores externos, onde as máscaras sociais
podem obscurecer as verdadeiras intenções. As pessoas podem ser guiadas
por motivos ocultos e discernir quem é quem pode se tornar um desafio
estressante.
Reconheço que, apesar das decepções, o mundo também é habitado
por almas genuínas e compassivas. Há pessoas de bem que querem fazer o
bem, independente da sua classe social ou situação financeira. Mas
confesso que é uma decisão bastante difícil.
Fadye não se contém e vomita em cima da mesa, sujando todos os
petiscos trazidos pelo chefe de cozinha.
— Sua porca imunda! — grita Michelle, dando um tapa no rosto da
minha auxiliadora.
Aquilo doeu dentro do meu coração.
— Desculpa, eu… eu não fiz por mal — pede minha amiga,
envergonha.
Com bastante destreza, me levanto e seguro minha prima pelos
cabelos.
— O que você está fazendo, princesa? — grita ela. — Me solta!
Trago sua cabeça até o vômito e esfrego seu rosto com força sobre
ele.
— Solta ela, princesa! — grita Madame Zahir, desesperada.
— Pare de gritar, vadia! — berro no ouvido de Michelle. — Pare de
gritar agora ou te deixo duas semanas no calabouço — ameaço entre os
dentes.
Um grupo de guardas reais aparece na entrada da sala, com as espadas
punhaladas nas mãos. Péricles surge entre eles e segura um sorriso
— Algum problema, princesa? — pergunta.
— Nenhum, soldado. Só estou ensinando minhas companheiras a
serem mais humildes — respondo, apertando ainda mais a cabeça de
Michelle. — Aprendeu?
— Sim, princesa — responde, com lágrimas nos olhos.
— Princesa, calma — pede Louise, preocupada.
— Calada. Não estou me dirigindo a você — repreendo. — Michelle,
até hoje eu aturei o seu modo ridículo de ser a pedido do meu pai. Porém
estou farta. Você sabe que existem regras que defendem o caráter dos
escravos neste palácio. Maus tratos geram punições severas, pirralha. Então,
se você não quiser que eu denuncie essa agressão para a corte, aconselho
que saia desta sala agora e nunca mais ouse olhar para Fadye. Entendeu?
— Sim, princesa. Eu… eu sinto muito — choraminga.
Solto minha prima.
— Peça perdão para ela, faça um reverência e saia da minha frente,
por favor.
— Eu não vou me reverenciar a uma…
Michelle não termina a frase, pois dou um tapa bem forte no rosto
dela.
— Princesa, não precisa disso — aconselha Madame Zahir, se
aproximando de mim. — Olha o exemplo que a senhorita está dando para
as pessoas.
Encaro Madame Zahir com fogo nos olhos. Ela pode ter 53 anos, mas
ainda é uma funcionária da família real.
— Quer perder o emprego, Zahir? — pergunto, perdendo a
formalidade de falar com ela.
— Não, princesa — responde, cabisbaixa.
— Excelente! — digo, alto o suficiente para todos ouvirem. — Vamos
Michelle. Com a voz bem aveludada: desculpe, senhorita.
Michelle, vermelha de vergonha, faz a reverência e diz:
— Desculpe, senhorita.
CAPÍTULO 43

Minha querida Saravana,


Espero que esta carta encontre você em momentos de paz e
serenidade. Sinto-me compelida a escrever-lhe, mesmo que as palavras
pareçam inadequadas diante das circunstâncias que envolvem nosso amado
pai.
A distância que nos separa neste momento de luto é mais dolorosa do
que qualquer palavra poderia expressar. Neste momento, meu coração
busca encontrar consolo na esperança de que a força da nossa família nos
guiará por este período sombrio.
Peço-lhe perdão, minha irmã, por não estar presente no velório do
rei. As obrigações que me prendem longe do palácio são como correntes
indesejadas, impedindo-me de compartilhar o fardo da tristeza ao seu lado.
Sinto um vazio em meu peito por não poder oferecer-lhe meu ombro para
compartilhar nossas lágrimas e lembranças. Saiba que, mesmo distante,
meu coração chora em uníssono com o seu. Cada lágrima derramada é
como uma gota do meu próprio pesar, e cada suspiro é um eco da minha
saudade.
Prometo a você que estarei presente no dia do baile da Dança da
Meia Noite. Não deixarei que as obrigações me afastem do palácio nesse
momento tão significativo. Juntas, honraremos a memória do rei e
encontraremos forças para seguir adiante, sabendo que ele permanece em
nossos corações, guiando-nos com sua sabedoria e amor.
Esteja certa de que, mesmo distante, estou ao seu lado em
pensamento e sentimento. Que a luz da lua e as estrelas acalmem seus
sonhos nesta fase sofrida. Estou ansiosa para abraçá-la e dançar juntas a
noite inteira. Ah, Erasmos manda lembranças.
Com amor e saudades eternas,
Princesa Donabella.
Assim que termino de ler a carta de Donabella, me jogo na cama.
A saudade da minha irmã pesa no meu peito como uma âncora, uma
emoção que bate forte, trazendo uma mistura de nostalgia e melancolia.
Cada batida do meu coração parece ressoar com a falta dela, e sinto uma
vontade avassaladora de chorar.
Às vezes, é como se as lembranças dela fossem uma melodia que toca
em segundo plano, me acompanhando em cada passo. Sinto a saudade
como uma onda que se quebra contra a costa do meu coração, me
inundando com a consciência de sua ausência.
Embora eu tenha mais intimidade com Cássia, Donabella sempre se
mostrou presente nos momentos que eu mais precisava.
Suspiro, permitindo que minhas lágrimas caiam como um tributo ao
amor que permanece mesmo quando ela não está fisicamente presente. A
sensibilidade me toma de um jeito desesperador enquanto a ansiedade de
passar por esse processo cresce dentro de mim.
Quando o Torneio chegar ao fim, a normalidade retornará. Quando o
Duque e sua família deixarem o palácio, a serenidade será restaurada.
Quando o bebê de Cássia vier ao mundo, a paz prevalecerá. É dessa forma
que devo encarar as circunstâncias. É nisso que devo depositar minha fé.
Sou uma pessoa forte e corajosa, com a capacidade de superar qualquer
desafio que a vida possa me apresentar.
Sendo assim, pego um pedaço de papel e uma caneta, respondendo a
carta de Donabella imediatamente.
Minha amada Donabella,
Receber sua carta trouxe um raio de consolo ao meu coração, mesmo
em meio à escuridão do luto que nos envolve. Suas palavras são como um
abraço afetuoso que transcende as distâncias, e a promessa de sua
presença no baile da Dança da Meia Noite é como uma luz distante que
ilumina o caminho da esperança.
Não há necessidade de desculpas, pois compreendo as obrigações
que a mantém distante neste momento. Sua presença, ainda que ausente
fisicamente, é sentida em cada lembrança e em cada lágrima que cai. E
essa união é mais forte do que qualquer distância física.
Suas promessas aquecem meu coração e acendem uma centelha de
ansiedade. Sei que, no baile, nossos passos de dança serão como uma
celebração da vida do nosso pai e uma demonstração de nossa força como
família. Sua dedicação em estar presente nesse momento tão significativo é
um gesto que valorizo profundamente. Juntas, enfrentaremos as sombras da
saudade, e a luz da nossa união será como uma estrela guia nos
conduzindo por esse período.
Agradeço por suas palavras reconfortantes e pela promessa de sua
presença. Saiba que o meu coração bate em compasso com o seu. Mando
lembranças afetuosas para Erasmos, herdeiro do trono de Mirassol.
Com amor eterno,
Saravana.
CAPÍTULO 44

Dois dias depois de Cássia ter me contado sobre a gravidez, a rainha


mandou preparar um jantar de comemoração, convidando amigos e
familiares.
Neste exato momento, estamos reunidos no salão principal do palácio
que brilha com a luz das velas e a exuberância da decoração festiva. Há
mesas decoradas com flores delicadas e detalhes dourados que refletem a
alegria que permeia o ar. As roupas suntuosas dos convidados reluzem
como estrelas em uma noite de gala, enquanto aguardamos ansiosos pela
entrada da princesa e do Sub-Príncipe Rubens.
À medida que o tempo passa, os convidados vão chegando e tomando
seus lugares demarcados pela cerimonialista do palácio, Louise. Vejo a
família do Duque Salajarzo, incluindo Salomé, do outro lado do salão,
trocando conversas calorosas.
— E como estão os planos para mandá-los embora do palácio? —
sussurro para minha tia Ricarda, apontando o queixo para o Duque.
Ricarda bebe um pouco de champanhe antes de responder:
— Estou pensando ainda, querida. Não é assim tão fácil encontrar
algo para incriminar alguém.
O aroma tentador da culinária real paira no ar, anunciando um
banquete digno da ocasião. A mesa está repleta de iguarias, desde entradas
delicadamente preparadas até pratos principais elaborados. Copos de cristal
cintilam, e talheres de prata aguardam pacientemente pelos festivos brindes
que estão por vir.
Coço a cabeça e, disfarçadamente, continuo com a conversa:
— Fiquei sabendo de coisas que talvez possam ajudá-la no processo.
— Fique à vontade para compartilhá-las então.
Um drone passa zunindo e quase se choca com a cabeça de um
garçom.
— Acho que aqui não é um lugar apropriado para isso, tia — aviso,
acenando para um casal de amigos de Cássia.
A música suave, executada por músicos habilidosos, flui como um rio
melodioso pelo salão, criando um ambiente ainda mais encantador. As notas
ressoam em harmonia com a alegria que paira entre os presentes enquanto o
salão ganha vida.
— Esse bife está uma delícia — comenta Eudora, sentada à minha
frente.
— Nunca comi algo tão bom — complementa Aranel, sorrindo para
mim. — De fato, a comida do palácio é realmente estupenda.
— Temos o melhor chefe de cozinha do mundo — digo, bebericando
minha taça de vinho. — Por que Salomé está aqui? — volto a perguntar
para minha tia.
— Ele faz parte dos convidados, Sara. Oras, ele é filho do Duque.
— Ele agora é um competidor qualquer como todos os outros.
— Você deveria ter falado isso para sua mãe.
Vejo o comentarista Eldarion passar do outro lado do corredor e
cumprimentar Salomé, parabenizando-o pelo último feito.
— Soube da última, Saravana? — pergunta Talles, filho de Ricarda,
cortando um pedaço do bife. — A rainha encomendou mais doze drones
dos outros.
Olho para ele, com a boca aberta.
— Talles, não abra a boca quando você não tem certeza do que diz —
repreende minha tia, olhando feio para ele. — Isso são boatos. E boatos não
devem ser propagados.
— Qual é a probabilidade disso ser verdade? — pergunto.
— Querida, deixe esse assunto para lá — pede Ricarda, implorando.
— Setenta por cento — responde meu primo, colocando o pedaço de
bife na boca. — Hmmmmm. Isso aqui é bom demais.
A música troca para um ritmo mais acelerado.
— Quem é a fonte?
— Não há uma fonte desta vez.
Minha tia pigarreia.
— Se vocês dois continuarem com essa conversa desnecessária,
pedirei ao garçom que o ponha do outro lado da mesa, Talles.
— Não. Ele fica — digo. — É uma ordem.
Talles abre um sorriso triunfante para a mãe.
— Ela é boa nisso — comenta Eudora, se divertindo com a conversa.
— Se você obteve essa informação, então escutou de algum lugar —
continuo, ignorando todo mundo.
— Eu ouvi o Fredd comentando com o Conde Enguerrand hoje mais
cedo — revela.
O som de trombetas interrompe a nossa conversa.
Assim que Cássia e Rubens fazem sua entrada triunfal, o salão
irrompe em aplausos calorosos. A princesa, com um vestido graciosamente
realçando suas curvas, irradia uma beleza que transcende as fronteiras da
realeza. Já o Sub-Príncipe, com um sorriso orgulhoso, conduz minha irmã
pelo salão. Ele usa o terno tradicional da família enquanto um relógio de
ouro adorna o bolso da frente.
— Nobres convidados, membros respeitados da corte, e amigos. É
com grande alegria que me coloco diante de vocês nesta noite de
celebração. Agradeço a cada um por terem respondido ao chamado e se
unido a nós para comemorar este momento especial em minha vida e na
vida de nosso reino — discursa Cássia, intercalando entre olhar para os
convidados e o drone que sobrevoa na frente dela. — Hoje, meu coração
transborda de felicidade e gratidão por estar cercada por tantas pessoas
queridas. A notícia da minha gravidez encheu nossos dias com uma luz
radiante, e a presença de cada um aqui torna esta noite ainda mais especial.
Agradeço, em primeiro lugar, ao nosso reino, que é o alicerce da minha
felicidade. Vocês, súditos leais, são como uma grande família, e
compartilhar essa alegria com todos vocês é verdadeiramente um privilégio.
Cada sorriso, cada congratulação, torna este capítulo da minha vida ainda
mais significativo — fala ela, recebendo mais aplausos dos convidados. —
À minha própria família, ao meu pai que não está fisicamente presente, mas
cujo espírito e ensinamentos continuam a orientar-me; ao meu amado
esposo, cujo amor e apoio são inabaláveis; e aos meus futuros herdeiros,
que são a promessa de um futuro brilhante, expresso minha eterna gratidão.
— E eu, agradeço aos nobres da corte, cuja presença eleva ainda mais
o prestígio deste evento. Seus gestos de amizade e respeito são
verdadeiramente apreciados. Cada um de vocês contribui para o esplendor
desta noite e para a memória que ficará gravada em nosso coração —
discursa Rubens, fazendo minha tia Ricarda arregalar os olhos. — Este
banquete é mais do que uma celebração; é um tributo à vida, ao amor e à
unidade. Cada riso, cada brinde erguido, é uma marca da força que
encontramos juntos como povo. Que esta noite marque não apenas o início
de uma nova jornada para mim, mas também um capítulo de esperança e
prosperidade para nosso reino. Em nome da nossa casa real, agradeço mais
uma vez por estarem presentes e por tornarem esta noite inesquecível. Que
nossos corações continuem a bater em uníssono, guiados pela luz da alegria
e da amizade. Que a felicidade desta noite ecoe pelos corredores do tempo,
tornando-se parte da história para sempre.
— Viva o reino — diz Cássia, com ternura.
— Viva o amor — continua Rubens, segurando na cintura dela.
— E que a luz desta noite ilumine nossos caminhos por muitas
gerações vindouras — encerra Eldarion, surgindo do nada na frente do
drone.
Neste instante, taças são erguidas em homenagem à futura geração
que trará ainda mais luz à linhagem real. E todos nós bebemos o champanhe
de licor amarelo que está separado ao lado de cada prato.
— Que troço horrível — comenta Aranel, fazendo caretas.
— Desta vez, devo concordar contigo — complementa Eudora,
engolindo com dificuldades.
De repente, vários baques ecoam o local e gritos histéricos preenchem
o ambiente.
— O que está acontecendo? — pergunto, ficando de pé.
Minha tia dá um salto e tampa a boca com as mãos, horrorizada com
o que está vendo. Sigo seu olhar e prendo a respiração ao notar que toda a
família do Duque permanece imóvel, com os corpos tombados sobre a mesa
e os rostos mergulhados nos pratos.
CAPÍTULO 45

O que era para ser uma noite de celebração se transforma em um


cenário de pânico e confusão. Todos os membros da família Valktran estão
mortos, incluindo Salomé.
O anúncio alegre da gravidez da minha irmã dá lugar a um arrepio de
terror que se espalha entre os convidados como um vento gélido. Gritos
agudos e exclamações de surpresa cortam o ar, ecoando como um coro de
alarme. O medo, antes inexistente, torna-se uma presença palpável,
pairando sobre o salão que outrora vibrava com a música.
— O que está acontecendo? — pergunto, olhando de um lado para o
outro.
Percebo que muitos se levantam abruptamente de suas cadeiras, com
olhares apreensivos trocados, enquanto murmúrios frenéticos se espalham
como fagulhas de um incêndio súbito. É como se o palácio agora estivesse
envolto em um manto sombrio de incerteza.
A fuga dos convidados é um espetáculo caótico, uma dança
desordenada de vestes esvoaçantes e passos apressados.
— Saravana, o que está acontecendo? — pergunta Eudora, morrendo
de medo. — Para onde devemos ir?
Meu coração bate descompassado enquanto tento entender o que
causou esse ataque repentino.
Olho para a tia Ricarda, buscando encontrar algum vestígio de culpa
nos olhos dela. Não é possível que ela tenha arquitetado matar todos os
membros da família do Duque no dia da celebração de Cássia. Além do
mais, quero saber o porquê de ter mandado assassinar sete pessoas que
tiveram azar de possuir o sobrenome Valktran.
Por outro lado, Ricarda nega com a cabeça várias e várias vezes e
segura o choro descontrolado, parecendo bastante abalada com a situação.
Em meio à confusão, tento manter a calma, mas o medo se infiltra
insidiosamente nos meus pensamentos. E se suspeitarem de mim?
E é então que me lembro de Péricles. Aí caramba. Será que o líder
dos guardas reais teria a coragem de dizimar uma família inteira por causa
das minhas queixas?
Sinto um nó na garganta. O sentimento de culpa começa a se instalar
dentro do meu ser, manchando levemente a minha consciência. A culpa é
toda minha, independente de quem causou essa chacina.
Neste momento, permaneço no salão, tentando entender a origem do
assassinato. O que quer que tenha desencadeado essa reação, a família
Valktran teve morte instantânea.
— Venha comigo, princesa — ouço a voz desesperada de Louise,
segurando meu braço. Ela começa a abrir espaço entre a multidão, puxando-
me com brutalidade em direção à porta principal.
Vejo Eldarion do outro lado do salão, recolhendo os drones de cima
de uma mesinha. Ele está coberto por uma camada grossa de suor, gritando
barbaridades para os ajudantes dele.
Desvio de uma porção enorme de batatas fritas no chão e esbarro com
a lateral do meu corpo na mesa de drinques. Tudo está fora do lugar como
se o reino tivesse dado início a Quarta Guerra Mundial.
Quarenta segundos depois, estamos nos corredores do palácio. Louise
me guia habilmente, nos desviando da multidão que corre
desesperadamente em lados opostos. De vez em quando, ela olha na minha
direção com uma expressão firme que transmite a sensação de confiança,
como se cada passo calculado fosse uma promessa de segurança em meio à
cacofonia humana.
Automaticamente, minha atenção é atraída para as paredes de ambos
os lados. Os quadros pendurados narram eventos que agora parecem
distantes e intocáveis, como se o presente tumultuado estivesse em
desacordo com a serenidade capturada pelas pinturas. O mármore polido
confere uma elegância ao ambiente, mas sob a luz trêmula das tochas, até
mesmo a majestade das decorações parece obscurecida.
As portas de madeira maciça, ornadas com detalhes entalhados,
passam rapidamente enquanto sigo pelo labirinto palaciano e não tenho
tempo para discernir onde elas vão parar.
Percebo que o alvoroço das pessoas ainda continua ecoando pelos
corredores, reverberando entre as colunas que sustentam o teto abobadado.
— Para onde estamos indo? — questiono, completamente molhada de
suor.
— Para o lado oposto da agitação do palácio — responde Louise,
empurrando as pessoas com agressividade.
Assim que viramos o primeiro corredor, encontramos com Fadye
vindo na nossa direção. Ela parece bastante assustada com tudo o que
acabou de acontecer.
— Graças aos céus, você está bem — fala, aliviada. — Péricles a está
procurando.
— Estou levando a princesa para um lugar seguro — diz Louise,
tentando ultrapassar minha amiga. — Diga a ele que ela está bem.
Fadye franze o cenho, preocupada.
— Mas ele é o guarda-costas da princesa. Ele sabe onde é o lugar
mais seguro do palácio — retruca minha auxiliadora, bloqueando a
passagem.
— Em qual parte do palácio ele se encontra, Fadye? — pergunto.
— Sigam-me.
Louise me impede de segui-la.
— Nós não vamos segui-la, Fadye — declara, se afastando da minha
amiga. — Depois do que aconteceu no salão, a princesa não pode confiar
em ninguém.
Minha amiga olha para ela com uma expressão confusa no rosto.
— Do que você está falando, Lo? Sara é minha melhor amiga e…
— Não posso confiar em ninguém agora — corta Louise, de forma
ríspida.
Não gosto do jeito que elas estão se tratando.
— Louise, não precisa se preocupar com isso — digo, tentando
amenizar a tensão do momento. O atentado contra a família do Duque
deixou todo mundo à flor da pele.
De repente, uma mão misteriosa segura o meu braço e me puxa para
dentro de uma sala escura, trancando a porta imediatamente.
CAPÍTULO 46

A escuridão se estende como um manto opressivo ao meu redor.


A ausência total de luz cria uma sensação de desconcerto, e minha
pele se arrepia diante do desconhecido que se esconde nas sombras. O
silêncio na sala é ensurdecedor, intensificando meu medo enquanto me
esforço para distinguir qualquer som que indique a presença de algo além
da escuridão.
— Quem está aí? — pergunto, trêmula. E não recebo nenhuma
resposta.
Meus sentidos entram em alerta máximo enquanto o meu coração
bate cada vez mais acelerado, como se tentasse romper o silêncio que me
envolve.
— Isso não é legal — aviso, com a garganta seca. Tento me mover
com cautela, estendendo as mãos à frente para evitar obstáculos invisíveis.
A sensação de vulnerabilidade é avassaladora, como se a própria
escuridão estivesse me observando, aguardando o momento certo para
revelar seus segredos mais obscuros.
— Então, a princesa mais destemida do reino de Mirassol tem medo
do escuro? — pergunta a voz de Ad, próxima do meu ouvido.
— Eu sabia que era você — minto, sentindo a tensão do dia indo
embora.
— Sabia? — questiona ele. — Então por que perguntou quem estava
aqui?
Solto um suspiro alto o suficiente para ele ouvir.
— Eu estava testando você
Ad se aproxima de mim, e sinto suas mãos segurarem a minha
cintura.
— Acho melhor sairmos daqui antes que os guardas arrombem essa
porta e me ponham na prisão.
Tateio o corpo dele até encontrar a sua mão.
— Concordo.
Ad me seguia entre a escuridão e abre uma portinha escondida no
canto da sala. A luz do lado de fora explode pelo ambiente, cegando-me por
alguns segundos.
— Primeiro as damas — sugere.
— Obrigada.
Passo pela portinha e me deparo com um pequeno reservatório de
água que se revela como um oásis tranquilo e sereno em meio à
grandiosidade do palácio. O espaço é delicadamente encaixado em um
canto recôndito, como uma jóia aquática que contrasta com a opulência que
permeia outras partes do palácio. As águas límpidas refletem a luz que
penetra pelas aberturas discretas, criando uma imagem de reflexos
dançantes nas paredes circundantes.
Reparo que o reservatório é revestido com azulejos intrincadamente
pintados, cada padrão decorado com peixes de artesanato refinado.
Pequenos nenúfares e lírios flutuam delicadamente na superfície,
adicionando um toque de naturalidade ao ambiente. A presença sutil de
peixes coloridos, que deslizam silenciosamente sob a água, acrescenta vida
ao cenário com sua graciosidade aquática.
Ao redor do reservatório, bancos de pedra foram construídos
desajeitadamente, deixando claro que o local é recebido por bastante
visitantes.
O som de uma pequena cascata, estrategicamente posicionada,
contribui para uma atmosfera relaxante, transformando este cantinho em um
lugar perfeito para reflexão. O aroma leve e fresco da água paira no ar,
proporcionando uma sensação agradável à medida que me aproximo do
reservatório.
— Não sabia que existia esse lado do palácio — digo, impressionada.
— É bonito demais.
Ad se aproxima de mim, e me abraça por trás, esfregando o nariz no
meu pescoço.
— Se eu pudesse, ficaria sentindo seu cheiro por toda a eternidade —
fala, ignorando o meu comentário.
Arfo imediatamente.
— Ganhe o Torneio que eu prometo encher seus aposentos do meu
aroma majestoso — tiço-o, fechando os olhos.
Ad me aperta no seu abraço e beija minha têmpora.
— Como você está? — pergunta, me levando a um dos bancos.
Nego com a cabeça, sentindo o peso da realidade que carrego desde
quando o conheci.
Sinto um turbilhão de emoções dançando dentro de mim, uma
sinfonia de sentimentos que se entrelaçam e se confundem. A vontade de
chorar emerge suavemente, envolvendo meu peito em um abraço apertado.
Tento entender a origem dessa melancolia que se insinua, mas é como se
um véu delicado encobrisse meus pensamentos. Às vezes, as lágrimas são
as palavras que o coração não consegue expressar, e agora, elas se tornam a
linguagem silenciosa do meu estado de espírito.
As emoções parecem colidir, como ondas que se encontram no
oceano, criando um caos suave por dentro. Há tristeza, mas também uma
estranha beleza na fragilidade que experimento. Sei que a vontade de chorar
não é sinal de fraqueza, mas sim um grito profundo do que carrego dentro
de mim.
Sendo assim, permito que as lágrimas caiam e desenhem caminhos
delineados pelas linhas do meu rosto.
Neste momento, ao lado da pessoa que me faz sentir bem, percebo
que, às vezes, é preciso permitir-se sentir para compreender. Percebo que
cada gota que cai é um fragmento de verdade, uma expressão genuína do
que sou. E, mesmo que não compreenda completamente, está tudo bem.
— Por que você está chorando, minha flor? — pergunta Ad,
docemente.
— Tudo o que está acontecendo é demais para mim, Ad. Não sei se
posso suportar até o fim do Torneio. O peso da responsabilidade é um fardo
muito grande. Cada decisão que tomo, cada palavra que profiro, parece
carregar consigo o peso de séculos de tradição e expectativas. Às vezes, me
sinto como se estivesse presa em um vestido de cerimônia imenso, cuja saia
se estende por corredores e deveres infindáveis — desabafo, refletindo
sobre a minha obrigação como princesa. — Cada olhar, cada gesto, é
escrutinado pela corte e pelo povo. A coroa que adorna a cabeça da minha
família, mais do que um símbolo de nobreza, é como uma corrente que me
liga a um destino predestinado. As responsabilidades pesam sobre meus
ombros, como se carregasse não apenas a coroa, mas o reino inteiro.
— Posso imaginar, princesa — diz.
— É um malabarismo constante entre as expectativas dos súditos, as
demandas da corte e os meus desejos pessoais que, por vezes, se perdem na
sombra da posição que ocupo. Desde que o meu pai morreu, minhas noites
de sono muitas vezes são perturbadas por pensamentos sobre o futuro do
reino e as decisões a serem tomadas — suspiro, me sentindo mais aliviada.
— Embora o fardo seja grande, encontro força na ideia de que, através das
minhas ações, posso influenciar positivamente o destino do povo. Certa vez,
o meu pai disse que cada sacrifício, cada escolha difícil, é uma contribuição
para a construção de um legado duradouro. Sabe, às vezes quero tomar a
frente de tudo e resolver as coisas com as minhas próprias mãos. Mas às
vezes, quero seguir o exemplo de Donabella e fugir para o campo além da
cidade, adquirindo uma vida tranquila.
Ad me olha com olhos determinados, respira fundo e segura minhas
mãos.
— Princesa Saravana, herdeira do trono de Mirassol, se eu ganhar
este Torneio e tiver a honra de me tornar seu esposo, prometo fazer de você
a mulher mais feliz deste reino — fala, rompendo o meu fôlego. — Minha
lealdade será um escudo contra as adversidades, e meu coração será um
refúgio onde encontrará paz — continua, demonstrando a verdade que há
por detrás das suas palavras. — Estarei a seu lado em todos os momentos,
não apenas nos dias bons, mas também nos dias de tempestade — diz,
acariciando a minha bochecha. — Seu sorriso será minha maior conquista, e
seu coração, meu tesouro mais precioso — finaliza.
Enquanto ouço suas palavras, uma chama de esperança começa a se
acender dentro de mim. A ideia de encontrar um companheiro verdadeiro,
alguém que entenda as nuances do meu papel, é intrigante e reconfortante
demais.
— Ad… eu, eu não sei o que dizer — admito, totalmente imersa nas
promessas dele. — Eu acho que…
Ele beija minha boca.
O beijo que recebo dele é quente e gostoso, uma fusão de sensações
que faz meu coração acelerar. Seus lábios encontram os meus com uma
suavidade que contrasta com a intensidade que nos encontramos. É como se
uma chama invisível se acendesse, me aquecendo por dentro. Sinto-me
envolvida por uma doçura irresistível, enquanto suas mãos, delicadamente,
encontram meu rosto, aprofundando ainda mais a conexão que se forma
entre nós.
Por um momento, somos apenas dois seres perdidos na intensidade do
momento. Cada segundo do beijo é como um capítulo que se desdobra, me
deixando ansiando por mais. É uma experiência sensorial que transcende o
físico, uma troca de energias que ecoa profundamente em meu ser. A
intensidade me deixa sem fôlego, e por um instante, o mundo ao nosso
redor deixa de existir.
Cada movimento é uma expressão de carinho, criando uma memória
que se torna imortalizada na sensação calorosa que permanece mesmo após
o beijo se encerrar. É como se o tempo, por um breve momento, decidisse
se render à beleza do presente, permitindo-nos saborear a doçura de um
instante que ficará gravado na minha memória para sempre.
Ad se afasta.
— Não precisa me dizer mais nada — fala.
Faço que sim.
— Obrigada por me fazer sentir melhor — agradeço, dando um
selinho nele.
— Acho que te sequestrei no momento certo.
Abro um sorriso fraco.
— Por minha culpa, toda a família do Duque está morta.
Ad franze o cenho.
— Como assim?
— Eu havia comentado tanto com a minha tia quanto com o líder dos
guardas reais que queria Salomé fora do Torneio. Também expressei a
minha repulsa pelo Duque morar no palácio.
— E o que isso tem a ver com as mortes?
— Tanto minha tia quanto Péricles prometeram dar um jeito de tirar a
família Valktran do palácio. Eu até cogitei que minha tia mandasse matar o
Duque, acredita? — confesso, envergonhada. — Mas por sorte, ela rejeitou
minha ideia. Disse que jamais teria coragem de tirar a vida de alguém. E
agora isso.
Ad pensa um pouco, absorvendo a minha confissão.
— Acho que tem mais uma pessoa que você pode acrescentar à sua
lista de suspeitos — avisa.
— Do que você está falando? — questiono. — Existe mais alguém
que seria capaz de eliminar a família Valktran?
Ele faz que sim com a cabeça.
— O príncipe Arnaldo
Prendo a respiração.
— Ad, me explica.
— Dois dias atrás, enquanto estávamos sendo levados ao lavatório,
nos deparamos com um bate boca entre o seu cunhado e o Duque. Parece
que Arnaldo não aceitava alguma proposta feita pelo o pai de Salomé e
estava muito zangado. O estranho é que o Duque não abaixou a cabeça para
o príncipe, como deveria ser de costume, e o chamou de pobre, mesquinho
e miserável. Disse que Arnaldo tinha saído do meio dos caipiras, mas que
os caipiras não tinham deixado dele.
Reflito sobre aquela informação.
O Duque estava totalmente equivocado ao dizer que os costumes
caipiras ainda permaneciam na personalidade de Arnaldo, pois desde que
ganhou o primeiro Torneio do Sol Nascente, ele se tornou um homem tão
enjoado quanto meu primo Deriko. Por outro lado, nunca tenho presenciado
nada que indicasse a inclinação do meu cunhado para o assassinato — a não
ser durante o Torneio.
— Não acho que meu cunhado teria culhão para mandar assassinar
uma família inteira, Ad. Ele pode ser a pior pessoa do mundo quando se diz
respeito à personalidade, mas…
— Sara, deixe de ser ingênua — repreende, se esquecendo com quem
está falando. — Tanto você quanto eu sabemos que ele bate na sua irmã
mais velha. Se ele tem coragem de marcar a princesa quem dirá as outras
pessoas.
Fico boquiaberta.
— Como você sabe disso?
Ele dá de ombros.
— Já estive no meio de muitas mulheres que sofrem nas mãos de seus
maridos, quando eu estava trabalhando na cidade. Não é uma coisa
incomum fora do palácio.
Um sentimento de tristeza invade meu coração.
— Se um dia eu for nomeada a rainha deste reino, mandarei cortar a
cabeça de todos os homens que maltratam as mulheres — prometo.
— E eu a apoio — responde ele, voltando a me beijar.
CAPÍTULO 47

Entro no meu quarto e sou surpreendida por Louise.


— Graças aos céus — fala, aliviada. — Onde você estava, princesa?
Péricles parece ter enlouquecido atrás de você.
Jogo minha tiara perolada em cima da cama.
— Não é da sua conta, Louise — advirto. — Estou cansada. Poderia
me deixar sozinha, por favor? E pode avisar Péricles que já cheguei e estou
bem. Aliás, pede para ele vir falar comigo.
Louise me encara com os olhos marejados de lágrimas.
— Como quiser, princesa — obedece, fazendo reverência.
Tiro minhas sapatilhas e deito no chão, sentindo a parte fria relaxar
minha pele. Quando foi a última vez que fiz isso? Acho que foi na infância.
O frescor do piso causa uma sensação de equilíbrio dentro da minha
cabeça. É como se fosse uma terapia, só que de graça. Respiro fundo pelo
nariz e solto o ar pela boca. Passo 20 minutos olhando para a branquitude
do teto, tentando estabelecer a paz dentro de mim.
O Duque Salajarzo está morto. E agora não existe mais ninguém que
possa interferir no Torneio do Sol Nascente. De certa forma, é um alívio ter
a certeza disso. Um problema a menos para me preocupar. Por outro lado,
ter matado o restante da família dele, inclusive a Laura, prima de Salomé,
foi um absurdo. A menina só tinha 12 anos de idade.
Ouço o miado de Felpudo em cima da cama.
— Olá, gatinho safado. Tudo bem com você? — pergunto.
Ele olha na minha direção e mia novamente.
— É verdade. Eu ando muito sumida ultimamente.
Fadye abre a porta e entra com um cesto de lençóis lavados.
— Você vai acabar matando todos nós — fala, passando por cima de
mim.
— É muito bom ver você também — digo.
Ela coloca o cesto na cômoda e recolhe a comida da mesinha de chá.
— Primeiro: não aceita as instruções de Péricles. E logo em seguida,
desaparece sem deixar respostas. O que você acha que fariam com a gente
caso a princesa mais nova de Mirassol fosse encontrada morta dentro de um
dos aposentos do palácio?
Sorrio, achando graça da paranoia dela.
— Você é muito fanfiqueira, emmm?
— E você, sem noção nenhuma.
Viro de barriga para baixo.
— Eu estava com uma pessoa — digo, mordendo os lábios.
— Por acaso essa pessoa é o futuro príncipe de Mirassol?
Faço que sim com a cabeça.
— Se depender de mim, será mais que o príncipe.
Fadye guarda os talheres na gaveta e começa a cantarolar a nossa
música:
Oh, melhores amigas, como estrelas brilhantes,
Caminhando juntas, através de dias radiantes.
Risadas e segredos, como uma melodia,
Nossa amizade é eterna, uma doce harmonia.
No parque da infância, sob o sol a brilhar,
Caminhamos juntas, sem perceber o tempo passar.
Compartilhamos sonhos, como sementes a crescer,
Melhores amigas, lado a lado, para sempre a florescer.
Oh, nas alegrias e nas dores,
Somos como as estações, mudando cores.
Mas nossa amizade, forte e fiel,
É a âncora que nos mantém de pé no vendaval.
Fecho os olhos e deixo que a melodia invada a minha alma.
Oh, melhores amigas, como estrelas brilhantes,
Caminhando juntas, através de dias radiantes.
Risadas e segredos, como uma melodia,
Nossa amizade é eterna, uma doce harmonia.
No livro da vida, capítulos a escrever,
Você e eu, juntas, a história a tecer.
Compartilhamos lágrimas, sorrisos e canções,
Nossa amizade é como uma poesia de corações.
Oh, nos altos e baixos da jornada,
A amizade é a luz que nunca se apaga.
Cada passo, cada abraço apertado,
Melhores amigas, lado a lado, no caminho marcado.
De repente, sinto vontade de chorar enquanto um medo repentino
toma conta da atmosfera do meu quarto.
Oh, melhores amigas, como estrelas brilhantes,
Caminhando juntas, através de dias radiantes.
Risadas e segredos, como uma melodia,
Nossa amizade é eterna, uma doce harmonia.
A voz de Fadye parece aumentar à medida que ela arruma minhas
coisas.
E quando a tempestade da vida nos abraçar,
A força da amizade nos fará superar.
Unidas, como o sol e a lua a dançar,
Melhores amigas, para sempre a brilhar.
Começo a cantarolar junto com ela, segurando as lágrimas que
ameaçam jorrar pelos meus olhos.
Oh, melhores amigas, como estrelas brilhantes,
Caminhando juntas, através de dias radiantes.
Risadas e segredos, como uma melodia,
Nossa amizade é eterna, uma doce harmonia.
Nossa jornada continua, lado a lado a voar,
Melhores amigas, para sempre a caminhar.
Como um tesouro, em nosso coração,
A amizade verdadeira, uma doce canção.
Assim que Fadye termina, ela corre para o banheiro e vomita.
CAPÍTULO 48

Estou sendo escoltada por Péricles e mais dois guardas reais até os
aposentos da rainha. Ela solicitou a minha presença imediatamente.
Os corredores do palácio fervilham de atividade enquanto caminho
por entre uma multidão de pessoas apressadas. Tanto os funcionários quanto
os residentes se movem como sombras, carregando vestidos deslumbrantes,
arranjando flores frescas e ajustando os últimos detalhes para o aguardado
baile da Dança da Meia Noite — que acontecerá daqui a quatro dias.
— Por que você não veio conversar comigo ontem? — questiono o
líder dos guardas reais, segurando a barra do meu vestido. Madame Zahir
escolheu um modelo bem diferente do qual estou habituada a usar, cheio e
com babado extra grande.
— Eu estava bastante ocupado com os treinamentos dos novos
guardas reais — justifica, com a mão no coldre da espada. — Sua mãe
pediu para contratarmos mais 20 pessoas antes do baile.
— Por que? Está acontecendo algo que eu não sei?
— Não. É apenas a nova logística do palácio.
Olha para ele de soslaio.
— Posso te fazer uma pergunta?
— Não fui eu — responde, acenando para um grupo de guardas.
— O que?
— Não fui eu que envenenei a família Valktran ontem a tarde —
sussurra, tomando cuidado para os guardas atrás da gente não escutarem.
Duas auxiliadoras fazem uma reverência para mim.
— Péricles, a tia Ricarda me disse que ainda estava buscando um
meio de derrubá-los e você me fala que não fez nada? — questiono. — Isso
quer dizer...
— Que sua tia mentiu para tirar o dela da reta — fala, não deixando
que eu conclua minha linha de raciocínio.
— Pode ser que Ad esteja certo.
Ele me olha com confusão nos olhos.
— Ad? O competidor?
— Ele escutou uma discussão entre o Duque e meu cunhado Arnaldo
dois dias antes da celebração — explico, sorrindo para a padeira do palácio.
Ela carrega um cesto de pães fresquinhos.
— Mas isso não significa que ele tenha assassinado os Valktran por
causa das divergências políticas — argumenta, antes de virarmos o corredor
para a esquerda.
— Como você sabe que eles discutiam sobre divergências políticas?
— questiono.
Péricles enrubesce.
— Uma pessoa me contou.
— Quem?
— Não importa, princesa — responde, tentando mudar de assunto. —
O que sabemos é que…
— Quem foi a pessoa que disse isso? — insisto, aumentando o tom de
voz.
Com medo de chamar atenção, ele confessa:
— Michelle.
Explodo.
— Você está saindo com a minha prima?
— Ela é bonita, princesa.
— E você um babaca — xingo, completamente irritada. Meu ex-crush
do qual eu nunca tive a oportunidade de dar um selinho, tendo caso com a
prima mais chata da família. Inadmissível.
— Como é que é?
— Esquece, Péricles — peço, voltando ao que interessa — Como ela
ficou sabendo disso?
— Eu não faço ideia — responde, abrindo as portas duplas que levam
para a outra ala do palácio. — Espera um pouco. Como você sabe que o Ad
sabe da discussão entre o príncipe e o Duque?
O líder dos guardas reais é realmente um bom observador.
— Deduções.
— Ah, explicado o sumiço de ontem — diz, pedindo para os guardas
desta ala mudarem de posições. — Princesa, sua mãe não quer que você
tenha contato com os competidores.
— Foda-se o que minha mãe pensa.
Ele arregala os olhos, abismado.
— Sorte a sua de não morar num país onde os filhos são controlados
pelos pais até completarem 40 anos de idade.
— De onde você tirou isso? — indago.
— Boatos da cidade.
Solto o ar pela boca, entediada.
— O negócio é o seguinte: um de vocês três está mentindo. Porque eu
tenho certeza que se Arnaldo for questionado, ele dirá que não fez
absolutamente nada.
Chegamos aos aposentos da rainha.
— De uma coisa eu tenho certeza, princesa: há sombras que se
movem nas entranhas do palácio. Então peço que continue tomando
bastante cuidado — aconselha, em posição de sentido. — Não confie
plenamente em ninguém, nem mesmo na sombra que segue seus passos. O
trono pode atrair aqueles que desejam mais do que cetros e coroas.
Perco alguns segundos, parada, olhando dentro dos olhos dele.
Alguma coisa me diz que Péricles não está mentindo em relação ao
acontecimento de ontem.
— Obrigada, Péricles — agradeço, colocando a mão sobre a
maçaneta. — Não me esquecerei dos seus conselhos.
Antes de eu entrar, ele pigarreia.
— Ah, só mais uma coisinha — fala, cautelosamente. — Por mais
que seja difícil acreditar, lembre-se que a verdade muitas vezes se esconde
nas entrelinhas, e os que parecem amigos podem ser, na verdade, a falsidade
disfarçada.
Seu último conselho ressoa em minha mente como se despertasse
algo totalmente fora de cogitação. Involuntariamente, meu pensamento se
volta para Louise e suas atitudes recentes em relação à minha amiga Fadye.
Será que ela sabe de algo que eu ainda não descobri?
A ideia de que segredos podem estar sendo encobertos me faz
questionar a verdade por trás das relações que mantemos.
Além disso, o fato de que Fadye está se relacionando com Talles
acrescenta uma camada de complexidade às minhas reflexões. Poderia esse
envolvimento afetar a nossa amizade? Sem contar que o meu primo, filho
da tia Ricarda, emerge como uma peça adicional no quebra-cabeça. A
ligação com uma das suspeitas de mandar assassinar a família inteira do
Duque soma uma tensão às dinâmicas familiares. E se Fadye for a
responsável de colocar o veneno nas bebidas dos Valktran, a mandado de
Talles, com medo do Duque denunciá-los à corte?
Por mais que eu a ame de todo o meu coração, não posso deixar de
considerar as possíveis conexões entre eles. Seria esse o motivo de Louise
ter se sentido incomodada ontem a tarde? Talvez ela saiba de algo
totalmente macabro e tenha medo de compartilhar comigo.
Suspiro. Preciso manter os olhos abertos e discernir entre as máscaras
e as verdades para decifrar os enigmas que se desenrolam diante de mim.
Ao entrar nos aposentos da rainha, a atmosfera muda. A quietude
toma conta do espaço, e a decoração suntuosa revela o gosto refinado da
monarca.
Enquanto sigo em direção ao núcleo do palácio, onde minha mãe
provavelmente se prepara para argumentar sobre os homicídios de ontem,
preparo o meu psicológico para aguentar horas e mais horas de discussões.
CAPÍTULO 49

Adentro a sala de reuniões do palácio e imediatamente sou envolvida


por uma atmosfera pesada e desagradavel.
O ambiente é decorado com painéis de madeira escura que revestem
as paredes e sustentam obras de arte de eras passadas, como uma torre
pontuda, uma estátua de braços abertos e outra segurando um tipo de tocha
estranha.
Olho para cima e reparo que os lustres pendem do teto alto, lançando
uma luz avermelhada sobre a longa mesa de carvalho polido que se estende
pelo centro da sala.
A mesa está forrada com toalhas bordadas e conjuntos de louças
finas, evidenciando a elegância do lugar. Cada cadeira estofada, disposta em
ambos os lados da mesa, é decorada com finas linhas douradas,
representando a riqueza do palácio. Ao fundo, a lareira está acesa com
brasas crepitantes dançando em um jogo de sombras e luz.
A auxiliadora de Téssia, Xanthe, coloca na mesa várias folhas de
pergaminhos junto a um conjunto de pena e tinteiro, prontas para
registrarem os eventos importantes que se desdobrarão durante a reunião. É
aqui que os destinos são moldados, as alianças forjadas e o curso da história
do reino delineado em cada palavra pronunciada. É um lugar onde os
acontecimentos do passado se encontram com as complexidades do
presente, tornando a sala de reuniões um verdadeiro epicentro de poder e
diplomacia. Além dos gritos e das baixarias que acompanham cada pauta e
opinião expressada.
À medida que me aproximo da mesa, noto os detalhes cravados do
design que ela carrega nas laterais. A madeira parece flutuar no ar,
sustentada por suportes delicados que se fundem com a transparência,
conferindo uma elegância moderna ao ambiente.
Me sento ao lado de Rubens.
— Onde está Cássia? — pergunto. — Ela está bem?
— Sim. Decidimos que seria melhor para ela se não participasse da
reunião. É estressante demais e isso poderia prejudicar no desenvolvimento
do bebê.
Balanço a cabeça, compreendendo.
— Você sabe se a tragédia na cerimônia foi registrada pelos drones de
Eldarion?
— Graças aos céus, não. Seria um escândalo impossível de reverter.
As pessoas já não se sentem bem com a falta de um rei no poder, agora,
imagina se descobrissem essa desordem dentro do palácio? — questiona,
alterando o tom de voz. — Não podemos deixar que o povo se sinta
inseguro.
— Você tem razão — digo, escrevendo o meu nome no pergaminho.
Do outro lado da mesa, o Conde Enguerrand e a Condessa Rosmerta
conversam calorosamente com Fredd, o mordomo real. Ele gesticula com as
mãos enquanto a esposa dá tapinhas nas costas dele. O Marquês Dalibor e a
Marquesa Odilia escutam as falas apressadas do meu cunhado Arnaldo que
pede a opinião de Téssia a cada cinco palavras ditas. Minha irmã parece
mais magra e expressa uma aparência cansada nos olhos.
— Por que o Conde e a Condessa estão aqui?
Rubens olha para eles.
— A rainha vai nomeá-los os novos Marqueses do reino e os
Marqueses serão…
— O novo Duque e a nova Duquesa? — pergunto, cortando-o.
— Exatamente. Sua mãe não quer deixar brechas na corte.
— E quando será o funeral da família Valktran?
— Foi hoje de manhã — fala, como se fosse algo comum de
acontecer.
— E por que ninguém me avisou nada? — indago, irritada. — Estão
me fazendo de palhaça? Sabe, às vezes parece que nem faço parte da
família real.
Rubens se aproxima do meu rosto e fala baixinho:
— A rainha mandou os guardas enterrarem os corpos nos fundos do
palácio — revela, olhando dentro dos meus olhos. — E você não sabe de
absolutamente nada, entendeu?
Um sentimento de incredulidade toma conta de mim, e sinto um
pouco de náuseas.
A revelação me atinge como um golpe inesperado, me deixando
momentaneamente atônita. Como é possível que existam pessoas tão
insensíveis, tão distantes da compaixão como minha mãe? Como é possível
que aqueles que deveriam ser nossos maiores apoiadores possam, por vezes,
agir de maneiras que desafiam nossa compreensão? É difícil conciliar a
ideia de que alguém tão próxima, tão ligada por laços sanguíneos, possa
manifestar tamanha insensibilidade.
Me pergunto como chegamos a esse ponto, como as relações
familiares podem ser marcadas por tão profundo descompasso emocional?
O capitão da guarda real, e também chefe de Péricles, se aproxima e
faz uma reverência extremamente exagerada. Ele não é um homem muito
alto, e percebo que não está mais em forma.
— Princesa, sinto muito pela morte do rei Kalayo e por todas essas
atrocidades que aconteceram nas últimas semanas — expressa ele, olhando
diretamente para as minhas pernas.
— Obrigada, Hawise. Não sabia que estava no palácio.
Ele arruma a postura e infla o peito.
— Seis meses de férias passam rápido, princesa. Além do mais,
minha esposa Cateline não aguentava mais a família caipira. Pedia para
voltar ao palácio quase todos os dias — explica.
O cargo de capitão da guarda real é um dos mais puxados, mas
também muito bem remunerado. Hawise tem que trabalhar por dois anos
seguidos, sem folga, para tirar férias de seis meses quando cumpre o prazo
estipulado. Ele é designado exclusivamente para proteger o rei e a rainha.
— Então, sejam bem-vindos de volta.
— Agradecido — diz, sentando ao meu lado.
A porta da sala de reuniões se abre, e a rainha adentra usando um
vestido deslumbrante, porém reparo que seus olhos trazem uma melancolia
que não passa despercebida. Seu semblante parece carregar o peso de
decisões difíceis e responsabilidades avassaladoras. Cada ruga que traça sua
pele é como uma marca deixada pelo tempo, não apenas cronológico, mas
pelo cargo que precisa suportar até que o novo rei seja escolhido. A coroa
que repousa em sua cabeça parece mais pesada do que nunca, e os cabelos
que um dia foram loiros vibrantes exibem traços prateados.
Todos nós permanecemos em silêncio enquanto minha mãe toma seu
assento, delicadamente. Ela respira fundo e apoia os cotovelos na mesa,
perdendo a formalidade.
— As notícias do falecimento da nobre família Valktran trouxeram
tristeza e incredulidade para todos os residentes do palácio — inicia,
totalmente desmotivada. — Neste momento, expresso minhas mais sinceras
condolências a todos os presentes.
Olho para Téssia que dá de ombros.
— O que está acontecendo com ela? — pergunto para Rubens.
— Silêncio ou vamos perder a cabeça ainda hoje — repreende.
— A perda de vidas tão estimadas é uma tragédia que abala a
fundação de nossa comunidade, e compartilho do sofrimento que se estende
por todos os cantos do reino. Ah, é verdade. Foi um caso isolado. Então,
aconselho que todos vocês continuem de boca fechada — fala, rindo do
próprio comentário. É notável que ela está um pouco bêbada. — Quanto aos
responsáveis por este ato cruel, saibam que a justiça será implacável.
Iniciaremos uma investigação minuciosa para descobrir os culpados por
essa tragédia. Nenhum esforço será poupado para garantir que aqueles que
trouxeram esse estrago à nossa casa real enfrentem as consequências de
seus atos. A lei do reino será aplicada com rigor, e os responsáveis serão
levados à justiça. Não haverá refúgio para os criminosos, e nenhum véu de
impunidade será tolerado.
A rainha olha diretamente para Arnaldo e franze o cenho.
— Quem é você mesmo, meu jovem?
O Conde e a Condessa seguram o riso.
— O príncipe Arnaldo, majestade — responde, engolindo em seco. —
Seu genro.
Minha mãe faz uma careta esquisita e ignora a presença dele.
— Não tem problema. Saravana, querida, onde você está?
— Aqui, mamãe — respondo, acenando com a mão.
— Está se divertindo com o Torneio do Sol Nascente? — pergunta,
fechando os olhos por um momento.
— Bem, eu…
— Não importa. Declaro que, depois do baile da Dança da Meia
Doida, será aplicada a última etapa para acabarmos logo com essa merda.
A Marquesa encara minha mãe com desgosto.
— Majestade, ainda há três competidores no Torneio — fala Arnaldo,
massageando a mão enfaixada. — E as pessoas já pagaram os ingressos
adiantados.
— Então devolva o dinheiro para o povo. Ninguém mandou arrecadar
antes do tempo. Saiba que há um tempo determinado para todas as coisas,
Arnaldo. É muito feio ir contra a lei da natureza, sabia? — argumenta,
tirando um pouco do cabelo na boca. — É por isso que trouxe a corte aqui
hoje, para assinar o adiamento do Torneio. Sem um rei, não posso autorizar
a mudança sozinha. E para isso, todos devem estar de acordo. Alguém não
concorda com a minha decisão?
Ninguém fala nada.
Fredd trás uma carta e coloca em cima da mesa.
— A carta do rei, majestade — avisa, fazendo a reverência.
— Obrigada, Fredd. Sempre muito gentil — agradece. — Téssia,
minha querida. Será que você tem o culhão de ler essa carta em voz alta,
por favor?
Téssia pega a carta e fica de pé, envergonhada.
Meus amados súditos,
Ao redigir esta carta, sinto o peso da responsabilidade que carreguei
como vosso rei. O tempo chegou e devo reconhecer a inevitabilidade da
transição. E é com humildade e gratidão que me dirijo a vós.
Após longas reflexões e discussões com a minha amada Rainha e meu
melhor amigo Fredd, cheguei à conclusão de que o próximo monarca deve
emergir de entre meus genros, os príncipes que agora compartilham o
sangue real. Contudo, em um gesto que busca preservar a justiça e a
vontade do povo, a escolha final não recairá sobre meus ombros. Através
desta carta, anuncio que o povo terá um papel vital na determinação do
próximo rei. A responsabilidade de escolher aquele que será digno do trono
será compartilhada por todos os cidadãos do reino. A opinião de cada um
de vós será ouvida e considerada como parte integral deste processo
crucial.
Nos próximos dias, quando encerrar o Torneio do Sol Nascente,
deverá ser organizado um conselho especial, composto por representantes
do povo, nobres e conselheiros de confiança. Este conselho será
encarregado de conduzir um processo transparente e democrático para
avaliar as qualidades e méritos de cada príncipe.
Os príncipes, por sua vez, serão submetidos a testes de caráter,
habilidades e conhecimento, a fim de demonstrar sua aptidão para liderar
o reino. O povo será convidado a testemunhar e participar ativamente,
garantindo que a escolha seja verdadeiramente refletida na vontade da
maioria.
Que esta decisão fortaleça ainda mais a relação entre a realeza e o
povo, solidificando os alicerces de um reino justo e democrático. Agradeço
antecipadamente por vossa participação e apoio neste momento crucial de
nossa história.
Com gratidão e respeito,
Rei Kalayo.
Finaliza Téssia, olhando de soslaio para a minha mãe.
— Muito obrigada, querida. Pode sentar no seu lugar — fala a rainha,
um pouco animada. — Alguém tem alguma dúvida?
Arnaldo levanta a mão.
— Prossiga.
— Tem certeza que a melhor escolha para eleger um rei é colocando
essa condição na mão do povo? — pergunta, indignado. Meu cunhado sabe
que ele nunca foi e nunca será o favorito do povo de Mirassol.
— Algum problema? — questiona a rainha, brincando com as pontas
do cabelo.
— Sim, muitos. E o maior deles é as pessoas não gostarem de mim —
expõe, controlando as emoções. — Não será uma decisão justa se já entrarei
em grande desvantagem.
Minha mãe solta uma risada descontrolada.
— Você é engraçado, Arnaldo. Muito engraçado. Saravana, minha
filha. Por favor, não escolha um homem retardado como o marido da sua
irmã, combinado? — provoca ela, aumentando ainda mais o ódio que
Arnaldo sente por mim. — Se você está preocupado com isso agora,
querido, então comece a tratar o povo com mais simpatia. Faça como
Erasmos que, ao rodar pelas quatro zonas do reino, sai do carro para abraçar
a multidão e tomar café na casa das pessoas.
Arnaldo fecha a cara e cruza os braços.
— Decidido. Podemos finalizar?
— A nossa promoção, majestade — lembra a Condessa Rosmerta,
com uma voz engarrafada. O colar de pérola que ela usa é tão grande que
parece um monte de ovos cozidos pendurado no pescoço.
— Eu declaro o Conde e a Condessa em Marqueses e os Marqueses
em Duque e Duquesa. Pronto. Promovidos. Agora só assinam o documento
real que Fredd carimba para vocês.
A antiga Marquesa, que agora é Duquesa, arregala os olhos como se
tivesse acabado de presenciar a morte do marido dela.
— Já descobriram a origem do veneno que matou a família Valktran?
— pergunto, chamando atenção de todos para mim. — É apenas uma
curiosidade.
— Sabia que eu quase mandei degolar Apricio, o chefe de cozinha
real, acreditando que a culpa era dele? — comenta minha mãe, ficando de
pé. — Mas os peritos descobriram que o veneno estava pincelado na borda
das taças que eles usaram. Sendo assim, pode ter sido qualquer pessoa.
— De qual origem era o veneno? — questiono, ignorando os olhares
acusatórios.
— Bruxios Bolaris, uma substância encontrada nas plantas cultivadas
fora da cidade — responde a rainha, e sai da sala.
CAPÍTULO 50

Listas de suspeitos e seus motivos.


Tia Ricarda: pode ter planejado assassinar toda a família do Duque
para garantir que o filho não seria denunciado.
Péricles: em ato de lealdade a minha pessoa, pode ter cometido um
erro gravíssimo ao colocar em prática um plano homicida.
Arnaldo: há possibilidades, embora absurdamente pequenas, do meu
cunhado ter matado os Valktran por questões estratégicas ainda
desconhecidas. Além do mais, Salomé havia deixado claro que gostaria de
tomar posse do poder, modificando as regras e transformando o reino em
mais um desses países desequilibrados.
Fadye: pode ter sido manipulada por Talles ou até mesmo pela tia
Ricarda, considerando o fato de que ela é só mais uma escrava comprada
da cidade.
Leio e releio minhas anotações várias vezes, tentando encaixar tudo
no seu devido lugar. É difícil de acreditar que todas as possibilidades
terminam no meu relacionamento com Ad.
Fadye pode ter feito aquilo por causa de Talles que foi ameaçado pelo
Duque caso minha tia Ricarda não me manipulasse para casar com Salomé.
Ou também o Duque pode ter expressado sua vontade de subir ao trono,
ameaçando a todos os membros da família real, fazendo com que meu
cunhado tomasse providências drásticas. Talvez Arnaldo tenha deduzido
que a participação de Salomé no Torneio havia sido o primeiro passo para o
Duque colocar em prática os seus planos. Matar Salomé e toda a sua família
dizimou a possibilidade do sobrenome Valktran reinar em Mirassol.
Fadye entra no meu quarto com uma bandeja repleta de guloseimas
nas mãos. Ela coloca o recipiente em cima da cama e puxa uma cadeira para
se sentar.
— O que é isso? — questiono, duvidosa. Infelizmente não consigo
mais confiar na minha melhor amiga. E isso parte o meu coração.
— Faz tempo que não comemos umas besteirinhas no palácio. Então,
achei legal a gente tirar um tempo para conversar um pouco. Lembra? Igual
quando éramos pequenas.
Faço que sim com a cabeça e uma melancolia preenche os meus
sentimentos.
— Do que você quer falar?
— Hmmmm. Você acha certo o palácio não fazer uma homenagem
aos Valktran?
Sinto um frio na espinha. Será que ela está me testando?
— O que você acha?
Ela pega uma porção de jujubas coloridas e coloca na boca.
— Eles moravam no palácio desde que eu era pequena. Sendo assim,
concluo que sua mãe deveria ter um pouquinho mais de consideração. O
Duque, querendo ou não, ajudou o rei Kalayo muitas vezes durante várias
crises econômicas.
Cruzo minhas pernas e pego um pouco de jujuba também.
— Minha mãe não quer que a notícia dos homicídios se espalhe pelo
reino. Fazer uma homenagem desse tamanho causaria caos e insegurança ao
povo de Mirassol. E, uma vez o povo ferido, a facilidade de manipulá-lo e
incentivá-lo a um pedido de impeachment é grande demais — explico.
Fadye abre um sorriso generoso.
— Você fala como uma verdadeira rainha, Sara.
— Eu só falo o óbvio. É melhor ter o povo com a gente do que contra.
Aprendi isso com o papai.
— O rei e seus bons ensinamentos — fala, brincando com um cacho
de uvas vermelhas.— Quem você acha que fez aquilo com os Valktran?
Cerro a mandíbula, incomodada com a conversa. Não sinto nenhum
pouco a vontade de falar sobre esse assunto com ela.
— Podemos mudar de assunto? — pergunto. — Acho que você
queria ter uma tarde mais leve, não é?
— Sim, claro. Perdão.
Deito na cama e o papel com a lista de suspeitos faz barulho.
Fadye me encara.
— O que foi?
— Acho que você deitou em cima de alguma coisa.
— E qual é o problema? — pergunto, meio ríspida.
Minha amiga se assusta com a minha pergunta.
— Sara, você está bem?
— Não — admito. — Não estou bem. É muita informação para eu
processar sozinha. Desculpa.
Ela compreende.
— Quer descansar um pouco?
Percebo que ela ficou chateada comigo.
Fungo. Não era isso que eu tinha planejado para o dia de hoje.
— Desculpa, se estou sendo chata ou algo assim, Fadye. Mas não
consigo me concentrar em nada agora. Prometo que, em breve, tudo voltará
ao normal — digo, na esperança de encontrar o culpado e livrar minha
amiga dessa acusação psicológica.
Fadye beija minha bochecha, sai do quarto e fecha a porta.
Suspiro.
Estou tão cansada. Desde a conversa com Péricles, não consigo deixar
de suspeitar de tudo e de todos, tentando encontrar as respostas para esse
mar de atrocidades. Cada passo que dou nos corredores parece carregar o
peso das revelações, e a desconfiança se tornou uma sombra constante ao
meu redor. Os próprios alicerces do palácio parecem instáveis, como se
cada pedra escondesse segredos que tremem sob o desconhecido.
A busca por respostas se tornou exaustiva, mas não consigo ignorar a
urgência de compreender a verdade que se esconde no meio das pessoas que
residem no mesmo lugar que eu. A cada momento de distração, me perco
com pensamentos tumultuados, tentando decifrar os enigmas que envolvem
o homicídio da família Valktran. É um cansaço que vai além do físico, uma
exaustão emocional que se acumula a cada suspeita perturbadora. A
incerteza paira no ar como uma tempestade iminente, e eu me vejo cercada
por um mar de intrigas, incapaz de encontrar uma costa segura para ancorar
meus pensamentos.
Mas mesmo na exaustão, a chama da determinação ainda arde em
meu interior. Não posso permitir que a fadiga me domine completamente,
pois há verdades a serem descobertas, justiça a ser buscada e um reino que
depende da clareza nos momentos mais obscuros.
Respiro fundo. Preciso encontrar forças para continuar, mesmo que
cada passo pareça ser dado através de um nevoeiro de incertezas.
Ouço três batidas na porta e sei que é Péricles querendo entrar.
— Entre — permito, me levantando da cama.
O líder dos guardas reais aparece trazendo consigo um jovem
maltrapilho.
— Princesa, este é Grannus, seu mais novo provador de comidas —
apresenta.
— Provador de comidas?
— Sim. De agora em diante, será designado um responsável para
realizar a degustação das refeições de cada membro da família real —
explica.
— Por causa do que aconteceu com os Valktran? — questiono.
— Exatamente. Bem, vou deixá-los uns minutos a sós, para que
possam conversar um pouco. Qualquer coisa, é só gritar por socorro.
Péricles sai do quarto, mas deixa a porta aberta.
— Sente-se — ofereço, empurrando uma cadeira para o rapaz. —
Meu nome é Saravana.
— Eu sei. Mas fui informado de chamá-la somente por princesa.
— Tudo bem — respondo, tomando assento diante dele. — Por que
você se inscreveu nesta... vaga?
— Sim. O palácio abriu um edital dois dias atrás, oferecendo bastante
dinheiro em troca da nossa vida — fala, disparadamente.
— Nossa vida?
— É claro. Quem sabe se vamos morrer comendo um pedaço de
tortinha amanhã ou depois de amanhã ou na semana que vem? —
exemplifica, olhando para os pãezinhos no cesto. — O bom é que poderei
provar todo tipo de comida refinada.
— Quantos anos você tem?
— Dezenove, mas todos acham que tenho quinze.
— Explicado — digo, reparando que o rapaz tem uma maneira
bastante infantil de se expressar.
— É verdade. Eu estou desnutrido assim por causa da minha
condição.
— Que condição? — pergunto, curiosa. É verdade que ele é muito
magro para a idade que tem. Os cabelos são falhos e os lábios ressecados.
— Meu corpo não absorve os nutrientes necessários, então acabo
emagrecendo muito rápido.
Afirmo com a cabeça.
— Certo. De qual zona você vem?
— Eu sou daqui mesmo. Moro perto do paredão
— Paredão?
— É o nome que damos para o muro que cerca o palácio. Nunca
ouviu a expressão "onde você mora, eu moro no paredão" ? — pergunta.
Nego.
— É a primeira vez, ganso.
— Grannus. O meu nome é Grannus.
— Certo. Você fala demais.
— A princesa que é faltosa de informação.
Sinto como se tivesse levado um tapa na cara.
— Está me chamando desinformada?
— Ser uma pessoa desinformada ou ter falta de conhecimento são
duas coisas completamente diferentes — explica, coçando a cabeça.
— Ganso.
— É Grannus. G. R. A. N. N. U. S.
— O que significa o seu nome?
— Aquele que é brilhante — fala, todo pomposo.
— Deveriam trocar por irritante — disparo.
— Obrigado, eu sei que sou elegante.
Olho para o rapaz da cabeça aos pés.
— Você vai ficar no palácio todos os dias?
— De segunda a sábado.
— E quem provará minha comida aos domingos? — indago.
— Isso não é da minha conta — corta, totalmente seco.
— Como ousa falar comigo desse jeito?
— Mas foi assim que o líder dos guardas reais me disse.
— Tudo bem, panos.
— Grannus.
— Tanto faz — falo, ficando de pé. — Obrigada por compartilhar um
pouquinho da sua história comigo. Agora já pode ir se aventurar pelo
palácio.
Ele se levanta e faz a referência de modo que quase cai.
— Obrigado, princesa Caravana.
— É Saravana! — corrijo, percebendo que ele fez de propósito.
CAPÍTULO 51

Faltam exatamente dois dias para acontecer o baile da Dança da Meia


Noite, mas não me sinto muito ansiosa.
Caminho pelo jardim do palácio, acompanhada por Péricles e mais
três guardas reais. Hoje, apesar da proximidade do inverno, o calor
predomina. O céu permanece claro, desprovido de nuvens que poderiam
trazer algum frescor.
Assim que atravesso as portas ornamentadas, sou recebida pelo aroma
doce das flores que sacodem no ar, criando uma atmosfera de tranquilidade.
Os jardins se estendem diante de mim, um mar verdejante em
contraste com a imponência dos muros de pedra que cercam o palácio.
Serpenteio por trilhas de cascalho fino, sob a sombra de árvores antigas.
Cada passo é acompanhado pelo murmúrio das folhas balançando ao vento.
Flores de cores vibrantes estão plantadas em canteiros cuidadosamente
dispostos, e descubro um espetáculo de pétalas que se exibem como uma
pintura viva. As rosas exalam um perfume embriagador, enquanto as
violetas se escondem timidamente entre as folhas exuberantes.
Chego à fonte no centro do jardim, onde a água flui suavemente,
criando uma melodia relaxante que se mistura ao cantar dos pássaros nas
copas das árvores. Encontro um caminho sinuoso que me leva até um
pequeno pavilhão coberto de trepadeiras floridas. Deixo-me envolver pela
sombra fresca enquanto observo a luz filtradas pelas folhas. Uma sensação
de calma se instala dentro do meu ser, como se o tempo desacelerasse,
trazendo um pouco de paz para minha alma.
Ao longo do percurso, cruzo com estátuas e arbustos esculpidos
artisticamente, exibindo a maestria dos jardineiros que mantêm este lugar
extremamente limpo e organizado.
— Permaneceria aqui para sempre, se fosse possível — murmuro para
mim mesma.
Assim que seguimos a rota para a direita, me deparo com o
treinamento dos novos guardas reais. Há mais ou menos 30 pessoas, todas
cobertas de suor pelo esforço que estão fazendo. O contraste entre a beleza
tranquila das flores e a energia crua dos exercícios militares cria um cenário
diferenciado, onde a natureza coexiste com a disciplina marcial.
O som de espadas se chocando preenche o ar, misturando-se ao
grunhido dos rapazes enquanto executam movimentos precisos. Sob a copa
das árvores, escuto instruções curtas e comandos disciplinados, tudo em
harmonia com o chilrear distante dos pássaros.
— Os guardas praticam uma série de exercícios que demonstram
força e agilidade — explica Péricles, parando ao meu lado. — Alguns estão
envolvidos em duelos simulados, enquanto outros aprimoram técnicas de
defesa em formação disciplinada.
— Impressionante — digo.
Os instrutores, com olhares atentos, corrigem posturas e oferecem
orientações precisas. Se eu pudesse, treinaria com eles todos os dias.
— Gostaria de entrar na arena do Torneio do Sol Nascente? —
questiona Péricles, aguardando a minha resposta.
— Eu tenho permissão?
— Saravana, você é a princesa deste reino. Não precisa de permissão
para visitar certos lugares do palácio — fala, achando graça.
— Então eu quero — respondo, imediatamente.
Péricles me conduz até o outro lado do jardim e, minutos depois,
estou parada diante da porta onde acontecem as maiores barbaridades do
mundo.
Entro na arena onde os combatentes se enfrentam, mesmo hoje sem
espetáculo, e fico admirada. Passo os olhos por todo o ambiente, girando
360 graus, observando a grandiosidade da arquibancada que se estende
diante de mim. As fileiras de assentos se elevam em camadas, formando um
anfiteatro. Cada banco parece registrar inúmeras batalhas e momentos de
glória que ecoam nas estruturas de pedra. O ambiente, mesmo vazio,
carrega uma aura de expectativa, como se as próprias paredes guardassem
as histórias dos competidores que aqui lutaram.
O chão de terra batida misturada com areia fofa está marcado por
cicatrizes passadas, mostrando a intensidade dos confrontos que ocorreram
neste palco. As grades de ferro que cercam a arena, como sentinelas
silenciosas, separam o campo de batalha do público, criando uma barreira
que destaca a grandiosidade do espetáculo. As bandeiras que adornam as
paredes tremulam levemente, como se cumprimentassem a tradição que
permeia neste lugar.
Fecho os olhos e sinto a energia acumulada, como se as vozes dos
aplausos e gritos de incentivo ressoassem no ar, aguardando o momento em
que a arena voltará a pulsar com a intensidade de uma competição. Cada
detalhe do ambiente é meticulosamente planejado, desde as inscrições nas
paredes até as esculturas que adornam as extremidades da arena.
— Não tinha noção de que era tão grande — comento, apontando
para a sacada lá em cima. — Da sacada parece ser tão pequena.
— Acredito que a emoção é a mesma — comenta Péricles, chutando
uma pedrinha.
Olho para o chão e consigo distinguir alguns vestígios de sangue
pegado aos grãos de areia. Lembro que foi justamente aqui que Francio
matou Carlos Eduardo. Foi justamente aqui que, pela minha ordem, o juiz
cortou a cabeça do competidor fora.
— Você nunca cogitou participar do Torneio? — pergunto, tentando
esquecer da violência que o evento proporciona.
— E me casar com você? Não, obrigado.
Olho feio para ele.
— Nem todos os competidores se inscrevem com o interesse nisso.
— Acho que fazer parte da guarda do palácio é muito mais
emocionante do que lutar pela atenção do público. Existem muitas pessoas
que buscam por aprovações, mas acabam se esquecendo de quem realmente
são.
— Você conhece alguém que passou por isso? — questiono.
Ele faz que sim.
— Tenho uma prima na cidade que fez coisas horríveis para
impressionar uma pessoa. No fim, ela quase perdeu a própria vida —
comenta, suspirando. — A gente aprende com os erros dos outros, não
acha?
— Claro. Você tem toda a razão — respondo.
De repente, um mensageiro oficial do palácio se aproxima e faz a
referência tradicional.
— Princesa, perdoe-me incomodá-la.
— Pois não.
— Preciso avisá-la do que acabou de acontecer dentro do palácio.
Gelo. Não é possível que ocorreram mais mortes durante o meu
passeio.
— Prossiga.
— Sua prima Michelle foi encontrada toda arrebentada no quarto
dela.
— Como assim? — pergunto, pega de surpresa.
— Ela sofreu uma tentativa de homicídio e agora se encontra na ala
hospitalar entre a vida e a morte.
CAPÍTULO 52

Peço para Pericles me levar até os aposentos dos competidores.


Devido a notícia do atentado contra Michelle, um medo se instala
dentro de mim. Tenho a sensação que a qualquer momento, quem quer que
esteja por detrás desses ataques, colocará a vida dos competidores em risco.
Preciso vê-los e alertá-los imediatamente, antes que seja tarde demais.
Péricles me guia por corredores estreitos do palácio, caminhando com
passos firmes que ecoam pelas paredes. À medida que avançamos, sinto a
atmosfera mudar. A grandiosidade dos corredores principais dá lugar a um
ambiente mais íntimo e reservado. As paredes são de tons acinzentados e
parecem refletir a luz do dia que entra pelas janelas circulares. Há menos
funcionários deste lado do palácio, o que me faz pensar que a probabilidade
de invadirem os quartos sem serem vistos é grande demais.
— Chegamos, princesa — avisa ele, parando em frente a uma porta
maciça.
— Abra, por favor — peço.
— Tem certeza? — questiona, ainda parecendo estar duvidoso.
— É uma ordem, Péricles.
Sem mais perguntas, ele a abre, revelando o interior dos aposentos
reservados aos competidores. A sala é uma extensão do mistério que
permeia o palácio, composta por três portas de vidro. Acima de cada porta,
leio o nome de cada competidor, sinalizando o quarto de cada um deles.
No centro, vejo armaduras penduradas e armas agressivamente
dispostas. O cheiro de cera e óleo de armas preenche o ar, indicando que
alguém havia lustrado os objetos agora pouco.
— Princesa? O que está fazendo aqui? — pergunta Oed, todo suado e
sem camisa. É notório que ele fazia exercícios antes de eu entrar aqui.
Ad sai do seu quarto, vestindo uma camiseta regata da cor branca que
realça os músculos do tórax. Nunca imaginei que o meu competidor
favorito tivesse peitos tão grandes.
Assim que ele percebe a minha presença, fica vermelho.
— Princesa Saravana — fala, curvando-se diante de mim. — É uma
honra tê-la em nosso aposento.
Félix surge do nada, apenas com uma toalha enrolada na cintura. Ele
sacode os cabelos molhados, ajeitando os cachos com as mãos.
— Ai caramba, princesa! — exclama, totalmente desalinhado. — Não
sabia que era possível acontecer uma visita como esta por aqui.
Sinto uma pontada de nervosismo ao estar invadindo o momento
íntimo dos competidores, mas precisava garantir que eles se encontravam
bem.
— Rapazes, peço perdão por não avisá-los, mas eu precisava vê-los
imediatamente — digo, lutando para não prestar atenção apenas em seus
corpos. — Houve mais um ataque esta manhã. Não sei ao certo o motivo,
mas quero que tomem cuidado. Estamos nos aproximando da reta final do
Torneio e, quem quer que esteja cometendo essas barbaridades, pode tentar
interferir no evento — compartilho minha preocupação, olhando
diretamente para Ad. — Pedirei ao líder dos guardas reais que coloque mais
um grupo de guardas para acompanhar vocês em todos os lugares. Peço
encarecidamente que não saiam sozinhos. Respeite as regras e os horários
estabelecidos para as demais atividades. Qualquer coisa fora do normal
comuniquem às autoridades.
— E quanto a senhorita? — pergunta Félix, escondendo o corpo atrás
de uma armadura de bronze. — Não acho que deveria andar por lugares
como este no palácio. Se está sendo perigoso demais, aconselho que evite
se expor o máximo que puder.
— Concordo com Félix, princesa — fala Oed, com as mãos
apoiadas na cintura. Tenho uma leve impressão que ele quer se exibir um
pouco. — Eu sei que é bastante doloroso ficar longe da gente, mas em
breve estaremos juntos novamente.
Ad segura uma risada.
— Você nunca perde a oportunidade, não é?
— A senhorita dá brecha — dispara, dando de ombros.
Abro a boca para criticá-lo, mas Péricles segura meu braço.
— Acho que a senhorita já conversou o suficiente com os
competidores hoje — sussurra no meu ouvido. — Melhor voltarmos ao
palácio antes que a rainha descubra que estamos aqui e arranque minha
cabeça fora.
Assinto, contra a minha vontade.
— Então, é isso rapazes — finalizo. — Qualquer dúvida, estarei à
disposição.
Ad, Oed e Félix, educadamente, fazem a reverência tradicional e
permanecem encurvados enquanto saio do aposento.
— Por favor, princesa. Todo cuidado é pouco — avisa Ad,
preocupado, sem olhar na minha direção.
CAPÍTULO 53

São 11h45 da manhã.


Acordo um pouco tarde e recebo a notícia de que Michelle está bem.
Rápida como um foguete, troco de roupa e resolvo ir até a ala
hospitalar. Pericles, sem pensar duas vezes, me acompanha em pleno
silêncio — o que me faz duvidar do seu envolvimento com o
acontecimento, embora estivesse comigo no momento que o ataque
ocorreu.
Chegando ao local, deixo o meu guarda-costas do lado de fora e peço
para a recepcionista me informar o quarto que minha prima está instalada.
— Sala 2, cama 5 — fala, anotando meu nome no cartão de visitas.
— Obrigada.
Corro até o endereço indicado, tentando ganhar tempo sozinha com
ela. Não quero que ninguém apareça e me veja fazendo perguntas suspeitas,
como se eu desconfiasse da profissionalidade dos investigadores. Porém,
não posso esquecer que todos, incluindo os membros da minha família, são
suspeitos agora.
Assim que me aproximo da cama de Michelle, seguro um grito.
Minha prima está imersa em uma rede complexa de fios e eletrodos,
conectada a várias máquinas que emitem zumbidos e cliques ritmados. Seu
rosto, outrora radiante, agora está totalmente desfigurado pelas agressões
que sofreu.
— Ah, Michelle.
Sinto uma mistura profunda de pena e pavor ao mesmo tempo. Quem
teria coragem de fazer uma coisa tão horrível como esta? Embora Michelle
não fosse flor que se cheire, ela não merecia ter sido agredida no rosto de
forma tão violenta.
Os eletrodos parecem uma teia eletrônica, ligando-se a diferentes
partes de seu corpo. O silêncio na sala é interrompido apenas pelos sons
mecânicos das máquinas que monitoram cada batimento cardíaco e
respiração. As sombras projetadas pela luz fraca do ambiente criam um
contraste cruel, realçando as marcas de sofrimento no rosto dela.
Percebo que seus olhos, antes cheios de vida, agora refletem a
fragilidade de sua condição. A expressão de dor e desconforto é
inconfundível, mesmo que ela permaneça inconsciente.
— Eu sinto muito, de verdade.
Sinto um nó na garganta. Meu coração aperta ao olhar o que a
violência deixou para trás, transformando minha prima em uma sombra de
sua própria existência. Encaro as sequelas das agressões enquanto uma onda
de impotência me envolve imediatamente, deixando-me ainda mais
incrédula com toda a situação. Poderia ter sido eu no lugar de Michelle.
O medo percorre minha espinha, me confrontando com a brutalidade
do ataque. Tenho certeza que a pessoa responsável pelas agressões estava
tentando matar minha prima. Ela deve ter visto, escutado ou descoberto
alguma coisa importante que a levou a esse tipo de situação. Será que foi a
mesma pessoa que envenenou todos os Valktran?
Penso nos quatro suspeitos e não consigo fazer conexões entre eles,
além de Péricles. Ele havia confessado que estava tendo um caso com ela.
— Poxa, Péricles. Onde você foi se meter agora — digo para mim
mesma.
Encaro o rosto de Michelle, sentindo a raiva crescer dentro de mim. A
pena que sinto é acompanhada por uma vontade feroz de justiça. Ela não
merecia esse destino cruel.
Respiro fundo, tentando controlar minhas emoções. Não posso
explodir agora.
Aproximo o meu rosto de minha prima e sussurro:
— Quem fez isso com você, Michelle?
Inesperadamente, com toda a dificuldade, minha prima estende a mão
na minha direção e entendo perfeitamente o que ela quer dizer. Pego sua
mão e deixo que ela risque a letra V no centro da minha palma, repetindo os
riscos várias vezes.
Letra V? De Valktran?
— O que você está tentando me dizer? — questiono, baixinho.
De repente, minha tia Marcellyne chega junto com o marido e meu
primo Léo.
— O que você está fazendo? — pergunta ela, assustada.
— Eu só queria visitá-la — respondo, sentindo um frio na barriga.
— Mas por que você está apertando a mão de Michelle? Ela não pode
ser tocada. Os médicos disseram que o corpo dela ainda está todo dolorido
devido às agressões.
— Mamãe, Sara só está tentando ser generosa com a Michelle — fala
Léo.
Ela suspira.
— Perdoa-me, querida. É que... as coisas estão confusas demais.
Estamos tentando descobrir quem teve a capacidade de cometer uma
atrocidade dessas.
Meu tio se aproxima da cama.
— Com certeza queriam matar minha filha — fala, pela primeira vez.
— Vamos encontrar o culpado, papai. Não se preocupe com isso.
— Eu sinto muito — digo.
— Eu falei para sua irmã não se juntar com aquele bando de caipiras.
Desde que começou a frequentar o quartel dos guardas reais, ela mudou
com a gente.
Olha para o Léo que revira os olhos.
— O que a senhora quer dizer com isso? — pergunto. Quanto mais
informação eu souber, melhor para ligar os pontos.
— Cá entre nós, princesa. Mas está óbvio que o líder dos guardas
reais tem culpa no que aconteceu — comenta meu primo, cerrando os
dentes. — Ele é o único homem que se aproximou de Michelle nos últimos
dias.
— E como você pode ter certeza que foi um homem que atacou sua
irmã? — indago.
Meus tios me encaram ao mesmo tempo.
— Quem mais seria? — questiona minha tia.
— Se for confirmado que aquele desgraçado tentou matar minha
filha, eu mesmo mato ele com as minhas próprias mãos — ameaça meu tio,
fechando os punhos.
— Ninguém vai tocar um dedo em Péricles — aviso. — Não antes de
descobrirmos a verdade.
— Por que você está defendendo ele? — desconfia tia Marcellyne,
arrumando o casaco peludo tingido de vermelho.
— Não estou defendendo ninguém. Só não temos provas de que ele
seja o agressor.
— Bom, eu estou investigando o caso pessoalmente — revela Léo,
tirando um resíduo de poeira do terno azul marinho. — E não vou parar até
encontrar o culpado.
— Você?
Ele parece ofendido com a minha surpresa.
— Claro. Estudei um pouco de criminalidade investigativa durante o
colégio interno — explica, abrindo um sorriso amarelo. — Eu sabia que
precisaria algum dia.
Minha tia acaricia os cabelos de Michelle, segurando o choro.
— Vamos fazer justiça, minha menina — promete ela.
— Acho melhor contratarmos um perito de fora do palácio — sugiro.
— Alguém que não conheça ninguém aqui dentro. Acredito que seja a
escolha mais plausível a ser feita no momento.
— Por que sugere isso, princesa? Não confia na minha capacidade de
solucionar o caso? — reclama meu primo, fazendo beicinho. — Ou acredita
que sou o responsável por todas as atrocidades dos últimos dias?
Michelle geme, incomodada pela conversa. Sua expressão
amedrontada deixa claro que não quer ouvir mais nada sobre o assunto.
— Tudo bem. Vou deixá-los em paz — digo, soltando a mão da
minha prima. — Qualquer coisa me avise, por favor.
— Pode deixar comigo, princesa. E obrigado por visitar minha irmã
— agradece.
CAPÍTULO 54

Conforme vou aproximando do meu aposento, noto que tanto Louise


quanto Fadye estão paradas do lado de fora, à frente da porta, conversando
entre si.
— Aconteceu alguma coisa? — pergunto.
Fadye me olha com uma expressão sofrida no rosto.
— É o felpudo, Sara — fala, com voz de choro. — Eu sinto muito.
Louise dá um passo para o lado e, imediatamente, abro a porta de
forma abrupta. Então, a primeira coisa que sinto é o cheiro forte de sangue
fresco pairando no ar.
— Felpudo? — chamo o meu gatinho. — Onde está você?
Paro de frente a minha cama e seguro um grito. Não. Não. Não pode
ser. Não fariam uma atrocidade dessas com meu bichinho de estimação.
Pendurado no lustre do meu quarto, de cabeça para baixo, o corpo de
Felpudo balança de um lado para o outro, derramando sangue no chão,
morto. A barriga do meu gatinho está totalmente perfurada por algum tipo
de objeto pontudo, talvez uma tesoura ou algo assim.
Felpudo foi brutalmente assassinado e não há nenhum culpado à vista.
— Quem teve a coragem de cometer uma barbaridade tão grande
contra um animalzinho indefeso? — sussurro, com lágrimas nos olhos.
Ao ver meu gato morto, choro descontroladamente. A onda de tristeza
me atinge como um relâmpago, e não consigo conter as lágrimas que rolam
livremente pelo meu rosto. Por que? O que foi que eu fiz? Por qual motivo?
Meu coração dói como se estivesse sendo partido em pedaços. A
ausência de seu movimento brincalhão e ronronar suave cria um vazio que
parece impossível de ser preenchido.
Fecho os olhos, desejando que esse pesadelo cruel seja apenas um
terrível engano. Cada soluço que dou é um reflexo da dor que sinto, uma
expressão física da tristeza que se apossou de mim.
A realidade da perda parece se entranhar em cada parte do meu ser, e
me sinto completamente impotente diante dessa despedida abrupta.
— Vocês! — grito, direcionando meu dedo indicador na direção de
Louise e Fadye. — Vocês eram as únicas que sabiam da existência dele!
— Eu estava na lavanderia, Sara — fala minha auxiliadora.
— E eu estava ajudando na decoração do baile no salão principal,
princesa — comenta a cerimonialista do palácio. — Além do mais, jamais
teria a coragem de matar um gatinho.
Olho feio para Fadye.
— Nem eu, Sara. Você me conhece.
— Você, retire o corpo dali de cima — ordena Péricles a cada um dos
guardas. — E você, encontre uma das limpadoras do palácio e traga-a até
aqui.
Fabye enche um copo de água e o oferece para mim.
— Que isso? — pergunto, dando um tapa na mão dela. O copo de
vidro cai e espatifa no chão. — Está tentando me envenenar?
Fadye abre a boca, chocada com a minha atitude.
— Sara… jamais, eu… você está suspeitando de mim?
— Mantenha a calma, princesa.
— Que calma, Louise? — explodo. — Como posso ter calma agora?
— Não acredito que você acha que fui eu que matei a família Valktran
— dispara minha amiga, assustada.
— Eu disse isso, por acaso?
— Você acabou de me acusar de te oferecer um copo com água
envenenada.
Não consigo mais permanecer no mesmo ambiente que elas.
— Quer saber? Saiam daqui, agora!
— Princesa?
— Cala a boca, Louise. Vão embora, por favor.
Louise não espera nem mais um segundo e sai do quarto,
diferentemente de Fadye que me olha com uma expressão séria e
desacreditada.
— Depois de todos esses anos, Sara. Não consigo acreditar que você
pensa mal de mim. Não consigo — choraminga.
— Eu mandei você sair do meu quarto, Fadye — aviso, sofrendo com
a situação que se desenrola. — A gente conversa quando a poeira abaixar.
Ela nega com a cabeça.
— Não, Saravana. Eu me demito.
Um choque toma conta de mim.
— Como é que é? Você não pode simplesmente se…
— Sim. Eu posso e eu vou te provar — fala, e sai batendo o pé firme
no chão.
O impacto das suas palavras reverbera em minha mente, como se uma
onda surpreendente quebrasse a estabilidade do nosso relacionamento. Cada
sílaba dita parece um ruído estranho, distante da amizade sólida que
tínhamos construído. O choque que estou sentindo se funde com uma
sensação de desconexão, como se estivéssemos em universos paralelos,
incapazes de compreender as escolhas uma da outra.
— Tudo bem, princesa? — pergunta Péricles, gentilmente.
Faço que sim com a cabeça.
— Sim, Péricles. Obrigada — respondo, perdidas nos meus
pensamentos.
Enquanto absorvo a magnitude da situação, percebo que a base sólida
da nossa amizade está sendo testada. O chão parece movediço, e a incerteza
paira no ar.
Suspiro. Não tenho cabeça para resolver nada agora.
Mais tarde, tentarei reparar o que foi danificado ou aceitar a mudança
inevitável que se impôs entre nós.
CAPÍTULO 55

Depois de passar quatro horas chorando horrores, tanto pela morte de


Felpudo quanto pela briga com Fadye, ligo o televisor do meu quarto. São
17h da tarde e o comentarista Eldarion deve apresentar as notícias a
qualquer momento.
Enquanto isso, não consigo parar de pensar no atentado que minha
prima Michelle sofreu e na briga que tive com a minha melhor amiga. As
duas situações pairam sobre mim como nuvens pesadas, carregadas de
emoções conflitantes e incertezas.
A imagem da Michelle, frágil e ferida, continua a assombrar meus
pensamentos. A violência que ela enfrentou cria uma sombra escura em
minha mente, lembrando-me claramente da crueldade do mundo. O
sentimento de raiva, tristeza e impotência se entrelaçam no meu coração,
formando uma teia complexa que parece impossível de desvendar.
Ao mesmo tempo, a briga com Fadye acrescenta uma camada
adicional ao meu ser. Nossas palavras trocadas ressoam como lembranças
indesejadas, e tenho a sensação que o abismo entre nós parece cada vez
mais difícil de ser transposto. A confusão e a dor da ruptura na nossa
amizade está sendo um fardo emocional do qual eu não estou conseguindo
lidar.
E então, prendo a respiração.
Como é que eu havia me esquecido disso? Há alguns dias atrás,
minha prima Michelle tinha dado um tapa no rosto da minha melhor amiga,
porém eu a tinha humilhado pela agressão. Será que Fadye, não contente,
seria capaz de matar Michelle depois de tudo? Isso não a colocaria no topo
da lista caso fosse comparado a coragem de matar a família de Salomé?
Que confusão. Pensar desta forma ameniza as minhas acusações contra
Péricles, mas condena ainda mais minha auxiliadora. Arnaldo é o único
suspeito que só teria um motivo para eliminar o Duque e, mesmo assim, não
era um motivo concreto.
Bufo demoradamente.
Cada acontecimento, por si só, já seria difícil de lidar, mas a
sobreposição das duas situações torna tudo ainda mais complicado. Porém,
de uma coisa eu tenho certeza: esses eventos estão entrelaçados, criando
uma narrativa complexa que redefine minha perspectiva sobre a segurança
das pessoas que residem no palácio. Agora, mais do que nunca, a busca por
compreensão e justiça se torna uma obrigação necessária, uma tentativa de
trazer alguma ordem ao caos emocional que se instalou em minha vida.
Como o esperado, a imagem de Eldarion surge meio borrada no
televisor. Ele usa um terno marrom que combina com a parede de madeira
ao fundo. Deduzo que ele esteja no estúdio do palácio ou nos aposentos da
rainha.
— Boa tarde, telespectadores! Aqui é o seu comentarista oficial,
Eldarion, trazendo as últimas novidades e atualizações exclusivas
diretamente do reino de Mirassol. Temos anúncios emocionantes para
compartilhar com vocês, então fiquem atentos! — anuncia ele, andando
para o outro lado. — Amanhã à noite, o palácio será o epicentro de um
evento grandioso. Um baile majestoso está agendado para encantar a elite
da cidade. O que torna este evento ainda mais especial é que os convites
foram enviados pessoalmente para as casas das pessoas escolhidas,
adicionando um toque de exclusividade ao glamour da noite. E se você não
recebeu o convite, não fique triste. O evento será transmitido ao vivo para
todo o reino! — comunica, abrindo os braços. — Preparem-se para uma
celebração que ficará na memória de todos! — berra, tentando levantar o
ânimo do povo. — Agora, uma notícia que mexerá com os corações dos
amantes do Torneio. A última etapa do nosso aguardado evento,
originalmente planejada para uma semana depois do baile, teve sua data
alterada. A grande final agora acontecerá quatro dias depois,
proporcionando ainda menos tempo para que nossos competidores se
preparem para o confronto épico. Aqueles que adquiriram ingressos
antecipados terão seus valores integralmente devolvidos, garantindo a todos
a oportunidade de prestigiar a glória da arena — explica, esperando alguns
segundos para que as pessoas de casa possam digerir a mensagem. —
Mudando o foco para o clima, as últimas previsões para a cidade na zona
sul indicam uma noite estrelada, ideal para o glamour do baile no palácio.
Por outro lado, na zona oeste, o campo se prepara para uma noite fresca e
serena, criando o cenário perfeito para aqueles que preferem a tranquilidade
do campo ao agito da cidade. Em resumo, preparem-se para uma semana
repleta de eventos emocionantes e reviravoltas inesperadas. Estejam
sintonizados para mais atualizações diretamente do reino de Mirassol. Aqui
é Eldarion, desejando a todos um fim de tarde esplêndido e cheio de
alegria! Até a próxima!
A imagem no televisor fica escura e desligo o aparelho.
Agora é oficial e daqui há quatro dias, um dos três competidores
vencerá o Torneio do Sol Nascente e se tornará meu marido. Oxalá que seja
Ad ou não sei o que eu faria. Não quero passar o resto da minha vida com
Oed ou Félix. Não aceito. Eles só servem para ser meus… amigos? Será
que posso chamá-los assim? Gosto das piadas estúpidas de Oed. Gosto da
inteligência de Félix. Mas será que isso basta?
Madame Zahir entra no meu quarto trazendo consigo dois tipos de
vestidos.
— Boa tarde, princesa. Está pronta para experimentar os vestidos de
amanhã? — pergunta, toda animada. — Ainda temos tempo caso queira
fazer alguns ajustes.
— Tudo bem, então. Vamos começar — digo, tentando distrair minha
mente dos problemas que tenho acarretado.
Primeiramente, escolho o vestido dourado, cujos fios de ouro bordado
brilham delicadamente à luz. Ao pegá-lo, sinto a suavidade do tecido entre
meus dedos, e a promessa de sofisticação imediata se desenha diante de
mim. Com cuidado, deslizo-o sobre meu corpo, sentindo a textura suave
acariciar minha pele. Diante do espelho, observo o reflexo que emerge. Os
detalhes dourados cintilam à medida que me movo, criando um efeito
mágico que parece transformar cada passo em um gesto de pura elegância.
O formato da peça abraça as curvas do meu corpo, e a sensação de usá-lo é
como vestir a própria nobreza.
Em seguida, minha atenção se volta para o segundo vestido, marrom e
adornado com desenhos que lembram raízes de árvores. Ao pegá-lo,
percebo a textura única do tecido, como se estivesse envolto pela própria
natureza. Curiosa, experimento-o, observando como se ajusta à minha
figura. Ao olhar para o espelho, sou envolvida pela beleza rústica que ele
proporciona. As raízes entrelaçadas sobre a extensão da peça dão uma
sensação de conexão com a terra, como se estivesse vestindo a própria
essência da natureza. Cada detalhe parece contar uma história, e a
simplicidade contrasta de maneira encantadora com a opulência do
dourado.
Diante dos dois vestidos, me vejo em um dilema comprometedor,
tendo que escolher entre o brilho sutil do dourado e a serenidade natural do
marrom. Entretanto nenhuma das duas peças parece transparecer aquilo que
quero mostrar amanhã à noite. Gostaria de algo mais sereno, apagado e
obscuro.
— Os dois vestidos são lindos, mas será que você não consegue criar
algo menos chamativo? — pergunto. — De referência da cor azul marinho?
— Quer usar a cor que simboliza o reino? — indaga Madame Zahir,
parecendo confusa.
Faço que sim.
— Por que não? Acho que o povo iria se sentir representado.
Minha estilista me olha da cabeça aos pés, esfregando o queixo
enquanto pensa.
— Confia em mim?
— Sempre.
— Então, deixa comigo — fala e sai do quarto.
CAPÍTULO 56

23h45. Hoje é o dia do baile.


Ao entrar no salão principal, acompanhada por Péricles e Grannus,
me vejo envolvida por uma atmosfera de encanto e expectativa. Observo
cada detalhe exageradamente planejado na decoração, absorvendo a
magnificência do momento.
À direita, há um palco iluminado, aguardando as performances que
irão cativar a todos os presentes. As cortinas se destacam, prontas para
revelar momentos mágicos ao longo da noite. Vejo um grupo de oito
pessoas dando os ajustes finais em seus instrumentos de vários tipos e
tamanhos. Cada representante usa uma vestimenta toda preta,
uniformizando a equipe. Próximos a eles, meu professor de piano, Terafilde,
explica calorosamente como será o andamento do baile.
Reparo que uma mesa comprida abriga uma seleção refinada de
bebidas. Copos reluzentes e garrafas alinhadas cuidadosamente prometem
momentos de brindes e celebração. A variedade de cores nas bebidas cria
um espetáculo visual que se mistura à paleta de cores do salão, contribuindo
para a atmosfera festiva. Os arranjos florais, estrategicamente posicionados,
adicionam um toque de frescor e sofisticação ao ambiente. Inspiro
profundamente. As flores exalam um perfume adocicado, criando uma
sinfonia visual que enaltece a beleza do salão.
Olho para a iluminação instalada em pontos estratégicos do baile,
destacando cada detalhe da decoração. Luzes suaves iluminam o caminho,
convidando os convidados a explorar os encantos do salão e a se perderem
na magia da noite.
Enquanto me movo, absorvo a energia vibrante que se intensifica à
medida que mais pessoas chegam, cada uma ansiosa para fazer parte deste
evento extraordinário. Admiro vestidos elegantes e ternos de linho fino
cobrirem os corpos da multidão. Vejo um casal que usa máscaras em
formatos de ganso enquanto as vestes são cobertas por camadas de penas
artificiais. Um homem gordo passa do meu lado e consigo enxergar sua
barriga peluda sendo exposta propositalmente. Uma senhora que parece ter
100 anos de idade resolveu aparecer ao baile com o rosto pintado de caveira
— o que é medonho demais.
— Infelizmente, a moda não é para qualquer um — comenta minha
prima Eudora, surgindo ao lado de Péricles. Ela usa um vestido de oncinha
além do arco de orelhas na cabeça. — Mas você arrasou dessa vez.
— Obrigada — agradeço. Madame Zahir me surpreendeu esta manhã
trazendo um vestido feito com cipós de árvores tingidos de azul marinho.
Deriko, o primo exibido, se aproxima e se curva diante de mim.
— Princesa. É uma honra admirá-la usando um vestido tão… sexy e
glamouroso.
— Sem sombras de dúvidas este é o melhor vestido do baile —
comenta Aranel, fumando um charuto. Tanto ele quanto Deriko optaram por
vir com os ternos tradicionais do palácio.
— Se eu soubesse, viria combinando com você, princesa — dispara
Mendy, ajeitando o vestido rosa choque.
— Muito obrigada pelos elogios, pessoal. Mas o mérito é
exclusivamente da Madame Zarir. A ideia foi todinha dela.
Oed aparece do outro lado do salão, usando um terno dourado forrado
com escamas de peixes. Uma leve camada de maquiagem cobre as olheiras
sob seus olhos, e o cabelo espremido numa rede o faz parecer um homem
que se dedica ao mar.
Ele sorri quando me vê e faz sinal de positivo para o meu vestido.
— Será que podemos beber alguma coisa? — pergunto para Péricles,
querendo sair de perto dos meus primos.
— Fique a vontade, mas estou proibido de me embriagar no dia de
hoje.
— Tudo bem, querido. O provador de comidas aqui bebe por você —
fala Grannus.
Vamos até a mesa de bebida e escolho um espumante amarelado.
— Trouxe seu copinho? — pergunto ao caipira esquisito. Ainda bem
que arranjaram um terno bonitinho para ele usar.
— Nunca deixo de trazer o meu canequinho — responde, tirando o
objeto do bolso.
Coloco um pouco da bebida no copo dele. Ele bebe e espero o
resultado.
Enquanto isso, um dos integrantes da banda sobe ao palco e pede a
atenção de todos.
— Boa noite, senhoras e senhores. Sejam todos bem vindos ao baile
da Dança da Meia Noite. Eu sou Frankly Galamathis e vou cantar e tocar
uma música para vocês — anuncia. Algumas pessoas aplaudem.
Frankly pega um violão amadeirado e se posiciona no centro do
palco.
Na noite iluminada, sob o céu a dançar,
Estamos unidos, prontos para celebrar.
Cada passo é uma nota, cada riso uma canção,
Nossa festa começa com uma ode à emoção.
As estrelas em festa, as luzes a brilhar,
Os corações batem no ritmo enquanto eu começo a tocar.
De mãos dadas, vamos voar até o infinito do além,
Neste momento de vida, a alegria reina sob aqueles que a sustém.
O palco é nosso, o mundo é o salão,
A música nos guia em uma doce explosão.
Bebidas e risos, num brinde ao amor,
Cada momento único nos inspira a uma dança de fervor.
Alguns convidados se unem aos seus parceiros e começam a dançar.
— Até que o caipira canta bem — comenta Péricles, impressionado.
— Embora o sotaque seja muito arrastado.
As estrelas em festa, as luzes a brilhar,
Os corações batem no ritmo enquanto eu começo a tocar.
De mãos dadas, vamos voar até o infinito do além,
Neste momento de vida, a alegria reina sob aqueles que a sustém.
O tempo se desvanece, a noite se revela,
Cantemos juntos, como estrelas na capela.
Nossas vozes ecoam, numa sinfonia sem igual,
A celebração eterna, em cada nota especial.
Sob o luar cintilante, todos somos iguais,
Risos se entrelaçam, como contos ancestrais.
Nossos sonhos se encontram, nas asas da canção,
Vivendo este momento, numa eterna celebração.
As estrelas em festa, as luzes a brilhar,
Os corações batem no ritmo enquanto eu começo a tocar.
De mãos dadas, vamos voar até o infinito do além,
Neste momento de vida, a alegria reina sob aqueles que a sustém.
Que o baile continue seguindo seu ritmo acelerado,
Como as batidas do meu coração presente.
Cantemos a vida em harmonia diariamente,
Para que a nossa eterna celebração brilhe para sempre.
Finaliza, jogando o violão para cima e o pegando logo em seguida.
Os convidados batem palmas calorosas, gritando incentivos positivos
para Frankly.
— Obrigado. Muito obrigado, povo de Mirassol — agradece, sorrindo
para todos. — Aproveitem o baile.
Um violinista, um violoncelista e uma flautista sobem ao palco e
começam a tocar uma melodia suave, mas ao mesmo tempo animada.
— Que cheiro podre é esse? — pergunto, fazendo careta.
— Cheiro de bosta a vapor — responde Grannus, rindo.
Péricles gargalha descontroladamente.
— Você é muito engraçado, Grannus.
— É o que todos dizem.
— Você deveria ser comediante, sério. Ia ganhar um bom dinheiro na
cidade.
— Obrigado, mas não consigo fazer graça de modo forçado. É tudo
espontâneo.
— Você precisa ter aulas de etiqueta para saber como se dirigir às
pessoas, caipira — digo, bebendo um gole da bebida.
— Eu não sou caipira, princesa — corrige Grannus, coçando a
cabeça.
— Como não?
Os novos Marqueses do palácio passam e me cumprimentam com
uma meio reverência. Tanto o Marquês quanto a Marquesa escolheram usar
cores claras em suas vestimentas.
— Uma coisa que tenho notado é que as pessoas dentro do palácio se
referem a todos do outro lado como caipiras, mas na verdade não são. O
termo caipira é usado somente para as pessoas que nasceram e cresceram no
campo — explica Péricles. — Já as pessoas da cidade se referem a si
mesmos como cidadanos.
— Eu não sabia disso.
— Há termos para tudo, princesa — fala Grannus, mordiscando uma
torrada.
— E como vocês chamam as pessoas que crescem no palácio? —
questiono.
— Sangue de prata ou, como os ignorantes dizem, os comem ouro.
— Comem ouro?
— Há um boato que existe tanta variedade de comida no palácio que
os residentes optam por comer ouro ao invés dos pratos tradicionais
— Que despautério. Isso é extremamente ridículo — falo,
encabulada.
— Totalmente. São um bando de xerxelas que só falam merdades —
expressa ele.
— Que palavreado são esses?
— Acho melhor a senhorita não saber os significados — avisa meu
guarda-costas.
— Não, eu quero aprender.
Um grupo de garçons passa oferecendo petiscos sobre bandejas de
pratas.
— Merdade é o mesmo que merda muito grande, sabe? — explica
Grannus. — Quando alguém faz algo muito estúpido.
— Entendi. E xerxela?
— Não consegue associar a palavra?
— É o mesmo que babaca?
— Quase. Pode-se dizer que também. Porém o sinônimo mais comum
utilizado é idiota. Ele segue o mesmo gênero de quem está sendo
mencionado, tipo "ele é muito xerxelo ou ela é muito xerxela".
Péricles boceja, entediado com a conversa.
— Obrigada pela explicação.
Ele abre um sorriso e aponta para si.
— Eu disse que conviver comigo é cultura.
— Menos, Francius.
— Grannus, princesa. É Grannus.
Ignoro-o, sabendo que esse tipo de atitude o deixa irritado.
A banda para de tocar a melodia e aguarda uma jovem subir ao palco.
Ela está vestindo um vestido super colado enquanto os cachos da cabeça
balançam de um lado para o outro.
— Boa noite senhoras e senhores. Meu nome é Kaida Nicarates e eu
vou cantar uma música para vocês agora — fala, apresentando-se com
entusiasmo.
Espalmo a mão sobre o peito. O que a amiga de Ad está fazendo
aqui?
Olho com mais atenção para o grupo posicionado ao lado do palco, e
descubro que eles fazem parte da Trope que se reúne na floresta. Opho,
encostado numa pilastra, segura um triângulo nas mãos enquanto conversa
com Galadriel.
Então, me recordo de que Fadye havia mencionado a banda no dia em
que recebeu o tapa de Michelle.
De repente, os olhos de Kaida se cruzam com os meus e ela abre um
sorriso gigante ao me reconhecer.
— Oi, Camille — fala, ecoando meu nome falso no microfone.
— Ela está falando com a senhorita? — pergunta Péricles, franzindo
o cenho.
— Acho que ela me confundiu com outra pessoa — respondo,
nervosa.
Os músicos começam a tocar uma melodia tranquila, transmitindo paz
e mistério ao mesmo tempo. Kaida segura no microfone, fecha os olhos e
canta com uma voz tão profunda que chama a minha atenção:
Na cidade adormecida, onde o silêncio predomina,
Sombras caminham nos becos, trazendo uma sensação sinistra.
A lua esconde segredos, o vento sussurra seus medos,
O que está oculto nas sombras, a cidade não vê.
Sombras na cidade, onde o mistério floresce,
Caminhos obscuros, onde o mal se estabelece.
Nas vielas sombrias, onde segredos se escondem,
A cidade canta canções esquisitas, onde destinos se torcem.
Alguma coisa nos versos da música me deixa em alerta. Reparo que o
restante do grupo também conhece a canção, pois mexem as bocas junto
com a melodia.
Luzes vacilantes, não precisam se esconder,
Deixem que a escuridão apareça para todo mundo ver.
Passos hesitantes, ecoam na rua deserta,
Onde as almas perdidas buscam uma saída incerta.
Sombras na cidade, onde o mistério floresce,
Caminhos obscuros, onde o mal se estabelece.
Nas vielas sombrias, onde segredos se escondem,
A cidade canta canções esquisitas, onde destinos se torcem.
— Algum de vocês conhece essa música? — questiono os meninos.
— Eu acho que já escutei em algum lugar quando estava na cidade —
responde Péricles, dando de ombros.
— Meu tio costumava cantar quando era vivo — compartilha
Grannus. — É uma canção bastante conhecida da zona oeste. Há quem diga
que ela tem duplo sentido, mas eu não acredito.
Bebo mais um gole do espumante, refletindo sobre aquilo. Algo me
diz que a parte do duplo sentido é verdade, porém não consigo associar a
nada agora.
Entre casas decadentes e praças vazias,
Existe uma história como as sombras que nos guia.
No canto das ruas, segredos estão a emergir,
Cada sombra carrega o peso de um porvir.
Nos becos esquecidos, onde o perigo ronda,
A cidade tece tramas, onde a esperança se afunda.
No murmúrio do vento, ouço vozes a clamar,
Por um amanhecer que as sombras irão dissipar.
Sombras na cidade, onde o mistério floresce,
Caminhos obscuros, onde o mal se estabelece.
Nas vielas sombrias, onde segredos se escondem,
A cidade canta canções esquisitas, onde destinos se torcem.
À luz do dia, as sombras se dissolvem,
Na cidade renasce a esperança que envolve.
Mesmo nas trevas, a luz pode emergir,
E a cidade se erguerá das sombras a fugir.
Kaida termina e também arranca aplausos dos convidados.
Tenho a sensação de que a música fala sobre a atmosfera do reino,
mas não tenho tanta certeza. As notas melancólicas e as letras sombrias
parecem ecoar pelas vielas do meu pensamento, como se capturassem os
suspiros secretos do reino que conheço tão bem.
Mesmo com a incerteza pairando sobre a interpretação, uma coisa é
clara: a música captura a essência de um lugar que guarda segredos
profundos, onde a luz e as sombras se entrelaçam, formando um conjunto
de emoções que só o tempo desvendará.
De repente, um berro de alegria explode entre a multidão.
Varro meus olhos por todos os lados, buscando identificar a fonte do
grito e compreender a razão por trás desse momento de euforia.
— Admito que a princesa é uma das mulheres mais belas do reino —
ouço uma voz bastante familiar vindo de trás de mim.
Abro um sorriso.
Assim que me viro, encontro os olhos de Erasmos brilhantes, olhando
diretamente para mim. Ele parece mais alto e mais forte do que a última vez
que nos vimos. O terno prateado combina perfeitamente com a gravata
borboleta que ele escolheu, dando a ele um ar de garoto do campo e do
palácio ao mesmo tempo.
— Erasmos! — exclamo, envolvendo-o em um abraço apertado. Uma
onda de emoção me atinge. — Há tanto tempo que não nos víamos,
querido. Eu senti tanto a sua falta.
— E nós de você, pequenina. Você nem imagina o quanto sua irmã
chorou quando recebeu sua carta — fala, afastando-se um pouco. —
Obrigado por nunca esquecer da gente.
Donabella cumprimenta o Duque e a Duquesa antes de correr na
minha direção.
— Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa — gritamos ao mesmo tempo.
— Como minha irmã caçula está linda! — elogia ela, envolvendo-me
no seu abraço caloroso. — Não acredito que estou vivendo esse momento.
Que saudades, Saravana.
— Donabella, eu estou tão feliz por você ter vindo — digo, deixando
as lágrimas escorrerem dos meus olhos. O cheiro da minha irmã continua o
mesmo. — Você ainda cheira a jasmim com coco.
— E você, a amora misturada com uma pitada de mel silvestre.
Olho para o vestido da minha irmã e admiro cada detalhe. As cores
escolhidas refletem a personalidade vibrante dela, enquanto os detalhes
cuidadosamente elaborados mostram o esmero que ela sempre teve em cada
escolha. Ao passar a mão pelo tecido, me sinto conectada a ela de uma
maneira única, como se um fio invisível nos unisse, transcendendo a
distância que o tempo e as circunstâncias impuseram. Sua presença é real.
Donabella está realmente aqui.
A saudade, intensa e profunda, faz com que meu coração anseie por
momentos juntas novamente. Percebo que, apesar da saudade, há uma
beleza singular em poder compartilhar esse momento, mesmo que seja
através de objetos que carregam a essência da nossa ligação.
Alguém pigarreia atrás de mim.
— Princesa? — escuto a voz de Ad.
Olho para a direção de sua voz e meu coração dispara.
Ad está usando o mesmo material de tecido que o meu vestido,
rodeado de cipós tingidos de dourado, como se nós formássemos um casal.
O que a Madame Zahir fez agora? O que as pessoas vão pensar da gente? E
como os outros competidores se sentirão quanto a isso?
O competidor chega com uma elegância que encanta a todos. Seus
olhos se encontram com os meus e um sorriso caloroso ilumina seu rosto.
Ad está gato demais da conta. E sexy também.
— Acho que estou sonhando — sussurro para Dona.
— Então continue e aproveite cada momento deste sonho, meu amor
— comenta minha irmã, me empurrando para frente.
Em um gesto cavalheiresco, ele estende a mão na minha direção, e
meu coração acelera com a promessa da dança que está por vir.
— Posso tirá-la para dançar? — pergunta, educadamente.
Faço que sim com a cabeça, ainda atônita com sua aparência.
Imediatamente, aceito a oferta, sentindo a firmeza e a suavidade da
sua mão envolvendo a minha. Juntos, caminhamos em direção ao centro do
baile, onde a música envolvente cria um cenário mágico para a nossa dança.
Os olhares curiosos da multidão se tornam um borrão distante
enquanto nos dirigimos ao foco da atenção.
— Você… está deslumbrante, Ad — falo, com dificuldades.
— Não tão deslumbrante quanto você — elogia, deixando-me
vermelha.
Paramos no centro do baile. Noto que os holofotes iluminam a nossa
posição, criando uma aura resplandecente ao nosso redor.
— Eu não estou acostumada a dançar na frente de muita gente, Ad —
confesso.
— Deixa comigo, princesa — tranquiliza ele, colocando a mão na
minha cintura.
A música ganha intensidade, e começo a me sentir envolvida pela
melodia que parece guiar os passos das pessoas à nossa volta.
— Posso observar como as outras pessoas estão fazendo?
— Não — responde. — Um passo para a direita e dois para a
esquerda.
Ele conduz a dança com maestria, e eu me deixo levar pela harmonia
dos movimentos, como se estivéssemos contando uma história com cada
passo.
De repente, o mundo ao nosso redor desaparece, como se só
existíssemos nós dois, entregues ao ritmo apaixonante da música. A cada
rotação, sinto que a conexão entre nós se fortalece. As palavras se tornam
desnecessárias quando os nossos olhares comunicam o que as emoções não
conseguem expressar.
— Você pegou o jeito, princesa — fala, contente com o meu
progresso. — Sempre confie nas minhas palavras. Elas são puras,
transparentes e verdadeiras. Assim como o sentimento que preenche o meu
coração por você.
Mordo meus lábios, controlando o nervosismo e a vontade de chorar.
— Saiba que o que eu sinto por você é real, Ad. Mesmo diante de
tantas adversidades, você conseguiu conquistar meu coração. Parabéns,
caipira.
Ad, com olhos cheios de ternura, desvia-se levemente dos passos
coreografados e, delicadamente, leva sua mão ao meu rosto. Uma corrente
elétrica de expectativa paira no ar, e então, como se o tempo concedesse um
instante de pausa, seus lábios encontram os meus.
O beijo é como um suave acorde que se harmoniza perfeitamente com
a música ao fundo. Sinto a suavidade dos lábios dele, a doçura do gesto que
transcende a dança. O mundo ao nosso redor é um lugar esquecido, e somos
envolvidos por uma atmosfera de romance que se desdobra como as notas
da canção. Percebo que a música serve como trilha sonora para este
momento, intensificando as emoções que se entrelaçam entre nós. Cada
nota parece refletir a batida acelerada dos nossos corações, como se a
própria melodia celebrasse o encontro de duas almas em meio à dança e ao
afeto.
Os segundos parecem se estender, criando uma bolha intemporal onde
apenas o competidor e eu existimos. É um beijo repleto de promessas, um
capítulo romântico que se escreve na partitura das nossas histórias. Eu
quero permanecer presa neste momento para o resto da minha vida. Eu
quero esquecer todas as preocupações que tomam conta de cada canto do
palácio. Eu quero simplesmente me perder em um mundo onde não há
ninguém que tenha a capacidade de ferir meus sentimentos.
CAPÍTULO 57

Ad está conversando com os outros competidores.


Percebo que tanto Louise quanto Fadye ainda não compareceram no
baile. Talvez ambas estão chateadas com a minha raiva explosiva no dia
anterior. E minha melhor amiga, com razão.
Observo as roupas dos convidados do baile e a diversidade de estilos
e cores deslumbrantes, cada um mais elegante que o outro, revelando uma
paleta de cores que parece ter sido retirada de um quadro refinado. Os trajes
de época, perfeitamente recriados, transportam o salão para eras passadas.
Os ternos são meticulosamente cortados e bordados, enquanto os coletes
adicionam um toque de requinte à atmosfera animada. Na medida em que as
pessoas se movem graciosamente pelo salão, as saias rodopiantes e os
detalhes das vestimentas criam um espetáculo de movimento maravilhoso.
Reparo algumas joias que reluzem à luz dos lustres, cada brilho
capturando a atenção de quem passa. Pérolas, diamantes e pedras preciosas
decoram pescoços, pulsos e orelhas de convidados importantes, refletindo o
esplendor da noite. Penas, bordados e acessórios cuidadosamente
escolhidos dão uma sensação de luxo para quem os carregam consigo.
Enquanto observo, percebo que o baile não é apenas uma dança de
movimentos graciosos, mas também uma exibição de moda e estilo. Cada
convidado contribui para a beleza visual do evento, transformando o
ambiente em um verdadeiro espetáculo de elegância e glamour.
— Princesa, você viu o Talles? — pergunta minha tia Ricarda.
— Ainda não, tia — respondo, notando a preocupação em seus olhos.
— Aconteceu alguma coisa?
— Após o ataque a Michelle, precisamos ser extremamente
cautelosos.
Grannus se aproxima de uma jovem cheia de sardas e começa a
conversar com ela.
— Eu espero que ela fique bem o mais rápido possível — digo,
testando a reação da minha tia. — É provável que alguém estava tentando
calar a boca dela.
— Concordo com você, Sara. Não vejo a hora de encontrarem o
culpado disso tudo. Não consigo mais dormir em paz, acredita? Sempre
acho que um desalinhado irá invadir meus aposentos e atacar minha família.
— Não solicitou mais guardas nos corredores? — questiono.
— Querida, a pessoa que tentou matar sua prima não usou os
corredores para entrar no quarto dela.
— Como a senhora sabe disso?
— Todos os guardas que estavam rondando aquele horário foram
interrogados pelo capitão Hawise. Alguns estão presos no calabouço por
não saberem como responder as perguntas de forma clara — explica,
bebendo um pouco do drinque dela. — Sua mãe não está nada bem. Na
última vez que a visitei, ela tinha bebido duas garrafas de vinho sozinha.
Você já tentou conversar com ela?
— Não. Minha mãe nunca foi uma mulher próxima dos filhos, tia. Ela
tem um temperamento difícil e isso acabou prejudicando a nossa
proximidade. Cássia foi a única que me deu suporte como mãe.
— Lamento que sua vida tenha sido isenta de carinho materno.
Elizabelly sempre foi uma mulher enrustida. Não sei o que o rei Kalayo viu
para tomá-la como sua esposa.
Suspiro, olhando para Oed que dança desajeitadamente. Félix parece
flertar com minha prima Eudora enquanto Ad conversa calorosamente com
Opho, próximo ao palco.
— Camille? Nossa, você está belíssima — fala Kaida, me olhando da
cabeça aos pés. — Não sabia que tinha sido convidada para o baile.
— Camille? — pergunta minha tia, olhando feio para Kaida. —
Quem é Camille?
— Belo vestido, princesa — elogia Charles, meu primo de 15 anos.
— Obrigada — agradeço.
— Princesa? — indaga Kaida, colocando as mãos na cintura.
— Melhor deixar vocês duas as sós — diz minha tia.
— Eu posso explicar.
— Você deixou que a gente insultasse o governo de Mirassol e não
disse absolutamente nada? Puta que pariu. Você poderia ter mandado
arrancar nossas cabeças por causa daquilo! Por que não fez nada a respeito?
Por favor, não proíba a Trope de tocar nessa região. Os cidadanos pagam
bem numa noite como esta. Se quiser, eu nem cobro a minha parte do cachê
— fala disparadamente.
— Kaida, está tudo bem. Eu não ordeno que arranquem as cabeças
das pessoas que expressam seus pontos de vista, ok? Sem estresse. Eu
estava apenas conhecendo a floresta com Ad. Não fui bisbilhotar nada e
ninguém.
— Obrigada — diz, suavizando a tensão nos ombros. — Me sinto um
pouco ridícula por ter falado com a senhorita daquela forma na floresta.
— Deixa de ser xerxela.
Kaida dá risada.
— Não sabia que as princesas usam esse tipo de palavreado.
Dou de ombros.
— Eu sou uma princesa fora dos eixos.
Um brilho diferente ilumina seus olhos.
— Sabia que Xanthe é minha irmã mais velha?
— A auxiliadora da minha irmã mais velha?
— Téssia é sua irmã mais velha? Xanthe sempre elogia a princesa,
mas parece que o marido não gosta dela.
Afirmo com a cabeça.
— Arnaldo é aquele tipo de pessoa que só fala merdades.
— Você aprende rápido, parabéns.
— Obrigada — respondo, chamando Grannus com um aceno. —
Poderia pegar um copo de água para mim, por favor?
— Sou eu seu auxiliador agora? — questiona. Kaida arregala os
olhos.
— Agora sim. E se não fizer o que eu peço, não vou aumentar seu
salário — aviso.
Grannus faz uma continência.
— Seu pedido é uma ordem, princesa — fala e vai até a mesa de
bebidas.
— Você deixa ele falar assim com você? — pergunta ela,
desacreditada.
— Ele é novo no palácio. Então, estamos aprendendo a nos entender
ainda.
— Tudo bem — aceita, ajeitando o cabelo com cuidado. — Eu vi o
beijo que Ad deu em você. Meus parabéns, querida. Conseguiu derreter o
coração de gelo dele.
— Na verdade, foi ele quem derreteu o meu primeiro.
Kaida olha dentro dos meus olhos.
— Olha, você pode acreditar ou não, mas às vezes penso que há
pessoas que nascem para as outras — confessa. — Como se o destino
traçasse linhas invisíveis que eventualmente se cruzariam em algum
momento da vida, unindo os corações de uma maneira que transcende o
acaso. Acredito que algumas almas são feitas para se encontrarem. É como
se o universo conspirasse para juntar essas peças do quebra-cabeça, criando
uma imagem mais completa e bela. Mesmo que as circunstâncias sejam
precárias e improváveis — expõe, perdida nos próprios pensamentos. —
Acho que foi isso que aconteceu com vocês.
Abro um sorriso, entendendo a profundidade por trás das suas
palavras.
— Você já encontrou o amor da sua vida? — pergunto, curiosa.
— Já sim, e o matei no mesmo dia.
Não pergunto o motivo. Esse é aquele tipo de conversa que nos faz
refletir sobre as escolhas, os encontros e o impacto que cada pessoa pode ter
na vida da outra.
CAPÍTULO 58

Eldarion surge no meio da multidão, cumprimentando conhecidos e


contando piadas sobre o cabelo horroroso de alguém. O terno que ele usa é
preto manchado de cinza escuro.
Reparo que há uma pequena camada de glitter iluminando seu cabelo
sedoso.
— Princesa Saravana, que vestido estupendo! É cipó de verdade? —
pergunta o comentarista do reino, colocando as mãos no tecido.
— Sim, Eldarion. Essa peça maravilhosa foi feita pela estilista do
palácio, Madame Zahir.
— Talentosíssima, Madame Zahir. Parabéns — fala, admirado. —
Posso te fazer uma perguntinha?
— Desde que não seja invasiva, fique a vontade — permito.
— Qual é o assunto que os seus cunhados estão discutindo naquela
mesa? — dispara, apontando para o meu lado esquerdo.
Arnaldo gesticula freneticamente, sentado de pernas cruzadas na
cadeira estofada, enquanto Rubens e Erasmos permanecem em pé, com os
braços cruzados.
— Confesso que não tenho a mínima ideia, querido. E mesmo se
soubesse, acho que não poderia compartilhar a informação.
Eldarion faz uma expressão como se estivesse chateado.
— A senhorita já foi mais legal, princesa.
— E você, menos intrometido — rebato.
O comentarista revira os olhos e vai embora, reclamando consigo
mesmo.
No meio da exuberância do baile, não posso deixar de sentir um peso
angustiante em meu coração. Enquanto as pessoas dançam e se divertem,
reflito sobre a insensibilidade que parece tomar conta de cada canto do
ambiente, um contraste doloroso em relação aos últimos acontecimentos no
palácio.
Antes, eu estava um pouco ansiosa por este baile, imaginando a
alegria que ele me traria. No entanto, agora, tudo o que consigo sentir é um
desconforto persistente, um véu obscuro que se projeta sobre a festividade.
A notícia brutal do assassinato de uma família inteira e a quase fatalidade
que minha prima enfrentou ainda martela em minha mente como um
lamento silencioso.
Enquanto as risadas são expressadas ao meu redor, não posso evitar
questionar como as pessoas podem se entregar tão completamente à
diversão, ignorando a tragédia que assolou o palácio. É claro que eu
também tive o meu melhor momento com Ad, mas foi apenas por alguns
minutos. A realidade de que existe um assassino a solta inibe toda a leveza
que eu gostaria de continuar sentindo.
Meu coração se enche de preocupação e medo, pensando nas
implicações desses eventos. Me sinto um pouco desconectada da
celebração, incapaz de participar plenamente do baile que antes aguardava
com expectativa. Não posso me distrair agora, pois a qualquer momento
uma pista pode surgir e mudar tudo.
Kaida sobe ao palco novamente.
— Essa última canção, dedico à princesa Saravana e a todos aqueles
que são a favor da justiça. A letra foi escrita de última hora, mas espero me
expressar de uma forma que me entendam.
Algumas pessoas aplaudem enquanto outras esperam pela dedicação.
E então, mesmo sem o toque da música, ela inicia:
Andando pelo caminho estreito,
Ouvi o som dos pássaros a cantar.
E eles brigavam entre si,
Dizendo que 5 mais 2 não era o suficiente.
E na redoma do reino excelente,
A sangue de prata deveria esvair por lá,
Porque rompeu as barreiras do saber,
E por isso sentenciou-se a deixar de ser.
Franzo o cenho, absorvendo o sentido das palavras. O que ela quer
dizer com 5 mais 2 não era o suficiente? Cinco mais dois são sete. 7. Que
coisa estranha. Isso me faz lembrar dos 7 Valktran que foram assassinados
na cerimônia que Cássia havia preparado.
Ela também cantou sobre a sangue de prata deveria esvair por lá.
Sangue de prata é o terno que as pessoas de fora chamam quem nasce e
cresce no palácio.
Porque rompeu as barreiras do saber. Espera um pouco. Se alguém
rompeu algo que não deveria saber significa que ela agora sabe de alguma
coisa. Michelle. É sobre minha prima Michelle que ela está cantando.
Eles voavam juntos pelo jardim,
Procurando algo para sacrificar,
Diziam que 10 menos 3 não era o suficiente,
E que o canto precisava terminar.
Pessoas voavam juntas pelo jardim. Jardim me lembra flores. Flores
me lembram… procurando algo para sacrificar. Bruxios Bolaris? Será que
essa frase significa a busca pelo veneno que matou os Valktran?
Diziam que 10 menos 3 não era o suficiente. De novo o resultado é 7.
E que o canto precisava terminar. Com certeza é a morte. Ninguém canta
quando morre.
É tempo de nascer o despautério,
E mostrar ao mundo o que deve ser.
Antes que o gongo cante,
A alma testemunhada irá desaparecer.
Não consigo entender as duas primeiras frases, mas antes que o
gongo cante diz respeito ao Torneio do Sol Nascente. Última etapa? A alma
testemunhada irá desaparecer. Kaida está falando de Michelle outra vez?
Enquanto ela canta, percebo um movimento no canto esquerdo do
salão. Xanthe, a auxiliadora de Téssia, e também irmã mais velha de Kaida,
cai em cima de Arnaldo, soltando o copinho que serve para os provadores
de comida no chão. Sua expressão petrificada deixa claro o que aconteceu,
mas por causa da música alta, ninguém além do grupinho da minha irmã
percebe.
Os guardas, habilidosamente, arrastam o corpo morto da auxiliadora
para fora do salão.
Dou um passo adiante, mas Péricles segura meu braço e faz que não
com a cabeça.
— Aja como se nada tivesse acontecido, princesa — fala o meu
guarda-costas, fingindo arrumar a gola do terno. — Lembre-se que o baile
está sendo transmitido para todo o reino — avisa e aponta para cima.
Levanto a cabeça e noto alguns drones sobrevoando o ambiente em pleno
silêncio.
Horrorizada, volto a prestar atenção em Kaida que agora derrama
lágrimas e mais lágrimas pelo rosto. Não sei se ela chora pela emoção
profunda da música ou pelo o que acabou de acontecer com sua irmã.
Andando pelo caminho estreito,
Ouvi o som dos pássaros a cantar.
E eles brigavam entre si,
Dizendo que 5 mais 2 não era o suficiente.
Há boatos entre o seu sangue,
Um boato esquisito que me deixa perdido.
Espero que encontre o caminho,
E termine logo com esse prejuízo.
Deduzo que ela se refira a minha própria família, e que o boato seja
os atentados não resolvidos.
E na redoma do reino excelente,
A sangue de prata deveria esvair por lá.
Porque rompeu as barreiras do saber,
E por isso sentenciou-se a deixar de ser.
Eles voavam juntos pelo jardim,
Procurando algo para sacrificar.
Diziam que 10 menos 3 não era o suficiente,
E que o canto precisava terminar.
Cobras aladas eram,
Atuando como criaturas impotentes.
Mas antes do grande caísse,
Os corruptos já se faziam inocentes.
Antes que o grande caísse. Meu pai. Essa parte é sobre o meu pai. Os
corruptos já se faziam inocentes. Meu palpite é que essas pessoas já
estavam agindo antes da morte do rei Kalayo, demonstrando algo que eles
não são.
Eles voavam juntos pelo jardim,
Procurando algo para sacrificar.
Diziam que 10 menos 3 não era o suficiente,
E que o canto precisava terminar.
Termina Kaida, jogando o microfone no chão e saindo do palco.
CAPÍTULO 59

No outro dia, acordo bem cedo. E as duas primeiras notícias que


recebo de Fredd são que Michelle acabou de falecer e que minha irmã
Téssia pediu para me entregar uma carta.
— Sinto muito pela sua prima, princesa — fala educadamente,
fazendo reverência.
— Obrigada, Fredd. Qualquer novidade me avise por favor — digo e
fecho a porta.
Ao me sentar na cama, abro o envelope e leio a carta.
Querida Saravana,
Escrevo esta carta com o coração apertado, pois há verdades que
não podem mais ser ocultadas. Saiba que neste exato momento me encontro
longe do palácio, mas estou bem. Eu não podia mais conviver com o medo
de ser assassinada a qualquer momento, e a tentativa na última noite
deixou claro que minha vida estava correndo grande perigo.
Por acaso do destino, descobri informações cruciais sobre os planos
do assassino que assombra o palácio, e a única maneira de garantir a
segurança de todos era agir de maneira discreta. Compreendi que
precisava compartilhar esse conhecimento com Xanthe, sabendo que ela se
comunicaria com Kaida. Sabia que, de alguma forma, conseguiria me
comunicar indiretamente contigo durante a apresentação da irmã dela no
baile, o que poderia ser crucial para evitar uma tragédia iminente. Por
outro lado, não imaginava que tal envolvimento colocaria a vida da minha
auxiliadora em risco. Lamento muito por isso e jamais vou me perdoar pelo
o que aconteceu.
Essa decisão não foi fácil, e cada passo que dei para longe do
palácio pesou sobre mim como uma carga insuportável. Também estou
exausta dos maus tratos de Arnaldo e da forma como ele conduzia a nossa
vida, fazendo-me sentir um lixo. Partir, sem prazos para retornar, mas foi a
única opção que tive para preservar a minha sanidade e a nossa
segurança.
Espero que compreendas a gravidade da situação e que entendas que,
por agora, o palácio não é um lugar seguro para nenhuma de nós. Por
favor, mantenha-se alerta e protegida. Fiz o que pude para garantir que
todos estejam cientes dos perigos que estão por vir. Não posso mais
escrever detalhes, porque não sei se esta carta chegará a você ou será
extraviada no caminho. Não sei. Não confio em ninguém.
Prometo que, assim que as coisas se acalmarem, encontraremos uma
maneira de nos reunirmos novamente. Até lá, leva contigo a certeza de que
fiz o que julguei ser necessário para proteger nossa família.
Com todo meu amor e esperança,
Téssia
Leio a carta cinco vezes para ter certeza do que minha irmã escreveu
para mim.
Então, a responsável pela mensagem oculta na música de Kaida é
Téssia. É o que a carta diz nas entrelinhas. Ela descobriu quem era o
assassino e por isso estava sendo ameaçada diariamente. A alma
testemunhada irá desaparecer.
Sinto um frio na barriga. Para onde minha irmã foi?
A estrofe da música onde diz que A sangue de prata deveria esvair
por lá. Porque rompeu as barreiras do saber, e por isso sentenciou-se a
deixar de ser, também se cumpriu ao ser notificada que minha prima
Michelle faleceu. Ela estava marcada. Quem quer que estivesse por detrás
de todos esses episódios macabros, não deixaria que ela se recuperasse na
ala hospitalar.
E então, as lágrimas fluem, incontroláveis e salgadas como a
amargura que permeia meu coração. Choro, não apenas pela morte brutal de
minha prima, cuja ausência deixa um vazio estranho mesmo que eu não
gostasse do jeito dela; mas também pela partida repentina de minha irmã.
Michelle agora se tornou uma memória dolorosa. Sua partida
prematura deixa um buraco negro na minha vida enquanto a injustiça da sua
morte surge como um grito sombrio nas paredes do palácio.
A partida de Téssia adiciona outra camada de tristeza ao meu coração.
Ela partiu em busca de segurança, deixando para trás um vácuo que nenhum
outro abraço poderá preencher. Sinto a ausência dela como uma perda, uma
lacuna que nenhum sorriso ou palavra poderá suprir.
A porta do meu quarto se abre e Arnaldo entra imediatamente.
— Onde está Téssia? — pergunta, irritadíssimo. Meu cunhado ainda
usa a vestimenta de dormir. O rosto amassado indica que não faz muito
tempo que ele acordou.
— Ela não está aqui — respondo, encolhida na cama. — E quem te
deu permissão para invadir meu quarto desse jeito?
— Olha, Saravana. Eu não estou de brincadeiras. Onde está a minha
mulher?
— Eu não faço ideia, Arnaldo. A última vez que a vi foi no baile —
respondo, desconfiada do seu desespero. — Por que? Aconteceu alguma
coisa?
Meu cunhado olha diretamente para mim e fecha os punhos com
agressividade.
— Não se faça de idiota, princesa. Eu conheço sua irmã e eu tenho
certeza que ela comentou alguma coisa contigo — fala, gesticulando para o
nada. — Eu vou te perguntar pela última vez. Onde. Está. A. Porra. Da.
Sua. Irmã?
— O que você vai fazer comigo se eu não disser? — enfrento ele,
saindo da cama. — Vai me bater como faz com ela?
— Do que você está falando? Você não sabe nada do meu casamento
com Téssia.
— É mesmo, Arnaldo? E aquelas marcas no rosto dela?
Meu cunhado corre na minha direção e agarra meu pescoço com as
mãos.
— Repete o que você disse — pergunta, cuspindo no meu rosto. —
Diga o que você acabou de dizer olhando dentro dos meus olhos,
vagabunda!
Ele aperta meu pescoço com força, um aperto cruel que corta o fluxo
de ar. A sensação de sufocamento se instala rapidamente, e meu corpo reage
instantaneamente, buscando desesperadamente por oxigênio.
— Me solta — sussurro, com dificuldades.
A pressão intensa cria uma sensação angustiante, como se o ar
estivesse sendo arrancado dos meus pulmões.
— Repete, vagabunda — ordena, totalmente descontrolado.
Cada segundo se estende dolorosamente, enquanto tento resistir à
asfixia imposta pelas suas mãos implacáveis.
— Arnaldo, eu … me — perco o sentido da fala.
Os sons ao meu redor parecem distantes, abafados pela falta de ar que
consome minha consciência. Meus olhos buscam desesperadamente por
alguma saída, mas a visão turva torna tudo embaçado, como se estivesse
mergulhada em um pesadelo sufocante.
— É isso que acontece quando alguém me desobede — fala.
A luta pela respiração se intensifica e meu corpo reage com um
instinto primordial de sobrevivência. Cada músculo meu está tensionado,
mas a força do aperto do meu cunhado se mantém inabalável.
O pânico toma conta de mim, e a consciência da fragilidade da vida
se torna agonizante. Os suspiros se tornam um pedido silencioso por
misericórdia, enquanto a escuridão ameaça me envolver completamente.
Eu vou morrer pelas mãos de Arnaldo e ninguém vai ficar sabendo
disso.
De repente, ouço um grito desesperado vindo da porta. E, então, num
momento que parece uma eternidade, a pressão diminui e eu desabo no
chão.
— VOCÊ PIROU, ARNALDO? — grita meu cunhado Erasmos,
dando uma chave de braço nele.
Donabella se aproxima de mim e segura a minha cabeça.
— Querida, você está bem? — pergunta, com a voz embargada de
choro.
Tusso e faço que sim com a cabeça.
A liberação do aperto permite que o ar invada meus pulmões
vorazmente, como se estivesse renascendo.
— ELA TIROU A TÉSSIA DE MIM — berra Arnaldo, alterado.
Enquanto tento recuperar o fôlego, Péricles entra e algema meu
cunhado rapidamente. Ele olha na minha direção com uma expressão de
desculpas.
— Onde você estava, Péricles? — questiono, sendo ajudada por
minha irmã a ficar de pé. — Eu deveria demitir você agora.
— Sinto muito, princesa. Mas ele me distraiu e desapareceu — ele
justifica, chateado. — Pensei que tinha ido embora.
— ME SOLTA, CAIPIRA IMUNDO! TIRE AS PATAS DE CIMA
DE MIM.
— O que quer que eu faça com ele? — pergunta meu guarda-costas.
— COMO OUSA NÃO OBEDECER AS ORDENS DE UM
PRÍNCIPE!
— Leve-o para a ala hospitalar e diga que o príncipe Erasmos pediu
para aplicar uma dose bem caprichada de relaxante muscular — fala o
marido de Donabella.
— Como quiser, senhor.
— ERASMOS, SEU INÚTIL IMPRESTÁVEL. VOCÊ ME PAGA!
Sento na cama e massageio meu pescoço.
— Deixa eu dar uma olhada, pequenina — pede minha irmã.
Ergo a cabeça e ela solta um suspiro.
— Ficou feio?
— Um pouco, mas nada como uma boa camada de maquiagem para
esconder o estrago — responde, sorrindo para mim.
— O que ele estava fazendo aqui? — indaga Erasmos, com as mãos
na cintura.
— Ele veio atrás de Téssia — respondo e decido não envolvê-los na
fuga da minha irmã mais velha. Quanto menos eles souberem da verdade,
melhor para a segurança deles.
— Ele não deveria ter saído dos aposentos dele.
— Nunca o vi tão transtornado assim — digo.
— Sara, a gente viu ele se drogando ontem no baile — conta Dona,
desembaraçando os meus cabelos.
— Arnaldo usa drogas?
Dona afirma com a cabeça.
— Eu já sabia faz algum tempo, querida. Téssia havia me enviado
cartas onde dizia que ele a agredia quando estava drogado.
— Eu sabia que ele batia em Téssia. As vezes, ela aparecia marcada
nos jantares de família ou até mesmo durante algumas etapas do Torneio do
Sol Nascente.
— Vou precisar comunicar a rainha sobre isso. Ele não pode andar
pelo palácio desse jeito — comenta meu cunhado. — Acho que chegamos
no momento certo.
Assinto, agradecida por eles terem voltado ao palácio.
— Sobre Michelle. Você está sabendo, Dona?
— Infelizmente, sim. Estamos bastante preocupados com as coisas
que estão acontecendo por aqui, Sara.
— Ficaram sabendo da família do Duque Salazarjo?
— Ontem mesmo — responde Erasmos, puxando uma cadeira para se
sentar. — Rubens nos contou tudinho.
— Mas estamos felizes pela gravidez de Cássia — comenta minha
irmã, cruzando as pernas em cima da cama. — Espero que seja um menino.
Sorrio.
— Eu não vejo Cássia desde a comemoração que ela organizou para
celebrar a notícia do bebê para o reino — suspiro. — Inclusive foi no
mesmo dia que a família Valktran foi assassinada.
— Rubens decidiu que ela não deve sair dos aposentos até ganhar o
bebê — explica Dona. — Ele disse que o palácio está perigoso demais para
uma grávida andar livre por aí.
Alguém bate na porta e Erasmos vai atendê-la.
— Pedido de quarto — fala uma senhora, carregando um cesto
repleto de guloseimas.
— O que é isso? — questiono. — Não fiz nenhum pedido de quarto
para hoje.
— Na verdade, fomos nós — revela Dona, se ajeitando na cama. —
Viemos até aqui para tornarmos o café da manhã com você, querida.
Grannus entra no quarto todo pomposo e faz a reverência tradicional.
Percebo que ele está melhorando a cada dia.
— Quem é esse? — pergunta Erasmos, encarando-o com cuidado.
— Grannus, esta é minha irmã Donabella e este é meu cunhado…
— Ai caramba é o príncipe Erasmos! — exclama, ansioso. Ele ajeita
o cabelo. — Poxa, princesa. Por que a senhorita não me avisou que o
homem mais querido do reino tomaria café conosco hoje?
— Tomaria café conosco? — questiona minha irmã, levantando uma
sobrancelha.
— Pessoal, este é Grannus — apresento. — Meu provador de comida.
CAPÍTULO 60

Erasmos propõe um jogo para nós quatro.


A ideia parece tão envolvente que decidimos dedicar toda a manhã à
diversão, esquecendo um pouco das tensões que tomam conta do palácio.
Ele explica as regras com entusiasmo, e logo estamos imersos na magia do
jogo.
O tabuleiro que se estende diante de nós é como um campo de
possibilidades, e cada movimento deve ser tomado com estratégia e
antecipação. Erasmos compartilha dicas e técnicas que ele mesmo elaborou,
tornando a experiência ainda mais emocionante. Sua paciência e habilidade
em explicar os detalhes contribuem para a atmosfera descontraída,
arrancando gritinhos eufóricos das meninas.
À medida que as horas passam, perdemos a noção do tempo,
mergulhando completamente na dinâmica da brincadeira. Grannus ganha
oito vezes consecutivas e o acuso de está roubando de alguma forma.
— Eu juro que não estou roubando, princesa — rebate ele. — Você
que é lerda.
— Deixa de ser xerxelo, Ganso. Quem não sabe que você está
mentindo?
— Eu não preciso mentir para ganhar nada, xerxela. Você não captou
as dicas do príncipe Erasmos — fala, dando de ombros.
Donabella olha para nós, parecendo assustada.
— Vocês sempre se tratam assim?
— Assim como, Dona? — questiono, sem desgrudar os olhos do
tabuleiro.
— De forma totalmente informal — fala Erasmos, comendo uma peça
minha.
Olho feio para ele.
— Como você fez isso?
— Preste atenção nas jogadas, Sara. Você está deixando as dicas de
lado.
De repente, todos ouvimos um grito do lado de fora.
— O que foi isso? — pergunto, levantando da cadeira.
Um pressentimento incômodo faz meu coração bater mais rápido. A
sensação de que algo está terrivelmente errado carrega o ar, me
impulsionando a agir imediatamente.
Sem pensar duas vezes, me dirijo até a porta do meu quarto e saio
para os corredores, onde o cenário revela um turbilhão de caos.
Vejo os funcionários do palácio correndo apressadamente em direção
à direita, com os rostos apavorados e os olhos cheios de pânico. Seus passos
rápidos ecoam pelos corredores, criando uma sinfonia de urgência. A
atmosfera que paira no ambiente é densa, como se algo sinistro estivesse
arruinando o dia de todo mundo.
— O que está acontecendo? — pergunto para Péricles.
— Ninguém quer parar para explicar — responde, tentando abordar
uma limpadora.
Curiosa e preocupada, sigo o fluxo apressado das pessoas, tentando
descobrir o que está causando tamanha comoção. Os murmúrios abafados e
olhares preocupados entre os funcionários aumentam minha apreensão,
alimentando a sensação de que estou prestes a descobrir uma verdade
desagradável.
— Princesa, me espere! — grita meu guarda-costas, bem mais atrás.
Conforme avanço pelos corredores, a agitação se intensifica. Minha
mente está repleta de questionamentos, e o desconhecido à minha frente faz
meu estômago se contorcer em antecipação.
— Eles eram tão jovens — murmura uma senhora para si mesma.
— De quem a senhora está falando? — questiono, mas ela me ignora.
Abalada.
No meio do tumulto, busco por respostas, esperando que alguém
possa esclarecer a situação, mas ninguém parece saber quem eu sou, pois
simplesmente desviam da minha atenção.
Assim que chego à sala de descanso, me deparo com uma
aglomeração de pessoas paradas junto à janela, seus semblantes
expressando horror e tristeza ao mesmo tempo. Algumas choram em
silêncio, enquanto outras compartilham comentários sussurrados entre si.
A curiosidade e a apreensão me impulsionam a empurrar a multidão,
esforçando-me para alcançar a janela. Meu coração bate descompassado, e
a respiração sai entrecortada, como se o ar ao meu redor estivesse rarefeito.
Finalmente, consigo me aproximar o suficiente da janela para
vislumbrar o que está acontecendo do lado de fora. No instante em que
meus olhos captam a cena, uma onda de fraqueza toma conta do meu corpo,
e meus joelhos cedem, me fazendo desabar no chão.
As pessoas ao meu redor se afastam, dando-me espaço para processar
o impacto da visão diante de mim. Cobrindo a boca com as mãos, tento
conter um soluço angustiado que ameaça escapar. O que vejo é mais do que
meu coração pode suportar, uma revelação que abala as bases da minha
serenidade.
— Não, não, não, não, não — repito a palavra várias vezes.
— Saravana, você está bem? — pergunta Péricles, parando logo atrás
de mim.
— Ela está bem? — indaga Donabella. — Ai caramba. Não, não, não.
— Aquele ali não é o filho de Ricarda? — questiona Erasmos,
embasbacado.
Ignoro todos os presentes e permaneço ali, de joelhos, absorvendo o
choque da realidade que se desenrola no jardim do palácio. As lágrimas
teimam em escorrer pelos meus olhos, e a sensação de impotência me
envolve como uma sombra, obscurecendo momentaneamente a luz da
esperança.
Minha amiga Fadye e meu primo Talles se encontram pendurados na
estrutura da forca, mortos. Seus corpos balançam conforme o vento sopra,
parecendo dois bonecos de cera. Os pescoços estão vermelhos, prendendo a
circulação do oxigênio. Os rostos, inchados e arroxeados, indicam que eles
estão pendurados ali a mais ou menos meia hora.
Meu coração sangra ao testemunhar a visão angustiante da minha
melhor amiga sem vida. A amiga com quem discuti apenas alguns dias
atrás, agora imóvel diante dos meus olhos. As lembranças da discussão, das
palavras afiadas trocadas entre nós, se tornam uma carga pesada em meio à
tristeza que se desenha à minha frente. O peso da culpa se mistura à dor
aguda do sofrimento, e sinto meu mundo deixando de existir. Os
ressentimentos que carregávamos parecem pequenos e insignificantes
diante da brutal realidade da morte. Arrependimento e remorso se
entrelaçam dentro do meu ser, formando uma teia de emoções complexas
que tornam ainda mais difícil aceitar o que aconteceu. A ausência de
reconciliação amplifica a agonia. As palavras não ditas, as desculpas não
oferecidas, tudo paira no ar como um lamento silencioso. A tristeza
profunda se transforma em uma melodia terrível, ecoando em cada
pensamento sobre nossa última interação.
A dor dilacera meu coração, enquanto luto com a complexidade de
emoções que surgem diante da morte de Fadye, uma amizade que agora
permanece inacabada e pontuada por um silêncio eterno.
Donabella se agacha ao meu lado e segura minha mão.
— Eu sinto muito, Sara — sussurra e dá um beijo na minha bochecha.
Então, as lágrimas brotam sem controle. Os soluços escapam, quase
incontroláveis, enquanto o lamento se mistura ao silêncio que está ao redor.
O som do meu pranto reverbera, solitário e melancólico, no espaço vazio
que a ausência da minha amiga deixou para trás.
— Não, não, não — ouço minha tia Ricarda gritar. — O meu filho
querido, não.
Ela se aproxima da janela e começa a bater nos vidros violentamente
enquanto chora de forma histérica.
Percebo que seu choro é uma tentativa desesperada de liberar a
angústia que se acumula dentro dela. O eco do seu lamento é angustiante,
preenchendo o vazio deixado pela ausência do meu primo.
— A culpa é sua — disparo e todos arfam ao mesmo tempo.
Tia Ricarda olha na minha direção com os olhos inchados e a boca
rachada pela secura.
— O que você disse? — pergunta. Sua voz está arrastada.
Fico de pé enquanto Donabella segura meu braço com força.
— Você disse que encontraria o culpado!
As pessoas começam a cochichar entre si.
— Princesa, acho melhor deixar essa conversa para um outro
momento — aconselha Péricles, segurando minha cintura.
— E você acha que eu não tentei? — pergunta minha tia de volta. —
Acha mesmo que fiquei parada brincando de príncipe encantado com um
Torneio de merda? Sara, é o meu filho que está pendurado ali fora. Você
consegue ver? É o meu primogênito morto na forca. Não queira me culpar
por algo que não estava ao meu controle.
— Você poderia ter mandado o Talles se afastar da Fadye!
— E você poderia ter feito a mesma coisa com sua escrava!
— ELA NÃO ERA UMA ESCRAVA! — grito, descontrolada.
Enquanto a multidão se agita com a discussão, uma mão forte segura
meu braço e me puxa com delicadeza para longe do cenário. Pisco várias
vezes, tentando controlar as lágrimas que escorrem dos meus olhos
involuntariamente.
— Leva ela para o quarto, por favor — ouço a voz de Péricles ordenar
a alguém.
Conforme sou guiada de volta pelos corredores, descubro que o meu
guia nada mais é do que Ad Pomodoro.
Ad, com toda a agilidade do mundo, desvia das pessoas como se elas
fossem pedras no nosso caminho. Ele me conduz até o meu quarto, fecha a
porta e me abraça demoradamente, respirando no meu pescoço.
Não consigo controlar o choro. Não consigo absorver a fatalidade que
aconteceu. A morte da minha melhor amiga ficará marcada na minha
consciência para sempre.
CAPÍTULO 61

Enquanto choro, tento compreender a complexidade da perda e da


falta de oportunidade para dizer adeus. Cada lágrima é um elo que liga o
passado ao presente, uma expressão sincera da saudade que se estende
como um fragmento sobre os momentos compartilhados com Fadye, agora
apenas memórias eternas.
Suspiro. A dor que sinto é demais para suportar, tanto que desabo no
chão.
Ad se agacha ao meu lado, permanecendo abraçado comigo,
compartilhando cada segundo do meu sofrimento. Fadye, minha melhor
amiga. Como será a minha vida sem a presença dela?
O castigo da sua morte dilacera cada fibra do meu corpo. Sinto uma
agonia profunda, uma sensação de vazio que parece insuperável. Os soluços
escapam de mim de maneira incontrolável, e a tristeza se mistura ao ar,
tornando-o denso e sufocante. Minha cabeça lateja de tanto chorar,
enquanto as lágrimas continuam a fluir como um rio desenfreado. Cada
lembrança com ela é um punhal afiado, perfurando meu coração com a
cruel realidade da sua ausência.
Ad, com sua presença solidária, oferece um abraço que tenta me
consolar, mas a dor persiste, imponente e avassaladora. Me sinto
desamparada diante da magnitude da perda, incapaz de compreender como
a vida pode ser tão implacável.
O choro é meu único refúgio neste momento sombrio.
Então, em meio a confusão de sentimentos, Ad me surpreende ao me
beijar delicadamente. Seus lábios tocam os meus com suavidade, como se
quisessem oferecer um consolo silencioso diante da dor que me envolve. O
beijo é um gesto de compaixão, um sussurro de apoio que transcende as
palavras. Sinto a ternura da sua atitude como um raio de luz que tenta
penetrar a escuridão que se instalou em meu coração.
Por um instante, o beijo cria uma pausa na tempestade das emoções
que me consome. Há uma conexão silenciosa, uma comunicação que vai
além das palavras e abraça o entendimento do sofrimento que cresce de
dentro para fora. Em tão pouco tempo, o meu competidor favorito se tornou
a pessoa que carrega consigo a dose exata para aliviar o peso que paira
sobre a minha vida. Ele se tornou um elo de necessidade. É como se sua
presença preenchesse o vazio que sempre existiu dentro de mim, escondido
no fundo do meu coração. Ad Pomodoro. O homem que trouxe o
verdadeiro significado do amor. É através dele que chego a conclusão de
que o amor não precisa ser explicado. Ele só deve ser expressado no
momento certo, com a pessoa certa.
Enquanto Ad me beija, percebo que esse gesto não apaga a tristeza,
mas oferece um instante de alívio, uma pequena pausa para respirar em
meio à aflição. É como um toque suave que me faz lembrar que não estou
sozinha nesse sofrimento incontrolável.
— Obrigada, Ad. Obrigado por existir na minha vida.
— É o mínimo que posso oferecer, princesa. Você não merece passar
por tudo isso sozinha. Saiba que estarei aqui sempre que precisar da minha
presença.
Respiro, inspirando seu cheiro agridoce. Preciso que Ad arranque essa
tensão do meu corpo. Preciso que ele explore cada centímetro da minha
pele, acariciando cada parte sensível de mim.
Tiro sua camisa.
— Princesa? O que está fazendo? — pergunta, preocupado.
Passo as mãos no tórax dele, sentindo a rigidez de cada músculo. É
uma sensação instigante que mexe com a minha respiração.
— Preciso que me conheça por inteira, Ad Pomodoro.
Meu competidor me olha da cabeça aos pés e assente. Ele fica de pé e
me ajuda com toda a paciência do mundo.
Puxo Ad para a cama e tento tirar meu vestido com bastante
dificuldades. Ele ri e termina de arrancar a única peça que esconde meu
corpo de seus olhos. Ele passa a mão em cada curva da minha cintura,
admirando meus seios com um brilho selvagem no olhar.
Mordo o lábio inferior e engulo uma boa quantidade de saliva,
tentando controlar o desejo sexual que agora domina meus pensamentos.
Sinto a vontade arder em cada parte do meu ser, uma chama que queima
intensamente diante da proximidade com ele. Eu quero isso. Eu preciso
disso. Eu desejo que ele faça amor comigo como nunca fez com ninguém.
Suspiro. Estou extremamente ansiosa para explorar os limites da
paixão que nos envolve.
Com um toque decidido, eu completo o gesto, removendo sua calça
moletom. Sinto seu olhar percorrer cada movimento, cada detalhe do
momento, e o brilho predatório em seus olhos aumenta o calor da safadeza
entre nós. A carícia de suas mãos em minha pele desperta sensações
elétricas, enquanto admiro suas pernas com um fascínio ardente. Mordo o
dorso do seu pescoço, e escuto ele suspirar diante do desejo que cresce
entre nós.
A tensão no ar é notável, e a certeza do que está por vir faz meu
coração acelerar.
Em meio a atmosfera carregada de tesão, sussurro para mim mesma:
— Eu quero isso... — declaro.
Seu olhar carregado de um brilho selvagem acende uma chama ainda
maior dentro de mim. E então, ele tira a cueca e sobe em cima das minhas
pernas, beijando meu pescoço delicadamente. É um beijo tão excitante que
me faz esquecer do luto que eu estava enfrentando alguns minutos atrás. Ad
segura meu cabelo e acaricia minha mandíbula várias vezes, jogando ar
quente no meu rosto.
— Seu desejo é uma ordem, princesa — diz, entrando dentro de mim.
O prazer do movimento é tão intenso que, por um momento, esqueço
quem sou. As sensações tomam conta da minha mente, um turbilhão de
êxtase que me transporta para além das fronteiras do cotidiano. Cada toque,
cada suspiro, é uma explosão de prazer que consome todos os meus
pensamentos. O mundo ao meu redor desvanece, e sou imersa em um
oceano de sensações indescritíveis. O calor do momento se entrelaça com a
pulsação acelerada do meu coração, criando uma sinfonia de prazer que
ecoa em cada fibra do meu ser. Isso é bom, muito bom mesmo.
A entrega ao desejo é completa, como uma fusão de corpos e almas
unidos pela cumplicidade. Cada movimento é uma dança íntima, uma
celebração da paixão que nos une. Percebo que as barreiras entre o físico e
o emocional desaparecem, deixando apenas a intensidade do que estamos
executando. Minha mente se liberta das preocupações e responsabilidades,
mergulhando na liberdade que o prazer proporciona. Agora, sou apenas uma
extensão das sensações que me envolvem, perdida na vertigem de um
prazer que transcende a compreensão racional. É um ensejo de pura
comunhão com o deleite, onde o tempo se dilui e as fronteiras se desfazem.
A todo instante, descubro um novo patamar de espasmos, uma
experiência que me leva além dos limites conhecidos e me faz sentir viva de
uma maneira que jamais poderia imaginar.
— Como você é boa nisso, princesa — fala ele, entre arfadas pesadas
e suspiros prolongados.
Não respondo, porque não quero perder a concentração. Sinto o
enrijecer de suas pernas e desfruto do descolamento das virilhas. Jogo
minha cabeça para trás enquanto uma boa camada de suor lambe a extensão
do meu corpo. Seguro as laterais de suas coxas e aperto seus músculos com
força. A sensação de ser consumida libera todo o sentimento negativo para
fora, deixando apenas o líbido tomar conta das minhas ações.
Noto que Ad está cuidadoso demais, talvez com medo de me
machucar. Então troco de posição com ele, ficando em cima de seu corpo.
O tempo de ser dominado acabou. Agora sou eu que tomarei as réguas da
situação.
Desço meu corpo com mais profundidade e vejo o rosto do meu
competidor expressar desejo imediato. Ele gosta do que estou fazendo e
deixa claro quando olha na minha direção. Ad arfa enquanto eu gemo.
Acelero o movimento. Ele precisa saber que estou no controle. Os sons das
nossas coxas ecoam no quarto como aplausos desesperados enquanto
escorrego minha pele suada no colo dele.
Ad segura minha cintura e força meu corpo para que se aprofunde
mais na direção dele.
Então ele quer mais? Ele terá mais do que deseja.
CAPÍTULO 62

Acordo com o beijo suave de Ad.


— Bom dia, coração — fala ele, encostando sua testa na minha.
Olho para a janela do meu quarto e percebo que está nevando. Os
flocos caem silenciosamente, dançando no ar como pequenas estrelas
geladas. O branco manto que se forma lentamente sobre a paisagem dá um
toque de magia ao cenário.
— Está nevando!
— Sim, está. Acredito que começou durante a madrugada. Sabia que
eu não sou muito adepto ao frio? Não gosto quando o tempo fica úmido.
Tento a sensação de estar doente nesta época.
— Não se preocupe, caipira. Eu cuidarei para que não sinta mais frio
— digo, passando a mão em sua virilha.
O silêncio que a neve traz é quase hipnotizante, abafando os sons
habituais e criando uma atmosfera de tranquilidade. A luz suave da manhã
reflete nas partículas de gelo, fazendo com que tudo ao redor brilhe com um
brilho sutil.
— Isso é melhor do que eu esperava, princesa — responde ele,
afastando o meu cabelo do rosto.
Ao contemplar o fenômeno suave da natureza, sinto uma serenidade
profunda envolver meu ser. Cada floco que pousa delicadamente é como
uma pintura em constante movimento, transformando o mundo lá fora em
um quadro de inverno encantador.
Abraço meu companheiro e decido ficar ali, observando a neve cair,
perdendo-me na beleza efêmera desse fenômeno. É um momento de paz,
onde a natureza revela sua capacidade de transformar até mesmo o
cotidiano em algo extraordinário.
— Eu gosto da neve. É como se ela trouxesse estabilidade na
atmosfera — comento.
Ad boceja e muda de posição.
— Falando em atmosfera, Péricles pediu para avisar que sua tia
Ricarda estaria durante toda a manhã no cemitério da família real,
observando o túmulo de Michelle. Ele disse que ela estaria esperando por
você.
A preocupação toma conta de mim.
— Será que aconteceu alguma coisa? — pergunto.
— Não sei, mas acredito que não. Perguntei se ela havia marcado um
horário específico e ele disse que não.
Saio da cama e visto meu roupão.
— Preciso tomar um banho rápido antes de encontrá-la.
— Você fica linda pelada.
— Ad Pomodoro!
— É sério, princesa. Seu corpo é uma obra de arte completa.
Jogo meu travesseiro nele.
— Eu volto rapidinho — digo, deixando-o para trás.
Entro no banheiro e encontro a toalha de Fadye pendurada atrás da
porta.
De imediato, um aperto no meu peito me consome, e sinto uma
vontade irresistível de chorar. Não posso acreditar que ela morreu.
Seguro o pedaço de pano por um momento, como se pudesse
recuperar algo do que se foi. E então, não consigo mais me controlar e
choro. As lágrimas escapam dos meus olhos, trazendo à tona a tristeza
avassaladora que se instalou em meu coração.
Sinto falta da minha amiga, da sua presença, das suas brincadeiras
idiotas e de tudo o que ela fazia. Fadye era o meu ponto de paz. Ela era a
única pessoa do mundo que conhecia todos os meus segredos. Mas que
agora não existe mais.
Deixo escapar um soluço abafado enquanto entro debaixo do
chuveiro. Coloco a água na temperatura fria e deixo que ela lave minha
alma, minha consciência e todo o meu ser. Fecho os olhos e conto 47
segundos antes de desligar o registro e me secar com uma toalha limpa.
Penteio os cabelos com as mãos e volto para o meu quarto.
— Esse foi o banheiro mais rápido que já presenciei em toda a minha
vida — brinca Ad, deitado de barriga para baixo na cama.
Olho para ele com lágrimas nos olhos e ele entende.
Abro o guarda-roupa e puxo a seção de inverno para frente. Pego uma
calça jeans, uma camiseta de lã dourada e um casaco preto com capuz.
— O que acha? — pergunto para ele, depois de colocar todas as
peças.
— É a segunda vez que a vejo assim, como uma cidadana comum.
— Vou acreditar que isso foi um elogio.
— Você sempre está linda, Sara.
— Obrigada. A moda é para poucos — brinco.
Ad pula da cama, se aproxima e me dá um beijo.
— Se cuida, por favor. Fique atenta a todo instante.
Faço que sim com a cabeça.
— Você também.
Saio do quarto e dou de cara com Péricles.
— Princesa.
— Escolta-me até o cemitério real, por favor — peço.
— Siga-me.
Péricles não comenta absolutamente nada sobre ontem, e me sinto
grata por isso.
CAPÍTULO 63

Cerca de doze minutos mais tarde, meu guarda-costas me deixa no


arco de pedra que separa o pátio do palácio com a parte reservada para os
funerais.
— Não precisa vir comigo — aviso, pois quero ter uma conversa
privada com minha tia.
— Tem certeza? — questiona ele, duvidoso.
— Absoluta — respondo.
Assim que atravesso o arco, entro no cemitério da família real. O
lugar está completamente branco devido à neve que cobre cada canto.
Caminho entre os túmulos, desviando das poças d'água que ameaçam
molhar meus pés, até encontrar minha tia Ricarda. Ela está parada na frente
da lápide de Michelle.
Percebo que a lápide da minha prima está adornada com detalhes
esculpidos e, mesmo coberta pela neve, exala uma sensação de paz. Minha
tia, imóvel, parece envolta em seus próprios pensamentos.
O frio cortante não parece afetá-la.
Ao me aproximar, meu coração começa a bater descompassado. A
neve sob meus pés faz um leve ruído, mas o respeito pelo momento me
impede de quebrar o silêncio com palavras desnecessárias. Então, apenas
ficamos ali, diante da lápide, em meio à brancura que envolve o lugar
sagrado.
— Talles odiava a atmosfera do cemitério quando era criança. Ele
sempre dizia que sentia a áurea negativa das pessoas falecidas, sabe? — fala
minha tia, fumando um cigarro. Ela usa um casaco de pele grosso enquanto
o vento sopra seus cabelos dourados. — Devo admitir que achava o meu
filho estranho naquela época, mas hoje eu concordo com seu ponto de vista.
Será que ele ficaria contente se soubesse que foi cremado ao invés de ser
enterrado nesta sepultura de pedra miserável? Sem contar que ela é muito
feia para guardar os corpos da família real — ela olha na minha direção, e
percebo que seus olhos estão marejados. — Você está péssima, sobrinha.
— Não tão péssima quanto você — digo, colocando o capuz do
casaco na cabeça. — Sinto muito pela morte de Talles.
Ela me olha da cabeça aos pés e solta um suspiro prolongado.
— Por mais que eu não queira admitir, também lamento pela morte da
sua amiga. Sei que ela era uma pessoa muito especial para você... e para
meu filho.
Faço que sim com a cabeça e olho para o nome de Michelle escrito na
lápide. As flores que foram postas como decoração estão murchas e
emboloradas.
— Por que a senhora me chamou aqui?
Ricarda traga o cigarro e demora um tempo para me responder.
— Eu estou indo embora do palácio amanhã, junto com meus filhos e
meu marido. Este lugar não é mais seguro para nós, Saravana — confessa,
observando um pinheiro ao longe. — Acho que vou me mudar para um
lugar próximo dos seus tios, e talvez sua tia Marcellyne venha comigo. Sua
vida sem Michelle não fará mais sentido aqui.
— Concordo. O palácio não é mais um lugar seguro para vocês.
— Nem para você, querida — fala, fechando os olhos e sentindo os
pequenos flocos de neve caindo sobre seu rosto. — E é por isso que a
chamei aqui. Quero que você venha conosco.
Sou pega de surpresa.
— Tia, não posso. O Torneio ainda está acontecendo, e Cássia pode
precisar de ajuda. Além disso, há muitas questões a serem resolvidas —
explico, desanimada.
Minha tia traga o cigarro outra vez e sopra a fumaça para o outro
lado.
— Sua vida está correndo um grande perigo, Sara. Você não merece
passar por tudo isso — compartilha. — Ainda que sua mãe não seja uma
mulher presente na sua vida, saiba que pode contar comigo.
Esboço um sorriso sincero para ela.
— Obrigada, de verdade. Mas não posso abandonar minha vida agora.
Não depois do que aconteceu. Eu quero encontrar o culpado por essas
mortes. Preciso entender porque esta pessoa está fazendo tudo isso e se há
alguma possibilidade de ela parar. Não posso permitir que mais pessoas
morram.
— E se a próxima vítima for você?
— Acho que não. Se o assassino quisesse me matar já teria feito —
admito, convencida pela minha linha de raciocinio. — Houve muitas
oportunidades para a ocasião.
— Você tem certeza?
— Se uma explosão não foi o suficiente para acabar com a minha
existência, nada será — digo, relembrando o atentado rebelde. — Não se
preocupe comigo, pois estou me cuidando muito bem.
Ricarda não parece ter gostado muito da minha decisão.
— Posso te contar uma coisa?
— Sempre.
— Sua irmã Téssia desapareceu logo depois da morte da própria
auxiliadora.
— Sim, eu sei.
— Você não acha que...
— Não. Téssia fugiu por outros motivos.
Ela me olha embasbacada.
— Como você pode ter tanta certeza disso?
— Ela me deixou uma carta explicando toda a situação — respondo, e
assopro as mãos. O frio começa a incomodar um pouco. — Permanecer no
palácio por mais um dia representaria um risco iminente para ela ser
assassinada.
— Eu não consigo entender. O Duque está morto. Então, não seria
viável apresentar uma denúncia contra meu filho perante a corte. Questionei
sua mãe por uma hora, e ela afirmou que a quebra de sigilos não era
permitida.
— Regras do reino.
— Sim. As regras idiotas de Mirassol — ela joga o cigarro no chão e
pisa com a bota. — Sua mãe é a única que sabe quem entregou o Talles e
sua amiga para serem condenados à forca. Contudo, a pergunta que não
quer calar é: por que?
Penso na mensagem que a música de Kaida, inspirada pelas
informações de Téssia, expressava na noite do baile. Penso no desespero de
Michelle ao circular a palma da minha mãe com a letra V. Penso na
substância usada para assassinar toda a família Valktran. Há alguma coisa
que ainda não consigo enxergar. Faltam algumas peças para a ligação entre
esses eventos fazerem sentido para mim.
— Necessito de mais informações para buscar as respostas
necessárias acerca desses casos isolados.
— Tome cuidado, Saravana — aconselha.
— E a senhora também do lado de fora — digo.
Eudora aparece com as mãos enfiadas no bolso do sobretudo
vermelho. Ela usa um gorro na cabeça que esconde ambas as orelhas.
— Eudora, diga a seu pai que chegaremos amanhã às 15h — fala
minha tia.
— Combinado — responde. — Sara vem com a gente?
— Não. Ela não pode. Prefere arriscar a vida do que se afastar deste
lugar horroroso.
— Lugar onde a senhora morou boa parte do tempo — relembro.
Tia Ricarda sacode a cabeça e espirra.
— Melhor eu entrar antes que pegue um resfriado — adverte,
envolvendo-me em um abraço apertado. — Boa sorte, querida.
— Obrigada — agradeço, apertando-a bem forte.
Depois disso, ela volta para o palácio.
— Então você decidiu ficar?
Dou de ombros.
— Tenho um Torneio para finalizar. Você sabe. Compromissos com o
reino.
Ela parece chateada.
— Eu queria tanto que você fosse passar um tempo com a gente.
Seria muito bom para esvair um pouco.
— Prometo que um dia vou visitá-los.
— Promessa é dívida.
— Com certeza — confirmo, estendendo as mãos para pegar um
floco de neve. — Então, você vai embora primeiro do que a tia Ricarda?
Ela afirma com a cabeça.
— Na verdade, eu e Aranel estamos indo agora. Ele está terminando
de colocar as coisas no carro. Pensa em um menino que gosta de levar
tralhas para a casa. O quarto dele é repleto de bugigangas esquisitas. Disse
que pretende ser inventor.
Sorrio.
— Pois é. Foi muito bom rever vocês.
Ela abre um sorriso, arregalando os olhos e espremendo os lábios.
— Você não quer nos acompanhar até a cidade? — sugere.
— Agora?
— Sim! Por que não? Será ótimo para distrair a mente.
— Não sei se é uma boa ideia sair do palácio sem avisar minha mãe.
— Ah, deixa de mimimi — reclama, dando um soco no meu ombro.
— Até parece que a princesa nunca saiu do palácio sem a aprovação da
rainha.
Lembro de quando Ad me levou para a floresta e seguro o riso.
— Combinado. Só preciso levar meu guarda-costas e meu provador
de comidas comigo.
— Então acho melhor corrermos agora ou Aranel terá um troço —
fala, segurando minha mão e nos arrastando para o palácio.

CAPÍTULO 64

Estamos fora do palácio.


Através da janela do carro, vejo a cidade se estendendo diante de
mim. Há variedades de lojas e comidas exóticas que são exibidas em tapetes
estendidos no chão.
Olho para trás e vejo cinco guardas reais montados a cavalo,
garantindo nossa segurança. Péricles cumprimenta alguns mercadores
enquanto conduz sua montaria com destreza. É claro que as pessoas o
conhecem, pois ele sempre está visitando vários pontos dos campos e da
cidade.
Noto que o sol fraco ilumina boa parte da paisagem, e a brancura da
neve espalhada pelo chão enfeita os telhados de madeira. O ambiente é
agitado, cheio de cores e sons que nos envolvem conforme avançamos por
ruas tortuosas. O aroma de especiarias e iguarias locais permeia o ar,
despertando minha curiosidade.
— Será que posso provar a comida daqui? — pergunto para Grannus.
— Melhor não, princesa. Você precisa experimentar a comida do
campo.
— Os alimentos preparados deste lado da cidade são sebosos demais
— comenta Aranel, mastigando chiclete. O cheiro de morango me deixa
enjoada.
As barracas do lado de fora exibem uma variedade de itens
diferenciados, desde peças artesanais e ingredientes que nunca vi na vida.
Uma mulher passa carregando um vaso de cerâmica na cabeça, cheio de um
líquido vermelho. Ela parece rebolar enquanto atravessa de um lado para o
outro, conversando com as pessoas que encontra pelo caminho. Vejo
também um cachorro de três patas pulando para alcançar uma bola em cima
de uma mesa de latão.
— Como tudo é diferente por aqui — sussurro para mim mesma.
Um menino de mais ou menos 10 anos se aproxima do nosso carro,
mas é afastado pelo guarda da direita. Os guardas reais mantêm uma
vigilância constante, garantindo que a minha passagem transcorra sem
contratempos.
— Princesa, preciso contar uma coisa — fala Aranel, cruzando os
braços e encostando as costas na almofada do carro. A jaqueta de couro que
ele usa não combina muito com seu estilo. Meu primo emana uma vibe
mais soft de garoto apegado aos livros e à fantasia. Então, quando se veste
de bad boy, parece qualquer coisa, menos bad boy.
— Desde que não seja algo constrangedor, você tem todo o direito —
permito. Esse é um costume que aderi desde a minha adolescência. Gosto
de deixar claro quais são as minhas condições.
Grannus gargalha.
— É assim que vocês tratam essa xerxela? — pergunta ele, achando
graça.
— Grannus, fica quieto — repreendo. Às vezes, ele se torna uma
pessoa irritante e muito inconveniente.
— Sara, por que você permite que seu provador de comidas a chame
dessa maneira? — questiona Eudora, franzindo o cenho.
— Ele só está brincando.
— Ele chamou voce de idiota — traduz Aranel, horrorizado.
Suspiro e relaxo meu corpo no encosto. O carro vira para a esquerda e
um grupo de cidadanos grita o nome do rei Kalayo.
— Sabem de uma coisa? Cansa ter que manter a compostura 24 horas
por dia. Grannus ganhou essa liberdade de conversar comigo… de uma
maneira mais informal — explico.
— Você quer dizer esculachada — fala Eudora. Ela amarra o cabelo
ao alto da cabeça e cruza as pernas com precisão.
Ignoro o comentário. Não sou obrigada a justificar todas as minhas
decisões.
— O que você ia me contar, Aranel?
Ele olha para cada um durante alguns segundos, alimentando o
suspense no ar.
— Estamos indo visitar uma amiga — revela.
— O que? — pergunto ao mesmo tempo que Eudora.
— Ela é solteira pelo menos? — questiona Grannus, e abre as pernas,
completamente o oposto da minha prima. Não sei se é costume de onde ele
veio, mas tenho a sensação que Grannus gosta de manter essa postura de
desleixado.
— Não posso dar muitos detalhes, mas acho que a Sara vai gostar da
visita.
Uma corrente de ar gelado entra dentro do carro e me faz estremecer.
Se tem uma coisa que eu não gosto é de surpresas misteriosas.
Detesto quando alguém diz que tem algo para falar, mas que é melhor
esperar para ver com meus próprios olhos. Por que as pessoas são assim?
Indelicadas? Essa expectativa, esse mistério pendente, parece uma nuvem
carregada pairando sobre mim. O que será que meu primo está aprontando
agora?
Minha ansiedade cresce à medida que tento decifrar o que pode estar
por trás dessa visita. É como se eu estivesse prestes a descobrir algo que
pode mudar tudo, e a incerteza me deixa inquieta. Seria tão mais fácil se as
pessoas simplesmente dissessem o que precisam dizer, sem toda essa
encenação. Às vezes, penso que as surpresas deveriam vir com manuais de
sobrevivência emocional. Lidar com o desconhecido é desafiador, e a
sensação de não estar no controle da situação é desconfortável. Por que não
podemos simplesmente ser diretos e evitar todo esse suspense
desnecessário?
— Você vai acabar me matando, Aranel.
— Aguenta firme, princesa. Não precisa se afundar em um mar de
emoções.
— Você sabe como é ter que lidar com crises de ansiedade?
— Você tem ansiedade? — indaga Eudora.
— Quem não tem ansiedade? — questiono a todos.
Grannus levanta a mão.
— Por que eu teria crises de ansiedade?
— Você está de brincadeira comigo — reclamo, totalmente
desacreditada. Em que mundo eles vivem? Será que existe alguém na face
da Terra cuja vida é perfeita?
Eudora franze as sobrancelhas.
— Eu preferiria uma comunicação direta a esse jogo de adivinhação
emocional.
— Gente? Vocês estão bem? — pergunta Aranel, arrependido por ter
transformado sua fala em confusão.
— O que é uma crise de ansiedade? — continua Grannus, com as
bochechas coradas de vergonha. Ele realmente não sabe o significado do
termo.
— Uma crise de ansiedade é uma experiência intensa e repentina de
ansiedade extrema ou medo que geralmente atinge seu pico dentro de
poucos minutos, como palpitações ou batimentos cardíacos acelerados,
respiração rápida ou dificuldade para respirar, tremores, sensação de tontura
ou desmaio. E um montão de coisas mais — explica Eudora, com toda a
paciência do mundo.
— Vamos mudar de assunto? — sugere Aranel, bocejando. — Que
tal… hmmmm, quando foi a última vez que vocês transaram?
— Eu não devia ter aceito o convite para vir — exponho, olhando
feio para minha prima. — É isso que você aguenta?
Ela confirma com a cabeça.
— Todos os dias. Desde que nasci.
— Na verdade, você deveria ter vindo sim, princesa — rebate meu
primo, com um olhar profundo. — Hoje você vai descobrir que não existem
coincidências na nossa vida e que tudo está traçado pela linha do destino.
Aquilo me deixa incomodada.
— Eu começo. A última vez que transei foi depois do baile da Dança
da Meia Noite com uma auxiliadora chamada Yone — confessa Grannus,
revirando os olhos. — Foi o melhor momento da minha vida.
— Quem disse que você tem permissão para se relacionar com os
funcionários do palácio? — indago, avaliando sua reação.
— Esse é o problema, princesa. Ninguém nunca me disse nada —
responde, recebendo a aprovação do meu primo.
— E você, Eudora? — questiona Aranel, cutucando o joelho dela.
Ela me olha de soslaio.
— Com o competidor Oed de Assunção.
Os rapazes gritam em comemoração enquanto permaneço paralisada.
O fato da minha prima ter ficado com um dos competidores que ainda
está disputando para se casar comigo me deixa com ciúmes, e tento
disfarçar o desconforto que essa situação trouxe para meu coração. Eu não
deveria me importar tanto, afinal, o Torneio é uma competição e cada um é
livre para fazer suas escolhas.
— E você, princesa? — questiona Grannus, ansioso pela minha
resposta.
— Ontem, com Ad Pomodoro.
— O competidor que quase morreu na arena? — pergunta Aranel,
com os olhos arregalados. Ele parece estar se divertindo com a conversa.
— Exatamente.
Para desviar atenção da minha revelação, Eudora continua:
— Falta você, garanhão do reino — zomba ela, esfregando o pé na
virilha dele.
— Michelle — confessa, chateado.
Lembro da letra V que Michelle circulou na palma da minha mão e
reconsidero as minhas suspeitas. E se o V fosse a letra A? Será que meu
primo Aranel teria motivos para matá-la? Não sei. Eles nunca foram tão
próximos. Por outro lado, Michelle também mantinha um caso com Péricles
que, infelizmente, também era o suspeito pelo assassinato dos Valktran —
embora fosse o menos provável.
Porém não posso descartar a possibilidade de Aranel ter atacado
Michelle. De acordo com a música de Kaida, ela tinha descoberto alguma
coisa e sentenciado sua vida para sempre.
Suspiro e sinto a ponta do meu nariz congelada. Se eu soubesse que
iríamos para tão longe, teria trazido um casaco mais pesado para vestir.
— Então é isso — expressa Eudora, desconfortada.
— Pois é — suspira Aranel, olhando para fora.
Depois da resposta do meu primo, todos nós permanecemos em
silêncio.
CAPÍTULO 65

Como será a vida após a morte?


A incerteza sobre o que acontece após a morte permeia meus
pensamentos de maneira constante. Envolto em mistério, o destino que
aguarda cada alma além deste plano terreno é uma pergunta que persiste
sem uma resposta clara.
Neste momento, minha mente vagueia entre diversas crenças e
filosofias, tentando encontrar consolo diante da inevitabilidade do fim.
Alguns imaginam um paraíso celestial, enquanto outros vislumbram a ideia
de reencarnação, um ciclo interminável de renascimento.
Às vezes, a incerteza me preenche com uma sensação de curiosidade
e, em outros momentos, com uma pitada de apreensão. Será que existe um
reencontro com entes queridos? Ou talvez a essência da vida se dissolva em
uma energia cósmica, integrando-se ao universo de maneiras que não
podemos compreender.
Mordo os lábios, agoniada. Me encontro navegando por esses
pensamentos, enfrentando a dualidade de aceitar o desconhecido e, ao
mesmo tempo, desejar compreender o incompreensível. Esse é o tipo de
situação que só saberei quando morrer.
Olho para fora, observando uma mulher fazendo malabarismo com os
pés. Ela usa uma espécie de lycra colorida que lembra muito o arco íris,
embora desbotado. A profissional joga pequenas argolas de ferro para cima
e chuta com as pontas dos pés, fazendo o objeto rodopiar cinco vezes antes
de voltar para suas mãos. Os cabelos cacheados embelezam o seu rosto
pálido e desanimado. As pálpebras pesadas mostram o quanto ela deve está
cansada, trabalhando por horas para conseguir arrecadar algum dinheiro.
Questiono se ela se enquadra no grupo de pessoas que fazem dívidas
desnecessárias, alimentando seus vícios ou fazendo negócios mal
planejados.
Próximo a uma caixa de madeira, reparo que há uma aglomeração de
pessoas conversando entre si. Noto que elas seguram pequenos pedaços de
papéis enquanto discutem sobre as coisas que estão escrito neles.
— O que é aquilo ali? — pergunto para o meu primo.
— Caixa de reclamações. Quando a insatisfação se instala entre o
povo, eles expressam suas preocupações em pedaços de papel de 15
centímetros. Eles escrevem seus nomes, endereços e relatam o que está
ocorrendo e as mudanças desejadas. A cada quinzena, um mensageiro real
percorre a região, coletando os conteúdos depositados nas caixas para
entregá-los pessoalmente ao rei.
— E meu pai respondia a essas reclamações?
— Todas, sem exceções. O rei sempre foi prestativo quando o assunto
era o que incomodava as pessoas.
— Então minha mãe deve está atolada com essa tarefa.
— Não duvido. É por isso que o Sub-Príncipe Rubens anda tão
irritado nesses dias. A rainha deu metade das reclamações para ele
responder até o final de semana.
Um drone passa voando por cima do carro e desaparece atrás de uma
casa.
— Quem está monitorando os drones agora que o Duque Salazarjo
morreu?
— O primo Léo. Ele recebeu a proposta de continuar com os planos
do Duque até o novo Duque aprender como se administra a segurança do
reino. Por esse motivo, ele permanecerá no palácio. A tia Marcellyne insiste
para que ele deixe tudo para trás e se junte a nós no campo, mas ele se
recusa. Afirmou que buscará os responsáveis pelo assassinato de Michelle e
os fará pagar em público, transmitindo a punição para todos
testemunharem.
O carro para ao lado de uma casa caindo aos pedaços. Percebo que a
estrutura de madeira que a sustenta em pé está cedendo conforme o tempo
passa.
— Onde nós estamos, Aranel? — questiono.
— Na casa de uma família amiga.
Desço do carro e olho para Péricles que segura o cabo da espada,
desconfiado.
— Que lugar é esse, princesa? Você não me disse que íamos parar
deste lado da cidade. Estamos numa região bastante perigosa.
— Aranel deseja apenas fazer uma breve visita a uma família antes de
seguir com a viagem. Não se preocupe, não pretendemos demorar muito por
aqui.
Um menininho que parece ter cinco anos de idade abre a porta,
curioso com a nossa chegada. Seus cabelos castanhos escuros se destacam,
contrastando com seus olhos azuis brilhantes. O macacão surrado está
apertado nele, ressaltando sua pequenez. Seu rosto se ilumina com uma
mistura de curiosidade e inocência ao mesmo tempo.
— Oi, garotão — cumprimenta Grannus, acenando para ele.
Logo atrás dele, uma senhora surge com seus cabelos desarrumados,
indicando a agitação cotidiana. Ela segura um avental, como se estivesse no
meio de alguma tarefa doméstica quando fomos surpreendê-los. Percebo
que seus olhos revelam preocupação enquanto nos observa.
— Pois não?
— A senhora é a Vomina? — pergunta Aranel, abrindo o porta mala e
retirando uma caixa de papelão fechada.
— Sou sim. Quem são vocês? — questiona, olhando para os guardas
reais. De repente, sua expressão desconfiada suaviza. — Sangues de prata?
— Sim. Fomos enviados pela princesa Cássia.
Aquilo me deixa surpresa.
— Entrem, por favor. Está bastante frio aqui fora — fala a dona da
casa, abrindo espaço entre a porta.
— Eu irei com a senhorita — sussurra Péricles, passando na minha
frente.
Vomina nos recebe com um sorriso amigável, mas há algo em seu
olhar que me intriga. Será que nossa chegada trouxe alguma notícia
inesperada? Ou será apenas a expressão de quem não está acostumada com
visitas?
— Gostaria de beber alguma coisa? — oferece.
— Não, obrigado. Não vamos demorar — agradece meu primo.
O menininho, por sua vez, parece ansioso para explorar o que está
acontecendo. Seu olhar curioso salta entre nós e a mãe dele, como se
estivesse tentando entender o motivo da nossa visita.
Vomina desliga a água do fogão.
Reparo que o interior da casa é muito pequeno, mas arrumado. Na
sala há cinco cadeiras de madeira que cercam uma mesa improvisada de
latão. É evidente que cada pedaço de mobília é escolhido com cuidado para
otimizar o espaço limitado.
— Sentem-se, por favor.
Escolho a cadeira mais próxima e me sento, tentando não ocupar mais
espaço do que o necessário. A cozinha, estreita e funcional, apresenta
apenas o essencial: uma geladeira, uma pia e um fogão. O teto é
surpreendentemente baixo, tão próximo que posso alcançá-lo com as mãos
estendidas.
— Como a senhora está? — pergunta Aranel, segurando a caixa de
papelão.
— Vivendo na medida do possível — responde ela.
Enquanto observo a simplicidade da casa, uma adolescente emerge de
um cômodo quase que escondido. Ela nos cumprimenta com uma
reverência, revelando um toque de formalidade que contrasta com a
modéstia do ambiente.
— É uma honra tê-los em nossa casa — fala, sorrindo para mim.
— Esta é minha filha Victorye, de 12 anos. E este baixinho aqui se
chama Fauno — apresenta Vomina, esfregando a cabeça do filho.
— É um prazer conhecê-los — digo, totalmente perdida.
Meu primo entrega a caixa de papelão para Vomina e contrai os
lábios.
— Esta são algumas coisas da sua filha, Fadye — explica ele.
Ao mencionar o nome da minha melhor amiga, meu coração acelera.
Por que Aranel trouxe as coisas de Fadye até aqui?
É então que a minha ficha cai e as lágrimas começam a rolar pelo
meu rosto.
Vomina, a mãe de Fadye, olha para mim, coloca a caixa no chão e se
aproxima, me abraçando com ternura. Então, nós duas choramos. Ela chora
pela perda da filha, e eu choro pela minha melhor amiga. Nunca imaginei
que algum dia estaria conhecendo a família de Fadye dessa maneira.
O ambiente ao nosso redor parece carregado de emoções, e a sala da
casa se transforma em um refúgio compartilhado pela dor.
— Eu sinto muito — digo, entre soluços. — A senhora não imagina o
quanto eu sinto muito.
— Não se sinta culpada, princesa. Eu sei o quanto Fadye a
considerava como uma irmã. Não há pessoa neste reino que esteja sofrendo
mais do que a senhorita. Eu entendo você mais do que possa imaginar, meu
amor.
Não consigo responder a suas palavras. Mas me sinto conectada de
uma maneira única a Vomina. Apesar de nossas vidas terem se cruzado em
circunstâncias dolorosas, há uma compreensão mútua que transcende as
palavras. É uma triste ironia que tenhamos nos encontrado por meio da
perda, mas há uma consolação verdadeira no meio desse luto.
Essa experiência intensa faz com que eu me pergunte sobre o
significado das conexões humanas e como o destino muitas vezes nos tece
em histórias partilhadas. Estar aqui, na casa da família da minha melhor
amiga, não era algo que eu antecipava, mas é um capítulo que se desdobra
na trajetória inesperada da vida.
— Eu disse que era para você ter vindo, Sara — lembra Aranel,
emocionado. — Cássia me pediu para não contar nada a você. Mas mesmo
assim, através do convite repentino de Eudora, você está aqui. Você
precisava estar aqui.
CAPÍTULO 66

Depois de chorar por quase uma hora, Vomina nos oferece bolo de
chocolate com suco de laranja em pó.
Aceito a gentileza, agradecendo pela distração momentânea que a
comida proporciona. O aroma do chocolate parece penetrar até mesmo nos
cantos mais tristes da sala, trazendo uma espécie de conforto.
Sentados ao redor da mesa improvisada, Vomina compartilha
informações que me deixam surpresa. Ela revela que ficou sabendo do
envolvimento da irmã gêmea de Fadye, Fenya, com os rebeldes e que não
aprovava essa ligação. E para garantir a segurança da própria família,
tomou a difícil decisão de mandá-la embora de casa.
— Acho que a senhora fez certo — comenta Grannus, com o canto da
boca suja de chocolate. — Eu também mandaria meu filho embora.
— Cala a boca, Grannus — repreendo, olhando feio para ele. Grannus
nem imagina o tamanho da dor que deve ser mandar um filho para fora de
casa.
— Perdão, princesa — pede.
Enquanto saboreamos o bolo, Vomina conta detalhadamente sobre os
locais onde os rebeldes costumavam se reunir. Sua narrativa vai além,
explicando os motivos pelos quais esses grupos eram contra a política do
reino. Cada palavra dela ressoa com um conhecimento profundo das
circunstâncias, revelando uma realidade que eu desconhecia.
— Se eles não se sentiam um povo livre, então por que não foram
embora de Mirassol? — questiono, bebendo um pouco do suco.
— Eles poderiam viver nas montanhas da zona leste. Lá é a única
região que os guardas reais não monitoram — expõe Péricles, em pé ao
meu lado.
— Não é proibido? Meu pai disse que ali é uma região cheia de
animais selvagens — fala Eudora, cruzando as pernas. — Acho que eles
não iam querer arriscar a própria vida em um lugar desses.
Balanço a cabeça.
— De certa forma, infelizmente, eles pagaram pelos motins que
fizeram — digo, olhando para a mãe de Fadye de soslaio. — Era tão fácil
resolver essa questão.
Aranel muda de assunto.
— E o seu marido, Vomina?
— Ele está trabalhando no campo agora. Só volta para casa nos finais
de semana.
— Diga a ele que estive aqui, por favor.
— Claro, princesa. Ele ficará bastante contente — avisa, segurando
minha mão. — Por falar nisso, e como está o Torneio do Sol Nascente?
— Victorye é super fã do joguinho — comenta Fauno, com uma voz
fininha.
— Estamos chegando na reta final. Não vejo a hora de tudo isso
acabar, sabe? É estressante demais ter que passar horas vendo os
competidores lutarem entre si.
— Meu filho mais velho, Dominique Wilkins, participou do primeiro
Torneio do Sol Nascente — revela ela, perdida em seus pensamentos. —
Mas desistiu quando percebeu que a vida no palácio não era para ele.
Sinto um alívio por ela não dizer que ele havia morrido.
— Téssia deve lembrar dele.
— E onde ele está agora? — pergunta Eudora.
Vomina demora um pouco para responder, refletindo sobre alguma
coisa.
— Ele foi embora e nunca mais voltou — responde, parecendo um
pouco triste.
— Sinto muito, senhora — expressa minha prima, arrependida de ter
feito a pergunta.
De repente, o televisor em cima da pia acende e a imagem da forca do
palácio aparece com algumas interferências na tela.
— O que está acontecendo? — pergunta a mãe de Fadye, abraçando
os filhos com força. Fauno parece estar assustado enquanto Victorye
arregala os olhos para a mãe.
Em cima do palanque, há pelo menos três pessoas com as mãos
amarradas atrás do corpo. Um saco preto esconde a cabeça de cada um,
aumentando ainda mais o mistério que permeia o ambiente. Noto que a
maioria dos funcionários do palácio estão na plateia, em pé, de frente para o
palanque, com os rostos virados para o chão.
— Precisamos voltar agora, Péricles.
— Não dá tempo, princesa. O palácio está a quase uma hora daqui.
Ainda que o motorista acelere o carro, não chegaremos a tempo para
impedir o que quer que esteja acontecendo — explica ele. — Sinto muito.
— Será que pegaram os culpados pelos assassinatos? — pergunta
Aranel, se aproximando do televisor.
— Não acho que seja isso. A rainha não ia permitir que as pessoas
soubessem dos atentados contra os residentes do palácio — responde minha
prima, roubando uma fatia de bolo do prato de Grannus.
O carrasco, vestido em um elegante traje preto, sobe ao palco e,
gentilmente, remove o saco de pano que cobre a cabeça de cada pessoa.
Arfo imediatamente. Kaida, Galadriel e mais uma jovem estão com os
rostos completamente machucados, como se tivessem sido espancados por
alguém.
— Não é a cantora do baile da Dança da Meia Noite? — indaga
Victorye.
— Sim, é ela mesmo. Não é sua amiga, princesa? — pergunta
Péricles.
— Ela não é minha amiga — respondo, tirando o meu da reta. — Ela
só estava perguntando o que eu estava achando do evento.
— E o que eles estão fazendo ali? Parece que foram espancados —
fala Grannus, suando frio. Acho que ele está passando mal.
— Todos os acusados de traição, antes de serem executados, são
violentamente agredidos pelo carrasco — explica meu guarda-costas,
franzindo o cenho. — É a ordem do rei e da rainha.
Sinto aflição.
— E o que será que eles fizeram para serem mandados à forca? —
questiona meu primo, torcendo as mãos nos bolsos da calça.
Olho para Vomina e vejo que ela está derramando lágrimas
silenciosas. Ela deve se lembrar dos casos de suas duas filhas que foram
mortas por traição.
Fadye. Meu coração aperta só de imaginar que ela passou pelo
mesmo sofrimento que Kaida está prestes a enfrentar. Por que ela está ali?
Kaida percebe que o drone está transmitindo sua imagem ao vivo para
todo o reino e abre um sorrisinho sem brilho
A vida nunca foi justa comigo, e por isso estou aqui.
É isso que acontece quando você decide ajudar a realeza.
Eles mandam você para a forca. Eles mandam você para a forca.
Canta a primeira estrofe de uma canção, com bastante dificuldades.
Eu só queria ajudar uma sangue de prata a restaurar a paz,
Mas por causa das minhas escolhas matei o sangue do meu sangue.
Sim, eu mesma matei ao cantar e celebrar com vocês.
Percebo que Kaida se refere tanto a Téssia quanto a Xanthe.
Recebi instruções enigmáticas, para expressar ao mundo.
Elas me trouxeram até aqui, neste momento tenebroso.
Não se esqueçam de mim. Não se esqueçam da minha canção.
Ela olha diretamente para a lente da câmera instalada no drone e
aumenta o tom de voz, parecendo um grito estrangulado.
A culpa sempre será sua, sangue de prata imunda.
Você me fez matar minha saudade.
Ela não vive mais entre nós e eu também não viverei.
Vou me encontrar com ela por sua culpa, sua culpa.
Eu nunca mais vou poder respirar de verdade.
Assim como ele não respira mais.
Você me perguntou dele, e eu te respondi.
Ele ainda respira, mas não perto de mim.
Prendo a respiração. Kaida está falando da nossa última conversa
sobre o amor?
Deixarei de existir, família. Deixarei de existir.
Mas meus companheiros irão comigo, sabia?
Eles estão pagando por me defenderem.
Mas eu espero que você encontre os culpados.
Sim, as cobras aladas que vivem ao seu lado.
Elas...
A transmissão é interrompida.
— Não, espera! O que ela queria dizer? — falo alto, exagerando no
tom das minhas palavras. Puta que pariu. É agora que virão os
questionamentos pela minha exaltação.
— Você está mais preocupada com a música do que a vida daquelas
pessoas, princesa? — começa Péricles, lançando um olhar intenso sobre
mim.
Antes que eu pudesse responder, a tela do televisor volta a piscar
algumas vezes e a imagem do meu primo Léo surge imediatamente.
— Povo amado de Mirassol, boa tarde — fala ele, ajeitando o terno
azul marinho. — Peço desculpas por assumir este papel que normalmente
pertence à nossa respeitada rainha. Infelizmente, ela não está em condições
de estar aqui hoje, e por isso, venho a vocês com uma explicação
necessária.
— Por que ele está comunicando o povo? — indago.
— Possa ser que Arnaldo ainda não esteja bem de saúde — responde
Péricles, enfatizando a última palavra.
— Rubens?
— Nem Rubens, nem Erasmos possuiriam a coragem necessária para
comunicar uma notícia tão delicada, princesa — explica o óbvio. A verdade
é que Rubens sempre foi um cuzão e Erasmos nunca gostou de se envolver
com os problemas do palácio.
— Como todos devem ter percebido, durante as apresentações no dia
do baile da Dança da Meia Noite, uma dos três indivíduos que apareceram
na tela ousou incitar o vandalismo e perturbar a paz que deveria reinar em
nosso reino. Anuncio que tanto ela quanto seus companheiros foram
condenados à pena de morte, devido à gravidade de suas ações — continua
Léo, dando um tapa no cabelo. — Nossa rainha, mesmo fragilizada, tomou
medidas firmes para preservar a ordem e a segurança de Mirassol. Em
momentos como este, é imperativo agir com determinação para garantir que
a justiça prevaleça sobre qualquer tentativa de desordem. Entendemos que
esta notícia pode ser difícil de assimilar, mas confio na sabedoria e
compreensão do nosso amado povo. Que a luz de nossa união e
solidariedade ilumine o caminho adiante. Com respeito, Léo. Sobrinho
legítimo da rainha Elizabelly.
Sinto-me dividida entre o sabor doce do bolo e a amargura do que
acabou de acontecer. A complexidade da situação se desenha diante de
mim, e percebo que há muito mais por trás das cortinas do reino do que eu
imaginava. Kaida morreu por atender ao pedido misterioso de Téssia.
Téssia desapareceu por estar sendo ameaçada pelo assassino do palácio. O
assassino do palácio continua impune, agitando na obscuridade mais
profunda das sombras.
Onde será que esses atentados vão parar?
CAPÍTULO 67

Depois do noticiário, me despeço da família de Fadye, prometendo


enviar cestas básicas a cada quinze dias para ajudá-los. Decido deixar o
carro para meus primos e opto por cavalgar com Péricles. Ele expressa
preocupação de que eu possa ser reconhecida, mas, com a noite se
aproximando, afirmo que não há problema e que aprecio novas aventuras.
— Você? Aventuras? — questiona ele, duvidando. — Eu queria vê-la
patrulhando o campo na zona oeste.
— Por que? O que há de errado por lá? — pergunto, abraçando sua
cintura.
— Nada demais. Só lobos do tamanho de um homem.
Estremeço.
Grannus nos segue montado no cavalo que um guarda chamado
Xerxes está conduzindo. Ele parece incomodado por ter que abraçar seu
companheiro.
— Como está se sentindo, donzela? — zomba Péricles, acelerando a
cavalgada.
— É melhor encoxar do que ser encoxado — responde ele, dando
risada.
— Olha, moleque. Eu sou um homem de 61 anos de idade. Se você
me perturbar no caminho, pode ter certeza que irei derrubá-lo e passarei
com o meu cavalo por cima de sua cabeça — ameaça Xerxes, irritado.
Grannus faz careta.
— Desculpe, mestre.
— Mestre é o teu pai, garoto — rebate o guarda. — Me chame de
senhor.
— Sim, senhor — repete ele, revirando os olhos.
— Grannus escolheu o guarda mais mal humorado do grupo —
sussurra Péricles, dando risada. — Espero que ele seja pisoteado hoje.
Dou um tapa nele.
— Claro que não. Ainda preciso do meu provador de comidas.
Ele dá de ombros.
A neve cai ao nosso redor, transformando o cenário em um quadro de
branco e prata sob a luz crepuscular. A atmosfera é serena, apesar das
tensões recentes, e a beleza da paisagem gélida contrasta com a tristeza que
ainda carrego no coração.
Sinto a brisa gelada acariciar meu rosto, e a sensação de liberdade se
mistura com a responsabilidade que tenho como princesa. A cada passo do
cavalo, as pegadas na neve marcam o caminho que escolhemos seguir.
Coloco o capuz na cabeça e espirro. Não acredito que estou ficando
gripada.
— Chegando ao palácio, tome um banho bem quente — orienta meu
guarda-costas.
— Obrigada.
Volto a lembrar da conversa com a mãe de Fadye. Penso na maneira
como a corte administra o reino e me questiono se realmente é o correto que
estamos fazendo. De acordo com as pesquisas de rua, as famílias sempre
são apontadas como situações estabilizadas; elas têm casa, comida, trabalho
e educação das escolas públicas implementadas nas quatro zonas de
Mirassol. Então, por que ainda existem pessoas desacreditadas e
descontentes?
Enquanto pondero sobre essa contradição, observo as estatísticas que
indicam uma aparente prosperidade. As condições básicas são fornecidas,
mas há algo subjacente que parece escapar ao alcance das políticas e
programas criados pela administração. Será que estamos verdadeiramente
compreendendo as necessidades e aspirações das pessoas? É possível que a
desconfiança e a insatisfação tenham raízes mais profundas, talvez ligadas a
questões de representação, participação ou até mesmo justiça social. Será
que as políticas implementadas abordam efetivamente as preocupações
reais da população ou há lacunas que precisam ser preenchidas?
A pesquisa de rua sugere uma realidade visível, mas há camadas mais
complexas que escapam a esse retrato simplificado. Como membro da
corte, sinto a responsabilidade de explorar essas questões mais a fundo,
buscando compreender as nuances da experiência de cada cidadão. Talvez,
ao enfrentar esses desafios de frente, possamos construir um reino mais
unificado e verdadeiramente próspero para todos.
De repente, vislumbro um movimento estranho atrás dos arbustos que
se encontram entre as lacunas das casas. Observo atentamente, tentando
discernir algo fora do comum.
Uma coruja, por acaso, grita ao longe e voa de um lado para o outro,
capturando nossa atenção. Que estranho, não sabia que corujas eram
treinadas para sobrevoar desta forma.
O guarda que lidera nosso caminho com seu cavalo para
abruptamente com seu olhar fixado nos arbustos agitados. Ele troca um
olhar rápido com Péricles, sugerindo que algo incomum está acontecendo.
Fico alerta, tentando captar qualquer sinal de movimento entre as
folhagens.
O misterioso movimento nos arbustos intriga a todos nós, enquanto o
guarda e Péricles parecem estar avaliando a situação com cautela.
— Eu estou com medo, princesa — fala Grannus, apavorado.
— Logo você que veio do lado de fora do palácio? — brinco,
tentando acalmá-lo.
A coruja continua a voar em círculos, como se também estivesse
ciente da atmosfera peculiar que se desenrola diante de nós.
— Cleurence, vá dar uma olhada na região — ordena o líder dos
guardas reais, sério. Um guarda magrelo desce do cavalo e amarra os
cabelos compridos com agilidade. Ele usa uma barba rala no pescoço que
parece sujeira durante a noite. — Lembre-se que a princesa é a nossa
prioridade de vida.
Xerxes também desce do cavalo e pede para Grannus vigiar o animal.
— E se ele resolver fugir?
— Segure — responde o guarda, seco. — Geronimo, está vendo
alguma coisa?
— Nada, Xerxes.
O vento sopra uma brisa mais pesada, deixando-me toda arrepiada.
Não há mais ninguém do lado de fora e isso me incomoda um pouco. Mas
talvez seja por causa da frente fria que está tomando o reino.
Em um piscar de olhos, um grupo de cinco mascarados nos cercam.
Eles usam uma espécie de tinta grossa sobre os olhos e seguram facas nas
mãos.
— Ninguém se mexe. Ninguém morre — avisa o líder deles, que
parece ser uma mulher. A pessoa se aproxima do cavalo de Grannus e
acaricia o pêlo do animal. — Eu gostei desse aqui. É raça pura.
— Pode levar, não é meu — fala Grannus, nervoso.
— Olha o que temos aqui, galera. Um escravo. Ele também deve ser
de qualidade.
— Rapina, saqueia eles logo ou vamos acabar nos prejudicando de
novo — alerta o mascarado da esquerda. Ele usa um pé de bota de cada cor.
— Quem são vocês? — questiona Xerxes, segurando o cabo da
espada.
Rapina o encara com desprezo nos olhos.
— Não interessa. Anda. Vamos acabar com isso. Coloque no chão
tudo o que vocês carregam de valor. Jóias, dinheiros, tecidos. Vou avisando
que vocês tem 30 segundos.
Inesperadamente, uma adaga corta o ar, voando em direção a cabeça
de Rapina que rapidamente desvia do objeto, pega-o com firmeza e lança de
volta para onde ele veio.
A adaga crava na garganta de Cleurence que grita desesperadamente,
tombando no chão. O sangue jorra de seu pescoço como se fosse uma
garrafa de água furada. Ele se debate em agonia, esperando ajuda dos
companheiros.
— Sua desgraçada! — xinga Xerxes, sacando a espada e atacando a
agressora.
Ela desvia de todos os ataques do guarda e o derruba com uma
rasteira precisa.
— Matem todos, menos a princesa. Ele disse para deixá-la viva —
ordena Rapina.
Em um instante, a cena se transforma em uma cacofonia estridente de
armas se chocando, criando uma sinfonia dissonante que corta o ar. Os
golpes são rápidos, imprevisíveis, e as faíscas voam quando o metal das
espadas dos guardas se encontram com as armas enferrujadas dos
mascarados.
Me aproximo de Grannus, nos espremendo entres os cavalos. Meu
coração bate tão forte que sinto dificuldades para respirar. Quem são essas
pessoas e o que elas querem comigo?
A visão dos mascarados com seus rostos ocultos pela escuridão da
pintura adiciona uma camada de mistério ao caos que estamos enfrentando.
Os movimentos são flashes de ação, e é difícil acompanhar a rápida
sucessão de ataques. Os guardas, por sua vez, tentam resistir com bravura,
mas a desvantagem numérica e o elemento surpresa tornam a batalha
intensa e desafiadora.
— Preciso ajudá-los — digo para mim mesma.
— Claro que não, princesa. É arriscado demais.
— Grannus, eles não vão me matar — comunico-o, procurando
alguma coisa que possa me auxiliar nos ataques. — Não tem nada aqui.
Grannus, naquele momento, recebe a valentia dos céus, pois corre até
o corpo morto de Cleurence e arranca a adaga do pescoço dele. Em seguida,
joga-a para mim e tenta tirar a espada do coldre dele.
Gerônimo é atingido na perna e grita quando a ponta da faca do seu
agressor entra em sua carne. Ele tenta recuperar o equilíbrio, mas um outro
mascarado o atinge com golpes fortes na cabeça.
É agora. Preciso ajudá-lo.
Corro desesperadamente entre a batalha e, sem pensar duas vezes,
enfio a adaga entre o pescoço e o ombro do mascarado que derrubou meu
guarda.
Ele me empurra para o lado e caio de barriga no chão.
— Vagabunda! — grita ao ver a quantidade de sangue em suas mãos.
Grannus surge entre a gente e enfia a espada na barriga do meu
agressor. Aproveito a oportunidade, fico de pé e cravo a adaga nas costas de
Rapina que está chutando o rosto de Xerxes. Ela não grita, mas se vira e dá
um soco no meu olho.
Desnorteada, volto a cair no chão.
Rapina pega um machadinho de lenhador e tenta atingir meu
tornozelo, mas Xerxes pula em cima dela e os dois caem ao chão. Olho na
direção de Péricles ao mesmo tempo que ele passa a espada no pescoço de
um dos mascarados, separando a cabeça dele do corpo.
O outro guarda que também veio conosco arranca um dos braços do
seu combatente e o joga para longe. O mascarado foge, tropeçando nos
próprios calcanhares. Rapina também se levanta, pega o machadinho e
segue em direção ao amigo, sem olhar para trás. Um dos mascarados tenta
se livrar dos braços de Geronimo, mas o guarda o segura com brutalidade.
— Deixa ele ir, Geronimo — pede Pericles, todo suado.
O guarda obedece e liberta o homem sem questionamentos.
— Você está bem, princesa? — pergunta Xerxes, apoiando a mão no
meu ombro. Ele me ajuda a ficar de pé, e percebo que minhas mãos estão
sujas de sangue.
— É, eu acho que sim — respondo, limpando o suor da minha testa
com a dobra do braço.
Olho para o mascarado perfurado por Grannus, segurando as mãos na
barriga, reclamando de dor. Ele se enrola de um lado para o outro enquanto
mancha a neve de sangue. O corte que fiz em seu pescoço foi profundo
demais.
— Precisamos ajudá-lo — digo. — Eu furei o pescoço dele.
Péricles se aproxima de mim e me abraça, virando meu corpo para o
outro lado.
— Não, princesa. Não precisamos — fala, enquanto escuto o som da
espada cortando a cabeça dele.
CAPÍTULO 68

Lincoln. Esse é o nome do guarda que terminou de matar o mascarado


que eu enfrentei.
Assim que chegamos ao palácio, peço para todos não mencionarem o
ataque que enfrentamos no caminho e expresso meu agradecimento por eles
terem me defendido dos mascarados.
Carregamos o corpo de Cleurence conosco para registrar sua morte no
banco de dados do reino. Combinei com Péricles para contar ao capitão que
o guarda estava patrulhando os campos sozinho quando foi atacado, e um
de seus companheiros o encontrou morto no chão, possivelmente Xerxes.
— Avisem aos outros guardas para tomarem cuidado na cidade —
peço, apreensiva. — O grupo de Rapina pode querer se vingar de vocês.
Após lidar com essas formalidades, Grannus e eu decidimos seguir
para os meus aposentos, evitando os corredores mais movimentados do
palácio. Felizmente, conseguimos evitar sermos vistos pelos funcionários.
Grannus entra no quarto dele, e eu suspiro na frente do meu, antes de
encarar Ad, que deve estar extremamente preocupado comigo.
— Pelos Campos de Mirassol, onde você estava? — pergunta ele,
com as mãos na cabeça. Sinto um peso sobre meus ombros por ter
demorado tanto do lado de fora. Ad, com sua expressão preocupada, parece
querer garantir que eu esteja bem, pois me olha da cabeça aos pés várias
vezes. — Por que a barra do seu casaco está suja de sangue?
— Eu estou bem, Ad. Mil desculpas por não tê-lo avisado que
demoraria um pouco mais. Eu estava na cidade.
— O que? Como assim na cidade? Por que você não me buscou para
irmos juntos? Quem levou você? O que aconteceu lá fora? — pergunta, um
pouco transtornado. — Você está machucada?
Ele se aproxima e segura minhas mãos.
— Aranel e Eudora me convidaram para acompanhá-los até a cidade,
para eu distrair um pouco a mente das coisas que aconteceram. No entanto,
o que eu não sabia era que minha irmã Cássia havia pedido para o meu
primo entregar os pertences de Fadye na casa da família dela. Então você já
deve imaginar que chorei horrores por um tempo. Depois, a mãe de Fadye
nos convidou para tomarmos café da tarde com seus filhos.
— E por que você está suja de sangue, princesa?
— Assim que assistirmos a execução de Kaida, eu…. ai caramba!
Como você está se sentindo, Ad? — pergunto, arrependida por não ter
lembrado que Kaida era amiga dele. — Eu sinto muito.
— Não tem problema, Sara — responde, indelicado. — Eu quero
saber de você. Esse sangue é seu por acaso?
— Não. Quando estávamos voltando para o palácio, um grupo de
pessoas mascaradas nos atacou e matou um dos nossos guardas. Atordoada,
eu… eu peguei uma adaga e ataquei um dos mascarados também. No fim,
dois deles morreram e o resto fugiu da gente — explico, sentando na minha
cama. — Mas agora está tudo bem. Estamos bem. Só estou um pouco
cansada.
Ad tira minhas botas e solta meu rabo de cavalo com delicadeza.
— São 11h da noite. Eu estava a ponto de comunicar o capitão da
guarda sobre o seu desaparecimento — comenta, esfregando as têmporas.
— Por favor, não faça mais isso comigo. Minha cabeça dói de tanta
preocupação.
Dou um beijo nele.
— Prometo que esse descuido não vai acontecer de novo. Eu
realmente não imaginava conhecer a família de Fadye depois… — engulo o
choro. — Desculpa.
— Está tudo bem, Margarida. Vamos tentar seguir em frente juntos,
combinado?
Faço que sim com a cabeça.
— Eu preciso que você me ensine a como manusear adagas de forma
precisa.
— Você quer aprender a usar uma arma?
— Sim. Depois de hoje, quero estar preparada para me defender
sozinha.
— Mas eu estou aqui com você. Nada de ruim vai acontecer contigo,
princesa.
— Mesmo assim. Não confio nas pessoas do palácio, Ad. É só por
precaução. Não vou sair por aí esfaqueando todo mundo.
Ele me lança um olhar engraçado.
— Sabia que eu disse a mesma coisa para o meu pai? — conta, dando
risada. — Na minha primeira tentativa, quase arranquei o dedo dele. Ele me
xingou tanto que pensei que não ia mais querer me ensinar, mas, muito pelo
contrário. Aprendi a cravar a adaga na parede em dois dias de treino.
— Quero aprender a fazer isso em um dia, então — desafio ele.
— Podemos começar amanhã, se você quiser — fala, beijando minha
testa suada.
— Por que não agora?
— Porque está tarde. Você precisa tomar um belo banho gelado e
descansar um pouco. Precisará de muita energia para passar o dia todo
arremessando — responde, sendo curto e direto. Esse é um dos fatores que
me fazem gostar ainda mais dele. Ad não é aquele tipo de pessoa que enrola
antes de dizer um não. — E como está a família de Fadye?
Lembrar da família da minha melhor amiga parte o meu coração. É
verdade que eles vivem em condições apertadas, mas pelo menos não
passam fome. Não posso esquecer de enviar para eles uma cesta básica a
cada 15 dias. A realidade deles é uma preocupação para mim, e a entrega
desses mantimentos será uma pequena forma de amenizar as dificuldades
que eles enfrentam.
— Tristes. Por mais que Fadye não tenha mantido contato com eles, a
família dela sente muito também. Prometi a Vomina que mandaria uma
cesta básica a cada duas semanas, e espero que essa ajuda possa oferecer
algum alívio em suas necessidades diárias.
Ad acaricia meu pescoço, segurando as lágrimas para não chorar.
— Eu quero conhecê-los algum dia.
— Claro. Podemos passar uma tarde junto com eles. Acho que Fauno
vai gostar muito de você. Ele é um menino tão fofinho.
— Fauno?
— O irmãozinho pequeno de Fadye.
Ele assente e fica de pé.
Observo enquanto meu competidor tira a camisa e a calça, ficando só
de cueca na minha frente. Seus músculos definidos são atrativos aos meus
olhos. A luz fraca do quarto realça cada contorno, revelando a força e a
destreza que ele possui. É difícil evitar que meus olhos se fixem na sua
figura imponente. Cada músculo parece esculpido pela dedicação aos
treinos e à preparação para participar do Torneio do Sol Nascente.
Ad tem uma genética boa. Uma genética tão boa que consegue me
levar a um outro patamar.
— Você não quer tomar banho comigo, princesa? — pergunta,
seguindo em direção ao banheiro.
— É claro que eu quero — respondo imediatamente.
Tiro o restante da minha roupa e corro em sua direção, sendo
surpreendida pelo toque de suas mãos nas minhas coxas. E então ele me
beija. Mas não é um beijo delicado desta vez. Sua intensidade é uma fusão
de desejo e paixão que me deixa sem fôlego. Seus lábios encontram os
meus com uma voracidade que faz meu coração acelerar. É como uma
chama ardente que percorre todo o meu corpo.
Minhas mãos instintivamente encontram seu rosto, enquanto nos
entregamos a essa troca de emoções desesperada.
O mundo ao meu redor perde o foco, e só resta a sensação
arrebatadora desse beijo apaixonado.
CAPÍTULO 69

Faz dois dias que Fadye foi enforcada.


E faz dois dias também que Ad dorme junto comigo. Não permiti que
ele voltasse para os aposentos dos competidores, e talvez não permita mais
que ele saia do palácio. Desde a nossa primeira noite, sinto que um elo foi
estabelecido entre nós, e não quero deixar que nada e ninguém rompa o que
estamos construindo.
Enquanto almoçamos peixe ensopado com legumes, reflito sobre o
ataque de ontem, e uma sensação de insegurança toma conta de mim.
Parece que minha vida está correndo perigo em todos os cantos do reino. As
palavras de Rapina ecoam em minha mente, especialmente quando ela
mencionou que alguém queria me manter viva.
Devagar, mordo um pedaço do peixe, pensando nas possíveis
motivações por trás desse ataque. Quem poderia ter interesse em me
prejudicar? O reino ainda nem sequer tem um governante consolidado,
então por que alguém se importaria tanto comigo a ponto de querer me
ferir?
Fredd, o mordomo real, bate na porta e entra logo em seguida. Ele é
uma das raras pessoas autorizadas a adentrar meus aposentos sem
solicitação, contanto que seja após o meio-dia e não antes.
— Princesa. Ad Pomodoro — cumprimenta ele. — Venho informá-
los que o Torneio do Sol Nascente foi finalizado agora a pouco.
— Como é que é? — indago, colocando o copo de água na mesinha.
— Recebemos um aviso que Ad precisaria estar na arena às 15h de hoje.
— Mudança de planos. O competidor Oed de Assunção sumiu logo
após ser informado sobre a descoberta do corpo de seu tio Apricio,
encontrado asfixiado na cozinha do palácio nesta manhã.
Prendo a respiração.
— O chefe de cozinha?
— Esse mesmo — responde, incomodado. — Após receber o
comunicado, o competidor Félix Rodrine solicitou sua desistência do
Torneio e expressou o desejo de explorar a possibilidade de ingressar no
banco de guardas reais.
— Félix desistiu do Torneio? — questiona Ad, desacreditado. — Eu
preciso falar com ele.
— Não, Ad — eu interrompo, segurando seu braço. — Deixe tudo
como está, por favor. Tivemos uma conversa no dia em que meu pai
faleceu, na qual deixei claro que não tinha nenhuma intenção de me casar
com ele.
Ad parece surpreso com o que eu disse.
— Isso significa que… eu venci?
Abro um sorriso e beijo os lábios dele.
— Sim. Você é o grande campeão do último Torneio do Sol Nascente
de Mirassol.
Ad se levanta e se acomoda na beirada da cama, ainda processando a
realidade do que está ocorrendo.
— Eu… eu agora me tornarei um Sub-Príncipe?
Faço que sim com a cabeça.
— E como bônus, terá a honra de conquistar a mão da princesa mais
inteligente do reino. Não é surpreendente?
Ele esfrega as mãos, como se estivesse apreensivo com a perspectiva.
— No entanto, e quanto ao dinheiro daqueles que pagaram pelo
evento?
— A rainha ordenou a restituição de cada centavo e explicou que
ainda hoje, Eldarion informará a todos no reino. Meus parabéns, senhor
Pomodoro. Você merece por tudo o que fez pela princesa — congratula
Fredd, executando uma reverência impecável. — Esteja certo de que estarei
à sua disposição quando precisar de mim.
Ad coloca as mãos no rosto, escondendo as lágrimas que escorrem de
seus olhos.
— Não chora, meu amor. Você deveria se alegrar pela conquista.
— Estive tão preocupado em não alcançar a vitória no Torneio que
agora tudo parece uma ilusão. Parece que estou vivendo em um sonho com
os olhos abertos, manipulado por meus próprios pensamentos. Isso é real
mesmo? — questiona, segurando minhas mãos com firmeza. — Você será
minha esposa?
Coloco um cacho do seu cabelo atrás da orelha e seguro seu queixo.
— Eu sempre fui sua, Ad. Desde antes da fundação da Terra. Como
Kaida mencionou no baile da Dança da Meia Noite, há pessoas que nascem
predestinadas umas às outras. E era você a peça que faltava para completar
a minha vida.
Ad não consegue conter as lágrimas, chorando copiosamente diante
da profundidade das minhas palavras. A verdade é que nunca me senti
assim, tão envolvida numa relação como esta. O sentimento que se instalou
no meu coração aumenta a minha vontade de manter esse relacionamento
com ele para sempre. Sempre.
— Eu amo você, Sara.
Seguro o choro. Ad nunca disse que me amava desde que me
conheceu.
— Acho melhor deixá-los a sós — sugere Fredd, demonstrando um
certo constrangimento diante da situação.
— Obrigada, Fredd.
— E quanto ao Félix Rodrine? — pergunta, antes de ir embora.
— Informe a ele que tem minha permissão e faça as devidas
apresentações a Péricles, por gentileza.
— Combinado, princesa. E não se esqueçam do pronunciamento de
Eldarion às 17h, que será transmitido pelo televisor.
— Pode deixar.
Ele sai e fecha a porta.
— Preciso de um banho.
Ad se levanta, segura minha cintura e me beija delicadamente,
aproveitando cada segundo que nossos lábios estão colados um ao outro.
— Vamos comemorar mais tarde? — sugiro e ele bate na minha
bunda.
— Como quiser, princesa.
Ele entra no banheiro e me jogo na cama.
Não acredito que Ad não precisará mais participar da última etapa do
Torneio, arriscando talvez a própria vida ou perdendo a chance de vencer.
Por outro lado, o fato do desaparecimento de Oed me preocupa
profundamente. Para onde ele foi? Estará ele tentando fazer justiça com as
próprias mãos, mesmo sem saber quem matou seu tio? É óbvio que foi o
assassino do palácio. Embora eu suspeite que Apricio tenha presenciado
alguma coisa fora do normal dentro da cozinha, que custou sua vida.
Além disso, a decisão de Félix de desistir do evento não me pegou de
surpresa. Fica claro que ele atingiu seu objetivo ao chegar à final e agora
opta por não arriscar mais. Confesso que sua participação no Torneio me
surpreendeu, e ele certamente demonstrou habilidades dignas de
reconhecimento. Sua escolha de trabalhar no palácio parece sensata e revela
um lado mais estratégico e pragmático. Ele realmente merece.
— Com licença — ouço uma voz sussurrada.
Louise aparece no meu quarto sem ser convidada.
— Louise? Aconteceu alguma coisa?
— A rainha pediu para avisá-la que a apresentação do campeão do
Torneio foi adiada por cinco dias. A nevasca de ontem destruiu uma parte
da arena e ela precisará ser reformada.
— Obrigada, Lo — agradeço.
Ela olha para o chão.
— Eu sei que pode parecer uma pergunta idiota, mas como você está,
princesa? Há dias que estou preocupada com a senhorita.
Chega. Não aguento mais levar essa situação adiante.
Fico de pé, vou até a cerimonialista do palácio e a abraço bem forte.
Não consigo conter as lágrimas e choro novamente, fazendo o corpo de
Louise chacoalhar com os meus movimentos bruscos.
— Me perdoa, Louise, por favor. Me perdoa. Sinto muito pela forma
como tenho tratado vocês duas. Eu estava tão sobrecarregada com os
problemas que acabei perdendo a cabeça com todos ao meu redor.
— Shh, princesa. Está tudo bem, de verdade. Eu te entendo
perfeitamente e sei que tudo foi uma fase difícil. Ninguém é de ferro para
suportar todos os acontecimentos recentes sem sucumbir. Por mais estranho
que pareça dizer isso, é normal que tenha reagido daquela maneira.
— Eu não sou assim, Lo.
— Claro que não. Você estava sob uma tensão terrível, e com toda
razão. Seu gato foi encontrado morto de forma brutal, além de sua prima ter
sido atacada no dia anterior. Não se culpe, por favor. Vamos deixar o
passado de lado e seguir em frente.
— Por minha culpa, ela morreu. Não a protegi como deveria, Louise.
As minhas ações estúpidas levaram à sua partida — soluço, sentindo um
aperto doloroso no peito.
— Não diga isso, Sara.
— Se eu tivesse me concentrado em protegê-la, em vez de tentar
encontrar os culpados por essas atrocidades, ela estaria aqui agora.
Lágrimas caem dos meus olhos como torrentes desenfreadas. A dor
da perda, entrelaçada com a sensação de culpa, volta a encher meu coração
de maneira drástica, rompendo as fibras que Ad havia construído para
proteger meus sentimentos. Agora, me sinto novamente como a pior pessoa
do mundo. A depressão que toma conta de mim deixa claro que a corda da
forca deveria ser colocada em volta do meu pescoço e puxada para cima,
interrompendo o fluxo de oxigênio para o meu corpo. Parece que somente
assim conseguirei encontrar paz em meio à minha consciência acusadora,
que persiste até mesmo nos meus momentos de descanso.
Louise permanece em silêncio, acariciando meus cabelos com
delicadeza. Por mais que não seja o trabalho dela, sua tentativa de me
consolar traz um certo alívio ao momento. É como se meu corpo quisesse
machucar cada fragmento do meu ser, mas, ao mesmo tempo, cultivar as
feridas profundas do meu coração.
Respiro profundamente e solto todo o ar que consigo pela boca.
Quando essa angústia dilacerante vai embora? Quando conseguirei ter
minha paz de volta? Quando poderei fingir que Fadye nunca existiu em
minha vida? Ao acusá-la de assassinato, fiz com que se sentisse traída pelas
minhas palavras. Empurrei minha melhor amiga para o fundo do poço, um
lugar sem retorno. Um caminho que agora é para sempre. Não posso
permitir que minha raiva ou meu descontrole emocional machuquem ainda
mais as pessoas que amo. Não posso ser esse monstro que não soube lidar
com a perda do meu bichinho de estimação.
Dou risada da minha instabilidade. Agora pouco eu estava feliz por
finalmente ter Ad na minha vida sem correr o risco de perdê-lo para
sempre. Mas agora sofro pela morte da minha melhor amiga. É estranho
como a vida pode ser tão imprevisível, alternando entre extremos de
felicidade e sofrimento.
— Princesa, pare de remoer os acontecimentos e tente focar no
presente. Sabia que ficar revivendo o passado vai prejudicar sua saúde
mental? — diz Louise, segurando minhas mãos. — Vamos relaxar. Olhe
para mim. Respira. Suspira. Respira. Suspira.
Ad emerge do banheiro, com os cabelos ainda úmidos, e parece
constrangido por testemunhar a sessão de exercícios emocionais de Louise
comigo.
— Desculpe, meninas.
— Sem problemas, Ad — responde minha amiga, ajeitando uma
mecha do meu cabelo atrás da orelha. — Se quiser descansar um pouco no
quarto dos competidores, fique à vontade. Eu acompanho a princesa.
— Não acho que seja necessário.
— Ad, por favor — peço, olhando para ele. — Você passou dois dias
inteiros neste quarto como se fosse meu prisioneiro pessoal.
— Mas eu gosto de ser seu prisioneiro.
Louise segura um sorriso.
— E eu aprecio ser sua carcereira, mas você também precisa respirar
um pouco. Além disso, você é um caipira, não nasceu para ficar trancado no
palácio. Agora está livre. Sem contar que você precisa trazer notícias do
desaparecimento de Oed. Estou preocupada com ele.
— Do que vocês estão falando? Acho que me perdi — questiona
minha amiga, desamassando a saia rosada. Sua roupa é tão simples que
parece ter acabado de voltar do campo.
— Um dos outros competidores, Oed, fugiu assim que recebeu a
notícia de que o chefe de cozinha foi encontrado asfixiado hoje de manhã
— explico.
Ela parece perturbada com a notícia.
— Tá. Mas o que isso tem a ver com o competidor?
— Apricio era o tio dele. Ele criou Oed quando o irmão faleceu de
leptospirose — responde Ad, calçando as botas de couro.
— Pobrezinho. Nem os competidores estão se safando dos
sofrimentos no palácio — comenta Lo, um pouco chateada. — Espero que
ele esteja bem, embora seja suspeito esse desaparecimento dele.
— Suspeito?
— Sim. Acho que ninguém deveria sair do palácio até que as
autoridades encontrem o culpado por essas mortes.
Ad suspira. Ele veste o casaco com capuz e segue em direção à porta.
— Vou perguntar para Félix se ele sabe de alguma coisa. Mas
prometo voltar antes do café da tarde.
— Pode deixar, estarei aqui o tempo todo, fazendo companhia para
ela — avisa Louise, ficando na ponta dos pés.
— Ad, espera — falo, me aproximando dele. Beijo seus lábios e
aperto sua mão. — Tome cuidado, por favor.
Ele tira uma das adagas do bolso e mostra para mim.
— Estou protegido, princesa.
CAPÍTULO 70

Apresento Grannus a Louise e, inesperadamente, eles se dão super


bem.
— Em qual escola de eventos você estudou, Louise?
— Bombarteaux, conhece?
Ele franze o cenho.
— Nunca ouvi falar na minha vida. É estrangeira?
— É inspirada em uma das melhores escolas da França.
— Estão usando costumes estrangeiros dentro do reino? — questiono,
mordiscando um pedaço de pão de linhaça. Adoro comer pão. Acredito que
seja uma das minhas comidas favoritas.
— Claro que não, princesa. É só uma técnica que foi estudada e
aprimorada em nossa cultura. Não há necessidade de se preocupar com isso.
Os cidadanos na zona leste são tão rigorosos quanto ao assunto da
preservação dos bons modos de Mirassol quanto o palácio. Lá, as eventistas
não nos permitiam falar nenhum tipo de gírias, por exemplo.
— Eventistas? — pergunta Grannus, enchendo a boca de amendoim.
— As mulheres profissionais de eventos.
— Por que não dizer professora então?
— Não faço ideia, mas é desta forma que elas se dirigem umas às
outras.
Bebo mais um pouco do chá de camomila.
— Você passou perto da cota?
— Cota? O que é isso? — indago, prestando mais atenção.
— Um local onde indivíduos coletam contribuições para distribuir nas
fronteiras entre a cidade e o campo. — responde Grannus, dando de
ombros. Percebo que seu nariz está avermelhado por causa da friagem de
ontem.
— E por que? O que acontece lá? — continuo. Tudo o que diz
respeito ao reino me desperta bastante interesse. Sempre que posso, tento
entender todas as coisas que as pessoas fazem na cidade e nos campos.
Qualquer tipo de informação sobre suas vidas é lucro para o meu
conhecimento. Assim posso criar soluções e apresentá-las à corte para
colocá-las em prática.
— Existe muito preconceito entre as pessoas que nascem e crescem
naquela região. Eles não são considerados nem cidadanos e nem caipiras
por causa dos seus trejeitos e costumes desordenados.
— E o que são, então?
— Mestiços.
— Mestiços? — pergunto, horrorizada.
— Sim. Acredite, princesa, as pessoas consideradas mestiças são
desvalorizadas pela sociedade. Há uma superstição difundida entre o povo,
acreditando que tudo que nasce e cresce na fronteira traz discórdia e
confusão, como se fosse uma praga contaminando tudo. Portanto, os
mestiços não são bem-vindos na cidade, pois podem perturbar a paz e a
estabilidade do lugar. Nos campos, a preocupação é que possam tornar a
terra estéril e causar temor aos animais, impedindo o ciclo natural da vida.
Aquilo me deixa perplexa.
Como é possível que ainda haja pessoas alimentando esse tipo de
preconceito pela própria espécie? É algo que me deixa extremamente
irritada. Não consigo entender a lógica por trás desse tipo de crença
ridícula. Pessoas são pessoas. É desconcertante testemunhar, nos dias de
hoje, a persistência de atitudes e crenças que discriminam e marginalizam
outros seres humanos com base em características como raça, gênero,
orientação sexual, entre outros. A igualdade e o respeito deveriam ser
valores fundamentais que unem a humanidade, mas, infelizmente, o
preconceito persiste em muitas formas. A intolerância, seja ela manifestada
em comentários insensíveis, atitudes discriminatórias ou sistemas
estruturais de desigualdade, é algo que desafia a minha compreensão como
pessoa. Como podemos, como sociedade, evoluir quando alguns insistem
em perpetuar ideias ultrapassadas que apenas prejudicam e dividem?
— Como é que você nunca me falou sobre isso?
— Eu nem me lembrava da existência deles, princesa! Oxe.
Limpo a boca com um guardanapo.
— Preciso levar essa informação para a corte do palácio — digo.
— Só não diga o meu nome — pede, preocupado.
Louise se engasga com a bebida.
— Desculpe. É que foi engraçado o modo como você se expressou.
Grannus olha feio para ela antes de debochar com os olhos.
— Não achei nada engraçado.
Para mudar de assunto, pergunto a Louise se ela já tem uma ideia para
o meu vestido de casamento. Ela se anima imediatamente e começa a
descrever todos os detalhes que tem imaginado. Fala das paletas de cores
que gostaria de usar na cerimônia e sugere que todos os convidados homens
usem terno vinho ao invés do azul marinho tradicional.
Grannus parece estar em seu próprio mundo, completamente focado
nos petiscos da mesa. Ele ataca os quitutes como se não tivesse comido por
dias, ignorando a nossa conversa. Quando Louise aborda o assunto dos
convites, ele desperta de seu transe e lembra subitamente que Péricles pediu
a ele para entregar um bilhete.
— Eu estava com tanta fome que acabei esquecendo, princesa. Me
desculpa — pede. Ele se levanta, ainda mastigando alguma coisa, e tira um
pequeno pedaço de papel do bolso, me entregando com um sorriso meio
travesso.
Abro o papel e leio mentalmente:
Querida Sara,
Escrevo para compartilhar uma descoberta perturbadora
relacionada à saúde do nosso pai. Após minuciosa perícia, constatou-se
que ele estava sendo envenenado por uma substância encontrada nos
chocolates importados da cidade. Surpreendentemente, a cada ingestão,
seus sintomas agravavam-se consideravelmente.
Os efeitos nocivos se manifestavam através de cólicas abdominais
intensas e ânsias de vômito, o que explicaria os recorrentes episódios do
seu mal-estar. O veneno presente nos chocolates, gradualmente, minava sua
saúde, tornando a situação ainda mais grave.
Esta descoberta é alarmante e requer ações imediatas para garantir
a segurança de todos. Proponho que seja ainda mais cautelosa com os
alimentos e bebidas oferecidos no palácio, garantindo que nada possa
comprometer a sua saúde.
Sinto saudades, embora tenha que permanecer trancada nos meus
aposentos. Dê os meus parabéns a Ad Pomodoro e saiba que estou muito
feliz por vocês. Quanto tiver um tempinho livre, venha me visitar, por favor.
Beijo. Te amo
Atenciosamente,
Cássia.
Releio o bilhete várias vezes, incapaz de assimilar completamente as
palavras da minha irmã. Então, quer dizer que meu pai também foi
assassinado? Essa revelação lança uma sombra sobre tudo, explicando o
verso enigmático da música que Kaida cantou na noite do baile da Dança da
Meia Noite: Mas antes do grande caísse, Os corruptos já se faziam
inocentes. Era mais do que uma letra de música, era um aviso, um sinal
claro de que as cobras aladas estavam agindo nos bastidores antes mesmo
do início do Torneio do Sol Nascente.
Agora, percebo que quem quer que esteja por trás desses crimes não
tem nada de pessoal contra o Duque. Sua morte deve estar relacionada a
outras questões, talvez ele tenha descoberto algo crucial ou o simples fato
de seus planos, como colocar Salome no poder, tenha representado uma
ameaça para alguém que está disposto a cometer assassinatos brutais.
— Está tudo bem, princesa? — questiona Louise, olhando dentro dos
meus olhos.
— Sim. Cássia apenas me enviou notícias sobre sua gravidez —
minto. Não quero envolvê-la no assunto e colocá-la em perigo também. —
Grannus, você que veio do lado de fora, já escutou falar de bruxios bolaris?
— pergunto, mudando a minha atenção para ele.
— Sim, princesa, trata-se de uma planta de difícil acesso. Apenas os
contrabandistas conseguem obtê-la, e essas ervas são frequentemente
utilizadas para exterminar ratos, cobras e baratas.
— Como você sabe de tudo isso? — questiona Louise, desconfiada.
— Todo mundo sabe disso na cidade.
— Acho melhor você não ficar comentando esse tipo de informação
no palácio. É perigoso demais — aconselha ela.
— Ninguém pode me envenenar com bruxios bolaris ou qualquer
outro tipo de veneno, galera — compartilha, encostando as costas na
cadeira e cruzando os braços.
— Por que não? — pergunto.
Ele suspira.
— Quando eu era criança, fui picado por uma espécie de cobra
conhecida como venix do mato. Apesar de suas presas liberarem veneno,
essa cobra não era venenosa. Inexplicavelmente, o veneno continha uma
substância que se misturou com meu sangue e me deixou imune a qualquer
tipo de veneno — explica.
— Como você sabe disso?
— O melhor amigo do meu primo Robbin era encantador de
serpentes. Fizemos vários testes para conferir o que eu disse. Robbin
também foi picado e nada de ruim aconteceu com ele. O único problema é
encontrar essa espécie de cobra para estudá-la e criar um antídoto.
— E por que não usar o seu sangue para isso? — indaga Louise,
também de braços cruzados.
— Você acha que não tentamos? O coitado do filho do padeiro se
voluntariou para ser picado por uma píton e morreu em questão de
segundos.
Reflito sobre isso.
O fato de que pode existir um antídoto para qualquer tipo de veneno
me deixa esperançosa. Essa ideia se infiltra em meus pensamentos como
uma luz no fim do túnel, trazendo consigo uma sensação de alívio e
possibilidade.
A noção de que, mesmo diante de ameaças, há uma resposta, um
antídoto que pode neutralizar os efeitos nocivos, ressoa profundamente
dentro de mim. Talvez, assim como no mundo físico, onde existem
substâncias que podem contrabalançar os venenos mais letais, também
possamos encontrar respostas e soluções para as adversidades que
enfrentamos.
Mas então, me recordo de quem Grannus é e qual é o seu papel aqui
no palácio.
— Se você é imune a qualquer tipo de veneno, como pode ser o meu
provador de comida? — questiono.
Grannus responde com simplicidade:
— Quando eu como algo envenenado, sinto um forte formigamento
na língua. É uma sensação bastante incômoda que me deixa agoniado por
horas.
Meu televisor acende e mostra o rosto de Eldarion, sorridente.
— Prezados cidadãos de Mirassol. É com grande honra e satisfação
que venho a vocês para compartilhar as últimas notícias sobre o Torneio do
Sol Nascente. Em um desdobramento surpreendente, os competidores Oed
de Assunção e Félix Rodrine anunciaram sua desistência do Torneio. Isso,
por sua vez, levou Ad Pomodoro à vitória, tornando-o o novo Sub-Príncipe
de Mirassol — anuncia.
A mentira sobre Oed é um ato de não desestabilizar a paz.
— Parabéns, princesa — diz Grannus, dando um tapinha no meu
ombro.
— Obrigada.
— Neste momento, quero estender meus mais sinceros parabéns a Ad
Pomodoro por sua conquista notável. Sua habilidade e coragem na floresta
e na arena o destacaram como digno representante do nosso reino —
parabeniza o campeão, esperando alguns segundos para continuar. — Além
disso, gostaria de informar a todos que a nossa amada rainha está se
recuperando e em breve aparecerá diante de vocês para compartilhar
detalhes sobre como será feita a escolha do novo rei. Agradecemos a todos
pelas mensagens de apoio e desejamos uma rápida recuperação à nossa
querida rainha.
— O que ela tem? — pergunta Grannus.
— Verme no ventre — invento.
Louise dá risada.
— Devido à tempestade intensa que ocorreu na noite passada, a arena
onde ocorrerá a cerimônia do campeão precisa passar por reformas. Isso
garantirá um ambiente seguro e grandioso para celebrarmos esse momento
especial. Como um gesto de apreço pela compreensão de todos, a
administração do Torneio do Sol Nascente irá devolver integralmente o
dinheiro daqueles que adquiriram ingressos para a última etapa do evento
— explica, ajeitando o cabelo cheio de gel transparente. — Novamente,
parabéns a Ad Pomodoro por sua vitória merecida. Em nome de toda a
administração do Torneio, agradeço a todos por sua paciência e apoio
contínuo. Com gratidão, Eldarion. comentarista do Reino de Mirassol.
CAPÍTULO 71

No outro dia, acordo bem cedo e tiro Ad da cama para iniciarmos


meus treinos. E depois de quase 13 horas, consigo cravar a adaga na parede
do meu quarto.
— Bom. Muito bom. Mas acho que você deveria partir para o arco e
flecha. Você tem uma ótima mira, mas não possui força o suficiente —
sugere Ad.
— Obrigada, mas só preciso saber o básico. Se alguém me atacar de
supetão, onde vou arranjar um arco e flecha em questão de segundos?
Ele parece refletir com a minha resposta.
— Você tem razão. Vou ensiná-la a segurar o cabo da adaga com
firmeza.
— Pensei que estava falando do seu cabo.
Ad cora imediatamente.
— Como eu estava dizendo, existem pontos estratégicos que você
pode atacar para prejudicar seu oponente. Clavícula, pescoço, pé da barriga
e coxas — cita, contando nos dedos. — Acertando um desses lugares, a
vantagem é toda sua.
Péricles entra no quarto
— Pois não? — pergunto, limpando o suor do meu rosto com a
manga da camisa.
— Ad me pediu para ajudá-lo no seu treinamento.
Olho para Ad que dá de ombros.
— Não acha que vou atacá-la despreparada, acha? — pergunta,
arrancando a adaga da parede. — Você precisa ver um combate de perto
para sentir a emoção da adrenalina.
— Não acho que eu queira...
Ad dá um soco no queixo de Péricles que cai em cima da minha
cômoda, espalhando todos os meus pertences pelo chão.
— O que você fez? — pergunto, correndo para ajudar Péricles.
O meu guarda-costas se apruma, cambaleante, e cospe o sangue que
acumula na sua boca.
— É vacilo começar a aula sem avisar — reclama, abrindo um sorriso
torto.
— Regra número 1. Em um combate de vida ou morte, todo cuidado é
pouco — explica Ad, olhando para mim. — Eu poderia tê-lo matado se
tivesse armado.
— Vocês têm problemas — disparo.
— Regra número 2. Nunca subestime seu oponente. Ele pode ser mais
forte ou mais habilidoso do que você imagina — continua.
Péricles dá um soco na direção de Ad que desvia a poucos milímetros.
— Cuidado! — digo, agoniada com a brincadeira. — Vocês podem se
machucar de verdade.
— Regra número 3. Essa, eu aprendi com você, princesa — revela
Ad.
— Comigo?
— Todo segundo vale a pena. Enquanto existe vida, há possibilidades
de uma oportunidade surgir a qualquer momento. Talvez seja a última da
sua vida. E por isso deve aproveitá-la ao máximo que consegue.
Ele se refere à segunda etapa.
Enquanto observo, Ad e Pericles lutam ferozmente, derrubando
objetos do meu quarto como se não fosse nada para eles. O som dos golpes
e o ruído dos pertences se chocando criam uma sinfonia caótica que
preenche o ambiente. Não consigo evitar a apreensão que se instala em mim
diante dessa cena inusitada. Cada movimento deles parece carregar uma
energia intensa, como se estivessem liberando anos de tensão acumulada.
Não sei qual aprendizado devo tirar dessa situação. Será uma forma
de resolver conflitos? Uma demonstração de força? Ou talvez seja uma
expressão de emoções reprimidas que finalmente encontraram um meio de
se manifestar?
A apreensão persiste enquanto tento entender o que está acontecendo.
A luta parece não ter um propósito claro, mas há algo catártico na entrega
total deles àquele momento. Me sinto dividida entre intervir para acalmar a
situação ou simplesmente observar, esperando que essa manifestação de
intensidade chegue a uma conclusão por si só.
— Até que você sabe lutar para um simples guarda do palácio —
irrita Ad, dando um duplo chute na lateral de Péricles.
— Simples guarda do palácio que tem como responsabilidade
proteger a sua princesa — rebate o outro, fazendo uma rasteira perfeita.
Ad cai no chão, mas se vira a tempo de ser atingido pelo golpe de
Péricles.
— Fique tranquilo que em breve você não precisará mais perder seu
tempo com isso.
Meu guarda dá risada.
— E quem perde seu tempo mostrando seu potencial? — pergunta,
achando graça. — É uma honra andar entres os corredores e dizer que fui
designado para essa função. Isso expressa o quanto sou bom no que faço.
Ad bufa e se joga em cima da cama.
— Será mais honra ainda falar que ganhei a princesa mais linda do
mundo e que terei o direito de me casar com ela — diz, pulando na direção
de Péricles. — É esse tipo de assunto que deve se espalhar pelo palácio.
O líder dos guardas reais se afasta e soca o peito de Ad ainda no ar.
— Ganhou porque os outros competidores desistiram.
Ad cai de costas no chão e solta um grunhido.
— Não, Péricles. Eu não ganhei por causa disso — fala, com a
respiração pesada. — Eu ganhei o Torneio do Sol Nascente no dia que
conquistei o coração da princesa.
Percebo claramente a tensão enquanto Ad e Péricles tentam mexer
com a tranquilidade um do outro. Ad lança frases desafiadoras, mirando
diretamente nas habilidades de Péricles. Seus comentários são afiados como
lâminas, buscando provocar uma reação, testar os limites do adversário.
Por outro lado, Péricles não fica para trás. Ele rebate as ofensas de Ad
com uma maestria impressionante, tocando no ponto mais sensível de seu
orgulho. Cada palavra parece ser escolhida estrategicamente, como peças de
um intrincado jogo de xadrez, onde cada movimento é calculado para
conquistar o controle da situação.
A atmosfera ao redor se torna eletricamente carregada, e eu me
encontro absorvida pela intensidade do embate verbal. Descubro que ambos
são mestres na arte da provocação, cada um buscando o domínio da
conversa, cada um se esforçando para manter o controle sobre o outro.
Será que um dos dois cederá, ou essa troca de farpas continuará a
escalar até atingir um ponto sem retorno?
— Meninos, acho melhor vocês pararem — sugiro.
Tanto Ad quanto Péricles olham para mim e dão risada.
— Já cansou, princesa? — pergunta meu guarda.
— Agora que a luta estava esquentando — argumenta Ad.
— Acredito que tenho visto o suficiente por hoje — falo, pegando
uma das adagas em cima da mesa. — Eu só quero aprender a usar essa
merda. Será que é pedir muito para vocês?
Ad olha para Péricles.
— Por que ela não disse logo que gostaria de assistir a gente lutando
com as adagas? — pergunta para seu adversário.
Arregalo os olhos, chocada.
— Eu não disse nada disso, Ad!
Ele pega uma adaga prateada e entrega a dourada para Péricles.
Assisto à luta entre eles, completamente transtornada. O quarto parece
pulsar com a intensidade dos movimentos enquanto ambos se enfrentam
com suas adagas de maneira animalesca.
Ad grunhe várias vezes, uma expressão de esforço e determinação em
sua busca pela vitória. Seu corpo se choca com o de Péricles, empurrando-o
com a cintura e tentando desarmá-lo a todo custo.
Minhas mãos estão tensas, agarradas a barra da minha camisa,
enquanto o medo e a tensão preenche meu peito. Não quero mais participar
da luta. Não quero ter que permanecer parada enquanto um dos dois puder
ferir o outro de verdade.
— Eu vou atrás de Grannus e pedir que ele me traga mais um pouco
de chá — digo, chamando atenção deles. — Quando eu voltar, espero o
meu quarto todo arrumado.
CAPÍTULO 72

Quatro dias se passaram desde a luta desnecessária entre Ad e


Péricles no meu quarto. No segundo dia, treinei sozinha com o meu
campeão. Ele me designou uma rotina intensa de exercícios para aumentar
minha resistência e, surpreendentemente, começou a me ensinar a
arremessar adagas com os olhos vendados. Ao longo do terceiro dia, notei
uma mudança significativa – eu estava mais preparada, e o peso da arma já
não me incomodava. Minha destreza atingiu um ponto em que consegui
cravar a adaga no alvo da parede oito vezes seguidas, todas nas primeiras
tentativas. Minha evolução resultou em um momento inesperado, onde
acabamos na cama, totalmente pelados.
Ontem, vivenciei o dia mais produtivo até agora. Adquiri a destreza
necessária para atacar e escapar, deixando meu oponente incapacitado para
qualquer perseguição.
— Está nervosa? — pergunta Louise, ajeitando meu cabelo.
Olho para o meu reflexo no espelho.
— Deveria?
Ela abre um sorriso caloroso.
— Não, claro que não — responde, finalizando.
Minutos depois, estou na sacada da arena sendo recebida pelas
minhas irmãs. É o dia da cerimônia do campeão do Torneio do Sol Nascente
e todos estão extremamente agitados. A arquibancada está lotada de pessoas
gritando o nome de Ad Pomodoro. A noite se desenha agradável, com o céu
noturno adornado por estrelas resplandecentes que piscam, como se
estivessem nos saudando.
Olho para a arena e vejo um palco de madeira improvisado. Ad está
de pé ao lado de Eldarion, Rubens e Erasmos que segura uma caixa preta
nas mãos. Todos eles usam o terno azul marinho tradicional.
— Estou tão feliz que seja o Ad o campeão desta temporada —
comenta Cássia, animada com a celebração. Tenho a sensação que ela está
mais inchada desde o dia que anunciou sua gravidez, embora tenha passado
poucos dias.
— O casamento foi marcado para daqui a três dias — avisa
Donabella, sorrindo para mim. — Estou conversando com Louise sobre os
últimos detalhes para começarmos a decoração do salão.
— Não se esqueçam da Madame Zahir — lembro. — Quero que ela
participe de tudo.
— Claro, Sara. Ela está extremamente animada, trazendo
incessantemente para meus aposentos diversos desenhos de modelos para os
vestidos das madrinhas.
— Quem serão suas madrinhas, Sara? Você ainda não me contou —
pergunta Cássia, alisando a barriga.
— Orientei a madame Zahir para convidar a tia e a prima de Ad, além
de vocês duas. Acredito que já é o bastante.
— Apenas quatro madrinhas?
— Cinco, considerando Louise.
— Sinto saudades de Téssia.
— Eu tenho certeza que ela está bem, Cássia — conforta Dona.
Téssia também havia enviado cartas para elas, porém ocultando as ameaças
que estava enfrentando no palácio.
Minha mãe entra na sacada da arena e todos os funcionários fazem a
reverência tradicional. Ela usa um vestido verde tão pesado que parece a
própria natureza ambulante.
Um silêncio profundo toma conta de toda a arquibancada.
Ela sobe ao palanque e faz o discurso da coroação do campeão.
— Povo amado de Mirassol. Hoje, diante de todos vocês, quero
expressar minha profunda gratidão pela paciência e apoio incansáveis que
têm dedicado ao reino durante esta temporada. A realização do Torneio do
Sol Nascente foi um marco importante para todos nós, uma demonstração
da força e da união que caracterizam nossa terra. Fico satisfeita ao ver como
o Torneio foi conduzido com maestria, testemunhando a coragem e a
habilidade dos nossos valentes competidores.
Ao mencionar a expressão conduzido com maestria, olho de soslaio
para Cássia.
— Hoje, é com grande alegria que anuncio a coroação de um
verdadeiro campeão. Ad Pomodoro, com sua destemida bravura e
habilidades excepcionais, conquistou a vitória no Torneio do Sol Nascente,
tornando-se assim o novo Sub-Príncipe da família real — anuncia, fazendo
a plateia aplaudir de forma pacífica. — Ad, que sua jornada seja guiada pela
sabedoria e pela coragem, e que você represente com dignidade e honra os
valores que nossa família preza. Que seu legado seja marcado pela
prosperidade e pelo amor ao nosso reino — finaliza.
O povo fica de pé, entoando o hino da coroação.
— Ad Pomodoro, campeão digno do Torneio! Campeão digno do
Torneio! Campeão digno do Torneio! Campeão digno do Torneio! Campeão
digno do Torneio! Campeão digno do Torneio! Campeão digno do Torneio!
Campeão digno do Torneio! Campeão digno do Torneio!
Lá embaixo, Rubens abre a caixa que Erasmos segura e tira uma
coroa de prata com os dizeres Sub-Príncipe cravados no metal.
Eldarion lê a carta de votos enquanto a plateia grita
desesperadamente.
— Hoje, coroamos o campeão que demonstrou coragem, destemor e
maestria nas etapas do Torneio do Sol Nascente. Sua vitória também é de
todos nós, pois personifica a resiliência e a força que caracterizam nosso
reino. Portanto, em nome de todo o reino, é com alegria e reverência que
Rubens coloca a coroa sobre a cabeça do nosso campeão.
Ad inclina o corpo para baixo e Rubens coloca a coroa na cabeça
dele.
Sinto vontade de chorar, mas me contenho.
— Que esta coroa seja símbolo não apenas de prestígio, mas também
de responsabilidade, pois confiamos a você a tarefa de liderar com
sabedoria e justiça. Que sua jornada como líder seja iluminada pelo brilho
do sol nascente sobre Mirassol, guiando-o em cada passo rumo a um legado
próspero e harmonioso.
Percebo que há drones espalhados em todos os cantos
— A família dele deve estar bastante orgulhosa — comenta Dona,
segurando a minha mão.
Faço que sim com a cabeça.
Um pequeno grupo de trompetistas inicia as notas do hino de
Mirassol, envolvendo todos em silêncio, à espera da última nota para
entoarmos juntos.
De repente, um som ensurdecedor toma conta do ambiente enquanto a
arquibancada da minha esquerda explode, lançando pedaços de pedras,
pessoas e madeiras pelos ares. Uma fumaça negra cobre a arena
imediatamente, obscurecendo a visão e deixando um gosto amargo no ar.
Os gritos desesperados das pessoas ecoam, misturando-se ao caos que se
instala.
Enquanto tento assimilar o que acaba de acontecer, outra explosão
ocorre no lado direito, intensificando ainda mais o pânico que se espalha
como um rastro de destruição. A poeira e os destroços flutuam no ar,
criando uma atmosfera sufocante e caótica.
— PELAS FLORES DE MIRASSOL! AD! AD! — grito, correndo
para as escadas que levam ao centro da arena. O barulho ensurdecedor das
explosões, os gritos de angústia e a fumaça espessa criam um cenário
apocalíptico ao meu redor.
Neste momento, é difícil discernir o que causou essas tragédias e
quem são os responsáveis por tamanha violência. Os guardas reais
empurram e puxam todas as pessoas da sacada, tentando guiá-las para um
lugar seguro. O instinto de sobrevivência toma conta da minha família, e
junto com a multidão em desespero, eles tentam buscar abrigo e segurança.
— Princesa! — ouço o grito de Péricles atrás de mim.
Eu o ignoro. Preciso saber se Ad está bem ou se foi atingido pelos
destroços da explosão. E então, respiro fundo e entro na fumaça negra.
A princípio, meus olhos ardem, e não consigo ver absolutamente
nada. Corpos se trombam comigo, me jogando de um lado para o outro. O
caos se instala cada vez mais rápido, deixando-me desorientada. Sinto o
pânico se espalhar dentro de mim, enquanto tento encontrar algum ponto de
referência.
A escuridão é densa, e os sons ao meu redor são uma cacofonia
assustadora. Passos apressados, vozes gritando, o crepitar do fogo. Em meio
à confusão, vejo um corpo separado pela metade e dou um grito
desesperado. A visão é perturbadora.
Tento seguir adiante, movendo-me com cuidado para evitar
obstáculos desconhecidos. A cada passo, minha respiração acelera, e o
cheiro de queimado impregna na atmosfera. Sinto a necessidade urgente de
encontrar uma saída, de escapar desse pesadelo que se tornou a arena, mas
não antes de encontrar Ad Pomodoro.
A escuridão não dá trégua, mas, mesmo assim, eu persisto, guiando-
me pelo instinto e pela esperança de encontrar um caminho para fora dessa
situação desesperadora.
Caio de barriga no chão e percebo que estou ao lado da estrutura do
palco improvisado. Com dificuldades, escalo a lateral e jogo meu corpo
para cima, tossindo um pouco. Em seguida, vejo o corpo do comentarista
Eldarion estirado no chão. Aproximo-me dele e coloco meu ouvido em seu
peito, sentindo suas respirações ofegantes.
Ao redor, observo Erasmos carregando o corpo de Rubens nas costas.
O marido de Cássia está todo machucado, e uma boa quantidade de sangue
escorre de seu rosto. Desvio meu olhar para a arquibancada, onde pessoas
gritam por socorro. A maioria delas estão presas nas ferragens, feridas e
desorientadas pelo impacto.
Me levanto com cuidado e me aproximo das vítimas, tentando
organizar meus pensamentos em meio ao caos. Preciso ajudá-las. Não posso
deixá-las aqui ou acabarão morrendo asfixiadas.
De repente, uma outra explosão treme o chão da arena e meu coração
bate mais forte. Os gritos e o caos se intensificam ainda mais. Será que
estamos sendo atacados? Como essas bombas foram implantadas na arena?
Quando penso em retirar os destroços de cima de uma senhora de
idade, descubro que a sacada real está totalmente destruída. Não. Não pode
ser. Minha família. Não.
Entro em pânico, e uma vertigem faz com que eu perca as forças das
pernas. Minha mente se recusa a aceitar o que meus olhos testemunham, e
quase não consigo respirar. O desespero toma conta de mim enquanto tento
avançar na direção dos destroços, chamando pelo nome das minhas irmãs.
A poeira e a fumaça obscurecem minha visão, mas a realidade cruel
se revela à medida que me aproximo. Os escombros escondem os rostos
familiares de alguns guardas reais, e uma sensação de impotência cresce
dentro do meu peito. Meu coração aperta e as lágrimas se misturam com a
poeira em meu rosto.
Cada pensamento é um grito silencioso, um apelo por um milagre que
já sei que talvez não virá.
Atordoada, a única coisa que consigo fazer é cair de joelhos e
desmaiar.
CAPÍTULO 73

A primeira coisa que eu sinto é o cheiro de antisséptico da Ala


Hospitalar.
Minha mente vagueia entre o que é sonho e o que é real. Não tenho
uma consciência clara se a arena explodiu ou se tudo não passou de um
grande pesadelo criado pelas minhas emoções.
Sinto o frio gélido do ambiente acariciar minha pele, mas não consigo
abrir os olhos. É como se meu corpo tivesse adormecido, embora eu reaja
aos meus pensamentos. Felizmente, não sinto dores. Parece que está tudo
bem comigo.
Por outro lado, um leve temor crescente invade meu coração, dizendo
que talvez meus familiares estejam todos mortos. Essa angústia se mistura
ao desconhecido, criando um turbilhão de emoções confusas. As
lembranças do caos na arena ecoam em minha mente, e a incerteza do que
aconteceu com minha família aumenta a cada segundo.
Tento reunir coragem para abrir os olhos, para encarar a realidade que
pode estar à minha frente. O medo do que posso encontrar luta contra a
esperança de que tudo não passou de um pesadelo passageiro.
O silêncio ao meu redor é ensurdecedor, e a escuridão que me
envolve parece eterna. Lembro de Eldarion caído no chão. Será que ele
morreu? Sei que Erasmos e Rubens sobreviveram, pois estavam vivos da
última vez que os vi. E o meu campeão? Não consegui encontrá-lo no meio
da cacofonia da tragédia.
Respiro fundo, concentrando-me no som do ar que entra e sai pelas
minhas narinas. É reconfortante escutá-lo. Tem som de vida, de esperança.
Sinto alguém segurar minha mão com suavidade, talvez com medo de
me despertar. E então, abro meus olhos. A claridade é intensa, e por um
instante, vejo apenas manchas de luz dançando à minha frente. Aos poucos,
a visão se ajusta, revelando o rosto preocupado de Péricles.
Ao lado da cama onde me encontro, percebo movimentos sutis de
pessoas que cuidam dos feridos. Busco com os olhos a figura de Eldarion,
esperando encontrar algum sinal de vida. A incerteza não larga o meu
coração, mas o som constante da minha respiração me lembra que, pelo
menos por enquanto, ainda estou aqui.
— Bem vinda de volta, princesa. Como está se sentindo? — pergunta
meu guarda, apertando minha mão.
— Minha família? — questiono.
— Todos estão bem, não precisa se preocupar.
— Ad? Onde ele está? — continuo, alterando o tom de voz.
— Vivo. Ele está no seu aposento, agoniado por notícias suas.
Solto um suspiro prolongado. O alívio que cai sobre meus ombros é
libertador.
— Eldarion?
— Está gravemente ferido, mas os médicos disseram que ele vai ficar
bem.
Assinto.
— O que aconteceu depois que desmaiei? — pergunto, querendo
saber de tudo.
— Assim que desmaiou, eu encontrei você. Trouxe-a para a ala
hospitalar e voltei para ajudar as pessoas que ainda se encontravam com
vida. Demorou mais de 5 horas para resgatarmos todo mundo — explica,
parando por alguns segundos. Péricles está se recordando do que viveu. —
Eu vi várias crianças mortas, princesa. Foi horrível. Nunca mais poderei
esquecer as cenas dos corpos espalhados no chão. Então, quando estava
voltando para cá, encontrei Ad nos corredores procurando por você.
Expliquei toda a situação e pedi para ele esperar no quarto, pois a rainha
ordenou que cada membro da família real se protegesse até segundas
ordens.
— Quantas pessoas morreram?
— 472, princesa. 28 eram nossos guardas e 5 funcionários do palácio
— responde, cabisbaixo. — Eu sinto muito.
472 pessoas morreram no atentado contra a arena. Nunca houve tantas
mortes em um único dia no reino de Mirassol. É a pior tragédia da história.
Fico sensibilizada e começo a chorar. Choro pelo alívio que sinto ao
saber que todas as pessoas que amo estão vivas, mas também não posso
deixar de sentir por essas pessoas que perderam a liberdade de suas vidas. O
peso dessa perda coletiva é avassalador. A dor compartilhada por tantas
famílias, a sensação de impotência diante do inesperado, tudo isso ecoa na
atmosfera carregada de tristeza.
Olho ao redor e vejo rostos abatidos, corações quebrados e uma
nuvem negra pairando sobre Mirassol.
As lágrimas escorrem pelo meu rosto enquanto penso na magnitude
da destruição. Pessoas que estavam ali para celebrar a vida, a competição e
a alegria agora se foram. O luto se estende por cada canto do reino,
deixando cicatrizes profundas na alma daqueles que sobreviveram. E será
difícil encontrar consolo. A vida que conhecíamos foi brutalmente
interrompida, e a reconstrução emocional e física se apresentará como um
desafio árduo.
O que resta é a solidariedade entre os que ficaram, a compaixão pelos
que perderam e a esperança de que, um dia, a luz possa dissipar as sombras
que pairam sobre Mirassol.
Infelizmente, o que o futuro reserva após essa catástrofe é uma
incógnita que só o tempo revelará.
CAPÍTULO 74

São 16h47.
Meu campeão massageia meus pés enquanto narro tudo o que
enfrentei. Conto a ele sobre correr para procurá-lo em meio à multidão, que
vi corpos despedaçados, que encontrei com Eldarion inconsciente no chão e
que vi Erasmos carregando o corpo de Rubens, que estava todo
ensanguentado.
Ad beija meus pés e me ajeito no travesseiro, reclamando de dores
nas costas. Ele acha que os médicos não deveriam ter me dado alta, mas me
sinto bem o suficiente para ser mais uma para eles cuidarem.
Então, Ad me conta que, assim que a primeira bomba explodiu, ele
foi arremessado para fora do palco e caiu entre as grades que protegiam a
arena. Por sorte, elas não perfuraram seu corpo. Desorientado, ele tentou
ficar de pé, mas a multidão invadiu o espaço onde ele estava e o pisoteou
sem perceber.
— É um milagre estarmos vivos, princesa — diz ele, deitando ao meu
lado.
— Você acha que foi o assassino do palácio? — questiono.
Ele demora um pouco para me responder.
— Pode ser. Mas também devemos considerar que há rebeldes do
lado de fora. Talvez a minha conquista tenha abalado suas emoções.
— Minha mãe disse que todos os rebeldes foram capturados —
exclamo, irritada.
Ad me lança um olhar piedoso.
— Os rebeldes nunca deixaram de existir, princesa.
— Não compreendo.
— O reino é dividido em quatro zonas. E cada zona tem seu campo.
Você acha mesmo que todas as pessoas estão contentes? Você mesmo viu a
vida que a família de Fadye leva. E sobre os mestiços, então? Devem ser
pessoas revoltadissimas com o sistema.
Penso na possibilidade desses tais rebeldes. Por que atacar no dia da
cerimônia do campeão do Torneio do Sol Nascente e matar centenas de
pessoas? Eu até entendo atacarem a família real, mas o sangue do seu
sangue? Não consigo entender. A confusão em minha mente é irritante. Por
que escolher um evento que deveria ser de celebração para semear o caos e
a morte? Os rebeldes buscavam justiça ou apenas queriam causar terror
indiscriminado?
O impacto desse ato de violência reverbera em cada pensamento meu.
A tristeza que sinto pela perda das vítimas é amplificada pela perplexidade
diante do motivo por trás daquele ataque brutal. Me questiono sobre os
objetivos dos rebeldes e a que custo estão dispostos a alcançá-los.
— A única certeza que tenho é que o reino de Mirassol está
mergulhado em um período sombrio, e se não pararmos a tempo, será tarde
para restaurar a paz — comento, bocejando.
— Disse como uma verdadeira rainha — brinca Ad, beijando meus
lábios.
— Eu só quero o bem de todos. Não é justo as pessoas viverem com
medo nas ruas. A segurança ainda precisa ser o ponto primordial de
Mirassol. Era isso que meu pai diria se estivesse aqui.
— Vamos dar um jeito, Sara. Eu prometo. Só preciso me instruir mais
no conhecimento do reino para elaborar ideias que possam melhorar a
qualidade de vida do nosso povo. Eu prezo por isso.
Ad não percebe o quanto fica fofo quando fala desse jeito, sério e
destemido. Beijo ele e ele retribui. Nossos lábios se encontram num gesto
cheio de ternura e cumplicidade. O calor do momento se mistura com a
suavidade do gracejo, criando uma sensação única que nos envolve por
completo.
— Eu amo você, Ad Pomodoro.
— Eu amo você demais da conta, Saravana Grinffos.
Os nossos sentimentos se entrelaçam, e sinto como se o mundo ao
nosso redor contemplasse o nosso amor. É apenas Ad e eu, compartilhando
um momento íntimo e especial. Seus lábios são suaves contra os meus, e a
troca de carinho faz com que nossa conexão seja mais profunda.
— Sara, olhe para os flocos de neve caindo lá fora. O que você vê? —
pergunta ele, sussurrando no meu ouvido.
— Vejo flocos de neve, Ad — respondo o óbvio.
— Sara, olhe para os flocos de neve caindo próximos a janela. O que
você vê?
Franzo a testa, confusa com as perguntas dele.
— Ainda vejo flocos de neve, querido.
— Sara, olhe os flocos de neve pregados na janela. O que você vê?
Acho que entendi o que Ad quer que eu diga.
— Eu vejo o nosso reflexo no vidro.
— Exatamente — ele suspira.
— E você? O que você vê?
Ele demora um pouco para responder, olhando atentamente para a
janela.
— Eu vejo um reino diante de mim. E neste reino há um casal feliz.
Acho que eles estão iniciando uma família. Consegue ouvir os choros dos
bebês?
Uma lágrima escorre do meu olho enquanto meu coração palpita de
alegria.
— Sim, consigo. Acho que o mais novinho está chamando o papai.
Ad me cobre com o seu abraço caloroso e respira em cima da minha
cabeça. Eu gosto quando ele faz isso.
— É o nosso futuro, Saravana. Eu prometo que você terá um futuro
digno de princesa. Longe das atrocidades da vida. Eu estarei ao seu lado,
sempre.
— Você promete?
— Prometo.
— Mesmo?
— Mesmo.
— Para sempre?
— Para todo o sempre.
Naquele momento, percebo que o amor entre um casal é uma força
vital, uma conexão profunda que substitui as palavras e os gestos. É uma
necessidade fundamental, não apenas para satisfazer a busca por
companhia, mas para nutrir a alma e o espírito. É um bálsamo que cura
feridas, proporciona conforto nos dias difíceis e celebra conosco nas
pequenas vitórias diárias. Além disso, ele é um catalisador para o
crescimento pessoal. É uma jornada de autodescoberta, onde aprendemos
sobre nossas próprias virtudes e imperfeições, e onde somos desafiados a
evoluir como indivíduos.
Descubro que essa necessidade de amar e ser amado é a essência da
nossa humanidade, uma chama que arde constantemente em nossos
corações.
Enquanto nos beijamos, consigo perceber o brilho nos olhos de Ad, a
intensidade do afeto que ele também sente. Eu realmente amo esse homem,
e espero que possamos permanecer juntos para sempre.
Alguém bate na porta, interrompendo nosso momento.
— Mais tarde? — pergunta ele, acariciando minha virilha.
— Mais tarde — confirmo, olhando para os lábios dele.
Ad abre a porta e Félix aparece.
— Eu espero não estar atrapalhando o casal — fala, olhando para o
chão.
— Sem problemas, mano. Aconteceu alguma coisa?
— Primeiro quero saber como vocês estão? — pergunta ele, olhando
de Ad para mim.
— Sobrevivendo, caipira — respondo, tentando quebrar um pouco a
tensão.
— Melhor, impossível — zomba Ad, dando um tapa no amigo.
Félix abre um sorriso forçado.
— É muito bom saber que estão bem, mas eu preciso de ajuda. Oed
foi visto na floresta próximo ao palácio e estamos organizando uma equipe
para buscá-lo. Até agora não temos nenhuma informação sobre o que está
acontecendo, mas quero evitar que o nosso amigo faça uma merdade
irreversível. Gostaria de saber se você não quer ir com a gente?
Ad olha na direção e faço que sim.
— Pode ir. Não precisa se preocupar comigo.
— Tem certeza? — pergunta, suavizando as sobrancelhas.
— Absoluta. Qualquer coisa, eu grito e Péricles vem me ajudar —
respondo, tirando uma adaga da bota. — E agora posso me defender
sozinha.
Félix fica boquiaberto.
— Uau. Aprendeu a usar? — indaga ele, admirado.
Lanço a arma em sua direção, mas mirando na madeira da porta. Ela
crava na mosca enquanto Félix estremece, assustado.
— Acho que levo jeito — digo, e dou de ombros. — Aprendi a cortar
gargantas, furar virilhas, rasgar clavículas e estraçalhar coxas musculosas
de homens carrancudos.
Ele olha para Ad, com os olhos arregalados.
— Essa princesa é um animal — diz. — Espero nunca ter que
enfrentá-la.
Ad dá risada e veste o casaco de capuz preto.
— Te vejo antes da meia noite?
— Antes da meia noite — concretizo, dando um selinho nele.
CAPÍTULO 75

Faz duas horas que Ad saiu e duas horas que não paro de pensar nas
atrocidades que aconteceram desde o início do Torneio do Sol Nascente. O
peso de minhas escolhas recai sobre minha consciência como uma sombra
implacável, um fardo que carrego com a lembrança de cada vida ceifada.
Me recordo da ordem dada para a morte de Francio, uma decisão que
selou o destino de um homem. A imagem das vinte cabeças degoladas no
café da manhã ainda ecoa em minha mente, especialmente a da irmã gêmea
de Fadye. A explosão em meu quarto, a interrupção da luta na segunda
etapa do Torneio, as palavras desafiadoras trocadas com Salomé na
biblioteca, a morte do Rei Kalayo, o assassinato brutal da família Valktran,
a punição severa imposta a Arnaldo, a perda de Michelle e Felpudo, a fuga
de Téssia, a agressão de meu cunhado, as mortes da auxiliadora Xanthe, do
meu primo Talles e da minha melhor amiga, o castigo de Kaida por ter
cantado uma canção em duplo sentido, a morte misteriosa do tio de Oed, o
atentado dos mascarados e, por fim, o ataque durante a cerimônia do
campeão do Torneio.
Cada evento compõe o que agora parece um pesadelo contínuo. Meu
coração se enche de tristeza, arrependimento e uma sensação esmagadora
de responsabilidade. Cada vida perdida deixa uma cicatriz indelével, uma
marca na história que não pode ser apagada.
— Preciso colocar um ponto final neste mistério — digo para mim
mesma.
Péricles abre a porta com cuidado para não me assustar.
— Um guarda acabou de comunicar que a rainha está solicitando sua
presença agora mesmo — avisa.
Coloco um casaco de lã, prendo o cabelo em um rabo de cavalo e
guardo a adaga dourada dentro da minha bota. Todo cuidado é pouco.
— Deve ser para falar do que aconteceu ontem — digo, saindo do
quarto.
Caminho pelos corredores do palácio, cujas paredes resplandecem
com a opulência de tempos passados. A luz suave dos candelabros de cristal
banha o chão de mármore, criando um jogo de sombras que dança nas
imensas tapeçarias que adornam as paredes. Quadros de antigos monarcas
observam silenciosamente o meu percurso, como se estivessem curiosos
com a minha presença.
No entanto, mesmo em meio a tanta grandiosidade, algo no ar parece
estranho. Uma sensação sutil, quase imperceptível, paira como uma bruma
invisível. Meus passos ecoam de forma diferente, como se as próprias
paredes sussurrassem segredos não revelados. Olho para as pinturas, e por
um instante, juraria ter visto os olhos dos retratados se movendo, seguindo
cada passo meu com uma atenção desmedida.
— Pelos campos de Mirassol — murmuro baixinho.
— O que disse, princesa? — pergunta Péricles.
— Nada — respondo.
A atmosfera, apesar de toda a magnificência, possui um toque de
melancolia. As velas tremulam, lançando sombras que brincam com a
minha imaginação. A cada esquina, uma sensação de presença inesperada
faz meu coração acelerar. Sinto arrepios percorrendo minha espinha, como
se estivesse sendo observada por algo que não pode ser visto.
Será que estou ficando louca?
Olho para o lado de fora e vejo a metade da arquibancada oculta pela
noite. A arena, agora em destroços, testemunha a tragédia que se abateu
sobre nós. Pedaços retorcidos de metal e concreto contam a história de um
evento que deveria ser de celebração, mas que se transformou em pesadelo.
A poeira ainda paira no ar, mas a sensação de sobrevivência traz um alívio
momentâneo.
De repente, os guardas reais que nos acompanham param, e ouço o
som das espadas sendo retiradas do coldre. Péricles franze a testa,
percebendo tarde demais que é uma emboscada. O guarda da direita
empurra meu guarda-costas contra a parede, enquanto o outro o atinge com
a arma na lateral de sua barriga.
Grito, pega de surpresa pela traição daqueles que deveriam me
proteger.
— Foge, princesa — ordena Péricles, se livrando da espada e dando
uma joelhada no estômago do guarda que o segura.
Em questão de segundos, o som metálico das espadas se chocando
preenche o ar, criando uma cacofonia de perigo iminente. Meu coração bate
descontroladamente. Péricles luta desesperadamente para se defender
enquanto os guardas tentam eliminá-lo.
O choque da traição se transforma em um impulso de sobrevivência.
Instintivamente, tento recuar, mas a parede fria do corredor me impede.
Meus olhos buscam por uma rota de fuga, mas a realidade parece
distorcida, e o perigo está por toda parte. A agitação do confronto consome
meus sentidos, e o pavor se mistura com a ira diante da rebeldia perpetrada
pelos próprios guardas reais.
Neste momento, percebo que a segurança que o palácio deveria
proporcionar se desvanece, substituída pela crueldade de uma realidade
sombria que se desenrola diante dos meus olhos. Se dois deles puderam
trocar de lado, acredito que mais guardas também devem ter se corrompido.
Sendo assim, não me resta mais o que fazer a não ser correr entre os
corredores, que agora percebo o quanto eles estão vazios, para tentar chegar
nos aposentos da minha mãe e avisá-la a tempo antes que seja tarde demais.
Viro a esquerda e depois a direita. Será que peguei o caminho errado?
A confusão me deixa desorientada e o medo cresce a cada respiração.
Espero que Péricles consiga tomar o controle da situação e sair da luta ainda
vivo.
Ouço vários estalos do outro lado da parede, e prendo a respiração.
Isso foram tiros? Como é possível? Armas de fogo são ilegais em Mirassol.
Uma janela enorme estoura assim que um pedaço de tijolo a atinge,
espalhando milhares de fragmentos de vidros no chão.
Preciso sair daqui agora mesmo.
Mais tiros são disparados enquanto gritos histéricos tomam conta de
todos os corredores desta ala. Sinto cheiro de fumaça, como se borracha
estivesse sendo queimada dentro do palácio. Estamos sofrendo um ataque
externo e não tenho como descobrir de onde ele vem.
Corro o mais rápido que consigo e bato de frente com um homem
mascarado.
— Vocês de novo? — pergunto, me afastando imediatamente.
— Olá, princesa. Quem é você? A mais velha? A mais nova? A que
desafiou a Rapina? — questiona, caminhando na minha direção. Ele segura
um mangual de ferro batido com detalhes de caveiras nas laterais.
— Eu não quero machucar você — digo, tremendo da cabeça aos pés.
O mascarado dá risada e tenta me acertar com a arma, mas está longe
demais para isso. Percebo que uma tatuagem em formato de pássaro está
marcada em seu braço direito.
— Você fica tão bonitinha assustada — fala ele, lambendo os lábios.
— Quero comer seu corpinho todinho. Posso?
Bato com as costas na cômoda que serve para guardar os produtos de
limpeza. Então, sem desviar dos seus olhos, pego um frasco de spray e
espirro no rosto dele. Ele grita e solta o mangual, limpando os olhos com as
mãos.
— Sua filha de uma puta desgraçada. Não me interessa quem você é.
Eu vou matá-la mesmo assim.
Aproveito que ele está desorientado e tiro minha adaga da bota. Eu
sabia que a usaria a qualquer momento, só não tinha certeza de quando.
— Eu sinto muito — digo, e enfio a arma na lateral do pescoço dele.
Quando puxo a adaga de volta, o sangue esguicha imediatamente,
sujando meu corpo de vermelho. O mascarado cai no chão, falando palavras
arrevesadas, e morre.
— Demetrius! — uma voz grita atrás de mim. — Você vai pagar por
isso!
Olho para a mascarada que corre desesperadamente na minha direção,
quando o vulto de Péricles aparece e corta a cabeça dela fora.
— Menos 7 agora — fala ele, sorrindo para mim.
Assustada, dou um forte abraço nele.
— Ainda bem que você não está morto — falo, choramingando.
Outro mascarado aparece e lança uma adaga na nossa direção.
Péricles me empurra para a parede e a arma passa zunindo entre a gente.
Antes que o agressor pudesse pegar outra adaga, lanço a minha
dourada na sua direção e acerto bem no centro do peito dele. Ele arregala os
olhos e desaba no chão.
— Boa, princesa — elogia Péricles, admirado.
Pego sua adaga do chão e mais outro mascarado surge no corredor,
avançando com uma espada nas mãos. Péricles tira a sua do coldre e parte
para o duelo, sem pensar duas vezes.
Enquanto observo a luta, alguém puxa meu rabo de cavalo e caio de
costas no chão. O baque do meu corpo colidindo deixa claro que o tombo
quase quebrou uma das minhas costelas, pois respiro e sinto dores nas
laterais.
Pisco várias vezes para afastar a sensação desorientada dos meus
olhos. Tudo está embaçado, como se uma película de plástico borrada
cobrisse minha visão.
— A princesa, não! — ouço Péricles gritar e um tiro ecoa em seguida.
O corpo da pessoa que me derrubou cai sobre mim, morto. Afasto
quem quer que seja o mascarado e tento ficar de pé. No momento que olho
para o meu guarda-costas, ele é atingido na coxa esquerda, e cai de joelhos
no chão. Ainda desorientada, arremesso a adaga emprestada e ela acerta o
braço do agressor que luta com Péricles. Isso dá tempo suficiente para para
Péricles o atingir com a espada sobre a barriga, rasgando o seu corpo até a
metade do peito. O mascarado cai morto no chão.
— É melhor a gente sair daqui — fala ele, mancando um pouco.
Corremos mais alguns corredores e vejo o quão destruídos eles estão.
O grupo de Rapina não só veio para matar, mas para apagar toda a história
que a estrutura do palácio contava.
— O que eles querem? — pergunto, ofegante.
— Sangue e vingança — responde ele.
Assim que alcançamos os aposentos da minha mãe, percebemos que
ele está vazio. Abro a porta que leva ao quarto principal da rainha e dou um
grito. O corpo do mordomo real, Fredd, está todo perfurado e jogado no
canto.
— Fredd! — chamo seu nome, ajoelhando-me ao seu lado. — Ah,
Fredd. Eu sinto muito. Muito mesmo — digo, com lágrimas nos olhos.
Por outro lado, Fredd esboça um sorriso para mim e sussurra:
— Continue. Sendo. Uma. Boa. Menina. Sara — finaliza, e a luz dos
seus olhos se apagam.
CAPÍTULO 76

A morte de Fredd me deixa paralisada. Não consigo sair do lugar. É


como se minhas pernas estivessem congeladas naquele momento
inimaginável de tristeza, raiva e sofrimento. Ouço mais tiros em algum
lugar do palácio, mas não dou a mínima. Não consigo mais prestar atenção
em nada, a não ser no corpo desfalecido do mordomo real, companheiro de
meu pai de longa data.
Seus olhos, outrora cheios de vivacidade e lealdade, agora refletem o
vazio da inexistência. Fredd, cuja presença era uma constante na vida
palaciana, jaz inerte diante de mim e nunca mais terá a liberdade de respirar.
Sinto um nó na garganta, e as lágrimas começam a escorrer pelos
meus olhos.
A tragédia continua se estendendo pelo palácio, mas meu mundo
parece ter desacelerado. A cada batida do meu coração, marca uma perda
irreparável. A realidade cruel se instaura, e o luto se torna algo pessoal.
O som distante dos tiros se mistura com o silêncio pesado que
preenche os corredores deste lado do palácio. Quantos mascarados estão
armados? O que eles querem afinal? Não acredito que todo esse transtorno
seja por cada das mortes que aconteceram do lado de fora.
Ainda atordoada, meu olhar se fixa no rosto sereno de Fredd. Seu
sacrifício, sua lealdade agora são marcas indeléveis na trama da história da
família real. Farei o possível para que seu legado jamais seja esquecido do
nosso meio, claro, se eu sobreviver.
Madame Zahir aparece completamente ensanguentada.
— Pelas flores de Mirassol, você está bem — expressa ela, me
abraçando bem forte.
Limpo os olhos com as costas da minha mão.
— Onde estão os outros? — questiono, aliviada por vê-la bem.
— Todos foram para a sala do trono. É o lugar mais seguro do
palácio.
Péricles tira uma arma de dentro do uniforme e confere se ela está
carregada.
— Onde você arranjou uma dessas?
— O rei solicitou que cada guarda-costas responsável pela sua família
portasse uma arma de pequeno porte, por precaução — explica, guardando-
a no bolso. — Certo. Leve a princesa até a sala do trono enquanto verifico
se há mais alguém por aqui que precise de ajuda — pede ele, cobrindo o
corpo de Fredd com uma toalha azul marinho.
— Não, Péricles. Nós não sabemos lutar — rebato.
Madame Zahir franze o cenho.
— Quem disse que eu não sei lutar, querida? — questiona, parecendo
desafiar a minha reclamação. — Todos os funcionários são treinados para
defenderem a família real.
Confesso que essa revelação me surpreende.
— Rápido, movam-se.
Madame Zahir retira uma faca pontiaguda do bolso e segura minha
mão, guiando-me para fora dos aposentos de minha mãe.
— O que aconteceu com você?
— Tive que enfrentar dois guardas para sobreviver.
Fico boquiaberta.
— Jamais imaginei que a senhora seria capaz de algo assim.
Madame Zahir esboça um sorriso travesso.
— É matar ou morrer, princesa. Este é o mundo em que vivemos
agora.
Dobramos à direita, adentrando o terceiro salão principal, e eu levo
um susto. Vários corpos sem vida estão espalhados pelo chão, tanto
funcionários do palácio quanto dos mascarados.
— Não acredito que isso está acontecendo de verdade.
— Alguém deixou eles entrarem. Alguém nos traiu, princesa.
Madame Zahir escolhe o corredor da direita e para logo em seguida.
No final do corredor, avisto uma mulher segurando um machado
colorido. Ela se movimenta lentamente, dando um passo de cada vez, como
se estivesse participando de um desfile de moda macabro. Um sorriso
perverso adorna seu rosto, e o olhar penetrante transmite uma sede
avassaladora de vingança. A maquiagem, originalmente em tons de rosa e
azul, está agora completamente manchada, enquanto a generosa camada de
batom vermelho em seus lábios se desfez em borrões. Seu cabelo, dividido
em duas partes e preso no alto da cabeça, se assemelha a dois rabos de
cavalo, conferindo-lhe uma aparência que evoca a imagem de alguém que
acabou de escapar de um hospício.
— Deixa essa comigo, princesa — fala minha estilista, se
posicionando na minha frente.
A estranha solta uma gargalhada histérica e em seguida expressa um
choro teatral.
— É a primeira vez que me vejo enfrentando uma velha safada —
diz, com sua voz me causando arrepios. — Não é justo para mim. Como
vou lidar com minha consciência depois?
Retiro a adaga da bota, pronta para intervir caso Madame Zahir
precise de ajuda.
— Não temos intenção de ferir você, arco-íris zoado. Apenas
queremos atravessar o corredor em paz — comunica minha estilista,
tentando suavizar a situação.
A estranha joga a cabeça para trás e se contorce um pouco.
— Terão que me vencer primeiro, panela velha — afirma ela,
ajustando a postura e investindo com ferocidade contra Madame Zahir.
No entanto, mesmo considerando a idade um pouco avançada, minha
estilista desvia com agilidade e desfere um golpe certeiro em direção ao
braço da agressora. A faca corta a superfície da pele da estranha, que grita
de raiva e age como um animal desgovernado, brandindo o machado no ar
diversas vezes, tentando encontrar uma abertura para acertar alguma parte
do corpo da minha defensora.
Permaneço paralisa.
A mulher estranha, com seu machado reluzente nas mãos, enfrenta
Madame Zahir que empunha a faca com destreza. O brilho metálico das
armas reflete a medida que são iluminadas pelas luzes dos candelabros,
enquanto os movimentos ágeis das combatentes criam uma dança mortal. A
mulher da maquiagem borrada, com seus olhos penetrantes, parece emanar
uma força sobrenatural, contrastando com a experiência calculista da minha
estilista. Os movimentos são rápidos, imprevisíveis, e a destreza das
adversárias me deixa completamente envolta em tensão.
Reflito se devo ou não interferir, mas tenho medo de acertar a
Madame Zahir.
Meus olhos se fixam na luta, incapaz de desviar o olhar. A adrenalina
corre pelas minhas veias, enquanto uma agonia crescente se estende dentro
de mim.
Percebo quando a estranha bate com o cabo do machado no rosto da
oponente, deixando-a desnorteada, e dá uma rasteira violenta que derruba
seu corpo no chão. Sem perder tempo, ela levanta o machado e se prepara
para decepar a cabeça da inimiga.
— Nãããão — grito. Eu não posso permitir que ela mate minha
estilista.
Desesperada, corro em sua direção e me lanço contra o seu corpo,
colidindo com força no chão. A estranha, notavelmente mais robusta e
pesada que eu, rapidamente domina a situação, prendendo-me com
agilidade. Em um instante angustiante, ela retira uma faca ornamentada
com glitter do bolso e se prepara para perfurar meu coração. Contudo, o
machado que ela empunhava zune entre nós, decapitando-a de forma
abrupta.
Atordoada, ergo o olhar e testemunho Madame Zahir segurando o
machado firmemente em suas mãos. Um sorriso se desenha em seus lábios
quando, de repente, uma flecha acerta em cheio sua testa, fazendo-a cair
morta no chão.
— Nããããããããããããão — grito, empurrando o corpo da decapitada de
lado.
Fico de pé, com bastante dificuldades, e meus olhos encontram
Rapina parada do outro lado do corredor. Ela joga o arco e flecha no chão e
saca uma faca de combate toda preta.
— Com você, eu quero mano a mano — fala, cheia de ódio.
Não compreendo plenamente o que estou sentindo, mas sinto uma
intensa vontade de destruí-la. Sinto uma urgência insaciável de exterminá-
la, de eliminar Rapina de maneira implacável, fazê-la padecer como nunca
experimentou antes.
Ao cogitar um ataque, Péricles me empurra bruscamente contra a
parede e avança rapidamente em direção da adversária. Observo o sorriso
selvagem que ela abre, pronta para também enfrentá-lo. Assim, os dois se
chocam, dando início a uma batalha intensa marcada por golpes fatais e
bloqueios ágeis.
— Eu te dei uma chance, Rapina — diz Péricles, com a voz
embargada. — Mas você não quis aproveitá-la.
Rapina ri histericamente, mesmo diante de uma sequência de socos
desferidos por Péricles. A atitude que ela exibe é estranha e paranoica.
Parece que está completamente fora de si.
Péricles consegue desarmá-la, arrancando a faca de suas mãos, e a
derruba no chão com um estrondo ensurdecedor. Há algo errado com ela?
Parece completamente alheia ao que está acontecendo. É como se a mente
dela estivesse transitando para um mundo que não é real, como se tudo não
passasse de uma simples brincadeira.
— Você é igualzinho a seu pai — fala a mascarada, cuspindo sangue
no chão.
Pericles para de agredi-la e lança um olhar acusador em sua direção.
— É verdade. Eu sou igual ao meu pai — confessa, tirando a arma do
bolso. — Porém, há um detalhe. Ele matava por dinheiro, eu não —
comenta, apontando para ela. — Diz a ele que mandei lembranças.
E então, dispara três vezes no rosto dela.
CAPÍTULO 77

Assim que Péricles neutraliza Rapina, meus olhos se fixam no corpo


inerte de Madame Zahir no chão, e uma crise de ansiedade toma conta de
mim.
Pressiono meu corpo contra a parede, buscando regular minha
respiração. O mundo ao meu redor gira, e sinto a necessidade de vomitar. A
culpa é minha. Todos que se relacionaram de alguma forma comigo estão
sendo vítimas de assassinato. Não pode ser. Isso está relacionado
diretamente comigo.
Péricles segura meu rosto com as duas mãos e olha dentro de meus
olhos.
— Princesa, me escuta. Você precisa ser forte agora. Eu preciso que
você colabore comigo, tudo bem? Nós vamos conseguir sair juntos dessa.
Eu prometo.
Afirmo com a cabeça, embora meus pensamentos estejam longe do
palácio.
Com todo o cuidado, ele segura na minha mão e me conduz para o
corredor seguinte. Se Péricles não aparecesse a tempo, talvez eu estaria
morta agora.
Observo os próximos corredores e o que eu encontro é um cenário
apocalíptico. Os mascarados deixaram sua marca de destruição, cortinas
estão em chamas, a fumaça é sufocante, e o cheiro de queimado permeia o
ar. Manchas de sangue salpicam o chão e tingem as paredes, deixando
explicito a violência que assolou esse lugar. As paredes agora estão
rachadas e desfiguradas, irradiando o vandalismo cometido por eles.
No meio da escada, assisto dois guardas reais, até então aliados,
engajados em uma luta corporal intensa. Percebo que os movimentos são
executados com maestria enquanto a agilidade de suas espadas cortam
pedaços de quadros e cortinas.
— Precisamos ajudá-lo — digo, puxando meu guarda-costas para o
lado oposto.
Ele me puxa de volta.
— Não, não podemos. Não sabemos quem está no nosso time e quem
é o traidor.
Noto que a escada estreita se torna um campo de batalha improvisado,
e o equilíbrio precário dos combatentes é testado a cada deslocamento. Os
uniformes dos guardas estão manchados de suor, e seus rostos exibem
determinação e seriedade. A luz que penetra pelas janelas altas destaca os
movimentos rápidos e os flashes das lâminas, criando uma atmosfera de
tensão e urgência.
Péricles me guia pela escadaria da esquerda quando alguém me
chama pelo meu nome. O rapaz que surge na entrada da sala de descanso
não me é estranho, mas não consigo lembrar quem ele é.
— Sou eu, Aranwe — ele fala, desviando dos destroços no chão.
— Não se aproxime — pede Péricles, apontando a espada para ele.
— Eu conheço você — digo.
O estrondo de uma explosão ressoa através do palácio, fazendo as
pilastras tremerem sob o peso do teto abobadado.
— Trope, lembra? — A voz familiar de Aranwe corta a confusão. —
Cantava junto com Kaida e Galadriel.
— O que faz aqui? — questiono, ainda surpresa.
— Vim para ajudar. Estávamos na floresta quando ouvimos os sons
dos tiroteios do lado de fora dos muros. Oed nos trouxe até aqui.
— Oed está aqui?
— Sim. Ele e toda a nossa turma.
Subitamente, um mascarado salta em direção a Aranwe, que se
esquiva habilmente, escapando do ataque, e retalha o agressor com um
golpe certeiro no pescoço.
— Acho que ele está do nosso lado — comento, lançando um olhar
significativo a Péricles.
Dois mascarados e um guarda real se aproximam e Aranwe bloqueia a
passagem.
— Vão, corram. Deixe que eu cuide deles — ele grita, retirando duas
facas de vidro de seu bolso.
Sem hesitar por mais um segundo, Péricles me arrasta em direção às
escadas.
Enquanto subo, vejo o guarda real tentando atacar Aranwe, enquanto
um dos mascarados se aproxima cautelosamente. Num piscar de olhos,
percebo o segundo mascarado caído no chão com uma das facas de vidro
cravada em seu coração.
Assim que Péricles abre a porta do corredor que leva para a sala do
trono, um estrondo ensurdecedor repercute, e um pedaço de parede se
rompe, desabando sobre nós.
Grito de surpresa, tentando me proteger dos destroços que caem ao
meu redor. A poeira se eleva no ar e obscurece a minha visão, enquanto
tento me abrigar da queda.
Pisco com dificuldades, tentando tirar a irritabilidade dos meus olhos.
— Acho que fraturei o braço — resmunga Péricles, caído no chão.
Metade do seu corpo está aprisionado debaixo do concreto. — Agora estou
encrencado.
— Pericles, você está bem? — pergunto, tentando liberar o pedaço de
bloco que o cobre, mas sem sucesso. Ele é demasiadamente pesado. — Não
consigo movê-lo.
Ele aponta para o corredor à direita.
— A sala do trono é para aquele lado, Sara — diz, pronunciando meu
nome pela primeira vez. — Salve-se.
Lágrimas escorrem dos meus olhos, incrédula com o que está
acontecendo. Não posso permitir que ele morra aqui. Não depois de tudo o
que fez por mim. Devo minha vida a ele. Sem Péricles, tudo seria
completamente diferente.
— Não vou abandoná-lo.
— Princesa…
— Cala a boca! Cala a boca! Cala a boca! — repito várias vezes,
deixando claro minha decisão.
Ele abre um sorriso fraco, como se estivesse prestes a desmaiar.
— Acho que você vai sim — diz, fechando os olhos.
Antes que eu possa perceber, um saco preto cobre meu rosto. Tento
respirar, mas não consigo. Alguém amarra meus punhos atrás do corpo e me
arrasta com brutalidade para longe dali.
CAPÍTULO 78

Sou arremessada no chão e o impacto machuca meus joelhos.


— Me solta! — grito desesperadamente, debatendo-me contra as
amarras.
Alguém retira o saco preto que encobria minha cabeça e ajusta uma
mordaça na minha boca, me silenciando imediatamente. Uma luz intensa
penetra meus olhos com intensidade, enquanto tento concentrar minha
atenção no local para onde fui levada.
E então, descubro que estou diante da sala do trono.
Reparo nos pesados cortinados de veludo azul que adornam as janelas
altas, permitindo que a luz azulada da lua se infiltre, criando um jogo de
sombras pelas paredes. O chão de mármore polido reflete o brilho dos
candelabros de cristal que pendem majestosamente do teto abobadado. O
trono em si é uma arte esculpida em madeira nobre, enfeitada com detalhes
intrincados e incrustações de pedras preciosas. Sua presença domina o
ambiente, erguendo-se sobre um estrado elevado que irradia poder, status e
autoridade.
De repente, meu coração ameaça um desmaio.
Ao redor da câmara, próximos às paredes, todos os membros da
minha família, e os agregados, estão ajoelhados, igualmente amarrados e
amordaçados. Um grupo de indivíduos mascarados mantém-se em postura
firme, segurando suas armas que reluzem à luz das tochas que iluminam a
sala.
Entro em desespero. O que está acontecendo aqui?
Cássia não consegue conter as lágrimas, e Rubens a conforta com um
olhar solidário. Donabella e Erasmos mantêm os olhos fechados, como se
estivessem conectados com um plano além do visível. Meu tio Robert exibe
ferimentos em seu rosto, enquanto a tia Dangarla, com os olhos arregalados,
direciona seu olhar na minha direção. Reparo que seus filhos, Charles e
Mendy, não estão presentes.
Do outro lado da sala, o Conde e a Condessa estão posicionados,
junto com os Marqueses, o Capitão Hawise e meu provador de comida,
Grannus.
— Porra, bando de filhos da puta do caralho! — ouço a voz do meu
primo Léo. — Tive que usar o plano C para acabar com todos vocês,
miseráveis.
Ele aparece no meu campo de visão, empurrando minha mãe com
uma arma encostada nas costas dela. A rainha não parece estar com medo, o
que me deixa bastante preocupada. Ele a leva até o trono e ordena que ela
se sente, permanecendo calada.
— Parece que agora você perdeu os modos, Léo. Lamentável —
comenta minha mãe, esboçando uma expressão enojada para ele.
Léo dá um tapa no rosto dela e ignora o seu comentário.
— Primeiro, tentei usar a tática de envenenamento, mas alguém teve a
brilhante ideia de contratar provadores para a família real — continua,
revirando os olhos. — E puta que pariu, contratar um provador imune ao
veneno? Foi um golpe bastante baixo, emmm? — reconhece, deixando
minha mente em um turbilhão de pensamentos.
Como assim? Léo é o assassino? Por que? E como ele sabe que
Grannus é imune ao veneno?
— Ave número 8, corte a garganta dele, por favor — ordena meu
primo.
Uma mulher mascarada abre um sorriso selvagem e se aproxima de
Grannus com uma faca de ouro nas mãos.
Não. Não. Não. Começo a me debater enquanto tento gritar através da
mordaça.
— Espera — pede, indo até Grannus. Ele segura o queixo do meu
provador e o encara profundamente. — Acho que você será necessário para
mim, meu garoto — decide, dando de ombros. — Mudança de planos.
Deixa ele vivo, por enquanto.
Sinto um alívio tomar conta de mim.
— Agora, meu estimado Erasmos, parece que você e Donabella terão
a honra de compartilhar o palácio comigo, caso sobrevivam — prossegue
seu discurso macabro. — Determinei que um grupo de aves provocasse um
incêndio em sua casa de campo. E para quê? Para absolutamente nada. Os
pombinhos estavam a caminho do baile da Dança da Meia Noite —
argumenta, demonstrando certo aborrecimento. — Seus tolos! Apenas
conseguiram me fazer perder tempo. Certamente, seus empregados vieram
nos trazer a notícia, mas parece que algo deu errado, pois acho que eles não
sobreviveram — relata, usando um tom de voz teatral.
Meu coração bate descompassado.
Então, ele confessa que tentou matar minha irmã e meu cunhado.
— Minha amada princesa Saravana, como tem passado? Quero
assegurar-lhe que não possuo nenhuma relação com a explosão em seu
quarto, eu juro. Por mais difícil que seja acreditar, jamais me associaria a
um grupo de rebeldes pervertidos — tagarela, lançando um olhar
misericordioso para mim.
Ele não está bem. Suas pupilas estão notavelmente dilatadas, e suas
palavras são pronunciadas debilmente. A postura desalinhada de seu corpo
reflete o quão fora de si ele se encontra, como se houvesse um traço
psicopata em sua maneira de se expressar.
— Admito que tentei eliminar todos vocês na noite passada, é
verdade, fui eu — declara, colocando as mãos sobre o peito. — Mas que
família resistente, vocês! Nenhum dos sangues de prata cedeu sob pressão
— ele parece chateado. — Em contrapartida, tenho a oportunidade de
utilizar o incidente na arena como uma forma de persuadir o povo de que
possuo as soluções necessárias para garantir a segurança deles. Planejo
expor minuciosamente todas as falhas da administração atual e apresentar
soluções abrangentes para resolver cada questão — explica, mostrando o
polegar para nós.— Ah, para. Não vão me dizer que meu plano é chato?
Léo simplesmente enlouqueceu de vez.
— E agora, meus queridos e amados irmãos, chegamos a este ponto.
Plano C. Sinto um enorme peso no coração por ter que confrontar os
parentes nos quais não confio e tentar negociar com aqueles que têm algo a
oferecer.
Sinto a falta de ar. Será que estou interpretando corretamente, ou ele
está insinuando que planeja matar alguns membros da nossa família
simplesmente por considerar que eles não são confiáveis o suficiente aos
olhos dele?
As portas duplas do salão se abrem, revelando a figura de Arnaldo
vestido em trajes hospitalares, acompanhado por Louise. Os cabelos de
minha amiga estão desgrenhados, e suas vestes exibem rasgos nas laterais.
Assim que notam a situação, ambos interrompem seus passos.
— Arnaldo, meu caro e adorável Arnaldo. Finalmente você chegou
para a festa do pijama mais insana que terá na sua vida — murmura Léo,
abrindo os braços.
— O que está acontecendo aqui? — pergunta meu cunhado,
parecendo confuso devido à medicação.
Meu primo bufa.
— Tenho que dizer que você é o homem mais chato e insuportável
que já conheci na vida — suspira. — Infelizmente, Téssia descobriu isso
tarde demais, mas conseguiu se livrar a tempo das garras do marido idiota
que ela tinha — zomba, apreciando a situação. — Você sempre foi o
primeiro da minha lista — revela. E então, acerta um tiro na testa dele,
matando meu cunhado instantaneamente.
Puta que pariu.
Há uma pequena agitação na sala, mas Léo dá um tiro para cima e
todos ficam imediatamente em silêncio.
— Silêncio, cachorrada — xinga, com os olhos arregalados.
Seguro o choro, evitando olhar para o corpo de Arnaldo morto no
chão. Por mais que eu não gostasse dele, não desejava que tivesse um fim
tão trágico assim.
— Aaaaaaaah, acabou a graça? Poxa. Agora todo mundo sabe quem
são os assassinos do palácio — confessa Louise, gargalhando como se fosse
uma louca. — Oi, Sara. Como está se sentindo hoje? Saiba que eu queria ter
matado você há muito tempo, mas uma pena que o Léo não deixou.
— Deixa ela em paz, Lolo — repreende meu primo.
Não. Ela não me trairia assim. Não. Isso não é verdade.
Louise se aproxima de mim e segura a minha cabeça.
— Sabe aquele dia que você gritou comigo e com a Fafá? Pobre Fafá
— relembra, olhando para o teto. — A minha vontade era de enfiar uma
faca no meio da sua garganta e escutar você gritar até cair mortinha no chão
— expressa, com os olhos cheios de ódio. — Socorro! Socorro! Alguém me
ajuda, por favor. Eu estou morrendo. Eu estou morrendo! Eu não posso
morrer agora, porque ainda não casei com o caipira do Torneio. Eu. Não.
Posso. Morrer. Agora.
Sinto um aperto enorme no meu coração. Nunca passou pela minha
cabeça que Louise poderia ser a assassina do palácio. Nunca. Depois de
tudo o que enfrentamos juntas. Lembro de suas palavras de conforto, dos
abraços apertados e de momentos únicos que passamos durante os anos da
nossa amizade. Então, nada disso era real?
— Você é folgada, Lolo. Se Sara não estivesse amordaçada, tenho
certeza que perderia os bons modos e atacaria você.
— Eu gostaria que ela investisse contra mim, Léo. Descontaria toda a
minha raiva com determinação. Não soltaria o pescoço dela nem por um
segundo, sufocando-a até a morte — lança suas palavras furiosas na minha
direção. — Quer ver sua amiguinha de novo, princesa?
Chega, isso é demais para mim.
Mesmo sabendo que não tenho condição alguma, me debato
descontroladamente, tentando libertar minhas mãos das amarras, mas elas
estão bem apertadas. Louise não pode simplesmente zombar de mim como
se tivesse o controle da situação. Ela não pode zombar da morte de Fadye
como se isso não significasse nada.
— Eu sinto muito, princesa — fala ela, com lágrimas nos olhos. Por
um momento, consigo enxergar a Louise que conheci se manifestando
dentro dos olhos dela. Mas ela some imediatamente.
— Antes de prosseguirmos com a execução da maioria de vocês,
creio que todos merecem saber os motivos por trás desses atos e como
chegamos a essa decisão — articula meu primo, sentando de pernas
cruzadas no meio do salão. O terno azul marinho que ele usa é o único traço
impecável que ele carrega.
Um mascarado traz um copo de água para ele.
— Obrigado, querido — agradece, bebendo um gole.
— Eu quero contar a parte da traição — pede Louise, se aninhando
nele.
Minha vontade agora é de estrangulá-la na frente de todo mundo.
— Você pode tudo, florzinha — responde Léo, dando um selinho
nela.
Minha mãe se ajeita na cadeira do trono e um mascarado olha feio
para ela.
— Por onde começar, não é mesmo? Bem, sempre nutri esse desejo
pelo trono, algo que pode parecer inexplicável para muitos. Reconheço que
há alguns parafusos soltos na minha cabeça, e sou grato por isso. Se não
fosse por esses detalhes peculiares, talvez não estaria aqui agora,
celebrando essa conquista. Desde a infância, desenvolvi uma fascinação
pela política, buscando incessantemente conhecimento de todas as fontes
possíveis, dentro e fora do palácio, para expandir minha compreensão do
mundo.
“Quando iniciei meu relacionamento com Louise, algo que
surpreendentemente tem raízes muito mais antigas do que vocês possam
imaginar, compartilhei com ela todos os meus anseios e aspirações. Em um
desses momentos de confissão, mencionei meu desejo de se tornar o rei de
Mirassol, custasse o que custasse. Ela, de maneira enigmática, perguntou se
eu estava verdadeiramente disposto a fazer o que fosse necessário para
alcançar esse objetivo. Inicialmente, confesso que não compreendi
completamente o significado de suas palavras, mas procurei agir como se
tudo o que ela falasse fizesse sentido”.
“Louise, tendo passado grande parte de sua vida fora do palácio,
possuía informações abundantes sobre como cometer homicídios sem ser
descoberto. Ela compartilhou detalhes sobre os venenos que eram
ilegalmente comercializados na cidade, adquirindo vários deles para testar
sua eficácia — ele olha para ela e abre um sorriso. — Ela é cruel. Matou
vários animais de estimação até encontrar a dose certa para começar a
envenenar o rei, de maneira que ninguém desconfiasse. Começou com
pequenas doses inseridas nos chocolates que eram encomendados da
cidade, simulando um estado de saúde debilitado em nosso monarca, dando
a impressão de uma idade ligeiramente avançada. Acreditam que ela me fez
matar cinco gatos estrangulados só para tirar o peso da minha consciência e
mostrar que não seria diferente com as pessoas?” — questiona ele,
esboçando uma expressão de espanto no rosto.
“Então, de forma totalmente intrometida, apareceu o Duque com a
proposta ridícula de colocar o filho dele no palácio como o próximo rei de
Mirassol. Coitado de Salomé. O menino nem mesmo desejava fazer parte
dos planos do pai, mas de alguma forma foi persuadido a mudar de ideia da
noite para o dia. Naquele momento, senti uma onda de desespero, pois se o
Duque conseguisse concretizar aquele plano, todo o esforço para eliminar o
rei teria sido em vão. Louise, percebendo a ameaça que ele era, resolveu
eliminá-lo imediatamente, mas tínhamos plena consciência de que sua
família faria de tudo para encontrar o culpado, tornando nossos passos
ainda mais perigosos — ele suspira, refletindo sobre algo. — A sugestão de
eliminar a família do Duque foi completamente dela — acusa, colocando as
mãos para cima, como se fosse inocente.
Lanço um olhar perplexo para Louise. Ainda não consigo acreditar
que a cerimonialista do palácio teve a capacidade de dizimar uma família
inteira da face da Terra pelo simples medo de reconsiderar seus planos
macabros.
— Depois disso, livres do problema que tinha se apresentado, certo
dia, Michelle entrou no meu quarto procurando por um livro e acabou
encontrando a caixa com os frascos de bruxios bolaris escondida debaixo da
minha cama. Dado o seu conhecimento em química, ela compreendeu
imediatamente do que se tratava. Tentei, eu juro, enrolá-la o máximo
possível para não envolvê-la na situação, mas infelizmente, não foi
possível. Ela disse que no dia seguinte contaria para os meus pais e, naquela
mesma noite, subornei alguns guardas para espancá-la até a morte. Não me
alegro nem um pouco de cometer esse crime, e lembrarei da vida de minha
irmã para sempre — choraminga, limpando o nariz com o dorso da mão.
A descoberta sobre meu primo é angustiante. Um psicopata sem
coração, capaz de assassinar a própria irmã para encobrir seus crimes. Que
mundo é esse? Como pode existir tamanha crueldade entre laços
sanguíneos? Em que tipo de realidade sombria estamos imersos, onde a
confiança mais fundamental pode ser traída de maneira tão devastadora?
A frieza dessa atitude é algo desumano, difícil de compreender. Cada
revelação traz consigo uma nova camada de horror, tornando o
entendimento dessa maldade tão perturbador quanto inimaginável. A
realidade agora parece entrelaçada com a maldade pura que antes eu não
enxergava. Como lidar com a verdadeira face do meu próprio sangue?
Busco entender como a linha que deveria unir pode ser rompida de
maneira tão brutal, me deixando atônita diante da complexidade da
situação.
— Quando soube que ela ainda estava viva, naquele mesmo dia,
marquei um encontro com Louise na biblioteca e contei a ela tudo o que
tinha acontecido. De repente, Téssia passou correndo como se estivesse
assustada, e fiquei com medo de ser exposto publicamente, até porque
minha tia gostosona aqui nos mandaria para a forca — continua, apontando
para a rainha. Então, foi assim que minha irmã mais velha se envolveu na
trama toda. — Posteriormente, encontrei sua auxiliadora na saída do
palácio, e ela me lançou um olhar apavorado, como se estivesse ciente de
algo. Naquele momento, tive a certeza de que Téssia tinha escutado nossa
conversa — bufa, parecendo cansado. — Fui buscar mais alguns frascos de
bruxios bolaris na cidade, com Louise, e ao retornar ao palácio, inseri um
bilhete anônimo no diário de Téssia. Nele, ameacei-a, indicando que se ela
revelasse algo a alguém, eu exporia as páginas retiradas do seu diário, nas
quais ela confessava ter realizado um aborto durante o Torneio do Sol
Nascente de Arnaldo e que ele não era o pai.
Agora, estou completamente chocada.
O que ele acabou de dizer? Téssia realmente realizou um aborto?
Meu coração parece prestes a explodir, e a sensação de que vou
morrer antes do prazo estabelecido pelo meu primo me assombra. Suas
revelações estão me deixando em êxtase, mexendo com minhas emoções,
causando tumulto, mas ao mesmo tempo, proporcionando uma certa clareza
aos meus pensamentos.
— Como todos devem estar cientes, no dia seguinte, ela desapareceu.
A morte de Xanthe foi uma consequência direta do veneno que coloquei
propositalmente em seu copo quando deixei o bilhete no quarto de Téssia.
Eu estava ciente de que ela também era a provadora da princesa —
desembucha, aliviado por compartilhar a história. — Agora, vem a
revelação da traição amorosa.
Louise olha na minha direção e suspira com precisão.
— Na noite do baile, estávamos tão ansiosos que optamos por
permanecer no jardim, onde nos deparamos com Fadye e Talles aos
amassos. Percebemos que eles estavam um pouco embriagados, e acabamos
nos entregando ao mesmo estado. Em meio a uma conversa, Talles
mencionou as mortes, e sem pensar, comentei casualmente sobre a
facilidade de conseguir bruxios bolaris na cidade, admitindo que já havia
adquirido em algumas ocasiões. Fadye, que parecia ser a menos afetada
pela bebida, me encarou profundamente e afirmou que precisava descansar.
Foi nesse momento que percebi o que havia feito, Sara. Dei a eles uma
oportunidade para nos incriminar, mesmo sem qualquer prova — admite,
franzindo a testa. — Eu sinto muito. Fui eu quem os denunciou para a
rainha. Eu sou a responsável pela morte de Fadye. E não me arrependo,
pois, se não fosse ela, seria eu.
Sua confissão me deixa tonta.
O peso da traição de Louise é esmagador, uma sombra escura que
paira sobre minha mente. Como alguém pode ser capaz de entregar sua
própria amiga à morte? Me lembro dos momentos que compartilhamos, das
risadas e confidências que pareciam tão genuínas. Como pôde ela, sob a
máscara da amizade, conspirar contra nós?
E assim, não me resta mais nada a fazer a não ser chorar.
Choro pelo dia que tive o prazer de chamá-la de amiga. Choro pelo
dia que ela foi convidada a morar no palácio. Choro por deixá-la entrar na
minha vida tão profundamente. As lágrimas que derramo não são apenas
pela perda das pessoas que faziam parte da minha vida, mas também pela
traição de alguém que eu considerava uma amiga leal. A confiança que
depositamos uma na outra parece ter desabado, deixando para trás um vazio
doloroso. Cada gesto amigável, cada palavra de encorajamento, agora é
manchado pela traição. Me pergunto se em algum momento a nossa
amizade foi real ou se tudo não passava de uma farsa cuidadosamente
arquitetada.
Ainda não consigo conceber totalmente como Louise se tornou uma
traidora, uma peça nesse jogo perigoso que custou a vida da minha melhor
amiga e tantas outras. Como posso seguir em frente sabendo que aqueles
em quem confiávamos podem se revelar tão cruéis?
Olho profundamente nos olhos dela, e ela retribui o olhar. Quero que
ela perceba a intensidade da raiva que pulsa dentro de mim. Desejo que
experimente o arrependimento por ter me traído. Anseio que ela carregue o
sofrimento como uma carga pesada pelo resto de sua vida.
— Na noite do baile, pressionei a recepcionista da ala hospitalar a
desligar os aparelhos de Michelle, ameaçando-a com consequências severas
caso se recusasse. Para minha surpresa, ela cedeu facilmente às minhas
manipulações — conta Léo, ignorando o meu momento de luto. —
Aproveitei a situação para instruí-la a redigir uma carta de demissão
dirigida à rainha, encobrindo minhas verdadeiras intenções.
— Com a recepcionista afastada, me movi nos bastidores para
concretizar meu plano — complementa Louise, desviando os olhos para a
rainha. — Contratei os serviços das aves de Rapina para eliminar qualquer
rastro da nossa participação com relação à saída da mulher. Um passarinho
me contou que ela deixou de respirar no mesmo dia — zomba, soltando
uma gargalhada histérica. — Apenas para esclarecer a princesa, o Felpudo
foi eliminado pela minha raiva. Necessitava descontar minha frustração em
alguma coisa, e ele foi a escolha mais fácil de eliminar.
Filha da puta desgraçada!
— Um dia após o baile, estávamos revisando a reprise do evento
quando nos deparamos com a música de Kaida. Sabíamos que Xanthe,
quando foi à cidade, contou a ela sobre os próximos acontecimentos.
Persuadi a cabeça da rainha, e ela me concedeu o total direito de eliminá-la.
Seus colegas também foram incluídos porque se rebelaram no momento em
que os guardas a capturaram — relata meu primo. — Naquele momento,
confesso que me senti poderoso, percebendo que poderia alcançar tudo o
que desejasse.
“No mesmo dia, fui informado pelas aves de rapina de que você, Sara,
estava perambulando na cidade, e eles me perguntaram se podiam saqueá-
la. Naturalmente, eu permiti, pois eles eram as únicas pontas soltas de que
eu havia ordenado a morte de uma pessoa inocente. No entanto, instruí que
não a matassem imediatamente”.
— Com os provadores de comida e a guarda do palácio sendo tão
vigilantes, percebemos que era necessário mudar de tática. Léo tomou a
decisão de roubar dinheiro dos próprios pais e pagou contrabandistas para
instalarem três bombas na arena, aproveitando o momento em que estava
sendo reformada. Uma das bombas deveria ser posicionada na sacada real
— explica a traidora. — Eu tinha certeza de que vocês estariam mortos no
dia de hoje.
— Mas as bombas foram detonadas fora de ordem, concedendo
tempo para que todo o sangue real conseguisse escapar — Léo parece estar
chateado. — Eu já estava farto de alimentar esse jogo de gato e rato, mesmo
que vocês não soubessem. Assim, antes mesmo de implementar as bombas,
já havia arquitetado o plano C, que seria esse ataque em massa. Eliminamos
os guardas reais menos conhecidos e os substituímos pelo clã de assassinos
mais temidos na zona leste. E agora, todos nós estamos aqui — conclui,
ficando de pé. — Ufa! É um alívio compartilhar meus planos com vocês,
família.
— E sobre o meu chefe de cozinha? — pergunta a rainha, entediada.
Ela apoia a cabeça nas mãos, com os olhos cansados.
Léo caminha até o corpo de Arnaldo e chuta a cabeça dele antes de
responder:
— Ao descobrir que Erasmos e Donabella optaram por não terem
provadores, decidi atingi-los por meio da comida do palácio. Tentei
subornar o chefe de cozinha para que ele colaborasse, mas, infelizmente, ele
não se deixou influenciar. É uma pena. Não podia permitir que pontas soltas
continuassem a respirar livremente por aí.
— A Fadye não estava grávida, princesa — Louise direciona um
gesto com a mão para chamar a minha atenção. — Era só os efeitos do
veneno no organismo dela. No dia em que retornei ao palácio, distribuí a
cada uma de vocês um pedaço de chocolate. Ela provavelmente comeu
tanto a sua parte quanto a dela, intensificando assim a dose de veneno em
seu corpo.
— Desde o início, meus planos envolviam envenenar cada um de
vocês aos poucos, príncipes e princesas, até que o direito à coroa finalmente
chegasse a mim. No entanto, tudo escapou do meu controle. Agora, isso não
tem mais importância, pois as únicas pessoas que realmente me interessam
manter vivas são a rainha, as princesas e o provador supremo. O restante,
estão mortos — avisa meu primo, dando um tiro na cabeça do Capitão
Hawise.
CAPÍTULO 79

Não era a letra V e nem a letra A. Era um duplo L. Léo e Louise.


Michelle tentou me avisar, mas estava desabilitada o suficiente para
entregar o irmão. Sinto uma frustração tão grande dentro de mim. Se eu
soubesse identificar suas marcações, nada disso estaria acontecendo agora,
e Fadye, assim como tantos outros poderiam estar vivos.
Os corpos de Arnaldo e Hawise são arrastados para trás do trono,
sendo ocultados da minha visão. Eles se tornam apenas mais duas vítimas
das decisões cruéis do meu primo psicopata. Ele acha mesmo que, se
dominar o palácio e governar o povo de Mirassol, será capaz de resolver os
problemas assassinando as pessoas? Não, ele não será. Até porque isso não
vai acontecer.
Enquanto vejo que ele está distraído, fazendo seu discurso fúnebre
para os novos Marqueses, me aproximo de Rubens. Com dificuldades, jogo
a minha perna direita por cima da perna dele e direciono meu olhar para
dentro da minha bota. Ele entende o que quero dizer, pois inclina o corpo
para trás e alcança os dedos da mão esquerda no meu calçado.
Olho para o mascarado próximo da gente, esperando que ele veja a
nossa movimentação, mas não vê. Ele está tão focado nas torturas
psicológicas do meu primo que presta mais atenção no outro lado do que
em qualquer outra coisa. Rubens tenta esticar os braços, mas as amarras o
impedem de realizar a pegada. Tento erguer meu pé em direção às minhas
costas, mas perco o equilíbrio e quase caio para frente.
Por enquanto, essa é a única chance que temos de tentar fazer alguma
coisa antes que Léo resolva matar todos nós.
Percebo que a Marquesa tem dificuldades para respirar, enquanto
observa meu primo afiando um punhal amarelado. Louise aplaude
animadamente, oferecendo apoio moral ao namorado desalinhado que
possui. Uma dupla peculiar, quase como se fossem feitos um para o outro,
unidos por características que os tornam verdadeiramente singulares.
Sinto uma fúria incandescente crescendo dentro de mim. As
justificativas de Léo sobre suas ações podem até ecoar em meus ouvidos,
mas as palavras de Louise ressoam como um trovão, repetindo a confissão
de ter tirado a vida da minha melhor amiga. Ela não compreende a
monstruosidade que criou ao admitir esse ato. Até alguns minutos atrás, eu
era simplesmente a princesa Saravana Grinffos, a herdeira do trono de
Mirassol. Agora, após esclarecer minhas dúvidas e revelar seu verdadeiro
eu, ela está diante da pessoa que está destinada a pôr fim à sua existência.
Sou eu quem tirará sua vida. Eu serei a responsável por extinguir sua
respiração.
Por Michelle. Por Fadye. Por Talles. Por Xanthe. Por Kaida. Por
Apricio. Por Fredd. Por Madame Zahir. Por Péricles. Pelos Valktran. Pelo
Felpudo. Pelas 472 almas ceifadas na arena. Pelo meu cunhado Arnaldo.
Pelo capitão da guarda real. Pelo rei Kalayo.
Cada uma dessas vidas clama por justiça, e Louise pagará por cada
uma delas. Farei com que os últimos momentos de sua existência sejam
uma lembrança viva, um tributo a todas essas almas que foram sacrificadas
em nome da minha família. Eu sou Sara, a justiceira do palácio, e a hora da
prestação de contas finalmente chegou.
Rubens consegue pegar a adaga no momento que Léo olha para nós.
— O que vocês estão fazendo? — ele se aproxima da gente como um
foguete.
Erasmos, completamente atordoado com a iminência do que está por
vir, se lança à frente do meu primo. Os dois colidem violentamente com o
chão, caídos de bruços. O grito de alegria de Louise ecoa pelo ambiente,
como se estivesse testemunhando um espetáculo circense.
— Como ousa me desafiar, Erasmos? — questiona o psicopata,
erguendo-se e desferindo um chute nas costas do meu cunhado.
Dois mascarados agarram Erasmos pelos braços, levantando-o com
brutalidade, obrigando-o a se ajoelhar novamente.
— Mata ele, Léo — pede a traidora.
— Sabe de uma coisa? Eu até gostava de você, mas não pode existir
dois favoritos para o povo. Sendo assim, eu lamento. — meu primo ergue o
punhal amarelado e, quando está prestes a baixá-lo sobre o rosto de
Erasmos, um machado explode a janela lateral e crava em seu ombro.
O grito imediato de Léo ressoa pela sala, seguido pelo som metálico
do punhal sendo abandonado no chão. Erasmos, habituado aos desafios do
campo, usa suas pernas para derrubar meu primo enquanto os mascarados
se aproximam da janela para identificar a fonte do machado arremessado.
De repente, uma outra janela explode, e um frasco é lançado para
dentro da sala, liberando uma fumaça verde que rapidamente obscurece
tudo ao nosso redor. O ambiente se torna caótico, e o som cortante de
espadas preenche o ar, me deixando agoniada com a incerteza do que está
prestes a acontecer.
De relance, vejo Félix correndo em direção a um dos mascarados,
acertando-o com um mangual na cabeça e fazendo-o desabar
imediatamente. Oed, ágil como sempre, entra pela janela destroçada pelo
machado, derrubando os dois mascarados que estavam próximos.
— Onde está meu machado? — indaga ele, para ninguém em
específico.
Enquanto isso, Louise desaparece sorrateiramente, abandonando Léo
à própria sorte. Ele, desesperado, tenta remover o machado cravado em seu
ombro, mas a lâmina está profundamente fincada, causando mais
sangramento a cada movimento e tingindo seu terno de vermelho.
Aranwe emerge das sombras nas laterais, abatendo todos os
mascarados com precisão mortal de seu arco e flecha. Péricles surge no
centro do salão e noto que seus olhos estão buscando freneticamente algo
fora de seu campo de visão.
Uma onda de alívio percorre meu ser ao perceber que ele está bem.
Rubens se liberta das amarras e utiliza a adaga para cortar as minhas
também, aliviando-me do desconforto que elas causavam. Rapidamente,
retiro a mordaça da boca e me lanço na direção do meu guarda-costas.
A liberdade é como uma explosão de energia, e agora, juntos, estamos
prontos para enfrentar o que quer que esteja pela frente.
— Péricles! Você está bem! — exclamo, cheia de emoção.
Antes que eu possa alcançá-lo, um indivíduo mascarado me empurra
com força, me fazendo cair no chão e torcer o tornozelo esquerdo.
Um grito escapa dos meus lábios, a dor intensa pulsando no local.
— Minha princesa, não! — ouço o grito desesperado de Ad ecoando
de algum lugar.
Em segundos, o corpo do meu agressor é perfurado por uma adaga no
peito, e ele desaba no chão, sem vida.
Ad surge através da fumaça verde e corre na minha direção.
— Sara. Você está bem?
Beijo seus lábios com urgência. Nunca estive tão aliviada por tê-lo ao
meu lado.
— Estou. Acho que torci o tornozelo — revelo, enquanto ele me
ajuda a me levantar.
— Finalmente encontrei você, princesa — diz Péricles, ofegante.
Um estampido repercute pelo ambiente.
Volto meu olhar na direção do som e encontro Erasmos em uma luta
corporal intensa com Léo, ambos no chão. Meu primo segura a arma, mas
suas tentativas são prejudicadas pelo ombro ferido.
— Alguém precisa ajudar o meu cunhado — exclamo, sentindo a dor
no tornozelo irradiar pelas pernas. — Se não conseguirem tirar a arma das
mãos de Léo, ele pode acabar tirando mais vidas.
Opho, amigo de Ad, aparece no meu campo de visão, dando piruetas
perfeitas enquanto espanca dois mascarados ao mesmo tempo. Há também
duas mulheres com cabelos azuis arremessando dardos em vários dos
nossos inimigos, fazendo-os adormecer imediatamente. Talvez haja um
toque de bruxios bolaris na ponta desses objetos.
— A grande Rapina caiu — alguém grita no meio do caos.
Subsequentemente, todos os mascarados se ajoelham, colocando as
mãos atrás da cabeça, rendendo-se diante da realeza.
Rubens deixa minha irmã Cássia escondida atrás do trono, pega a
arma da mão do meu primo e chuta sua cabeça sem piedade, estourando os
lábios dele.
Léo dá risada de forma macabra antes de lançar um olhar afiado para
o marido da minha irmã.
— Ah, Rubens, faça-me o favor — ele zomba, caído no chão. —
Depois de todo esse tempo bancando o babaca do palácio, agora você quer
ser herói?
Meu cunhado, com uma expressão sombria nos olhos, aponta a arma
na direção dele e diz:
— Você ouviu, não ouviu? A grande Rapina caiu. E você vai junto
com ela — e então, dispara todas as balas sobre ele.
CAPÍTULO 80

Foram 79 mortes.
É um número extremamente pequeno se for comparado ao ataque na
arena, mas eram vidas. 57 pessoas faziam parte da rotina do palácio e as
outras 22 eram nossos inimigos. Eles foram cremados, seus corpos
arruinados, esquecidos para sempre no reino de Mirassol. Enquanto os
inocentes estão sendo homenageados neste momento.
Olho para a rainha discursando sobre um palanque improvisado no
meio do cemitério. Ela usa vestes brancas, quebrando a tradição de que só a
família real tinha o direito de serem representados por essa cor. Eldarion,
ainda debilitado, ajusta a altura do drone, garantindo que cada detalhe seja
captado e transmitido ao povo, levando-os para mais perto do momento que
estamos vivendo.
Sinto a mão firme de Ad segurando a minha, uma conexão que
sempre transcende as palavras. De vez em quando, ele me olha de soslaio,
verificando se estou bem.
Suspiro, ainda tentando assimilar a realidade do mistério que chegou
ao seu fim.
A neve ao nosso redor confere ao ambiente uma paz contrastante com
a intensidade das emoções que nos envolvem. Cada floco que cai parece ser
um suspiro da natureza, testemunhando e acalentando os corações
enlutados.
— Caros súditos de Mirassol. É com o coração pesado que
compartilho as palavras que jamais imaginei pronunciar. Nestes últimos
dias, nosso reino foi testemunha de eventos trágicos que abalaram a
essência de nossa sociedade. Lamento profundamente pelas vidas perdidas,
pela dor que assola cada coração e pela escuridão que pairou sobre nós.
“O atentado à arena foi um golpe brutal contra nossa paz. A justiça
está sendo aplicada, e aqueles responsáveis por esse ato covarde estão
sendo julgados e enfrentarão a mais severa das penalidades. A morte dos
inocentes não será esquecida, e suas almas serão lembradas em nossas
preces — expressa minha mãe, cabisbaixa. — Mas, infelizmente, a tragédia
não se limitou à arena. Há dois dias, fomos novamente alvo de um ataque
dentro dos muros do palácio, onde perdemos mais 79 almas, incluindo o
Sub-Príncipe Arnaldo e o valente Capitão da Guarda Real Hawise. Este
golpe atingiu-nos em nossa própria casa, deixando-nos com corações
partidos e um vazio insondável”.
“Quero prestar minha homenagem a todos aqueles que perderam suas
vidas nessas circunstâncias terríveis. Suas memórias serão eternizadas em
nossos corações, e juramos honrar seu legado restaurando a paz e a
segurança em nosso reino. Agradeço aos bravos defensores, Sub-Príncipe
Rubens, Erasmos e Ad, cujas ações corajosas ajudaram a conter a ameaça
que assolou nosso lar. Suas vidas foram marcadas pela coragem diante do
perigo, e suas ações refletem a verdadeira essência da nobreza e da
lealdade”.
“Neste momento, permaneçamos unidos, amparando-nos mutuamente
em meio às adversidades. Juntos, ergueremos Mirassol das cinzas e
restauraremos a luz que sempre brilhou sobre nossas terras. Que a força dos
que partiram nos guie, e que a esperança floresça em nosso caminho. Que
Mirassol se recupere e se torne, novamente, o refúgio de paz e prosperidade
que todos merecemos” — finaliza, limpando as lágrimas com um lencinho.
Enquanto mantenho meu olhar fixo no céu, observo o momento
solene em que 529 pombas são soltas, suas asas brancas cortando o ar como
mensageiras de paz. Cada uma delas representa uma vida que se foi, uma
história que chegou ao fim de maneira abrupta e injusta. Seus voos
entrelaçam-se no ar, formando padrões simbólicos que parecem carregar as
memórias daqueles que partiram.
Uma sensação de paz, misturada à saudade, preenche meu coração.
— Que essas pombas, agora livres, levem consigo as almas de nossos
entes queridos e amigos para um lugar onde a dor e o sofrimento não têm
morada — sussurra Ad, beijando o topo da minha cabeça.
CAPÍTULO 81

Louise foi pega do lado de fora e condenada à prisão perpétua. Por


algum motivo específico, minha mãe resolveu deixá-la viva na prisão.
Talvez por causa da proximidade com a família dela ou algo assim.
— Como estou? — pergunto para Calantha, prima de Ad.
— Fabulosa, princesa — responde ela, sorrindo para mim.
Victorie, a irmã de Fadye, entra no meu aposento completamente
agitada.
— Sara, o príncipe já está reclamando — avisa, segurando a barra do
vestido amarelo.
— O nosso casamento foi adiado por duas semanas, pequena. Diga a
ele que esperar mais uns minutinhos não vai matar ninguém — digo,
retocando a maquiagem ao redor dos meus olhos.
Vic sai correndo enquanto fico de pé.
Diante do espelho, meu olhar se fixa no reflexo que devolve a
imagem de uma noiva prestes a embarcar na jornada de uma vida inteira. O
vestido de noiva, meticulosamente confeccionado pelas mãos talentosas de
Madame Zahir, me envolve como um sonho realizado.
Sinto vontade de chorar, mas engulo o choro. Não quero borrar minha
maquiagem antes do tempo.
Os detalhes do vestido, dignos de uma obra de arte, capturam minha
atenção. Noto que rendas delicadas se entrelaçam, formando padrões
intrincados que adornam o corpete, ressaltando a beleza singela da minha
silhueta. O tecido fluído cai em suaves camadas, criando uma cauda que
seguirá meus passos com graciosidade. O branco puro ilumina o ambiente,
refletindo a pureza e a esperança que este dia representa. Cada ponto, cada
costura, é uma expressão de dedicação e carinho, como se Madame Zahir
tivesse costurado não apenas tecido, mas sentimentos e desejos.
Pego um guardanapo e seco o canto dos meus olhos.
— Como ela faz falta na minha vida — digo para mim mesma.
Os toques finais do vestido se revelam nos detalhes: um véu leve que
emoldura meu rosto e um sutil brilho nos bordados que reluzem à luz.
Neste instante, diante do espelho, não me vejo só como uma noiva.
Vejo a materialização de uma menina que está prestes a se tornar uma
mulher. Meu futuro com Ad será traçado e selado para sempre. Terei
direitos e escolhas como mãe. Serei livre dos dogmas da minha família. É
um processo que exigirá mudanças na minha vida.
Vomina abre a porta com cuidado e entra, como se não tivesse nada
para fazer do que ver a noiva mais linda do reino de Mirassol.
— Pelas flores da Zona Leste, princesa! Você está linda — elogia,
com lágrimas nos olhos. — Tenho certeza que Fadye… desculpa.
— Eu também tenho — comento, demonstrando compreendê-la. —
Fadye está vivíssima dentro do meu coração. A senhora acredita?
Ela faz que sim com a cabeça.
— No coração de todos nós, princesa.
— No meu também — fala o pequeno Fauno, surgindo do nada.
Dou um abraço apertado nele.
— Olá, campeão. Gostou do pudim de pão que mandei entregar no
seu quarto? — pergunto, bagunçando o cabelo dele.
— Sim, princesa. Estava muito bom!
— Sara, Fauninho. Você tem todo o direito de me chamar de Sara —
aviso.
A porta do meu quarto se abre novamente, mas desta vez é Péricles
que aparece.
— Pronta, princesa? Ad mencionou que, se eu não a conduzisse, ele
consideraria a ideia de arrancar meu melhor braço. Parece que ele acredita
que a senhorita está ponderando desistir do casamento.
Arrumo os cachos do meu cabelo e saio para fora.
— Vocês, homens, são sempre assim.
Ele estende o braço na minha direção, e eu aceito.
— Vocês, mulheres, têm o costume de demorar uma eternidade para
se arrumarem.
Reviro os olhos.
Sob a orientação de Péricles, percorro os corredores do palácio,
trocando cumprimentos com os guardas reais. Faço questão de saudar cada
guarda, transmitindo-lhes minha gratidão por sua dedicação e proteção.
Muitos deles me recebem com sorrisos calorosos, expressando alegria ao
me ver trajada de noiva. Em seus olhares, percebo um alívio evidente,
resultado do término das ameaças internas que assolavam o palácio.
— Posso fazer uma pergunta?
— Se Ad for o novo rei de Mirassol, eu me recuso ser o guarda-costas
de vocês — reclama, puxando meu braço. Péricles foi promovido a capitão
da guarda real. Sendo assim, ele terá que proteger o futuro rei e rainha do
reino.
— Não quero que você permaneça como meu guarda-costas
eternamente. Se toca.
Ele solta uma risada.
— Me diga, qual é o problema? Mudou de ideia sobre o casamento?
Lanço-lhe um olhar furioso.
— Menos, Péricles. Quero saber sobre sua relação com Rapina. Quem
era ela?
Sinto a tensão nos músculos do seu braço ao ouvir a pergunta.
— Ela era minha prima, princesa.
— E por que a matou daquele jeito?
— Prometi a ela que, se a pegasse fazendo algo errado novamente,
tiraria sua vida. Apenas estava cumprindo minha palavra.
Afirmo com a cabeça.
— Sinto muito.
— Não precisa. Você não tem ideia do que aquela mulher era capaz
— diz, mudando de assunto. — Quem é mesmo aquela morena que estava
no seu quarto?
— A prima de Ad, Calantha. Como ela vai morar no palácio, a
convidei para ser minha nova auxiliadora.
— Ela é bonita.
— E você é safado.
— Nunca disse que não era — confessa, dando de ombros.
— Deixa de ser ridículo, Péricles.
— Você que começou.
Permanecemos em silêncio por um tempo.
Diante da violência que assolou os últimos dias, percebo que,
independentemente de sermos sangues de prata, cidadanos, caipiras ou
mestiços, somos todos seres humanos. A decisão de sermos pessoas boas ou
más está em nossas mãos, independentemente das origens que nos definem.
O segredo reside na escolha que fazemos para moldar o tipo de ser humano
que queremos ser.
Contemplo o exterior através das janelas, observando o sol dourado
que banha os muros do palácio. A transformação da minha visão em relação
ao mundo, tanto dentro quanto fora daquele paredão, é surpreendente.
Parece que há uma conexão mais profunda entre os dois universos.
— O que está passando pela sua mente, princesa? — indaga Péricles,
atraindo minha atenção.
— Estou refletindo sobre tudo o que aconteceu — respondo, me
sentindo perturbada e aliviada ao mesmo tempo. — Sinto muito por ter
duvidado de você.
— Você agiu conforme achou certo. Não precisa se desculpar comigo.
— Você desconfiava da Louise?
— Sim, desconfiava.
— E por que nunca me contou?
— Ela era sua amiga, princesa. Assim como eu também suspeitava de
Fadye, de sua tia Ricarda e do mordomo real. Mas todos, de alguma forma,
estavam ligados a você tão profundamente que resolvi ficar na minha.
Refletindo sobre suas palavras, concordo com um aceno.
— Obrigada, Péricles — agradeço.
Ele me olha encabulado.
— Por que? — questiona, com um semblante perplexo.
— Por não me deixar morrer.
CAPÍTULO 82

Ad está extremamente agoniado, pois bate o pé direito


freneticamente.
Ao entrar no salão, reparo na decoração escolhida pela minha irmã
Donabella. A fraca iluminação rosada cria um ambiente etéreo, destacando
a grandiosidade do espaço e os detalhes enfeitados nas laterais. As paredes
estão adornadas com cortinas opulentas em tons suaves, formando um
cenário elegante e acolhedor. Lustres cintilantes lançam um brilho
amarelado sobre os convidados que ocupam as cadeiras alinhadas, cada
uma cuidadosamente disposta para proporcionar a melhor visão do altar.
Ao centro, ergue-se um majestoso arco de flores e folhagens, uma
obra-prima floral que parece ter brotado diretamente dos jardins mais
exuberantes. A fragrância delicada dos arranjos envolve o salão, trazendo
consigo a promessa de um amor florescente e duradouro.
No altar, noto a presença do meu amado, aguardando com um sorriso
radiante. Percebo que um tapete branco se estende pelo chão, marcando o
caminho que percorrerei em direção a esse momento especial.
À medida que caminho, sinto a felicidade e a emoção se entrelaçando,
criando um nó de tranquilidade no meu peito. Não consigo acreditar que o
meu casamento está acontecendo de verdade. Não depois de tudo o que
temos passado. Lembro de quando eu dizia que não queria manter minha
vida presa a um homem para sempre, e que seria uma mulher extremamente
livre e independente. Mas agora tudo mudou. O amor me encontrou tão de
repente, que não consigo mais me ver longe do carinho de Ad. Não que eu
seja uma pessoa emocionada, longe disso. Mas é que agora descobri que há
pessoas que precisam de pessoas. E eu necessito de Ad da mesma forma
que meus pulmões necessitam de ar.
Os convidados, vestidos com elegância, lançam olhares de
cumplicidade e sorrisos afetuosos na minha direção. Vejo Eudora segurando
uma taça de champanhe, enquanto Aranel manda beijos para mim. Minhas
tias, Ricarda, Dangarla e Marcellyne, juntamente com seus maridos,
conversam calorosamente entre si. Todos os meus outros primos ocupam
uma mesa espaçosa, dedicando-se a uma partida acalorada de Uno. Mendy
dá um tapa na mão de Charles, provocando risadas exageradas do irmão.
Um pouco mais distante, os amigos de Ad, entre eles Opho, Aranwe,
Félix e Oed, observam a rainha com expressões sérias, discutindo assuntos
entre eles.
É uma pena constatar que Oed vai embora do palácio depois do
casamento. Após a morte de Léo, perguntei a ele o que realmente havia
acontecido e como ele encontrou os amigos de Ad. Oed explicou que,
diante da notícia da morte de seu tio, se sentiu tão transtornado que não
conseguia mais permanecer nos limites do palácio. Movido por esse
impulso, decidiu se afastar e buscar um respiro do lado de fora.
Perambulando pela floresta, deu de cara com o restante da Trope e resolveu
passar uns dias com eles. Agora, ele pretende montar um grupo de
justiceiros do reino, juntando forças com Opho e Aranwe. Seu propósito é
capturar os rebeldes, trazendo-os à corte para que sejam devidamente
julgados.
Seu relato me fez perceber que nossas pesquisas sobre a vida do povo
de Mirassol estavam equivocadas, revelando uma realidade muito mais
caótica fora dos muros do palácio do que eu podia imaginar
Félix mantém sua determinação em seguir o treinamento para se
tornar um guarda real. Diante desse comprometimento, estou considerando
a possibilidade de solicitar a Péricles que o designe como meu novo guarda-
costas. Seria uma alegria tê-lo ao meu lado, especialmente por sua vasta
experiência e conhecimento do mundo exterior ao reino. Além disso, suas
habilidades são notáveis e a amizade já estabelecida com Ad tornariam essa
escolha ainda mais valiosa.
Lanço um breve olhar à minha tia Marcellyne, percebendo o cansaço
evidente em seus olhos. Imagino como deve ser penoso para ela enfrentar a
perda trágica de dois filhos, especialmente sabendo que um deles
desempenhou um papel crucial em toda a tragédia. Torço para que ela
encontre o caminho da paz e consiga seguir adiante.
Grannus troca ideias com meus cunhados, Rubens e Erasmos,
próximos à mesa de comida. A família de Fadye ocupa a mesma mesa que a
família de Ad, e noto que Vomina e a tia de Ad, Evelynne, estabeleceram
uma ótima conexão.
— Essa é a noiva mais linda do mundo — fala Cássia, com lágrimas
nos olhos.
— Não acredito que estamos casando nossa irmã caçula — comenta
Dona, segurando minhas mãos. — Você está radiante, Sara.
Sinto um aperto no coração.
Por mais que eu me sinta feliz, Téssia não está aqui. Desde que partiu,
nunca mais enviou notícias. Minha mãe até despachou um grupo de guardas
reais para procurá-la na cidade, mas ela simplesmente sumiu. Talvez esteja
se esquivando da vida no palácio. Talvez tenha descoberto o verdadeiro
amor em outro lugar.
A música clássica preenche o espaço, elevando a atmosfera a um
patamar mágico. Reparo que o artista que dedilha o piano de madeira
rústica é o meu professor Terafilde.
Eldarion ativa um drone e o lança no ar, explicando a Ad como
funciona. Meu campeão está com uma camada de suor considerável na
testa, limpando a cada trinta segundos com um guardanapo.
— Ad está quase desmaiando — digo, soltando o braço de Péricles.
— É bom que ele desmaiasse mesmo, assim aprende a ser mais
humilde — brinca meu guarda-costas, esboçando um sorriso folgado.
Ao perceber minha chegada, minha mãe se levanta e aciona o sininho
cerimonial. Instantaneamente, um silêncio solene preenche o ambiente. Os
recém-nomeados Marqueses se posicionam ao lado dela, enquanto o novo
Duque e a nova Duquesa lavam suas mãos em uma vasilha de vidro.
Conforme a tradição, são eles os responsáveis por apadrinhar o casamento
da família real, colocando as coroas de bronze sobre nossas cabeças.
Me aproximo de Ad e seguro sua mão. Coitado, ele está tremendo.
— Vai dar tudo certo — sussurro.
— Já deu, princesa — sussurra ele de volta.
Minha mãe olha para nós e abre um sorriso sincero.
— Nobreza reunida, aliados e súditos, é com grande alegria e honra
que me encontro diante de vocês neste auspicioso dia. Hoje, celebramos um
momento de pura luz, amor e união no reino de Mirassol. Minha amada
filha, Saravana, está prestes a iniciar uma nova fase de sua vida, unindo-se
em matrimônio a Ad Pomodoro. Neste sagrado compromisso,
testemunhamos a convergência de duas linhagens, a criação de uma aliança
que perdurará além do tempo.
“Ao longo dos anos, vi Saravana crescer, tornar-se uma mulher nobre,
sábia e repleta de virtudes. Agora, ao entregar sua mão a Ad Pomodoro,
deposito confiança no futuro que eles construirão juntos. Ad, por sua vez,
demonstrou-se digno deste enlace, carregando consigo não apenas o título
de Sub-Príncipe, mas também o amor genuíno por minha filha”.
“Que este casamento seja um farol de esperança para todos em
Mirassol. Que a união de Saravana e Ad inspire a todos nós a buscar a
verdadeira essência do amor e da compreensão. Em meio aos desafios que
enfrentamos, que o compromisso destes dois corações sirva como guia, uma
luz constante que ilumina o caminho mesmo nas noites mais escuras”.
O Duque Dalibor se aproxima de Ad e coloca a coroa na cabeça dele.
Em seguida, a outra coroa é colocada na minha cabeça pelas mãos da
Duquesa Odilia.
— É com grande emoção que abençoo esta união e entrego minha
filha, com todo meu amor, ao cuidado de Ad Pomodoro — finaliza, minha
mãe.
Os convidados vibram enquanto Ad me atrai para si e me beija
intensamente.
EPÍLOGO

Faz cinco dias que me casei, e agora estamos todos na sala do trono
real.
Eldarion conta os votos do povo, enquanto um drone transmite a sua
imagem para todo o reino.
Rubens, Erasmos e Ad estão posicionados ao lado esquerdo da rainha
enquanto eu e minhas irmãs nos mantemos em silêncio ao seu lado direito.
Por mais estranho que pareça, não estou nervosa. Eu simplesmente me
encontro em um momento de paz comigo mesma.
A última conversa que tive com Ad deixou claro o quanto ele estava
preocupado. Disse a ele que, independente do resultado, eu sempre estaria
ao seu lado.
— Eu espero, no fundo do meu coração, que Erasmos não ganhe —
sussurra Donabella, agoniada. — Não pretendemos morar no palácio.
— Vencerá quem o povo considerar o mais apto para a função —
responde Cássia, bocejando de sono.
Não digo nada.
Assumir o papel de novo rei de Mirassol é uma responsabilidade
monumental. O escolhido deverá ser hábil em lidar com desafios políticos e
sociais, buscando soluções que unam em vez de dividir o povo. Além disso,
a sabedoria será uma ferramenta valiosa. Ele precisará tomar decisões
ponderadas, considerando o impacto a longo prazo e buscando o equilíbrio
entre a tradição e o progresso. Cada escolha terá o potencial de moldar o
destino de Mirassol e influenciar a vida de todos os súditos. É uma jornada
de autoconhecimento, de aprender a equilibrar a majestade do trono com a
humanidade do coração.
Eldarion contabiliza o último papel e abre um sorriso.
— Senhoras e senhores, neste momento grandioso, ergo minha voz
em meio à ansiedade que paira sobre o reino. Hoje, aqui, testemunhamos o
ocaso de uma era e o nascimento de outra, em um capítulo que se desenha
nas páginas misteriosas do destino. Atravessamos o véu da incerteza, onde
segredos ocultos dançam nas sombras do passado. No coração dessa
transição, o manto do mistério envolve cada decisão, cada escolha que nos
trouxe a este ponto de inflexão”.
“Em meio aos murmúrios dos ventos que carregam consigo segredos
sussurrados por séculos, preparamo-nos para a ascensão de um novo
regente. A identidade desse líder, um enigma que mantém a mente de todos
envolta em conjecturas, será revelada no momento adequado, quando as
estrelas decidirem alinhar-se e o destino se desvendar diante de nossos
olhos”.
“Que a intriga que permeia este momento nos inspire a olhar para
além das aparências, a enxergar além do visível. Neste limiar entre o antigo
e o novo, há uma promessa de renovação, um renascimento que surge das
sombras da incerteza. A coroa que será conferida ao escolhido, imbuída de
responsabilidades e encargos, será um símbolo do futuro que espreita na
penumbra. Que cada um de nós, cidadãos deste reino, possa abraçar a
mudança com coragem, cientes de que a névoa do desconhecido muitas
vezes guarda tesouros há muito perdidos”.
“Aguardemos, com corações abertos e mentes aguçadas, o desenrolar
deste mistério que, como fios entrelaçados, tece a trama de nossa história.
Que o novo soberano que emergirá das sombras seja guiado pela sabedoria
e pela visão, conduzindo-nos a um amanhã repleto de esperança e
prosperidade. Que a aura do enigma que paira sobre nós seja o prelúdio de
uma era grandiosa, onde segredos revelados transformem-se em histórias
épicas, escritas nas páginas douradas do tempo” — discursa o comentarista,
dando voltas desnecessárias.
Sinto o coração na garganta, enquanto tento controlar minha
respiração entrecortada.
E então, ele anuncia o nome do escolhido, e o resto vocês já sabem.
CAPÍTULO EXTRA

Estou no calabouço.
Assim que chego a cela de Louise, percebo o quanto ela está
desnutrida.
— Sara, o que você está fazendo aqui? — pergunta, com a voz fraca.
Olho dentro dos olhos dela, e suspiro.
— Eu só queria entender, Louise — digo.
Ela demora um pouco para responder.
— Peço desculpas, princesa. Estou completamente perdida. Parece
que tudo se desfez como uma mera ilusão em minha mente agora. Meu
único desejo era realizar os sonhos do Léo, e jamais pretendi que as coisas
escapassem do controle — funga.
Sento no meio do corredor com as pernas cruzadas.
— Fadye não precisava ter morrido, mas mesmo assim você a
condenou.
— Eu não tive escolhas, Sara.
— Sim, Louise. Você teve — acuso, tirando um pedaço de chocolate
do bolso.
— Eu juro que se pudesse voltar no tempo, agiria de maneira
completamente diferente.
Ergo a sobrancelha.
— Então você pretendia me matar também? — indago, mordendo um
pedaço do chocolate. Percebo que ela está com fome, pois olha para a
minha mão de soslaio.
— Não, de jeito nenhum. Léo havia me garantido que a deixaria em
paz.
— Então, por que você afirmou que queria me ver morta? Não faz
sentido.
Ela parece ser pega de surpresa.
— Eu estava sob pressão, descontrolada. Jamais desejava que você
morresse de verdade — justifica, com lágrimas nos olhos. — Você me
perdoa?
Divido o chocolate ao meio.
— Diferente de você, eu não guardo rancor — respondo,
arremessando uma das metades em sua direção.
— Eu não vou comer isso — fala, desconfiada.
Dou de ombros e levo o último pedaço à boca, apreciando o sabor
adocicado.
— Eu perdoo você — conforto o seu coração.
Observando que nenhum efeito adverso ocorreu comigo, ela estende
as mãos e saboreia a outra metade.
— Obrigada — agradece.
Um sorriso se forma em meus lábios, e, decidida, ergo a manga do
meu vestido, expondo uma marca reveladora no meu pulso – uma picada de
cobra. Louise, com os olhos arregalados, interrompe sua mastigação,
incapaz de acreditar na audácia do que acabo de fazer.
— Nem todas as pessoas que são boas com você, tem boas intenções,
Louise — digo, ficando de pé, e me dirijo à última janela do corredor.
Os últimos suspiros de Louise alcançam meus ouvidos, mas resisto à
tentação de olhar para trás.
Então eu paro, observando a desmontagem das estruturas
remanescentes da arena, e sinto um peso se dissipando de dentro de mim.
Por mais que seja difícil acreditar, lembre-se que a verdade muitas
vezes se esconde nas entrelinhas, e os que parecem amigos podem ser, na
verdade, a falsidade disfarçada.
Péricles, capitão da guarda real.
AGRADECIMENTOS
Queridos leitores,
É com imensa gratidão que escrevo estas palavras,
emocionado por saber que vocês concluíram a leitura desta obra.
Agradeço do fundo do meu coração por terem dedicado seu
tempo e energia a mergulhar na história que criei. Espero
sinceramente que tenham encontrado inspiração, entretenimento e
reflexão nas linhas que escrevi.
Vocês, leitores, são o verdadeiro combustível que impulsiona
a minha escrita. Obrigado por permitirem que minhas palavras
façam parte das suas vidas.
Com gratidão, Eddy Valares
Leia também a Saga Moto Ross
Moto Ross — livro 01
Dama da Noite — livro 02
Dama de Bronze — livro 03
Contos do universo Moto Ross
Estagiário do Mal — livro 01
Ciência Perversa — livro 02
Entrevistas e Bastidores — livro 03
Depois das Ruínas (livro explicativo)
Outras obras do Autor
Migalhas Fragmentadas
Morte ao Governo
Eu, Pedro e Beatrize
Entre as Dunas da Esperança
Preta Rios
Através dos meus olhos
Café e outras coisinhas mais
Tudo o que você precisa saber
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FIM

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