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O PRÍNCIPE

O primeiro foi seu pai, o segundo seu irmão, o terceiro foi aquele que a Tereza deu a
mão.
- E o quarto?
- Apenas uma abstração.
Pois desfaço-me da pergunta e a proponho de um outro modo:
- Ter um servo é motivo de desconforto?
Em meu caso, um nobre de nascimento, não chega a ser razão de desconforto. Não
tenho mais causas a descobrir ou batalhas a travar nesse mundo de contradições
amenizadas, encostei-me por aqui à espera de algo mais excitante.
Não sou sensível a lamúrias femininas. Nada mais há de fazer nesse mundo de
democracia social. Quem sabe eu invente de esperar pela princesa que há de me livrar
desse meu cativeiro.
Afinal, não fomos moldados à mesma imagem e semelhança? Também sou um crente.
Não sou príncipe de sonho encantado, poço mágico ou coisa que o valha. Sou príncipe
conceitual. Desdobrar-me em razões e esclarecimentos pode redundar em
despropósitos ainda maiores. Sou uma ideia exposta em emblemas de outdoors
espalhados pela cidade afora. Isso para ser bem fiel ao linguajar próprio de minha
pobre Edneia, um nome bem suburbaninho que a pobre tem que carregar em suas
costas.
Edneia, aquela que em seus delírios evoca-me à existência, então eu existo.
Milagrosamente minha mão toma gosto da palavra. Espírito de mulher é loucura, e a
minha Edneia veio mais forte que nunca desta vez. É que nunca desistimos de voltar ao
mundo em pares às nossas imagens semelhanças nessas fábulas de nada. Cada vez
mais inapropriados. Por exemplo, hoje, não sei de mais nada.
O que quero dizer antes dos fatos, é que Edneia foi talhada para outro tempo que não
o de agora e daí que nos perdemos ambos no vácuo. Justificável o seu desconforto
diante de inadaptações inexatas de carruagens vermelhas a atravessar-lhe o trânsito
carioca. Tecnologias não lhe agradam tanto quanto a mim fascinam.
A vida em espírito é a vida em espírito, para além dela é justamente o que não se pode
mais explicar. Tenho algo a dizer e é do âmbito da alma. Desejo contar a história de um
complexo, diga-se, de uma loucura. Um momento remoto em nossas vidas, que trago
para o emergencialmente hoje através da palavra. Um milagre.
A vida em espírito é a vida em espírito, para além dela é justamente o que não se pode
explicar. Multiplicar uma ou duas personagens em uma miríade de personagens pode
ser uma pista. A brincadeira com o tempo também pode ser prazeirosa, contudo,
pretendo fugir aos mergulhos de introspecção, que em Edneia chama-se mergulho no
Hades. Não sei, nunca experimentei nada nesse sentido.
Eu me decomponho e me desfaço de todas as vestes de luxo e representação. Serei eu
também da Central do Brasil? Assim mesmo me despojo de minha indumentária do
ponto de vista único, ou posto de visão, exatamente o tamanho de minha janela.
Acompanhando seu pensamento, daí que me aproprio de suas esdrúxulas referências.
Quando for gente quero ser escriba. Não suporto ficar longe da verdade e seus
castelos de pedra. Também posso ser alpinista. Uma outra hipótese. Sabendo já que
tudo é absolutamente provisório nesse meu ser principesco. O que quero mesmo é
nunca deixar de ser príncipe Quanto tempo tem um príncipe para deixar de ser
príncipe?
- Uma eternidade.
A atemporalidade me concerne, daí que a História é jogo e diversão. Meus caminhos
são sacramentados pelo poder de minhas palavras.
Me acerco de Edneia e seus muros de não sei o quê, ela que me acusa e eu consinto.
Vivo das sombras de um mundo que eu creio seja real.
A brincadeira com o tempo também pode muito bem ser deveras prazeirosa, contudo
pretendo fugir aos mergulhos de introspecção, que, em Edneia, transmuta-se nesse
tão árduo complexo, nesse seu enovelamento. Decomponho-me e desfaço-me de
todas essas vestes de luxo e representação a apresentar-me à Edneia, uma moça de
condições inferiores às minhas. Jamais estarei como ela arroxado ao solo de uma
Central do Brasil. Jamais. Mesmo assim, despojo-me de minhas indumentárias de
príncipe, digo, o de um ponto único, para exaltá-la nesse momento de rara lucidez em
que a conheci.
Edneia e eu numa festa. Coisa estranha esse encontro entre nós. Mas foi assim que
tudo começou.
Quando deixar de ser príncipe e tornar-me gente, saberei um tanto mais desse modo
de ser provisório das gentes em geral. Quanto a mim, retorno e retorno, e nem dou
conta que a morte exista. Tendo a certeza, no entanto, de que tudo seja
absolutamente provisório nesse meu ser principesco. Uma contradição? O que quero
mesmo é nunca deixar de ser príncipe e não ter de carregar fardos nessa vida.
E se a atemporalidade me concerne, daí que a História, com letra maiúscula, me
concerne. Tudo então torna-se para mim jogo e diversão. Sigo sempre a seta de “vá
em frente”, e eu vou. Meus caminhos são sacramentados pelo poder de minha palavra
mais forte – um estridente sim!
Acerco-me de Edneia e suas sempre meninas da Penha com suas tão concretas
escadarias das lamentações, das quais ela acerca-se, por puro medo de algo mais difícil
e abstrato que ela mesma. E, acusa-me, sem saber porquê.
Aguardo a princesa, repito eu, sem acreditar nesse meu despautério. Sou um
desalmado de alma mal assombrada. Na verdade somos ambos uns desalmados em
sentidos inversos. Daí que nos separamos sempre, outra fatalidade dessa história.
Mas como dizia, há um contexto grave e sério nessa história, o de um complexo
enrodilhado que se transmuda em loucura. E sou eu o desafortunado a contar essa
desgraceira dessa moça que mal cheguei a conhecer, num pedaço de vida em que tudo
pode acontecer, inclusive a amizade e o amor! Mas o que irrompeu foi um entrecruzar
de embaraços que nos chegam até o hoje, até o agora. Coitados de todos nós.
Só vivo nas alturas. O fato é que Edneia vive colada ao solo planificado de uma Central
do Brasil, ou em penitências das escadarias de sua Penha natal. Turba tumultuada e de
fala arrastada é alimento seu. O desacordo entre nós é gritante.
Fala-se ainda, anacronicamente, em lutas de classes. Eu prefiro apelar para o tão
sempre intransponível conflito de desejos.
Edneia precisa de sua guerra universal, a minha é um tanto particular.
Percebo a gravidade da questão com seus cheiros e cores e apavoro-me. Do modo
como se apavora Edneia de mim e minha carruagem adaptada ao século. Ela tem
comigo uma ideia grande e não sabe desse seu prodígio preocupada que se encontra
em salvar meninas perdidas de seu próprio tempo. Um disparate.
Querendo resgatar suas “meninas”, Edneia deseja retornar ao círculo divino do
sagrado e seu eterno Sim.
O fato é que andamos na única dimensão da Terre, na forma de um quadrado perfeito,
e isso também nos leva à lógica a dividir seus momentos, bem como todas as suas
contradições em quatro dimensões. Pois vamos acompanhá-la.
- E o quarto? Repito eu: entre nós, necessariamente, será sempre uma abstração.
E após todos os acontecimentos desse lamento que se tornou essa história, para
Edneia, só mesmo com muita cautela. Ou nunca mais.
Desejando resgatar suas meninas da terra, Edneia estabelece o retorno ao círculo
sagrado de seu deus com seu eterno sim. Sua grafia difere da minha em tudo – é
preciso que seja dito.
Quando o estado de loucura em Edneia, enfim, a perda de seu logos ´´e sua condição
mais lamentável. Qual sua condição agora? Hoje? É o que estou tentando entender.
Repito: não sou contador de histórias, esforço-me por uma compreensão que a mim
também esclareça. Quantos bondes da História ainda terei de perder até atingir a
salvação, enfim? Será essa a palavra, salvação?
Fiquemos por aqui.
Prefiro mesmo minha cadeira de dois braços para repousar minhas costas de meus
saltos mortais. E um apoio bem firme de quatro pernas fincadas no chão. Um trono,
talvez... Nada de sair por aí peregrinando, como um pedinte ou coisa que o valha.
Desejo um nome e sobrenome, e isso me basta. As sombras dos meus pesadelos são
pesadas demais para serem transportadas de um canto a outro sem nem mesmo ter
uma direção. Prefiro essa ininterrupta repetição da moldura de minha janela
observatório: eis que surge-me uma Edneia debaixo do meu nariz e nua!

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