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E CONSERVAÇÃO
DA ORDEM
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EQUIPE EDITORIAL
Editores Diagramação
Profa. Dra. Milena de Cássia de Rocha Gabriele Oliveira
Prof. Dr. Rafael Alem Mello Ferreira
Preparação de Texto
Prof. Dr. Tiago Aroeira
Nathália Sôster
Prof. Dr. Vitor Amaral Medrado
Designer Responsável Revisão
Daniela Malacco Responsabilidade do autor
Inclui bibliografia.
ISBN 978-65-252-8059-2
INTRODUÇÃO | 13
§1 A regra e a exceção | 13
PRIMEIRA PARTE | 31
CAPÍTULO 1
Uma análise sociogenética
do campo jurídico brasileiro | 33
CAPÍTULO 2
A emergência do campo
jurídico brasileiro no Império | 47
CAPÍTULO 3
Legados autoritários: o liberalismo
conservador e campo jurídico
na Primeira República | 85
SEGUNDA PARTE | 121
CAPÍTULO 1
Uma transição negociada,
mas por quem e para quem? | 123
CAPÍTULO 2
O direito constitucional muda,
a elite jurídica permanece | 149
CAPÍTULO 3
Legados autoritários: a elite jurídica
do tenentismo togado ao golpe
jurídico-parlamentar de 2016 | 189
CONCLUSÃO | 233
REFERÊNCIAS | 249
INTRODUÇÃO
§1
A REGRA E A EXCEÇÃO
| 13
14 | FELIPE ARAÚJO CASTRO
§2
UM OLHAR MATERIALISTA E INTERDISCIPLINAR
SOBRE O CAMPO JURÍDICO
4 Esse é o diagnóstico feito por Horkheimer no texto hoje tido como de fundante
da Escola de Frankfurt. O autor tratava acerca da fragmentação das ciências em
geral, mas sua análise pode ser aplicado ao contexto específico da ciência jurídica.
Para ele, a fragmentação e especialização das ciências, apesar de ter possibilitado
um enorme avanço da técnica, teve como consequência o isolamento parcelar das
disciplinas e a reificação da teoria, significando sua limitação à quantificação e re-
produção do dado, já esvaziada de qualquer conteúdo ético e/ou emancipatório
(Horkheimer, 1975).
5 Para melhor compreensão do conceito de materialismo interdisciplinar e a impor-
tância da associação entre material empírico e especulação conceitual para a funda-
ção do Instituto de Pesquisa Social ver Abromeit (2011).
6 Horkheimer ironizava a posição das teorias tradicionais argumentando que, para
tais epistemologias, “o progresso da consciência da liberdade” nada mais era do
que “poder expressar cada vez melhor [...] o aspecto do mundo miserável que se
apresenta aos olhos do cientista” (Horkheimer, 1975, p. 132).
CAMPO JURÍDICO E CONSERVAÇÃO DA ORDEM | 17
§3
ESTRUTURA DA OBRA E LIMITES DA ANÁLISE
16 Não seria possível, no espaço de uma nota, citar todas as pesquisas no campo da
historiografia do Brasil e do direito que lidam direta e indiretamente com o tema da
formação das elites jurídicas nacionais. Neste primeiro momento, destaco os traba-
lhos que serviram de inspiração direta para esta pesquisa, a exemplo das obras de
Sérgio Adorno (2019) e Venâncio Filho (2011), além de escritos que se já se estabe-
leceram como cânones incontornáveis da historiografia sobre o direito (Hespanha,
1994, 2006, 2012; Wolkmer, 2003; Slemian, 2009; Carvalho, 1996) ou que seguem
essa trilha (Cabral, 2019; Camarinhas, 2016).
CAMPO JURÍDICO E CONSERVAÇÃO DA ORDEM | 27
DA GÊNESE
À PRIMEIRA
EXPERIÊNCIA
REPUBLICANA
1
UMA ANÁLISE SOCIOGENÉTICA
DO CAMPO JURÍDICO
BRASILEIRO
| 33
34 | FELIPE ARAÚJO CASTRO
podem tornar real aquilo que dizem. Contam com o direito como
discurso de hálito universal e dispõem da capacidade profissional
de fornecer razões, ou melhor, de converter evidências em arra-
zoados, pelo apelo a princípios universais, pelo recurso à história,
aos precedentes, aos arquivos, à casuística e às demais fontes da
jurisprudência. A construção do Estado se revela, portanto, in-
dissociável da emergência de corporações que nele se enraízam
(Miceli, 2014, p. 24).
20 “O Estado, como se disse muitas vezes, é uma fictio juris. É verdade, mas é uma
ficção de juristas, dando a fictio o sentido forte do termo, de fingere [“construir”, “fa-
bricar”]: é uma fabricação, uma construção, uma concepção, uma invenção. Quero,
portanto, descrever hoje a contribuição extraordinária que os juristas deram cole-
tivamente ao trabalho de construção do Estado, em especial graças a esse recurso
constituído pelo capital de ‘palavras” (Bourdieu, 2014, p. 431).
21 Bourdieu desenvolve o argumento inspirado no processo de secularização da noção
teológica de existência de dois corpos do Rei, um material, alvo das vicissitudes do
tempo e das doenças, e outro abstrato e eterno, incapaz do erro em função de sua
derivação divina. O processo fora conduzido por juristas medievalistas ingleses e
as propriedades deste corpo abstrato teriam sido depois transladadas para o Estado
moderno. Sobre o tema ver Kantarowicz (1998).
38 | FELIPE ARAÚJO CASTRO
22 Novamente, a doutrina dos dois corpos do Rei foi fundamental, ao mobilizar o ar-
gumento que se atacava o corpo material e falho do Rei em nome do corpo abstrato
do Monarca, i.e., era necessário “combater o rei para defender o Rei” (Kantorowicz,
1998, p. 31).
CAMPO JURÍDICO E CONSERVAÇÃO DA ORDEM | 39
23 Para Bourdieu (2014, p. 430), a transição do Estado feudal para o Estado moderno
é marcada, entre outros eventos, pela “ascensão do capital cultural por oposição ao
capital nobiliárquico como forma particular de capital simbólico”. Especificamente
no que concerne às funções públicas e os novos sentidos que passam a assumir a
partir desse momento, o autor afirma que “descrever a ascensão dos magistrados é,
pois, descrever a constituição progressiva de um novo poder e de um novo funda-
mento do poder — um poder fundado no direito, na escola, no mérito, na compe-
tência, e capaz de se opor a poderes fundados no nascimento, na natureza etc.”.
40 | FELIPE ARAÚJO CASTRO
ria foi apenas uma das opções entre as possibilidades ofertadas e, segun-
do, ao proceder com a desnaturalização do passado, se dá o primeiro pas-
so para imaginar configurações diferentes do campo jurídico nacional,
livres de suas características ontologicamente negativas.24
Na primeira parte deste livro, os principais focos do nosso estudo
genealógico e histórico serão: i) a análise do surgimento do Estado na-
cional, por estar imbricada com a criação das primeiras escolas jurídicas
do país, e ii) a história do campo jurídico na Primeira República. Nesses
processos não deixaremos de mencionar episódios situados em outros
períodos históricos, porém, o faremos de maneira acessória e na medida
em que auxiliem na sustentação e exemplificação das continuidades das
características enunciadas como genética do campo jurídico nacional.
Como já mencionado, essa interrogação genética, por mais que
enfrente problemas metodológicos de difícil superação – como os riscos
de, por um lado, realizar uma digressão histórica interminável e, por ou-
tro, proceder a uma análise superficial dessa mesma história – ainda assim,
se faz necessária; e isso porque representa um importante instrumento da
crítica. Com efeito, a promoção desse “longo desvio pela gênese é dar-se
algumas chances de escapar do pensamento de Estado, o que é uma das
maneiras empíricas de praticar a dúvida radical” (Bourdieu, 2014, p. 475).
Ainda sobre o peso específico dos juristas na construção dos
aparelhos estatais, é fundamental ter em mente que, apesar do trabalho
de construção da realidade social ser, antes de tudo, um trabalho coleti-
vo, no qual, em potência, todos podem contribuir, é importante admitir
que nem todos contribuem para ele na mesma intensidade. A partir
dessa compreensão, o principal argumento sustentado por Bourdieu
(2014) em de suas aulas Sobre o Estado, é que os juristas, em função do
capital específico que detinham, exerceram uma influência desmedida
em relação a outros agentes na construção do metacampo social repre-
sentando idealmente pelo Estado.
26 Emília Costa (2007, p. 133) ressalta que, apesar da variedade condições e posições
sociais que ocupavam os indivíduos que compuseram a Assembléia Constituinte de
1923 (sacerdotes, funcionários públicos e profissionais liberais), todos eles “estavam
unidos por laços de família, amizade ou patronagem a grupos ligados à agricultura
e ao comércio de importação e exportação, ao tráfico de escravos e ao comércio in-
terno”. Portanto, não é de se espantar, portanto, que a Nação tenha sido construída
de acordo com os interesses desses grupos.
27 A decisão encontra-se alinhada à nossa abordagem, que não pretende fazer uma his-
toriografia completa e linear o ensino jurídico brasileiro. Até porque, se é verdade
que o direito brasileiro é devedor direito do direito português, o direito português é
igualmente devedor do direito romano e não seria possível compreender um sem o
outro, o que nos lançaria numa espiral regressiva que findaria superficial ou intermi-
nável. Nesse sentido, remetemos o leitor mais interessado em uma história do direito
português às obras de Costa (2007), Marques (2002) e, sobretudo no que concerne à
influência dessa tradição no nascente ensino jurídico brasileiro ver Marcos (2008).
CAMPO JURÍDICO E CONSERVAÇÃO DA ORDEM | 43
28 Para uma exposição acerca das ambiguidades do liberalismo brasileiro ver Costa
(2007). Para a biografia de um importante representante do liberalismo conserva-
dor ver Kirschner (2009).
29 A desigualdade social é avaliada pela concentração de renda e medida pelo coeficiente
de Gini, com índices que vão de 0 (menor desigualdade) a 1 (maior desigualdade).
As pesquisas são realizadas periodicamente pelo Programa das Nações Unidas para
o Desenvolvimento (PNUD), na última parcial, divulgada em março de 2017 e com
dados de 2015, foi constatado que a desigualdade no Brasil aumentou e o país foi
ranqueadocomo o décimo mais desigual do mundo. https://oglobo.globo.com/eco-
nomia/brasil-o-10-pais-mais-desigual-do-mundo-21094828. O relatório destacou
ainda que a desigualdade entre gêneros também aumentou por aqui, destacando que,
apesar de possuírem uma expectativa de vida mais longa e maiores índices de es-
colaridade, as mulheres têm uma renda per capita 66,2% menor que os homens. O
Brasil aparece na 92ª posição entre 159 países, ficando atrás de nações governadas
por maiorias religiosas conservadoras, frequentemente imaginadas no senso comum
como sociedades “ruins” para as mulheres, como Malásia, Líbia e Líbano. https://bra-
sil.elpais.com/brasil/2017/03/21/politica/1490112229_963711.html.
CAMPO JURÍDICO E CONSERVAÇÃO DA ORDEM | 45
30 Um bom exemplo desse tipo de pesquisa são os apêndices adicionados à nova edi-
ção de Burocracia e sociedade no Brasil colonial, de Stuart Schwartz (2011), entre os
quais encontramos uma lista dos casamentos de desembargadores no país (1609-
1758) e uma pequena prosopografia dos desembargadores da Relação da Bahia
(1609-1758). Nessas listas podemos notar o casamento intra-elites, pois as esposas
são usualmente filhas de fazendeiros e fidalgos, assim como a origem aristocrática
dos desembargadores, ao observamos a ocupação dos seus pais.
CAPÍTULO
2
A EMERGÊNCIA DO CAMPO
JURÍDICO BRASILEIRO
NO IMPÉRIO
| 47
48 | FELIPE ARAÚJO CASTRO
35 Durante a Primeira República os juízes estaduais eram nomeados pelo Executivo, mas
após composição de uma lista de selecionáveis feita pelo STF. A dinâmica perpetuou
acordos tácitos que constituíam parte importante da chamada Política dos Governa-
dores, que garantia, entre muitas outras coisas, que as escolhas dos juízes estaduais
pelo Presidente confirmassem os desejos dos poderes locais. (Koerner, 1994, p. 63).
54 | FELIPE ARAÚJO CASTRO
cialmente após a criação das escolas jurídicas, mas não o suficiente para
superar a característica ainda marcante de ocupação dos cursos de direito
mais tradicionais pelos filhos das elites nacionais.
Além da situação de letrado, majoritariamente formados em le-
tras jurídicas (primeiramente em Coimbra e depois em São Paulo e Re-
cife/Olinda), a hegemonia ideológica era também garantida pelo fator
ocupação. Nos primeiros anos do Império as principais funções estatais,
desde os Ministros de Estado, passando por Deputados, até Senadores,
foram ocupadas por bacharéis em direito. O fato de ocuparem cargos
semelhantes durante suas trajetórias individuais tendia a fazer com que
esses sujeitos construíssem visões de mundo comum ou muito aproxima-
das (Carvalho, 1996, p. 83).
Em termos ilustrativos, no censo realizado em 1872 o Brasil
contava com uma população total de 18.330.235 de habitantes, dentre
os quais mais de oito milhões eram escravos, portanto, excluídos de qual-
quer atividade política oficial.41 O grosso da elite política era recrutado
no setor terciário (8% da população), visto que poucos políticos eram
proveniente do setor de serviços (secundário) ou eram exclusivamente
proprietários rurais – é importante destacar que muitos fazendeiros eram
também homens letrados, que ou atuavam como intelectuais ou tinham
herdeiros que exerciam essas funções em seu lugar e no seu interesse.
Deste pequeno percentual (8%), apenas os letrados exerciam as funções
de elite política, de forma que esta elite era recrutada em um grupo que
não deveria ultrapassar 16.000 pessoas, i.e., 0,1% da população total
(Carvalho, 1996, p. 85). Fatos que per si já garantem uma forte homoge-
neidade ideológica em potência.
No que concerne às ocupações nos quadros de Ministros de Esta-
do, Senadores e Deputados, para o período de 1822-31, temos que 33,33%
dos Ministros escolhidos pelo Imperador, 41,66% dos Senadores e 27%
dos Deputados conciliavam sua atividade política com a função de ma-
gistrados. Considerando que, para o mesmo período, outras ocupações
41 Para uma historiografia oitocentista sobre influência política e econômica não ofi-
cial, feita a partir dos processos de aquilombamento ver Moura (1981). Para uma vi-
são geral da participação negra na política brasileira Moura (1989) e Ramos (1995).
62 | FELIPE ARAÚJO CASTRO
2.1.
A FUNDAÇÃO DOS CURSOS JURÍDICOS NO
BRASIL: OS DEBATES LEGISLATIVOS
Os debates legislativos
maior parte dos seus quadros ser formada em uma mesma instituição. Essa
homogeneidade facilitou a integração nacional pós-independência, o que,
de maneira diversa, não se viu no processo de fragmentação que se seguiu
às declarações de independência dos vice-Reinados espanhóis.
Se o controle sobre a formação dos letrados constituiu importan-
te ferramenta de dominação Metrópole-Colônia, é natural que uma das
principais demandas das elites locais, no contexto de sua independência,
fosse justamente a criação de instituições de ensino superior em território
brasileiro, como estratégia de ruptura com o domínio ideológico e cultu-
ral da Metrópole. Essas instituições deveriam formar uma elite intelectual
capaz de conduzir o processo de construção da Nação, assim como ocu-
par os cargos burocráticos do aparelho estatal.
Portanto, a criação das Faculdades de Direito no país esteve pro-
fundamente vinculada ao processo de independência. As escolas jurídicas
estavam imbuídas do projeto de formar uma inteligência nacional apta a
conduzir o processo de fundação ou invenção da Nação independente.
era “formar quadros para gerir o novo Estado e criar uma nova identi-
dade em oposição à identidade portuguesa” (Apostolova, 2017, p. 421).
É interessante observar que, durante todo o debate legislativo
acerca das escolas jurídicas, não há considerações dos deputados cons-
tituintes com relação a qualquer dimensão de justiça, expansão e/ou ga-
rantia de direitos ou exercício da cidadania. Parece razoável supor que a
ausência dessas justificativas se deva, em partes, pela inexistência de uma
sociedade civil organizada e diversificada que demandasse esse tipo de
pauta. Nesse contexto, a dominação via aparelho estatal, exercida pelas
elites do poder, podia ser exercida diretamente e de maneira mais crua.
Ainda no que concerne às ambiguidades entre a prática e os dis-
cursos dos políticos-juristas que orquestraram a fundação dos cursos de
direito no Brasil, embora discursivamente se defendesse uma indepen-
dência radical de Portugal, na prática, não se projetou essa ruptura. Na
realidade, até as portas da independência não havia no Brasil um senti-
mento generalizado de separação de Portugal, o que está documentado
exemplarmente no conteúdo das orientações dos representantes brasilei-
ros eleitos para as Cortes Portugueses na esteira da Revolução do Porto.43
Foi esta Revolução e suas consequências, como o retorno da família real
portuguesa e o receio da Metrópole revogar as conquistas políticas da
Colônia, que empurraram as classes dominantes brasileiras de vez para o
projeto de independência (Bethel, 2018, p. 229).
Independência posta, no entanto, faltava um projeto claro para a
nova Nação (Slemian, 2009, p. 86). O desejo de forjar uma independên-
cia política e econômica frente a Portugal, frequentemente expresso nos
discursos dos parlamentares, era recorrentemente traído pela dependên-
cia cultural desses sujeitos, que eram formados justamente dentro dos
limites da cultura que pretendiam negar. O que reforçava a importância
do estabelecimento de cursos de letras jurídicas no país, como possibili-
dade de ruptura futura desta dependência, ainda que, paradoxalmente, a
do seu ensino, e outra que lhe negava qualquer utilidade. Silvio Lisboa
exagerava ao afirmar que “a civilização da Europa moderna se deve em
grande parte ao achado das Pandectas”, enquanto Araújo Lima acusava o
direito romano de não servir a nada mais que “assegurar a escravidão dos
povos”.45 No entanto, ambas as intervenções dizem muito menos sobre
a importância efetiva do ensino do direito romano nas novas escolas do
que sobre a característica de exposição retórica dos bacharéis em direito.
Já nos reportamos aos limites culturais dos parlamentares brasi-
leiros e da dificuldade daí decorrente, de romper com o processo de ensi-
no no qual haviam sido instruídos. Para se ter uma melhor compreensão
do que se afirma, é preciso ter em mente que o grupo social que compu-
nha a Assembleia era constituído, em sua esmagadora maioria, por uma
pequena elite de letrados, formados em Coimbra na transição dos séculos
XVIII e XIX.46 Esse grupo era marcado por uma forte homogeneidade
ideológica e de treinamento, fornecida por processos formativos, ocu-
pações profissionais e carreiras políticas muito assemelhadas, que forne-
ciam as concepções e as condições de implementação de determinados
modelos de organização política.
A situação era ainda mais homogênea se considerados os parla-
mentares que efetivamente participaram das discussões sobre a criação
das universidades. Em número de 24 representantes, dos quais apenas
dois não possuíam grau superior, apenas sete não eram formados em di-
reito e metade era composta por magistrados (Apostolova, 2017, p. 428).
Apesar do alto nível de instrução formal e da elevada erudição
intelectual serem características recorrentemente atribuídas aos parla-
mentares do período imperial (Apostolova, 2017, p. 429), a julgar pelo
conteúdo das exposições constantes nos Anais das Constituintes do Im-
pério, foi a localização geográfica o tema mais debatido durante o pro-
cesso de criação das escolas jurídicas e não qualquer tema relacionado a
qualidade ou forma do ensino.
45 O debate entre os parlamentares está registrado em Venâncio Filho (2011, pp. 16-17).
46 Estes homens comporiam o que mais tarde seria denominado a geração de 1870.
Sobre o assunto ver Alonso (2002) e Couto (2016).
CAMPO JURÍDICO E CONSERVAÇÃO DA ORDEM | 71
entende que o clima daquela cidade seria “pouco próprio para os estudos
assíduos e regulares” (Venâncio Filho, 2011, p. 18).
Muito menos sutis são as considerações de Antônio Carlos An-
drada Machado e Silva, que descrevia a Bahia como uma espécie de se-
gunda Babilônia, uma “cloaca de vícios” onde “as distrações são infinitas
e também os caminhos da corrupção” (Idem). É oportuno lembrar que a
Bahia, desde aquela época, é o estado brasileiro com o maior contingen-
te populacional negro e, ainda hoje, sofre injúrias análogas às expressas
pelo deputado constituinte, que ressaltam supostos traços de preguiça e
malandragem como inerentes à cultura baiana.
Os debates acerca da conveniência ou não da criação de um cur-
so jurídico na Corte, por sua vez, giraram em torno da possibilidade ou
não de ingerências do Imperador na faculdade e se esse aspecto seria po-
sitivo ou negativo. A importância desse debate pode ser constatada em
1826, quando, após a reabertura do Congresso, Don Pedro I procurou
estabelecer uma faculdade única na Corte, contrariando os desejos da
Assembleia de 1823. O imperador foi derrotado e o antigo projeto foi
retomado, houve a instituição não apenas de duas faculdades, mas ambas
longe do Rio de Janeiro – São Paulo e Olinda. Esse desfecho demonstra
que o Imperador podia muito, mas não podia tudo, além da revelar im-
portância que os parlamentares davam a necessidade de ter a formação
dos juristas independentes dos interesses da Coroa. Em suma:
2.2.
A CRISE COMO NORMALIDADE DO
ENSINO JURÍDICO NACIONAL
51 Em 1891 foi inaugurada uma faculdade em Salvador e outras duas no Rio de Ja-
neiro. Em 1893 foi inaugurada em Outro Preto o curso jurídico que depois seria
transferido para Belo Horizonte, então Faculdade de Direito de Minas Gerais, hoje
Faculdade de Direito da UFMG (Bastos, 2000).
CAMPO JURÍDICO E CONSERVAÇÃO DA ORDEM | 81
52 Essa intuição nos remete a substituição das funções da magia pela ciência moderna
como descrita em Adorno e Horkheimer (1985). Bourdieu (2014, p. 391), por sua
vez, compara certos atos do estado à magia, dentre os quais a nomeação de um juiz
é um exemplo oportuno. Inspirado no Essai sur la magie (1902) entende que das
mesma forma que “a eficácia mágica do mágico é o conjunto do universo dentro
do qual se encontram o mágico, os outros mágicos, os instrumentos mágicos e os
crentes que atribuem ao mágico o poder e que, por isso, contribuem para fazê-lo
existir… É a mesma coisa com o ato de Estado”.
84 | FELIPE ARAÚJO CASTRO
53 A expressão foi usada pelo Ministro Luiz Roberto Barroso, em evento realizado pela
Fundação Getúlio Vargas. Na oportunidade, o Ministro defendeu que as Cortes
Constitucionais devem exercer o papel de vanguarda iluminista, que consiste em “em-
purrar a história em determinadas questões civilizatórias vitais”, quando o processo
político majoritário não tenha sido capaz de tanto. Naturalmente, o julgamento do
quando e como é prerrogativa dessa mesma vanguarda. Disponível em: https://www.
youtube.com/watch?v=wTVZdKz_OXg, acesso em 09 de abril de 2020.
CAPÍTULO
3
LEGADOS AUTORITÁRIOS:
O LIBERALISMO CONSERVADOR
E CAMPO JURÍDICO NA
PRIMEIRA REPÚBLICA
| 85
86 | FELIPE ARAÚJO CASTRO
59 Para Singer, existe uma tendência nas ciências humanas de subestimar o sistema
partidário brasileiro, considerando-o aleatório, desestruturado e sem representati-
vidade. No entanto, segundo o autor, observado as experiências democráticas mais
recentes (após a industrialização e urbanização: 1946-1964 e 1988-), nota-se que
“uma oposição entre pobres e ricos dá a tônica ao conflito partidário, mediado por
um vasto interior em que prevalecem relações de clientela” (Singer, 2012).
CAMPO JURÍDICO E CONSERVAÇÃO DA ORDEM | 93
3.1.
O CONSTITUCIONALISMO DA INEFETIVIDADE:
A FRUSTRAÇÃO DO REPUBLICANISMO LIBERAL
ANTE A NATURALIZAÇÃO DO ESTADO DE SÍTIO
62 Fala atribuída a Rui Barbosa, citada em (Lynch e Souza Neto, 2012, p. 100).
63 “Ao assumir o Ministério da Fazendo do governo provisório, Rui Barbosa baixou
vários decretos com o objetivo de aumentar a oferta de moeda e facilitar a criação
de sociedades anônimas. A medida mais importante foi a que deu a alguns bancos a
faculdade de emitir moeda”. Na direção do principal banco responsável pelas emis-
sões, o Banco dos Estados Unidos do Brasil, foi posto um dos principais empresá-
rios da época, Francisco de Paula Mayrink (Fausto, 2007, p. 252).
CAMPO JURÍDICO E CONSERVAÇÃO DA ORDEM | 97
64 Apenas Campos Sales, Afonso Pena, Nilo Peçanha, Delfim Moreira e Washington
Luís, entre 13 presidentes, não fizeram uso do Estado de Sítio, sendo que Afonso Pena
e Nilo Peçanha governaram aproximadamente dois anos e Delfim Moreira menos de
um ano. Segundo Gomes e Matos (2017, p. 1754), governou-se sob estado de sítio du-
rante a República Velha por 2.365 dias – excluindo o tempo do governo provisório de
CAMPO JURÍDICO E CONSERVAÇÃO DA ORDEM | 99
dida, que exigia atestado de vacinação para matrícula nas escolas, para admissões
em empregos públicos, viagem e até casamento. Naturalmente, a insatisfação com
a campanha de vacinação não foi o único motivo para a intensidade que assumi-
ram a revolta, se somaram ao fato as políticas de austeridades que vinham desde a
presidência de Campos Sales e eram mantidas por Rodrigues Alves e, sobretudo, o
efeito devastador da reforma urbana promovida pelo Prefeito Pereira Passos, que
desalojou do centro do Rio de Janeiro mais de 14 mil pessoas, com destino a áreas
desvalorizadas como morros e mangues (Sevcenko, 2018).
CAMPO JURÍDICO E CONSERVAÇÃO DA ORDEM | 105
3.2.
CAMPO JURÍDICO, DEFERÊNCIA
AO PODER E GARANTIA DA ORDEM
73 Arguelhes e Ribeiro (2018, p. 20) defendem que o pedido de vista é “na prática é um
poder de veto sobre a agenda, que pode ser acionado a qualquer momento após o voto
do relator”. Previsto para durar até duas semanas, os casos ficam em média mais de um
ano com o Ministro que pede vista, chegando às vezes a durar mais de uma década.
74 Como descrito pelo Professor Conrado Hübner Mendes no caderno Ilustríssima do
Jornal Folha de São Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustris-
sima/2018/01/1953534-em-espiral-de-autodegradacao-stf-virou-poder-tensiona-
dor-diz-professor.shtml. Acesso em 16 de maio de 2018.
75 Disponível em:https://g1.globo.com/politica/noticia/maioria-no-stf-vota-para-renan-
-virar-reu-por-desvio-de-dinheiro-publico.ghtml. Acesso em 05 de junho de 2018.
76 Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/ministro-do-stf-afasta-renan-da-
-presidencia-do-senado.ghtml. Acesso em 05 de junho de 2018.
CAMPO JURÍDICO E CONSERVAÇÃO DA ORDEM | 111
80 O ministro Dias Toffoli, indicado pelo Governo Lula (PT), exerceu cargo de as-
sessor jurídico do PT (1995-2000), atuou como advogado em três campanhas pre-
sidenciais de Lula (1998, 2002 e 2006) e antes de ser indicado ao STF exerceu a
função Advogado-Geral da União por indicação do mesmo presidente. Alexandre
de Moraes, por sua vez, fez carreira burocrática junto aos Governos do PSDB em
São Paulo, tendo ocupado a Secretaria de Justiça do Governo Alckmin (2002-2005)
e a Secretaria de Segurança Pública em novo Governo Alckmin (2014-2017). Após
o impedimento da Presidente Dilma Rousseff, foi nomeado Ministro da Justiça e
Segurança Pública no Governo Temer (PMDB) – que governava em aliança com
o PSDB – e posteriormente nomeado ministro do STF na vaga de Teori Zavascki,
morto num acidente de avião.
81 Na realidade, quando dos primeiros anos da República, ainda no governo do Mare-
chal Floriano Peixoto, cinco nomes foram negados pelo Senado, o que, no entanto,
nunca mais voltaria a se repetir (Melo, 2012).
CAMPO JURÍDICO E CONSERVAÇÃO DA ORDEM | 113
delo, como por exemplo, possibilitar que candidatos das mais variadas
localidades ingressem na função de magistrados em Estados nos quais
inicialmente não tem vínculos políticos e sociais arraigados. Porém, nada
impede que esses vínculos sejam construídos ao longo da carreira, assim
como a eleição pelo quinto constitucional praticamente assegura que o
advogado eleito pelos seus pares seja um agente com longa tradição na
região em que concorre, além do fato que a ascensão depende ainda da
confirmação pelo Governador. Pra comprovar essa hipótese, no entanto,
seria fundamental a realização de uma etnografia dos Tribunais Estaduais
de Justiça, demonstrando qual a percentagem de desembargadores são
originários dos Estados onde atuam ou, se externos ao local, que tipo de
relações desenvolveram com as elites locais ao longo da carreira (casa-
mento, sociedades, amizades etc.).
Ao longo desse capítulo, procuramos demonstrar que as carac-
terísticas do campo jurídico, reveladas genéticas no capítulo anterior –
seu caráter aristocrático, sua prática autoritária e presença da hegemonia
de um pensamento liberal conservador entre seus agentes –, se arrastam
pela nossa primeira experiência republicana (1889-1930).
Na segunda parte deste livro, nos debruçaremos sobre outro
período importante de modificação das estruturas político-jurídicas no
Brasil, a saber, a transição entre a ditadura civil-militar das décadas de
1960-80 e a Nova República, instituída pela Constituição de 1988. Des-
creveremos como, apesar de uma radical mudança no discurso e na for-
ma política, se perpetuaram concretamente, no interior do campo jurídi-
co, as relações de poder do período anterior.
Até lá o Brasil ainda passaria por dois longos governos de exce-
ção, com características muito distintas entre si, demonstrando que o au-
toritarismo político, consubstanciado na prática de governar sem a par-
ticipação do povo é um traço marcante da sociedade brasileira, da qual
padecem ambos os lados do espectro político, desde aqueles que preten-
dem identificar e atender as demandas do povo via aparelho estatal, até
aqueles que acreditam que, para garantir a plena liberdade individual, é
necessário desmontar quaisquer dispositivos estatais que não sirvam a
garantia do bom funcionamento do mercado. Sempre em nome do povo,
CAMPO JURÍDICO E CONSERVAÇÃO DA ORDEM | 115
DA REDEMOCRATIZAÇÃO
AO GOLPE JURÍDICO-
PARLAMENTAR DE 2016
1
UMA TRANSIÇÃO
NEGOCIADA, MAS POR
QUEM E PARA QUEM?
| 123
124 | FELIPE ARAÚJO CASTRO
92 Optamos pelo uso do termo ditadura civil-militar por considerar não apenas à
adesão tácita de parte significativa da população brasileira ao regime, mas, sobre-
tudo, em função do exercício de poder ter se dado por civis em cooperação com
a Administração castrense, notadamente na seara econômica. Tanto o Ministério
do Planejamento quando o Ministério da Fazenda durante o regime militar foram
redutos de civis que possuíam poderes extraordinários sobre a condução da política
econômica e “quase total” sobre o orçamento. Figuras como Delfim Netto e Ernane
Galvêas, que participaram dessas equipes, relataram anos mais tarde que “existia
um canal absolutamente aberto entre Governo e o setor empresarial” ou então que
esses grupos de civis ligados à área econômica faziam o que queriam “e não havia
força política, nem legislativa, nem no Judiciário, que pudesse se contrapor a esse
comando econômico” (Schwarcz e Starling, 2015, p. 451). Para aprofundamento ver
Souza (2014). A caracterização da ditadura como uma associação civil e militar,
aliás, não é exclusiva do campo da crítica ao regime, visto que mesmo figuras como
Carlos Medeiros Silva, um dos principais juristas e ideólogos da ditadura brasileira,
nomeado a Ministro do STF em 1965, após a edição do Ato Institucional nº 2, de-
fendeu que o “movimento civil e militar de março” teve no Ato Institucional o seu
“instrumento jurídico da revolução”, sem o qual se confundiriam com um golpe de
Estado (Chueiri e Câmara, 2015, p. 270).
CAMPO JURÍDICO E CONSERVAÇÃO DA ORDEM | 125
95 Engelmann (2017, p. 301) utiliza ainda o termo “jurisdicização” da política, para des-
crevê-lo como “um efeito de despolitização, que reconfigura os embates sociais e po-
líticos apresentando-os como uma disputa por princípios de direitos fundamentais
formulados tecnicamente e mediados pela expertise de advogados especializados”.
Um fenômeno de duas vias que, em um sentido, atribui mais centralidade ao Judici-
ário, mas, por outro lado “permite a captura do espaço judicial por diferentes grupos
sociais no curso de suas batalhas condicionadas pelo jogo político em si mesmo”.
128 | FELIPE ARAÚJO CASTRO
San Martín) por militares, para então exercer controle sobre a instituição,
no Brasil, os civis que ocupavam cargos no Itamaraty lá permaneceram e
serviriam a contento aos governos castrenses que se seguiam.
A situação não foi diferente com o Poder Judiciário. Em comu-
nicações confidenciais, desclassificadas em 2011, o embaixador brasileiro
em Buenos Aires para o ano 1978, Cláudio Souza (civil), destacou que o
Poder Judiciário argentino representava “o principal censor das violações
das liberdades individuais garantidas pela Constituição”, por meio do re-
púdio das condenações sem julgamento. No mesmo documento, o diplo-
mata reconhece que a “subversão” já havia sido desarticulada pelas Forças
Armadas argentinas, não persistindo mais qualquer “grave perturbação da
ordem pública” que justificasse a manutenção do estado de sítio. Na opi-
nião do embaixador, uma das razões para a manutenção do sítio naquelas
condições seria o fato do Governo saber que “seguramente o poder judiciá-
rio, amparado pelos dispositivos constitucionais pertinentes, se avocará o
conhecimento e o julgamento das causas que atualmente estão subtraídas
da sua esfera de competência” (Nunes, 2018; Bohoslavsky, 2015).
O Judiciário brasileiro dificilmente pode ser descrito como uma
instituição que ofereceu forte resistência aos governos militares, muito pelo
contrário. O nível de cooperação era determinado, em partes, pela identi-
ficação prévia das elites civis e militares no Brasil. Uma homogeneidade de
interesses que, durante o processo de redemocratização, facilitou o controle
sobre uma transição aparentemente ordeira, na qual sequer houve respon-
sabilização dos agentes de repressão do regime (Pereira, 2010).
A estabilidade da Lei de Anistia por aqui é outro demonstrativo
do grau de cooperação entre militares e civis, visto que as movimenta-
ções e pressões da sociedade não logram suspendê-la, mais uma vez na
contramão da realidade regional. Ainda pior, a declaração da recepção da
Lei de Anistia (1979) pela Constituição de 1988, feita pelo STF em 2010,
em sede da Ação de Descumprimento a Preceito Fundamento (ADPF
nº 153), está em desacordo com a sentença posteriormente proferida
pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) no caso Gomes
Lund e outros VS. Brasil (Guerrilha do Araguaia), na qual o Órgão do
sistema regional de proteção aos direitos humanos declarou ilegítima a
132 | FELIPE ARAÚJO CASTRO
1.1.
SUPREMACIA CONSTITUCIONAL: EVOLUÇÃO E
EMANCIPAÇÃO OU CONSERVAÇÃO E DOMINAÇÃO?
zoavelmente bem, nas últimas duas décadas e meia, até quando sobreveio
uma profunda crise econômica de escala global.
Não adentraremos nos objetivos econômicos que foram protegidos
e expandidos pela ditadura brasileira,99 nem na história das resistências ao re-
gime,100 mas ressaltamos que, apenas após as crises econômicas da década de
1970, que minaram o restante do apoio popular dos regimes militares, e após
a desarticulação total dos movimentos de oposição ao governo via repressão,
é que as elites dominantes entenderam que era “necessário” regressar à de-
mocracia. Assim, “em um movimento de constante distensão/contração, os
militares ‘transferiram’ o poder aos civis sem colocar em risco a dominação
burguesa no país” (DEO, 2014, p. 315). É emblemático recordar que o pri-
meiro Presidente civil da nova República foi um dos maiores colaboradores
políticos dos militares na velha ditadura, José Sarney. Mesmo o Presidente
que fora eleito, mas impedido de assumir em função de seu falecimento, tam-
bém transitava muito bem entre os militares.
Por outro lado, o processo de transição negociada intraelites não
foi desprovido de atritos. Entre os grupos havia interesses dissonantes, des-
de os que se opunham à abertura aos que desejavam radicalizar conquistas
democráticas. Entre os primeiros estavam as alas mais conservadoras do
exército, receosas da eventual responsabilização pelas graves violações de
direitos humanos praticadas pelo regime, e entre os segundos, fragmentos
da classe média com alto capital cultural e organizações alavancadas pelo
renascimento do movimento operário. Existiam ainda importantes dispu-
tas entre as frações industriais e financeiras da elite econômica.
É apenas partindo dessa reconstrução que é possível entender a
forma final que assumiu a Constituição Federal de 1988. Se por um lado
houve a inclusão de garantias sociais robustas, como o direito a saúde,
a previdência e a moradia, que representaram concessões históricas das
elites do poder, por outro lado adotou-se uma economia de mercado re-
gulada, como modelo de produção e circulação de bens, que devia tanto
valorizar o trabalho quanto a livre iniciativa.
101 Sobre os diferentes níveis de intensidade dos conflitos em cada país, basta sublinhar-
mos que o período imediatamente anterior ao golpe militar na Argentina assistiu a
guerrilhas urbanas violentas; enquanto, no caso chileno, foi necessário destituir o
Governo socialista eleito de Salvador Allende, num assalto militar patrocinado pelos
EUA, que resultou na morte do presidente chileno em 11 de setembro de 1973. Para
uma compreensão dos fatores externos (operações encobertas da CIA e os boicotes
econômico e financeiro), bem como os fatores internos (enfrentamento com as elites
tradicionais chilenas) que levaram a queda de Salvador Allende ver Bandeira (2008).
CAMPO JURÍDICO E CONSERVAÇÃO DA ORDEM | 143
102 All of these instances of judicial empowerment through constitutionalization did not
stem from constitutional negotiations under a veil of systemic uncertainty at times
of political transition. Rather, they were the outcome of a deliberate strategy under-
taken by hegemonic yet threatened political elites (in association with economic and
judicial elites sharing compatible interest) who found strategic drawbacks in adhering
to democratic decision-making processes. From an instrumental perspective, judi-
cial review may facilitate effective transition to democracy by providing insurance
to prospective electoral losers. However, it must not be overlooked that “hegemonic
preservation” through constitutionalization is driven in no small part by forces and
interests antithetical to democratic governance (Hirschl, 2004, p. 104).
CAMPO JURÍDICO E CONSERVAÇÃO DA ORDEM | 145
cial assumem que suas posições serão melhoradas sob uma juristocracia”
(Hirschl, 2004, p. 86).
Estudos apontam que em uma perspectiva de longo prazo as elites
políticas e econômicas tendem a preferir democracias a sistemas autoritá-
rios, mas a tendência apenas se confirma se, durante os períodos de tran-
sição, as elites puderem construir estratégias eficientes de bloqueio contra
a redistribuição de renda e a redução das desigualdades sociais (Albertos e
Menaldo, 2013, p. 576). Isso porque, sob regimes autoritários, as elites não
contam com instituições totalmente confiáveis para a proteção satisfatória
de seus privilégios e interesses juridicamente garantidos. Em outras pala-
vras, democracias podem ser instrumentos eficazes de manutenção de de-
sigualdades historicamente estabelecidas, enquanto governos autoritários,
que por sua natureza tendem a instabilidade, por uma série de motivos,
podem ver-se incentivados à expropriação das elites.
A capacidade de influenciar o novo regime, portanto, depende do
estado de forças no qual as elites política e econômica chegam ao perío-
do de transição. Assim, a intuição que esse grupo numericamente muito
inferior teme a democracia, pelas suas potencialidades de redistribuição
de renda, posses e privilégios, não se sustenta em ambientes de grandes
desigualdades sociais e carentes de momentos revolucionários, como o
caso brasileiro, pois a democracia pode vir a servir-lhes ainda melhor que
os regimes autoritários.
Albertus e Menaldo (2013, p. 581) argumentam que sob a forma
democrática, especialmente em democracias extremamente desiguais, as
elites econômicas são capazes de reter grande parte dos privilégios que
detinham sob um regime autoritário ou até mesmo aumentar seus domí-
nios. Segundo os autores “quando a desigualdade é grande em sistemas
democráticos, o poder das elites econômicas cresce e conduz a distribui-
ções de renda ainda piores”.
A forte influência das elites tradicionais na redemocratização bra-
sileira, facilitada pela ausência de pressões revolucionárias e pela tutela
dos militares sob o processo, possibilitou que esses grupos construíssem
eficientes estratégias de preservação da sua dominação. Uma das princi-
pais estratégias nessa direção foi o desenho de um poder judiciário forte
146 | FELIPE ARAÚJO CASTRO
2
O DIREITO CONSTITUCIONAL
MUDA, A ELITE JURÍDICA
PERMANECE
| 149
150 | FELIPE ARAÚJO CASTRO
110 “Não teve o Judiciário meios para intervir contra essas práticas lamentáveis e en-
cabuladoras para nós. Afastado da apreciação dos atos institucionais e dos que se
praticaram com fundamento neles, sem os instrumentos que lhe permitissem iden-
tificar a violência repressiva e seus atores, processá-los e puni-los, foi então a justiça
uma sombra de si mesma, no pior momento da sua história” (Rosa, 1985, p. 29).
CAMPO JURÍDICO E CONSERVAÇÃO DA ORDEM | 155
111 Outros autores apontam a importância de Weimar para compreensão de nossa atual
crise constitucional, a exemplo de Bielschowsky (2021).
CAMPO JURÍDICO E CONSERVAÇÃO DA ORDEM | 157
2.1.
A ATUAÇÃO DOS MAGISTRADOS
E DO STF DURANTE A DITADURA
114 De acordo com Max Weber (2004) existe uma afinidade eletiva entre dois elementos
quando estão ligados por um ‘grau de adequação’ particularmente elevado, fazendo
com que se coadaptem e se reforcem mutuamente, a tal ponto que uma íntima e
sólida unidade se instaure. Sobre o tema ver ainda Löwy (2011). É o próprio Weber
quem nega a existência de uma relação necessária entre capitalismo e democracia,
afirmando ser “bastante ridículo” atribuir ao capitalismo uma afinidade eletiva com
a democracia, “ou mesmo com a liberdade”, quando a a questão deveria ser: “como
tais coisas são possíveis, em longo prazo, sob a dominação do capitalismo?” Apud
Löwy (2011, p. 135).
115 Nada melhor que dar voz aos próprios ideólogos do neoliberalismo. Um dos ex-
poentes dessa corrente de pensamento, Friedrich Hayek, dirigindo-se a um jornal
chileno durante a ditadura militar naquele país, chegou a declarar publicamente sua
preferência pessoal por uma ditadura que garantisse o liberalismo a uma democra-
cia sem liberalismo (Dardot e Laval, 2016, p. 184). A entrevista foi concedida em
1981 ao jornal El Mercurio. Encontra-se publicada em inglês pelo instituto Hayek,
onde se lê “As you will understand, it ispossible for a dictator to govern in a liberal
way. And it is also possible to a democracy to govern with a total lack of liberalism.
Personally I prefer a liberal dictator to democratic government lacking liberalism”.
CAMPO JURÍDICO E CONSERVAÇÃO DA ORDEM | 161
116 Entre os 1.968 servidores públicos aposentados e os 1.815 exonerados, entre os anos
de 1964 e 1973, nem cinco eram magistrados (Pereira, 2010, p. 117).
164 | FELIPE ARAÚJO CASTRO
caso de Evandro Lins e Silva, bastou que decidisse contra a vontade das
Forças Armadas, concedendo habeas corpos pontuais à presos políticos
quando as prisões ultrapassavam os prazos legais, para que ele se indis-
pusesse com os militares. Em suma, era necessário muito pouco para
tornar-se um inimigo do Estado e a grande maioria dos ministros que
compunham a Corte sequer fez isso.
Como dito anteriormente, o comportamento heroico não pode
ser presumido, porém, tão pouco a imobilidade e o consentimento de-
vem ser recompensados. Nesses termos, parece-nos razoável que os juí-
zes que compuseram o STF durante os anos da ditadura civil-militar no
Brasil, sobretudo aqueles que foram indicados pelos Governos militares,
tivessem sido destituídos de seus cargos no período de transição. Sua
subserviência aos desmandos de um governo autoritário, por medo ou
conforto; o habitus específico de cada um desses magistrados, que os tor-
nou elegíveis ao cargo de ministros pelos militares, são fatores mais que
suficientes para lançar lhes uma forte suspeita sobre seu compromisso
com o Estado Democrático-Social de Direito que procurava-se construir.
A permanência desses quadros – O Ministro Moreira Alves apo-
sentou-se apenas em 2003 – é apenas mais um ponto negativo de uma
transição gradual, que manteve muito do Estado autoritário anterior, e
que, constitui hoje, talvez, o principal obstáculo para a concretização da
ordem constitucional de 1988.
O jornalista Felipe Recondo publicou livro baseado em ampla
documentação histórica, mas, sobretudo, em fontes orais e/ou pessoais
(anotações, diários e entrevistas), acerca da atuação dos Ministros do STF
e da Corte durante a ditadura civil-militar. A obra tem um tom narrati-
vo-descritivo e o autor evita posicionar-se sobre se o funcionamento do
Tribunal servira mais à legitimação da ditadura ou à defesa das liberdades
individuais. Vejamos:
para a Ilha de Fernando de Noronha, onde ficara preso por meses, até ser
transferido novamente para o Recife.117
No Decreto de prisão do Ex-Governador constava uma redação
que seria repetida inúmeras vezes na perseguição de indivíduos conside-
rados subversivos pelo regime, Arraes teria procurado “mudar a ordem
política e social estabelecida na Constituição, mediante ajuda ou subsídio
de Estado estrangeiro ou de organização estrangeira ou de caráter inter-
nacional” (Recondo 2018, kindle). Os militares não poupariam esforços
para combater esse tipo de iniciativa, paradoxalmente, se valendo de au-
xílio estrangeiro para realizar essa persecução.
Seguiu-se a impetração de dois habeas corpus pela defesa do go-
vernador, primeiro junto ao Supremo Tribunal Militar e, posteriormente
junto ao STF, ainda no ano de 1965, após a denegação do pedido junto ao
tribunal castrense. O que se assistiu foi um debate que era exclusivamente
jurídico apenas na aparência; discutia-se a competência dos tribunais mi-
litares para processar e julgar governadores e ex-governadores, um tema
que, aliás, seria central na prática do Tribunal durante os primeiros anos
da ditadura. O que não aparecia na superfície, no entanto, era a manipu-
lação do aparelho judicial para perseguição política.
No habeas corpus junto ao STF a defesa alegou justamente a tese
de que a justiça militar não seria competente para julgar e processar um
ex-governador, pois essa competência recairia sobre o Tribunal de Justi-
ça estadual, depois de aprovado a abertura de denúncia pela Assembleia
Legislativa. Em 19 de abril de 1965, a Corte decidiu por unanimidade
pela soltura do ex-governador, contrariando diretamente os militares.
A maioria dos Ministros defendeu a incompetência da justiça militar
no caso, enquanto uma minoria, politicamente mais habilidosa, tam-
bém concedeu o remédio constitucional, mas sobre o argumento que
a prisão “temporária” tinha se alargado mais que o suficiente para a
realização das investigações.
sicionistas, bem como por juízes com posições de centro, que apesar de
terem apoiado o golpe militar, logo discordariam dos métodos de condu-
ção da vida política na ditadura.
Com o tempo e após as sonoras derrotas nas poucas disputas
que encampou, o STF foi cada vez mais sendo homogeneizado, com o
aumento do número de juízes indicados pelo regime, as aposentadorias
naturais ou forçadas dos antigos juízes e o enquadramento de qualquer
postura desviante; até o momento ápice do processo de encapsulamento
da burocracia judicial, representado pela edição do AI-5.
Não se ouviu mais nada.
É importante destacar que o Judiciário, enquanto instituição,
optou, desde o início, por uma política de não confrontamento com os
militares; uma postura que sequer questionava a utilização sistemática do
medo e da tortura nos processos de investigação, seja no âmbito das pri-
meiras instâncias ou na Corte Suprema, passando pela participação ativa
de juristas civis nos Tribunais militares. Dessa forma, foi conivente com
o regime e serviu para emprestar-lhe uma roupagem de legalidade que,
muito provavelmente, contribuiu para a longevidade do regime e para
formação dos mitos sobre sua “brandura”, além de impor limites às possi-
bilidades de democratização das estruturas judiciais durante a transição.
A tese aqui defendida, aliás, é embasada pelos resultados apre-
sentados pela Comissão Nacional da Verdade. Em seu relatório, a Co-
missão avaliou que as graves violações aos direitos humanos durante o
regime militar brasileiro decorreram “fundamentalmente de ações ou
omissões de órgãos do Poder Executivo”, porém, destaca que a política
de Estado adotada durante o período significativas repercussões também
nos demais poderes, especialmente no Judiciário (CNV, p. 934).
A relação entre as elites militares e jurídicas não foi linear, ten-
do sido necessário a realização de intervenções pontuais para alinhar a
magistratura civil aos desígnios dos diferentes Governos militares que
se sucederam. Porém, pelas razões expostas e pela pesquisa bibliográfica
realizada, é seguro afirmar que se tratou muito mais de uma relação har-
moniosa que conflituosa, na qual o STF, órgão máximo da organização
CAMPO JURÍDICO E CONSERVAÇÃO DA ORDEM | 177
120 O termo foi usado por O’donnell (1973) para descrever o aparelho estatal desenvol-
vido no contexto da modernização periférica de países da América do Sul (Brasil e
Argentina), que se diferenciava das burocracias populistas e tradicionais.
178 | FELIPE ARAÚJO CASTRO
2.2.
A ORDEM DOS ADVOGADOS NOS
PRIMEIROS ANOS DA DITADURA
122 Quando se fez necessário, fomos às fontes originais, às atas consultadas pelas pes-
quisadoras, uma vez que a consulta à esse tipo de fontes tem a vantagem de afastar
CAMPO JURÍDICO E CONSERVAÇÃO DA ORDEM | 181
3
LEGADOS AUTORITÁRIOS:
A ELITE JURÍDICA DO
TENENTISMO TOGADO
AO GOLPE JURÍDICO-
PARLAMENTAR DE 2016
| 189
190 | FELIPE ARAÚJO CASTRO
124 O termo “cruzada judiciária” é utilizado pelo ex-Juiz Sérgio Moro, ao definir a ope-
ração italiana de combate a corrupção, Mani Pulite, na qual se inspirou para con-
dução da Operação Lava Jato. Após elogiar sem ressalvas a operação italiana, Moro
destaca que no Brasil encontravam-se “presentes várias das condições institucionais
necessárias para a realização de ação judicial semelhante” (Moro, 2004, p. 61).
CAMPO JURÍDICO E CONSERVAÇÃO DA ORDEM | 191
125 Esse processo inicia-se antes mesmo do mensalão, uma vez que as práticas descritas
já podiam ser observadas em investigações que envolveram o Banestado ainda na
década de 1990. Com efeito, o processo poder ser visto com uma das consequências
possíveis do hiper-empoderamento das instituições jurídicas iniciado na redemo-
cratização (Marona e Kerche, 2021).
192 | FELIPE ARAÚJO CASTRO
pois, se é verdade que a Lava Jato não criou o bolsonarismo, é certo que
colaborou com a emergência da cultura no qual Bolsonaro prosperou.
É importante destacar que não houve uma inovação nas carac-
terísticas das elites jurídicas em meio às megaoperações de combate a
corrupção, os traços messiânicos e elitistas sempre estiveram presentes
no campo jurídico nacional, manifestando-se como maior ou menor in-
tensidade a depender do contexto sócio-histórico de inserção. No entan-
to, a prática apenas pôde atingir seu paroxismo durante a Lava Jato, seu
ponto de maior poder e prestígio social, a partir do contexto específico
de valorização do momento judicial ocorrido pós-88. A intensificação
da crise das instituições representativas e os refluxos da crise econômica
mundial de 2008 se sobrepuseram ao contexto, ampliando ainda mais o
prestígio do sistema de justiça.
Nesse ponto é necessário abordar os quase quinze anos em que o
Partido dos Trabalhadores esteve na condução do Executivo Federal, por-
que foi nesse período que a burocracia do sistema de justiça mais foi re-
forçada e valorizada. A estruturação e profissionalização de suas carreiras
forneceram as condições de realização das megaoperações mencionadas,
que, paradoxalmente, atingiriam sobremaneira os quadros e as gestões do
PT, especialmente perseguidos na espetacularização da persecução penal
moralizante.126 A primeira vista, o fato do sistema de justiça ter se voltado
contra os grupos políticos que o fortaleceram, inicialmente, pode sugerir
uma ação republicana por parte dos operadores jurídicos, em uma ideia
de que a lei seria para todos. Porém, essa noção apenas se sustenta na apa-
rência, pois não resiste a uma análise atenta acerca da seletividade com
que a criminalização secundária foi conduzida pelo sistema de justiça.
126 O Ministério Público Federal, por exemplo, obteve considerável autonomia em re-
lação ao Governo Federal quando obteve de Luis Inácio Lula da Silva o compro-
misso que a escolha do Chefe da instituição consideraria lista tríplice formada por
eleição direta de seus membros. “Indicativo dessa autonomia é que os próprios go-
vernos petistas que a garantiram, escolhera e reconduziram os Procuradores Gerais
da República indicados pela categoria no período, se tornaram os principais alvos
de suas ações de combate à corrupção, do chamado ‘mensalão’ à Operação Lava
Jato” (Almeida, 2016, p. 71).
CAMPO JURÍDICO E CONSERVAÇÃO DA ORDEM | 193
conflitos, torne-se apenas mais uma arena política, nas quais seus opera-
dores atuam como agentes políticos autointeressados disfarçados de téc-
nicos. Esse imenso risco é hoje uma realidade sem soluções simples ou
visíveis no horizonte próximo.
As operações de combate a corrupção analisadas a seguir são
resultado do não enfrentamento destas questões. Com efeito, após a re-
democratização, as instituições do sistema de justiça acumularam os po-
deres e as competências necessários para emparedar o sistema político.
No entanto, ao empreenderem uma cruzada messiânica contra o sistema
político, frequentemente interpretada na chave do bem contra o mal,127
acabaram por sacrificar os pilares do Estado de Direito que supostamente
lutavam para preservar.
3.1.
O TENENTISMO TOGADO NA NOVA REPÚBLICA:
DO MENSALÃO À LAVA-JATO
127 Em recente pesquisa, lastreada na coleta de dados acerca das interações entre os ope-
radores da Lava Jato e usuários da rede social Facebook, Fábio de Sá e Silva (2022,
p. 356) anotou que os agentes jurídicos eram “glorificados” pelos seus seguidores, e
que esse comportamento era alimentado pelos seus principais operadores. Deltan
Dallagnol, por exemplo, frequentemente apelava para uma retórica que relacionava
os agentes da Operação à mártires e missionários, descrevendo a si mesmo como um
“discípulo de Deus”. Ao fazê-lo, construíam uma imagem da Lava Jato como uma ação
patriótica-messiânica, conduzida por indivíduos extraordinários guiados por propó-
sitos divinos, o que, consequentemente, blindava-os de qualquer crítica.
CAMPO JURÍDICO E CONSERVAÇÃO DA ORDEM | 195
128 Falando especificamente sobre a Lava Jato, mas desenvolvendo argumentos que po-
dem ser aplicados também ao Mensalão, Singer defende que um “efeito republicano
da Lava Jato teria sido desvelar esquemas consolidados de corrupção que remonta-
vam, pelo menos, à experiência democrática pós Estado Novo (Singer, 2018). Pedro
Campos (2014), por sua vez, sustenta que a prática se consolida ainda na ditadura
civil-militar de 1964.
129 Ainda segundo Wanderley dos Santos (2017), o Mensalão possibilitou o golpe jurí-
dico-parlamentar ao canonizar três teses esdrúxulas: (i) o sequestro do poder cons-
tituinte do povo, ao passo que a Constituição passou a ser aquilo que o STF diz
que ela é; (ii) uma disjunção epistemológica entre ser inocente e não ser culpado,
na qual inverte-se a lógica do inocente até que provado o contrário, para deman-
dar-se a comprovação da inocência ao acusado ao invés da obrigação estatal de
demonstração da culpa; e (iii) a imputação de possibilidade objetiva e causalidade
adequada, sustentada numa interpretação distorcida da teoria do domínio do fato,
na qual existe a presunção de que uma hierarquia de poder político e administrativo
acontece sem ocorrências de falhas, de forma que a inexistência de provas de cone-
xões inferiores não é capaz de inocentar o réu, mas, pelo contrário, de demonstrar
sua responsabilidade e ardil.
196 | FELIPE ARAÚJO CASTRO
130 Segundo André Singer (2012), o lulismo é uma forma de administração do político
que se cristaliza em 2006, com o realinhamento eleitoral provocado pelo mensalão,
que aproximou o governo do pemedebismo e possibilitou-lhe maior margem de
manobra no segundo mandato de Lula. É marcado por políticas públicas voltadas
para redução da pobreza sem confronto com o capital sob o signo da contradição.
CAMPO JURÍDICO E CONSERVAÇÃO DA ORDEM | 197
131 Rubens Casara (2017) descreve esse processo como característica de um Estado
Pós-Democrático, ainda que não apresente razões suficientes para justificar a mu-
dança de paradigma, entre um Estado de Direito (tipo ideal) e sua suposta defor-
mação pós-democrática. De nossa parte, acreditamos que as características que
o autor apresenta como sintomas pós-democráticos (mercantilização do mundo,
aproximação entre os momentos político e econômico, difusão do pensamento au-
toritário) sempre fizeram parte do Estado moderno, se manifestando em maior ou
menor intensidade a depender do contexto sócio-histórico considerado. Pode-se
argumentar, no entanto, que vivemos uma quadra histórica de intensificação dessas
características negativas, mas nada que justifique a modificação do paradigma de
Estado de Direito para Estado Pós-Democrático. Por isso preferimos expressões
como desdemocratização para referência aos mesmos fenômenos (Brown 2015;
Streeck, 2013). Não obstante a divergência conceitual faremos uso da narrativa feita
por Casara acerca do Ação Penal 470.
198 | FELIPE ARAÚJO CASTRO
tativo brasileiro, ao mesmo tempo em que pode também ter sido instru-
mentalizado e direcionado contra grupos específicos da política nacional;
corrompendo o mecanismo mesmo que deveria combater a corrupção.
No entanto, o mais importante para as hipóteses aqui desenvol-
vidas não é a análise dos julgamentos e a apuração das responsabilidades
dos agentes envolvidos. Em outro sentido, importa o fato que, a partir
do Mensalão, os limites legais e teóricos do poder de punir foram re-
vistos, quando não abandonados, para permitir a punição exemplar de
indivíduos específicos; invertendo uma tendência garantista dos direitos
fundamentais iniciado em 88 e representando um caso exemplar do uso
político do sistema de justiça.
As antecipações públicas dos votos e a severidade das punições
como estratégia de indução das delações premiadas – instrumento re-
gulamentado no interstício entre as duas operações e que seria ampla-
mente utilizado pela Lava-Jato – fizeram que o então indicado ao STF,
Luís Roberto Barroso, em sua sabatina junto ao Senado, declarasse que o
julgamento do Mensalão teria sido “muito duro”, e que representara “um
ponto fora da curva” na tradição daquela Corte, dando a entender que
discordava da postura e que assumiria posição diversa enquanto julga-
dor.132 No entanto, o ponto fora da curva tornar-se-ia a regra e o Ministro
Barroso se juntaria aos demais magistrados na confirmação da excepcio-
nalidade dos julgamentos da Lava-Jato.
Rubens Casara (2017, kindle) destaca que na AP 470 “é possível
encontrar atipicidades em todas as fases do procedimento”, citando desde
a sessão do juízo de admissibilidade, quando os juízes e juízas deveriam
limitar-se a avaliar a presença dos indícios da possível responsabilidade dos
acusados e, ao invés disso, já adentravam em considerações relativas ao mé-
rito, antecipando indevidamente as condenações que estavam por vir.
As regras de competência foram desconsideradas ou interpre-
tadas de maneira distintas de outros casos análogos, no caso, para de-
terminar que réus sem foro privilegiado – e que, portanto, deveriam ser
133 Para uma compreensão do papel da mídia empresarial, na figura de um dos maiores
jornais impressos do país, ver Biroli e Montovani (2014).
134 As citações de Roxin podem ser encontradas em entrevista concedida pelo autor
alemão ao veículo Folha de São Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.
200 | FELIPE ARAÚJO CASTRO
br/fsp/poder/77459-participacao-no-comando-de-esquema-tem-de-ser-provada.
shtml. Acesso em 24 de junho de 2018.
CAMPO JURÍDICO E CONSERVAÇÃO DA ORDEM | 201
135 André Singer (2018, kindle) expõe que pelo menos dois exemplos comparados são
fundamentais para compreensão da Lava Jato. Na Itália, a operação Mãos Limpas
e, na Espanha, o escândalo dos Grupos Antiterroristas de Libertação. Ambas as
operações estrangeiras tiveram como consequência a inviabilização política de par-
tidos de centro esquerda e a projeção nacional dos operadores jurídicos envolvidos
à condição de heróis da classe média.
136 Idem.
202 | FELIPE ARAÚJO CASTRO
criminosas que favoreceu seus métodos após 2013, (iii) o apoio de insti-
tuições da elite jurídica, como a Polícia Federal, a Procuradoria-Geral da
República e o próprio STF e (iv) a audácia do grupo sediado no Paraná,
especialmente a partir de novembro de 2014.137
Em relação ao primeiro ponto, já apresentamos os principais le-
gados do Mensalão e sua relação de continuidade com a Lava-Jato. Sobre
o segundo ponto, destacamos apenas que a promulgação da Lei do Crime
Organizado (12.850/2013), feita pelo governo Dilma como resposta às
demandas de junho de 2013, permitiram a Lava-Jato ir mais longe que
suas predecessoras ao regulamentar a colaboração premiada. De forma
que em seguida nos ateremos aos dois últimos fatores levantados por Sin-
ger: o apoio das elites jurídicas à Lava-Jato e o comportamento específico
da facção paranaense da operação, em função de ambos os pontos esta-
rem diretamente conectados as nossas principais hipóteses.
Nosso objetivo é demonstrar como uma composição homogênea
intraelites é capaz de formar uma visão compartilhada de mundo e forjar
alianças de interesses que resultam em ações que favorecem a consecu-
ção de resultados coletivamente desejados, ainda que não elaborados de
maneira plenamente consciente. No caso específico, o pertencimento dos
operadores jurídicos que conduziram a operação à classe média tradicio-
nal, associado às características ontonegativas do campo jurídico nacio-
nal e as crises política e econômica do período, favoreceram o surgimento
do “tenentismo de toga” que marcou a contribuição do campo jurídico no
golpe jurídico-parlamentar.
Além da cooperação de outras funções de elite do campo jurí-
dico, o apoio dos meios de comunicação é fundamental para o sucesso
da operação, a exemplo do que já acontecera na operação italiana Mãos
Limpas. Aliás, o uso dos meios de comunicação como instrumento de
mobilização da opinião pública em favor da operação é um efeito deseja-
do e programado, como se pode perceber da leitura de artigo publicado
pelo Juiz Sérgio Moro (2004).
137 Singer (2018, kindle) faz uma importante diferenciação entre as frações da opera-
ção sediadas no Paraná e em Brasília, que giravam respectivamente em torno das
figuras de Sérgio Moro e Rodrigo Janot.
CAMPO JURÍDICO E CONSERVAÇÃO DA ORDEM | 203
141 Além de outros parentes empresários importantes e membros da elite política. Se-
gundo a prosopografia consultada, a família Wolff dominou durante muitos anos a
prefeitura de São Mateus do Sul-PR. Essas famílias de origem imigrante passaram a
formar parte do estamento burocrático com seus privilégios e poderes, muitas vezes
se associando na grande e antiga teia de nepotismo, de escravidão, exclusão social e
coronelismo das antigas e sempre atuais oligarquias familiares da classe dominante
paranaense. (Oliveira et. all., 2017, p. 10).
142 Sobre a família Carlos Lima, destaca a pesquisa que “encontramos esta família na
Genealogia Paranaense (V1, 543 e V4, 437) situada nas oligarquias da Lapa entre
CAMPO JURÍDICO E CONSERVAÇÃO DA ORDEM | 207
mília de procuradores, pois além do seu pai antes dele, seus irmãos Paulo
Ovídio e Luiz José dos Santos Lima são procuradores de justiça.
O procurador Deltan Dallgnol é também filho de um procura-
dor de justiça, Agenor Dallagnol. Deltan, que se tornou nacionalmente
famoso pela apresentação de Power Point que lhe rendeu uma condena-
ção para indenizar o ex-Presidente Lula. Nela, o nome “Lula” aparece no
epicentro de várias esferas azuis com dizeres genéricos como “expressi-
vidade”, “José Dirceu”, “perpetuação criminosa no poder”, “maior benefi-
ciado”, etc. Atualmente encontra-se filiado ao Podemos para concorrer a
cargo eletivo nas eleições de 2022.
O Procurador foi quem mais produziu ou deixou-se produzir
material sobre sua atuação na Lava-Jato, razão pela qual nos deteremos à
essa documentação. Ademais, suas motivações parecem ser mais simples
de compreender, portanto, mais fáceis de demonstrar. Com efeito, em-
bora o Procurador também tivesse anseios políticos – como fica claro no
chat privado que mantinha consigo, revelado pelo The Intercept –, resta
claro que sua principal motivação era monetária.
De fato, é preciso realizar uma análise sociológica que não des-
cuide do discurso, mas que preste atenção mais nos comportamentos dos
agentes sociais do que nas narrativas que esses sujeitos constroem sobre si
mesmos. E as ações do coordenador da Lava Jato, revelados pela Vaza Jato,
contrariam em absoluto todas as justificativas legitimantes da força-tarefa.
Poderíamos alargar a discussão nos atendo a cada um dos com-
portamentos desviantes de Deltan na coordenação da Operação, pois a
lista é grande: (i) manipulação de operações para pressionar Ministros de
instâncias superiores, (ii) controle sobre o timing de divulgação de fatos e
instauração de ações, manipulados de acordo com interesses coorporati-
vos, (iii) acesso a informações privilegiadas e sigilosas de outros órgãos da
burocracia estatal, (iv) tentativas de pautar movimentos sociais em bene-
143 Todas essas práticas foram reveladas pelo jornal The Intercept, em uma série de
reportagens denominadas Vaza-Jato. Disponíveis em: https://theintercept.com/
series/mensagens-lava-jato/. Acesso em 22 de abril de 2022. Apesar do conteúdo
revelado nunca ter sido confirmado pelos envolvidos, tão pouco foi desmentido,
além de outras investigações reforçarem as práticas reveladas, tendo servido de base
para reversão de várias decisões da Lava-Jato.
CAMPO JURÍDICO E CONSERVAÇÃO DA ORDEM | 209
144 Não obstante a coloração político-partidária que seus livros mais recentes têm assu-
mido, o diagnóstico de Jessé Souza sobre a radicalização das classes médias contra
o PT mantém sua acurácia. Para o autor, quando as classes médias saem às ruas em
2013, não foi pela corrupção do PT, visto que permaneceram em casa nos escânda-
los de corrupção que sucederam o golpe. Saíram porque o partido teria sido o único
a diminuir as distâncias sociais entre classes no Brasil moderno (Souza, 2017).
145 As informações são citadas no livro de Singer, O lulismo em crise, e foram reti-
radas de reportagem do jornal Estadão. Disponível em: https://politica.estadao.
com.br/noticias/geral,delegados-da-lava-jato-exaltam-aecio-e-atacam-pt-na-re-
de,1591953. Acesso em 25 de junho de 2018.
146 O pemedebismo é representando pelos parlamentares que compõe o chamado Cen-
trão, marcado pela transformação da meta de compor governo como um fim em si
mesmo. Representa a ideia que apenas é possível governar o país com a construção
CAMPO JURÍDICO E CONSERVAÇÃO DA ORDEM | 211
3.2.
A CONTRIBUIÇÃO DAS ELITES JURÍDICAS NO
GOLPE JURÍDICO-PARLAMENTAR DE 2016
147 Sobre o tema, destacamos a publicação organizada por Jinkings et al. (2016) e Braga
(2018). No plano internacional sublinhamos a obra de Gentili (2016) e Anderson
(2016). Partindo dos pressupostos da história dos conceitos e caracterizando o pro-
cesso de afastamento de Dilma Rousseff como Golpe, ver ainda Bignotto (2021).
148 Para Meyer (2018, p. 731), em um contexto de instabilidade constitucional, que
implica na possibilidade do uso de instrumentos constitucionais para obtenção de
fins políticos, “o processo de impedimento pode ser usado em favor não da norma-
lidade constitucional, mas para a promoção de interesses políticos estrategicamente
escondidos”. Segundo o autor, o impedimento de Dilma pode ser descrito como um
golpe parlamentar ou legislativo.
149 Entre as irregularidades perpetradas, Thomas Bustamante (2017, p. 142) destaca
a violação da irretroatividade da lei, a ausência de tipicidade estrita, a ausência de
comprovação de autoria e dolo específico, a extensão do tipo penal por analogia e
a violação da proibição do “fechamento de questão” na Câmara dos Deputados e
desvios de finalidade.
CAMPO JURÍDICO E CONSERVAÇÃO DA ORDEM | 215
150 Outro ponto que aponta para o caráter exclusivamente político do impeachment, mais
especificamente de chantagem política feita via esse instrumento, foi o fato de ter pai-
rado sobre a Presidente Dilma Rousseff durante meses. Utilizado como barganha, o
processo apenas foi aberto, pelo então Presidente da Câmara, Eduardo Cunha, um
dia após deputados do partido da presidente terem votado a favor da cassação do
pemedebista no Conselho de Ética da Casa. O pedido de impedimento argumentava
que a presidência cometera crime de responsabilidade fiscal ao realizar as “pedaladas
fiscais” no ano de 2015. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2015/12/03/
politica/1449101524_606499.html. Acesso em 18 de julho de 2018.
216 | FELIPE ARAÚJO CASTRO
151 Sujeitos que utilizam sua expertise jurídica para exercer cargos de confiança de na-
tureza política. Com efeito, Miguel Reale Junior, Janaina Paschoal e Hélio Bicudo
exerceram ao longo da vida cargos como assessorias em Secretarias de Segurança
Pública e junto ao Ministério da Justiça (Paschoal), a própria função de Ministro da
Justiça, conselheiro da OAB e Secretário Estadual (Reale), enquanto Hélio Bicudo
concorreu inúmeras vezes a cargos eletivos, tendo sido Vice-Prefeito da cidade de
São Paulo. Naturalmente, o perfil de Bicudo difere dos seus colegas pela sua longa
trajetória junto ao PT.
152 O documento será citado, de agora em diante, apenas como Denúncia de Impeachment.
153 A “Águia de Haia” tornaria a ser citada, em uma passagem que clama pelo resgate da
moralidade “para o cidadão que paga seus impostos [...] não sinta vergonha de ser
brasileiro”. Denúncia de Impeachment, p. 62.
CAMPO JURÍDICO E CONSERVAÇÃO DA ORDEM | 217
154 A palavra “moral” encontra-se destacada em caixa alta, um recurso comum da escrita
jurídica, cumprindo o papel de destacar palavras-chave e ideias forte das peças jurídicas.
155 Mais uma vez o recurso à em caixa alta é utilizado.
218 | FELIPE ARAÚJO CASTRO
156 Os vídeos mencionados estão disponíveis na página Vem para Rua Brasil, da pla-
taforma Youtube©. Disponíveis em: https://www.youtube.com/watch?v=h-OTUjA-
Se-0, para Miguel Reale Junior; https://www.youtube.com/watch?v=rMf8guO7xhk,
para Hélio Bicudo; e em https://www.youtube.com/watch?v=nC8ONn3DafA, para
Janaina Pachoal. Acessos em 07 de agosto de 2018.
CAMPO JURÍDICO E CONSERVAÇÃO DA ORDEM | 219
157 Um momento da sessão do Senado, na qual uma das idealizadoras do pedido de im-
peachment defendia as teses apresentadas no documento, “viralizou” em função da
intervenção do Senador Randolphe Rodrigues (Rede-AP). O parlamentar pediu a
opinião da jurista e professora da Universidade de São Paulo, Janaina Pachoal, sobre
créditos suplementares da mesma natureza dos editados por Dilma – que justificaram
o aditamento do pedido de impedimento –, mas assinados pelo então Vice-Presidente
Michel Temer. Sem se dar conta da armadilha discursiva que lhe havia sido proposta,
a jurista foi categórica ao afirmar que as edições de créditos suplementares sem a
autorização do Congresso configuram crime de responsabilidade, passíveis de impea-
chment. Ao ser informada pelo Senador que se tratava de decretos assinados não por
Dilma, mas pelo Vice- Presidente, a jurista, visivelmente constrangida, tergiversou,
220 | FELIPE ARAÚJO CASTRO
argumentando que, no caso de Michel Temer tratavam-se de atos por delegação que
excluiriam sua responsabilidade. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/no-
ticias/geral,randolfe-engana-janaina-e-faz-com-que-ela-apoie-impeachment-de-te-
mer,10000047203. Acesso em 07 de Agosto de 2022.
CAMPO JURÍDICO E CONSERVAÇÃO DA ORDEM | 221
mas também possibilitou lucros aos banqueiros como nunca antes vistos
na história desse país.163
Enquanto em 1964, “o objetivo central das forças hegemônicas
que patrocinaram o regime ditatorial instaurado [...] era deter o proces-
so de mudança inaugurado em 1930, cujo momento culminante deu-se
no Governo de João Goulart” (Souza, 2014, p. 331), o golpe de 2016 é
um dos resultados da crise da hegemonia do pensamento neoliberal no
mundo. Para Leda Paulani (2008, p. 74), o programa implementado após
o impedimento da presidente – que, aliás, já estava pronto um ano antes
– têm em sua essência “o resgate pleno da agenda neoliberal (o modelo
perdedor em 2014)”.
O que inicialmente pode parecer um paradoxo, como explicar
que o PT sofreu um golpe jurídico-parlamentar para que a agenda neo-
liberal fosse radicalizada, quando afirmamos que os governos do partido
mantiveram a agenda neoliberal dos governos anteriores?164 Trata-se de
um paradoxo apenas aparente, que se desfaz quando confrontado com o
ódio de classe característico de nossas elites, incapazes de tolerar qual-
quer alteração da ordem social que lhes desfavoreça.165 A insatisfação das
163 Para uma discussão acerca dos governos do PT como continuidade da agenda neo-
liberal iniciado ainda na década de 1980, por meio da chave conceitual da hegemo-
nia às avessas, que descreve um fenômeno no qual não são mais os dominados que
consentem sobre sua própria exploração, mas sim os dominantes que consentem
em ser conduzidos pelos dominados, desde que não se toque na forma de explora-
ção capitalista ver Oliveira (2018). Para o debate acerca da manutenção dos níveis
de desigualdade no Brasil, apesar dos resultados positivos no combate à miséria
extrema ver Paulani (2008).
164 As três principais razões interconectadas que possibilitam enquadrar as experiências
dos governos de Lula como neoliberais são: (i) adesão ao projeto de transformação do
país em plataforma de valorização financeira, por meio da (ii) propagação do discurso
There Is no Other Alternative (TINA) e (iii) a implementação de uma política social
centrada em políticas compensatórias de renda (Paulani, 2008, p. 71).
165 O ciclo político dos governos petistas foi marcado por um neodesenvolvimentismo
que tinha por base melhorar a posição da burguesia interna brasileira ao mesmo
tempo em que obtinha concessões às classes populares (por meio de medidas anti-
cílcicas e de inserção pelo consumo). Porém, sem desafiar os pilares da política ne-
oliberal macroeconômica. O resultado foi a permanência dos limites impostos pela
hegemonia bancário-financeira a perspectivas de longo prazo e qualquer projetos
CAMPO JURÍDICO E CONSERVAÇÃO DA ORDEM | 227
| 233
234 | FELIPE ARAÚJO CASTRO
171 PESSOA, Gabriela. Toffoli diz que hoje prefere chamar golpe militar de “movimento
de 1964”. Folha de São Paulo. São Paulo, 01 de outubro de 2018. Disponível em: ht-
tps://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/toffoli-diz-que-hoje-prefere-chamar-
-ditadura-militar-de-movimento-de-1964.shtml. Acesso em 25 de abril de 2022.
CAMPO JURÍDICO E CONSERVAÇÃO DA ORDEM | 237
172 Tamanaha (2006) sustenta, por exemplo, que a tradição do instrumentalismo legal
corroeu as bases do Rule of Law nos Estados Unidos.
238 | FELIPE ARAÚJO CASTRO
173 Em recente diagnóstico sobre o Estado de Direito no Brasil, Benvindo (2022) sus-
tenta que a manutenção de altos índices de desigualdades sociais e a preservação de
uma mentalidade autoritária (authoritharian mindset) são os principais obstáculos
à concretização do Rule of Law no país. Segundo o autor, “o futuro do Estado de
Direito no Brasil depende de como o país irá criar políticas públicas destinadas a
combater à pobreza, promover inclusão social e finalmente transformar a igualdade
jurídica em distribuição de poder de fato” (Benvindo, 2022, p. 214).
CAMPO JURÍDICO E CONSERVAÇÃO DA ORDEM | 239
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