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A miséria do mundo

Uma crítica bem viva

A marginalização da elite - a posição sui generis de um magistrado que pertence e não


pertence ao campo jurídico

● Bourdieu examinou o Direito como um campo social específico, onde diferentes


agentes e instituições interagem e competem pelo poder simbólico e material. Ele
argumentou que o campo jurídico, incluindo a magistratura, é um espaço de luta e
conflito, onde as diferentes posições e estratégias adotadas pelos agentes são
determinadas por sua posição no campo e seus recursos (como capital econômico,
cultural e social). Dentro do poder judiciário a própria classe da magistratura
apresenta conflitos pelo poder, já que a hierarquia se reproduz também dentro desse
microcosmo (juízes de menor e maior prestígio). O juiz entrevistado neste capítulo é
considerado de menor importância, pois ocupa o cargo em cidades menores, fora de
Paris. Também no Brasil de hoje, a classe de juízes não é homogênea - o juiz
federal tende a ser mais prestigiado que o juiz de direito.
● A definição desse prestígio passa pela própria ideia de capital, já que é definida por
aspectos financeiros - quanto mais bem pagos, mais valorizados e intelectuais -
quanto melhor a remuneração de um cargo público, mais concorrido é o concurso
para definir seus ocupantes, ou seja, a conclusão mais óbvia seria que os
concorrentes mais inteligentes ficam com os melhores cargos. Estar entre aqueles
que pertencem a essa classe, mas estão na sua base (“o pior dos melhores”) causa
um sentimento de angústia que só pode ser explicado pela sensação de não
pertencer inteiramente à classe que se ocupa. André, o magistrado entrevistado,
encontra-se exatamente nessa situação: fora de Paris, ele e sua esposa vivem o
cotidiano de juízes que saíram da escola da magistratura francesa com a
classificação “média”, e ocuparam cargos de menor importância. A sensação de ter
alcançado algum poder mas, ao mesmo tempo, não ser capaz de chegar ao topo de
sua classe pode ser resumido pelo “mal estar” citado pelo auxiliar de Bourdieu, que
descreve o processo da entrevista como um encontro entre um juiz de base - ser
marginalizado e fragilizado até em sua vida pessoal - e o sociólogo, ator externo que
poderia fornecer certo conforto à angustiante sensação de estar de fora mesmo
estando dentro.
● Não faríamos, a princípio, a associação entre “estar à margem” e “ser juiz”. É óbvio
que, quando pensamos na sociedade como um todo, a figura do juiz nunca poderia
ser associada à marginalização. Mas a sociedade não pode ser simplificada nessa
simples afirmação: sempre haverá certa desigualdade/desequilíbrio de poder,
mesmo dentro de uma classe que, de fora, é vista como homogênea. Expressões
como “baixo clero” - associada tanto à ordem religiosa quanto à parte do Congresso
Nacional que não ocupa cargos relevantes e é encarada como massa de manobra -
revelam que, na análise sociológica, a relativização é sempre necessária. Pensando
na existência de uma microfísica do poder, tal como pensada por Foucault, o poder
não é uma entidade monolítica expressa por uma estrutura maciça (como o Estado
ou a política), mas uma rede complexa de relações e práticas que atuam em níveis
múltiplos e interconectados da sociedade exercido nas relações cotidianas. O poder
não é algo que algumas pessoas possuem e outras não, mas é relacional e está
presente nas relações sociais. Assim, é possível entender, em alguma medida, o
verdadeiro sofrimento psíquico enfrentado por esse juiz entrevistado.
● Por alcançar o cargo por meio do que o próprio autor descreve como “estratégias
adotadas pela classe média nos anos 60 e que visavam converter uma parte de seu
capital econômico em capital escolar”, sua origem já revela sua inadequação. Ele
não descende de uma linhagem de juízes, de uma família cujos membros
substituem-se uns aos outros na mesma função ao longo das gerações. Ele é
externo, “de fora”, um outsider, cujos pais, de origem média, foram capazes de
dedicar parte de sua renda ao investimento em educação, o que permitiu que
alcançasse seu cargo. Seu próprio corpo revela seu (não) pertencimento à sua
classe - e isso causa uma frustração gigantesca (o poder simbólico descrito por
Bourdieu não se desvencilha e não pode ser retirado do corpo do sujeito).

“…o importante não era saber se éramos bem vistos, etc., mas conhecer a
qualidade do trabalho feito, se era juridicamente exato, se era
humanamente adaptado, se era… Ora, isso não é levado absolutamente
em consideração; pelo contrário, o fato de não usar gravata, por exemplo -
pessoalmente não ligo para isso - era uma revolução; houve reuniões
realizadas antes de assumir o primeiro cargo para o qual fui nomeado em
que o procurador reuniu todo o ministério público para dizer: "Cuidado, há
um juiz maluco que está chegando e que não usa gravata", etc. Enfim,
como se fosse verdadeiramente... No lado oposto, o próprio procurador
retirava informações dos processos selados, falsificava documentos sem
parar, pedia aos policiais para falsificarem documentos; ora, se a
hierarquia estivesse estado à escuta, não podia deixar de saber que isso
era verdade; mas ele nunca foi importunado. Sim, globalmente, o fato de
que a honestidade não compensa…” - o trecho em destaque revela o não
pertencimento, na totalidade, ao campo

● Sua frustração parte também de não ver em seus colegas de profissão as


características e os valores do que seria um “bom juiz”, que atribui a si mesmo:
"retidão", "honestidade", "integridade", "independência", "serviço público", "interesse
geral". Enxerga neles bons estudantes, mas não vê neles a benevolência e a
humanidade que seriam indispensáveis para a magistratura; não enxerga neles a
vocação que só a paixão pela justiça poderia trazer. E não só isso: se frustra porque
justamente esses profissionais são promovidos e alcançam o status maior da
carreira - demonstrando, mais uma vez, que seu pertencimento é deficitário, e que
somente o capital intelectual que o levou até ali não é suficiente para integrá-lo
totalmente. “Houve pessoas da minha turma que foram promovidas e que eram
nulidades. Sim, tive o sentimento de que meu valor não era reconhecido.”
● O inconformismo de quem não está confortável no lugar que ocupa também é um
elemento que pode ser encontrado no discurso do juiz. Ao mesmo tempo, a
melancolia causada por sentir que encarna as características necessárias para ser
bom no que faz e que se esforça diariamente nesse sentido, mas não é
recompensado por isso, revela uma “cegueira” de não enxergar naquele campo um
modelo de exclusão e de poder, que não aceita totalmente quem não está
completamente nele inserido. Por isso mesmo, ainda assume para si a
responsabilidade de “salvar a instituição de dentro” fazendo um trabalho ético, ainda
que isso nunca o levará ao reconhecimento que pensa merecer.

“Quanto mais é rejeitado pela instituição, tanto mais se agarra a ela, nem
que seja sob o modo simbólico: sua reabilitação social passa pela
reabilitação dessa instância. Até mesmo o próprio conteúdo das reformas
propostas traz a marca do sistema de valores que ele encarna. A partir do
que está no fundamento de sua rejeição, faz um projeto que só pode ser o
seu e deve ser reconhecido como tal porque é o único meio, a seu ver, de
conseguir reconciliar-se plenamente com um universo que é toda a sua
vida e paixão.”

● Conclusão: essa passagem deixa claro o trabalho que Bourdieu levou à cabo ao
longo de toda a sua construção teórica. O poder simbólico tão associado aos
campos - nesse caso, o campo jurídico - é tão sutil quando internalizado, que
impede a visualização clara, pelo indivíduo, de sua posição, o que só contribui para
a manutenção das coisas tal como são. O poder simbólico é um poder conservador.
O campo do Direito, atuando a partir de suas próprias hierarquias e regras, produz
marginalização a partir de duas dimensões - externa e interna, com quem está de
fora e entre seus próprios membros - criando o que parece, para nós, uma figura
quase irreal: a elite marginalizada.

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