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social — que correpondesse à sociedade industrial. Ainda bastante imbuído do Costumes e direito
positivismo, Durkheim concebe que a sociedade industrial representava um avanço
em relação a outras sociedades.simples. Nessas, a solidariedade que agregava as Na obra de Durkheim há, ainda, uma teoria da representação, segundo a qual
pessoas era baseada em uma espécie de simbiose, sendo que as pessoas em socieda- a imagem que fazemos do mundo é determinada pela sociedade, pela^ coerção
de não se complementavam, mas sim se juntavam, não desenvolvendo formas exerci da_ pelos valores morais sobre a consciência dos indivíduos. Nesse sentido,
imediatamente cooperativas senão quando o maior número de indivíduos fosse ele afirmava que, nas sociedades primitivas, a consciência comum determinava os
importante. A essa solidariedade ele deu o nome de solidariedade mecânica ou fatos da sociedade; como a vida em comum ocorria através da similitude, os me-
por similitude. Além de ser característica de comunidades pequenas nas quais não canismos de coerção e,xerciam-se de forma imediata, violenta e punitiva. Nas so-
Haviaj^desejjvQlyimento da divisão do trabalho, a solidariedade mecânica carac- ciedades modernas, a coerção deveria ser mediatizada por mecanismos mais for-
terizava as relações grupais "e/n que os indivíduos tinham papéis semelhantes e malizados, sobretudo a educação, Npois a quebra.de algum preceito moral não
suas relações eram simples, pouco distintas, tanto em termos das tarefas necessá- implicava uma resposta vingativa por parte da sociedade. Por isso, Durkheim
rias ao desenvolvimento do grupo quanto em termos da identidade grupai. afirmava que Q direito' deveria ser tomado como símbolo visível da consciência
Na solidariedade característica de uma sociedade industrial, os indivíduos de- coletiva de uma sociedade; em outros termos, o direito seria o símbolo visível da
senvolvem,funções especializadas,^ diferentes entre si, mas, ao mesmo tempo, solidariedade social. Com efeito, onde existe a solidariedade, ela não se mantém
interdependentes. Durkheim, para esclarecer essa solidariedade, usa a metáfora em estado de pura potência, mas manifesta sua presença através de efeitos sensí-
do corpo, segundo a qual cada membro e cada órgão, embora desempenhem veis, as coerções; sejam elas dispersas (coerções sociais) ou concentradas (sanções
funções diferentes, estão mutuamente relacionados de forma que a soma das par- legais).
tes compõem um todo integrado e homogéneo. Exatamente por isso, Durkheim
chamou essa solidariedade de orgânica. Ela, sendo característica das sociedades
"Há casos em que a regulamentação não chega a esse grau de consolidação e preci-
modernas e industriais, ao mesmo tempo está relacionada com os grandes grupos
são; elas não ficam indeterminadas por isto, mas, em lugar de serem reguladas pelo
sociais que atingem alto grau de diferenciação interna e necessitam, por essa ra-
Direito, não são mais que pelos 'mores'. O direito não reflete, pois, mais que uma
zão, que as funções coletivas sejam partilhadas e cada indivíduo possa desempe-
parte da vida social, e, conseqiientemente, não nosfornece senão dados incompletos
nhar atividades totalmente diferentes, mas perfeitamente indispensáveis para a
para resolver o problema. Há ainda mais: ocorre muitas vezes que os mores não
coletividade.
estão de acordo com o direito, diz-se sem cessar que eles temperam os rigores, que
Dessa forma, Durkheim desenvolveu uma categorização engenhosa, na medi- corrigem os excessos formalísticos do direito, por vezes, mesmo, que são animados
da em que, querendo privilegiar os aspectos positivos da divisão social do traba- •de um espírito inteiramente diverso. Não poderia então ocorrer que eles manifes-
lho, afirmava que a solidariedade orgânica, diferente da mecânica, desenvolve tem outros modos de solidariedade social que os expressos pelo direito positivo?"
uma consciência social maior e dá amplas possibilidades de desenvolvimento à
sociedade. Nela, embora cada indivíduo tenha papel importante, a sociedade não
é uma mera somatória dessas individualidades; a sociedade é algo suigeneris, espe- Nesse caso, para Durkheim, o Direito já não corresponde ao estado presente
cífico que, se procurada nas partes que a compõem, não será encontrada. Em da sociedade; sendo, então, mantido pelo hábito. Normalmente, QSjnores não se
futuras obras, Durkheim tiraria total partido lógico dessa conclusão, ao afirmar opõem ao Direito, mas, ao contrário, constituem-lhe a base. Pode haver relações
que o todo é mais do que a soma das partesj Na verdade, para ele, a sociedade é sociais que não comportem senão essa regulamentação difusa que vem dos "mo-
que determina o indivíduoj,que, ao nascer, já a encontra cristalizada em termos de res". E eles são muito secundários, pois o direito reproduz todos aqueles que são
suas instituições fundamentais — família, escola, direito ou religião — e, portanto, essenciais.
deve ser socializado. Não por menos, Durkheim foi particularmente influente na
Pedagogia, ao afirmar que os indivíduos deveriam ser socializados para garantir a'
unidade moral da sociedade.
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O caráter jurídico da norma e a importância do Estado A normalidade da crise e sua utilidade social
Segundo Durkheim, o que define o caráter jurídico da norma é o fato de que, Em seu trabalho metodológico mais importante, Émile Durkheim procura
na sociedade, a liberdade somente pode ser construída em não havendo antago- definir, como já vimos, qual é o objeto de estudos da Sociologia, suas característi-
nismo entre a autoridade da norma e a liberdade do indivíduo. Isto é, a liberdade cas distintivas e sua importância. Nesse mesmo livro, ele procura
(justa, que a sociedade tem o dever de fazer respeitar) é oprodutojde uma regula- importantes a respeito dos fatos sociais e, ao fazê-lo, questiona as pp^çes assum-
mentação. Assim, a norma não deve ser considerada como uma maneira de agir das por outros sociólogos, juristas e mesmo criminólogos. A^nmeira tese que
habitual; é antes tida como uma maneira de agir obrigatória, desde que incensada critica é aquela que afirma que os fenómenos mórbidos de urna sociedade (crime,
pelas leis formais. Aceitar ajvalidade universal da norma jurídica, nessa visão, não loucura, suicídio, etc.) eram diferentes dos fenómenos tidos como normais. Para
depende de forma nenhuma da eficácia da norma, mas depende da aceitação Durkheim, ao contrário, os fenómenos sociais têm base comum, o que difere é a
tácita da autoridade do direito e dessa norma. Uma sociedade não dita, entretan- maneira como se manifestam e o peso moral que lhes atribuímos: "asformas mór-
to, apenas preceitos imperativos; ela participa e está na base da formação de toda bidas de um mesmo fenómeno não são de natureza, diferente das formas normais"; o
a norrna_social. Nesse sentido, é possível conceber a Sociologia — e seu ramos que quer dizer que as "doenças não se opõem à saúde''de um corpo. Isso implica não
especializados no Direito — como ciência da moral, isto é, como o estudo fazer juízo de valor sobre os fenómenos sociais estudados, nem sobre os efeitos
solidariedade social através do sistema de normas jurídicas. que possam produzir sobre o todo social. Ele diz que é "preciso renunciarão hábito,
Mais ainda, para Durkheim, o importante do estudo das normas jurídicas ainda muito disseminado, dejulgar uma instituição, uma prática, uma máxima moral
implica a criação de um sistema de classificação segundo o qual seria possível como se fossem boas ou más em si mesmas e por si mesmas, e todos os tipos sociais
estabelecer correlações entre as normas e o tipo de sanção legal que estivesse a elas indistintamente".
vinculado. Durkheim vai mais além ao afirmar que, na sociedade em que vigora a Dessa forma, fica claro, em primeiro plano, que os fenómenos sociais - como
divisão social do trabalho, o Estado passaria a desempenhar funções cada vez aliás o nome já diz - são produzidos pela sociedade e cabe ao sociólogo classificá-
maiores, acabando por tornar-se uma das principais instâncias de imposição da los e explicá-los. Como afirma o autor, a respeito da criminalidade: "os atos quali-
norma jurídica e, por conseguinte, das próprias sanções legais. O Estado seria a ficados de crimes não são os mesmos em toda a parte; mas sempre e em todo o lugar
síntese dos valores morais de uma sociedade e, nesse sentido, fundamental para a houve homens que se conduziram de maneira a chamar sobre si a repressão penal".
própria existência dela: Isso quer dizer, para espanto de todos os seus críticos, que o crime é um fato
normal em nossa sociedade exatamente porque ele preenche as três pré-condições
"A incumbência de zelar pela educação da juventude, de proteger a saúde geral, de do fato sociaífSão gerais, exteriores e independentes da vontade individual e exer-
presidir ao funcionamento da assistência pública, de administrar as vias de trans- cem um pressão sobre a consciência desses mesmos indivíduos. Assim, "não existe,
porte e comunicação, pouco apouco ingressa na esfera de ação do órgão central. Em pois, fenómeno que apresente de maneira mais irrecusável todos os sintomas de norma-
consequência, este se desenvolve e, ao mesmo tempo, estende progressivamente a lidade, uma vez que aparece estreitamente ligado às condições de toda vida coletiva".
toda a superfície do território uma rede cada vez mais cerrada e complexa de Dessa forma, ojatodeja.cxkne ser normal significa que ele preenche uma função
ramificações, que substituem ou assimilam os órgãos locais preexistentes. Serviços nessa mesma sociedade, ou seja, ele ajudada sociedade a frisar a importância da
de estatística mantêm-no informado de tudo o que acontece nas profundezas do solidariedade que deve haver entre os indivíduos e a reação negativa que ele pro-
organismo." move nas pessoas faz com que a moral e a sociedade imponham-se sobre as ten-
dências egoísticas dos indivíduos. "Classificar o crime entre osfenómenos de Sociolo-
gia normal não é apenas dizer que constituifenómeno inevitável, embora lastimável e
devido à maldade incorrigível dos homens, é afirmar que é umfator de saúde pública,
uma parte integrante de toda sociedade sã". Evidentemente, embora o crime seja
um fenómeno normal- em nossas sociedades, ele mesmo pode apresentar formas
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anormais, sobretudo quando, por exemplo, atinge "taxas exageradas". Porém, o Concluindo, poderíamos dizer que, para Durkheim, a existência das normas
sociólogo adverte que, apesar disso, "não se deve concluir que o criminoso seja um jurídicas e das punições não está relacionada com o controle, a regeneração ou a
indivíduo normalmente constituído do ponto de vista, biológico ou psicológico. As suas recomposição dos danos causados pelos indivíduos que cometeram crimes; todos
questões são independentes uma da outra". os mecanismos sociais — que para ele são sempre morais — procuram atingir a
Para aqueles nossos contemporâneos que sempre estão a perguntar-se a respei- consciência coletiva, ou seja, o conjunto da sociedade, sobretudo os indivíduos
to do que fazer para conter o crime e diminuir a criminalidade, Durkheim não dá que respeitam as normas. Assim, todas as discussões sobre a eficácia da aplicação
respostas, mas deixa uma pista: "Para que os assassinos desapareçam, urge que o da norma jurídica e da sanção legal são vãs, na medida em que elas atingem, em
horror pelo sangue derramado se torne maior naquelas camadas sociais em que são seus dispositivos penais, apenas uma pequena parcela de indivíduos que delinqúem:
recrutados; mas, para tal, é preciso que o próprio horror se torne maior em toda a seu efeito mais importante liga-se à moral social dominante.
extensão da sociedade". Mas essa repulsa ao crime seria, ela própria, medida eficaz
para seu combate pela sociedade? Durkheim deixa o jurista atónito, pois, segundo
ele, a sociedade sem assassinatos logo encontraria outro fenómeno para crimina-
lizar, com o objetivo de continuar acentuando os valores sociais-normais pela
Os usos do direito: a concepção de Karl Marx e Friedrich Engels
negação daquilo que é definido como um mal: "Imaginai uma sociedade de santos,
um claustro exemplar e perfeito. Os crimes propriamente ditos serão aí desconhecidos; O Estado capitalista e o direito
mas asfaltas que parecem veniais ao vulgo despertarão o mesmo escândalo que provo-
cam os delitos ordinários nas consciências comuns. Se esta sociedade se encontra, pois,
Para falarmos sobre as concepções de Marx a respeito do Direito e das suas
armada do poder de julgar e de punir, qualificará tais atos de criminosos e tratar^los- instituições, bem como a respeito da punição e do crime, precisamos manter em
á como tais". mente as bases de sua Sociologia. Como já foi dito, Marx concebe a sociedade
"O crime é pois, necessário; ele se liga às condições fundamentais de toda vida capitalista como sendo fundada em profundas desigualdades que não somente a
social e, por isso mesmo, tem sua utilidade; pois estas condições 'de que é solidário são, caracterizam, como também dão sua principal mola de funcionamento, pois a
elas próprias, indispensáveis à evolução normal da moral e do direito". E o "criminoso produção capitalista está baseada na desigualdade entre proprietários e proletários.
não aparece mais como um ser radicalmente insociável, como uma espécie de elemento Para exercer sua dominação, os proprietários não somente se apropriaram das
parasitário, de corpo estranho e inassimilável, introduzido no seio da sociedade; cons- propriedades comuns, mas deixaram os proletários virtualmente sem nada para
titui um agente da vida social". sobreviver, a não ser a sua própria força de trabalho — lembre-se de que o proletá-
E, para o sociólogo, qual seria a função do castigo? Seria o castigo um instru- rio consome sua energia produtiva para garantir sua existência como homem e
mento adequado à repressão e à prevenção do crime? Durkheim alerta que o que parte dessa energia é apropriada e incorporada ao valor da mercadoria — como
castigo não passa de uma válvula de escape para as frustrações sociais decorrentes também se apropriaram do Estado e de suas instituições.
do ato delitual. Portanto, o castigo (a punição) não possuiria nenhum efeito Portanto, contra uma visão do Estado como realização de um ideal de unidade
restitutivo ou de reposição dos danos, muito menos de contenção. Na verdade, a da sociedade, Marx desenvolveu o conceito de um Estado como produto histori-
punição mesma cumpre uma função normal dentro da sociedade, já que todas as camente determinado de um conjunto de relações sociais. Mesmo sendo um pro-
sociedades dispõem de certos mecanismos de punição, alguns inclusive graves. duto da sociedade, o Estado aparece como estando acima dela, o que justificaria
Nesse sentido, Durkheim passa a concordar com a escola italiana de criminologia, sua intervenção sobre ambas as classes sociais. Na verdade, o Estado teria papel
segundo a qual a proporcionalidade entre o crime e a pena é uma invenção abstra- fundamental para impedir que o conflito de classe assumisse toda sua crueza e
ta dos juristas e que não teria nenhum efeito positivo nem justificação teórica redundasse numa espécie de luta aberta, ou seja, em uma revolta social. Em parte,
^ustentávèl. A despeito da complexidade do fenómeno e da função que cumpre, o é por isso que a ideia de revolução, presente no pensamento marxista, concebe
/ crime seria menos importante do que o criminoso, esse sim, real alvo das medidas uma tomada do poder do Estado pelos trabalhadores e, por fim, a própria extinção
punitivo-educativas do Estado. do Estado. Assim, o Estado, enquanto aparato gerido pelas classes dominantes,
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transformaria os interesses particulares dessa classe em uma forma de vontade Marx e Engels também criticam a penologia clássica com base em seu alegado
geral ou universal, no sentido de ideologia. individualismo moral. Criticam o cálculo individual da prevenção e da reforma,
O Direito seria, portanto, central a esse processo. Marx e Engels afirmavam, colocado corno base de construção do edifício legal ocidental, na medida em que
na Ideologia Alemã, que "se o poder é tomado como base do direito, como fazem o crime deve ser entendido em sua dimensão social, e não apenas do ponto de
Hobbes entre outros, assim o direito, as leis etc., são simplesmente o sintoma, a expres- vista do indivíduo que comete infração a uma lei, sem contar que a própria lei é
são de outras relações sobre as quais o poder do estado se assenta". Seu modo de^ope- considerada injusta. Mais ainda, eles criticam a hipocrisia do humanismo burguês,
ração é especificamente caracterizado por sua forma universal. Direitos e deveres quando observam o tratamento brutal que é dispensado ao condenado tanto nas
legais não estariam vinculados a classes ou a status, mas eles pertenceriam ao "ci- prisões como pela própria polícia. Nesse ponto, assinalam que a lei é aplicada de
dadão", ou seja, todos os indivíduos seriam considerados iguais. O Direito prote- forma desigual, segundo a classe social. Não obstante, eles viam na ideologia bur-
geria a propriedade de todos e, assim fazendo, obscureceria as reais relações exis- guesa da igualdade e do legalismo um estímulo para que os proLgpirios resistissem
tentes entre as classes. Bastaria ver o papel que ele desempenhou no processo de à opressão, na medida em que eles eram definidos ctwntTfífulares de certos direi-
expropriação dos camponeses e em sua transformação em força de trabalho in- tos.
dustrial. Assim, para Marx, além do aspecto propriamente ideológico, o Direito
cumpre funções fundamentalmente repressivas, sobretudo contra a classe dos ex-
propriados. A questão da legitimidade e da racionalidade em Max Weber
A dominação e a legitimidade
O crime
Uma das teses mais comentadas de Weber — a de que o Estado reivindica o
Sobre o crime, a teoria de Marx e Engels organiza-se em torno da ideia de que monopólio do uso legítimo da violência física — está no centro de suas preocupa-
o processo de brutalização das relações sociais, iniciado com o capitalismo indus- ções. Weber queria dizer que, o Estado transforma-se na única fonte do "direito"
.trial,' desmoralizou a classe operária; esse processo teria degradado e brutalizado à violência, isto é, em uma relação de dominação do homem sobre o homem
tanto os homens que o crime passaria a ser um índice de tal processo. Várias vezes fundada no instrumento de uma violência considerada legítima. Assim, o Estado
os autores fizeram correlações diretas entre o capitalismo, a miséria social e o só pode existir na medida em que os homens submetam-se à autoridade dos
aumento das taxas de crimes. Uma ideia de competição também foi formulada dominadores.
por Engels, segundo a qual a propriedade privada aumentava o grau de competi- A questão principal a ser colocada, portanto, é saber como ocorre essa domi-
ção entre os indivíduos dentro do mercado de trabalho ou mesmo dentro da nação e quais são suas justificações. Para Weber, há três formas de justificá-la e,
própria fábrica, o que degenera a solidariedade entre eles e, conseqiientemente, conseqiientemente, três fundamentos da legitimidade: a autoridade da tradição, a
aumenta as tensões que resultam em crimes. Dessa forma, os dois autores afirma- autoridade dos dons pessoais e extraordinários de um indivíduo (carisma) e a
vam que não deveriam ser os indivíduos a sofrer sanções e punições por isso, mas autoridade que se impõe em função da "legalidade", isto é, da validade de um
deveriam ser responsabilizadas as condições sociais que davam origem ao crime. estatuto legal. Assim, os fundamentos da obediência mostram a legitimidade da
Evidentemente, a própria revolução, com a abolição do Estado, da propriedade dominação: a aceitação tácita da obediência.
privada e das desigualdades sociais acabaria com as fontes sociais do crime e com
o próprio crime. Porém, em outras passagens, os autores procuram ver o aspecto
"positivo" do crime, sobretudo no que se refere ao crime de revolta, na guerra
social entre trabalho e capital.
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l < > r u m tematizadas por Foucault, para quem "a vigilância, e junto com ela, a regu-
lamentação, é um dos grandes instrumentos de poder no fim da era clássica". No
início, as regras legais eram essencialmente imperativas, negativas ou positivas, e
visavam a obter comportamentos desejados ou a evitar os não-desejados, recor-
de que a gaiola de ferro da burocracia (sobretudo na administração da justiça) rendo a sanções celestes ou terrenas. Porém, na nossa modernidade, houve uma
pudesse minar as bases de sustentação da autonomia individual. Essa preocupa- disseminação dos regulamentos, aumentando a capacidade de intervenção dos
ção já havia sido antecipada pelo pensador político francês Alexis de Tocqueville poderes constituídos na sociedade. Foucault procurou compreender um dos prin-
(1805-1859), quando fez uma viagem pelos Estados Unidos: cipais aspectos do funcionamento de nossas instituições jurídico-disciplinares.
poderes e anula os preceitos do direito. Ao dar ênfase à disciplina e à norma, dos súditos, o Estado superior ao indivíduo), mas uma instância de controle, que
/ Foucault não desqualificou o direito e a lei. Analisou seus efeitos a partir do ângu- envolve o indivíduo mais do que o domina abertamente. Podem diminuir as proi-
1 Io da constituição dos corpos e das "múltiplas sujeições que existem e funcionam no bições, abolir-se a pena de morte, abj:andar-se o regime das prisões, porém o
'' interior do corpo social". sistema disciplinar, a que nos vemos submetidos até em nossa vida privada, cresce
^/ A organização dos códigos jurídicos centrados na teoria da soberania permitiu discreta mas continuamente. O Estado moderno preocupa-se menos em reprimir
/ sobrepor um sistema de direito às disciplinas. Por um lado, haveria "uma legisla- ,\a do quedem .preveni-la-. É íetíe-m^nos para punir e mais para disci-
ção, um discurso e uma organização do direito público articulados em torno do prin- plinar; A lei define um espaço de liberdade e estabelece a universalidade da igual-^
cípio do corpo social e da delegação de poder; e, por outro, um sistema minucioso de dadc. O regulamento preenche esse espaço deixado vazio pelas leis. Ele distingue,
coerções disciplinares que garantia efetivamente a coesão deste mesmo corpo social. individualiza e hierarquiza os indivíduos no espaço e no tempo. /
Ora, este sistema disciplinar não pode absolutamente ser transcrito no interior do Essa mecânica do poder disciplinar, em nossas sociedades, estaria na base mesma
direito que é, no entanto, o seu complemento necessário". de criação de um novo tipo de indivíduo. Nesse sentido, Foucault concordaria com -
Contudo, as disciplinas também tinham seu discurso, um discurso da regra Norbert Elias, quando esse afirma que a "compulsão real é a que o indivíduo exerce sobre
cujo "horizonte teórico" não é mais o do direito, mas o das ciências humanas, de si mesmo". Assim, o processo de implementação das disciplinas teria feito com que o
um "saber clínico?. À norma faz com que o direito se dobre sobre si mesmo, na homem civilizado ficasse menos prisioneiro de suas paixões; a própria vida tornou-se
medida em que promove a difusão da atividade de julgar no conjunto de socieda- menos perigosa, mas também menos emocional. Nesse sentido, a prisão teria o papel
de.(ÃJei passou a funcionar "cada vez mais num contínuo de aparelhos cujas funções de recalcamento do homem natural. O campo de batalha, onde as personalidades
são sobretudo reguladoras". As normas não são simples ramificações das institui- eram polidas e os conflitos resolvidos foi, em certo sentido, transportado para dentro
ções do Estado centralizado. Foucault afirma que "no caso da teoria do governo não do indivíduo, o homem civilizado promovia verdadeiros embates interiores. Os indi-
se trata de impor uma lei ao homens, mas de dispor as coisas, isto é, utilizar ao máxi- víduos são, assim, modelados pela sociedade, de tal forma que a própria anormalidade
mo as leis como táticas. Fazer, por vários meios, com que determinados fins possam ser passa a ser socialmente construída.
atingidos. Isto assinala uma ruptura importante: enquanto a finalidade da soberania A esse processo Foucault denominou "deriva do judiciário em direção ao peniten-
é ela mesma, e seus instrumentos têm a forma da lei, a finalidade do governo está nas ciário". O juiz perde seu espaço de interpelador das leis (justiça) ao incorporar em suas
coisas que ele dirige e deve ser procurada na perfeição, na intensificação dos processos decisões preceitos que inferem a personalidade e a moralidade do réu (medicina).
que ele dirige e os instrumentos do governo, em vez de serem constituídos por leis, são Assim, tanto na esfera mais abstraía do direito e das decisões jurídicas como no cotidiano
táticas diversas. Na perspectiva do governo, a lei não é certamente o instrumento dos cárceres e da polícia, os micropoderes disseminaram-se, formando redes, arquipé-
principal". Do ponto de vista jurídico, o poder do Estado é exercido por meio de lagos de vigilância e de punição, produzindo corpos físicos e morais. A normalização
leis e do direito, no que Foucault segue Weber. Porém, segundo Foucault, as dis- não contradiz a lei nem faz desaparecer as instituições de justiça; provoca, ao contrário,
ciplinas são exercidas por meio de regulamentos que expelem direito, tornando-o um aumento das leis, levadas aos mais ínfimos detalhes da vida. "Na essência de todos os
mais minucioso e indulgente, uma verdadeira multiplicação dos procedimentos sistemas disciplinares funciona um pequeno mecanismo penal. É beneficiado por uma espé-
penais dentro de toda a sociedade, más esses procedimentos já não usam o discur- cie de privilégio de justiça, com suas leis próprias, seus delitos especificados, suas formas
so das leis, nem do Direito, formando, na verdade, um contradireito. particulares de sanção, suas instâncias de julgamento".
Foucault distingue, assim, dois sistemas heterogéneos. Ele identifica as vanta- E a polícia? Para Foucault, a polícia possui uma função complexa "pois une o
gens que uma tecnologia política do corpo conquistou sobre a elaboração de um poder absoluto do monarca às mínimas instâncias de poder disseminadas na socieda-
corpo doutrinal. Seguindo o estabelecimento e a multiplicação vitoriosa dessa de; pois, entre essas diversas instituições fechadas de disciplina (oficina, exército, esco-
"instrumentalidade menor", procura pôr em evidência as molas de um poder las), estende uma rede intermediária, agindo onde aquelas não podem intervir, disci-
opaco, sem proprietário, sem lugar privilegiado, sem superiores nem inferiores, plinando os espaços não disciplinares; mas, que ela recobre, liga entre si, garante com
sem atividade repressiva nem dogmatismo eficaz. Novamente, o poder moderno sua força armada: disciplina intersticial e metadisciplina". A polícia, como mecanisj-
não é mais, em sua essência, uma instância repressiva e transcendente (o rei acima mo disciplinar, baseia-se em uma "tomada de contas permanente do comportamento
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dos indivíduos". A polícia era o braço secular do poder real. Hoje, é a instituição
que melhor se identifica com a sociedade disciplinar, pela sua posição dentro
desse continuum carcerário. A polícia promove aquilo que Foucault denominou
gestão dos ilegalismos: movimenta, em uma base cotidiana e ao mesmo tempo
externa e complementar ao âmbito jurídico-discursivo, mecanismos de segrega-
ção e de multiplicação das dissimetrias económicas, sociais e de distribuição de
justiça.;A polícia rotiniza os perigos e as obsessões da sociedade. J