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PESQUISA CONCLUÍDA
(MODALIDADE ORAL)
1. Introdução
prática, optei por utilizar o Alfabeto Fonético Internacional (IPA) como ferramenta de apoio
ao trabalho de dicção para a preparação do repertório. Como resultado, cheguei à formulação
de um método didático para ensino do Português Brasileiro cantado (PB cantado) para
cantores anglófonos. O método proposto pretende ser uma versão simplificada das regras
estabelecidas para o PB cantado. A necessidade dessa simplificação nasceu de questões
pragmáticas, já que o coro com o qual eu trabalhei não dominava o IPA e não tinha qualquer
conhecimento sobre a língua protuguesa.
O atual trabalho dedica-se a demonstrar esse método. Como ponto de partida,
apresentamos uma curta visão histórica sobre as discussões para a criação de uma
normatização do PB cantado. Em seguida, aprofundamo-nos na explicação do conceito de
sílaba. Tal conceito é primordial para o sucesso do método dadas as próprias características da
língua portuguesa e a clara existência de uma única vogal principal para cada sílaba de texto.
Por fim, apresento o método em si, incluindo algumas das estratégias utilizadas para sua
aplicação durante a pesquisa de campo na Universidade do Alabama. Apresento ainda uma
tabela feita para cantores anglófonos com descrição de todos os fonemas utilizados nessa
versão simplificada do IPA para o PB cantado.
Música coral brasileira tem sido escrita desde o início do período colonial no
século XVI. Apesar disso, não houve quaisquer esforços para se criar um padrão da pronúncia
do idioma entre nós até o século XX. Em 1938, como resultado do primeiro Congresso da
Língua Nacional Cantada, as Normas para a boa pronúncia da língua nacional no canto
erudito foram publicadas em um projeto liderado por Mário de Andrade. Ele decidiu promover
o Congresso em 1937 por causa da falta de padronização da pronúncia no país. Ele reconhecia no
meio nacional a falta de uma escola de canto sobre a qual estudos em PB cantado poderiam ser
estruturados, unificados e amplamente difundidos. Por conta disso, muitos cantores foram
levados a absorver características de emissão e dicção advindos de outras escolas de canto,
principalmente da italiana. Mário de Andrade repudiava essa prática de descaracterizar a
língua nacional classificando-a como “estrangeirismo”. (HANNUCH, 2012, p. 26.)
Outra tentativa de se padronizar a pronúncia do português brasileiro foi feita em
1956 no Primeiro Congresso Brasileiro da Língua Falada no Teatro. No entanto, “a
preocupação sobre a padronização da dicção do português brasileiro tem sido, desde aquela
I Congresso de Canto Coral: formação, performance e pesquisa na atualidade – São Paulo – 2018
época, mais uma questão teórica do que uma realidade prática. Escolas de canto ignoraram as
normas estabelecidas nos eventos de 1937 e 1956.” (ÁLVARES, 2008, P. 40)2 Como
resultado, a comunidade de cantores do Brasil como um todo não conseguiu chegar a um
acordo sobre esse assunto. Para profissionais brasileiros e estudantes da área, as dificuldades
na pronúncia da língua nativa foram resolvidas com base em experiências pessoais ou
seguindo o conselho de professores e regentes mais experientes.
Por mais de 60 anos, os problemas discutidos e demonstrados por Mário de
Andrade ainda seriam comuns no Brasil: tanto coros quanto solistas cantavam com seus
sotaques regionais e uma grande quantidade de sonoridades vocálicas italianas poderiam ser
ouvidas como substituição às vogais nasais brasileiras. Tornou-se portanto comum de se ver a
mistura de diferentes padrões de pronúncia acontecendo no palco ao mesmo tempo
simplesmente devido às várias origens regionais dos cantores. Isso indica uma grande
dificuldade na uniformização das vogais, o que é um passo primordial para a construção de
uma boa sonoridade coral.
Fora do Brasil, o problema tem sido ainda pior. A falta de padronização também
implicou em uma falta de literatura sobre o assunto. Coros e cantores solistas que querem
cantar música brasileira ainda têm dificuldade em encontrar bibliografia que informe suas
escolhas de pronúncia. Como resultado, o repertório brasileiro em língua portuguesa é menos
cantado ao redor do mundo do que poderia ser. Quando acontecem, tais apresentações
internacionais muitas vezes não alcançam uma dicção convincente. Existem casos em que
esses concertos e gravações do exterior soam como português de Portugal, o qual é muito
diferente do brasileiro.
A quantidade de problemas e a importância dessa realidade inspiraram um grande
esforço para se padronizar a dicção do português brasileiro. Esse foi um longo processo que
começou em 2003 como um grupo de estudos durante o encontro anual da Associação
Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música. O título do grupo de estudos era “A
Língua Portuguesa e o Repertório Vocal Clássico Brasileiro”. Ele incluía pesquisadores
brasileiros e cantores. O trabalho desse grupo resultou na realização do 4° Encontro
Brasileiro de Canto, que aconteceu em 2005. Nele estavam presentes profissionais das áreas
de canto, fonoaudiologia e linguística, representando a maioria dos estados brasileiros. Dessa
sessão, um grupo interdisciplinar foi criado com a missão de formular uma tabela oficial
representando o fonemas com o uso do International Phonetic Alphabet (IPA).
I Congresso de Canto Coral: formação, performance e pesquisa na atualidade – São Paulo – 2018
são produzidas com o trato vocal sem interrupções, resultando na habilidade que
todas as vogais têm de serem sustentadas por duração indeterminada de tempo;
dessa forma, vogais são um elemento essencial do legato e da ressonância na técnica
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vocal. Diferentes vogais são formadas conforme o formato do trato vocal muda,
principalmente através do movimento dos lábios e da língua. (HOCH, 2014, 194).5
Em seu mecanismo de produção, vogais nasais “alteram os sons das vogais puras
através de um palato mole abaixado (desengajado).” (HOCH, 2014, p. 194). De fato, a
coleção de sons que apresenta maiores problemas em português para os cantores é exatamente
a das vogais nasais. No entanto, a nasalização do português é complexa e única, e a produção
dos seus sons nasais, como ja dissemos, é diferente daquela do francês. Cada um desses
idiomas requer soluções próprias para uma pronúncia correta. Mas, apesar dessas diferenças,
as adaptações necessárias para cantar nessas duas línguas são similares. Pedagogos como
Richard Miller e cantores como Nicolai Gedda defendem modificações para o canto dos sons
nasais franceses muito próximas às que defendo neste trabalho. Portanto, é necessário se fazer
adaptações na fonética das vogais nasais e
prosódico mínimo do qual todos os outros níveis de enunciados fonológicos são derivados.
Apesar disso, “dizer que a sílaba é a categoria terminal do sistema prosódico fonológico não
significa que a sílaba não seja divisível por mais vezes ou que ela não tenha uma estrutura
interna.” (NESPOR & VOGEL, 2007, p. 12)
O objetivo desta pesquisa é um tanto diferente dos objetivos de uma transcrição
de IPA completa e, como resultado, as soluções aqui preconizadas também diferem da tabela
oficial do PB cantado. Em vez de discutir a relação entre ortografia e pronúncia, eu decidi me
focar exclusivamente nesta última, de forma que pudesse ser criada uma ferramenta prática
para regentes e cantores não familiarizados com o idioma. As escolhas que foram feitas para
as transcrições fonéticas do trabalho pretendem simplificar o sistema através do emprego do
menor número possível de símbolos. Por causa disso, eu decidi adotar uma visão estendida da
sílaba. Esse novo senso de unidade fonética abarca todos os fonemas presentes em uma única
nota musical, independentemente da origem desses sons agrupados vir de uma ou mais sílabas
ou palavras. Por essa razão, eu optei por não usar a ligadura, mas transcrever as elisões como
se fossem uma única sílaba. Os usos tradicionais do ponto e do símbolo supra-segmental
foram mantidos.
O objetivo era de entender cada sílaba, ou grupo de sons em uma unidade musical,
como sendo formada por três partes: o ataque, o núcleo, e a coda. Em geral, as regras para a
estrutura do português são: 1. a sílaba precisa ter essencialmente um núcleo, seguido ou não
de uma coda e precedido ou não de um ataque. 2. O núcleo de uma sílaba é formado pela
vogal, que é o elemento que produz o maior pico de sonoridade. 3. As vogais sempre vão
constituir o núcleo das sílabas. No caso de ditongos, a vogal mais sonora assume o papel de
núcleo, enquanto que a menos sonora vai ser parte do ataque ou da coda. 4. A coda pode ser
formada por consoante vozeada ou [s]. 5. O ataque pode ser constituído por uma ou mais
consoantes. No caso de ocorrência de duas consoantes, a segunda da esquerda para a direita
deve ser vozeada e não nasal. (MATTOS, 2014, p. 126-7.)
Quando consideradas puramente do ponto de vista da pronúncia, as sílabas em
português podem variar de uma única vogal (portanto um fonema) até uma vogal no núcleo,
duas consoantes no ataque e duas outras consoantes na coda (um grupo total de cinco
fonemas). Devido ao fato de a ortografia do português incluir várias sílabas contendo duas ou
mais vogais, a transcrição optou por mostrar mais claramente o padrão de pronúncia da língua
usando, para tanto, somente uma vogal para cada sílaba para definir inequivocamente o som
que deve ser fonado como sendo o núcleo da sílaba. Os outros sons de cada sílaba foram
todos considerados consoantes, incluindo os fonemas [j] e [w], que denotam a ocorrência de
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ditongos crescentes ou decrescentes. Nesse aspecto, a versão usada nesta pesquisa é diferente
dos símbolos usados pa ra ditongos no capítulo sobre português europeu no Handbook of the
International Phonetic Association, no qual se recomenda grafia com duas vogais como [ai] e
[iu], por exemplo. (CRUZ-FERREIRA in HANDBOOK, 1999, p. 127-8) No meu
entendimento, essa representação não é clara em mostrar ao leitor a principal vogal daquele
agrupamento e, portanto, qual vogal deveria ser alongada em uma situação de canto. Dessa
maneira, o uso de ditongos transcritos como [aj], [ju] e [iw] resulta mais claro para o leitor,
ainda mais para aqueles que não são falantes nativos do idioma.
Nas transcrições fonéticas realizadas, a nasalização de todas as vogais nucleares
foi eliminada, e elas foram transformadas em ditongos decrescentes com codas nasais. Esse
método pedagógico foi utilizado para isolar as partes da sílaba, sustentar um núcleo
puramente oral e, só então, aplicar ressonâncias nasais na coda da sílaba como resultado
natural da redução da vogal principal em direção a uma consoante nasal final. Por núcleo
puramente oral eu me refiro a uma vogal produzida com a entrada da cavidade nasal fechada
e, portanto livre de qualquer ressonância nasal.
Essa tática pedagógica para nasalização descrita acima foi usada durante ensaios e
concerto do repertório coral de Ronaldo Miranda com o University Chorus da University of
Alabama durante o segundo semestre de 2015. Para alcançar uma melhor retenção dos
fonemas corretos em português, eu usei na minha abordagem pedagógica palavras em inglês
que tivessem sons similares àqueles sendo ensinados. Ocasionalmente foram usadas palavras
em espanhol e italiano. Essas unidades de linguagem foram chamadas de “palavras-âncora”.
Embora exista uma quantidade de características intrínsecas importantes no uso de
consoantes e de vogais orais no português, parece que esses sons não representam maiores
problemas para cantores treinados em dicção. Eles podem ser articulados com a mesma
emissão usada para a dicção do italiano cantado. Para os cantores anglófonos com quem
trabalhei, uma atenção especial precisou ser dispensada para a não-aspiração de [t] e [d], que
nunca devem ser plosivos em português brasileiro ou em italiano. Outra consoante que
apresentou dificuldades foi o nasal palatal [ɲ] que só pode ser aproximadamente comparado
com a consoante do meio da palavra “cognac” em inglês. Finalmente, a vogal aproximante
lateral palatal vozeada [ʎ] se mostrou um som desafiador para cantores de fala inglesa,
embora este pudesse ser considerado um som familiar, pois soa igual à consoante do italiano
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desempenho coral excepcional, o ataque e a coda de cada sílaba devem ser sincronizados com
precisão rítmica.
Para reduzir a quantidade de informações com a qual os cantores precisavam
lidar, versões de estudo das partituras foram providenciadas para ensaio. Nessas apostilas, o
texto original foi completamente substituído por transcrições de IPA. Veja a figura abaixo:
Figura 1: Paritura-apostila para ensaio da peça Liberdade de Ronaldo Miranda, compassos n. 1-4.
como, por exemplo, dinâmica, marcações de tempo, indicações expressivas, etc. Dessa
maneira, o coro somente teria que lidar com uma informação nova no momento de
transferência da partitura-apostila de ensaio para a partitura real. Nesse momento crucial, duas
opções são possíveis: o regente pode providenciar uma partitura editada na qual ele inclui
uma linha extra com o IPA ou pode ser designada aos cantores a tarefa de escrever à mão o
IPA na partitura original caso o grupo esteja trabalhando com uma versão publicada. No meu
trabalho com o University Chorus, eu decidi pela primeira opção. É sempre importante
antecipar que a mudança do IPA para a ortografia original do português vai resultar em um
certo número de problemas, particularmente nas sílabas átonas, nas quais a vogal
ortograficamente escrita raramente casa com o som a ser articulado.
5. Considerações Finais
Referências:
I Congresso de Canto Coral: formação, performance e pesquisa na atualidade – São Paulo – 2018
HERR, Martha; KAYAMA, Adriana; MATTOS, Wladimir . Brazilian Portuguese: Norms for
Lyric Diction. Journal of Singing, Jacksonville, FL, v. 65, n. 2, 195-211, Nov/Dec 2008.
HOCH, Matthew. A Dictionary for the Modern Singer. Lanham, MD: Rowman & Littlefield ,
2014.
NESPOR, Marina; VOGEL, Irene. Prosodic phonology. Berlin: Mouton de Gruyter, 2007
MATTOS, Wladimir Farto Contesini de. Cantar em Português: um estudo sobre a abordagem
articulatória como recurso para a prática do canto. São Paulo, 2014. 197f. Tese (Doutorado
em Música). Instituto de Artes, Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 2014.
Notas
1Pesquisa realizada na University of Alabama em Tuscaloosa, Alabama, Estados Unidos, como parte das
atividades para obtenção do título de Doctor in Musical Arts em regência coral. O curso de doutorado foi
realizado de 2012 a 2016 com bolsa oferecida pela própria instituição na categoria de professor assistente
graduando (graduate teaching assistant), sob orientação do Prof. Dr. John H. Ratledge.
2 Texto original: “The concern about the standardized diction for Brazilian Portuguese has been, since that time,
more a theoretical matter than a practical reality. Schools of singing ignored the Normas established in the 1937
and 1956 events.”
3Texto original: “From its foundation in 1886 the Association has been concerned to develop a set of symbols
which would be convenient to use, but comprehensive enough to cope with the wide variety of sounds found in
the languages of the world; and to encourage the use of this notation as widely as possible among those
concerned with language.”
4A tabela completa pode ser encontrada em Herr, Martha; Kayama, Adriana; Mattos, Wladimir. Brazilian
Portuguese: Norms for Lyric Diction. Jacksonville, FL, 2008, ps. 195-211.
5Texto original:“One of two principal categories of phonetic sounds (along with consonants). Vowels are
pronounced with an uninterrupted vocal tract, resulting in the ability for all vowels to be sustained for
indeterminate length of time; therefore, vowels are an essential element of legato and resonance in singing
technique. Different vowels are formed as the shape of the vocal tract changes, mostly through the movement of
the lips and tongue.”
6 Há vídeos desse concerto disponíveis nos links: Liberdade - https://www.youtube.com/watch?v=K9pk_xfZxlQ