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2ª edição revisada

Todos os direitos reservados.

INTRODUÇÃO À

FILOSOFIA
2ª edição revisada - Todos os direitos reservados.
Proibida distribuição sem autorização expressa do autor.

INTRODUÇÃO À

FILOSOFIA
SUMÁRIO
1. APRESENTAÇÃO 4. O FILÓSOFO E O SEU AVESSO
Uma ilustre desconhecida P.07 Conceituação dialética P.33
Dimensão edificante da filosofia P.08 O cão e o lobo P.33
O aperitivo de um banquete P.09 Filosofia e Antifilosofias P.34
um passeio aprazível P.11 Physis e Nomos P.35
A dialética filosófica P.36
2. AMOR À SABEDORIA
Uma dúvida sufocante P.13
5. GUIA DE LEITURAS
A quintessência da filosofia P.13 Pequenas introduções didáticas P.39
O estado de Ânimo do filósofo: o amor P14 Coleção leituras filosóficas P.39
Filósofo, e não sábio P.15 da editora loyola
A vida filosófica como arte do amor P.16 Coleção como ler filosofia P.39
O risco dos reducionismos P.18 da editora Paulus
Admiração como origem da filosofia P19 Introduções gerais P.39
Enciclopédias P.40
Dicionário P.40
3. AS DISCIPLINAS FILOSÓFICAS História da filosofia P.40
Dois métodos P.21 Em ingês P.40
Um amor ordenado P.21 Os clássicos P.41
Ciências práticas P.23
Ética e política P.24
Ciências teóricas P.27
Ser, conhecer e dizer P.28
A ontologia clássica P.29
A epistemologia moderna P.30
A filosofia contemporânea P.31
da linguagem
Victor Sales Pinheiro - Introdução à Filosofia

INTRODUÇÃO À 2ª EDIÇÃO
Este livro acompanha o meu esforço de difundir a Filosofia em linguagem acessível, instigante
e prazerosa, no contexto do meu portal de cursos online: www.dialetico.com.br.
Depois da 1ª edição, o portal Dialético foi renovado numa plataforma mais moderna e
dinâmica e organizado em três trilhas de estudo: Direito, Filosofia e Religião.
Agora, ele apresenta seis cursos, que registram boa parte da minha atividade pedagógica e da
minha reflexão filosófica:

1. Introdução à Filosofia: Ética, Estética, Política, Religião, Epistemologia e Metafísica


(11 módulos, 118 aulas): todos os conceitos, os autores e as escolas de pensamento são
tratados neste curso, que abrange toda a história da filosofia. Nele, você ainda aprende
com três módulos-bônus: (1) Educação Liberal – sobre a crise da cultura; de-formação
retórica; barbárie da especialização; (2) O universo dos clássicos: Antígona de Sófocles,
Confissões de Santo Agostinho, Ensaios de Montaigne, Os irmãos Karamazóv de
Doistoiévski e Grande sertão: Veredas de Guimarães Rosa. (3) Vida intelectual: crise da
educação; vocação intelectual; unidade e especialidade do conhecimento; virtudes do
intelectual; trabalho – tempo e leitura.

2. Ética, Direitos Humanos e Justiça (3 módulos; 20 aulas): Num confronto da ética moderna
com a clássica, tratamos dos dilemas morais do emotivismo, individualismo, iluminismo
e relativismo, em autores como Hume, Kant, Nietzsche, a fim de recuperar o conceito de
virtude em Aristóteles e Aquino. Para conceituar adequadamente os direitos humanos,
explicamos o seu titular desse direito (pessoa humana), o titular do dever (co-humano),
o objeto (justo natural) e o fundamento (lei natural). Por fim, debatemos as teorias da
justiça contemporâneas do utilitarismo, liberalismo igualitário, libertarianismo e
comunitarismo, analisando casos concretos como os limites morais do mercado e a política
de cotas, em autores como Bentham, Mill, Rawls, Nozick e Sandel.

3. A Filosofia de Platão: amor, virtude, verdade e imortalidade (3 módulos; 20 aulas): Platão é


a origem da filosofia ocidental e a melhor forma de se iniciar nessa tradição de 2.500 anos.
O ponto de partida da sua filosofia é o amor, afeto fundamental que nos move à união com
a beleza. Por isso, no módulo 1, começamos com o Banquete, um dos mais famosos e
participativos diálogos, em que sete versões sobre o amor são discutidas. Você aprenderá o
famoso discurso poético e filosófico de Sócrates, sobre a elevação purificadora do amor
até a forma perfeita e universal de beleza. Em seguida, no módulo 2, conhecemos a vida
virtuosa de Sócrates, em sua busca incessante pela verdade e imortalidade, nos diálogos
dramáticos da sua condenação e morte: Apologia, Eutífron, Críton e Fédon. No módulo
de bônus, tratamos da célebre tragédia de Sófocles Antígona, heroína que também sacrificou
a vida pela verdade da lei natural, alcançada pela sua consciência moral, contra a tirania
política de Creonte.

4. A Filosofia de Aristóteles: Ética, Política, Poética, Retórica, Lógica e Metafísica (6 módulos,


88 aulas): O grande filósofo grego foi o primeiro pensador a sistematizar o conhecimento

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Victor Sales Pinheiro - Introdução à Filosofia

humano nas disciplinas filosóficos e científicas, como ética, política e metafísica. Este curso
percorre as suas obras principais, explicando os seus conceitos e argumentos. A partir dele,
vamos filosofar sobre praticamente toda a realidade, na sua dimensão humana, lógica e
metafísica. O método é o de leitura comentada, para que você aprenda a interpretar e a
pensar como Aristóteles, que é o centro de toda tradição ocidental, ao lado de Platão.

5. A Filosofia de Santo Tomás de Aquino na Suma Teológica: Metafísica, Antropologia,


Epistemologia, Ética, Virtudes e Lei (7 módulos, 88 aulas): Tomás de Aquino é o principal
filósofo da Cristandade, responsável por articular fé e razão, de modo incomparável. Sua
Suma Teológica é um dos livros mais completos e profundos da nossa tradição intelectual,
cujo mérito consiste na síntese da filosofia de Aristóteles com a revelação cristã,
desenvolvendo a teologia patrística de Agostinho.

A organização intelectual desta obra permite uma iniciação ao mesmo tempo didática
e profunda de todas as questões centrais da Filosofia. Você mergulhará na filosofia cristã,
independentemente de qualquer conhecimento prévio. Você aprenderá o contexto
histórico, cultural e intelectual de Aquino, lendo e comentando questões selecionadas de
sua obra-prima.

6. História da Igreja no primeiro milênio: espiritualidade, teologia e cultura (2 módulos; 57


aulas): Explore os fatos históricos constitutivos da Civilização Católica nos primeiros e
decisivos 1.000 anos, com ênfase na espiritualidade dos santos, na teologia dos Doutores e
do Magistério e na cultura litúrgica, literária, arquitetônica, plástica e musical. O
primeiro Módulo explora a Igreja nascente dos três primeiros séculos, sua vida comunitária,
liturgia eucarística, pregação aos judeus e gentios, perseguição e experiência das
catacumbas. Neste período turbulento de instabilidade social e política, avulta a atividade
dos Apóstolos, os Padres Apostólicos e os Padres Apologetas, que inauguram a
Tradição Teológica da Patrística absorvendo as categorias filosóficas clássicas para
confrontar, intelectualmente, o mundo pagão. O objetivo dessa árdua elaboração
conceitual é o de estabelecer a Ortodoxia diante das heresias, principalmente a ariana,
condenada pelo Concílio de Niceia, em 325.

O segundo módulo analisa a decadência do império romano, com as invasões bárbaras


e o estabelecimento da Igreja como núcleo da cultura e da moral social, culminando com
o Renascença Carolíngia.

Desde já, convido você a me acompanhar também pelo portal.

Este livro é de distribuição gratuita, por isso peço que o divulgue aos interessados.

Boa leitura e reflexão.

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Victor Sales Pinheiro - Introdução à Filosofia

UMA ILUSTRE
DESCONHECIDA A Filosofia é complexa e profunda,
mas ela não precisa ser obscura e confusa.

No contexto da pedagogia atual, muitos têm um contato traumático com a Filosofia, por
meio de uma disciplina escolar ou universitária em que as ideias filosóficas são lançadas de modo
praticamente aleatório e arbitrário.

Desse desencontro, restam empoeirados na memória alguns rótulos e clichês filosóficos,


como o idealismo de Platão, o dogmatismo de Tomás de Aquino, o racionalismo de Descartes, o
empirismo de Locke, o materialismo de Marx e o ateísmo de Nietzsche, que embaçam a compreensão
do esforço intelectual dos grandes filósofos da nossa tradição, que alcançaram um patamar superior
de interpretação e elucidação da realidade e que tiveram um impacto significativo nas instituições
sociais e na cultura.

Se a Filosofia fosse um conjunto de ideias soltas e sem sentido, uma especulação vazia e sem
sentido, como explicar o seu prestígio e permanência ao longo dos últimos 2.500 anos?

Mas, afinal, o que é a filosofia?

Qual é a sua finalidade? Este e-book foi escrito para começar a desmistificar esse preconceito
e permitir a redescoberta da Filosofia, com um novo colorido, demonstrando o impacto que ela pode
ter na nossa vida, pela expansão do nosso horizonte intelectual.

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Victor Sales Pinheiro - Introdução à Filosofia

DIMENSÃO EDIFICANTE
DA FILOSOFIA
Quando bem apresentada e vivida, eu acredito que praticamente
todos se interessariam pela filosofia, como reflexão radical
sobre a existência e o mundo.

Por isso, há mais de dez anos, além da docência no magistério superior e da pesquisa acadêmica,
dedico-me a levar a Filosofia a um público maior, com a intenção pedagógica de contribuir para
sua formação moral e intelectual. Penso que, ao lado da literatura e da história, a filosofia seja uma
disciplina humanista e edificante, capaz de ajudar a nos orientar nos dilemas da nossa vida.

Naturalmente, valorizo muito a Filosofia “profissional”, praticada com o rigor científico na


Universidade. Com a minha formação acadêmica de mestrado e doutorado em Filosofia, sou professor
e pesquisador da Universidade Federal do Pará e do Centro Universitário do Pará, com a produção
técnica e especializada de filosofia, sobretudo no âmbito da teoria da lei natural, de inspiração de
Aristóteles e Tomás de Aquino (conheça o meu livro A filosofia do direito natural de John Finnis, vol.
1 Conceitos fundamentais. Editora Lumen Juris, 2020).

Mas nunca me restringi à atividade acadêmica estrita, pois sou o organizador da edição bilíngue
de Platão (numa coleção de 18 volumes, pela Editora UFPA), o pai e fonte permanente da Filosofia,
e da obra ensaística de Benedito Nunes (em nove livros, por várias editoras, como Companhia das
Letras, Martins Fontes e Loyola), um dos maiores filósofos e críticos literários do Brasil.

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Victor Sales Pinheiro - Introdução à Filosofia

A importância desses dois autores não se limita à especialidade acadêmica, mas alimenta a
inteligência de todas as pessoas, tanto quanto a música nos interessa a todos, e não apenas aos músicos
profissionais e acadêmicos.

Aliás, o fundador da Filosofia, Sócrates, não a considerava uma profissão


a ser remunerada e a conferir um status social (como o prestigioso e rentável
magistério dos sofistas), mas uma vocação pedagógica e cívica.

Benedito Nunes (1929-2011), por sua vez, publicava seus ensaios filosóficos no jornal e
palestrava em instituições culturais, conservatórios, museus, galerias, e não apenas na universidade.

Com essa intenção de divulgar a filosofia, mas sem vulgarizá-la ou simplificá-la, entre 2015
e 2017, contribuí com ensaios filosóficos no jornal paraense O Liberal e, em 2016, lancei meu site
de cursos de filosofia www.dialetico.com.br. Em 2021, compilei os meus escritos no livro A crise
da cultura e a ordem do amor – Ensaios filosóficos (Editora É Realizações), que serve também de
introdução à Filosofia e está consignado na bibliografia ao final deste trabalho.

Neste sintético e-book, introduzo a essência da Filosofia clássica, de inspiração platônica, para
que você a aprecie e queira me acompanhar nesta nova fase de difusão digital da Filosofia, beneficiada
pela comunicação imediata e interativa de redes sociais como o Instagram, Telegram e Youtube, nos
quais você já deve estar inscrito (caso contrário, sugiro inscrever-se em todos eles agora e retorne à
leitura em seguida).

O APERITIVO DE
UM BANQUETE
Nas próximas páginas, não espere distinguia a vida prática – voltada aos negócios da
longas reflexões filosóficas, com demonstrações cidade, necessários para a subsistência – e a vida
analíticas dos argumentos, mas apenas um contemplativa – dedicada à atividade intelectual
convite na forma de um aperitivo que aguce o seu e científica de compreender o mundo, amando-o
paladar para um banquete que será servido em pela inteligência.
seguida, caso você se disponha a me acompanhar
nesta longa caminhada, que não tem um ponto Um importante filósofo tomista1 do
de chegada fixo. século XX, o frade dominicano Sertillanges
(1863-1948), renovou a atenção a esta realidade
Como a dança, a Filosofia é um fim em si da filosofia clássica, a da vida intelectual, com
mesma, uma atividade intelectual desinteressada, virtudes morais necessárias, como a paciência, a
que não serve a nenhum objetivo específico – perseverança e a amizade, para a conquista das
como a diplomação ou capacitação profissional virtudes intelectuais da concentração, memória,
– ou seja, ela não tem fim e consome toda a vida articulação e escrita.
do filósofo autêntico. Por isso que Aristóteles
1
Tomista é quem desenvolve seu pensamento a partir de Tomás de Aquino, o maior filósofo da Cristandade

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Victor Sales Pinheiro - Introdução à Filosofia

É claro que o treino filosófico desenvolve enormemente as nossas potências


intelectuais e nos permite pensar e escrever muito melhor, estruturar
logicamente os argumentos com mais destreza e propriedade.

Mas a Filosofia é contemplativa, é uma forma de amor, que não tem preço e nem prazo. Portanto,
ela não se confunde com uma habilidade técnica profissionalizante, como as ciências em geral. Ela
é teorética, seu fim é conhecer, e não prático-produtiva. Ela também é iminentemente ética, porque
enriquece a personalidade de quem a pratica.

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Victor Sales Pinheiro - Introdução à Filosofia

UM PASSEIO APRAZÍVEL
Após uma definição breve da Filosofia para uma navegação mar adentro, posteriormente.
(capítulo 2), procedo com uma descrição sumária Trata-se de um passeio inicial, lembrando os
das suas disciplinas (capítulo 3), naturalmente colóquios de Aristóteles com seus alunos em
fronteiriças e superpostas umas às outras: as longas caminhadas, motivo pelo qual ficaram
ciências práticas da ética, política e poética e as conhecidos como ‘peripatéticos’ (caminhantes).
ciências teóricas da ontologia e epistemologia.
Em seguida, menciono a dialética da Filosofia É um grande prazer contar com a sua
com suas rivais sofísticas, as antifilosofias que companhia nesta caminhada intelectual. Reforço
tendem a neutralizá-la, como o ceticismo e o que este e-book marca um recomeço da minha
relativismo (capítulo 4). Ao cabo, proponho um atuação na Internet, uma nova fase do projeto
guia de leitura de obras que ajudarão você a se Dialético. Por isso, eu preciso ainda mais da sua
iniciar na Filosofia, além dos seus principais participação nas redes sociais, com a interação,
clássicos (capítulo 5). perguntas, críticas, comentários e divulgação.

Adoto uma linguagem simples e direta, A Filosofia é uma forma de amor


como numa conversa informal, sem incursões e de amizade e a minha proposta é
eruditas, aprofundamentos conceituais e citações formar uma comunidade virtual.
(as referências para leitura ulterior constam ao fim).
Conto com a sua participação ativa e sua
Com isso, pretendo tornar essa primeira divulgação aos amigos interessados!
jornada intelectual agradável, um primeiro passo

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Victor Sales Pinheiro - Introdução à Filosofia

UMA DÚVIDA SUFOCANTE


A Filosofia é tão reflexiva e questionadora que ela começa interrogando-se a si mesma,
perguntando que tipo de atividade intelectual ela realiza. Por isso, é natural que ela enfrente,
recorrentemente, uma espécie de crise de identidade, em que os seus diversos cultores concorram
sobre a sua natureza e finalidade.

Essa característica reflexiva arrisca resvalar num círculo vicioso, que denigre a sua imagem
aos leigos, que, com razão, poderiam afirmar aos filósofos: “Primeiro, decidam o que é a filosofia;
depois, convidem-nos a participar dela.”

Se decidimos estudar matemática ou jogar futebol, por exemplo, precisamos apenas nos
inteirar das regras e das finalidades dessas atividades para começar a praticá-las. Com a Filosofia é um
pouco diferente porque, antes de praticá-la, precisamos tomar consciência do que ela é. E os próprios
filósofos divergem sobre a sua essência.

Essa divergência é explicada pela dimensão crítica da Filosofia, que convida a sempre
questionar e problematizar o que já foi conquistado, o que pode gerar um ceticismo generalizado
sobre a própria Filosofia, num gesto que o Chesterton – um dos filósofos mais perspicazes e incomuns
da nossa tradição – chamava de “suicídio do pensamento”, quando o pensamento duvida do próprio
pensamento.

A QUINTESSÊNCIA
DA FILOSOFIA
Em meio a este mar de dúvidas e incertezas
que constituem a natureza da Filosofia, há um
consenso, que chega a ser uma unanimidade
entre os filósofos: Platão inaugurou uma série de
questões permanentes e incontornáveis.

Desde o seu mais célebre aluno,


Aristóteles, passando pelo seu mais conhecido
herdeiro cristão, Santo Agostinho, até o seu mais
inflamado inimigo moderno, Nietzsche, praticar
filosofia é dialogar com Platão, é responder
aos seus múltiplos questionamentos. Por isso,

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Victor Sales Pinheiro - Introdução à Filosofia

o importante filósofo da matemática Withehead afirmou que a melhor caracterização da filosofia


europeia (ocidental) é que ela consiste numa série de notas de rodapé a Platão.

Platão é a quintessência da filosofia, como Bach é da música e Shakespeare da poesia. Ele a


encarnou de f orma tão pura e perfeita que abriu o caminho para que essa atividade fosse praticada
indefinidamente, depois dele. Note que eu não me refiro ao conteúdo da filosofia platônica como
sendo o definitivo ou o verdadeiro, mas a forma de praticá-la, como amor insaciável pela Filosofia,
que mobiliza toda nossa vida e inteligência.

O ESTADO DE ÂNIMO
DO FILÓSOFO: O AMOR A identidade intelectual da Filosofia é
mesmo problemática porque ela é abrangente e
universal e não tem um único objeto de interesse.
Nisso, ela difere das ciências particulares, que se
caracterizam pelo seu objeto de estudo. Ninguém
duvida que a aritmética estude os números; a
biologia, os seres vivos; a física, o movimento; o
direito, as leis, e assim por diante.

Ao invés de ser definida pelo objeto de


análise, a Filosofia se caracterizou, na Grécia
antiga, pelo estado subjetivo do filósofo: o amor
(philia). Mas amor ao quê? À sabedoria (sophia).
Sabedoria de quê? De tudo o que se pode saber,
sem exceção.

Quando lemos as obras fundamentais da


filosofia, que são as de Platão e Aristóteles, assusta
a amplitude do seu horizonte intelectual. Tudo
lhes interessava, eram cientistas universais, que
amavam o conhecimento de toda a realidade, das
realidades naturais até os símbolos e narrativas
religiosas.

A definição etimológica da Filosofia


comoamor à sabedoria, portanto, não é
acidental, produto de uma contingência
linguística, mas revela a sua essência.

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Victor Sales Pinheiro - Introdução à Filosofia

Em grego, as palavras sophos e sophistes eram usadas para referir aos sábios, aqueles
reconhecidos pela sociedade em geral como dotados de um conhecimento abrangente sobre as
ciências e sobre os negócios da cidade (ética e política). Eram os poetas, cientistas, legisladores,
estadistas e oradores, capazes de dissertar sobre praticamente todos os temas concernentes à religião
e à sociedade.

FILÓSOFO, E NÃO SÁBIO


Pitágoras, no século VI a.C., foi o primeiro a recusar o insigne título de sábio, que ele certamente
merecia, em nome da designação mais modesta de amante da sabedoria. Com isso, ele enfatiza mais
a busca do conhecimento do que o seu resultado, a sabedoria. Aqui, já se percebe duas dimensões da
filosofia: (1) o da inquirição e perseguição dinâmica do conhecimento (a zetética e a crítica); e, (2) o
resultado estático e cristalizado do conhecimento (a dogmática e a ciência).

Para facilitar a compreensão didática desse argumento, proponho a seguinte analogia: é


como se houvesse, por um lado, (a) uma dimensão de pesquisa acadêmica, de produção de novos
conhecimentos a partir da discussão e da crítica dos saberes já consolidados e, por outro lado, (b)
uma dimensão de ensino escolar, de reprodução dos conhecimentos já acabados e fechados. A
primeira dimensão é ativa, hipotética e propositiva; ao passo que a segunda é mais passiva, dogmática
e reprodutiva

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Victor Sales Pinheiro - Introdução à Filosofia

Por isso, podemos dizer que toda ciência tem uma dimensão
filosófica na sua origem, expansão e aprofundamento.

Quando Albert Einstein, um dos maiores e mais populares cientistas do século XX, procurou
refutar a Física moderna de Isaac Newton, ele agiu como um filósofo, analisando e criticando uma
teoria, tanto quanto Newton havia feito em relação à Física antiga de Aristóteles.

Ao propor a teoria da relatividade de forma acabada e definitiva, Einstein estabeleceu uma


verdade científica, a ser reproduzida por alunos e ensinada a alunos de Física. Mas ela também pode
ser estudada pela filosofia, critica e mesmo refutada. O filósofo da ciência Thomas Khun refere-se às
mudanças paradigmáticas, que são sempre filosóficas, pela quais passa a ciência ao longo das eras.

A VIDA FILOSÓFICA
COMO ARTE DO AMOR
Perceba que, em meio à questão O filósofo ama o saber, por isso
epistemológica (relativa à produção de se dedica a ele de modo integral
conhecimento científico, sólido, seguro, e praticamente ininterrupto.
verdadeiro), desponta uma questão ética
(relativa à prática das virtudes), a da disposição É lendária a figura incômoda de Sócrates,
intelectual crítica, livre e investigativa que exige filosofando nas praças e nos banquetes de Atenas,
que o filósofo se dedique à atividade intelectual quando todos pretendiam apenas praticar
ao longo de toda a sua vida, porque sempre há política, comércio, poesia ou sexo. É que Sócrates
algo a descobrir e a aprofundar. filosofava exatamente sobre essas práticas

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Victor Sales Pinheiro - Introdução à Filosofia

cotidianas, sobre a vida boa, a felicidade, em como tomar consciência do sentido, da causa primeira e
do fim último de tudo isso. Daí a sua célebre afirmação, registrada por Platão na Apologia de Sócrates:
“uma vida não refletida não é digna de ser vivida”.

Amor à sabedoria é uma definição que registra, muito bem, essa dupla dimensão, moral e
intelectual, da Filosofia. O filósofo tem um compromisso com a verdade das coisas, mas, para atingi-
la, precisa amá-la e se dedicar a ela, como quem corteja a amada.

Quem ama tem um interesse tão genuíno e intenso que sempre procura desvendar algo a mais
da amada. Ele não se cansa de procurá-la e cobiçá-la, sente que nunca a exaure. Não seria estranho
alguém dizer que deixou de amar, depois de alguns meses ou anos, porque já esgotou tudo o que tinha
a amar ou que a amada já foi suficientemente amada?

Instigado pela estranha figura de Sócrates – que dizia que nada sabia e, ao mesmo tempo,
afirmava que só sabia da “arte do amor”

Platão refletiu profundamente sobre o amor, como uma escada


de ascensão do desejo erótico às formas mais sublimes de união
intelectual e espiritual com a beleza, verdade e bondade.

Se a República é o diálogo mais completo e influente de Platão, sobre a questão da justiça na


alma e na cidade, e se A apologia de Sócrates e Fédon, que narram, respectivamente, a condenação e
a morte de Sócrates, são os mais comoventes, os seus mais belos e inspirados diálogos são Banquete e
Fedro, odes apaixonadas à potência moral e intelectual do amor.

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Victor Sales Pinheiro - Introdução à Filosofia

Se descurarmos por algum instante a realidade fundamental e ascensional do amor, deixamos


de entender o que é a Filosofia. Neste sentido, Santo Agostinho é o maior herdeiro de Platão, porque
também refletiu sobre a dimensão ética e cosmológica do amor, tanto como peso gravitacional
da existência humana, quanto como fator de explicação da realidade harmônica do mundo, a ser
conhecido pela Filosofia e pela fé no Deus trino que é amor.

É o amor que liga o polo subjetivo do filósofo com o polo objetivo da realidade que ele quer
conhecer. O amor filosófico revela a dimensão subjetiva e a objetiva da Filosofia. Subjetiva, porque
ele engaja toda a existência do filósofo, numa autêntica “vida intelectual”, tão bem descrita por
Sertillanges. Objetiva, porque ele sai de si e busca compreender a verdade e assimilar a beleza do
mundo que contempla.

O RISCO DOS
REDUCIONISMOS
Quando a Filosofia perde de vista o nexo entre a dimensão subjetiva e interior com a objetiva e
exterior, ela pode recair nos reducionismos modernos do cientificismo (objetivista) e existencialismo
(subjetivista), em que o polo oposto é neutralizado pela afirmação exclusiva de um deles.

Por isso, essas filosofias modernas acumularam notáveis conhecimentos sobre a natureza, por
um lado, e sobre a subjetividade, por outro, mas raramente conseguiram uni-los de modo coeso
e orgânico. Os resultados extremos desses reducionismos são ora uma ciência desumana, ora uma
subjetividade descolada da realidade social e natural. Exemplo máximo disso é o embate entre a
psiquiatria (ciência médica da dimensão orgânica da mente) e a psicologia (teoria filosófica de
interpretação da linguagem simbólica da alma).

Isso explica, parcialmente, porque as ciências modernas resultaram em ideologias como o


positivismo (objetivista) e o romantismo (subjetivista), nas quais a descoberta da realidade natural
despreza o universo subjetivo do homem e, reciprocamente, a análise da interioridade e da psicologia
humana neutraliza a dimensão objetiva e universal da natureza.

Sem o ideal de totalidade e unidade, a Filosofia pode se fragmentar numa miríade de


ciências desencontradas, autorrefutatórias e mutuamente excludentes. Um dos maiores filósofos
contemporâneos, Husserl denunciou essa crise das ciências, propondo a fenomenologia como
alternativa.

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Victor Sales Pinheiro - Introdução à Filosofia

ADMIRAÇÃO
COMO ORIGEM
DA FILOSOFIA
A origem da Filosofia é a contemplação,
o gosto que temos por admirar a beleza
do mundo, tentando aprofundar o seu
sentido e investigar as suas causas.

Diante da positividade do ser, brota


no coração do filósofo uma gratidão e um
maravilhamento, o desejo de trazer a realidade
para dentro de nós, pelo pensamento, depois de
o mundo se apresentar como colorido e curioso
aos nossos sentidos.

As questões metafísicas fundamentais – a


do ser e a do conhecer – provêm exatamente desse
amor à contemplação, ao desejo de conhecer toda
a realidade, de modo verdadeiro, e não apenas
aparente.

A admiração filosófica inclina o filósofo


ao todo da realidade e ao conhecimento
verdadeiro (científico). Por isso, ele coleciona
questões ontológicas (relativas à ordem do ser) e
epistemológicas (relativas à ordem do conhecer):
O que percebemos pelos sentidos exaure toda
a realidade? Não há algo mais a ser conhecido?
O conhecimento recebido pelos sentidos e o
recebido pela tradição é mesmo verdadeiro,
sólido, consistente, científico (epistêmico)?
e mutuamente excludentes. Um dos maiores
filósofos contemporâneos, Husserl denunciou
essa crise das ciências, propondo a fenomenologia
como alternativa.

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Victor Sales Pinheiro - Introdução à Filosofia

DOIS MÉTODOS
Há dois métodos básicos e intrinsecamente ligados da Filosofia: (1) o analítico-conceitual e
(2) o hermenêutico-histórico. (1) O analítico é sincrônico e analisa os conceitos filosóficos de modo
abstrato, abstraído do contexto biográfico, histórico e social do filósofo, concentrado na dimensão
lógica dos argumentos, com seus termos, proposições e silogismos.

(2) Já o método hermenêutico é diacrônico, histórico e dialético, procurando relacionar os


autores e correntes entre si, numa linha de influências e rupturas, pensando a tradição filosófica como
uma sucessão de continuidades e rupturas.

Esta abordagem privilegia a história da Filosofia, sua origem e crises epocais, relacionando-a às
situações históricas específicas, como as guerras, as invenções tecnológicas, as descobertas científicas
e as mudanças nas formas de vida.

O ideal é sempre articular as duas abordagens, alternando conceituações lógicas com


considerações históricas e contextuais. Mas, como o objetivo deste e-book não é apresentar a história
da Filosofia, o que me exigiria muito mais páginas, cabe agora apresentar, sumariamente, o quadro
das disciplinas filosóficas tradicionais, sempre fronteiriças e interligadas.

UM AMOR ORDENADO
A Filosofia é o amor ao todo da realidade
e, como a realidade se apresenta altamente
complexa, composta por múltiplas partes
interdependentes, para alcançá-la na sua inteireza,
a filosofia precisa analisá-la por partes. Essa é a
origem das tradicionais disciplinas filosóficas, em
que normalmente os cursos universitários são
divididos.

Foi Aristóteles quem procurou, pela


primeira, sistematizar e fundar essas disciplinas,
mas nunca descurou as suas interrelações.

Ao estudar Filosofia, é importante nunca


perder de vista a unidade ontológica da
realidade e a unidade epistemológica
do conhecimento sobre ela.

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Victor Sales Pinheiro - Introdução à Filosofia

Caso contrário, recai-se, facilmente, na


fragmentação que impede a visão do todo, com
que Platão caracterizou os filósofos dialéticos, na
República.

Aliás, foi essa visão sinóptica, capaz


de perceber a totalidade da realidade, que me
inspirou a denominar meu site “dialético”, como
também explico num ensaio introdutório ‘A
sinóptica do fragmento’ do meu livro A crise da
cultura e a ordem do amor.

A totalidade da realidade a que a


Filosofia se volta não pode dispersá-la ou afogá-
la. Ao contrário, é necessário muita disciplina
intelectual, ordem e método para se concentrar
em cada uma dessas disciplinas, uma de cada vez,
sempre ressaltando seus nexos de comunicação e
justaposição, sabendo que a luz que se lança sobre
uma delas sempre irradia sobre as demais. Ao
longo da história da Filosofia, diferentes filósofos
enfatizaram ora a uma, ora a outra disciplina,
e isso é relevante para a determinação de sua
identidade filosófica.

Kant, por exemplo, considerava que não se pode ensinar filosofia


(o resultado dogmático da especulação), mas apenas a filosofar
(a atividade do pensamento que desenvolve as teorias).

Ninguém aprende a nadar fora da piscina, é preciso treinar e testar a capacidade intelectual
diante de problemas reais e relevantes para a vida. Assim, o maior filósofo da modernidade postulou
quatro perguntas fundamentais:

1. Na metafísica: O que posso saber? 3. Na religião: o que posso esperar?


2. Na ética: o que devo fazer? 4. Na antropologia: O que é o homem?

Como Kant já trabalha num contexto da crítica à metafisica aristotélico-tomista, para erigir o
seu sistema do idealismo transcendental, convém partir da primeira organização do saber filosófico
na Antiguidade, que é a de Aristóteles.

22
Victor Sales Pinheiro - Introdução à Filosofia

CIÊNCIAS PRÁTICAS
Na Metafísica de Aristóteles – o tratado fundacional da ontologia, a Filosofia primeira que
ordena todas as disciplinas filosóficas – consta uma divisão elementar entre as ciências teóricas e as
ciências práticas.

Se as ciências teóricas são contemplativas, as práticas estão interessadas na ação ética e na


produção técnica. A razão humana tem uma dupla faculdade: a teórica e a prática. Pela faculdade
teórica, conhecemos o mundo ao redor; pela prática, tomamos decisões e orientamos a nossa ação e
produção.

A ética clássica reflete sobre o agir humano a partir dos fins (bens) que ele alcança,
na busca pela felicidade, que é um estado de realização e plenitude.

As virtudes são forças da personalidade, excelências morais que franqueiam o bem individual
e comum. A ética tem uma dimensão política, porque normatiza, racionalmente, a conduta social,
por meio das leis e das concepções morais da justiça.

Se as ações éticas constituem o caráter do agente, as ações técnicas são produtivas, interessadas
na produção de objetos exteriores, que podem ser técnicos (pautados na utilidade, como um
engenheiro que constrói uma ponte) e/ou artísticos (pautados na beleza, como um pintor que desenha
um quadro).

As ciências produtivas técnicas são menos filosóficas do que as artísticas,


porque o belo sempre desperta grande interesse filosófico, pela sua relação
com o bem e com a verdade, suscitando questões morais, psicológicas,
epistemológicas e metafísicas.

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Victor Sales Pinheiro - Introdução à Filosofia

ÉTICA E POLÍTICA
A Política é o conjunto de instituições,
não apenas governamentais, mas também
sociais, éticas, pedagógicas, culturais e religiosas
que moldam o caráter de um povo civilizado,
isto é, um povo ordenado que vive numa cidade
constituída por leis que regulam as relações
cívicas dos cidadãos livres e iguais (note-se o
nexo não só etimológico mas semântico entre
cidade, civismo, cidadania e civilização). Esse é o
fundamento da tradição republicana: um governo
Para introduzir o tema clássico das constitucional em que os cidadãos governam e
relações entre ética e direito, reproduzo o meu são governados por si próprios em nome do bem
ensaio ‘Amizade e justiça’, incluído no meu livro comum.
A crise da cultura e a ordem do amor (Editora
É Realizações): Diferente do positivismo das ciências
sociais modernas, que pretendem ser neutras
Uma das expressões mais conhecidas de valoração ao descrever a Política, Aristóteles
da Filosofia é a de que o homem é um animal avalia que o bom governo se caracteriza por
político. Cunhada por Aristóteles, ela se encontra servir ao bem comum dos governados, e não aos
no Livro I da Política, tratado de filosofia prática interesses egoístas dos governantes. Um governo
posterior à Ética a Nicômaco, que lhe serve de que está a serviço dos governantes é tirânico e
pano de fundo conceitual e metodológico.2 usurpador.

Ademais, o bom governo não se baseia


apenas na força e na coerção, na obediência pelo
medo da punição que caracteriza o governo
despótico, mas em leis com as quais concordam
os governantes ou de cuja formulação eles
participaram, conferindo legitimidade à
autoridade do Estado.

Por fim, o bom governo é um governo


“constitucional”, baseado em leis, que governam
até mesmo os governantes. Enquanto os homens
são passionais e instáveis, as leis são racionais
e equilibradas, expressão da racionalidade
O homem é naturalmente político não compartilhada de homens livres e iguais. A
como as formigas ou abelhas, que coordenam a relação entre governante e governado é de
atividade para a subsistência do grupo, mas porque cidadania, de igualdade e alteridade, diferente da
é dotado de razão que unifica o pensamento do relação desigual entre tirano e escravo ou entre
grupo em torno do que é a justiça, princípio que déspota e súdito.
guia a colaboração social.
2
Aristóteles, Política, Lisboa, Veja, 1998.

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Victor Sales Pinheiro - Introdução à Filosofia

O regime constitucional das leis é um sinal da racionalidade humana.


Obedecê-las é típico do homem virtuoso que procura contribuir
para o bem comum e manter a paz social.

Ele o faz voluntariamente, como parte de sua racionalidade e realização pessoal, e não por
medo de punição. Como explica Adler, o homem bom,

não é coagido pelo governo, e por isso o governo não é, para ele, um mal, como o é
para o homem mal.
O homem bom também não sente que sua liberdade é limitada pelo governo.
Ele não quer mais liberdade do que consegue usar sem prejudicar os outros. Só o
homem mau quer mais liberdade do que isso e, portanto, só ele sente que sua liberdade
de fazer o que quiser, sem preocupar-se com os outros, é limitada pelo governo.3

Os homens precisam da justiça política porque é impossível desenvolverem amizade por todos
da cidade. Se a amizade é o desejo de felicidade do amigo, o dom gratuito de lhe dar tudo o que puder
contribuir para o seu bem, a justiça é o dever de atender aos direitos dos outros cidadãos. A amizade
é baseada no amor, na generosidade, no desinteresse e na benevolência; a justiça, na responsabilidade
e obrigação pelo bem comum, o conjunto de condições externas para a realização pessoal dos bens a
que os homens são naturalmente inclinados.

No âmbito político, esses bens que provêm das necessidades humanas fundamentais de viver
bem, com saúde, conhecimento, trabalho, sociabilidade e participação política, são os direitos (que
hoje classificamos como direitos humanos). A justiça do regime constitucional, portanto, é a liberdade
de pessoas iguais, sendo que essa igualdade provém da natureza humana comum, que me exige tratar
os outros como eu mereço ser tratado para que eu tenha uma vida boa, isto é, desenvolvendo essas
mesmas faculdades naturais dos demais. Por isso, é intrinsecamente injusto um governo tirânico ou
despótico, que reduz os governados a escravos ou súditos, privando-os da cidadania, racionalidade e,
portanto, humanidade.

E aqui reside a contradição fundamental da Política de Aristóteles.

Até o cristianismo, nenhuma sociedade afirmou a igual dignidade de todos


os seres humanos, sem exceção, baseada na igual filiação divina
em Cristo, motivo da fraternidade universal

(Gálatas 3, 28).4 Marcado pelo etnocentrismo e pela misoginia helênicos, Aristóteles considerava
haver naturezas diferentes entre as pessoas.

Por isso, o seu jusnaturalismo – tão articulado para promover os fundamentos filosóficos da
cidadania, da igualdade e da liberdade políticas – o conduziu a um dos erros mais graves da nossa
tradição: o de negar a racionalidade e, portanto, a dignidade de escravos e mulheres, subtraídos da
participação política por serem “naturalmente” inferiores, incapazes de autogoverno, logo incapazes,
como crianças e doentes mentais, de governarem os outros.

Pelo influxo do cristianismo e do liberalismo moderno que o secularizou, reconhecemos


que o governo justo é o constitucional, aquele que não discrimina nem despersonaliza nenhum ser
humano por motivo de sexo, raça, credo, etnia ou riqueza.
3
Mortimer Adler, Aristóteles para todos – uma introdução simples para um pensamento complexo. São Paulo: É Realizações, 2010, p. 126-127.

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Victor Sales Pinheiro - Introdução à Filosofia

Todos têm a liberdade de governarem e serem governados como iguais.


A igual dignidade de todos repousa na natureza humana comum e nos
bens humanos que a realizam.

Baseada no maior intérprete de Aristóteles, Tomás de Aquino, que comentou minuciosamente


a Ética a Nicômaco e a Política, essa interpretação do governo constitucional e da dignidade humana
é a mais consoante com a atual política dos direitos humanos. Mas a riqueza de um clássico como a
“Política” de Aristóteles é a abertura intelectual que ela franqueia. Mesmo pautada numa estrutura
social de cidade-estado radicalmente diferente da moderna, essa obra-prima permanece imprescindível
para compreender a tradição política ocidental e continua a alimentar os debates em torno das
ideologias contemporâneas do socialismo, fascismo, liberalismo, republicanismo, conservadorismo
e comunitarismo. Se Aristóteles não fornece respostas prontas ou soluções definitivas para nossos
incontáveis e incontornáveis dilemas atuais, ele ainda contribui para reflexão sobre as virtudes da
amizade e da justiça que mantêm a cidade unida.

4
Luis Fernando Barzotto. ‘Direitos humanos’. in Filosofia do direito. Os conceitos fundamentais e a tradição jusnaturalistas. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2010

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Victor Sales Pinheiro - Introdução à Filosofia

CIÊNCIAS TEÓRICAS
As ciências teóricas são contemplativas (2) As ciências matemáticas são lógicas
porque buscam espelhar (do termo latino e formais porque abstraem a qualidade sensível
speculum, de que deriva também a palavra dos entes para se concentrar na sua quantidade.
especulação) na mente a realidade que não se Elas são formais porque dispensam a “matéria”
pode transformar. Elas são ciências puras e quantificada. Assim, não importam se são dois
desinteressadas, visam tão somente compreender homens ou dois gatos que, somados com dois
a realidade das coisas, independente da eventual entes da mesma espécie, resultam em quatro
aplicação técnica desse conhecimento. deles. O raciocínio opera num nível de abstração
da matéria, refletindo sobre a estrutura interna
É claro que a ciência da matemática dos números.
tem uma utilidade imediata para praticamente
qualquer atividade, pela capacidade de contar Platão considerava absolutamente
e relacionar os dados quantitativos entre si. Do indispensável a iniciação nessas ciências
mesmo modo, a ciência da astronomia permite matemáticas como propedêuticas à Filosofia.
a orientação náutica, a compreensão dos ventos, Ele teria, inclusive, escrito no pórtico de
das águas e assim por diante. Mas essas ciências sua Academia: “Aqui não entra quem não
são teóricas exatamente porque não se definem for geômetra”. A geometria é a projeção da
pelo uso técnico que se faz dela ou pela influência matemática às formas sólidas, analisando as suas
ética no caráter do filósofo. relações numéricas.

Num nível de abstração crescente, pode- (3) A ciência metafísica é ontológica porque
se dividir as ciências teóricas em (1) ciências enfoca o “ser enquanto ser”, que não é nada de
naturais, (2) ciências matemáticas e (3) ciência específico e que, ao mesmo tempo, é aquilo de
metafísica. que tudo o que é participa.

(1) As ciências naturais se voltam à Essa ciência abstrai tanto a qualidade


realidade fornecida inicialmente pelos sentidos, das espécies (cães) e dos entes individuais (este
abstraindo as diferenças individuais dos poodle individual, peludo e aleijado), quanto
fenômenos e se concentrando nas qualidades a sua quantidade (um ou trezentos cães ou
ou propriedades comuns de um conjunto da estrelas), abstrai toda a matéria (carne ou granito)
realidade, como os vegetais ou animais, por e forma (circular ou retangular), concentrando-
exemplo. se simplesmente na estrutura do ser, com as
categorias metafísicas que o tornam inteligível. A
Não interessa este ou aquele cão, mas a compreensão do que é a metafísica é fortemente
natureza canina, seus atributos constitutivos, sua condicionada à capacidade abstrativa da
essência ou espécie científica, a substância sem a inteligência, que exige bastante treino gramatical
qual um animal deixa de ser um cão. O binômio e lógico. Junto com a retórica, essas ciências são
substância (aquilo que existe por si mesmo) e propedêuticas à Filosofia.
acidente (aquilo que depende de outro ente para
existir) ajuda na formulação das essências dos
entes categorizados em conjuntos. Note que essa
é a metodologia de qualquer ciência.

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Victor Sales Pinheiro - Introdução à Filosofia

SER, CONHECER E DIZER


Há muito o que se refletir no campo da (1) Não há o ser (niilismo), este ente
ontologia (ciência do ser) e da epistemologia genérico e universal que Parmênides buscava
(ciência do conhecer), pois, ao longo da história, como permanente, estável, sempre idêntico,
os filósofos divergem profundamente sobre (1) insuscetível a qualquer movimento ou mudança,
a existência e essência do ser (ontologia), (2) a que simplesmente é o que é, e não pode jamais
possibilidade de conhecê-lo (epistemologia), e (3) deixar de ser (e que a tradição cristã identificou
e a possiblidade e os modos de dizê-lo (questão com Deus);
da linguagem).
(2) Se houvesse o ser, ele não seria
O célebre retórico Górgias de Leontini foi conhecível (ceticismo), pois não temos meios
um niilista (do ponto de vista ontológico) e cético intelectuais de acessar algo permanente, eterno e
(do ponto de vista epistemológico). Ele formulou imutável, de modo a nos certificar que, de fato,
seu pensamento numa série de três proposições o atingimos; isto é, não teríamos conhecimento
encadeadas: científico, sólido e infalível sobre o ser;

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Victor Sales Pinheiro - Introdução à Filosofia

(3) Se houvesse o ser e pudéssemos


conhecê-lo, não poderíamos comunicá-
lo (insuficiência da linguagem), pois nossa
linguagem é imperfeita, instável e suscetível a
infinitas interpretações, de modo que jamais
poderíamos atestar que o receptor entendeu
exatamente a mesma coisa que lhe foi comunicada
pelo emissor.

A tese niilista e cética de Górgias não


vingou na filosofia Antiguidade, pelo menos
não entre os seus mais extensos e profundos
expoentes, Platão e Aristóteles, que, ao contrário,
apostaram e demonstram ser possível exercitar e
depurar o pensamento e a linguagem de modo a
alcançar o ser fundamental da realidade, a causa
não causada e o moto imóvel, que consideravam
divino.

Portanto, como bem notou Heidegger, a Diante desse quadro de Górgias – o ser,
tradição metafísica ocidental é uma onto-teo- o conhecer e o dizer – pode-se identificar três
logia, uma articulação racional (pelo logos), do tendências fundamentais na história da filosofia:
ser (ontos) divino (theos), que a teologia e filosofia (1) a ontologia clássica dos antigos e medievais,
cristãs identificaram como sendo o próprio Deus, (2) a epistemologia dos modernos e (3) a filosofia
que se fez carne em Cristo (Logos de Deus). da linguagem dos contemporâneos.

A ONTOLOGIA CLÁSSICA
A ontologia clássica dos antigos (como
Platão e Aristóteles) e medievais (como Agostinho
e Aquino) buscava a unidade do todo da realidade,
a partir da sua abóbada metafísica, o ser ou Deus.
Dessa premissa, deriva uma série de análises
epistemológicas da relação do conhecimento
sensível (dos órgãos corporais) e inteligível (da
inteligência abstraída da experiência sensível).

Franqueado pelos sentidos, o conhecimento


sensível (chamado de empírico na modernidade)
é sempre particular, porque condicionado pelo
tempo e espaço: o meu corpo só me mostra uma
coisa de cada vez, eu sou posso tocar nesta pessoa
humana particular, ver este computador e beber
este copo de água.

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Victor Sales Pinheiro - Introdução à Filosofia

Por outro lado, o conhecimento Essa dimensão filosófica e metafísica


inteligível (que encontra denominações muito de Deus, já elaborada por Platão, Aristóteles e
variadas ao longo da história da filosofa, como Plotino, embora de modos diferentes em cada
ciência, intuição, compreensão e entendimento) um deles, foi essencial para a assimilação da
formula um conceito universal, focado no Filosofia grega na especulação religiosa cristã,
ente em si, concebendo o ser humano em geral em filósofos como Santo Agostinho de Hipona
(independente das suas particularidades e e Santo Tomás de Aquino, que exploraram
contingências), a essência do computador em si e desenvolveram as categorias clássicas para
e a natureza permanente e substancial da água refletir sobre a teologia (natureza de Deus) e
como tal. antropologia (natureza humana), epistemologia
(teoria do conhecimento), psicologia (teoria das
Os filósofos clássicos são teístas, porque faculdades da alma humana) e a ética (teoria do
reconhecem a existência de Deus, como ser bem humano e da felicidade).
supremo, eterno e imutável, causa não causada,
motor imóvel e inteligência ordenadora que
engendrou o cosmos inteligível

A EPISTEMOLOGIA MODERNA Newton, que era o modelo de cientista moderno.

A gnosiologia (ou epistemologia) parte


da diferença entre sujeito cognoscente e objeto
conhecido, analisando as categorias do sujeito que
permitem atingir o objeto. A teoria do conhecimento
de Kant parte da distinção entre juízos analíticos
(a priori), que são formais e explicativos, não
acrescentando nenhum conhecimento novo,
mas apenas explicitando o conteúdo predicativo
já presente no sujeito; por exemplo, o triângulo
tem três lados. Os juízos analíticos se fundam nos
princípios lógicos da identidade e não-contradição,
formando juízos de identidade que são tautológicos,
universais e necessários. Eles são apriorísticos
porque anteriores à experiência sensível.

Já os juízos sintéticos (a posteriori)


A epistemologia moderna se concentra são materiais e extensivos, pois aumentam o
não tanto no ser, como a ontologia clássica, mas no conhecimento pela união sintética de elementos
conhecer, no modo como acessamos a realidade. heterogêneos no sujeito e predicado; por exemplo,
Partindo dos embates entre racionalistas, como o calor dilata os corpos. Esses juízos se fundam na
Descartes, Spinoza e Lebniz, e empiristas, como experiência sensível, particular e contingente. Eles
Locke, Berkeley e Hume, Kant concebe o projeto do são a posteriori, posteriores à experiência sensível,
criticismo transcendental, buscando fundamentar por dependerem do dado empírico fornecido
a ciência moderna, como a praticada por Isaac pelos sentidos.

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Victor Sales Pinheiro - Introdução à Filosofia

Para que não seja nem tautológica (como conhecer os fenômenos, isto é, as coisas tais como
no caso dos juízos analíticos), nem contingente se mostram à nossa capacidade de percepção, que
(como no caso dos juízos sintéticos em geral), a são constituídos pelas categorias transcendentais do
ciência precisa de juízos sintéticos a priori (baseados conhecimento;
em intuição não sensível). Isso em três âmbitos,
(1) na Estética Transcendental, (2), na Analítica (3) A Dialética Transcendental reflete sobre
Transcendental e (3) na Dialética Transcendental. a impossibilidade científica da metafísica, uma vez
que ela não alcança juízos sintéticos a priori, ao lidar
(1) A Estética Transcendental analisa a com os conceitos de alma (síntese das vivências
faculdade de se ter percepções sensíveis. Nela, os juízos subjetivas), universo (síntese das vivências objetivas)
sintéticos a priori se baseiam nas formas puras de e Deus (síntese final e suprema).
intuição, o tempo e espaço. Esses juízos independem
da experiência sensível, são formas de apreensão, Para falar de Deus e alma, deve-se
condições de possibilidade do conhecimento das apelar à razão prática, à consciência moral, que
coisas, ou seja, a condição transcendental para fundamenta a religião.
as coisas serem objeto de conhecimento. Eles se
baseiam nas formas de sensibilidade, da faculdade Com sua teoria altamente complexa e
de ter percepções sensíveis; elaborada do conhecimento, Kant inaugura uma
rica tradição de filosofia alemã, como os seus
(2) A Analítica Transcendental considera que sucessores idealistas, Fichte, Hegel e Schelling, até
a coisa em si (o númeno) escapa à possibilidade de os seus críticos voluntaristas como Schopenhauer e
conhecimento, pois Kant considera que só podemos Nietzsche.

FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
DA LINGUAGEM
A filosofia contemporânea é dominada pelo tema da linguagem. É comum dividi-la na vertente
continental (hermenêutica) e peninsular (analítica), considerando a cisão pós-kantiana entre positivismo e
romantismo.

Os positivistas afirmam a objetividade e a verdade das ciências particulares, reduzindo o escopo


da Filosofia ao âmbito empírico e material da realidade, ao passo que os românticos se voltam para a
complexidade da subjetividade e da psicologia humana, enfocando-a também pela história e pela cultura a
que ela pertence.

Essas posturas filosóficas têm em comum uma crítica da metafísica clássica, com sua demonstração
da existência de Deus e a proposição de uma ética normativa das virtudes, como a da lei natural.

A linguagem do ponto de vista lógico motiva as investigações de Wittgenstein e os membros do


Círculo de Viena, como Bertrand Russel, que cultivavam o ideal matemático de ciência. Por outro lado, a
linguagem na sua dimensão poética, histórica e cultural motivava a fenomenologia de Martin Heidegger e
sua filosofia da existência, que inspirou muitos alunos e seguidores nas mais diversas áreas.

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Victor Sales Pinheiro - Introdução à Filosofia

CONCEITUAÇÃO DIALÉTICA
A Filosofia é a arte da conceituação, o esforço intelectual de usar termos adequados para
definir as realidades. Isso se dá pela dialética, pela confrontação de entes parecidos. Para formação
de um conceito, Aristóteles busca o seu gênero comum e a sua diferença específica. Ou seja, para
compreendermos alguma coisa, precisamos aproximá-la de algo semelhante e depois divisar o que ela
tem de particular.

Assim, dizemos que o homem é um animal racional. Ele é tão animal quanto um cão, porque nasce
e morre, tem vida sensível e se movimenta. O homem pertence ao gênero comum dos animais. Mas há
animais irracionais (como o cão) e racionais (como homens). O homem também é um animal político,
porque não apenas convive, mas forma uma organização política baseada nas palavras e nas leis.

O CÃO E O LOBO Os sofistas eram os famosos professores


de retórica que viajam pelas cidades helênicas
ministrando aulas e preleções, ensinando a arte
de persuasão verbal. Além da retórica, os sofistas
exploravam, argutamente, a gramática (estrutura
da língua) e a lógica (estrutura do raciocínio),
mas Platão percebeu que eles argumentam por
falácias, que são raciocínios falsos, imprecisos,
aproximativos, meias verdades ou quase-
verdades. Seu objetivo é apenas convencer, pela
verossimilhança, e não conhecer o mundo tal
O filósofo é um intelectual, alguém que como ele é.
desempenha a atividade do pensamento, mas
certamente não é o único que faz isso. Como Os diálogos de Platão são uma tentativa de
há outros tipos de intelectuais, Platão precisou explicar a fisionomia do filósofo em confrontação
distinguir o filósofo (cujo modelo fundamental dialética com os poetas e os sofistas
é Sócrates, o protagonista dos seus diálogos) dos
poetas e dos retóricos. que gozavam de grande prestígio na cultura grega do
seu tempo, amante de recitações poéticas e discursos
A distinção entre filósofo e sofistas é encomiásticos de toda natureza, na religião, na
estrutural na Filosofia, pois é fácil confundi- política e nos banquetes festivos.
los, como é fácil confundir, de noite, o cão e o
lobo, como lembra Platão num diálogo chamado A distinção fundamental é que o filósofo
exatamente Sofista. Na verdade, o cão é uma ama a verdade, o ser, e não o espetáculo, o aparecer
espécie de lobo domesticado, em quem se pode e a persuasão. O filósofo busca a essência das coisas,
confiar e não o discernir é demasiado arriscado. sem se contentar com as aparências sensíveis

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Victor Sales Pinheiro - Introdução à Filosofia

e as convenções tradicionais. Uma distinção Um argumento pode ser persuasivo e mesmo


epistemológica desponta dessa dialética: o amor à belo, mas falso. A Filosofia afirma o critério intelectual
sabedoria contraposta ao amor à opinião (sofistas)e científico para aferir a verdade de algo, independente
ou ao espetáculo (poetas) da popularidade, da beleza ou das impressões
subjetivas. No plano ontológico, trata-se da distinção
Sofistas e poetas não estão compromissados entre ser e parecer, que se incorporou à sabedoria
com a verdade, mas com a persuasão ou a beleza. popular pelo provérbio “nem tudo o que parece é”.

FILOSOFIA E ANTIFILOSOFIAS
A partir dessa distinção fundamental entre filosofia e sofística, deve-se atentar às formas intelectuais
concorrentes, as antifilosofias, que tendem a neutralizar a dimensão pedagógica e cognitiva da Filosofia,
apelando para formas variadas de ceticismo e relativismo.

O filósofo tem um desejo sincero de educar seus alunos e discípulos, contribuindo para a formação
humana e por conseguinte para a sociedade, a partir de um compromisso epistemológico com a verdade,
que deve ser distinguida da falsidade e da aparência.

Afirmar, dogmaticamente, que não é possível alcançar a verdade das coisas (ceticismo), ou a verdade
não existe e que tudo depende de uma perspectiva pessoal, cultural ou histórica (relativismo) neutraliza a
atividade filosófica, confundindo-a com uma retórica ou ideologia.

O resultado da negação de uma verdade a ser conhecida é a redução da inteligência a uma disputa
retórica de poder persuasivo, em que a Filosofia se torna mais uma contendora numa disputa interminável
de dominação.

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Victor Sales Pinheiro - Introdução à Filosofia

Por isso, a Filosofia deve se precaver e refutar os ceticismos


e relativismos, as sofísticas que sempre a assediam.

PHYSIS E NOMOS Como a nossa era é ao mesmo tempo


positivista e relativista, tendemos a considerar
mutuamente excludentes a natureza (objetiva) e
a cultura humana (subjetiva e histórica), soando
autocontraditório o ideal clássico de uma ‘lei
natural’ ou de uma ‘justiça por natureza’.

Na perspectiva de Platão, os sofistas


observavam que os costumes e as leis sociais
variavam de cidade para cidade, concluindo
que não há meios para superar esse relativismo,
que não se pode julgar uma ética por outra. Nos
diálogos Teeteto e Protágoras, Platão refere-
se à afirmação desse último sofista de que “o
A Filosofia nasce da interseção dialética homem é a medida de todas as coisas”. Com isso,
entre duas tendências intelectuais vigentes na época cada homem veria o mundo de acordo com as
de Platão, que ele incorporou num impressionante suas próprias lentes, não havendo uma verdade
gesto de síntese. Trata-se da investigação sobre a universal e objetiva, válida para todos eles.
natureza (physis) e sobre a lei e costumes humanos Essa tendência intelectual se reflete no
(nomos). relativismo pós-moderno de autores como Foucault,

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Victor Sales Pinheiro - Introdução à Filosofia

Derrida, Rorty e Vattimo, que considera que tudo divino que a estruturava e animava. Trata-se da
dependente da linguagem, da cultura ou da história, intuição de que o mundo é uma ordem (cosmos),
demitindo a possibilidade de se alcançar uma que é regida por leis que podem ser conhecidas,
verdade objetiva na ética, estética ou política num ato conjunto dos sentidos e da inteligência.

Os diálogos de Platão são uma tentativa de Chamados de ‘pré-socráticos’, esses


explicar a fisionomia do filósofo em confrontação primeiros filósofos naturalistas mobilizaram o
dialética com os poetas e os sofistas vocabulário poético disponível para articular
os primeiros teoremas filosóficos, que foram
Mas na época de Platão havia também os aproveitados e desenvolvidos por Platão e Aristóteles,
intelectuais que investigavam a natureza (physis), e seus sucessores
buscando as suas causas fundamentais, o princípio

A DIALÉTICA FILOSÓFICA
O resultado dessa síntese platônica de buscar uma verdade sobre a natureza e sobre o homem implica
o reconhecimento de uma dialética estrutural (não necessariamente um dualismo dicotômico) entre os que
nós chamamos de ciências da natureza (como física, química, biologia e astronomia) e ciências humanas
(como sociologia, economia, antropologia e direito).

Essa dualidade estrutural também se reflete em vários pares dialéticos, cujo equacionamento e
relação com os demais caracterizam as várias respostas filosóficas ao desafio platônico fundamental:

1. Corpo e alma; 6. Pluralidade e unidade;


2. Desejo e vontade; 7. Substância e acidente;
3. Âmbito sensível 8. Tempo e eternidade;
(o que pode ser experimentado pelos cinco órgãos dos 9. Mal e bem;
sentidos corporais) e inteligível (o que pode ser pensado);
10. Caos e ordem.
4. Opinião e ciência;
5. Imanência e transcendência;

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Victor Sales Pinheiro - Introdução à Filosofia

No século XIX, Nietzsche percebeu que toda a filosofia ocidental se baseava neste tipo de dialética e
que o cristianismo a perpetuara na estrutura carne e espírito, e terra e céu. Para tentar superá-la, ele propôs
uma ética para além do bem e do mal, e uma negação da função intelectual e moral tradicionalmente
atribuída à alma em relação ao corpo.

Admirador dos sofistas, Nietzsche inaugura uma robusta antifilosofia no nosso


tempo, criticando veemente o projeto filosófico como um todo,

ao mesmo tempo que se envolve profundamente nas questões filosóficas mais importantes, sobre a verdade,
a bondade e a beleza.

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Victor Sales Pinheiro - Introdução à Filosofia

PEQUENAS INTRODUÇÕES DIDÁTICAS


As editoras Paulus e Loyola têm um catálogo relevante de Filosofia, contando com duas
coleções de volumes pequenos e acessíveis, que permitem dar os primeiros passos na filosofia.

COLEÇÃO LEITURAS FILOSÓFICAS DA EDITORA LOYOLA


1. AUBENQUE, Pierre. Desconstruir a metafísica? São Paulo: Loyola, 2012.
2. BERTI, Enrico. Convite à filosofia. São Paulo: Loyola, 2013.
3. BRAGUE, Rémi. Âncoras no céu. A infraestrutura metafísica. São Paulo: Loyola, 2013.
4. DUHOT, Jean-Joël, Sócrates ou o despertar da consciência. São Paulo: Loyola, 2004.
5. HADOT, Pierre, O que é a filosofia antiga? São Paulo, Loyola, 1999.
6. HADOT, Elogio da filosofia antiga. São Paulo, Loyola, 2012.
7. HADOT, Elogio de Sócrates. São Paulo, Loyola, 2012.
8. MARITAIN, Jacques. Sete lições sobre o ser. São Paulo: Loyola, 2005.
9. PIEPER, Josef. Que é filosofar? São Paulo: Loyola, 2007.
10. PORTA, Mario Ariel González. A filosofia a partir de seus problemas. São Paulo: Loyola, 2002.

COLEÇÃO COMO LER FILOSOFIA DA EDITORA PAULUS


1. BLANK, Renold. Encontrar sentido na vida: Propostas filosóficas. São Paulo: Paulus, 2008.
2. BOTTER, Barbara. Fazer filosofia. Aprendendo a pensar com os primeiros filósofos. São
Paulo: Paulus, 2013.
3. CASERTANO, Giovanni. Uma introdução à República de Platão. São Paulo: Paulus, 2011.
4. TEIXEIRA, João de Fernandes. Por que estudar filosofia? São Paulo: Paulus, 2016.
5. NASCIMENTO, Carlos Arthur Ribeiro do. Um Mestre no Ofício: Tomás de Aquino. São
Paulo: Paulus, 2011.

INTRODUÇÕES GERAIS (DESTAQUE PARA ROBINET,


MELENDO E BARZOTTO)
1. ALBERT, Karl. Platonismo. Caminho e essência do filosofar ocidental. São Paulo: Loyola, 2011.
2. BARZOTTO, Luis Fernando. Filosofia do direito. Os conceitos fundamentais e a tradição
jusnatualista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
3. MARCONDES, Danilo; FRANCO, Irley. A Filosofia. O que é? Para que serve? Rio de
Janeiro: Ed. Jorge Zahar; PUC-RJ, 2011.
4. MORENTE, Gabriel Garcia. Lições preliminares de filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1970.
5. MELENDO, Tomas, Iniciação à filosofia. Razão, fé e verdade, São Paulo: Instituto Brasileiro
de Filosofia e Ciência ‘Raimundo Lúlio’, 2005, p. 32.
6. NUNES, Benedito. ‘O fazer filosófico ou oralidade e escrita em filosofia’. In: Ensaios
filosóficos. Organização e apresentação Victor Sales Pinheiro. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

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Victor Sales Pinheiro - Introdução à Filosofia

7. PINHEIRO, Victor Sales. A crise da cultura e a ordem do amor. Ensaios filosóficos.


São Paulo: É Realizações, 2021.
8. ROBINET, François, O tempo do pensamento, São Paulo: Paulus, 2004.
9. ROOCHINIK, David. Pensar filosoficamente – Uma introdução aos grandes debates.
São Paulo: Loyola, 2018.
10. SERTILLANGES, Antonin-Glibert, A vida intelectual – Seu espírito, suas condições,
seus métodos. São Paulo: É Realizações, 2010.
11. SCIACCA, Michele Federico. Filosofia e antifilosofia. São Paulo: É Realizações, 2011.
12. VOEGELIN, Eric. Ciência, política e gnose. Coimbra, Ariadne, 2005.

ENCICLOPÉDIAS
A editora Ideias & Letras tem traduzido os importantes Companions da Universidade de
Cambridge, que são compilados de artigos acadêmicos de especialistas sobre temas (como Filosofia
medieval, Ciência e Religião e Filosofia crítica) ou autores (como Primórdios da Filosofia grega,
Sócrates, Platão, Aristóteles, Plotino Agostinho, Aquino, Scotus, Descartes, Spinoza, Hobbes, Locke,
Kant, Hegel, Nietzsche, Freud, Foucault e James). Todos eles são valiosos e retratam o estado da arte
da pesquisa acadêmica sobre o assunto, com suas múltiplas interpretações.

DICIONÁRIO
ABBAGNO, Nicolas. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

HISTÓRIA DA FILOSOFIA
1. COPLESTON, Frederick. Uma história da filosofia - vol. I. Vide Editorial, 2021.
1. MARIAS, Julian. História da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2015.
2. MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
3. REALE, Giovani; ANTISERI, Dario. História da filosofia. 3 vols. São Paulo: Loyola, 2017.
4. WEISCHEDEL, Wilhelm. A escada dos fundos da filosofia. A vida cotidiana e a o
pensamento de 34 grandes filósofos. São Paulo: Angra, 2001.

EM INGLÊS
1. KREEFT, Peter. The platonic tradition, Indiana, St. Augustine Press, 2018.
2. KREEFT, The philosophy of Thomas Aquinas, Maryland, Recorded Books, 2009.
3. KREEFT, Summa Philosophica. Indiana: St. Augustine´s Press, 2012.
4. KREEFT, Socratic Logic. A logic text using socratic method, platonic questions
and aristotelian principles. Indiana: Augustine, 2014.

40
Victor Sales Pinheiro - Introdução à Filosofia

OS CLÁSSICOS
Estas obras permitem o mergulho efetivo na Filosofia. Ainda que não sejam
plenamente entendidas, merecem ser lidas e estudadas com calma e dedicação.

Ao procurar as edições dos próprios filósofos, nem sempre disponíveis em português,


prefira as editoras universitárias (como a Ed. UFPA, no caso de Platão, Ed. UNESP, no
caso de Aristóteles, Descartes, Hume e Schopenhauer, e Ed. UNICAMP, no caso de
Heidegger), assim como editoras consolidadas como a Martins Fontes, no caso de Aristóteles,
Hobbes e Kant, Companhia das Letras, no caso de Nietzsche e Freud, Loyola, no caso de
Aristóteles e Tomás de Aquino, e É Realizações e Vide Editorial, no caso Santo Agostinho.

Não há tradução perfeita e nem é imprescindível saber a língua original do filósofo, embora
isso seja muito recomendado no aprofundamento do estudo.

1. Pré-socráticos (sobretudo Heráclito e Parmênides), Fragmentos


2. Platão, República, Banquete, Fédon e Apologia
3. Aristóteles, Ética a Nicômaco e Metafísica
4. Plotino, Enéadas
5. Santo Agostinho, Confissões e O livre-arbítrio
6. Boécio, Consolação da filosofia
7. Santo Anselmo, Proslogion
8. Santo Tomás de Aquino, Suma teológica e Suma contra os gentios
9. Descartes, Discurso do método e Meditações
10. Pascal, Pensamentos
11. Hobbes, O leviatã
12. Hume, Tratado da natureza humana
13. Rousseau, O contrato social e Discurso sobre a origem e os fundamentos
da desigualdade entre os homens
14. Kant, Crítica da razão pura e Fundamentação da metafísica dos costumes
15. Hegel, Fenomenologia do espírito
16. Nietzsche, Gaia ciência, Assim falou Zaratustra e Para além do bem e do mal
17. Kierkegaard, Ou-ou: Um fragmento de vida.
18. Husserl, A crise das ciências e a fenomenologia transcendental
19. Sartre, O existencialismo é um humanismo
20. Heidegger, Ser e tempo
21. Voegelin, Reflexões autobiográficas
22. Chesterton, Ortodoxia

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Victor Sales Pinheiro

Victor Sales Pinheiro é professor da Universidade


Federal do Pará e no Centro Universitário do Pará;
organizador da obra de Benedito Nunes (Prêmio
Jabuti de Crítica Literária de 2010, pelo livro A Clave
do Poético, ed. Companhia das Letras); coordenador
de edição bilíngue de Platão, traduzida por Carlos
Alberto Nunes (Ed. UFPA), e da Coleção Teoria da Lei
Natural (Ed. Lumen Juris). É também autor de Sol,
linha e caverna - a dialética da imagem do bem na
República de Platão, A dialética do amor - forma,
argumento e legado do Banquete de Platão, Idea e
Alethea - a confrontação de Heidegger com Platão e
A Filosofia do Direito Natural de John Finnis, vol. 1
Conceitos Fundamentais. Autor do livro A crise da cultura
e a ordem
o do amor.

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