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Do cam-

DO
po CAMPO
PARA A CIDADE
para a cidade
estudo sociolinguístico de
migração e redes sociais
Tradução:
Stella Maris Bortoni-Ricardo
Maria do Rosário Rocha Caxangá
Título original:
The Urbanization of Rural Dialect Speakers: A Sociolinguistic Study in Brazil
© Cambridge University Press 1985
ISBN: 0-521-30404-0
Esta tradução revista, ampliada e atualizada é publicada com apoio da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal — FAP/DF

Editor: Marcos Marcionilo


imagens da capa: ilustração: Oscar Niemeyer do site - http://wp.clicrbs.com.br/semcensura/2010/09/01/oscar-nie-
meyer-se-emociona-com-exposicao-brasilia-50-anos/?topo=84,2,18,,,84
imagem candango do site http://alfodias.blogspot.com/2010/04/candango-pequena-historia-de-
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Capa e projeto gráfico: Andréia Custódio
Revisão: Cristina Peres
Conselho editorial: Ana Stahl Zilles [Unisinos]
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Rachel Gazolla de Andrade [PUC-SP]
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Salma Tannus Muchail [PUC-SP]
Stella Maris Bortoni-Ricardo [UnB]

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
B748d
Bortoni-Ricardo, Stella Maris, 1945-
Do campo para a cidade : estudo sociolinguístico de migração e redes sociais /
Stella Maris Bortoni-Ricardo ; tradução Stella Maris Bortoni-Ricardo, Maria do Rosário
Rocha Caxangá. - São Paulo : Parábola Editorial, 2011.
(Educação linguística ; 6)
Tradução de: The urbanization of rural dialect speakers: a sociolinguistic study in Brazil
Tradução rev., ampl. e atualizada

Inclui bibliografia e índice


ISBN 978-85-7934-033-8

1. Dialetologia urbana - Brasil. 2. Língua portuguesa - Brasil - Dialetologia. 3.


Sociolinguística - Análise de redes sociais. 4. Migração rural-urbana. I. Título. II. Série.

11-2436. CDD 306.44


CDU 16.74:811.134.3 (81)

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incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de
dados sem permissão por escrito da Parábola Editorial Ltda.

ISBN: 978-85-7934-033-8

© 2011: Stella Maris Bortoni-Ricardo

© da edição brasileira: Parábola Editorial, São Paulo, agosto de 2011


À memória da Professora Maria Aparecida Bortoni
Sumário
Prefácio ........................................................................................................ 9
Ataliba T. de Castilho
1. Introdução.............................................................................................. 11
2. A situação sociolinguística no Brasil............................................ 19
2.0 Introdução.............................................................................................. 19
2.1 A comunidade de fala brasileira................................................................ 20
2.2 Substrato histórico.................................................................................. 27
2.3 A cultura caipira..................................................................................... 34
3. O dialeto caipira.................................................................................... 39
3.0 Introdução ............................................................................................. 39
3.1 A fonologia do português brasileiro padrão.............................................. 40
3.1.1 As vogais............................................................................................ 43
3.1.2 As consoantes.................................................................................... 52
3.1.3 Ditongos............................................................................................ 55
3.2 Aspectos da fonologia do dialeto caipira................................................... 56
3.2.1 A tendência a sílabas abertas........................................................... 62
3.2.1.1 Ditongos decrescentes.......................................................... 62
3.2.1.2 Desnasalização...................................................................... 67
3.2.1.3 Apagamento de consoantes finais...................................... 70
3.2.2 A tendência para as paroxítonas .................................................... 73
3.2.2.1 Redução dos ditongos crescentes........................................ 73
3.2.2.2 A redução das proparoxítonas ............................................ 73
3.2.3 Processos que afetam as líquidas..................................................... 75
3.2.4 Mudanças esporádicas de vogais..................................................... 78
3.2.5 Outros processos fonológicos característicos do caipira................. 80

4. Análises de redes: um modelo dinâmico para abordar


a mudança na língua....................................................................... 83
4.0 Introdução.............................................................................................. 83
4.1 O paradigma de redes............................................................................... 84
4.1.1 O estudo de redes de comunicação em comunidades.................... 86
4.1.2 O estudo do conteúdo normativo dos vínculos em redes sociais.. 90
4.2 Análise de redes aplicada à sociolinguística................................................ 94
4.2.1 A rede como um construto teórico.................................................. 95
4.2.2 A função social das redes de tessitura miúda................................. 96
4.2.3 Estudos sociolinguísticos de redes................................................... 100
4.3 A função da língua como símbolo de identidade pessoal. ............................ 106
5. Padrões de redes e difusão dialetal.......................................... 115
5.0 Introdução.............................................................................................. 115
5.1 O migrante rural no ambiente urbano....................................................... 116
5.2 Focalização e difusão dialetal. ................................................................. 121
5.3 Redes isoladas e integradas....................................................................... 132
6. Coleta de dados em Brazlândia.................................................. 139
6.0 Introdução.............................................................................................. 139
6.1 O local da pesquisa. ................................................................................ 140
6.2 Procedimentos de amostragem.................................................................. 146
6.3 Estratégias da pesquisa de campo............................................................... 150
6.4 As características sociodemográficas da população amostral ........................ 155
7. Modelos e métodos............................................................................ 167
7.0 Introdução.............................................................................................. 167
7.1 O paradigma da regra variável................................................................. 169
7.1.1 O modelo aditivo.............................................................................. 172
7.1.2 Fatores sociais .................................................................................. 176
7.2 O índice de integração nas redes sociais..................................................... 181
7.3 O índice de urbanização ........................................................................... 189
8. Análise quantitativa dos dados linguísticos....................... 193
8.0 Introdução.............................................................................................. 193
8.1 A vocalização da lateral alveopalatal // ................................................ 194
8.2 A redução de ditongos............................................................................. 214
8.3 A regra de concordância verbal. .............................................................. 222
8.3.1 Concordância verbo-nominal com a 3a pessoa do plural............... 223
8.3.2 Concordância verbal com a 1a pessoa do plural.............................. 234

9. Problemas de comunicação intercultural............................. 241


9.0 Introdução.............................................................................................. 241
9.1 A interação entre pesquisadores e colaboradores....................................... 242
9.2 Análise das fontes de problemas comunicativos. ......................................... 249
10. Conclusões........................................................................................... 261
10.0 Introdução............................................................................................ 261
10.1 A relação entre língua e rede social. ...................................................... 262
10.2 Sugestões para aperfeiçoamentos metodológicos...................................... 267
10.3 As contribuições deste estudo. ................................................................ 268
10.4 Sugestões para investigações futuras....................................................... 270
Apêndice 1: Índices de redes e escores de variáveis linguísticas. ......................... 273
Apêndice 2: Em terra de sapo…..................................................................... 275
Apêndice 3: A Peleja da Estrela do Mar contra o Rochedo da Intolerância. ... 279
Referências bibliográficas ................................................................ 283
Índice de assuntos.................................................................................. 295
Prefácio
Ataliba T. de Castilho
USP, Unicamp

A sociolinguística brasileira se enriquece de um modo particular com este novo


trabalho de Stella Maris Bortoni-Ricardo, que aparece assinalado por duas fortes caracte-
rísticas: a documentação e análise de um dialeto urbano em seu nascimento e a adoção de
uma nova perspectiva para os estudos variacionistas sobre o português brasileiro. Podemos
contar agora com uma tradução atualizada da primeira versão deste trabalho, preparado
entre 1980 e 1981, e publicado em inglês pela Cambridge University Press em 1985.

É bem reconhecida a importância da transformação de dialetos rurais em variedades


urbanas não padrão para a descrição e a história do português brasileiro, dada a rápida
urbanização de nosso país, cujas cidades acolhem hoje mais de 80% da população. O
exame das consequências linguísticas do fato esclarecerá muitas das características da
língua majoritária que se fala hoje no país. Faltava, entretanto, um estudo minucioso
que comprovasse essa percepção. Stella Maris Bortoni-Ricardo preencheu essa lacuna.

Juntamente com o livro O falar candango (2010), organizado pela autora e ainda por
Ana Maria Vellasco e Vera Aparecida de Lucas Freitas, este livro corresponde à certidão
de nascimento linguístico de Brasília e de seu entorno. Pouquíssimas capitais dispõem
da documentação e da análise de seus primeiros momentos linguísticos. O trabalho é,
ademais, uma lança que sua autora atirou em direção ao nosso futuro linguístico.

Focando sua atenção em Brazlândia, cidade-satélite de Brasília, Stella Maris produziu


um rigoroso retrato sociolinguístico do local, operando com o paradigma das redes
sociais. A sociolinguística urbana, que conheceu grande impulso no país a partir dos
anos 1970, é enriquecida agora com a perspectiva rurbana, categoria intermediária que
problematiza a chegada de contingentes rurais ao meio urbano.

A adaptação linguística dos moradores de Brazlândia é cuidadosamente examinada a


partir dos seguintes parâmetros: vocalização da palatal //, redução dos ditongos cres-
10 Do Campo para a cidade — Estudo sociolinguístico de migração e redes sociais

centes (por metátese, como em estauta, ou por redução, como em paciença), regras de
concordância verbal na 1a e na 3a pessoas do plural.

Quanto à teoria e à metodologia utilizadas no trabalho, a autora mostra que a tradição


dos estudos sociolinguísticos desenvolvida em outros ambientes acadêmicos não se
ajusta à situação brasileira. Ela propõe o uso do conceito de redes sociais, entendidas
como um “conjunto de vínculos de todos os tipos entre os indivíduos em um grupo”.

O pressuposto da teoria das redes sociais assenta em duas possibilidades: a tessitura miúda
e a tessitura larga. Temos uma tessitura miúda quando muitas pessoas que uma pessoa co-
nhece interagem entre si; nesse caso, os participantes da rede tendem a “alcançar consen-
so em relação a normas, exercendo pressão informal uns nos outros para se conformarem
a essas normas”. Temos uma tessitura larga quando a maioria das pessoas que uma pessoa
conhece não interage entre si; nesse caso, há uma tendência ao desenvolvimento de uma
variação maior de normas na rede. Integrantes das redes de tessitura miúda tendem a
preservar a linguagem minoritária não padrão, ao passo que os integrantes das redes de tes-
situra larga optam pela linguagem culturalmente dominante ou suprarregional. A autora
chama a atenção para o fato de que indivíduos podem transitar de uma rede para outra. Se
a nova rede for mais integrada, mais difuso tenderá a ser o dialeto rural desses indivíduos.

A identificação das redes sociais é fundamental, portanto, para o estudo da difusão diale-
tal. Além disso, verifica-se que a caracterização individualizada dos falantes a que as pes-
quisas sociolinguísticas nos acostumaram (sexo, idade, nível sociocultural etc.) é insufi-
ciente para a obtenção de um retrato mais dinâmico de uma dada situação linguística.

A Autora examina previamente a constituição da teoria das redes sociais, descrevendo


seu percurso na sociologia, na psicologia e na sociolinguística, até sua formulação por
Lesley Milroy, em 1980.

Assistida por uma rigorosa quantificação dos dados, a pesquisa comprovou que à época
o processo de difusão dialetal estava mais adiantado entre os homens do que entre as
mulheres. De um modo geral, abandona-se progressivamente a vocalização da palatal
[], há uma tendência à manutenção do ditongo crescente, tanto quanto um maior
controle das regras de concordância. Esses resultados apontam para a disposição dos
dialetos num continuum que tem numa ponta os vernáculos rurais isolados, e noutra
o padrão urbano das classes mais escolarizadas. Stella Maris conclui sugerindo uma
investigação sobre as consequências do letramento na mudança linguística.

Pode-se calcular que a metodologia aqui testada provocará novos estudos sobre o por-
tuguês brasileiro, em que a complexidade e a dinamicidade da língua receberão um
tratamento mais acurado por parte de nossos linguistas.
1
Introdução

Quando abordamos o estudo das modernas línguas nacionais


em uma perspectiva sociolinguística, uma tendência fundamental a
considerar é a transformação de dialetos rurais, definidos com crité-
Este livro foi traduzido
rios geográficos, em dialetos sociais urbanos, definidos com critérios para o português por
socioeconômicos. Labov, em Sociolinguistic Patterns (1972a: 300), Bagno, Scherre e Cardoso,
observou que o crescimento da estratificação vertical nas línguas com o título Padrões
sociolinguísticos. São Paulo:
está relacionado ao declínio dos dialetos locais. Esses fenômenos
Parábola Editorial, 2008.
linguísticos são consequência do êxodo em massa das áreas inte-
rioranas rurais para as áreas urbanas. Na Europa, esse processo teve
início ao final da Idade Média, já estava adiantado no século XVII
e se consolidou no século XIX como resultado da Revolução Indus-
trial. Nos países em desenvolvimento, como o Brasil, o fenômeno é
mais recente e, em contraste com o que aconteceu na Europa, a ur-
banização não foi necessariamente precedida pela industrialização.

Entender como a urbanização se processa e, mais especificamen-


te, como os indivíduos interioranos e os camponeses se transfor-
mam em moradores da cidade e trabalhadores industriais tem
12 Do Campo para a cidade — Estudo sociolinguístico de migração e redes sociais

sido uma preocupação central desde o século XX, mas, surpreen-


dentemente, o estudo das mudanças linguísticas concomitantes
não parece ter merecido ainda a atenção dos linguistas na mesma
proporção. Os dialetólogos tradicionais tinham consciência da re-
lação urbano-rural, ainda que tendessem a lamentar a “destrui-
ção” dos falares rurais pela cidade. Mas a maioria das modernas
consequências linguísticas da urbanização pertence à ampla área
de manutenção e mudança de línguas em sociedades bilíngues
ou multilíngues e foi elaborada sobre as fundações construídas
O artigo seminal de E. principalmente por Weinreich (1953) e Haugen (1956).
Haugen, "Dialeto, língua
e nação", publicado
originalmente em 1966,
A transformação de dialetos rurais em variedades urbanas não
foi traduzido por M. Bagno padrão — à qual nos referiremos como “urbanização de dialetos
e publicado em Bagno rurais” — está no âmago dos processos de mudança linguística e
[org.], Norma linguística.
São Paulo: Edições Loyola, padronização da língua no Brasil. A migração de massas do cam-
2001, p. 97-114. po para as cidades, a introdução em áreas rurais de um modo
urbano de vida juntamente com a tecnologia1 e um alto nível
de movimentação populacional inter-regional são, hoje em dia,
as características fundamentais da sociedade brasileira e devem
ser compreendidas no contexto de um país em desenvolvimento
que só recentemente emergiu de uma economia predominante-
mente agrária e é marcado por sérios desequilíbrios regionais e
por uma perversa e persistente concentração de renda.

Os migrantes rurais que se estabelecem nas cidades são semi-


letrados e falam variedades regionais e rurais do português que
exibem surpreendentemente um alto grau de uniformidade —
se considerada a imensa extensão territorial do país — e que
tendem a amalgamar-se com as variedades urbanas não padrão.
Qualquer descrição do português brasileiro não padrão deve
levar em consideração esse amálgama. Abordar essa situação
sociolinguística complexa não é uma tarefa simples, todavia. A
maior parte dos métodos sociolinguísticos disponíveis para tra-
balhar a variação e a mudança linguística foi implementada de
modo a atender às características de

1
Esses fenômenos são comumente denominados de “camponização (peasanti-
zation) das cidades” e “urbanização das vilas rurais” (urbanization of villages) (Hal-
pern, 1967).
Introdução 13

(1) sociedades multilíngues ou multidialetais; Para uma descrição


atualizada de nossa
(2) comunidades crioulas ou pós-crioulas e diversidade linguística,
(3) variedades não padrão em países desenvolvidos onde o le- remetemos o leitor ao
tramento é praticamente universal. Relatório de Atividades
do Grupo de Trabalho da
Nenhuma delas se ajusta inteiramente à situação brasileira. O Diversidade Linguística do
Brasil — IPHAN
Brasil é uma nação com uma língua predominante, e o número 2006-2007. Ali se lê que
de falantes de outras línguas, além do português, é reduzido. As no Brasil são falados por
volta de 200 idiomas, 180
diferenças dialetais, ainda que impliquem questões de comuni-
autóctones, das nações
cação transcultural, não criam situações de total ininteligibilida- indígenas, 30 línguas nas
de. Tratar a variação do português brasileiro como um contínuo comunidades de imigrantes
e duas línguas de sinais,
pós-crioulo não é tampouco adequado. A grande distância entre e se remete a Rodrigues
a língua padrão e as variedades rurais pode possivelmente ser (1986).
explicada pela influência de uma linguagem pidginizada nessas
últimas, nos primeiros séculos da colonização. Se essa hipótese
estiver correta, contudo, há que se considerar que esse pidgin
inicial sofreu um processo relativamente rápido de descriouli- A vigência de variedades
pidginizadas no Brasil
zação, pois não há pidgins ou crioulos de base portuguesa no
Colônia tem merecido
Brasil, tais como existem em outras ex-colônias portuguesas2. alentadas discussões, entre
as quais citamos: Lucchesi
No que respeita à tradição sociolinguística dos estudos de dialetos (1998), Naro e Scherre
não padrão em sociedades industriais, são necessárias também al- (1993), Mattos e Silva
(2004; 1998), Guy (1981).
gumas revisões para que ela possa ser aplicada à situação brasilei-
ra. Primeiramente, como Gumperz (1980: 137) aponta, o método
de correlacionar variáveis linguísticas com grupos sociais inicia-se
com o pressuposto de que esses grupos sociais são identificáveis
e conhecidos. No caso das modernas nações industriais, essa é
uma questão ainda discutível nas ciências sociais. Por estarmos
tratando de países em desenvolvimento, predominantemente
agrários até a Segunda Guerra Mundial, a identificação efetiva
de classes sociais na sociedade como um todo resulta em tarefa
quase impossível. Em segundo lugar, a manutenção de variedades
não padrão em sociedades industriais adiantadas está diretamente
relacionada ao crescimento da conscientização dos grupos mino-
ritários (Ryan, 1979), fenômeno que parece não ter ainda atingido
a mesma pree­minência na sociedade brasileira contemporânea.

2
Para uma discussão exaustiva dessa hipótese, cf. Guy (1981).
14 Do Campo para a cidade — Estudo sociolinguístico de migração e redes sociais

Movimentos sociais Decidimos, em 1980, examinar os efeitos da transição do rural


contemporâneos de
trabalhadores do campo
para o urbano na fala de um grupo de migrantes. Tendo em vista
no Brasil têm proposto a complexa situação de contato dialetal resultante da mobilida-
que o termo ‘rural’ de, bem como os problemas de adequação teórica e metodológi-
seja substituído pela
designação ‘do campo’ ca, fomos confrontados com as seguintes questões: quais são os
para as populações não principais fatores atuantes na manutenção de variedades rurais
residentes em áreas
urbanas. Neste trabalho,
e/ou não padrão no Brasil? Poderia sua preservação ser conside-
no entanto, vamos manter rada simplesmente resultado do analfabetismo e da marginali-
o termo 'rural' que já
zação espacial ou social? À medida que a população tem acesso
aparece no título original
da obra, pois a dicotomia gradual à educação formal, essas variedades vão sofrer mudan-
rural-urbano é seminal ças? Até que ponto existe uma ideologia de prestígio influencian-
neste trabalho.
do as chamadas populações marginais?3 Estaria essa população
ansiosa por assimilação? Até que ponto a tendência à homoge-
neização na sociedade urbana está sujeita a forças opostas, por
um lado pressões padronizadoras e, por outro, a manutenção de
formas não padrão como símbolos de identidade grupal? As mu-
danças passíveis de ocorrer nos repertórios de migrantes rurais
poderiam ser descritas em termos de indicadores sociodemográ-
ficos, tais como a duração da residência em ambiente urbano?
Descendo a variáveis linguísticas específicas, há uma tendência
à eliminação de desinências número-pessoais nos verbos ou, al-
ternativamente, os falantes estão recuperando essas desinências
quando começam a sofrer influência da educação escolar?

Este livro propõe-se a responder a essas indagações. No caso de


algumas delas, chegamos perto de respostas satisfatórias. Quanto
a outras, tudo o que pudemos fazer foi deitar luzes sobre sua
complexidade.

Quando começamos a pesquisa, pretendíamos elaborar um típi-


co estudo correlacional no qual a frequência de algumas variá-
veis linguísticas selecionadas na fala de um grupo de migrantes
de origem rural seria examinada à luz de:

3
A classe camponesa e os migrantes rurais — o segmento populacional em mais
rápido crescimento na América Latina — são considerados por alguns cientistas so-
ciais como uma população marginal pelo fato de que lhes falta articulação formal
ou inserção no processo industrial urbano de produção. Para diferentes análises dessa
questão, cf. Lomnitz (1977), Berlinck (1977), Schüly (1981), Oliven (1982).
Introdução 15

(1) tempo de residência em área urbana;


(2) anos de escolarização;
(3) estabilidade de emprego, além dos parâmetros, comumen-
te usados, de gênero e idade.

Mas, à medida que nos familiarizávamos com a comunidade mi-


grante, começamos a nos dar conta da fragilidade de alguns des-
ses parâmetros como preditores de mudança dialetal. A grande
amplitude de variação no repertório de migrantes adultos, típica
de sistemas fluidos em processo de rápida mudança, não parecia
estar consistentemente condicionada por nenhum desses fatores
sociodemográficos. Àquela altura, já estávamos convencidos de
que precisávamos de recurso metodológico capaz de aferir dife-
renças individuais e captar padrões sistemáticos e sutis de varia-
ção. Em suma, era uma situação que, nos velhos tempos, seria
reconhecida como a mais imprevisível mistura dialetal. Mas,
naturalmente, sabíamos que o comportamento linguístico dos
migrantes era passível de certo grau de predição. Precisávamos
apenas de um instrumento adequado. Esse instrumento foi, de
fato, a análise das redes sociais dos migrantes.

Uma rede social é simplesmente um conjunto de vínculos de


todos os tipos entre os indivíduos em um grupo4. O interesse
na análise de redes nas ciências sociais não reside nos atributos
das pessoas componentes da rede per se, mas antes, nas caracte-
rísticas dos vínculos em suas relações umas com as outras. Tais
características são vistas como meios de predição e explanação
do comportamento dessas pessoas (Mitchell, 1969, 1973).

Em meados da década de 1970, John Gumperz já observara que


a posição em uma rede social

é função da experiência comunicativa real e também varia com


educação, ocupação, segmento geracional, valores políticos e
aspiração individual de mobilidade. Dessa forma, membros de
uma mesma família e de um mesmo grupo de vizinhança pode-
rão exibir diferentes práticas no seu uso linguístico (Gumperz,
1976a: 13-14).

4
O conceito está sendo definido de forma superficial neste capítulo, mas rece-
berá tratamento mais adequado nos capítulos seguintes.
16 Do Campo para a cidade — Estudo sociolinguístico de migração e redes sociais

Uma análise das redes pessoais dos migrantes foi, portanto, usa-
da como o meio de aferir a variabilidade no comportamento
linguístico individual na comunidade. Ela forneceu os critérios
para a distinção básica entre redes insuladas e redes integradas.
As primeiras representam um estágio preliminar na transição do
rural para o urbano e tendem a se restringir à família extensa do
migrante, a seus conhecidos na fase pré-migratória e a seus vizi-
nhos. As últimas, redes integradas, em contraste, são mais hetero-
gêneas no que respeita ao padrão no recrutamento dos vínculos
interindividuais. Em uma rede integrada, os vínculos são ativa-
dos em contextos sociais mais variados. A hipótese de trabalho
relacionada a esses conceitos é a de que quanto mais avançado
o migrante estiver em seu processo de transição para uma rede
integrada, mais exposto estará à cultura e à língua urbanas he-
gemônicas e também mais comprometido com um esforço de
assimilação de formas prestigiosas de falar. Isso representa um
distanciamento de seu falar rural. Dois índices de rede, o índice
de integração e o índice de urbanização, foram usados como ins-
trumentos de mensuração e nos forneceram dados quantitativos.

O trabalho de campo foi conduzido em Brazlândia, região admi-


nistrativa, também referida como cidade-satélite, localizada a 43
quilômetros de Brasília. Quatro variáveis linguísticas foram sele-
cionadas como indicadores da tendência evolutiva do dialeto dos
migrantes: a vocalização do fonema alveopalatal lateral /λ/ em
posição intervocálica, como em “filha” e “trabalho”; a redução
dos ditongos crescentes em finais de palavras, como em “polícia”
e “gêmeo”; e a regra de concordância verbal na 1a e na 3a pessoas
do plural, como em “nós fazemos” e “eles fazem”.

Há que se observar, entretanto, que nossa preocupação não era a


investigação dessas variáveis per se, mas, antes, de sua capacidade
como índices sensíveis de todo o processo de adaptação da popu-
lação rural ao meio urbano. Entendemos, como John Gumperz,

que os estudos de comunidades de fala são essenciais para o


estudo de processos de mudança linguística em andamento,
para o desenvolvimento de índices linguísticos, para o estudo
de fenômenos sociais e para a maioria das áreas de linguística
aplicada (Gumperz, 1972: 13).
Introdução 17

Labov (1972a) corrobora essa postura, ao enfatizar a utilidade de


estudos sociolinguísticos na aferição de mudanças sociais:

a variação no comportamento linguístico não exerce, por si mes-


ma, uma influência poderosa no desenvolvimento social, nem
tampouco afeta drasticamente as mudanças na vida do indivíduo;
pelo contrário, a forma do comportamento linguístico muda ra-
pidamente, à medida que a posição social do falante muda. Essa
maleabilidade da linguagem sustenta sua grande utilidade como
indicadora de mudanças sociais (Labov, 1972a: 111).

Este livro representa uma síntese de métodos sociolinguísticos


quantitativos (a análise baseada no paradigma de redes sociais
é suplementada por outra, variacionista e mais tradicional, de
escores agregados) com um estudo etnográfico desenvolvido du-
rante uma observação participante de longo termo em uma co-
munidade. Tanto a dialetologia urbana, quanto as metodologias
de linguística antropológica visavam fornecer explicação efetiva
da relação entre língua e rede social e, em última instância, do
fenômeno de transição entre a vida no campo e a urbana.

Passo a fornecer uma rápida descrição de cada capítulo. O ca- O termo 'caipira' está
pítulo 2 é a descrição da situação sociolinguística do Brasil. O usado no sentido técnico,
conforme empregado em
capítulo 3 ocupa-se das características fonológicas do dialeto ru- estudo sociológico por
ral dos migrantes, o dialeto caipira. O capítulo 4 fornece uma A. Cândido, em seu Os
revisão das diferentes tradições na aplicação de análise de redes, parceiros do Rio Bonito
(1964) e em estudo
com ênfase nos estudos sociolinguísticos. No capítulo 5, o pro- dialetológico por A. Amaral
cesso de migração do rural para o urbano e as consequências em 1920 (1976).
linguísticas são examinados com mais detalhe. O capítulo 6 en-
foca estratégias de trabalho de campo e inclui informações etno-
gráficas e sociodemográficas da comunidade dos migrantes. No
capítulo 7, os diferentes métodos quantitativos empregados na
análise são discutidos minuciosamente. O capítulo 8 consiste na
análise quantitativa das quatro variáveis linguísticas estudadas.
O capítulo 9 se detém na descrição e discussão dos problemas e
dificuldades de comunicação entre os colaboradores e os pesqui-
sadores. E, finalmente, no capítulo 10, encontram-se as conclu-
sões e sugestões para estudos futuros.
A sociolinguística brasileira se enriquece com este trabalho de Stella Maris
Bortoni-Ricardo, assinalado por duas características: a documentação e análise de
um dialeto urbano em seu nascimento e a adoção de uma nova perspectiva para os
estudos variacionistas do português brasileiro.

Focando sua atenção em Brazlândia, cidade-satélite de Brasília, DF, a Autora pro-


duziu um rigoroso retrato sociolinguístico, operando com o paradigma das redes sociais.
A sociolinguística urbana é enriquecida agora com a perspectiva rurbana, categoria in-
termediária que problematiza a chegada de contingentes rurais ao meio urbano.

O campo da sociolinguística brasileira oferece imensas possibilidades de inves-


tigação, relevantes não só por razões científicas e acadêmicas, mas também (e com
mais importância) porque a pesquisa sociolinguística pode desempenhar funções
‘terapêuticas’ que contribuam para um objetivo maior a ser perseguido: o avanço
de uma sociedade mais igualitária. Consideramos o presente trabalho como uma
pequena contribuição a essa tarefa.

Este livro foi publicado com o auxílio da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal [FAP-DF]

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