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Os autores agradecem à Fapesp,

ao CNPq e à Capes pelo apoio a


seus trabalhos de pesquisa.

CARLOS FREDERICO MARTINS MENCK


ARMANDO MORAIS VENTURA

Manipulando
genes em
busca de cura:
o futuro da
terapia gênica
CARLOS FREDERICO
MARTINS MENCK
e ARMANDO
MORAIS VENTURA
são professores do
Departamento de
Microbiologia do Instituto
de Ciências Biomédicas
da USP.
RNA interferência (RNAi). Esses mecanis-
ALTOS E BAIXOS mos eram praticamente desconhecidos até
poucos anos atrás, e sua descoberta resultou
DA TERAPIA GÊNICA na premiação do Nobel em Medicina de
2006 aos americanos Andrew Z. Fire e
Craig C. Mello. As expectativas dessas
m 1990, foi realizado nos novas abordagens empregando RNAi são
Estados Unidos o primeiro descritas no final deste artigo. Em relação
Protocolo Clínico de Terapia a nosso país, cabe a nós optar por assistir
Gênica em humanos, em duas a esses avanços como espectadores, para
crianças portadoras da imuno- posteriormente pagar pelos medicamentos
deficiência combinada severa. que serão criados, ou investir para também
O sucesso parcial desse pro- contribuir com propostas nossas, criando
tocolo levou a uma explosão alternativas, e também considerar o combate
no desenvolvimento de vários a doenças que afligem principalmente os
estudos com perspectivas de países menos desenvolvidos.
uso terapêutico dos genes. O
frenesi causado pelos resul-
tados iniciais levou, durante
a década de 1990, a se comparar a terapia HISTÓRICO
gênica com outras tecnologias que revo-
lucionaram a medicina moderna, como o O trabalho pioneiro descrito por Oswald
desenvolvimento de vacinas, anestesias T. Avery e seus colaboradores em 1944 já
e a descoberta de antibióticos. A relativa mostrou que é possível transferir genes de
facilidade de manipulação dos vetores uma cepa bacteriana patogênica para outra
genéticos derivados de vírus e o aumento não-patogênica, identificando o DNA como
na capacidade de se isolar genes humanos portador da informação genética. Essa des-
geraram expectativas de avanço rápido coberta fundamental foi logo seguida pela
nesse tipo de terapia e muita excitação proposta da estrutura dupla-hélice do DNA,
na mídia e mesmo nas pesquisas na área. por James Watson e Francis Crick em 1953.
Esse entusiasmo inicial, no entanto, não foi Estavam lançadas bases para a busca de uma
confirmado, e vários problemas foram en- forma de inserir genes saudáveis em indi-
contrados em protocolos clínicos de terapia víduos que deles necessitassem, hipótese
gênica realizados em seres humanos, o que que foi aventada em 1964 por três prêmios
deixou claro que ainda temos uma longa Nobel: Edward L. Tatum, Joshua Lederberg
estrada a percorrer antes que o emprego e Arthur Kornberg. O isolamento do primei-
dessa tecnologia possa ser incorporado ro gene, por Jon Beckwith e colaboradores
de forma mais genérica ao dia-a-dia dos em Harvard (1969), levou a declarações
hospitais. No entanto, avanços claros têm reforçando essa possibilidade. No entanto,
sido conseguidos, e novas abordagens têm teve início também uma polêmica sobre a
ampliado o espectro de ação da terapia gê- segurança da engenharia genética e possi-
nica, abrindo novos horizontes de uso. bilidades de sua utilização para propósitos
O aumento na quantidade de protocolos de eugenia. Esse debate estendeu-se durante
clínicos reflete o fato de que há grandes es- toda a década de 1970 e culminou na criação
peranças de sucesso da terapia gênica para de legislações adequadas de segurança em
combater doenças que afligem a sociedade diversos países.
há muito tempo, com poucas perspectivas na Em 1977, os pesquisadores Michael
medicina clássica. Entre as grandes mudan- Wigler e Richard Axel conseguiram a pri-
ças recentes, destacamos o uso de moléculas meira correção genética propriamente dita
de RNA dupla-fita que agem como silen- em células de mamífero cultivadas in vitro.
ciadores gênicos através de mecanismos de Esses pesquisadores inseriram o gene que

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codifica a enzima timidina quinase em cé- transferência de material genético novo
lulas portadoras de deficiência nesse gene. para células de um indivíduo resultando
A metodologia utilizada, com DNA purifi- em benefício terapêutico”.
cado, apesar de fornecer dados inequívocos, No início do século XXI, com o seqüen-
ainda era pouco eficiente. Ganhou força, ciamento do genoma humano e o desenvol-
então, a proposta aventada anteriormente de vimento das ferramentas de comparação de
utilizar vírus não-patogênicos como vetores genes baseada na informática, foi desvendado
transportadores de genes. Essa idéia gerou um universo jamais imaginado anteriormente.
intensas pesquisas e já nos anos de 1983 e Essas ferramentas foram um apoio fundamen-
1984 foram propostos os primeiros sistemas tal na medida em que várias doenças humanas
de vetores derivados de três espécies virais: eram, à custa de muito trabalho, relacionadas
retrovírus, adenovírus e vírus adenoassocia- a defeitos em genes específicos. Os dados do
dos (AAV). Uma ilustração desses vírus é genoma humano foram anunciados várias
mostrada na Figura 1. vezes com pompa e euforia. As manchetes

FIGURA 1
Principais vírus que servem de vetores para protocolos de terapia gênica

Vírus
Retrovírus Adenovírus adenoassociado

A idéia de usar os próprios vírus como identificavam que, com a “revelação do Livro
veículos para transportar e introduzir da Vida”, estaríamos próximos de resolver
genes em um paciente, promovendo a problemas seculares. De fato, com esses
cura de doenças, é de uma simplicidade dados foi possível identificar pelo menos
extraordinária e abre enormes perspecti- 70.000 defeitos genéticos em seres humanos
vas para a saúde humana. Basicamente, (http://www.ornl.gov/sci/techresources/Hu-
essa proposta pretende utilizar estratégias man_Genome/posters/chromosome/). A ca-
dos vírus, que puderam aperfeiçoar essa pacidade de interferir na constituição genética
“entrega genética” através de evolução de um indivíduo, por meio da terapia gênica,
por milhões de anos. A conseqüência surge então como uma espécie de tábua de
do domínio da manipulação dos genes salvação para resolver problemas relaciona-
trouxe possibilidades que extrapolam a dos à saúde humana, pela cura de doenças
experimentação em bancada, podendo genéticas herdadas dos pais, ou mesmo de
então ser propostas aplicações clínicas doenças que podem ser adquiridas durante
em seres humanos, como as implícitas na a vida, como o câncer, doenças do coração
definição de terapia gênica, qual seja: “a e infecções virais.

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consiste em um problema cuja solução ainda
VETORES GENÉTICOS E OS não é simples.
Sistemas de transferência gênica inde-
PROCESSOS DE TERAPIA GÊNICA pendentes de vírus têm sido desenvolvidos
como alternativas aos problemas causados
O desenvolvimento de novos vetores pelos vírus recombinantes. Em uma dessas
genéticos tem buscado superar os problemas abordagens, o transgene, na forma de DNA
encontrados nos trabalhos iniciais de terapia livre, é aplicado diretamente no paciente.
gênica. O vetor ideal deve ser de fácil pro- Essas vacinas de DNA são compostas pela
dução, não deve gerar resposta imunológica clonagem do gene de um antígeno prove-
ao vírus ou ao transgene pelo paciente, deve niente de um patógeno, em um plasmídeo
promover a expressão do transgene de modo bacteriano. Isso possibilita obter esse
eficiente e por longo tempo, além de, se pos- plasmídeo em grande quantidade a partir
sível, ter especificidade no tecido alvo. Os do cultivo de bactérias e purificá-lo (DNA
principais vetores testados até o momento apenas). Ao ser injetado num tecido, a parte
têm sido os derivados de adenovírus e retro- eucariótica desse plasmídeo expressa a pro-
vírus, sendo que ambos apresentam várias teína antigênica e gera uma resposta imune,
limitações. Embora vetores adenovirais de forma similar a uma vacina normal com-
apresentem alta eficiência, estes induzem posta por antígenos protéicos. No caso das
uma elevada resposta imunológica que re- vacinas de DNA, no entanto, descobriu-se
duz o tempo de expressão do transgene e que algumas delas, além de despertar uma
praticamente impede a reaplicação em um resposta imune que protege o indivíduo
mesmo paciente. contra uma infecção futura (prevenção),
Pelo menos em um caso o resultado foi podem também atenuar a sintomatologia
dramático: em 1999, a aplicação de grandes de uma infecção em andamento, atuando
quantidades de adenovírus recombinantes como uma vacina terapêutica. Um exemplo
provocou a morte de um jovem paciente, é a ação que uma vacina de DNA, composta
gerando enorme controvérsia sobre o uso de por um antígeno da bactéria que causa a
terapia gênica em seres humanos. Vetores tuberculose, tem ao combater a infecção
retrovirais, por outro lado, permitem a in- ativa em camundongos. Como se trata da
tegração do transgene no genoma da célula transferência de um gene novo para um
hospedeira, restaurando a deficiência celular tecido causando benefício terapêutico, é
de um modo que pode ser permanente. No mais uma estratégia de terapia gênica que
entanto, a eficiência na produção de retro- está prestes a ser testada em seres humanos,
vírus recombinantes é baixa, o que limita e com grande possibilidade de sucesso.
a possibilidade de seu uso, e a inserção no Os lipossomos catiônicos constituem
genoma não impede o silenciamento poste- uma categoria à parte em termos de mé-
rior da expressão do transgene. Além disso, todos de transferência gênica, sendo até
recentemente foi reportada a inativação de chamados de vetores não-virais. Estes
um proto-oncogene em linfócitos, induzin- são compostos por lipídeos com cabeça
do a proliferação tumoral (leucemia) em polar positiva e formam complexos com o
pacientes submetidos ao tratamento com DNA neutralizando a sua carga negativa,
esse tipo de vírus durante três anos. Vetores o que permite seu transporte através da
derivados de vírus adenoassociados (AAV) membrana citoplasmática. Complexos de
parecem resolver alguns desses problemas, lipossomos e plasmídeos expressando ge-
pois esses pequenos vírus não estão ligados a nes que medeiam a resposta imune celular
nenhuma doença humana, são relativamente foram injetados diretamente em células
fáceis de se obter, e pouco estimulam o tumorais de melanomas. Como resultado,
sistema imunológico do paciente, aumen- observou-se inibição do crescimento do
tando o tempo de expressão do transgene. tumor e remissão parcial em parte dos
Sua produção em larga escala, no entanto, pacientes. A tendência é de um aperfeiço-

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amento cada vez maior da eficiência dessa FIGURA 2
metodologia. Etapas envolvidas em um experimento de terapia
De uma forma genérica, as etapas envol- gênica, exemplificado com um vetor viral
vidas em um experimento de terapia gênica
são: o isolamento do gene, a construção
de um vetor, a transferência para células
no tecido-alvo, e a produção da proteína
codificada e expressa pelo gene terapêutico 1. Isolamento
nessas células. A transferência do gene para do gene
2. Construção
células está mostrada na Figura 2.
do vetor
Para introdução de genes em organismos
através de terapia gênica, duas estratégias
básicas podem ser utilizadas: in vivo e 3. Transdução
ex vivo (Figura 3). Na estratégia in vivo, Célula-alvo

vetores eficientes (como os adenovírus) 4. Liberação da


podem levar o transgene diretamente ao proteína terapêutica

órgão-alvo adequado (como o fígado) por Proteína


aplicação direta no organismo (como a
injeção endovenosa), levando à eficiente mRNA
expressão do transgene. A estratégia ex vivo
baseia-se na modificação de células (como
pela infecção por um vetor retroviral) de um
tecido-alvo (como os linfócitos), retiradas
de um paciente e cultivadas in vitro. Essas
células selecionadas, em geral através de
FIGURA 3
uma marca de resistência a antibióticos,
Estratégias de terapia gênica in vivo e ex vivo
que são expandidas e reintroduzidas no
paciente, irão expressar o gene exógeno
desejado. A possibilidade de realizar pro-
tocolos ex vivo tem assumido perspectivas
novas na associação de protocolos de terapia
gênica e uso de terapia celular, através da 2
modificação genética de células-tronco, 1
que apresentam diferenciação em vários 2
tecidos potenciais.
1
4

APLICAÇÕES DA TERAPIA GÊNICA 3

Como discutido anteriormente, os pa-


cientes portadores de doenças genéticas
são vistos como potenciais beneficiários Ex vivo In vivo
da terapia gênica, pois a introdução de
um gene normal poderia reverter o quadro
Ex vivo:
clínico. Um exemplo fácil de entender é a 1. coleta e cultivo in vitro das células do paciente;
hemofilia, em que os indivíduos têm uma 2. transdução com vetor carregando o gene terapêutico;
mutação em um dos genes responsáveis 3. seleção e expansão das células com gene terapêutico;
4. reintrodução das células modificadas no paciente.
pela síntese de um dos fatores de coagula-
In vivo:
ção. Caso esse fator seja reintroduzido no 1. formulação apropriada do vetor que carrega o gene terapêutico;
sangue, o tempo de coagulação volta ao 2. injeção direta do vetor no tecido-alvo do paciente.

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normal, evitando hemorragias que podem desse tipo de terapia. A revista científica The
ser fatais. Os genes que codificam para os Journal of Gene Medicine mantém uma re-
fatores VIII e IX (hemofilias A e B) foram lação atualizada dos protocolos clínicos em
clonados em diferentes vetores. Para que humanos para consulta no site http://www.
haja o benefício terapêutico é necessário wiley.co.uk/genetherapy/clinical/, sendo a
que o gene seja expresso nas células de maior parte (61,2%) desses protocolos ainda
um tecido do indivíduo que possibilite correspondente a testes de fase I (objeti-
a liberação do fator de coagulação no vando apenas verificação de segurança do
sangue. Nesse caso, as células do fígado tratamento em poucos pacientes), enquanto
mostraram-se apropriadas, pois esse órgão apenas 32 protocolos estão em fase III, mas
é intensamente irrigado. com chances reais de serem utilizados em
Doenças genéticas adquiridas durante a saúde humana.
vida, como o câncer, doenças do coração Esses dados, quando organizados por
e infecções virais (Aids, por exemplo), tipo de doença (Figura 4), indicam que
no entanto, também são alvos para pro- atualmente temos uma predominância de
tocolos de terapia gênica. A idéia nesses protocolos clínicos voltados a tratamento
casos é basicamente introduzir genes que de câncer, com cerca de dois terços de to-
possam interferir no metabolismo da célula dos os testes (66,5%), seguido das doenças
cancerosa, bloquear a replicação viral ou cardiovasculares, doenças monogênicas
simplesmente estimular o sistema de defesa e doenças infecciosas. Ao contrário das
imunológico, propiciando um benefício doenças monogênicas recessivas como a
terapêutico ao paciente. Esses protocolos hemofilia, que requerem apenas a expres-
de terapia gênica para doenças genéticas são do gene funcional para a correção do
adquiridas têm sido muito estudados dada estado patológico, no câncer o objetivo é
a clara relevância que sucessos podem ter a eliminação do tecido tumoral. O gene
em saúde humana. terapêutico, nesse caso, tem um caráter
Mais de 1.300 protocolos clínicos diferente. Ele deve levar à eliminação das
aplicados diretamente em seres humanos células tumorais, basicamente por duas vias.
(apenas em 2006, foram iniciados 97 novos Em uma dessas vias o gene é tóxico (ou
protocolos), envolvendo terapia gênica, es- gera produto tóxico) apenas para o tumor,
tão sendo aplicados no mundo atualmente, e, em outra via, o gene busca despertar a
e podemos utilizar esse número como um resposta imune contra o tumor eliminan-
parâmetro do avanço de cada estratégia do-o. Aqui temos as maiores possibilidades
de aplicação da terapia gênica na clínica
em curto prazo. Um bom exemplo é o gene
supressor de tumores p53, que, transportado
por vetores adenovirais, mostra-se efetivo,
FIGURA 4 isoladamente ou em combinação com outros
Distribuição da aplicação de protocolos clínicos tratamentos como a radioterapia, para tratar
por tipo de doença diferentes tumores.
As doenças cardiovasculares, como
Câncer Doenças doenças cardíacas isquêmicas, isquemia
monogênicas
de membros, neuropatia isquêmica ou
diabética, podem ser tratadas pelo estímulo
Doenças
infecciosas à neovascularização, que leva à normali-
zação da circulação sanguínea local. Uma
estratégia de terapia gênica em especial,
Doenças
cardiovasculares em que o gene do fator de crescimento de
endotélio vascular é aplicado localmente,
Outras doenças
Pessoas sadias Genes
teve efeitos clínicos positivos. Daí o grande
marcadores número de protocolos em andamento, cada

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vez mais aperfeiçoados, e uma expectativa de 1% dos ensaios clínicos (1,3%, Figura
de aplicação mais ampla também em futuro 5). Esse valor é ainda bastante pequeno,
próximo. mas há expectativas de aumento signifi-
As doenças infecciosas, dependendo do cativo nos próximos anos à medida que
agente patogênico, podem ser vistas como se apresentarem novas propostas com o
doenças genéticas adquiridas, conceito mais emprego de RNAi. De fato, o processo
fácil de ser entendido quando se trata de celular de interferência de RNA, ou RNAi,
infecções virais. Esses microorganismos tem provocado uma verdadeira corrida de
desenvolveram a habilidade de inserir seus empresas farmacêuticas para estudar suas
genomas no interior de células do organismo propriedades farmacológicas. Esse fato foi
hospedeiro, e nelas multiplicarem-se. Nesse impulsionado pela facilidade de fabricação
processo ocorrem patologias devido à des- dessas moléculas, aliado às possibilidades
truição dos tecidos e à reação do organismo. de uso in vivo, e é discutido em detalhes
O desenvolvimento de genes “anti-HIV”, a seguir.
por exemplo, possibilitou o desenho de es-
tratégias promissoras de terapia gênica para
tratar a Aids, sendo contra esse vírus o maior
número de protocolos clínicos para doenças RNAi: A NOVA FACE DA TERAPIA
infecciosas em andamento. A expectativa
é de que em breve haja a possibilidade de GÊNICA
inserir genes anti-HIV em células-tronco
da medula óssea in vivo. Essas células dão O fenômeno de silenciamento gênico a
origem às células do sangue, e já foram partir de moléculas de RNA dupla-fita teve
obtidos dados de que linfócitos originários seu mecanismo revelado em 1998, através
de células-tronco com genes anti-HIV tor- de experimentos com um verme nematóide
nam-se resistentes à multiplicação do HIV, (Caenorhabditis elegans). Poucos anos mais
trazendo uma perspectiva promissora para tarde (2001) foi comprovada sua existência
pacientes com Aids. também em células de mamíferos, o que
Na Figura 5, é apresentada a distri- abriu enormes perspectivas tecnológicas.
buição de tipos de vetores que têm sido Basicamente, pequenas moléculas de RNA
empregados em protocolos clínicos. Como são sintetizadas nas células, a partir do seu
pode ser observado, os vetores derivados genoma, de modo a produzir estruturas
de adenovírus e retrovírus continuam como similares a grampos, formando moléculas
os principais veículos para ensaios em seres
humanos, perfazendo quase metade de todos
os testes. Outros vírus bastante empregados
são os derivados de vírus adenoassociados FIGURA 5
(AAV), vírus não-patogênicos, que, apesar Distribuição dos protocolos clínicos por tipo de vetor
de muito limitados no espaço disponível
para o transgene, permitem a sua expressão Vírus
Retrovírus adenoassociado
durante bastante tempo, não induzindo res-
posta imunológica, e os derivados de vírus Lipossomos
da família poxviridae (como o vaccinia,
empregado em seres humanos durante mais Transferência
de dois séculos em processos de imunização Adenovírus de DNA livre
contra a varíola).
Vetores não-virais também estão se
tornando populares, através de uso direto
de DNA plasmidial livre ou em lipossomos. Poxvírus
Um destaque é o uso de transferência di- Outros Transferência
reta de moléculas de RNA em pouco mais sistemas de RNA livre

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de RNA dupla-fita (ou duplexes de RNA, a ser estudado. Essas moléculas, conheci-
também conhecidos como microRNA, ou das como siRNA (small interfering RNA),
miRNA) que controlam a expressão de devem ser complementares à seqüência
genes celulares, seja a partir da degradação do gene-alvo e podem reduzir a expressão
do RNA mensageiro, seja a partir de um deste em até 80%. Alternativamente, ve-
bloqueio da síntese protéica. Esse sistema tores (em geral derivados de vírus, como
interfere na expressão gênica das células, adenovírus, retrovírus ou vírus adenoas-
e por isso recebeu o nome de RNA inter- sociados) podem também ser usados para
ferência (RNAi). entregar, no interior das células, genes
A descoberta do mecanismo de RNAi que expressam uma molécula de RNA
mudou completamente a forma como palindrômica, que pode gerar uma duplex
entendemos o metabolismo de controle de RNA na forma de grampo, conhecida
genético na célula humana, e também como shRNA (do inglês short hairpin
propiciou uma ferramenta poderosa para RNA). Como o siRNA, o shRNA tem como
inibir genes específicos e assim determinar objetivo o silenciamento do gene-alvo em
sua função na célula. Isso pode ser obtido estudo, apresentando a possibilidade de um
pela introdução de uma pequena molécula silenciamento permanente nas células, no
duplex de RNA (19 a 30 pares de base) caso de uso de retrovírus. O mecanismo de
diretamente nas células em cultura, visando silenciamento gênico por RNAi é ilustrado
ao silenciamento específico do gene-alvo na Figura 6.

FIGURA 6
Esquema de silenciamento gênico através do mecanismo de RNAi, seja através
de vetores virais recombinantes, seja através de moléculas duplexes de siRNA. DICER e
RISC são as principais enzimas envolvidas no processo que leva à degradação do RNAm

Vírus
recombinante siRNA exógeno

DICER

siRNA
siRNA
Genoma do vírus

shRNA

transcrição

siRNA e RISC

degradação
do mRNA

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Apesar de a descoberta do mecanismo
de RNAi datar de pouco mais de 6 anos,
rapidamente se demonstrou que vetores
virais ou pequenas moléculas de siRNA
podem atuar in vivo. Atualmente já foram
publicados mais de 100 artigos científicos
relatando o funcionamento de RNAi dire-
tamente com experimentos em animais,
alguns cujo gene-alvo do silenciamento
pode trazer benefícios terapêuticos. Mais
recentemente, foram iniciados protocolos
clínicos em fase I (de segurança no uso em
humanos), e alguns já foram concluídos,
sem que se verificasse nenhum efeito
tóxico. É possível que em mais alguns
poucos anos seja lançado o primeiro
produto farmacológico formado apenas
por pequenas duplexes de RNA, que atue
silenciando a expressão de um gene. Essa
velocidade no desenvolvimento de um
produto baseado em siRNA é espantosa
e deve-se a vários fatores, incluindo os
extensos trabalhos anteriores para terapia
gênica e a alta eficiência dessas moléculas
na modulação da expressão gênica.
De fato, vários são os problemas de saú-
de que resultam de expressão aumentada
de um ou mais genes, entre eles, tumores,
hipercolesterolemia e infecções virais.
E esses alvos têm sido extensivamente
investigados em trabalhos com células e
em animais. As estratégias variam pelo
uso direto de duplexes de RNA (siRNA)
ou vetores virais (shRNA), e pela forma
de aplicação nos animais, dependendo do
objetivo do trabalho. Moléculas pequenas
e artificiais de siRNA estão se tornando
cada vez mais populares pela versatilidade
e facilidade na sua produção e introdução
em células ou in vivo. Além disso, são
consideradas como drogas pequenas e
assim poderão ser usadas em pouco tempo
como produtos farmacêuticos comuns,
podem ser introduzidas diretamente ou
através de lipossomos, sem as questões
de biossegurança normalmente levantadas
para vetores virais.
Essas moléculas estão sendo testadas
a partir de aplicações que podem ser
intravenosas (sistêmicas), mas também
podem ser direcionadas a tecidos especí-

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ficos. Aplicações intra-oculares têm tido
bastante interesse, visando à obtenção de
terapia a doenças genéticas associadas no
olho. Destacam-se estudos de inibição do
gene VEGF (vascular endothelial growth
factor), que pode promover vasculariza-
ção próxima à retina, o que está associado
à doença de degeneração macular relacio-
nada à idade (AMD, do inglês age-related
macular degeneration), causando perda
de visão em milhões de idosos no mundo
inteiro. Várias empresas farmacêuticas já
iniciaram protocolos clínicos de fase I com
humanos, sendo que pelo menos alguns
desses já estão recrutando pacientes para
iniciar os de fase II. Os resultados têm
sido animadores.
Resultados promissores, e surpreen-
dentes, também têm sido obtidos com a
aplicação de moléculas de siRNA através
de inalação com administração intranasal,
tendo como alvo doenças respiratórias.
Esses estudos têm se mostrado eficientes
na inibição de vírus que agridem o sistema
respiratório, tais como o vírus respiratório
sincicial (RSV, que já está sendo testado
em protocolo clínico em fase I) e mesmo
o vírus influenza H5N1, que provoca a
temida gripe aviária.
Outros alvos para testes com RNAi
incluem a redução da apoliproteína B
(APOB) no fígado, o que em macacos
resultou em redução de colesterol no
sangue. Vários vírus mortais, como
hepatite B, hepatite C, rotavírus e HIV
(Aids), também têm sido alvos para
terapia com siRNA, também com re-
sultados promissores. Silenciamento
gênico através do mecanismo de RNAi
também tem sido proposto como possí-
vel terapia para vários tipos diferentes
de tumores. Os alvos para combate ao
câncer envolvem uma grande quantidade
de vias: oncogenes, mediadores de ciclo
celular e apoptose, genes envolvidos
em degradação e estabilidade protéica,
angiogênese, moléculas relacionadas à
invasão metastática e adesão celular.
Além disso, siRNA também pode auxiliar
no tratamento com radiação ionizante e
agentes quimioterápicos.

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ser úteis de acordo com o objetivo terapêu-
MUITAS ESPERANÇAS PARA A tico a ser alcançado, sendo que em alguns
casos a terapia gênica deve ser usada em
TERAPIA GÊNICA combinação com protocolos mais clássicos,
de modo a garantir, se não a cura, pelo
Durante as décadas de 1980 e 1990, menos uma melhoria de qualidade de vida
artigos sobre terapia gênica anunciavam de pacientes que hoje padecem de doenças
uma nova revolução da medicina. Apesar genéticas herdadas ou adquiridas.
de alguns resultados positivos terem sido Os avanços recentes estão sem dúvida
alcançados, as dificuldades encontradas fazendo renascer as perspectivas que eram
e os problemas criados, sobretudo pela esperadas anteriormente, mas os sucessos
introdução de vírus recombinantes em devem ser observados com otimismo cau-
organismos, infelizmente, não permitiram teloso, e ainda requerem intenso trabalho
que essa revolução ocorresse como previsto. de pesquisa. Temos convicção de que o
Essa frustração, no entanto, tem dado lugar empenho da comunidade acadêmica, que
a um trabalho cada vez mais consistente, estamos testemunhando, trará mais apli-
com protocolos clínicos sendo realizados cações bem-sucedidas da terapia gênica e
de modo cada vez mais direcionado, e com que esta deve se firmar como importante
boas perspectivas. Além disso, o conheci- ferramenta na prática clínica de um futuro
mento acumulado com os experimentos de relativamente próximo. Esperamos que o
terapia gênica tem servido de base para no- Brasil possa atuar como participante ativo
vas estratégias e uso de novas ferramentas, nessas pesquisas, pois tem condições de rea-
como é o caso de protocolos com RNAi. É lizar contribuições significativas, e ampliar
provável que as várias estratégias possam seu impacto na medicina experimental.

BIBLIOGRAFIA

MIR, Luis (org.). Genômica: Ciências da Vida. São Paulo, Atheneu, 2004.
MORALES, Marcelo M. (ed.). Terapias Avançadas: Células-tronco, Terapia Gênica e Nanotecnologia Aplicada à Saúde. São
Paulo, Atheneu, 2007.
VENTURA, A. M. “Terapia Gênica Utilizando Vetores Virais”, in Luiz Rachid Trabulsi e Flávio Alterthum (eds.). Microbiologia.
4a ed. São Paulo, Atheneu, pp. 573-9.

Site
http://www.wiley.co.uk/genetherapy/clinical/.

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