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TRANSMITIR VIVÊNCIAS:
uma etnografia digital das narrativas de “empoderamento” por mulheres com deficiência
Rio de Janeiro
2019
INTRODUÇÃO
Em 1991, meu irmão nasceu com uma deficiência física, consequência da má-
formação do tubo neural pela Mielomengocele, termo médico que sei pronunciar desde
pequena, já que nossa diferença de idade é de apenas três anos. Logo, minha experiência
em situação de deficiência1 propiciou o contato com os tipos de perguntas acima, na rua,
na escola, no shopping e em muitos outros locais. É possível afirmar que são exemplos
familiares de questionamentos dirigidos, corriqueiramente, a pessoas com deficiência,
sobretudo, àquelas com diferenças corporais visíveis. Não raro, estes questionamentos
vêm acompanhados pela inevitabilidade dos olhares curiosos e, até mesmo, pelo
indisfarçável desconforto diante do inesperado2 (GARLAND-THOMSON, 2009; 2011;
GAVÉRIO, 2015). Arrisco dizer que é comum que o emissor da pergunta não seja alguém
com quem se tenha intimidade ou qualquer tipo de relação próxima.
No entanto, ter uma deficiência ou ser familiar de alguém com deficiência não é
condição sine qua non para conhecer os discursos hegemônicos sobre a temática.
Cotidianamente, circulam, por meio de mídias digitais, novelas, livros, matérias de jornais
e TV, imagens da deficiência, ora representada como fonte de superação, heroísmo,
pureza ou inspiração (FIGURAS 1, 2 e 3), ora como tragédia, dependência, sofrimento
ou penitência (FIGURA 4). No primeiro caso, as representações apoiadas na comoção
remetem a intenções motivacionais ou filantrópicas, já no segundo, estima-se a condição
médica, na qual a deficiência é compreendida como passível de cura, reabilitação ou
aprimoramento. Mas, também pode ser parte de uma interpretação religiosa, ao ser vista
1
Agradeço à pesquisadora Anahi Guedes de Mello por ter me apresentado ao conceito de “situação de
deficiência”, durante uma conversa informal, após o GT Etnografias da Deficiência, realizado em Natal, na
29ª Reunião Brasileira de Antropologia.
2
De acordo com a teórica feminista da deficiência, Garland-Thomson, “todo mundo encara. Encarar é uma
resposta ocular àquilo que nós não esperamos ver.” (2009, p.3)
14
como provação cármica ou objeto de “cura” divina (FIGURA 5). Logo, dificilmente, a
deficiência é narrada como uma condição de vida, algo ao qual todos nós estamos
habilitados a experimentar, seja por motivos de acidente, doença ou como resultado do
processo biológico do envelhecimento humano.
Figura 1 - “Corações inteiros em corpos mutilados vão bem mais longe do que corpos perfeitos em
corações amputados!” Fonte: site da poetisa Lidia Vasconcelos
15
Figura 2- Capa do livro best seller "Uma vida sem Limites. Inspiração para uma vida absurdamente boa", de Nick
Vujicic. Fonte: site Amazon
Figura 3 - "Portadores de deficiência fazem campanha da lei seca no metrô". Fonte: G1,Globo.com
16
Figura 4-“Todo herói precisa de ajuda. Por que você acha que criaram os Superamigos?”. Campanha promovida pelo
Teleton, para arrecadar doações financeiras para a instituição de reabilitação AACD (Associação de Assistência à
Criança Deficiente). Fonte: site AACD
Figura 5 - Printscreen da tela inicial do YouTube, com sugestões de vídeos sobre religião e deficiência. Fonte:
YouTube
17
Nesta etnografia, realizada no YouTube, acompanhei dois canais desenvolvidos
por mulheres com deficiência que se desvinculam de perspectivas religiosas, biomédicas
ou baseadas no argumento da “superação” de uma “tragédia pessoal”. Na tese, os canais,
apresentados mais detalhadamente no Capítulo 1, serão nomeados como Canal 1,
desenvolvido por Sabrina, e Canal 2, realizado por Marília. Em comum, as personagens
da pesquisa tornam públicas suas vivências da deficiência, a partir de narrativas de
“empoderamento”, que, mediadas pela tecnologia digital, perpassam a tríade gênero,
corpo e sexualidade. Nesta tese, o termo “empoderamento” aparece entre aspas por se
tratar de uma categoria êmica.
Ancorada nos estudos feministas da deficiência e realizada na Internet, esta
etnografia percorre a reconstrução de narrativas hegemônicas da deficiência e a
construção de Sabrina e Marília como “referências”, personagens “empoderadas” e
“empoderadoras”. Neste percurso, a possibilidade tecnológica é encarada como agente,
aliada ao convite à olhada ao corpo deficiente e à exposição de experiências íntimas.
Assim, o objetivo geral da tese se concentra em examinar as narrativas de
“empoderamento”, envolvidas na constituição pública de mulheres com deficiência como
sujeitos de direitos, mas também como produtoras de conhecimento, belas, atraentes e
sexualmente ativas. No âmbito analítico da investigação, a plataforma do YouTube é
parte das associações -- sempre instáveis e temporárias -- entre corpos, palavras, imagens,
projetos, próteses e dinheiro.
Observo que a potência do YouTube como território de pesquisa é, ainda, pouco
trabalhada nas Ciências Sociais, embora a plataforma de hospedagem digital de vídeos
esteja disponível em 91 países do mundo e, no Brasil, ocupe o segundo lugar no ranking
dos sites mais acessados, atrás apenas da ferramenta de busca Google.com. Esta
classificação segue uma tendência de acesso global, no qual o Google.com se mantém em
primeiro lugar, o YouTube em segundo e o Facebook em terceiro. Hoje, estima-se que os
usuários do YouTube, no mundo, visitam uma média de cinco canais e consomem cerca
de 9 horas, diariamente, na plataforma, segundo dados levantados pela
Alexa/Amazon.com3.
Há, atualmente, uma gama infinita de canais sobre os mais diferentes assuntos
(culinária, viagens, animais, humor, moda, diários virtuais, entre outros). Dentre os
diferentes “nichos”, as tramas do “empoderamento” (no caso, por mulheres com
3
Cf. https://www.alexa.com/topsites/countries/BR
18
deficiência) consistem em mais um deles, mobilizando identidades, afetos, políticas e
mercado. Ou seja, para além de um instrumento de visibilidade e entretenimento, a
plataforma de vídeos online representa um dos maiores mercados de publicidade
existente.
Em 2017, na região portuária do Rio de Janeiro, foi inaugurado o YouTube Space,
que tem cerca de 3 mil metros quadrados e é de uso exclusivo dos youtubers que possuem
mais de mil inscritos. O YouTube Space da capital do Rio de Janeiro é o segundo maior
do mundo, atrás apenas da unidade de Los Angeles, nos Estados Unidos. O ambiente é
todo preparado e dedicado para a gravação de conteúdo, além de valorizar a
profissionalização dos chamados “criadores de conteúdo” ou “influenciadores digitais”.
Ao articular discussões sobre deficiência, mídia digital, gênero, corpo e
sexualidade, pretendo atingir uma área interdisciplinar de conhecimento, ampliando os
debates em torno da Antropologia Digital. Enfatizo que, de modo mais amplo, a
investigação também visa contribuir com o campo dos Estudos sobre Deficiência, que se
encontra em recente expansão no país e com o qual trabalho desde o mestrado, concluído
no Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(IMS/UERJ). Mais além, este estudo espera cooperar para que se reduza a invisibilidade
e o silenciamento de questões que envolvem mulheres com deficiência.
Notas metodológicas
19
um “simples registro do conteúdo”. As autoras destacam que é fundamental incorporar
vivências, emoções e comportamentos do pesquisador ao texto. Desta forma, observam:
20
Oi, Fernanda! Que bom que você gostou do canal. Fico muito feliz. Deixa eu te falar:
eu não tenho certeza se vou conseguir domingo, mas a gente pode se falar no domingo
mesmo e aí fica mais fácil, para mim, de te dar uma posição, porque domingo é o dia
em que eu posto os vídeos, então, é um dia em que eu fico o dia inteiro na Internet. É
um dia tranquilo para a gente se encontrar e tomar um café, mas, às vezes, acontecem
algumas coisas de última hora, então, eu não posso te dar certeza absoluta. Eu achei
superlegal a sua proposta e acho que vai ser difícil você encontrar bastantes youtubers
com deficiência. [risos]
21
mensagem privada, nesta mesma plataforma. Sabrina procurou saber eu era professora
em alguma instituição, já que precisava de uma carta de indicação para a seleção de
mestrado fora do país. Após me identificar como doutoranda e oferecer o intermédio com
professores do campo da deficiência, Sabrina leu a mensagem, mas não respondeu ao
contato. Esta foi minha última tentativa de um diálogo mais próximo com a youtuber.
Ao contrário de Sabrina, em 2018, Marília retornou, rapidamente, o email no qual
solicitei autorização para nomeá-la na tese, conforme transcrito abaixo:
Seria um prazer e uma honra ser citada em seu projeto, não há problema algum.
Fique ligada em nossa página, que sempre estamos anunciando os eventos para 2018
e será um prazer tê-la conosco. Me ponho à disposição sempre que quiser conversar
dentro da minha agenda, que é uma loucura! Estamos juntas!
Beijo enorme
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terceira etapa da pesquisa de campo, ao compreender a categoria das “mulheres com
deficiência” como “resto” em espaços feministas, cheguei às narrativas de
“empoderamento” no YouTube.
No guia intitulado Label jars, not people (“Etiquete frascos, não pessoas”, em
tradução livre), David Finnegan procurou informar a sociedade sobre a importância de se
eliminar “pequenos, mas importantes detalhes” linguísticos que, usualmente, causam
desconforto desnecessário às pessoas com deficiência. Segundo o autor, os estereótipos
mais persistentes e danosos reforçam a ideia de que ter alguma deficiência é embaraçoso
e patético ou que estas pessoas são eternas crianças, fardos para a sociedade e para seus
familiares e/ou são participantes marginais da vida em comunidade. A Convenção da
Organização das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD)4,
ratificada com status de emenda constitucional, no Brasil, adotou o termo “pessoa com
deficiência” (ao invés de “portadores de necessidades especiais” e “deficientes”), sob o
argumento de ativistas da área, que defendem que estes indivíduos “não portam uma
deficiência da mesma forma como se porta uma carteira de identidade, em que se pode
tirá-la a qualquer momento” (MELLO, 2009, p.30). Militantes dos direitos das pessoas
com deficiência corroboram a importância da aplicação da palavra “pessoa” antes do
termo “deficiência”, visto que, anteriormente à década de 1980 e à formação de
movimentos sociais da área, a sociedade sempre se referiu às pessoas com deficiência
como: “os deficientes”, “os especiais”, “os incapacitados”, “os inválidos”, “os aleijados”,
“os excepcionais”, “os defeituosos”, “os coitadinhos”, “os subnormais”, “os
infradotados”, “os retardados” e assim por diante (SASSAKI, 2012).
Em 1975, a Union of the Physically Impaired Against Segregation (UPIAS)
publicou o documento intitulado Fundamental Principles of Disability, que deu origem
ao termo “modelo social” da deficiência, por Mike Oliver. O texto identifica a
necessidade de eliminação das barreiras sociais e ambientais (a construção de rampas, ao
invés de escadas, por exemplo), bem como o fortalecimento da autonomia dos sujeitos,
4
Compreendendo a deficiência como um problema social e político (ORTEGA, 2009), o artigo 1º da
Convenção explica: “pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimento de longo prazo de natureza
física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua
participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas” (BRASIL,
2008a)
23
participação na sociedade, gerenciamento e controle de suas próprias vidas. Portanto, a
oposição entre o modelo médico e o modelo social da deficiência consolidava, também,
a oposição dicotômica entre lesão (impairment, localizada no corpo) e deficiência
(disability, produto social), nos mesmos moldes da separação entre natureza e cultura.
Neste sentido, sem enquadrar a corporalidade deficiente, os primeiros teóricos da
deficiência propunham o rompimento das relações de cuidado e de tutela, a partir do
investimento na diminuição de barreiras arquitetônicas e atitudinais, assim como no
desenvolvimento das pessoas com deficiência como agentes políticos transformadores e
principais gestores de projetos e pesquisas (OLIVER, 1990; SHAKESPEARE, 1994,
2006; BARNES, OLIVER E BARTON, 2002; DAVIS, 2006).
No mesmo período, nos Estados Unidos, a necessidade de reforma da agenda
política voltada para as pessoas com deficiência emergiu com a atuação de Ed Roberts,
na época, estudante da Universidade da Califórnia. Devido a sequelas da poliomielite,
Roberts utilizava cadeira de rodas e precisava passar horas do seu dia em um respirador
artificial, conhecido como iron lung. Após inúmeras dificuldades de acessibilidade no
espaço acadêmico, Roberts fundou o Movimento de Vida Independente (Independent
Living Movement), que prima, até hoje, pela garantia da inclusão social e da autonomia,
o que envolve a chance de escolhas, posicionamento próprio sem interferência de
terceiros e participação na tomada de decisões em distintas esferas da sociedade. Assim,
em 1972, foi fundado o primeiro Centro de Vida Independente (CVI)5 do mundo,
localizado na cidade de Berkeley, sob o lema “Nada sobre nós sem nós” (Nothing about
us without us), o mesmo utilizado por outros grupos de ativistas que, no mesmo período,
reivindicavam reconhecimento identitário-político-social (RIOS, 2017).
Bampi, Guilhem e Alves (2010) entendem a retirada da deficiência do campo da
natureza para o foco na sociedade como uma “mudança teórica revolucionária” que, por
se tratar de um fenômeno sociológico, espera que a aceitação das diferenças seja
precedente às noções de cura, tratamento ou eliminação de lesões. Os argumentos da
promoção de uma identidade coletiva positiva e da incapacidade da sociedade em prever
e se ajudar às diversidades inspiraram a atuação de outras pessoas com deficiência,
notadamente, nos Estados Unidos, como os surdos e os autistas, dando origem à “cultura
5
Em 1988, foi inaugurado o primeiro Centro de Vida Independente (CVI) da América Latina, no Rio de
Janeiro, cujo paradigma remete à inclusão social das pessoas com deficiência, baseada em um modelo
não-assistencialista e não-paternalista de atendimento.
24
surda” (COHEN, 1995; LADD, 2003; PADDEN E HUMPHRIES, 2005) e ao movimento
da neurodiversidade (SINGER, 1999; ORTEGA, 2009; BAGATELL, 2010; FEIN, 2011).
A virada teórica foi protagonizada pela geração de feministas do campo da
deficiência, entre as décadas de 1990 e 2000 (MORRIS, 1991, 1996; FRENCH, 1993;
CROW, 1996; GARLAND-THOMSON, 1997; 2001; 2005; 2009; 2011). As autoras
refletem para além de um modelo que considera que as barreiras sociais e arquitetônicas
são as únicas promotoras da exclusão e da invisibilidade dos corpos deficientes na vida
pública. A partir de propostas interseccionais, a segunda geração de teóricas reconhece
as experiências corporais, a dor, a dependência e o cuidado, inserindo em suas análises
variáveis como gênero, raça, sexualidade, classe, etnia. Na síntese de Diniz,
Ser uma mulher deficiente ou ser uma mulher cuidadora de uma criança ou
adulto deficiente era uma experiência muito diversa daquela descrita pelos
homens com lesão medular que iniciaram o modelo social da deficiência. Para
as teóricas feministas da segunda geração, aqueles primeiros teóricos eram
membros da elite dos deficientes, e suas análises reproduziam sua inserção de
gênero e classe na sociedade. (2010, p.27)
25
cotidiana (HORST, 2013) e as questões sobre privacidade e segurança de dados atingem
impactos de caráter global (MAGRANI, 2018; JUDGE E POWLES, 2015). No campo
acadêmico, a constatação do aumento do interesse na cibercultura é refletida tanto na
participação de novos pesquisadores em grupos de trabalho sobre Internet, entre os mais
importantes congressos nacionais e internacionais, quanto pelo próprio uso de
ferramentas digitais nas pesquisas de campo, entre diversas áreas de conhecimento:
gênero, sexualidade, violência, consumo, etnologia indígena, entre outras. Apesar disso,
nota-se a escassez de diálogo com produções teóricas voltadas ao campo da deficiência
e, também, a respeito de áreas economicamente subdesenvolvidas (GOGGIN E
NEWELL, 2003; ELIS, 2010; MILLER E HORST, 2012).
A última pesquisa TIC Domicílios (2017)6 mostrou que 42,1 milhões (61%) de
domicílios brasileiros estão conectados à Internet, sendo totalizados 120,7 milhões de
usuários, ou seja, cerca de dois terços da população brasileira. Contudo, de acordo com a
pesquisa, além da concentração do acesso entre as classes A e B (99% e 93%,
respectivamente) e na região Sudeste, o alto custo da conexão ainda é o maior impeditivo
para a ausência da Internet nos domicílios.
Entre as classes A e B, o uso da Internet se dá por múltiplos dispositivos, como
computador, celular e Smart TV, enquanto entre as D/E, o acesso ocorre,
majoritariamente, via celular. Apesar da distribuição desigual no acesso, dados da
Pesquisa Video Vierwers (MARINHO, 2018) indicam que, entre 2014 e 2018, o consumo
de vídeos na Internet, por brasileiros, obteve um crescimento de 135%, ao passo que o
consumo de TV aumentou apenas 13%.
Os dados quantitativos apresentados acima escancaram a realidade da
desigualdade socioeconômica no acesso à Internet no Brasil. Por outro lado, o país foi
pioneiro na legislação voltada à regulação do setor, a partir da instituição do Marco Civil
da Internet (Lei nº 12965/2014). Atualmente, o órgão nacional responsável pela
governança da Internet, no país, é o Comitê Gestor da Internet (CGI), apoiado pelo
consórcio internacional que desenvolve padrões para a Internet, o World Wide Web
Consortium (W3C). Este último atua na elaboração de protocolos e diretrizes que visam
6
A pesquisa anual é realizada pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da
Informação (Cetic.br), um departamento do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (Nic.Br).
De acordo com o relatório final, em sua 13ª edição, a TIC Domicílios realizou entrevistas em mais de 23
mil residências em todo o território nacional, entre novembro de 2017 e maio de 2018. Os estudos
completos, desde 2005, podem ser obtidos por meio do site: hhttp://www.cetic.br/
26
o crescimento da Internet a longo prazo, tendo a acessibilidade como uma das prioridades
de sua agenda. No Brasil, onde o W3C tem sede, também foi formado um grupo de
trabalho especializado em planejar ações direcionadas à acessibilidade na Web e em
traduzir guias e diretrizes.
O texto WCAG – Web Content Accessibility Guideline (W3C, 2018) é
considerado um dos pilares para a construção de páginas acessíveis a pessoas com
deficiências, atendendo, também, ao art. 63 da Lei Brasileira de Inclusão (LBI), que
prevê a obrigatoriedade da
(...) acessibilidade nos sítios da internet mantidos por empresas com sede ou
representação comercial no País ou por órgãos de governo, para uso da pessoa com
deficiência, garantindo-lhe acesso às informações disponíveis, conforme as melhores
práticas e diretrizes de acessibilidade adotadas internacionalmente. (BRASIL, 2015b)
7
De acordo com o site oficial do evento, o “Instituto Campus Party é uma associação civil sem fins
lucrativos fundada em 2009, com o objetivo de incentivar e promover atividades e projetos nas áreas,
cultural, educacional gratuita, de inclusão digital, do desenvolvimento tecnológico e econômico, dos
direitos estabelecidos, da assistência social e da cidadania. (...) O Instituto Campus Party realiza a Campus
Party Brasil, principal evento de Internet e tecnologia do país. É responsável pelo conteúdo e pela
construção de ambientes favoráveis para divulgar as tecnologias mais avançadas, assim como suas
aplicações nos campos da Educação, da Economia, do Trabalho e da Cultura Digital. A Campus Party
acontece no Brasil desde 2008. Atrai anualmente geeks, empreendedores, gamers, cientistas e muitos outros
criativos que reúnem-se para acompanhar centenas de atividades sobre Inovação, Ciência, Cultura,
Universo Digital e Empreendedorismo.” Cf. http://brasil.campus-party.org/cpbr/sobre-nos/
27
contribuir com a acessibilidade ou com a tradução do conteúdo para outros idiomas.
Normalmente, na caixa de descrição dos vídeos, Sabrina oferece um link que direciona
os usuários à plataforma gratuita de criação de legendas. Já em suas páginas do Facebook
e do Instagram, Sabrina utiliza a #paracegover (lê-se hashtag para cego ver),
acompanhada da descrição das fotografias publicadas por ela.
No Canal 2, a maioria dos vídeos é publicada com legendas em português,
sobretudo, aqueles relacionados ao material político elaborado para a campanha de
Marília como candidata à Câmara Federal (Capítulo 1).
Estrutura da tese
28
além das considerações de Donna Haraway sobre agenciamentos humanos e não-
humanos (2009 [1985]).
No capítulo 4, corpo e sexualidade são entrelaçados como centros da curiosidade
direcionada às vivências da deficiência. Nesse capítulo, as narrativas de Sabrina e Marília
enquadram as potencialidades dos corpos deficientes, por meio do convite explícito a
observação e contemplação de suas atuações (MOL, 2002). Exploro a ideia de que esse
sistema de autoafirmação e autorrepresentação desestabiliza a interpretação cultural
baseada no binômio capacidade (ability)/deficiência (disability). No capítulo, além da
própria plataforma digital, próteses, cadeiras de roda e aplicativos de celulares são
acoplados às construções narrativas das youtubers.
No quinto e último capítulo, busquei amarrar as discussões acima, refletindo a
respeito da relação entre intimidade e dinheiro, nas narrativas de “empoderamento” da
deficiência construídas no YouTube. Nesse capítulo final, elaboro os conceitos de
“intimidade com propósito” e “economia do ‘empoderamento’”, para contribuir com os
debates acerca dos fluxos de subjetivações e das moralidades envolvidas na
mercantilização da “diversidade”, ambos afetados pelas novas tecnologias.
29
CAPÍTULO 2
TRANSMITIR-SE: NOVAS MÍDIAS DIGITAIS, REPRESENTATIVIDADE E
DEFICIÊNCIA
“(...) a experiência da deficiência é válida por si só. Pessoas com deficiência são parte
da jornada humana. Elas estão em todas as culturas e suas vidas são dignas de
valorização e compreensão. (…) Se você ouvir as histórias deste filme [Our Digital
Selves], verá pessoas fazendo coisas que elas nunca imaginariam que pudessem fazer
antes de encontrarem esse mundo virtual (…) Se você quiser minha melhor pista a
respeito do que o futuro irá se parecer, fale com alguém com deficiência, ouça suas
histórias, o que elas estão fazendo, porque sabemos que, na história da tecnologia, o
que elas fazem acaba sendo o que todos nós fazemos” (Tom Boellstorff, no
documentário Our Digital Selves: My Avatar is me, 2018. Tradução minha)24
O trecho que dá início a este capítulo é parte do documentário Our Digital Selves:
My Avatar is me (2018)25, que se baseia em uma etnografia coordenada pelos
antropólogos Donna Davis e Tom Boellstorff, no contexto do Second Life26. A pesquisa
compreende as experiências de pessoas com deficiência com a plataforma online e revela
as especificidades de um ambiente que permite o controle da aparência do avatar pelos
usuários: “você pode ser uma geladeira, se quiser”, explica Bollstorff, em uma das cenas
do documentário. Sob financiamento da National Science Foundation, a etnografia foi
realizada em uma espécie de centro de pesquisa virtual, a Etnographia Community.
Davis e Boellstorff se reuniram com trinta pessoas com deficiência, usuárias da
plataforma. Treze delas aparecem no documentário, tanto sob a forma física, no espaço
de suas casas, quanto na figura avatarizada, no espaço virtual. Nas cenas finais do filme,
24
No original: “(…) disability experience is valid in its own right. Disabled folks are part of the human
journey. They’re a part of every human culture and it is valuable and worthy for us to understand and
appreciate their lives. (…) If you listen to the stories that you see in this film [Our Digital Selves], you will
see people doing something new that they never imagined they could have done before they encountered
these virtual worlds. (…) If you want my best clue for what the future is going to look like, talk to someone
who’s disabled. Listen to their stories, what they’re doing. Because we know in the history of technology,
what they do often ends up being what we all do.”
25
A íntegra do documentário foi disponibilizada pelo documentarista Bernhard Drax, no YouTube:
https://www.youtube.com/watch?v=GQw02-me0W4&t=3972s .
26
O Second Life surgiu, pela primeira vez, em 1999 e é considerado uma comunidade virtual, onde os
usuários criam seus avatares para interagir com outros. No Second Life, o participante pode ganhar dinheiro
criando e vendendo cenários 3D.
47
dois dos personagens acompanham o documentarista, Bernhard Drax, e os antropólogos
até a sede da empresa Linden Lab, localizada em São Francisco, nos Estados Unidos, para
uma reunião com desenvolvedores do Second Life.
Ebbe Altberg, CEO da Linden Lab, afirma que há um crescente interesse de
grandes corporações norte-americanas, como Google, Amazon e Microsoft, no
investimento em softwares e outras ferramentas de acessibilidade que atendam a
particularidades corporais, sensoriais e comunicacionais. Reflexo disto, o acesso à
determinada plataforma, a interconectividade entre acessórios (óculos de realidade
virtual, consoles, equipamentos de texto, voz e áudio) e as negociações entre espaços
públicos e privados moldam as histórias documentadas em Our Digital Selves. Neste
sentido, a cada história revelada, evidenciam-se as nuances da íntima relação entre
deficiência e tecnologia digital. Entretanto, as apostas no “império digital” auspicioso me
fazem recordar de uma célebre frase do livro Neuromancer, um clássico na literatura
cyberpunk27, escrito por William Gibson (1982): “Como eu tenho dito muitas vezes, o
futuro já chegou. Só não está uniformemente distribuído”28.
O modo como o Second Life é abordado em Our Digital Selves se aproxima das
discussões que tratarei neste capítulo, ao olhar para o YouTube como agente que
configura e é configurado por concepções de visibilidade, comunicação, trabalho,
subjetividade e pertencimento. Como veremos, as youtubers Sabrina e Marília acionam a
perspectiva da “representatividade”, visando assinalar a carência de pessoas com
deficiência nos espaços sociais e apontar para a influência da Internet em suas trajetórias
particulares e coletivas. O título desde capítulo remete ao atual slogan do YouTube:
Broadcast yourself. Transmitir a si mesmo, via plataforma de streaming, seria uma das
estratégias encontradas para “sair do armário” da deficiência, mas também um modo de
“espalhar a palavra”, nos termos usados por Sabrina e Marília, respectivamente.
Segundo Goggin e Newell (2003), a expertise29 das pessoas com deficiência provê
não somente uma imagem diferenciada sobre a diversidade humana, mas carrega,
27
Nos anos 1980, “o cyberpunk aglutinou a visão distópica do movimento punk e os estereótipos de seu
estilo de vida ao imaginário futurista no qual as gadgets (bugigangas e geringonças) ‘cibernéticas’ e os
ciborgues foram amplamente cotidianizados. Um dos principais legados do cyberpunk é a imagem do
homem-gadget (homem-objeto que não é muito mais que um gadget acoplado a um sistema ou rede de
gadgets) cujo corpo é um banal suporte de biônicos e cuja mente só encontra sua totalidade quando
conectada ao ‘ciberespaço’”. (KIM, 2004: 212)
28
No original: “As I’ve said many times, the future is already here. It’s just not every evenly distributed.”
29
O termo expertise vem sendo aplicado por pesquisadores da deficiência (Silverman, 2012; Eyal e Hart,
2013; Nunes, 2014; Rios, 2018), a fim de enquadrar tanto os indivíduos quanto os familiares de pessoas
48
sobretudo, a oportunidade de aprimorar e moldar plataformas digitais e aparatos
tecnológicos. Se, por um lado, os autores entendem que as novas mídias digitais
representam grandes benefícios para pessoas com deficiência, por outro, se distanciam de
um ideal salvacionista ao recordarem que nenhuma tecnologia é desinteressada ou
intrinsecamente boa, uma vez que são parte de um processo social, político e econômico,
historicamente, dominado por grupos do Norte Global.
Portanto, enquanto as plataformas digitais lucram com a presença e a participação
das pessoas com deficiência, é imprescindível que haja aprimoramento de tecnologias de
acessibilidade, que, ao fim e ao cabo, atinge positivamente a toda a população de usuários
da Internet. (GOGGIN E NEWELL, 2002; ELLIS, 2010). Ademais, embora o alcance
dos dispositivos digitais, a expansão de armazenamento e velocidade de transmissão de
dados reforcem a crença no futuro tecnológico, também é preciso observar quais
estruturas e interesses ainda perpetuam políticas de exclusão e de invisibilidade na “era
da informação”, principalmente, fora do eixo euroamericano. (GOGGIN E NEWELL,
2003; GINSBURG, 2008; HARAWAY, 2009 [1985]; CASTELLS, 2011).
com deficiência como “especialistas de si mesmos”. É a expertise da vivência da deficiência que legitimará
decisões individuais, mesmo as mais controversas, e permitirá o diálogo com especialistas “formais” do
tema (médicos, psicólogos, terapeutas, educadores etc).
30
De acordo com a revisão história feita por Castells (1996), a criação e o desenvolvimento da Internet se
deram a partir do trabalho da Agência de Projeto de Pesquisa Avançada (ARPA) do Departamento de
Defesa dos Estados Unidos, em cooperação com Universidades da elite norte-americana, na década de
1960. Voltada, incialmente, para fins militares, em setembro de 1969, foi lançada a ARPANET, a primeira
rede de computadores que ligava quatro Universidades americanas que colaboravam com o Departamento
de Defesa. Durante a década de 1980, com o crescente interesse científico e acadêmico, a rede se expandiu
como um sistema de comunicação até se chegar à nomenclatura atual – Internet – e alcançar interesses
comerciais privados, já em meados década de 1990.
49
contraculturais –, que conduziram ao desenvolvimento de estruturas computacionais e de
telecomunicação até a sua difusão em escala global. O sociólogo espanhol Manuel
Castells (1996; 1999; 2011) explica que o estabelecimento das chamadas Tecnologias da
Informação e Comunicação (TICs), na década de 1990, abarcou a formação de um novo
campo econômico articulado nas redes, para o qual “a lucratividade e a competitividade
são os verdadeiros determinantes da inovação tecnológica e do crescimento da
produtividade” (1999, p.100)
Hine (2000) destaca que a capacidade de transmitir dados de um computador para
outro dividiu a comunicação, entre usuários da rede, em “sincrônica” e “diacrônica”.
Como efeito dos “novos” protocolos de comunicação -- endereço eletrônico (email),
world wide web (www), Internet Relay Chat (IRC), entre outros --, acompanhamos a
expansão da circulação de textos, áudios e imagens mundo afora, por meio de dispositivos
eletrônicos. Em 2004, a empresa norte-americana O’Reilly Media cunhou o termo web
2.0, em referência aos fluxos de interatividade e comunicação gerados pelas formas de
utilização da web31. Neste período, a novidade advinha da interação dinâmica e em rede
entre sujeitos (os “usuários”), mediante a participação em plataformas, como blogs, redes
sociais, enciclopédias colaborativas e sites para compartilhamentos de fotos e vídeos.
O caráter participativo da web 2.0 deu origem, então, ao termo prosumer
(productor + consumer), um neologismo que sugere a ascensão de um indivíduo que, a
um só tempo, é consumidor crítico e produtor criativo de conteúdo digital (O’REILLY,
2005; JENKINGS, 2009; MAZETTI, 2009; MAGRANI, 2018). Para Sibilia (2008, p.14.
grifos originais), estes novos usos da web tratam de uma “peculiar combinação do velho
slogan faça você mesmo com novo mandato mostre-se como for”. É neste contexto que
Burgess e Green (2009, p.14), autores do livro YouTube e a Revolução Digital, definem
a plataforma de compartilhamento de vídeos como “um site de cultura participativa”, que
valoriza a autenticidade e a criatividade vernacular dos criadores de conteúdo. De acordo
com os pesquisadores, o YouTube possui seu próprio sistema de produção de
31
Segundo Magrani (2018, p. 63 e 64), a world wide web usa a Internet, mas ela em si não é a Internet. É
uma aplicação criada para permitir o compartilhamento de arquivos (HTML e outros), tendo o browser
(navegadores como Internet Explorer, Safari e Chrome) como ferramenta de acesso. (...) A web é composta
por (1) navegador/browser; (2) HTML, CSS, Javascript e outras linguagens para criar um website; (3)
servidor web, que é o local onde os arquivos das linguagens ficam hospedados. Na maioria das situações,
é por meio da web que uma pessoa acessa a Internet, à exceção de serviços como e-mail, FTP e troca de
mensagens instantâneas. Ver também: Castells, 1996.
50
celebridades, ainda que a manutenção do sucesso exija a conciliação com mecanismos da
“velha mídia”, isto é, contratos, pilotos e mercados de publicidade.
Mais de 40 anos após o lançamento da primeira rede de computadores, a
ARPANET, o conceito de hiperconectividade surge com a finalidade de “descrever o
estado de disponibilidade dos indivíduos para se comunicar a qualquer momento”
(MAGRANI, 2018, p. 21). Calcula-se que, hoje, a Internet soma quase 4 bilhões de
usuários ao redor do mundo e, na “era da Internet das coisas”, cada vez mais objetos
inteligentes estão interconectados32. Segundo Magrani, neste “fluxo contínuo de
informações e massiva produções de dados”, o termo hiperconectividade vem sendo
utilizado em referência às comunicações entre indivíduos (person-to-person), indivíduos
e máquinas (human-to-machine, H2M) e entre máquinas (machine-to-machine, M2M). O
autor argumenta:
Estudiosos como Miller e Slater (2000), Horst (2012), entre outros, localizam o
espaço doméstico como um dos âmbitos mais afetados pelo avanço das novas mídias
digitais na vida cotidiana. Para Horst (2012), a domesticação das TICs complexifica
noções de lazer e de trabalho, exigindo a reconfiguração tanto dos espaços físicos da casa
quanto dos relacionamentos entre seus moradores.
Apesar dos notáveis impactos da Internet e da intensa transformação sofrida por
diferentes dispositivos digitais na sociedade ocidental moderna, ainda hoje, os estudos
antropológicos online geram controvérsias e disputas entre pares (SEGATA, 2016). Ao
propor uma etnografia, realizada no campo digital, o/a pesquisador/a se vê diante do
desafio de encarar questionamentos que colocam em jogo sua autoridade etnográfica
(CLIFFORD, 1998). Não obstante, também é preciso lidar com ideias falaciosas sobre a
32
Segundo Magrani (2018), não necessariamente, a criação de “coisas inteligentes” facilita a vida das
pessoas, tanto pela sua relação custo-benefício quanto pela geração de “coisas inúteis” que, por se tornarem
indesejáveis ou obsoletos, acabam por se gerar resíduos eletrônicos tóxicos, classificados como e-wastes.
51
“entidade” Internet e insinuações que sugerem a redução do fazer etnográfico a “passar o
dia todo na mídia social ‘para seguir tópicos da moda’, como memes da Internet, selfies
ou celebridades online” (SETA, 2018, s.p). A título de exemplo, a imagem abaixo faz
alusão, de modo jocoso, às possíveis estratégias de convencimento, por “etnógrafos
digitais”, acerca da legitimidade de seus objetos de pesquisa.
Figura 6 - “9 truques antropológicos para fazer as pessoas pensarem que você é um etnógrafo digital” Ilustração
original: Lord Birthday. Edição da imagem: Deathnography (página no Faceboook).
Durante meu percurso acadêmico, não tive contato com nenhuma disciplina que
abordasse o digital como centro de interesse antropológico e/ou discutisse métodos
etnográficos online. Provavelmente, por este motivo, tive receio em desenvolver uma
pesquisa no YouTube. A “estranheza” que o território de investigação me causava,
entretanto, foi importante para levantar questões que contribuíram na construção do
objeto e dos objetivos de pesquisa. Nesta dinâmica de estranhamento do familiar (DA
MATTA, 1978), as seguintes reflexões “martelaram” pensamentos e inseguranças
iniciais: seria mesmo interessante trabalhar apenas com o conteúdo digital? Haveria a
necessidade de complementar a observação, realizada nos canais do YouTube, com
52
entrevistas e atividades face-a-face, junto às interlocutoras da pesquisa? Em que medida
este material é mais, ou menos, “real”/”autêntico”/”verdadeiro” do que aqueles que
seriam coletados nas unidades básicas de saúde, por meio da observação participante
presencial e de entrevistas semiestruturadas? Quais são os dilemas éticos e morais
presentes no trabalho de campo desenvolvido na Internet?
Miller e Horst (2012, p. 97) explicam que “(...) uma das maiores contribuições do
recente campo da Antropologia Digital seria o grau com que ela finalmente explode as
ilusões de um mundo pré-digital não mediado e não cultural”. Assim, os autores propõem
a superação teórico-analítica da suposta ameaça provocada pelo digital ao humano (tido
como “real” e “autêntico”). Para os pesquisadores, assim como em outras áreas da
antropologia, é importante ocupar-se da materialidade do digital, elencadas sob três
aspectos: 1) a materialidade da infraestrutura e da tecnologia digital; 2) a materialidade
do conteúdo digital; 3) a materialidade do contexto digital. Para Miller e Horst (2012), os
estudos antropológicos sobre a digitalização da vida encaram, ainda, uma oportunidade
ímpar de se ampliar as concepções de humanidade.
A apreensão da materialidade do digital, portanto, refuta a ideia de “esvaziamento
do ciberespaço”, marcada nas críticas aos estudos antropológicos da cibercultura, no
início dos anos 90. De acordo com Segata (2016, p.18), “os seus nativos (...), os
‘cibernautas’, eram um tipo muito exótico, como também era exótica a antropologia que
deles tratava”. O pesquisador caracteriza o ambiente de desconfiança e temor como um
dos primeiros desafios encontrados no investimento etnográfico das pesquisas com
computadores e Internet:
53
Segata (idem) explica que, neste período, a inserção da antropologia na discussão
da cibercultura foi esparsa e, praticamente inexiste no Brasil. Contudo, esta não é uma
exclusividade do digital, visto que algo semelhante ocorreu entre os estudos
antropológicos da mídia analógica, em comparação com outros campos de conhecimento.
Ginsburg, Abu-Lughod e Larkin (2002) afirmam que, até a década de 1980, havia poucas
produções etnográficas a respeito da mídia como prática social. E, consequentemente, um
escasso interesse nas políticas de consumo, nas práticas de ativismo cultural e nos modos
de representação coletiva e produção da imagem de si, temas que ganharam força somente
a partir dos estudos pós-coloniais.
No Brasil, em 1998, o Grupo de Pesquisa em Antropologia do Ciberespaço
(GrupCiber) assumiu o pioneirismo no investimento etnográfico voltado ao campo da
cibercultura e, consequentemente, sua introdução na antropologia brasileira (RIFIOTIS
et al, 2010; MAXIMO et al, 2012; SEGATA E RIFIOTIS, 2016). Fundado pelos
pesquisadores Theophilos Rifiotis e Maria Elisa Máximo, no Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o GrupCiber
acompanhou as dinâmicas presentes na expansão da Internet e no surgimento de novas
tecnologias digitais, no país. Somente em 2006, foi criada a Associação Brasileira de
Pesquisadores em Cibercultura (ABCiber), que realiza simpósios anuais e reúne
estudiosos de diferentes disciplinas, como antropologia, sociologia, artes e, em sua
maioria, comunicólogos. (SEGATA, 2016; MÁXIMO et al, 2012)
Se, na década 1990, foi preciso convencer os colegas de profissão de que “havia
gente” no “ciberespaço”, agora, o desafio consiste em “recuperar a capacidade de dar um
passo a mais nas descrições, fazendo aparecer suas associações com hardwares,
programas e outros artefatos, sem determinar quem o que é sujeito ou objeto” (idem,
2016, p.108). A partir da perspectiva sociotécnica das redes (LATOUR, 2008), Segata e
Rifiotis (2016) expõem as fragilidades de dicotomias, como real versus virtual, nos
agenciamentos presentes na interação entre humanos e não-humanos.
Publicado na década de 1980, o Manifesto Ciborgue, de Donna Haraway, é um
importante referencial teórico nesta tese, na reflexão sobre o corpo-ciborgue e seus
atravessamentos com os “rearranjos” da deficiência. Ao pensar a hibridização entre
organismo e máquina, Haraway explora a transgressão de fronteiras entre quem faz e
quem é feito. E, no sentido atribuído pela autora, o ciborgue é parte de um processo social
centrado nas tecnologias de comunicação e biotecnologias, entre os quais se inserem
dispositivos, computadores, próteses, implantes e câmeras, que configuram corpos e
54
identidades. Em suas palavras, “(...) essas relações máquina/organismo são obsoletas,
desnecessárias. Para nós, na imaginação e na prática, as máquinas podem ser dispositivos
protéticos, componentes íntimos, amigáveis eus” (2009, p.100)
Em seu Manifesto, Haraway traduziu os aparelhos de televisão e videogames
como tecnologias miniaturizadas, cujo impacto na vida privada tornava-se crucial para a
compreensão da “cultura high-tech”. Hoje, outras formas “extremamente miniaturizadas”
atuam nas relações sociais públicas e privadas, mesmo que a maior parte da população
sequer tenha clareza do que significam termos como algoritmos, criptografia, blockhain,
big data, entre outros elementos tecnológicos “minúsculos”. Quero dizer, aqui, que a
preocupação em torno da “inteligência artificial” escapa ao campo da engenharia da
computação e vem sendo incorporada nas análises sobre autonomia, agência e ética, no
âmbito das ciências sociais, do direito, da filosofia, da comunicação e demais áreas das
ciências humanas. No fim do século XX, Haraway concebia a “miniaturização” das
tecnologias como questão de poder: “o pequeno não é belo. Tal como ocorre com os
mísseis, ele é, sobretudo perigoso” (2009, p. 43) Décadas após esta afirmação, em 2016,
a escritora e Ph.D em matemática pela Harvard University, Cathy O’Neil, se referiu aos
big datas e algoritmos de machine learning como weapons of math destruction (“armas
de destruição matemática”, em tradução livre), devido à opacidade de seus
funcionamentos e processos decisórios (FERRARI, 2019). Apesar do meu crescente
interesse neste tipo de discussão, pretendo desenvolvê-lo em projetos futuros. Por ora,
retomarei a discussão a respeito dos atuais desafios metodológicos para a experiência
etnográfica, na Internet.
***
55
Arturo Escobar (1994) é considerado um dos primeiros antropólogos a aspirar
caminhos possíveis para a discussão etnográfica da cibercultura. Para o autor, esta
abordagem representa um meio privilegiado, ainda que desafiador, de estudo das novas
tecnologias enquanto agentes de transformações social e cultural. O texto “Bem-vindos à
Cyberia: notas etnográficas para uma antropologia da cibercultura” também é um convite
aos estudos sociais das práticas econômicas e políticas, na articulação entre tecnologia,
vida, linguagem e trabalho.
A abordagem do método etnográfico na Internet trouxe consigo uma diversidade
de adjetivações semânticas (MAXIMO et al, 2012): etnografia virtual; etnografia digital;
netnografia; etnografia online; webnografia; etnografia em rede; etnografia da interação
mediada por computador etc (KOZINETZ, 2007; FRAGOSO, RECUERO, AMARAL,
2011; RIFIOTIS et al, 2012; ZANINI, 2016). Nos campos da comunicação social e da
ciência da informação, por exemplo, a prática etnográfica tende a ser compreendida sob
a perspectiva de Robert Kozinetz (2007; 2010), pesquisador da área de marketing, que
cunhou o termo “netnografia”, a partir da “adaptação” do método etnográfico
“tradicional” (MÁXIMO et al, 2012). A antropóloga Adriana Dias (2018) recorda, ainda,
que nem só na web se faz uma etnografia. Em sua pesquisa de doutorado, analisou
narrativas de ódio por grupos neonazistas, na deep web33, por meio do que denominou
como etnografia “inter-hypermediada”34 e “hypermediada”35.
Nos anos 2000, Christine Hine empregou o uso do termo “etnografia virtual”, ao
abordar a Internet sob dois aspectos inter-relacionados: como cultura e como artefato
cultural. No primeiro, a autora contextualiza as relações sociais e as linguagens
específicas presentes na Comunicação Mediada por Computador (CMC). Neste quesito,
coloca em pauta as implicações éticas na interação entre pesquisador e pesquisado. Já no
segundo, identifica que as tecnologias digitais se encontram em constante transformação
e os sentidos atribuídos a elas variam de acordo com grupos específicos de indivíduos e
contextos analisados.
33
A deep web é uma área da Internet “escondida”, que não pode ser encontrada por meio de buscadores
e, tampouco, é acessada via navegadores tradicionais. Devido à dificuldade de acesso, a deep web é
conhecida pelo compartilhamento de conteúdos ilegais, como pedofilia, racismo e violência, embora não
se resuma a isso.
34
Construída “interdispositivos”, por meio de computador, celular, tablets etc
35
Realizada por meio de hipertexto.
56
Em entrevista concedida ao pesquisador Bruno Campanella (2015, p. 169), Hine
explica que o termo “virtual”, desde a publicação de seu livro Virtual Ethnography, nos
anos 2000, foi relevante para “descrever uma ampla comunidade de pesquisadores, que
se esforçava para encontrar soluções para questões semelhantes envolvendo nossa
capacidade de dar sentido à Internet”. No entanto, a autora conclui que, cada vez mais, o
uso do termo se torna “inútil”, a medida em que a intenção não é fundar uma outra prática
etnográfica, mas sim conferir uma “continuidade de princípios metodológicos”, seja na
Internet ou em qualquer outro contexto social, consideradas as suas devidas
particularidades (idem, p. 170). Optei, então, por referir-me à metodologia de pesquisa,
no YouTube, apenas como “etnografia”, embora utilize o termo “etnografia digital” no
título da tese, a fim de situar o campo de estudo.
A partir destas explanações, pretendi mostrar que as redes não são algo dado, não
são um lugar no qual “entramos” (FREITAS, 2017). Tomando emprestadas as palavras
de Segata (2016, p.108), “elas são inventadas e inventivas”, a partir de decisões e
descrições construídas na relação entre antropólogos, interlocutores e elementos
empíricos relevantes para a pesquisa. Nesta direção, Miller (2013) enfatiza que não existe
“a” Internet ou “o” Twitter, “o” Facebook, “o” YouTube, uma vez que os modos de uso
e atuação destas tecnologias dependem de contextualizações muito mais amplas que
descrições generalistas. Ademais, seus dados são altamente fluídos e mutáveis, de acordo
com os períodos históricos, sociais e geográficos de acesso.
Dito isto, as subseções seguintes visam apresentar o YouTube como “nova mídia”
digital, a partir de três eixos que se costuram na construção desta etnografia: as “histórias
oficiais” a respeito da “inovação” da plataforma; a minha entrada neste território e, por
fim, as narrativas de Sabrina e Marília sobre visibilidade e “representatividade” na
Internet.
O YouTube foi lançado, em 2005, por Chad Hurley, Steve Chen e Jawed Karim,
ex-funcionários do site PayPal. Naquele período, já havia plataformas semelhantes para
compartilhamento de vídeos na Internet. A novidade, porém, consistia no aprimoramento
tecnológico da ferramenta de upload de vídeos, exigindo dos usuários apenas
conhecimentos técnicos superficiais. Somado a isso, o pioneirismo se concentrava em não
limitar o número de vídeos que cada indivíduo colocaria online, além de gerar URLS e
57
códigos HTML que podiam ser incorporados a outros sites, tais como blogs pessoais
(BURGESS E GREEN, 2009).
De acordo com Burgess e Green, embora não haja apenas uma versão para a
histórica popularização do YouTube, todas elas reforçam a imagem dos “empreendedores
de garagem” do Vale do Silício, no qual jovens – humildes, porém visionários -- alcançam
sucesso global rapidamente. Em 2006, a plataforma foi comprada, pela Google, por 1,65
bilhão de dólares, considerada a compra mais cara da história da empresa36. No mesmo
ano, a Revista Time elegeu o YouTube como a “invenção do ano”, devido a sua
capacidade de transformação de pessoas comuns em “estrelas” ou em “vexames”
internacionais (SIBILIA, 2008). Se, incialmente, a proposta do YouTube consistia em ser
apenas uma biblioteca audiovisual -- Your Digital Video Repository (“Seu Repositório de
Vídeos Digitais”) --, hoje, o vasto conteúdo disponibilizado é qualificado como original,
criativo e colaborativo (GEHL, 2009). Os pesquisadores Jean Burgess e Joshua Green
(idem, p.23) enfatizam que, para o YouTube, “a cultura participativa não é somente um
artifício ou um adereço secundário; é sem dúvida, seu principal negócio”.
Assim como outras tecnologias digitais, o YouTube, promove efeitos na vida
social e econômica de seus usuários. De acordo com Deborah Dure e Patrícia Ceolin
(2017:06),
36
Cf. http://g1.globo.com/Noticias/Tecnologia/0,,AA1304481-6174,00.html
37
https://www.youtube.com/intl/pt-BR/yt/about/press/
58
debate sobre copyright e direitos autorais. De acordo com informações obtidas no site
oficial, o YouTube tem mais de 1 bilhão de usuários e está disponível em 91 países e 80
idiomas, sendo acessado, principalmente, por meio de dispositivos móveis (mais de 70%
do tempo de exibição). É também nesta página que descubro e assisto ao vídeo inaugural
da plataforma, publicado em abril de 2005, por um dos criadores da ferramenta. O vídeo
em formato 4x3, sem nenhum tipo de edição, tem apenas 18 segundos e mostra um rapaz
na frente de dois elefantes, em um zoológico não identificado. Este vídeo foi intitulado
como Me at the zoo (Eu no zoológico, em português) e, quase 15 anos após sua
publicação, ultrapassa 60 milhões de visualizações.
Já o vídeo Hey Clip, publicado em 2007, é reconhecido como um dos primeiros
sucessos do YouTube, de modo que, até hoje, figura entre os mais populares da
plataforma de vídeos. Em 3 minutos e 31 segundos, a gravação mostra duas adolescentes
dublando a música Hey, da banda Pixies, enquanto dançam e fingem tocar guitarras,
dentro de um quarto.
Tive conhecimento do “fenômeno” Hey Clip a partir do livro de Brugess e Green
(2009). A análise dos autores mostrou que a relevância da gravação se dá pela
compatibilização entre amadorismo e “criatividade vernacular”, marcados na fronteira
entre exibicionismo e brincadeira juvenis. Após assisti-lo, em 2019, segui até a seção de
comentários, onde uma das mensagens, em inglês, me chamou a atenção, por evidenciar
as conexões que me levaram à busca daquele vídeo: “Eu estou escrevendo minha
dissertação sobre os usos das novas mídias e este vídeo é, literalmente, mencionado na
maioria dos livros acadêmicos. Eu não posso deixar de escrever sobre isso. Esse video
tem valor acadêmico agora.” (Tradução minha. Grifo meu)
Outro exemplo de sucesso bastante citado entre a bibliografia que compreende o
YouTube como fenômeno cultural é o caso Lonelygirl15, uma jovem cujos relatos
comoventes sobre a relação difícil com seus pais religiosos mobilizaram a atenção de
grandes veículos da mídia, como The New York Times. Em meio a especulações acerca
da autenticidade e da legitimidade dos vlogs38 gravados por Lonelygirl15, revelou-se que
se tratava de uma experiência realizada pelos produtores de filmes independentes, Mesh
Flinders e Miles Beckett (FINE, 2006; BRUGESS E GREEN. 2009; SIBILIA, 2008)
Mesmo após a “revelação” da trama ficcional, os produtores deram continuidade à série,
que cativou certo público, nos Estados Unidos.
38
Vlogs são uma variante da palavra videoblogs, que representam gravações com temáticas cotidianas,
pessoais, além de atenderem a uma frequência maior do que os demais formatos de publicações.
59
A partir da consolidação de uma audiência, youtubers (também chamados de
“criadores de conteúdo” e, por vezes, de “influenciadores digitais”) se transformam em
ídolos, que, no limite, parecem mais íntimos e mais próximos do que os “artistas da
televisão”. Ao final de cada ano, a Google divulga um vídeo chamado YouTube Rewind,
que tem a intenção de celebrar vídeos, pessoas e músicas que marcaram o ano, na
plataforma digital. Em 2018, oito canais brasileiros receberam destaque na retrospectiva
-- Afro e Afins, Whinderson Nunes, Desimpedidos, Muro Pequeno, Me Poupe!, Diva
Depressão, Manual do Mundo e 10Ocupados.
60
somado ao conforto do sofá e ao cancelamento da TV por assinatura, certamente, favorece
minha frequência diária de acesso à plataforma.
Ao longo da etnografia, grande parte do material foi acessado por mim, pela
primeira vez, por meio da Smart TV. Em momentos posteriores, foram revistos no laptop
e no celular. Um dos diferenciais do trabalho etnográfico, na Internet, é poder assistir,
várias vezes, ao conteúdo de pesquisa, em qualquer lugar e tempo, desde que se tenha um
dispositivo conectado à Internet: celular, tablet, computador, laptop etc. Portanto, não
somente o espaço da minha casa figurou no trabalho de acesso, observação e análise dos
conteúdos, mas também cafés e bibliotecas do Centro e Zona Sul do Rio de Janeiro, onde
pude assistir e reassistir aos vídeos do Canal 1 e do Canal 2. Notadamente, o celular se
tornou um instrumento central durante o acompanhamento dos conteúdos publicados por
Sabrina e Marília nas redes sociais, como fotos, textos e lives39. Por meio dele, também
recebia notificações, via aplicativo do YouTube, que avisavam sobre os vídeos recém
adicionados aos canais.
Acessado por meio do computador, a tela inicial do YouTube40 nos apresenta uma
caixa de pesquisa centralizada entre o logotipo da empresa e uma pequena barra de
atividades, onde estão se encontram quatro botões: “criar um vídeo ou uma postagem”;
“aplicativos do YouTube”; “mensagens” e “configurações”. Ainda na página de início, a
plataforma apresenta pequenos cards, que se dividem em duas categorias de vídeos: “em
alta” (trending) e “recomendados”.
Os vídeos “em alta” mostram um número limitado de produções mais assistidas
nos territórios nacional e internacional, de acordo com o país selecionado pelo usuário.
Esta função é atualizada diariamente e visa “dar destaque a vídeos que podem agradar
vários espectadores.”41 Segundo a página de suporte do YouTube, a classificação “em
alta” é construída com base na contabilização do alcance de determinado vídeo em certo
período de tempo. A plataforma também oferece a possibilidade de assistir aos vídeos
“em alta” segundo quatro categorias: música, jogos, notícias e filmes.
39
Lives são transmissões ao vivo, função que está disponível em variadas mídias digitais, como YouTube,
Instagram e Facebook.
40
https://www.youtube.com/
41
Informações obtidas na página de suporte: https://support.google.com/youtube/answer/7239739?hl=pt-
BR
61
Por sua vez, os vídeos “recomendados” atendem a uma escolha algorítmica, feita
pelo YouTube, por meio do gerenciamento do conteúdo consumido pelo usuário na
plataforma. Apesar da página de suporte não explicar quais dispositivos atuam nessas
recomendações automáticas, um experimento realizado pela pesquisadora Zeynep
Tufekci42 levantou a hipótese de que os algoritmos utilizados pelo YouTube oferecem
uma “radicalização” do conteúdo pesquisado incialmente, a fim de manter o usuário
conectado, por mais tempo, na rede de compartilhamento de vídeos. Durante um trabalho,
em que precisava coletar falas do atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, a
pesquisadora percebeu que o YouTube passou a recomendar vídeos desenvolvidos e
publicados pela ultradireita americana. De acordo com Zeynep Tufekci, o mesmo se deu
com assuntos cotidianos, fora do campo político. No entanto, pouco se conhece sobre a
“caixa preta” dos algoritmos, apesar das inúmeras hipóteses e mal-entendidos populares
que circulam sobre eles. Já ao final da página principal do YouTube, tem-se acesso a
botões que nos dirigem a novas páginas, com conteúdos específicos voltados para a
imprensa, criadores, publicidade e desenvolvedores, além de questões sobre privacidade,
políticas e segurança da empresa.
Ao visitar a página institucional do YouTube, percebi a oferta de pequenos textos
sobre a missão e os valores da empresa. Mas, o que mobiliza minha atenção é um vídeo
de 1 minuto e 48 segundos que condensa trechos de vídeos de diferentes youtubers mundo
afora. Entre as cenas, há recortes de pessoas rindo, cantando, chorando, dançando e
participando de manifestações sociais. A sequência de imagens é acompanhada por uma
música de fundo e uma narração em off que informa ao público sobre o potencial
transformador da plataforma, “um motor para o nosso progresso”:
Veja esses momentos, estas histórias, segredos, revelações dos quatro cantos do
mundo. Cada vídeo é uma oportunidade de vestir a pele de outra pessoa. Uma
oportunidade de ver como são tão incríveis e generosas. E os quão engraçados e
vulneráveis os seres humanos podem ser. (...) Este é o retrato mais verdadeiro, puro
e natural de quem somos como pessoas. Uma celebração do que os seres humanos
podem fazer. Uma prova do nosso potencial. Um motor para o nosso progresso. (...)
42
https://www.wsj.com/articles/how-youtube-drives-viewers-to-the-Internets-darkest-corners-1518020478
https://www.nytimes.com/2018/03/10/opinion/sunday/youtube-politics-radical.html
62
Isso é o que acontece quando damos voz às pessoas, uma oportunidade de serem
ouvidas, um palco para serem vistas. (...) Seja qual for o seu talento, aqui, pode se
tornar um sucesso. Aquela pessoa que pensava não “ser ninguém” pode “ser
alguém”; voz que pensava que não seria ouvida pode começar um movimento.
Mesmo quando você se sente sozinho no mundo, aqui pode encontrar gente como
você. (...) Esse é o poder do YouTube! É o seu poder...de todos vocês! [grifos meus]
O vídeo termina com uma tela branca, onde se lê: “Somos o YouTube. Nossa
missão é dar voz a todos e mostrar o mundo a todos” [grifos meus], seguida do logotipo
da empresa: um botão branco, símbolo do play, sob um fundo vermelho.
43
A campanha circulou entre o Instagram, o Facebook e o site da revista. Cf.
https://vogue.globo.com/moda/moda-news/noticia/2016/08/somos-todos-paralimpicos-campanha-com-
cleo-pires-e-paulinho-vilhena.html
63
Na ocasião, por meio de redes sociais online, acompanhei a indignação de grupos
de pessoas com deficiência, que exigiam a retratação da revista Vogue, bem como da
agência de publicidade envolvida no trabalho e dos próprios atores44. Em nota publicada
online, a revista se defendeu, atribuindo a ideia da campanha a Cleo Pires e Paulinho
Vilhena, os quais também haviam sido nomeados como Embaixadores do Comitê
Paralímpico no Brasil.
Até janeiro de 2019, o primeiro vídeo do Canal 1 contava com mais de 30 mil
visualizações. Assumindo um posicionamento crítico à campanha
#SomosTodosParalímpicos, Sabrina aciona a “representatividade” como categoria de
contestação da ausência de protagonismo das pessoas com deficiência, na mídia e nos
espaços sociais. Nos termos da youtuber,
44
Em agosto de 2016, jornais da grande mídia e sites voltados às pessoas com deficiência repercutiram o
caso: https://oglobo.globo.com/esportes/campanha-com-atores-paralimpicos-gera-polemica-cleo-pires-se-
defende-19987262
64
não fazem nada, nunca fizeram nada para que o deficiente tivesse um maior suporte,
para que o deficiente pudesse andar na rua do Rio de Janeiro. (...) Eu penso nisso o
tempo todo! Dentro das Universidades Federais, a gente não tem acessibilidade para
cego, para surdo. Nós não temos acessibilidade para deficiente físico. Cadeirante
mesmo está fodido! E, além disso, as pessoas não respeitam as vagas [nos
estacionamentos] de deficientes. (...) Não tenta aparecer como uma pessoa que está
fazendo algo pelos deficientes45, sendo que você está querendo só parecer legal na
Internet! [grifos meus]
45
Nos primeiros vídeos do canal, Sabrina usava o termo “deficiente”, que, a partir do sétimo vídeo, é
corrigido para “pessoas com deficiência”, adequando-se ao proposto pela Convenção sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência (CDPD).
46
É imprescindível mencionar que, nem sempre, estas ações são orgânicas, uma vez que, nas redes sociais,
há bots (diminutivo de robots) - softwares que simulam a atuação humana e são programados para disparar
hashtags que se tornam trending topics, como visto nas eleições presidenciais de 2018, no Brasil. Hoje, há
aplicativos disponíveis para verificar a confiabilidade dos perfis no Twitter, como o PegaBot, desenvolvido
por pesquisadores do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio)
65
Recentemente, a #Metoo (#Eutambém, em português), recebeu o apoio da atriz
hollywoodiana Alyssa Milano, o que foi considerado crucial para a expansão da
mobilização contra o assédio, em diversas parte do mundo. Portanto, a adesão de
celebridades e famosos é, em geral, compreendida como contribuição no alargamento da
promoção de uma hashtag, que, inclusive, tem potencial de se transformar em ações que
ultrapassam o contexto online (BRITO, 2017)
Situando-nos sobre seu “lugar de fala” enquanto mulher com deficiência, Sabrina
constata que, ao mesmo tempo em que a Internet visibiliza questões a respeito de grupos
sociais minoritários, também faz com que pessoas apenas queiram “parecer legais” ao
aderirem a um movimento. Segundo Sabrina, a sua vivência como mulher com
deficiência confere legitimidade para discorrer sobre o assunto, abordando não somente
perspectivas particulares, mas focalizando opressões estruturais experimentadas,
coletivamente, por um grupo identitário:
Eu acho que é foda para caralho ter uma pessoa com deficiência falando sobre coisas
de pessoas com deficiência. Aliás, se tem uma coisa que eu acho muito importante é
a representatividade na hora que você vai falar de um assunto. Eu cansei de ir a fóruns
e conferências de pessoas com deficiência em que você não vê pessoas com
deficiência. Você vê pessoas que não possuem deficiência falando de dados e assuntos
sobre pessoas com deficiência, porque elas trabalham com isso, mas elas não têm a
vivência que nós temos, que eu tenho.
47
O site Inclusive é um projeto autônomo de inclusão social, por meio da produção e veiculação de
conteúdos informativos. Cf: http://www.inclusive.org.br/quem-somos
66
Nos momentos finais do primeiro vídeo publicado no Canal 1, Sabrina deixa a
seguinte provocação: “Como que ninguém pensou em procurar realmente pessoas que
são deficientes para fazer essa capa? Pensa que luxo eu na capa da Vogue. Nós somos
reais, (....) Vogue!” [grifo meu]. Ao mostrar-se “real”, por meio do YouTube, Sabrina vê
a oportunidade de reconstruir as narrativas hegemônicas da deficiência, a partir da
sustentação de outros pontos de vistas. Neste contexto, a boa relação de Sabrina com o
“bracito” e as altas doses de humor e ironia contidas em suas narrativas complementam a
“novidade” do Canal 1.
Em pouco tempo, o canal alavanca uma audiência formada por pessoas com e sem
deficiência, assim como atinge o mercado midiático e publicitário interessado na
“representatividade”. Conscientemente ou não, o Canal 1 passa a operar na lógica da
“YouTubidade” (BURGESS E GREEN, 2009), para a qual o conteúdo “original” e
“criativo” é porta de entrada para a transformação de ninguém em alguém, que, então,
ganha voz e começa um movimento48. Neste trajeto, consolidam-se fluxos de produção de
vídeos, métricas baseadas em visualizações, inscrições, comentários, likes e dislikes. A
criatividade orgânica é, então, acompanhada da monetização dos vídeos pelo YouTube,
assim como convites para participação em programas de TV, campanhas, eventos e
colaboração em vídeos junto a outros youtubers49. No capítulo 5 desta tese, abordarei
mais detalhadamente as dinâmicas e tensões entre intimidade, dinheiro e
“empoderamento”.
Em abril de 2017, a visibilidade do canal rendeu o primeiro convite para estrelar
a campanha publicitária de uma famosa marca de cosméticos nacional. Enquanto se
posiciona frente à câmera, partindo um kiwi, Sabrina propõe a seu público uma conversa
“mais tranquila, casual e íntima”. A ideia deste vídeo é “fazer um balaço” sobre os
caminhos não premeditados que o canal a proporciona:
Eu estava pensando sobre como as coisas aconteceram na minha vida depois que eu
comecei a fazer esses vídeos. Eu nunca tive nenhum tipo de sonho de fazer vídeos,
48
Os termos em itálico são referências ao vídeo publicado na página institucional do YouTube e citado na
subseção 2.1.2 desta tese.
49
A fim de aumentar o intercâmbio entre pessoas e os números de acessos, visualizações e engajamentos
nos canais, o YouTube estimula que seus criadores de conteúdo façam vídeos em colaboração, as chamadas
colabs. Esta prática envolve um convite para que um youtuber participe do canal do outro ou vice-versa, a
fim de discutir um assunto de interesse de ambos os canais. Pode-se lançar também campanhas virtuais em
que diversos criadores de conteúdo são convidados a participar. Usualmente, estas campanhas envolvem o
uso de uma hashtag, que nos permite acompanhar o grau de envolvimento com a questão abordada.
67
me tornar youtuber. Eu nem tenho muito conhecimento sobre câmeras, sobre áudio,
sobre roteirização. Eu comecei muito crua, eu comecei porque tinha algo a dizer que
estava me incomodando. Eu nunca tive essa vontade de fazer vídeos para o YouTube.
Eu nunca tive essa tendência, até que eu percebi que seria uma ferramenta muito boa
de representatividade, que era uma coisa que, realmente, me incomodava e me fez
passar por diversas situações de não aceitação, pelo fato de que eu era a única menina
da minha turma, por exemplo, que não tinha um braço, pelo fato de que eu não via
pessoas que não tinham um braço numa campanha publicitária. Eu não via isso. Então,
por muito tempo, me condenei por ter nascido assim, porque eu não conseguia ver o
lado positivo disso. (...) Ano passado, eu jamais imaginaria que, hoje, eu estaria
estrelando uma campanha publicitária. Na minha cabeça, isso jamais aconteceria. (...)
Eu tinha muitas barreiras aqui [aponta para a cabeça]. E parte disso é porque eu não
tinha a perspectiva de uma pessoa com deficiência me dizendo: “Olha, amiga, vai ficar
tudo bem”. Agora, eu estou tendo a chance de falar para vocês que: ó, vai ficar tudo
bem, está ficando tudo bem”. Temos representatividade na mídia? Ainda não, mas
estamos conquistando espaço e isso já é maravilhoso .
Meses após sua primeira campanha comercial, Sabrina atuou como palestrante em
um TEDx, em sua cidade natal. O vídeo da apresentação foi disponibilizado no Canal 1,
a fim de “reagir” a sua própria fala no evento. Ao longo da exposição, que tem pouco
mais 8 minutos de duração, a voz trêmula de Sabrina, que está no centro do palco do
TEDx, denuncia o nervosismo da jovem youtuber. Na ocasião, mais uma vez, a
“representatividade” é acionada para reforçar a importância do reconhecimento de sua
narrativa e sua imagem no âmbito público.
A youtuber inicia a palestra se apresentando ao público e, já no início de sua fala,
destaca elementos que serão abordados, inúmeras vezes, em outros vídeos do canal:
descoberta da deficiência, autoaceitação, amor próprio. Neste primeiro momento,
contextualiza a relação com a deficiência, mantendo o tom irônico e bem-humorado,
como costume. O “bracito” é identificado como uma “pessoa” que chama mais atenção
do que aquela que o “carrega”, a “Sabrina do bracinho”, como a youtuber é,
recorrentemente, adjetivada por outras pessoas:
68
meus lindos olhos verdes, mas sim por causa do meu bracinho [levanta
o bracinho em direção à plateia]. Aliás, gente, deixa eu apresentar o meu
bracinho para vocês. Não precisa ter medo, ele não morde, ele é um fofo
e ele tem uma personalidade ótima. Eu e o bracinho, nós nascemos
juntos. (...) Uma pessoa sempre se destacou mais e essa pessoa foi o meu
bracinho. Ele sempre chamou mais atenção do que eu. Eu queria ser a
Sabrina, mas eu nunca fui só a Sabrina. Eu sempre fui a “Sabrina do
bracinho”. [Suspira] Por conta disso, a gente teve uma relação muito
complicada. Acabava que eu tentava esconder ele de todas as formas
possíveis.
(...) Eu queria ter dois braços, eu queria passar despercebida na rua.
A boa relação com o “bracito”, de acordo com Sabrina, foi construída ao longo do
tempo. Durante sua trajetória de vida, a falta de “representatividade”, sobretudo na mídia,
se apresentava como uma das principais barreiras à autoaceitação. Sabrina não conhecia
ninguém “como ela” e, deste modo, suas referências se tornavam limitadas.
(...) eu tive que olhar para mim e perceber que eu nunca ia ter um braço. Eu lembro que isso
foi muito difícil para mim, porque eu era a única pessoa da minha turma que não tinha um
braço. Eu era a única pessoa que não tinha um braço que eu conhecia. Eu não via ninguém
na TV, eu não via ninguém no teatro, eu não via ninguém no filme. Até que eu assisti a
Edward Mãos de Tesoura. E eu lembro que eu amei o filme, porque, pela primeira vez na
vida, um protagonista não tinha mãos! (...) Eu vivi a minha vida toda a espera de
representatividade. E ela não chegava. Quando a Internet chegou, eu acho que ninguém
contava com a força dela para dar voz a opressões estruturais da sociedade. [grifos meus]
Nas últimas décadas, a veiculação das imagens das pessoas com deficiência tem
sofrido grandes alterações e a escrita ocupou um lugar privilegiado na reconstrução de
narrativas e imagens de pessoas com deficiência. Couser (2013) demonstra que o final do
século XX presenciou um aumento, sem precedentes, nas autobiografias escritas por
pessoas com deficiência, nos Estados Unidos. Já a veiculação por meio digital,
principalmente, por ferramentas audiovisuais, permitiu a materialização das pessoas com
deficiência e a expansão da concepção pública de corporalidade (embodiment) e cidadania
(GINSBURG, 2008). Portanto, a centralidade da questão está em perceber que as novas
69
possibilidades de autorrepresentação remodelam as pessoas com deficiência como
agentes criativos e potentes, que resistem às convenções de exclusão (idem).
Marília nos traz outra dimensão sobre a “representatividade” de pessoas com
deficiência: a política. Com base na análise de suas narrativas, é possível afirmar que o
termo “representatividade” foi o foco de sua campanha política, ocorrida entre junho e
outubro de 2018.
Durante o discurso realizado para a pré-candidatura à deputada federal, publicado
no YouTube, Marília identificou a importância das plataformas digitais e, em especial, a
viralização de um de seus vídeos, para que ela se tornasse uma “referência” nas agendas
de pessoas com deficiência e LGBTs no Brasil:
(...) Por volta de 10 horas da noite, um mês após ter sido gravado, a gente solta esse
vídeo [no Facebook] e, quando dá meia-noite, ele completa 1 milhão de visualizações.
A minha história foi parar em tabloides, em vários blogs do mundo todo, páginas
importantíssimas dentro do Brasil repostando a frase onde eu disse ser “foda para
caralho”. E isso alavanca e eu alcanço meu próximo objetivo, que é ampliar esse
debate em escala nacional. Hoje, eu sou o rosto referência LGBT e de pessoas com
deficiência. E agora, qual será o meu próximo objetivo? Com 23 anos, eu já começo
a circular o Brasil todo pregando a minha história. (...) E aí, quando eu vejo pessoas
fodas dizendo para mim: “por que não entrar para o campo político? Por que não?
Vamos tentar, por que não?” Aí, eu levo um susto por saber que o meu corpo será
instrumento de novo do povo e que, talvez agora, eu tenha a chance de construir para
o povo. (...) Eu cogitei muito não aceitar, mas, durante todos esses anos, eu venho
pregando que a gente deve ocupar todos os espaços, que a gente deve ‘bater o nosso
cabelo’, lindamente, em todos os espaços. [grifos meus]
70
veem aqui? Então, a gente vai ter que começar a falar de representatividade dentro
daquela merda daquele Parlamento! [aplausos] [se emociona]. (...) E aí, eu trago o
meu próximo objetivo: a minha candidatura à deputada federal por Minas Gerais.
[aplausos] Esse é o meu próximo objetivo: falar por essas pessoas que não são
lembradas, falar por mulheres, falar por LGBTs, falar por pessoas com deficiência.
Não dá para negar as minhas principais bandeiras: meu corpo carrega isso. [grifos
meus]
Hoje, a associação atende mais de 600 pessoas. Então, presidir uma associação foi
bem interessante, eu aprendi bastante. E agora [quero] entrar de cabeça nesse jogo
político em busca de mais representatividade, em busca de fazer daquele lugar
[Câmara dos deputados] um lugar mais plural, mais colorido, mais diverso. A gente
luta para que mais mulheres possam ocupar esse lugar. A gente luta para que mais
movimentos sociais possam ocupar esse lugar de poder, a gente luta para que mais
LGBT’s estejam dentro do poder, que pessoas com deficiência possam, agora, pautar
os seus direitos e fazer com que suas vozes sejam ouvidas de fato mesmo, né?
Você olha para aquele lugar [Congresso Nacional] e só vê homens, brancos e nem um
pouco preocupados com a sociedade. E aí, é muito isso: eu sou uma pessoa de 23 anos
e tive a audácia e a coragem para ocupar esse espaço. Por que não? Por que não uma
jovem de 23 anos? Por que não uma pessoa com deficiência? Por que não alguém
71
pobre? Por que não pessoas do povo mesmo, saca? A gente faz muito esse
questionamento.
50
Gíria que seria equivalente à ideia de superioridade.
72
Assim como o sexismo, o racismo e a homofobia/lesbofobia/transfobia, o
capacitismo possui múltiplas formas, contudo, sabe-se que o termo ainda é pouco
mencionado no que tange a situações de preconceito, violência ou discriminação
motivadas pela deficiência. Diniz e Santos (2010, p. 10) esclarecem que, ao contrário de
outras formas de opressão, “no caso da deficiência, há uma ausência no léxico ativo da
língua portuguesa. Nossa incapacidade discursiva é um indicativo da invisibilidade social
e política desse fenômeno”. A medida em que Sabrina e Marília constroem suas
respectivas narrativas com base na mídia e na política, é dentro destes campos que situarei
as discussões sobre capacitismo, o qual está entrelaçado às representações públicas das
pessoas com deficiência.
Em um vídeo sobre a representação de pessoas com deficiência na TV, a youtuber
Sabrina focaliza a mídia tradicional como locus majoritário de reprodução de estereótipos
negativos e, até mesmo, de falta de interesse em relação à temática da deficiência.
Segundo esta análise, entre os clichês e padrões discursivos, naturalizados
midiaticamente, apenas dois caminhos se revelam como possíveis para as pessoas com
deficiência: a) a ideia da diferença corporal/intelectual/psicossocial como fardo e b) a
noção de que a deficiência é, em si mesma, objeto de inspiração para pessoas sem
deficiência.
Nesse sentido, Sabrina afirma não se sentir tratada com “naturalidade” pela mídia
televisiva. Ao reconhecer a falta de “representatividade” neste espaço, sugere que as
pessoas com deficiência “saiam dos armários”, intencionando uma mudança de
paradigmas. A youtuber complementa o raciocínio formulando algumas ideias que podem
ser incorporadas pela mídia de massa, a fim de valorizar o relato dessa população na TV,
sem, necessariamente, abordar assuntos relacionados à deficiência:
A gente precisa parar de esconder a deficiência, a gente precisa sair do armário [abre
os braços] e poder ser visto. (...) ‘Mas, como a mídia pode fazer isso? Como ela pode
incluir sem discriminar?’ Elas pode fazer isso de várias formas. Eu vou dar aqui
algumas sugestõezinhas, tá? Bom, ela pode incluir pessoas com deficiência em
campanhas publicitárias. (...) Tenho certeza que seria massa! Outra ideia: por que a
imprensa também não inclui uma pessoa com deficiência quando vai falar sobre
qualquer outra coisa, quanto vai falar de cinema, quando vai falar de religião, quando
vai falar de moda? A mídia tem que entender que pessoas com deficiência não são
vítimas e também não são obrigatoriamente heroínas. Elas são pessoas humanas que
73
estão, também, incluídas na sociedade, que trabalham, vivem... E também a mídia
deve se atualizar dos termos corretos para falar de pessoa com deficiência. [grifos
meus]
Para além, sugere a leitura do guia para a imprensa, disponibilizado pela Gadim
Brasil (Aliança Global para Inclusão das Pessoas com Deficiência na Mídia e
Entretenimento). Este manual foi formulado por militantes da deficiência no Brasil,
seguindo as orientações do artigo 8º da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência (CDPD), que entende que os Estados Partes devem “incentivar ativamente
ações e parcerias para promover uma melhor e mais autêntica representação de pessoas
com deficiência nos meios de comunicação de todo o mundo” (BRASIL, 2008;
ALMEIDA, s.d)
Em agosto de 2018, Sabrina retoma a crítica ao discurso inspiracional enquanto
forma de capacitismo simbólico. Neste conteúdo, propõe um “desabafo honestão” sobre
o tema:
Quando você coloca elas [as pessoas com deficiência] dentro de um ‘saco’ e diz que
todas elas são inspiradoras e motivacionais e você só mostra as [histórias] que são
inspiradoras e motivacionais, você não mostra essas pessoas em outros locais,
ocupando outras histórias, sendo protagonistas de outras histórias que não sejam de
superação, que não sejam histórias do exemplo. Você transforma essas pessoas em
objetos e nós não estamos aqui para sermos objetos. (...) Você não vê uma pessoa
com deficiência sendo seu professor, sendo a sua manicure, é muito difícil [ver isso],
não é? Então, você só vê essa pessoa como uma forma de te inspirar ou de te fazer
sentir melhor pelo fato de que você não está nessa posição. [grifos meus]
74
benefício do outro, culminando no que a ativista Stella Young (2014) classificou como
“pornografia inspiracional” (inspirational porn).
Marília, por sua vez, enfatiza o problema de ações políticas voltadas para a
“caridade”. A youtuber argumenta que a inexistência de “representatividade” em “locais
de poder” favorece as políticas públicas assistencialistas e, em um dos vídeos publicados
no Canal 2, é categórica: “Não dá mais para continuar a mercê da caridade de quem não
nos representa. (...) O lugar do poder também nos pertence. Abram os caminhos, que
nossos corpos vão passar!”
No mesmo vídeo, vemos cenas de um homem ajudando Marília a descer de uma
escada rolante e a entrar em um vagão de metrô. Assim, a youtuber prossegue a narração
em off, de forma articulada, para tratar de outros aspectos que costumam ser
desconsiderados na arena política:
Estou ciente da ausência do debate da saúde sexual e nós PCD’s [pessoas com
deficiência]. O cenário não é animador, ainda mais agora com efeitos drásticos do
congelamento das verbas da saúde. É alarmante também as perdas dos direitos sociais
em nosso país, como as reformas nas leis trabalhistas e a que pretendem fazer com a
previdência, perdas de direitos que já refletem na dificuldade de acesso ao Benefício
de Prestação Continuada da LOAS51. Vivemos em um país que não está preparado
para nos receber, afastando-nos de todas as construções sociais. [grifo meu]
51
“O Benefício de Prestação Continuada (BPC) da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) é a garantia
de um salário mínimo mensal à pessoa com deficiência que comprove não possuir meios de prover a própria
manutenção, nem de tê-la provida por sua família. Para ter direito, é necessário que a renda por pessoa do
grupo familiar seja menor que 1/4 do salário-mínimo vigente”.
Fonte: https://www.inss.gov.br/tag/loas/
75
Não, nem um pouco. Não tem nada a ver com a minha bandeira. Apesar da minha
deficiência, nunca militei nessa área. Fui executivo de empresas, sempre trabalhei na
parte financeira, com gestão de projetos. (...) Minhas pautas são relacionadas ao que
acredito que é prioridade para o Brasil e para o Rio de Janeiro: segurança pública e
desenvolvimento econômico.
76
CAPÍTULO 5
QUANTO VALE OU É POR VIEW?
143
nível – de 1 a 1000 inscritos – o curso disponibiliza uma espécie de manual de orientações
que valoriza a “autenticidade”, em busca do “sonho criativo”.
Realizado por meio da plataforma Creator Academy, o curso é constituído por 4
vídeo-aulas (cujo conteúdo original está em inglês), seguidas por textos curtos, em
português, que sintetizam a ideia de cada aula. Basicamente, as orientações atuam como
“dicas” para conquistar seguidores, impulsionar a visualização dos vídeos e efetuar o bom
uso das ferramentas de palavras-chave e de descrições, que tornam o vídeo “pesquisável”.
Em outros termos, Burgess e Green (2009) diriam que este curso propicia que “qualquer
um” adentre à lógica da “Youtubidade”. Seguindo os “primeiros passos”, o youtuber
também encontra informações sobre meios de gerar receita com o canal. Para além, há
aulas complementares, em texto ou vídeo, sobre diversos assunto, como direitos autorais,
que podem ser acessadas a qualquer momento.
Neste curso online, descobri que são os próprios criadores de conteúdo que devem
ativar a geração de receita, no YouTube, quando assim desejarem, desde que se atenda a
critérios específicos. No entanto, a ativação não garante a monetização dos conteúdos
exibidos. Para aderir ao chamado Programa de Parcerias do YouTube, o youtuber deve
preencher os “requisitos mínimos”81 descritos abaixo, os quais associam diretrizes de
comportamento a um quantitativo de inscritos e horas de exibição de conteúdo:
81
Estas são as regras mais recentes, formuladas em 2018 e disponibilizadas no site oficial do suporte do
YouTube.
82
Google AdSense é um serviço de conta online, por onde são efetuadas as transferências de dinheiro entre
a Google e o youtuber.
144
Quanto ao “comportamento” pré-estabelecido, é preciso atentar aos tipos de
conteúdo que acarretam a violação das “diretrizes da comunidade”. Na página da Creator
Academy, estão listados sob a seguinte forma:
O Google Ads (...) é uma solução de publicidade on-line que as empresas usam para
promover os seus produtos e serviços na Pesquisa Google, no YouTube e em outros
83
Dados obtidos por meio da página https://ads.google.com/intl/pt-BR_br/home/faq/
145
sites na Web. Ele também permite que as empresas escolham metas específicas para
os anúncios, como gerar mais chamadas telefônicas ou visitas ao site. Com uma conta
do Google Ads, os anunciantes podem personalizar os respectivos orçamentos e
segmentação, e iniciar ou interromper a exibição de anúncios quando quiserem.
84
Como engajamento e interação, entende-se a performance de likes, comentários, novos inscritos e
compartilhamentos, por exemplo.
146
de geração de receitas disponíveis no país, tais como o Super Chat e o Patrocínio, as quais
detém políticas específicas.
A primeira é descrita, pelo YouTube, como “uma forma divertida de interação
para fãs e criadores de conteúdo durante transmissões ao vivo”, por meio de comentários
pagos. Em resumo, durante uma transmissão ao vivo, iniciada pelo youtuber e “aberta”
ao público, o usuário encontra a possibilidade de pagar para fazer comentários, com a
finalidade de doar ou contribuir financeiramente com o criador de conteúdo. Como bônus
da ação, o comentário ficará fixado na barra de comentários do vídeo transmitido ao vivo.
Contudo, o tempo de exibição do comentário e a quantidade de caracteres utilizados na
mensagem serão diferenciados de acordo com o valor da contribuição do usuário, que, no
Brasil, varia de R$1 (um real) a R$ 500 (quinhentos reais). O pagamento é concluído via
cartão de crédito, por meio da própria plataforma de exibição de vídeos.
Em dezembro de 2018, Sabrina realizou a primeira live (transmissão ao vivo) do
Canal 1, no YouTube85. Naquele momento, a jovem pretendia discutir, com seu público,
a recente notícia da extinção do Ministério do Trabalho86 e os impactos futuros na vida
das pessoas com deficiência. Na live, ocorrida poucos meses após a eleição presidencial,
Sabrina também teceu críticas a ações caritativas voltadas às pessoas com deficiência com
fins políticos, concentrando-se na figura de Michele Bolsonaro, a primeira dama do país87.
Na live em questão, Sabrina aparece acompanhada por sua cachorrinha, dentro do
quarto, onde também é possível ver um guarda-roupa com a porta entreaberta e parte da
cama, que se encontra desarrumada. Nos primeiros 6 minutos de transmissão ao vivo, ao
se posicionar contrariamente às propostas de Jair Bolsonaro, Sabrina é chamada,
pejorativamente, de “comunista” e “petista” por alguns participantes da live, embora a
maioria dos presentes concordasse com a postura da youtuber. Em outro momento do
vídeo, Sabrina ameaça bloquear esse tipo de comentário, para que o andamento da
conversa não ficasse prejudicado.
85
Durante transmissões ao vivo, no Youtube, qualquer usuário da plataforma pode fazer comentários na
seção destina à interação entre usuários e usuários e youtuber. Os comentários são públicos e gratuitos
(basta ter realizado o login). Apenas aqueles que desejarem participar do Super Chat é que pagam pelo
comentário que ficará em evidência.
86
Na ocasião da live, o presidente recém-eleito, Jair Bolsonaro, já dava indícios que uma de suas primeiras
ações como Chefe de Estados seria reduzir o número de órgãos com status ministerial, no governo federal,
o que foi confirmado sob a Medida Provisória 870/2019, publicada em uma edição extra do Diário Oficial,
no dia 1 de janeiro de 2019, pouco após a cerimônia de posse.
87
Para uma visão mais aprofundada sobre esta questão, conferir o texto de Anahí Guedes de Mello (2019),
“A caridade de Michele Bolsonaro e o surdonacionalismo petencostal como projeto de governo”.
147
Ao total, a live teve duração de uma hora. Observei que, logo em seu início,
Sabrina sugere que os participantes deem “uma moral” a ela, participando do Super Chat.
A primeira doação recebida ocorre aos 28 minutos de transmissão, quando Sabrina ganha
R$10,00 (dez reais) de um dos participantes. A doação é comemorada, efusivamente, pela
youtuber, que diz: “[nome da participante], você acabou de ganhar espaço vip no meu
coração!”
Em seguida, é possível conferir o texto, escrito pela “doadora”, fixado no mural
de comentários e disposto no canto direito da tela do computador. A usuária, que não tem
deficiência, tece um elogio ao conteúdo produzido por Sabrina no Canal 1: “A cada vídeo
você ensina muitas pessoas que desconhecem a realidade dos PCDs [Pessoas com
Deficiência], como eu, a olhar o mundo por outro ângulo e ter mais empatia com todos!
Te adoro, Parabéns!”. Minutos depois, outro participante doa mais R$5,00 (cinco reais),
com os quais Sabrina diz já ter uma destinação: “comprar uma coxinha”. Ao longo da
live, estas foram as únicas doações de dinheiro recebidas.
Já a segunda ferramenta – Patrocínio -- permite ao usuário realizar uma
“assinatura” de seu(s) canal(is) de preferência, desde que a opção esteja disponível para
determinado canal. Ao aderir à “assinatura”, paga-se uma taxa mensal (R$7,99, no
Brasil), via cartão de crédito, cujo intuito também é apoiar o criador de conteúdo. Em
abril de 2018, Sabrina foi selecionada, pela Google, para testar a ferramenta, que ainda
se encontrava em fase experimental, no Brasil. Em uma live realizada, no Instagram,
Sabrina justifica a funcionalidade prática do patrocínio de seu canal: “Cada vez menos os
meus vídeos estão sendo monetizados. (...) Estou querendo sair do meu emprego [cargo
público], mas, para isso, preciso da ajuda de vocês [usuários].”
Aos “patrocinadores” do Canal 1, Sabrina promete uma carta escrita à mão e,
ocasionalmente, vídeos exclusivos. A página de suporte do YouTube explica que o
apoiador do canal recebe um “emblema virtual”, acoplado à foto do perfil pessoal -- uma
espécie de símbolo de distinção social (BOURDIEU, 1989), que o caracteriza,
publicamente, como “patrocinador” de determinado canal. Este emblema também ficará
visível em comentários e chats nos quais o apoiador participar.
148
plataforma. A ação ocorre, anualmente, em diversas partes do mundo e atua como
incentivo ao aprimoramento dos produtores de conteúdo. De acordo com as regras do
concurso, podem concorrer canais com, no mínimo, 10 mil inscritos, que não tenham sido
penalizados por plágio, que sejam monetizados e cujo desenvolvedor tenha mais de 18
anos. No Brasil, os youtubers selecionados recebem uma consultoria especializada em
mídias digitais e um treinamento intensivo para “produção e desenvolvimento de
habilidades”, na sede carioca do YouTube Space, localizado na região portuária do Rio
de Janeiro.
Como parte da experiência, Sabrina passou uma semana no Rio de Janeiro, onde
ficou hospedada em um hotel de alto padrão, na Zona Sul da cidade, que foi,
detalhadamente, apresentado por ela, por meio de um vlog publicado no Canal 1. Durante
o “tour” pelo hotel, a youtuber se emociona ao narrar o reconhecimento de seu trabalho
na Internet:
Se não fossem vocês [inscritos no canal], eu não sei se eu continuaria fazendo esses
vídeos, eu não sei se eu teria pique para fazer esses vídeos, porque isso dá um trabalho
gigantesco e o retorno é muito pouco. Mas, [por] esse retorno que eu estou tendo agora
e esse reconhecimento do próprio YouTube estão valendo a pena todos os perrengues
eu já passei por conta desse canal.
88
Informação obtida no site oficial do concurso.
89
Unboxing é uma modalidade de vídeo, na qual os youtubers abrem os produtos recebidos, por marcas e
parceiros, diante das câmeras.
149
concedida pelo YouTube (FIGURA 9). Segundo informações obtidas no site da
plataforma, as premiações em formato de “placas” representam o reconhecimento do
esforço e da dedicação dos youtubers em promover um trabalho autônomo e criativo.
Assim, há três tipos de premiações: prata, para criadores com mais de 100 mil inscritos;
ouro, para canais com 1 milhão de inscritos e o botão de diamante, para 10 milhões de
inscritos, considerados “os maiores criadores de conteúdo do YouTube (...) quando seu
número de inscritos ultrapassa a população das maiores metrópoles”.
Figura 9 - Printscreen que mostra a placa de 100 mil inscritos. “Alcance 100 mil inscritos e receba o Prêmio Prata
para Criadores para mostrar com orgulho para sua família, amigos e fãs.” Fonte: site YouTube Criadores.
Tal como fez com os equipamentos, a youtuber publicou um vídeo no qual aparece
abrindo a caixa com a placa, que, hoje, figura entre a decoração do cenário de gravações:
“Isso aqui é nosso!”, diz, emocionada, após retirar a “placa de prata” da caixa de papelão.
5.2 Intimidade
151
campo da deficiência, Rayna Rapp e Faye Ginsburg, junto com o de “negociação da
intimidade”, desenvolvido pela socióloga Viviana Zelizer.
No capítulo 3 desta tese, mostrei que Rapp e Ginsburg (2011) defendem a ideia
da narrativa pública da deficiência como instrumento potencial de “reescrita” do
parentesco, conceito que está convencionalmente associado à esfera doméstica
(FONSECA, 2007), assim como a noção de intimidade. Para Rapp e Ginsburg, a
ampliação de “espaços mediados de intimidade pública” – talk shows, blogs, listas de
email, grupos virtuais, websites --, por “famílias não-normativas”, são cruciais na
reconfiguração de panoramas da deficiência. A abordagem crítica das pesquisadoras
atenta para o cotidiano e as práticas íntimas da vivência da deficiência, traçando a relação
entre parentesco, reprodução e deficiência como objeto instigante para a teoria feminista
contemporânea.
As autoras apontam que, a partir do final do século XX, houve um crescimento
considerável de produções culturais que enfatizam as experiências e subjetividades de
pessoas com deficiência e seus familiares. Aproximando-se do conceito de
“representatividade”, levantado, sobretudo, por Sabrina, concluem que o “ativismo
cultural”, em espaços midiáticos, “abriu portas” para pessoas com diferentes tipos de
deficiência, que desejavam ser “parte do mundo cotidiano da mídia de massa, que, hoje,
constitui a esfera pública da maioria dos países pós-industriais” (2011, p.548).
Transformam-se, assim, a visibilidade quanto ao tema e o imaginário público em
torno de suas questões, que, em certa medida, deixam de ser privadas. Neste sentido, as
narrativas públicas são compreendidas, por Rapp e Ginsburg, como responsáveis pela
integração da deficiência na vida social da população norte-americana, mobilizando
notáveis transformações nas políticas públicas, desde a década de 1970, e,
consequentemente, o florescimento de ideais de pertencimento, direito e cidadania desta
população.
Na concepção de Zelizer (2011, p.22 e 23), as relações íntimas se vinculam a um
sistema de “vários graus de confiança”90, que lida com a gestão de conhecimentos
particularizados, tais como segredos compartilhados, rituais interpessoais, informações
corporais, consciência da vulnerabilidade pessoal e memórias de situações embaraçosas.
Ainda que a autora se detenha nas relações de cuidado, o gancho da confiança deixa
90
Zelizer anuncia a existência social de “diferentes tipos de intimidade”, o que derruba a concepção de que
certas relações íntimas seriam mais autênticas do que outras.
152
margem para extrapolarmos a compreensão do estabelecimento, manutenção e
renegociação de laços íntimos mediados pelo dinheiro.
A partir da constituição de um mercado publicitário cada vez mais interessado no
discurso da “diversidade” e da possibilidade de monetização dos conteúdos publicados
online, o território de compartilhamento de vídeos converte-se em ambiente de trabalho,
esbarrando, porém, em empecilhos morais travados na hipótese de que relações íntimas e
atividades econômicas representariam “mundos hostis” (ZELIZER, 2011). Portanto,
unindo as pontas da tese, elaboro os conceitos de “intimidade com propósito” e
“economia do empoderamento”, pretendendo minimizar os efeitos de hostilidade entre
estes “dois mundos”, como proposto por Viviana Zelizer.
91
Normalmente, termos como “não-verbal” e “severo” estão presentes na linguagem médica ou de
familiares de autistas, que se baseiam no “grau” de funcionalidade cognitivo-comportamental do indivíduo
para determinar a inserção no espectro autista.
153
insistentemente em um colar; sentada no sofá, enquanto digita em um teclado; balançando
as mãos; mexendo na água que sai da torneira do banheiro. Em um outro vídeo de
conteúdo semelhante, revela o tempo que leva para conseguir levantar do sofá de sua sala
e se dirigir até a cozinha, para ferver uma caneca de água: 7 horas.
Consideradas as limitações e particularidades de sua deficiência, a ideia de Baggs
é transpor a noção errônea de “realidade paralela” ao nível das atividades domésticas
diárias, exercidas pela maior parte das pessoas em suas vidas. A antropóloga Faye
Ginsburg (2008) entende que o vídeo de Baggs estimula a reflexão sobre os parâmetros
culturais que definem a humanidade com base em corpos considerados hábeis e capazes.
Após a publicação de In My Language, no YouTube, a história foi tema de
matérias jornalísticas por respeitados veículos de comunicação, nos Estados Unidos. O
ganho massivo de visibilidade conferiu a Baggs o título imediato de “ativista dos direitos
dos autistas”. Entretanto, a mesma visibilidade trouxe à tona relatos de pessoas que
garantem ter convivido com Baggs, anos antes à publicação de In My Language na
plataforma digital. Atualmente, estes relatos se encontram reunidos em um blog92, cuja
intenção é questionar a legitimidade das narrativas gravadas e disponibilizadas pela
jovem. Em parte deles, os depoentes pressupõem que Baggs teria algum tipo de transtorno
de personalidade, mas que jamais havia se apresentado como autista “severa”, uma vez
que podia se comunicar verbalmente, além de ter sido descrita como uma pessoa com
“vida social ativa”.
Certamente, não se trata de imaginar que Sabrina ou Marília estariam simulando
uma deficiência93. Compreendo o caso Amanda Baggs como um terreno fértil para pensar
o material coletado na Internet, estimulando reflexões mais amplas a respeito dos usos e
propósitos da intimidade, nas articulações entre os domínios público e privado nas mídias
digitais. O artigo de Manica e Rios (2017) acerca da visibilização do sangue menstrual
em performances artísticas é um exemplo dessas extrapolações. A partir da análise de
pinturas, fotografias, vídeos e postagens online que mostram e falam, publicamente, sobre
menstruação, a pesquisadoras apreendem o jogo estético-político acoplado às imagens
veiculadas.
92
O vasto material pode ser visto no blog “Presentation and Discussion of the Amanda Baggs Controversy”.
http://abaggs.blogspot.com/search?updated-max=2009-03-20T02:06:00-04:00&max-results=7
93
Apesar da deficiência física visível, Sabrina revela que, entre os comentários ofensivos recebidos no
YouTube, já foi acusada de “querer aparecer”, posto que a falta do antebraço esquerdo é considerada de
baixa relevância e não faria dela uma pessoa com deficiência.
154
Imediatamente, a temática da intimidade me direciona à obra clássica de Richard
Sennett, intitulada O declínio do homem público (1999 [1977]). O autor parte das
transformações sociais e históricas, desde a queda do Antigo Regime ao estabelecimento
da “nova cultura urbana, secular e capitalista”, a fim de marcar a ascensão da
individualidade, da personalidade e da vida íntima como valores relacionados à
autenticidade e legitimidade do “eu”, que compõem o imaginário público da vida
moderna.
Ampliado entre os séculos XVIII e XIX, o significado contemporâneo da palavra
“público” separa não somente a vida social do âmbito familiar/ doméstico, mas inclui
grupos sociais complexos e díspares. Consequentemente, é na vida familiar que se
instaura a ideia de refúgio, mantida pela idealização familiar burguesa, em oposição direta
à esfera pública, tida como normativa, esvaziada, impessoal e moralmente inferior.
Segundo Sennett, a expansão do capitalismo industrial, acompanhada da superposição do
privado em relação ao público, alicerçou a credibilidade de figuras que se apresentam no
âmbito público (incluindo personalidades políticas). Em sua visão mais pessimista, no
entanto, o autor alega que a “tirania da intimidade” culminaria em um paradoxo da
visibilidade e do isolamento, tornando o público e o privado esferas irreconciliáveis, na
vida moderna.
As discussões levantadas pela filósofa feminista Susan Okin (2008) interessam a
estas reflexões, por sua interessante observação quanto à falta de clareza e definição na
utilização teórica dos termos “público” e “privado”, que permitem que a natureza política
da família94 seja ignorada, mesmo no campo acadêmico. Nesta direção, a autora também
discute as configurações históricas do par público/privado, mas, parte de uma perspectiva
de gênero, com a qual captura a concepção moderna e liberal da “privacidade” como
direito que diz respeito apenas a alguns indivíduos -- no caso, homens, adultos e chefes
de família, enquanto os demais membros da esfera privada (mulheres e crianças) podem
ser “legitimamente controlados” (idem, p.308).
Adentrando o contexto das mídias digitais, Patricia Lange (2008) subverte a lógica
da separação público/privado, que nos livra da armadilha de analisar a exposição íntima
94
Okin (2008) é enfática ao afirmar que John Rawls, um renomado teórico da justiça norte-americano,
negligenciou qualquer discussão sobre a divisão do trabalho entre os sexos ou sobre a justiça interna das
famílias. Admite também que feministas do século XIX e início do século XX não privilegiaram a
problematização destas questões.
155
sob a ingerência da perda compulsória da privacidade. Em seu estudo sobre o
desenvolvimento de relações sociais (social networks, no original) entre usuários do
YouTube, Lange formula os conceitos de “publicamente privado” e “privadamente
público”, visando apontar as estratégias e dinâmicas envolvidas no compartilhamento e
acesso de vídeos na plataforma. Para Lange, abordar ou não informações a respeito da
identidade pessoal varia de acordo com necessidades individuais, mas também midiáticas.
Isto posto, o trabalho de Lange sintetiza a ideia de que YouTube é um dispositivo
digital, público e gratuito, cujas experiências subjetivas e informações íntimas podem ser
divulgadas, bem como podem ser resguardadas nos vídeos publicados, a depender tanto
dos propósitos de quem as publica na rede quanto das limitações técnicas da plataforma.
Em uma ponta do espectro, pode ser utilizado por celebridades para interagir de modo
mais “personalizado” com os fãs, contando com grande apelo publicitário e midiático,
assim como, na outra ponta, um canal pode conter apenas vídeos privados para amigos
ou grupos específicos.
Seja qual for a opção, a autora aponta para a formação de relações sociais
complexas, as quais denominei como relações íntimas, ao seguir as narrativas de
“empoderamento”, no Canal 1 e no Canal 2. Apesar das distinções entre as abordagens
de Sabrina e Marília, ambas compartilham propósitos individuais e coletivos, apostando
nas gramáticas da intimidade, que procuram legitimar um “lugar de fala”. Visibilizada,
performada e negociada, a intimidade também fabrica relações de confiança mútua entre
quem assiste e quem é assistido, por meio das quais se configuram amizades e grupos
políticos e familiares, no sentido irrestrito dos termos (AURELIANO, 2007; ZELIZER,
2011; RAAP E GINSBURG, 2011; BELELI, 2017).
Todavia, como dito anteriormente, é preciso evitar a armadilha da estabilidade e
da imanência destas relações, uma vez que não há garantias quanto à veracidade ou
autenticidade do que é exposto, tendo em vista a própria “fragilidade do estatuto do eu”
(SIBILIA, 2008). Exemplo disso, Sabrina viu a legitimidade de sua narrativa
“empoderada” ameaçada, quando aceitou participar de um famoso programa televisivo
de arrecadação de fundos, voltado para a reabilitação de crianças com deficiência. O
problema é que, meses antes, ela mesma havia classificado o programa como
“capacitista”, em um vídeo publicado no Canal 1.
Comemorando sua 20ª edição, em 2017, o programa teve uma novidade: a
transmissão digital de conteúdo exclusivo e ao vivo em seu canal do YouTube e replicada
em outras redes sociais, como Facebook. A edição digital também envolveu a
156
participação de diversos youtubers e artistas da televisão brasileira, porém, Sabrina era a
única “personalidade da Internet” com deficiência. Este foi o primeiro programa de
circulação nacional para o qual Sabrina foi convidada a participar, após a criação do Canal
1. Entretanto, meses antes, em entrevista a uma rádio de sua cidade, a youtuber havia se
colocado contrariamente à “abordagem” do programa, ainda que não tenha se
aprofundado na argumentação, conforme o diálogo transcrito abaixo:
Sabrina: O programa sempre teve essa abordagem que eu não gosto, que é uma
abordagem capacitista, que é uma coisa meio triste. Não é uma abordagem que eu
acho legal. Eu acho assim: tem que dar dinheiro? Tem! Mas, não é só de dinheiro que
se vive a vida. Eu acho que tem que se dar, muito mais inclusão, no sentido das pessoas
serem incluídas nas ruas... (...) E o programa já está aí tem muito tempo. Quais foram
as mudanças na acessibilidade pública que a gente viu?
S: Sim, desde pequena eu acompanho o trabalho dessas instituições, até porque eu fui
em algumas. Os médicos dão conselhos bons e conselhos ruins. Tem gente que falou
que certas coisas eu não ia fazer, que eu jamais poderia fazer e, hoje, eu faço... Eu
acho que o programa deveria ser reestruturado e que as políticas públicas deveriam
ser reestruturadas...
157
Em seguida, Sabrina comente um ato falho, que conserta rapidamente, apesar de
demonstrar, expressamente em seu rosto, certo constrangimento pelo erro:
Outra coisa que eu achei maravilhosa foi essa ação da gente estar aqui... pessoas da
Internet se unindo, se apoiando contra...[corrige] com esse fim maravilhoso, que é
ajudar todas essas famílias, todas essas crianças. E eu me sinto muito honrada de ser
embaixadora desse evento junto com vocês e poder representar as pessoas com
deficiência de todo esse Brasil e poder estar aqui mostrando que, se elas quiserem ser
influenciadores digitais, podem estar aqui e que uma diferença corporal não vai fazer
com que elas sejam menos do que ninguém. (...) É muito, muito, muito gostoso estar
aqui com vocês hoje.
Em 1991, foi sancionada a Lei nº 8.213, conhecida como Lei de Cotas, que
determina que “empresas com 100 (cem) ou mais empregados devem destinar de 2% a
5% dos seus cargos a beneficiários reabilitados ou pessoas de portadoras de deficiência
habilitadas” (BRASIL, 1991), de acordo com a seguinte proporção:
O tema foi abordado, em vídeo, tanto por Sabrina quanto por Marília, que
enfatizaram as dificuldades que pessoas com deficiência enfrentam no acesso ao mercado
158
de trabalho formal. Em ambas as narrativas, são apresentadas informações que
corroboram com dados de pesquisas sobre as dissonâncias entre a literatura da “gestão da
diversidade” (FLEURY, 2000) e as práticas empresariais “de fachada”, referentes a
projetos ou técnicas administrativas específicas para as demandas de pessoas com
deficiência (AYDOS, 2017). A partir de suas experiências, ambas as youtubers revelam
que, em detrimento da contratação de pessoas com deficiência e consequente adaptação
física, sensorial e atitudinal do local de trabalho, habitualmente, as empresas optam pelo
pagamento da multa prevista em lei. Segundo a Portaria MF nº 15, de 16 de janeiro de
2018, a multa pelo descumprimento da Lei de Cotas varia de R$ 2.331,32 (dois mil
trezentos e trinta e um reais e trinta e dois centavos) a R$ 233.130,50 (duzentos e trinta e
três mil, cento e trinta reais e cinquenta centavos).
Em julho de 2017, junto a outros criadores de conteúdo, Sabrina foi convidada
para uma reunião com representantes da Cervejaria AMBEV. Em vídeo, Sabrina conta
que a empresa possui mais de 30 mil trabalhadores contratados, por todo o país. Contudo,
em dado momento da reunião, uma funcionária responsável pelo recrutamento de pessoas
lamentou o fato de que não conseguem “cumprir a Lei de Cotas”, sob o argumento de que
não encontram pessoas para ocupar os cargos. No vídeo, Sabrina expõe seu
estranhamento diante da afirmação da funcionária: “Aí, eu comecei a pensar: por que, em
um país onde, em 2010, mais de 30% das pessoas dizia ter alguma deficiência, não se
consegue encontrar um emprego, mesmo quando esse emprego está lá, reservadinho para
elas?”
Dentre as hipóteses levantadas por Sabrina, está a prioridade na contratação de
funcionários com deficiências consideradas mais “leves”, que não exijam tantas soluções
arquitetônicas por parte da empresa. Outrossim, a youtuber considera o preconceito no
recrutamento deste público, bem como a possibilidade de arcar com o pagamento da
multa, conforme previsto na legislação vigente:
A gente escuta muito que as empresas pedem, para os bancos de emprego, pessoas
com deficiência que não sejam, assim, tão “comprometidas” [física, visual, auditiva
ou cognitivamente], porque as empresas já acreditam que a pessoa com deficiência
não vai ter o mesmo desempenho que as pessoas sem deficiência. E isso, na verdade,
é um grande estereótipo, é um grande preconceito, onde a gente vê que, mesmo a
empresa sendo obrigada a contratar uma pessoa com deficiência, prefere pagar multa
ou, às vezes, justificar que “essa vaga não pode ser preenchida por tal pessoa”, sem,
ao menos, tentar dar uma chance para essa tal pessoa.
159
Por outro lado, em 2018, a AMBEV, citada por Sabrina, foi agraciada com o Selo
Municipal Direitos Humanos e Diversidade, pela Prefeitura de São Paulo, que reconhece
os “esforços em promover políticas de inclusão de diferentes segmentos da população no
mercado de trabalho”95. Na ocasião, a cervejaria foi premiada na categoria “juventude”,
com o programa intitulado “Na Responsa: pela prevenção do consumo de bebidas
alcoólicas por menores de 18 anos”. No campo das pessoas com deficiência, as seguintes
empresas e entidades do terceiro setor, e seus respectivos projetos, receberam o Selo:
95
Cf. https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/direitos_humanos/noticias/index.php?p=266489
160
representa uma “resistência às relações de poder”, contudo, é capaz de produzir tensões
quanto ao caráter independente e produtivo almejado pelo modelo neoliberal de gestão
empresarial.
O acesso ao mercado de trabalho é endossado por Marília como um de seus
campos de atuação na construção de políticas públicas para pessoas com deficiência, tal
como a proposta de “ampliar a fiscalização da Lei de Cotas”, incluída em seu programa
de candidatura à deputada federal. Em um de seus vídeos de campanha, que tem pouco
mais de 600 visualizações no YouTube, Marília focaliza a dificuldade de acesso à
educação inclusiva como um dos grandes impeditivos à qualificação profissional de
pessoas com deficiência, na vida adulta:
Há quem diga que nós, pessoas com deficiência, somos minoria e eu te digo: somos
45 milhões de pessoas no Brasil. Não estamos dentro do mercado de trabalho. As
empresas preferem pagar multa a adequar os espaços para que sejam inclusivos. A
nossa formação ainda não é um direito concreto. Em 2017, 90% das pessoas com
deficiência estavam em classe regular, mas apenas 40% teve acesso à educação
inclusiva. A falta de políticas públicas em educação é uma das principais razões que
nos desmotivam e impedem que sigamos nossa qualificação profissional. Sei muito
bem da dificuldade de mobilidade urbana, da falta de acesso nos espaços públicos.
Vivo isso e escuto de diversas pessoas os mesmos problemas. [Grifos meus]
(...) É alarmante também as perdas de direitos sociais em nosso país, como as reformas
na lei trabalhista e a que pretendem fazer com a Previdência; perdas de direitos que já
refletem na dificuldade de acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC) da
LOAS [Lei Orgânica da Assistência Social].
161
mercados de marketing e publicidade são interpretados como democratizados,
espontâneos, criativos e economicamente recompensadores (SIBILIA, 2008).
Para atingir o reconhecimento na plataforma do YouTube e atingir marcos pré-
estabelecidos pelo alcance numérico dos vídeos publicados, é preciso fortalecer o
“engajamento”. Com este fim, o curso oferecido pela Creators Academy se utiliza de
discursos mercadológicos, que estimulam os youtubers a aprenderem estratégias de
reconhecimento de seu público-alvo, bem como a análise dos conteúdos que “retém o
público” e promovem “interações”, sob a forma de likes, dislikes, comentários e
compartilhamentos. Portanto, a respeito destas métricas, o conteúdo divulgado pela
Creator Academy informa que:
Quando os espectadores gostam de um vídeo, eles costumam assisti-lo até o fim. Seu
objetivo é manter a retenção de público o mais próximo possível de 100%. A análise
dos vídeos que têm retenção de público e tempo de exibição sistematicamente altos
pode ajudá-lo a entender qual conteúdo é mais adequado aos interesses dos
espectadores.
Tenho consciência que o impacto do meu trabalho não é nem deve ser medido por
views ou likes.
Fico triste em ver os vídeos não performando bem como antes, fico pensando que o
que faço não é mais interessante ou relevante...
162
Mas aí vem mensagens emocionantes e maravilhosas e eu caio na real que eu não
comecei esse canal para ser famosa ou ter milhões de views, mas para buscar mudar a
invisibilidade que pessoas com deficiência sofrem.
Enquanto eu tiver fazendo a diferença na vida de UMA pessoa, vou continuar sendo
essa flopada96 que dá a cara (e o bracito) a tapa.
Nunca parem de enviar amor para os criadores [de conteúdo] que fazem a diferença
para você. Esse retorno faz a diferença para nós.
Além da monetização gerada pelos vídeos, ao longo dos anos, Sabrina recebeu
convites para palestrar em eventos privados (como o TEDx), estrelar campanhas
comerciais e participar de projetos internacionais em parceira com o YouTube. Junto à
Google, responsável por pagar suas passagens em classe executiva, hotéis e diárias no
exterior, Sabrina tem desenvolvido um projeto de acessibilidade na plataforma digital,
embora afirme que ainda não pode expor os detalhes da parceria, devido a questões
contratuais.
A atuação de Marília no campo político também não deixa de fora a inserção de
transações econômicas. Ainda que seu conteúdo não seja monetizado, desde seu vídeo
“viral”, a Internet agiu como uma aliada na divulgação de seus projetos, incluindo pedidos
de contribuição financeira coletiva para a campanha ao cargo de deputada federal. Em
sua fanpage, no Facebook97, um destes vídeos mostra Marília diante um fundo neutro,
vestindo uma blusa estampada, na cor rosa, enquanto sua fala é acompanhada por uma
música instrumental. Nele, a youtuber utiliza uma expressão gay – acué – para pedir
contribuições em dinheiro, para sua campanha política, obedecendo à legislação eleitoral
brasileira, que permite que pessoas físicas e jurídicas destinem valores para candidatos,
comitês financeiros ou partidos nas campanhas eleitorais. Marília vê a necessidade de
justificar o pedido, que associa dinheiro, confiança e legitimidade:
Você já sabe que sou candidata à deputada federal, não sabe? E você sabe também
que, para começar uma campanha “do zero”, a gente precisa de acué. Sabe o que é
acué? Dinheiro, meu amor! Din din. E é nesse sentido que eu estou pedindo, mesmo,
96
“Flopar” ou “flopado(a)” é mais um dos termos que surgiu na Internet, para se referir a algo que fracassou,
tal como um conteúdo que não atendeu ao esperado, em números de likes e visualizações.
97
Este vídeo em questão não está disponibilizado no Youtube.
163
dinheiro para você. Somos muitas e a nossa construção é coletiva com mais 11
candidatas [pelo partido, em seu Estado]. Todo esse acué vai ser muito bem
empregado, relaxa! Ele vai contribuir com a nossa circulação, com material gráfico,
jurídico e toda uma estrutura básica que uma campanha precisa. Então, você, que
está em qualquer lugar do Brasil, até no interior, pode doar o mínimo de 10 arô [10
Reais, na expressão gay]. Sabe o que é arô? Arô é dinheiro, meu bem! Agora que
você já aprendeu umas palavrinhas novas, vem comigo construir essa campanha, que
garante uma real representatividade de luta e de corpos na Câmara dos Deputados.
[Grifos meus]
164