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O caso Damião Ximenes Lopes e o direito humano à

Saúde Mental

Crédito: Acervo Pessoal


27 de fevereiro de 2023

POR DESINSTITUTE

Por Gérica Branco

Quem estuda ou trabalha na área da saúde mental pode já ter ouvido


falar no caso Damião Ximenes Lopes, caso paradigmático julgado
pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH), que
condenou o Brasil por violações relacionadas à construção de políticas
públicas antimanicomiais e atendimentos que estejam relacionados à
saúde mental, sendo também importante por ter sido o primeiro caso
envolvendo pessoa com deficiência mental à chegar neste grau de
análise internacional.

Narra-se que Damião teria desenvolvido durante a sua juventude,


deficiência mental proveniente de alterações no funcionamento do seu
cérebro. Na época dos fatos, Ximenes Lopes tinha 30 anos de idade e
vivia com sua mãe numa pequena cidade, situada a aproximadamente
uma hora da cidade de Sobral, sede da Casa de Repouso
Guararapes. (1) Apenas a título de anotação, por não ser o objeto
central do presente artigo, vale mencionar que a expressão
“deficiência mental” fora a descrição utilizada pelo Sistema
Interamericano neste caso. No entanto, à luz de perspectivas
antimanicomiais, este termo deve ser lido de forma crítica, tendo em
vista as diversas estigmatizações e distorções que esta rotulação
possa indicar.

Em que pese ser uma clínica particular, Damião fora admitido, em


outubro de 1999, como paciente do Sistema Único de Saúde (SUS),
em pleno estado físico.

No momento do seu ingresso não apresentava sinais de agressividade


nem lesões corporais externas. Após dois dias, Ximenes Lopes teve
uma crise de agressividade, tendo de ser retirado do banho à força por
um auxiliar da enfermaria e por outros pacientes. Na noite do mesmo
dia, Ximenes Lopes teve outro episódio de agressividade e voltou a
ser submetido a contenção física. No dia seguinte, a mãe de Ximenes
Lopes foi visita-lo na Casa de Repouso Guararapes e o encontrou
sangrando, com hematomas, sujo e fedendo excremento, com as
mãos amarradas para trás, com dificuldades para respirar, num estado
agonizante, gritando e pedindo auxílio à polícia. Ximenes Lopes
faleceu no mesmo dia, aproximadamente duas horas depois de ter
sido medicado pelo diretor clínico do hospital, e sem qualquer
assistência médica no momento de sua morte. Seus familiares
interpuseram uma série de recursos judiciais, porém, o Estado não
realizou maiores investigações nem puniu os responsáveis. (2)

Como o Brasil é signatário da Convenção Interamericana de Direitos


Humanos (CADH), incorporada pelo Decreto 678/1992, tendo aceitado
expressamente a competência judicial da Corte Interamericana de
Direitos Humanos (CorteIDH) em 10 de dezembro de 1998, o Sistema
Interamericano de Direitos Humanos se tornou uma via possível para
atender as demandas das vítimas envolvidas.

A via internacional de proteção de Direitos Humanos (DH) surge e


começa a se fortalecer depois dos eventos históricos de guerras e
conflitos armados e militares na humanidade. Existe um sistema global
de proteção, tendo como referência a ONU e diversos tratados
temáticos, e os sistemas regionais de proteção de Direitos Humanos,
quais sejam o Europeu, o Interamericano e o Africano. Os sistemas
regionais buscam o fortalecimento dos DH a partir da realidade local
não havendo hierarquia ou conflito com o sistema onusiano.
Há quem citasse a possibilidade de conflito com a soberania estatal de
cada país em resolver seus conflitos internos. Ocorre que, objetivam
os países na articulação internacional, colocar Direitos Humanos em
patamar de proteção e continuidade de forma que se dificulte sua
negação na hipótese de troca de governo local. Assim,
independentemente do entendimento maior ou menos protetivo de um
Executivo federal, os pactos internacionais seguem em vigor,
cumprindo seu papel no avanço de uma agenda pró Direitos Humanos

Vale citar que existem hipóteses convencionais para que um país


possa deixar de compor as convenções internacionais, no entanto a
maioria destes documentos preveem a continuidade da aplicação do
tratado por um período de tempo após o depósito de saída, de modo
que, mais uma vez, se evite a aplicação de DH conforme convicções
de um novo chefe do executivo federativo.

De todo modo, todas essas diversas regras ficam estabelecidas


previamente em todos os tratados dos quais o Brasil faz parte. Em
especial, a Convenção Americana (CADH) prevê que a competência
contenciosa da CorteIDH para julgar e impor as sanções precisa ser
aceita separadamente a assinatura do pacto, de forma expressa.
Assim, temos países americanos que são signatários da CADH,
porém não aceitaram a competência da Corte.

No entanto, conforme já citado, o Brasil aceita participar da CADH,


realizando todos os procedimentos necessários, exarando o aceite
pela competência da CorteIDH como órgão judicial, sendo possível,
após isso, que se as pessoas apresentem suas demandas.

O artigo 46 da CADH prevê diversos requisitos para que uma pessoa


possa levar seu caso à Comissão, sendo um deles (alínea ‘a’) que
hajam sido interpostos e esgotados os recursos da jurisdição interna,
de acordo com os princípios de direito internacional geralmente
reconhecidos, requisito esse que se cumpriu no caso do Damião.

Assim, em 22 de novembro de 1999, Irene Ximenes Lopes Miranda,


irmã de Damião, apresentou petição à Comissão Interamericana
contra o Brasil, em que denunciou os fatos ocorridos. Vale o destaque
de que, no Sistema Interamericano, pessoas físicas podem apresentar
suas demandas para a Comissão – e não para a CorteIDH, que
apenas aceita casos submetidos pela própria Comissão ou por um
Estado parte, sendo que caberá ao indivíduo dar andamento a
demanda após o deferimento do procedimento.
No caso em debate, não houve possibilidade de solução do caso
perante a competência da Comissão, que decide por apresentar o
caso para a Corte Interamericana de Direitos Humanos em 30 de
setembro de 2004, tendo a sentença de mérito, reparação e custas
sido proferida em 04 de julho de 2006.

Após o processamento do caso, a CorteIDH (3) concluiu que o Estado


violou: (I) os direitos à vida e a integridade pessoal de Ximenes Lopes
(Convenção Americana de Direitos Humanos – CADH- artigos 4.1, 5.1
e 5.2); (II) o direito à integridade pessoal de seus familiares, vitimados
por diversos problemas de saúde decorrentes do estado de tristeza e
angústia ocasionando no contexto dos fatos narrados; e (III) os direitos
às garantias judiciais e à proteção judiciais consagrados nos artigos
8.1 e 25.1 da CADH, em razão da ineficiência em investigar e punir os
responsáveis pelos maus-tratos e óbito da vítima. Finalmente, a
CorteIDH determinou que o Estado brasileiro indenizasse os familiares
de Ximenes Lopes pelos danos materiais e imateriais provocados,
além de ter ordenado diversas outras obrigações, a exemplo do dever
de garantir, em prazo razoável, que o processo interno destinado a
investigar e punir os responsáveis pelos fatos deste caso seja
regularmente desenvolvido. (4)

Diversas são os pontos relevantes neste paradigmático caso, mas


podemos citar um primeiro, bem expressivo: foi a primeira condenação
do Brasil na CorteIDH. Portanto, a primeira vez que o país é
demandado nesta instância fora por violações de Direitos Humanos
que tocam exatamente a matéria de saúde mental e articulação de
políticas antimanicomiais.

Ainda, como oitavo ponto resolutivo apontados pela Corte, há a


ponderação de que o Estado deve continuar a desenvolver um
programa de formação e capacitação para o pessoal médico, de
psiquiatria e psicologia, de enfermagem e auxiliares de enfermagem e
para todas as pessoas vinculadas ao atendimento de saúde mental,
em especial sobre os princípios que devem reger o trato das pessoas
portadoras de deficiência mental, conforme os padrões internacionais
sobre a matéria e aqueles dispostos nesta Sentença.

Apesar do transcurso do tempo da publicação da decisão, não fora,


até o presente momento, articulado qualquer formação permanente e
nacional que busque a implementação real deste ponto da Sentença.

Outro ponto importantíssimo é a definição do que é sujeição pela


CorteIDH, dispondo que (parágrafos 133 a 136 da decisão): 133.
Entende-se sujeição como qualquer ação que interfira na capacidade
do paciente de tomar decisões ou que restrinja sua liberdade de
movimento. A Corte observa que o uso da sujeição apresenta um alto
risco de ocasionar danos ao paciente ou sua morte, e que as quedas e
lesões são comuns durante esse procedimento.

134. O Tribunal considera que a sujeição é uma das


medidas mais agressivas a que pode ser submetido
um paciente em tratamento psiquiátrico. Para que
esteja de acordo com o respeito à integridade
psíquica, física e moral da pessoa, segundo os
parâmetros exigidos pelo artigo 5 da Convenção
Americana, deve ser empregada como medida de
último recurso e unicamente com a finalidade de
proteger o paciente, ou o pessoal médico e terceiros,
quando o comportamento da pessoa em questão seja
tal que esta represente uma ameaça à segurança
daqueles. A sujeição não pode ter outro motivo senão
este e somente deve ser executada por pessoal
qualificado e não pelos pacientes.

135. Ademais, considerando que todo tratamento


deve ser escolhido com base no melhor interesse do
paciente e em respeito a sua autonomia, o pessoal
médico deve aplicar o método de sujeição que seja
menos restritivo, depois de uma avaliação de sua
necessidade, pelo período que seja absolutamente
necessário, e em condições que respeitem a
dignidade do paciente e que minimizem os riscos de
deterioração de sua saúde.

136. O senhor Damião Ximenes Lopes foi submetido


a sujeição com as mãos amarradas para trás entre a
noite do domingo e a manhã da segunda-feira, sem
uma reavaliação da necessidade de prolongar a
contenção, e se permitiu que caminhara sem a
adequada supervisão. Esta forma de sujeição física a
que foi submetida a suposta vítima não atende à
necessidade de proporcionar ao paciente um
tratamento digno nem a proteção de sua integridade
psíquica, física ou moral.
Diante disso, conclui a CorteIDH que o Brasil não observou tais
paradigmas ao realizar mecanismo de contenção/sujeição de Damião,
havendo provas robustas de uso desproporcional da força, o que se
torna mais grave por não ter sido concedido o atendimento médico
adequado após os atos de violência.

Após a sentença, o Brasil inicia formas de cumprimento, tendo sido


criado um Grupo de Trabalho (GT) para acompanhamento da
efetividade do que fora determinado pela CorteIDH. O movimento
antimanicomial continua buscando forças para fazer de fato com que o
país possa rumar a política antimanicomial em sua excelência. Este
caso possui reflexos até os dias atuais, sendo sempre referenciado,
como, por exemplo na Resolução do Conselho Nacional de Justiça
(CNJ), aprovada recentemente, que busca instituir a Política
Antimanicomial do Poder Judiciário e estabelecer procedimentos e
diretrizes para implementar a Convenção Internacional dos Direitos da
Pessoa com Deficiência e a Lei nº 10.216/2001 no âmbito do processo
penal e da execução das medidas de segurança. (5)

Um dos grandes objetivos destas atuações internacionais é a não


repetição, de modo que os direitos ali violados não voltem a acontecer
com mais ninguém. Diante disso, o Desinstitute continua firmando
seus propósitos para que consigamos incorporar e fomentar políticas
estatais pelo fim de todos os modos e práticas manicomiais.

Citações
1 – Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos/Caio Cezar
Paiva, Timotie Aragon Heeman, 2 ed. – Belo Horizonte: Editora CEI,
2017. Página 312.

2 – Idem.

3 – A sentença integral está disponível em https://www.gov.br/mdh/pt-


br/navegue-por-temas/atuacao-internacional/seriec_149_por.pdf visita
do em 14/02/2023
4 – Idem. Página 313.

5 – https://www.cnj.jus.br/politica-antimanicomial-do-cnj-atende-a-
pessoas-em-todo-o-ciclo-penal/ visitado em 23/02/2023

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