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A Batalha de Argel (1966) – dir. Gillo Pontecorvo.

O filme narra acontecimentos que vão desde 1954 até 1960 e se passam na cidade de
Argel onde acompanhamos um grupo de guerrilheiros em sua luta pela cidade de Argel
e pela independência argelina. Ali de la Pointe, um jovem argelino, é o fio condutor da
narrativa fílmica apresentado por Pontecorvo. Nela o diretor constrói um cinema
político, pouco romântico, propagandístico e visceral sobre a revolução argelina. Argel
torna-se palco de para a encenação da força revolucionária que construiu a nação
argelina, força essa que emana a partir dos anseios revolucionários de um povo
direcionados pela FLN argelina. De la Pointe pode ser o fio condutor dessa história,
assim como outros líderes revolucionários apresentados no filme como Jaffar – mentor
de Ali -, mas essas figuras dão cabo a um sentimento comum de revolta, encabeçam os
anseios de uma nação por vir que se encontra subjugada pelo colonialismo francês. Suas
mortes são pontos de estopim de uma revolta silenciosa que estabelecem laços de
cumplicidade com a FLN, lhe dão guarida, abrigo e suas vidas em nome de uma causa.
A FLN argelina, tal qual nos apresenta Pontecorvo, pode encabeçar a revolução, mas ela
só se torna possível a partir do povo e é esse agente que toma de assalto Argel e força a
independência argelina, é esse a gente que se torna objeto de exaltação nessa obra.
Inúmeros apontamentos podem ser realizados sobre A Batalha de Argel, aquele que se
torna fundamental destacarmos aqui é sua epopeia do despertar de um povo e a tomada
do destino de suas vidas a partir da independência de sua nação. É o despertar da força
revolucionária que Pontecorvo nos apresenta.

Sobre a violência revolucionária:

Argel é cena do embate entre colono e colonizado. As múltiplas facetas dessa disputa
são expostas em tela: da violência e dos atentados, da cumplicidade e da traição, até das
torturas e dos assassínios, às vidas perdidas e aquelas martirizadas em nome de uma
causa seja construída me torno do objetivo de fincar a bandeira francesa na Argélia de
forma definitiva, seja a da declaração de independência argelina. Não sejamos tolos
nesse ponto, o filme está longe de estabelecer uma falsa equivalência entre os lados em
conflito, sua causa é bem explicita. No entanto, seu lado político está longe de uma
fantasia amorfa e apaziguante sobre uma situação de guerra. Aqueles que morrem no
fogo cruzado, os anônimos, pouco são omitidos dos atos terroristas da FLN, assim como
aqueles assassinados pelas forças policiais do Estado argelino. O dilema moral sobre o
uso da violência como método para conquistar seus objetivos é posto em duas cenas
bastante memoráveis, ambas trazem dois personagens do longametragem inquiridos
pela imprensa, Ben M’Hidi e o coronel Mathieu. Na primeira cena ambos estão em uma
sala em 4 de março de 1957, M’Hidi sob custodia do coronel que o exibe para a
imprensa como um prêmio de caça é exibido para uma plateia de espectadores, sua
captura demostra a efetividade de seu cerco sobre a FLN, ao mesmo tempo que serve
estrategicamente para guiar a opinião pública internacional sobre o que se passa na
Argélia. Em determinado momento, Ben M’Hidi cercado por repórteres é confrontado
com uma pergunta: - “Não seria covardia usar das bolças de suas mulheres para carregar
bombas que tem tirado a vida de tantos inocentes?”, Bem H’Midi lhe responde: - “Não é
mais covarde atacar vilas indefesas com napalm que matam milhões de vezes mais? É
claro que aviões tornariam as coisas mais fáceis para nós. Deem-nos seus bombardeiros,
senhor e você pode ter nossas bolças”. O repórter silencia e segue-se o pequeno
inquérito.

Logo em seguida após um corte que nos mostra as forças policiais revistando casas
enquanto escutamos uma voz, transmissões de rádios ou por alto falantes vindas das
forças policias que ao mesmo tempo tem a função narrativa de comunicar ao público
que assiste o filme sobre o cerno que vai se fechado sobre a FLN junto com o
endurecimento do regime e que na diegese anuncia para toda população que devem
entregar os membros da FLN que abrigam em suas casas, o coronel Mathieu é
entrevistado pela imprensa, colocado agora no lugar do interrogado enquanto seu
inquisidor é responsável por nos anunciar a suspeita morte de Ben M’Hidi no cárcere ao
confrontá-lo com esse fato. Temos aqui uma segunda cena que nos coloca frente ao
dilema moral no uso da violência enquanto meio para atingir certos propósitos. Ao ser
perguntado sobre o uso da tortura enquanto método para obter informações o coronel
hesita e afirma: - “A palavra ‘tortura’ não é usada em nossas ordens. Nos usamos da
interrogação como um único método policial válido contra uma organização
clandestina.”, após expor a urgência de se conseguir informações um dos repórteres lhe
interrompe e afirma: - “A legalidade pode ser inconveniente.”, Mathieu rapidamente lhe
responde: - “É legal plantar bombas em espaços públicos? Lembre-se do que Ben
M’Hidi lhe respondeu quando foi perguntado essa questão. Não, senhor, acredite em
mim. É um círculo vicioso. Nós poderíamos falar por horas e ainda assim não chegar a
uma conclusão porque esse não é o problema”. O problema que se refere o coronel é a
FLN e sua disposição para expulsá-los da Argélia, enquanto a posição dos colonos
franceses é que permaneceriam nesse país.

Duas cenas que nos colocam a questão dos meios e dos fins, a legitimidade da
violência e os limites éticos que acompanham os objetivos. A cobra que morde sua
própria cauda para só assim saber-se real. Como deter uma organização clandestina que
usa métodos escusos e não joga pelas leis? Como deter um regime colonial invasor com
um poder de fogo maior que dispunha os que lhe são subjugados? Não nos tornaríamos
nossos algozes ao dispomos de seus métodos para combatê-lo? Não se tornaria terrorista
um governo que inflige o terror contra sua população? Não se perderia legitimidade
uma causa emancipatória que aceita a morte de inocentes como consequência de sua
busca? Muitos coeficientes podem ser adicionados para avaliar essas questões:
contextos, inícios e pressupostos. De qualquer forma, o filme não se furta a confrontar
seus protagonistas com a difícil e dura questão, ao mesmo tempo em apontar sua
disposição para com a causa de sua nação. O filme é bem cru nesse aspecto, os meios
são adotados de acordo com o desafio apresentado, enquanto meio necessário deve ser
seguido, no entanto só há sentido na violência na medida em que ela abre caminho para
algo mais, na medida em que ela é um instrumento não simplesmente de poder, mas
estratégico em torno de uma causa. Os limites do terror revolucionário são postos na
cena em que Ben M’Hidi conhece La Pointe. Esse último apressa-se em afirmar o erro
de Jaffar ao não permitir que levar armas para a greve, logo Ben M’Hidi afirma: - “Atos
de violência não ganham guerras. Nem guerras nem revoluções. Terrorismo é útil como
um início. Mas depois, o próprio povo deve agir. Essa é a lógica por trás da greve.
Mobilizar os argelinos para provar nossa força”. O terror não é posto como um fim em
si mesmo, um ato de ressentimento ou sadismo, tampouco é tolerável a qualquer custo,
só há sentido no terror porque obedece há uma estratégia de libertação de uma nação ao
chamar atenção para a situação em que se vive naquele país, ao despertar o povo para a
luta que o envolve e enfraquecer as estruturas de dominação para que tenham alguma
chance. A frieza com que o filme nos traz a questão da violência é interessante, não
hesita, não tropeça, não se esquiva da questão que perturba toda revolução; a violência
aparece justa porque se crê que o fim é justo; por qualquer meio necessário levar-se-ia
cabo da (contra) revolução.

Cena a cena:
Depois da cena de abertura que nos antecipa os momentos finais de Ali de La Pointe
somos levados ao bairro de Casbah onde ouvimos ao fundo o primeiro comunicado da
FLN ao povo argelino (7:19) onde afirmam seu programa revolucionário e suas palavras
de ordem: a luta contra o colonialismo para poder restaurar o Estado argelino de acordo
com os princípios islâmicos e o respeito as liberdades básicas sem distinção de raça e
religião, aos franceses propõe a negociação dos termos ao acesso à autodeterminação –
ponto intransigente de seu programa revolucionário. Nessa primeira cena somos logo
introduzidos ao personagem principal dessa narrativa Ali de La Pointe (Omar Ali). A
cena que introduz esse personagem ao mesmo tempo apresenta o preconceito dos
colonos europeus quanto aos árabes que não hesitam em entregar Ali a polícia que o
persegue, é preso em meio a um linchamento por parte dos colonos. Uma cena parecida
acontece mais a frente onde em meio aos atentados orquestrados pela FLN um cidadão
árabe em situação de mendicância é hostilizado por colonos do alto de seus prédios, o
senhor humilde olha para os lados com espanto como se já estivesse cercado, em meio
aos xingamentos corre sem nem ao menos ter feito nada e acaba por ser encurralado
pela polícia e levado preso (34:20). Essas duas cenas apresentam claramente o
preconceito dos colonos europeus a população árabe, quase indistinto a seus olhos,
todos culpados – a seus olhos – pela violência desencadeada no país.

Na cena seguinte, após Ali juntar-se a FLN, temos um salto de dois anos (1954-56)
onde escutamos o 24º comunicado da FLN que declara a administração colonial como
responsável pelo empobrecimento do país, a corrupção e degradação do povo argelino,
chama a cooperação desse povo em torno da independência. A FLN declara-se
responsável pelo bem-estar físico e moral dos argelinos, proíbe então a venda e
consumo de bebida e drogas. Esse comunicado é apresentado em uma cena em que a
declaração aparece como uma voz ao fundo e acompanha um homem que é hostilizado
tanto por uma mulher mulçumana quanto por crianças, aplicam-lhe o rigor da disciplina
revolucionária por estar bêbado (19:35).

Circulamos pelo bairro árabe até que somos levados a um casamento em que a
celebração de cunho islâmico é misturada a um ritual civil sob autoridade da FLN, tal
casamento é visto como um ato de resistência no contexto me que vivem. O casamento
é celebrado a partir das bençãos da autoridade civil quanto da autoridade revolucionária
da FLN (24:30). O caráter religioso do povo é mostrado nessa cena quando se juntam
para orar na celebração, a câmera se afasta da mesa principal nos dando uma visão aérea
onde é possível enxergar outros observadores, a câmera se distancia e as vozes em
oração ecoam como se compusessem um coral composto por todo o bairro árabe. A
revolução pela independência completa com seu caráter sacro que é representado quase
como que a força vital desse povo.

Em meio a troca de atentados entre os lados em conflitos entramos no segundo ato do


filme em que as tropas de paraquedistas franceses chegam a Argélia para ajudar a
administração colonial a eliminar a FLN. Philippe Mathieu é o antagonista dos
revolucionários, o líder francês que possibilita aos colonos modificarem suas estratégias
de luta e responder de forma mais eficaz aos atentados da FLN. A sua voz em off
continua enquanto as cenas exibidas nos levam para circular entre o povo demostrando
a inserção da FLN entre eles ou sua adesão ao programa dos revolucionários insurgentes
na medida em que lhes dão guarida e um espaço seguro, mesmo que momentâneo, aos
membros da organização, possibilitando as comunicações furtivas através de uma rede
informacional formada por elos inusitados responsáveis por transmitir as últimas ordens
da FLN.

Em determinado momento (01:16:55) enquanto presenciamos as tentativas das


brigadas paraquedistas que minar os esforços da greve geral convocada pelos
revolucionários um personagem que a princípio parece menor, pouco ameaçador, tanto
pela sua estatura como pela sua idade, uma criança que julgaríamos a um primeiro olhar
incapaz de ferir o regime colonial francês toma discretamente um dos microfones das
brigadas policiais estabelecidas no bairro árabe e dirige-se aos seus compatriotas
cabisbaixos submetidos a revistas e a vigilância constante das forças policiais num
cenários urbano ornamentado por arames farpados dizendo-lhes: - “Argelinos! Irmãos!
Animem-se! A FLN diz para não terem medo! Não se preocupem, estamos vencendo. A
FLN está do seu lado”. Num tom quase pastelão os policiais circulam tentando procurar
quem está falando o microfone, sem sucesso, observam atônitos enquanto o povo em
cena responde a essa voz misteriosa: - “Vida longa à Argélia!”. Uma cena que traz o
retrato de um povo oprimido por forças que parecem incontroláveis e inalcançáveis,
mas que silenciosamente cultivam a esperança da vitória, seu vigor revolucionário é
posto a luz por esse personagem inusitado responsável por lembrar-lhes que ainda não
estão derrotados, ao mesmo tempo que contrapõe a estratégia das forças coloniais que
lhe dizem o contrário que estão enfraquecidos. A criança argelina que toma voz fala em
nome da FLN, mas também expressa o sentimento de revolta contido daquele povo,
seguindo os princípios revolucionários de sua organização da qual somos apresentados
no encontro de Ali e Jaffar no início do filme: é preciso fazer com que o povo participe,
que aja, sem ele nenhuma transformação é possível. Uma cena de respiro em meio a
uma sequência que nos mostra o ímpeto da autoridade colonial em sua busca incessante
pelos membros da organização revolucionária, seu tom pouco romântico emerge em
meio a frieza do retrato dos conflitos entre colonizado e colonizador.

O fechamento do filme, após o cerco e execução dos membros da FLN que se passa
em 1957, um comunicado é transmitido por um sujeito que anuncia o retorno das
manifestações nas cidades e nas montanhas do país em protestos contra o regime
colonial, após dois anos de quietude a força revolucionária do povo emerge novamente
dessa vez em maior força, de forma espontânea, sem líderes, uma massa indistinta em
torno de um mesmo objetivo: expulsão dos colonos e independência a Argélia. Somos
comunicados que até mesmo um dos líderes da organização revolucionária exilado em
Túnis não fazia ideia do que havia acontecido. Essa cena prova o ponto que M’Hidi se
esforça para mostrar a Ali em seu primeiro encontro antes da greve geral: a FLN
enquanto organização servia como um condutor, um estopim para o despertar do agente
principal da mudança, o terrorismo só havia sentido enquanto um fator de mobilização
não apenas para o regime dominante, mas para fazer com que os oprimidos se
levantassem e lutassem, para mostrar-lhes que aqueles que o subjugavam podiam
sangrar, para lhes despertar a centelha da esperança de que uma mudança radical seria
possível. Mathieu pensava que a cabeça de seu problema estava entre aqueles homens
que se destacavam nos atos terroristas e pertenciam a FLN, o tempo provou que aqueles
homens eram apenas uma das partes que compunham o problema, erradicados ele ainda
persistiu, maturou e emergiu nas ruas levantando as bandeiras com uma estrela, com
dizeres como “Argélia para os argelinos”, gritando palavras de ordem como
“Marchamos pela liberdade!” (01:55:43), afugentando as forças policiais por serem
demasiados para serem contidos com a força das armas, mesmo perante o massacre os
bairros árabes continuam a manifestar em seus gritos de guerra. A batalha de Argel
conta a epopeia do despertar de um povo que se insurge contra o colonialismo europeu,
consagra uma imagem de um evento histórico para o mundo em que as forças atávicas
contra qual lutaram não cessam de se afirmar.

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