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O GUERRILHEIRO E O CAPITÃO NASCIMENTO.

Por Solange Cavalcante


O filme Marighella ou como ajustar a História ao gosto neoliberal e palatável.
Com Marighella finalmente lançado, Wagner Moura tem peregrinado pela imprensa
especializada, relatando o boicote que seu filme sofre desde o malfadado lançamento,
em 2019. Mas se Moura não mente, porque o clima no Brasil é mesmo fascista, o
diretor não é totalmente honesto. Basta um mínimo conhecimento sobre a biografia do
revolucionário baiano e o contexto em que ele viveu para perceber que Moura
censurou seu próprio filme e a História, a fim de permanecer “bem na fita” com quem
manda na indústria cultural, na indústria do entretenimento e com quem sempre deu
as cartas, no Brasil.
Moura criou um Marighella solitário e acuado, diferente do deputado federal e
revolucionário culto, carismático e estimado no meio político, cercado de amigos,
apoiadores, intelectuais e estudantes – mesmo que esse apoio não pudesse ser
ostensivo.
No filme há a completa ausência de manifestações, de confrontos, da fala e da presença
do povo (do campo e das cidades), contrário ou a favor da ditadura militar. Os
militares são invisíveis – seus nomes, patentes, crimes e responsabilidade histórica
não são explicitamente descritos. Fosse um filme felliniano, os militares seriam sonhos
incompreensíveis. Mas Moura não é Fellini.
Em Marighella, a ambientação é, na maior parte, fechada e com pouca luz. Isso pode
ser mais do mesmo da pobreza da fotografia do cinema brasileiro. Esse poderia ser um
recurso para indicar a claustrofobia do contexto, mas parece mais que Moura se iludiu
ou quis iludir o público, querendo contar essa história em poucas pinceladas
intimistas.
Como roteiristas, Wagner Moura e Felipe Braga são típicos filhos da escola Globo de
roteiros, sem a menor inspiração ou curiosidade pelos textos geniais de Elio Petri e
Ugo Pirro, por exemplo, quando se trata de filmes políticos. Os roteiristas nacionais,
todos da mesma escola, vivem de diluir grandes personagens como Marighella,
misturando-as a tramas fictícias da vida privada, para criar apelo emocional e não o
conhecimento dos fatos (vide a bobajada em torno das biografias de Pedro I e Pedro II,
na tevê, e as biografias dos Joõesinhos Trinta e das Hebes Camargo, no cinema).
Em Marighella, Moura e Braga apostaram no fio condutor do pai amoroso que ensina o
filho a nadar, que faz promessas e que grava fitas de despedida – fato que nunca
existiu. Eles acharam impossível traduzir em linguagem cinematográfica que querer
justiça para todos já é amor. E sim, licenças poéticas são sempre permitidas. Mas furos
propositais na História por preguiça, por economia, por comprometimento ou medo
dos poderosos, não.
No filme há o apagamento de símbolos da luta revolucionária/da esquerda como a cor
vermelha, punhos fechados erguidos para o ar, da foice e do martelo, de fotos de
Guevara, das falas e cenas originais dos inimigos e personalidades da época, da
fantástica trilha sonora de músicas de protesto e de slogans escritos nos muros. O
resultado é um Marighella desconectado da atmosfera do mundo que o cercava.
Episódios dramáticos, como a expulsão de Marighella do Partido Comunista, é
reduzido a uma conversa a dois, na qual, por superficialidade ou economia, um partido
inteiro é representado por um jornalista inventado, um tal de Jorge Salles (Herson
Capri). Esse recurso seria aceitável, se não fosse usado à exaustão no filme inteiro. Ele
abusa dos personagens/tipo que representam multidões de outras pessoas.
No filme, A Ação Libertadora Nacional (ALN) é representada por cinco ou seis gatos
pingados com cara de desequilibrados – aliás, quando é que os revolucionários da
época foram descritos de forma diferente, na nossa indústria cultural, senão como
personagens inventados, sem sobrenome, sem história, sem empatia e com índole
sociopata? Não fosse assim, qual a razão do tal Almir não ser chamado pelo nome justo
do jornalista, tradutor e revolucionário JOAQUIM CÂMARA FERREIRA? Ele teria sido
uma figura execrável? A família não permite que ele seja citado? Ou o diretor do filme
se autocensurou (antes mesmo que Bolsonaro o fizesse) para não ficar mal com os
produtores/patrocinadores?
Por que o delegado torturador do DOPS, com nome e sobrenome SERGIO FERNANDO
PARANHOS FLEURY, pago pela burguesia de São Paulo (com nome e sobrenome) para
desaparecer com presos políticos e criminosos comuns através dos esquadrões da
morte, aparece como delegado Lucio? Lucio de quê? Lucio a mando de quem, entre os
militares (com nome e sobrenome, como EMILIO GARRASTAZU MEDICI)? Fleury, aliás,
tornou-se tão íntimo dos ditadores que, cada vez que era citado num processo por
abuso de poder, arrolava oficiais das três armas para testemunharem a seu favor.
Todos com nome e sobrenome.
Quando, por exemplo, do sequestro do embaixador estadunidense Charles Elbrick, em
1969, a ALN condicionou sua soltura à leitura integral de um manifesto nos jornais,
nas rádios e na tevê. Foi CID MOREIRA (com nome e sobrenome) quem leu o
manifesto. Na Rede Globo. No Jornal Nacional. No filme, o manifesto é lido por um
apresentador sem nome, numa rede chamara TV J. Poderia ser uma tevê X ou tevê Z.
Sem nome.
E por que não nomear os frades dominicanos FERNANDO DE BRITO E YVES DO
AMARAL LEBAUSPIN, que Fleury torturou e usou para atrair e matar Marighella? Qual
foi o crime deles, segundo Moura, para seus nomes serem evitados? Seria o crime de
“beijoqueiros da traição”, de “covardes”, de “infelizes” e de terem entregue Marighella
com “tática meticulosa”, como escreveu Roberto Marinho, no editorial de O Globo
chamado “O beijo de Judas”? O nome Marinho, aliás, passa longe da narrativa. Então:
quem é que censura o filme de Wagner Moura?
Clara Charf era quadro de partido e feminista atuante. Não é nem nunca foi uma dona
de casa chorosa. As três aparições da personagem, no filme, não fazem justiça a ela. A
presença de Adriana Esteves, do casting da Globo, é um recurso comum no cinema
brasileiro, para “levantar” o filme. Presenças VIP como a dela e de Bruno Gagliasso
importam mais do que contar a história verdadeira. É a velha guerra entre forma e
conteúdo, e aqui Wagner Moura escolhe o lado em que sua produção quer estar.
Antes de publicar receitas de bolo entre os textos de seus jornais por causa da censura,
os grupos Estado e Folha de S. Paulo bem que apoiaram o golpe militar. É provado que
a Folha emprestava seus caminhões para a desova dos cadáveres de presos políticos. E
adivinhem. Nenhum deles é mencionado, no filme Marighella.
Carente de bom texto (nada de análise de conjuntura, filosofia política, citação de
autores ou de intelectuais importantes, Marx, nada), as cenas de tortura tornam-se,
então, a solução fácil do diretor, quase como o ápice da produção – e por isso
totalmente dispensáveis. Amigo, se você dispensou todo o resto, não venha com o
recurso da truculência.
No final, tudo pode piorar. Aquele grupinho de desequilibrados sociopatas volta do
nada (como se o diretor se lembrasse que podia usar Fellini como referência, na
questão dos sonhos) e se mete a gritar e pular, cantando o hino nacional. Não é Bella
Ciao nem A Internacional Socialista – é o hino nacional. Eu digo que em mais de
quarenta anos de militância, nem eu nem os companheiros todos nunca nos vimos
minimamente inclinados a cantar o hino nacional. Quem cria essa sequência, num
filme, não sabe nada de nós.
E aí finalmente compreendemos porque Mano Brown abandonou a produção e o papel
de protagonista – é porque a história que Moura escolheu contar é constrangedora. Eu
também abandonaria.

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