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REVISTA MAGIS
CADERNOS DE FÉ E CULTURA
A CARTA ENCÍCLICA
EVANGELIUM VITAE
REFLETINDO SOBRE O VALOR INCOMPA-
RÁVEL DA VIDA HUMANA
A CARTA ENCÍCLICA EVANGELIUM VITAE REFLETINDO SOBRE O
VALOR INCOMPARÁVEL DA VIDA HUMANA
Embora seja uma coisa bem conhecida, nunca é de mais explicar o que significa
uma carta encíclica, qual é o seu valor e em que contexto esta Encíclica foi escrita. "En-
cíclica" é uma palavra grega que significa simplesmente circular. Uma carta encíclica é
uma carta circular. por isso não começa dizendo "a Fulano de Tal", mas tem como ins-
crição inicial "aos bispos, aos presbíteros e diáconos, aos religiosos, aos fiéis leigos e a
todas as pessoas de boa vontade". Trata-se de uma carta circular para o mundo inteiro.
Os documentos pontifícios, em geral, são designados pelas duas primeiras palavras do
texto latino. Aqui se trata das palavras Evangelium Vitae. Normalmente essas palavras
têm relação com o conteúdo do documento. Não é propriamente um título. O título é
Encíclica sobre o Valor e a Inviolabilidade da Vida Humana, mas a designação sintéti-
ca é Evangelium Vitae, porque essas palavras são as que abrem o texto latino.
Esta Encíclica, porém, não entra no plano global doutrinário do ensinamento que
João Paulo II pretendeu fazer desde o início do seu pontificado; mas é uma carta provo-
cada pelas circunstâncias históricas do momento. Aliás, não é a primeira vez que este
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tema é tratado. Existe, dos tempos de Paulo VI, uma declaração da Congregação Para a
Doutrina da Fé sobre o aborto provocado, que é citada repetidamente na Encíclica. Pos-
teriormente, em 22 de fevereiro de 1987, houve outra instrução sobre o respeito à vida
humana nascente e a dignidade da procriação, com o título Dominum et Vivificantem,
que, embora não focalize especificamente o tema do aborto, toca também nele. E, muito
mais recentemente ainda, a Carta às Famílias publicada pelo Papa João Paulo II, no dia
2 de fevereiro de 1994. Esta Carta às Famílias focaliza também, em um certo momento,
o problema do aborto.
A mesma coisa se pode dizer da eutanásia; embora nesse caso as legislações sejam
ainda incipientes e não cheguem verdadeiramente, fora algum caso particular, a um le-
que amplo de possibilidades para sua prática. Contudo, as campanhas, que claramente
se veiculam através dos meios de comunicação social, e as posições de certos partidos
políticos, que vão nessa direção, também indicavam um problema que não podia ser
ignorado.
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A encíclica Evangelium Vitae tem uma estrutura bastante fácil de compreender.
Uma pequena introdução nos fala do valor incomparável da pessoa humana, das novas
ameaças a essa vida, de como o Papa quer expor tudo isso em comunhão com os bispos
de todo o mundo, para o que, inclusive, pediu o parecer de todo o episcopado mundial,
recebendo apoio unânime para a publicação. Após essa pequena introdução, a Encíclica
divide-se em quatro capítulos e uma breve conclusão.
O primeiro capítulo, pode-se dizer que é mais ou menos "o ver", a descrição da re-
alidade: "A voz do sangue do teu irmão clama da terra até mim". Ou seja, as atuais a-
meaças à vida humana. Qual é a situação da sociedade atual, e que ameaças pairam so-
bre essa vida humana.
Os capítulos terceiro e quarto são, por assim dizer, "o agir", com uma diferença: o
capítulo terceiro é o agir no sentido negativo, o "não matarás"; portanto, a rejeição do
aborto e da eutanásia. O capítulo quarto também é "o agir", mas num sentido positivo.
Não basta dizer""o aborto, não". Não basta dizer: "a eutanásia, não". O que fazemos nós
para defender a vida e para que a vida tenha um sentido de plenitude? Não é portanto
apenas uma questão negativa, não. É dizer: você tem que favorecer toda a vida. E aí, por
exemplo, abre muito mais as perspectivas, incluindo toda a problemática, por exemplo,
dos deficientes físicos, da acolhida aos idosos, do sentido da vida nascente etc. Portanto
este capítulo quarto tem um sentido positivo.
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Significa, portanto, que o evangelho nos dá a boa notícia da vida. A vida é sempre e-
vangelho. A vida é sempre boa nova e boa notícia. E nesse sentido o Papa nos fala.
Gostaria de dar uma visão médica sobre esses aspectos do aborto e da eutanásia.
Logicamente, como cristãos praticantes, nós temos que ser contra toda forma de tentati-
va contra a vida. A medicina tem, principalmente neste século, obtido um desenvolvi-
mento muito grande. Assim é que novas tecnologias aparecem diariamente. Na tentativa
do progresso da ciência se tem tentado muitas outras formas até de procriação. Quem de
vocês ignora a fecundação in vitro? Alguns casais têm problemas e por um motivo
qualquer não conseguem obter a concepção. Há, então, a tentativa científica de fazer
essa fecundação in vitro.
Nós não poderíamos ser contra determinadas inovações contra determinado tipo
de progresso. Na realidade isso inclui uma série de outros problemas, como por exem-
plo, a fecundação de mais de um embrião. E o que fazer com esse outro embrião? Joga-
se fora? É uma vida. Estes problemas todos têm que ser pesados, argüidos. Tem que se
verificar se esse progresso da ciência não está trazendo também um favorecimento no
sentido de evitar a vida. Nós, hoje, quando falamos em aborto, na podemos evitar tam-
bém a avaliação da contracepção. A contracepção é um método, logicamente, de se evi-
tar uma fecundação e essa contracepção deve ser pesada em todos os seus aspectos. O
indivíduo que tem uma determinada instrução, uma família constituída que tem, por
exemplo, um problema. Vou lhe dar o meu testemunho pessoal. Eu sou pai de quatro
filhos e no quarto filho minha senhora teve uma atonia uterina, perdeu muito sangue, o
útero não voltou ao tamanho normal, os vasos ficaram sangrando e teve inclusive que
receber uma transfusão sangüínea, um risco de vida para ela. Que fazer? Vamos conti-
nuar crescendo a nossa família? Vamos evitar filhos? Então, no meu modo de ver cris-
tão, eu achei que era melhor eu parar em quatro filhos e ter uma mulher que me acom-
panhasse na educação deles do que continuar aumentando a nossa família. Por outro
lado, essa contracepção hoje é muito difundida e está principalmente, vamos dizer as-
sim, até na televisão. Vê-se em todo o lugar propagandas a favor da contracepção, prin-
cipalmente, por causa do problema da AIDS, que se difundiu no mundo todo. Logica-
mente, nós não estamos entendendo essa contracepção familiar, estamos entendendo
essa contracepção, vamos dizer assim, aleatória. Ela não é uma coisa programada, mas
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nós temos que levar em consideração também a difusão de determinadas doenças no
mundo. É o ponto de vista científico, é o ponto de vista médico.
Por outro lado, agora falando da eutanásia, temos que raciocinar que é impossível
nós aceitarmos este tipo de atitude. Mesmo com todo o progresso da ciência em que
hoje nós fazemos determinados tipos de cirurgia, em que vamos tentar continuar uma
vida, mas vamos, sem certeza absoluta de que o indivíduo faleceu, aproveitar os seus
órgãos. Quando falo em certeza absoluta é porque hoje em dia se considera como morte
de um indivíduo a morte cerebral. Quer dizer, não há nenhuma atividade cerebral, ms
aquele coração ainda pulsa. Seria justo nós negarmos uma possibilidade, embora até que
por milagre, desse indivíduo continuar vivendo e retirar os seus órgãos para que outros
vivam mais tempo? É uma questão muito difícil de nós entendermos e vivermos nos
dias de hoje. Mas eu acredito que todo médico que seja cristão deve ser contra esse tipo
de procedimento. Como também não admitimos a eutanásia mas acreditamos que seja
possível evitar-se o prolongamento de um sofrimento, não por impedimento de adminis-
tração de remédios para tirar a dor, por impedimento de determinado tipo de tratamento,
mas não fornecendo possibilidades de prolongamento desse sofrimento. Eu lhes dou um
exemplo: um ancião com noventa anos, já preso ao leito há algum tempo, que não tem
nenhuma possibilidade de melhora numa fase terminal de uma doença, por exemplo,
como o câncer. Não vai adiantar de nada continuarmos administrando remédios, fazen-
do quimioterapia ou radioterapia. Ele poderá até morrer da tentativa de tratamento, ao
invés de se curar. Quanto a esse tipo de procedimento, nós devemos ser contra e deixar
que o doente, até na sua hora de morte, tenha sua dignidade respeitada.
A encíclica "o Evangelho da Vida" faz uma análise abrangente sobre a ética da vi-
da e, sobretudo, sobre a inviolabilidade da vida.
Conclui esta agradável e, diria, comovente, leitura mais convencido ainda de que a
defesa intransigente da vida é fundamental, numa sociedade que se diz moderna e que
pretende ser livre.
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Terminei esta leitura convencido também de que defender a vida é obrigação de
todos os homens bem intencionados. A vida deve ter prioridade em relação a qualquer
outro valor.
No contexto em que é abordada na Encíclica, a ética cristã da vida merece uma re-
flexão profunda, não só por parte da comunidade católica, mas por parte de "todos os
homens de boa vontade", nas palavras de João Paulo II.
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está acima de qualquer outro valor, que deve ser defendida com austeridade e intransi-
gência; em suma, que está acima de qualquer outra consideração terrena.
João Paulo II, em seguida, adverte que é fundamental, na cruzada pela defesa da
vida, o papel dos educadores. A eles cabe a tarefa de mobilizar a sociedade para que "os
homens de boa vontade", para que a "reta razão" saia em defesa da vida - da cultura da
vida em oposição à cultura da morte. Esta evangelização, árdua, diária e permanente,
deve ser conduzida não apenas no núcleo da família, segundo o Santo Padre. Deve con-
tar também com a colaboração dos educadores e dos intelectuais católicos, chamados a
participar ativamente desta campanha em defesa do caráter inviolável da vida. Esta re-
flexão, sobre a ética cristã da vida, deve ser feita nos locais de trabalho - seja na escola,
na universidade, nos laboratórios, nos centros artísticos - enfim, no cotidiano de cada
um.
João Paulo II, ao conclamar os centros de estudos católicos espelhados pelo mun-
do a discutirem a questão da valorização da vida, lembra que muitas vezes os católicos
caem em contradição entre a fé cristã e suas conveniências pessoais - a isso chama de
subjetivismo moral. É o caso, por exemplo, de um católico praticante que conhece os
Mandamentos de Deus, contrários à interrupção da gravidez, mas que, diante do pro-
blema, por conveniências pessoais, se omite e, dessa forma, torna-se conivente com o
crime de aborto. Este comportamento, diz o Papa, é inaceitável.
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Sem dúvida, a vida é a prova da existência de Deus. Quando discuto a questão do
aborto em escolas do Rio de Janeiro, é muito comum alunos me dizerem: "Mas isso é
coisa da Igreja." Costumo responder: "Felizmente é coisa da Igreja, porque defender a
vida é tarefa que só as instituições sérias sabem fazer; e salvar vidas é certamente o
principal objetivo da Igreja Católica, na medida que a vida é obra do Criador, é a prova
da presença de Deus na Terra.
Diz o Sumo Pontífice que "curiosamente o atentado contra a vida, nesse contexto,
perde o caráter de crime para assumir o de direito". E, nesse quadro, lembra João Paulo
II, cabe à Igreja reafirmar o caráter inviolável da vida, principalmente quando ela é a-
meaçada num momento de total fragilidade, "quando se acha privada de qualquer capa-
cidade de defesa".
Ainda que não se concorde com a visão da Igreja Católica em relação à origem da
vida - uma obra do Criador -, do ponto de vista moral não se pode negar que a posição
da Igreja, colocada de forma tão clara e simples na Carta Encíclica, faz total sentido.
Quando se fala no direito da mulher ao abortamento, quando se fala em liberdade de
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escolha, certamente não se pensou oferecer ao feto a opção de escolher se deseja viver.
É portanto a supremacia do mais forte sobre o mais fraco. Que liberdade então é essa?
Por outro lado, a Igreja acha que não se deve prolongar artificialmente a vida de
um doente terminal, utilizando-se equipamentos caros e inacessíveis à economia de sua
família. O que não se pode permitir, diz a Igreja, é que sejam ministrados num paciente
terminal, ainda que seja sua vontade, substâncias letais, sob o pretexto de abreviar seu
sofrimento, ou de acelerar a morte de um membro da sociedade, porque ele é muito ido-
so e já não pode oferecer serviços à comunidade. A isso os apologistas da eutanásia de-
nominam de "morte assistida", enquanto a Igreja Católica prefere chamar de "assassina-
to em 1º grau".
O Santo Padre lembra que, ao nos defrontarmos com uma situação onde somos le-
vados a escolher entre o bem e o mal, entre a vida e a morte, entre a "cultura da vida e a
cultura da morte", temos o dever de escolher em favor da vida, sem nenhuma outra con-
sideração, porque a vida é no mundo a manifestação de Deus, o sinal de sua presença
entre nós.
O Papa conclui dizendo que "o homem não deve, por um lado, afinar valores co-
mo a dignidade da pessoa humana, a justiça e a paz, e, por outro, aceitar, tolerar ou
mesmo promover as mais diversas formas de desprezo e violação da vida". E encerra
sua Carta Encíclica reconhecendo que o Evangelho da Vida não é privilégio da Igreja
Católica, mas, ao contrário, é um dever de todos, pois somente "a cooperaçãodaqueles
que acreditam no valor da vida poderá evitar a derrota da cultura da vida".
Não será possível, segundo João Paulo II, "construir o bom comum sem reconhe-
cer e tutelar o direito à vida sobre o qual se fundamentam e desenvolvem todos os res-
tantes direitos inalienáveis do ser humano".
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Prof. Pedro W. Leitão Filho
Para este encontro, foi-me solicitado fazer uma leitura da Encíclica e comparar seu
conteúdo ao conteúdo de um documento produzido em 1993 por 60 Academias de Ci-
ência que se reuniram em Nova Delhi, na Índia, como preparação à reunião do Cairo de
1994. Nessa reunião de Nova Delhi, das 60 Academias de Ciência, certamente a Aca-
demia do Vaticano não estava presente, por razões já aqui aventadas, por uma certa dis-
cordância quanto ao conteúdo do que se preparava para o Cairo.
Nessa comparação que eu tentei, se destacam, como foi colocado aqui pelo Padre
Hortal, dois capítulos muito importante, possíveis de serem comparados. O capítulo
primeiro, ou seja, o capítulo em que se faz uma leitura da realidade, em que na Encícli-
ca, o Papa estabelece relações entre algumas questões - o crescimento populacional, o
controle da natalidade, o aborto e a eutanásia - e uma série de situações conjunturais e
mesmo estruturais da realidade contemporânea, discutindo ainda relações de causa e
efeito entre elas. Discute o que levaria a sociedade contemporânea a privilegiar aquilo
que ele chama de uma postura pró-morte e não uma postura pró-vida.
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Eu diria que ambas as leituras da realidade, apresentadas nos dois documentos - no
caso da Encíclica, numa forma mais breve, mas ainda assim muito crítica com respeito
aos padrões civilizacionais contemporâneos -, se aproximam, têm posturas semelhantes
em relação à realidade contemporânea. A estrutura é praticamente a mesma, os temas
são praticamente os mesmos. Com diferenças de profundidade e detalhes. No caso das
Academias, está se discutindo detalhes relativos a conteúdos e propostas a serem leva-
das à reunião das Nações Unidas.
O Papa se refere, por exemplo, no que diz respeito às causas, ao que levaria a so-
ciedade, a nossa civilização, a se afastar da vida, a praticar essa distorção que prefere a
morte à vida. refere-se à problemática social, à sociedade complexa, à pobreza, à angús-
tia, à exasperação, à luta pela sobrevivência, à dor insuportável e à violência do quotidi-
ano. Isso ele faz de passagem e diz ainda que a cultura da morte é promovida por fortes
correntes culturais, econômicas e políticas, portadores de uma concepção eficientista da
sociedade. Ele contrapõe a ética da solidariedade à ética da eficiência, à ética do prag-
matismo, como o Dr. Bastos Tigre acaba de ressaltar. É nessa "ética" da eficiência, do
curto prazo, do pragmatismo, que o Papa situa a questão do aborto.
Aí é que a diferença se estabelece. Até então, no que diz respeito a uma leitura da
realidade, no que diz respeito a uma crítica à iniqüidade, à menção à angústia, à exaspe-
ração, à luta pela sobrevivência, à dor e violência presentes nas sociedades modernas, os
dois documentos se aproximam. Eles se distanciam na postura assumida pela comuni-
dade científica de colocar-se a serviço do que entende como uma ameaça à estabilidade
ambiental, ou seja, o crescimento populacional desmedido, o crescimento populacional
descontrolado, capaz de contribuir fortemente para a exaustão dos recursos naturais,
para o desequilíbrio ambiental e, conseqüentemente, para colocar em risco a vida em
última instância, e nunca rapidez maior do que se estima que fosse aceitável.
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Mas o que chama a atenção, nas diferenças e nas aproximações entre os dois do-
cumentos, são dois fatos que gostaria de apontar para vocês. Em primeiro lugar, o papel
da intelectualidade, o papel dos "intelectuais orgânicos". Num caso, os cientistas, se
percebendo como formadores de opinião, como intelectuais do mundo contemporâneo
da sociedade moderna. Através de suas sociedades científicas, eles tomam a iniciativa
de assumir uma postura ante a questão do crescimento populacional e se colocam à dis-
posição, em vários momentos, para, em nome da preservação da vida, em nome da bus-
ca do equilíbrio ambiental, desenvolverem técnicas, métodos, instrumentos capazes de
estabilizar a população, capazes de reduzir e eventualmente eliminar a pobreza, capazes
de assegurar a eqüidade social e garantir para a mulher o controle sobre as suas decisões
reprodutivas. Ou seja, há, também do ponto de vista da comunidade científica, um con-
junto de valores a serem preservados, em nome dos quais se fala. Com essa enorme e
significativa diferença de postura orgânica, ou seja, a comunidade científica se apresen-
ta enquanto intelectuais, formadores de opinião, capazes de contribuir para o controle do
crescimento populacional, e, conseqüentemente, do equilíbrio ambiental.
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A questão que levanto com respeito às possibilidades de concretização da proposta
da Encíclica é justamente sobre a capacidade que teriam os intelectuais católicos, a co-
munidade científica católica, conclamados pelo Papa a trabalharem por uma cultura da
vida, de estabelecer procedimentos e práticas capazes de influenciar populações hoje em
dia extremamente envolvidas nessa prática do controle populacional.
Há cerca de dois anos trouxe, para uma reunião como esta, no centro Loyola, o re-
sultado de um trabalho que havia feito, uma pesquisa de opinião sobre a questão ambi-
ental, publicada num livro chamado O Que o Brasileiro Pensa da Ecologia. Nessa pes-
quisa formulei, para uma amostra da população brasileira com 3.650 pessoas de 260
municípios brasileiros, dentre as quais mulheres de várias faixas etárias, algumas ques-
tões relativas ao controle da natalidade: se essas pessoas achavam que o controle da
natalidade deveria ser estimulado, se achavam que isso deveria ser uma prática do Esta-
do, se achavam que o Estado deveria prover meios para que isso pudesse ser realizado.
Os resultados, para mim, foram extremamente surpreendentes. Mais de 75%, quase 85%
das pessoas, se disseram praticantes, se disseram favoráveis ao controle da natalidade,
em todas as suas formas, e afirmaram serem favoráveis a essa prática por parte do Esta-
do. No Brasil, um país, mesmo com algumas qualificações, tradicionalmente católico,
verificamos esse tipo de reação.
Por isso, embora a Encíclica tenha um valor extremamente significativo, por sua
leitura da realidade, pelas críticas que faz, aquilo que é proposto é uma tarefa árdua,
extremamente difícil. Considerando as possíveis causas - que ela mesma aponta - que
levariam as pessoas a aceitarem, ou a demonstrarem, este tipo de crença e atitudes, a
meu juízo é necessário muito mais do que um envolvimento da comunidade científica
católica, dos intelectuais orgânicos da Igreja Católica, para que posamos de algum modo
realizar uma reversão significativa de opinião e de atitude com respeito ao controle po-
pulacional, entendendo a;i práticas anticoncepcionais e até mesmo abortivas.
Já foram salientados muitos aspectos das questões tratadas pela Carta Encíclica
Evangelium Vitae: o ponto de vista teológico e canônico, o ponto de vista biomédico, o
ponto de vista jurídico e religioso, o ponto de vista das ciências sociais e da comunidade
científica. Eu vou salientar alguns aspectos d ponto de vista humanístico e teológico.
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Os dois primeiros capítulos da Encíclica salientam sobretudo o tema da vida ame-
açada - a cultura da morte versus a cultura de vida, num contexto muito dialético. O
Papa enumera diversas ameaças à vida: a miséria, a fome, a doença, a guerra, o comér-
cio de armas, as drogas, a sensualidade em forma de risco, instituições internacionais
que defendem ou promovem campanhas de tipo abortista, ou a favor de eutanásia etc.
Em seguida, trata de cada tema básico em particular.
Ontem, no Jornal do Brasil, tinha alguns trechos das memórias de um famoso polí-
tico - acho que se chama Juracy Magalhães - com histórias do seu tempo, dos anos qua-
renta, cinqüenta. Um amigo dele, político, se envolveu com uma cantora, que engravi-
dou e lhe disse: "Fiquei grávida, vou ter uma criança, mas, se você deseja, para evitar o
escândalo, posso abortar". Ele então se aconselhou com um amigo, o que acho estranho,
pois hoje em dia provavelmente não faria isso, não se aconselharia com um amigo e o
amigo não teria coragem de dizer o que esse amigo lhe falou: "Você não tem direito a
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matar essa vida". Ele aceitou o conselho. E o Magalhães, com grande surpresa, diz:
"Pois é, o menino se deu muito bem, foi muito bem aceito por seus irmãos, foi um me-
nino muito bom." Conta uma bela história.
Quer dizer, era assim que a humanidade via essa questão durante séculos. Não é
um problema da Igreja católica. É um problema da humanidade. A humanidade via as
coisas assim, pelo menos fundamentalmente. Muitas regiões da África, da América La-
tina, mas também da Europa - da Europa católica e da Europa protestante - sempre fo-
ram extremamente vitalistas. Aqueles filmes de Bergman, em que conta da sua infância,
mostram uma casa com tantas primas, tantas tias. Uma delas fica grávida de um tio,
algo assim, mas o menino nasce e todo mundo ficava contente. No ano seguinte ele es-
tava na festa com os outros meninos, todo o mundo alegre e a vida ia para a frente. Isso
tudo ilustra que não havia uma mentalidade de morte. havia uma mentalidade de vida.
Os "artifícios" pelos quais a vida chega podem ser mais ou menos legais, jurídicos, con-
vencionais ou não, um pouco aquilo que o filósofo Kant chama "as astúcias da nature-
za", para que a vida vá para frente.
Isso é só para dizer que este é um dos temas que, praticamente, armaram mais o
Papa, em torno dos anos noventa, conforme ia crescendo essa mentalidade de cultura de
morte que chegava à opinião pública e, através da opinião pública, aos lobbies de opini-
ão, que chagavam aos parlamentares, que mudavam as leis, no sentido da cultura de
morte. Passando-se do delito ao direito, o que era um delito passava a ser um direito.
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O Papa não gostava, resistiu durante anos à expressão "estruturas de pecado", usa-
da pelos teólogos da libertação e pela esquerda católica nos anos quarenta e cinqüenta, a
respeito do capitalismo. Estrutura de pecado porque gera opressão, gera miséria etc.,
onde há miséria, capitalismo selvagem. Mas nesta Encíclica ele a utiliza. Durante os
últimos anos o Papa tem usado a categoria "estruturas de morte" e aqui também, para
dizer que esta mentalidade abortista, legitimista, é uma verdadeira estrutura de morte.
Quer dizer. não abortar é quase estranho, uma situação assim um pouco embaraçosa. A
solução lógica parece ser essa.
Até aqui procurei salientar as duas primeiras partes da Encíclica. Este é um pen-
samento que eu acho chave na mentalidade do Papa. Outros aspectos já foram salienta-
dos aqui, o materialismo ambiental, o hedonismo, o eclipse de Deus, que naturalmente
traz o eclipse do sentido do homem, do sentido da vida.
Agora, como teólogo, enfatizarei mais o capítulo três. Já se disse que esta é a parte
mais solene, mais dramática e mais comprometedora da Encíclica. E, teologicamente
falando, o Papa usa três vezes a fórmula praticamente do que se chama em teologia "o
depósito da fé" e a regra de fé. Quer dizer. o Papa só podia falar isto. Tinha que falar
isto e, se não falasse, seria um Papa omisso. Porque o que a Igreja católica sempre ensi-
nou foi isto. E ensinou não como coisa própria, como protagonismo, pois o conceito de
depósito é um conceito do mundo antigo, está no Império Romano, no plano jurídico.
Por exemplo, se alguém deixasse 3.000 denários com o senador Sistércio, teria o direito
que lhe fosse restituída quantia exatamente igual. Se não restituísse, pelo Direito Roma-
no, tinha que dar duas vezes, ou, em determinado casos, quatro vezes a quantia. A mes-
ma norma também existia no mundo grego. Como quando Zaqueu chega a Jesus e diz:
"hoje entrou a salvação na minha casa, então eu vou dar esmolas aos pobres, e se de-
fraudei alguém, se de alguém eu tirei, então vou dar quatro vezes esse tanto". Quer di-
zer: "vou ficar em paz com Deus e com os homens". Este conceito de depósito é usado
no Novo Testamento, pela tradição paulina, para falar do depósito da fé que Paulo con-
fia a Timóteo e a Tito, aos primeiros bispos, aos primeiros discípulos dos apóstolos,
para que eles, por sua vez, o passem a outros homens retos, para as novas gerações.
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derno ou se não é moderno, não é problema dela. Quando o Papa foi ao Chile, pergunta-
ram os jornalistas; "O senhor vai pregar a democracia a Pinochet?". Ele respondeu:
"Vou pregar o Evangelho". Democracia não é cômputo do Papa, não é tarefa do Papa. A
democracia pode ser boa, bem vivida e bem usada, como regra de civilização, mas a
democracia não quer dizer que por maioria eu possa votar qualquer coisa. Um tema re-
lativo ao bem comum, sim. Mas votar temas contra a moral, contra a vida, essa demo-
cracia seria perversa, como o Papa vai dizer na Encíclica.
Eu não sou especialista em temas de aborto, sou mais teólogo dogmático, me de-
dico à teologia dogmática e sistemática, me Interesso mais por problemas fundamentais.
Mas, naturalmente, como teólogo, como pessoa culta, procuro estar Informado. E me
chamou atenção o caso de um dos maiores abortistas ingleses, um grande médico, um
cientista. Ele fazia uma violenta campanha a favor do aborto. E, em sua campanha, quis
promover um vídeo, filmando um aborto. Quando filmava, e viu como o feto reagia
àquele ataque, em que estava sendo destruído, ele teve uma iluminação e disse: "Não!
De fato, eu estou errado". Passou, de abortista empenhado e furibundo, a ser um anti-
abortista convicto. Como dizia o Dr. Heitor, há uma banalização tremenda desses temas.
Fala-se de temas de extrema gravidade, temas que por séculos feriram a sensibilidade
humana, antes de cristã e católica, com uma banalidade, para não dizer malícia, com
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uma superficialidade que horroriza. E este é um dos pontos, no plano mais profundo do
sentimento, em que toca o Papa. O Papa está convencido de que o problema da vida é o
problema de nossa civilização.
Mesmo como obra de cultura humana, a Igreja, para salvar a cultura humana, hoje,
tem que defender a vida. Além de que, como digo, o Papa só pode falar o que falou.
Porque é o que diz não só a consciência religiosa da lei moral, o que se chama lei natu-
ral em sentido teológico, filosófico e religioso, mas também a lei positiva, toda a tradi-
ção bíblica e, depois, a tradição eclesiástica. O Papa cita textos antigos, mas poderia
citar uma verdadeira enciclopédia de textos, desde a epístola de Diometo até Tertuliano.
Em todos os vinte séculos de cristianismo, as Igrejas eram convictamente vitalistas, a
favor da vida.
Nestes três números, o Papa, a Igreja, vai dizer o seguinte: o princípio fundamen-
tal é que a morte direta e voluntária do inocente é sempre gravemente moral. Isto está na
filosofia mora', qualquer Kant ou Hegel não poderiam dizer outra coisa diferente. Não
se pode por razão de Estado matar um inocente. Não se pode por terrorismo matar um
inocente. Isso é imoral. Se se faz, por política de fato, é imoral. Não se pode considerar
que isso possa ser um bem. A Igreja não pode aprovar isto. O cristianismo nunca apro-
vou e nunca pode aprovar e nunca aprovará.
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O Papa apela portanto ao depósito da fé da Sagrada Escritura, a regra de fé da tra-
dição católica e o magistério constante, ordinário e universal do episcopado católico. O
que, para a teologia católica são as três colunas vinculantes, vamos dizer, o depósito da
fé, a regra de fé e o magistério vivo e autêntico da Igreja. Então o Papa diz: não falo
como João Paulo li, falo como bispo de Roma em comunhão com os nossos irmãos do
episcopado aquilo que a Igreja sempre, em todas as partes, julgou que era verdade de fé
divina.
O Papa faz então o seu ofício de Papa da igreja Católica. E, quem não estiver de
acordo, saia da Igreja Católica e pronto. Fique na Igreja quem quiser ficar. Porque a
coisa é assim. A Igreja Católica é um grande clube. Quem não quer participar, não par-
ticipa. Participa livremente. O fato de ser batizado de criança não quer dizer nada. O
batismo é atualizado na primeira missa a que se vai. Se a pessoa vai convicta à missa, já
está atualizando o seu batismo. Está vivendo a fé. Se não, o que recebeu? Não recebeu
nada. Se a pessoa foi batizada em criança, mas não quer ser católica, muito bem. Não
precisa se preocupar, porque não é nada. O batismo é sacramento da fé. Se alguém não
quer ter fé, ou não pode ter fé, ou não chega a ter fé, então não tenha. Acabou. Não há
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problema. Que cada um fique na sua, que nós ficamos na nossa. Agora, não temos por-
que claudicar moralmente e humanamente nas nossas posições.
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