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ISSN nº 1676-7748

REVISTA MAGIS
CADERNOS DE FÉ E CULTURA

Número 10 – ano 1996

A CARTA ENCÍCLICA
EVANGELIUM VITAE
REFLETINDO SOBRE O VALOR INCOMPA-
RÁVEL DA VIDA HUMANA
A CARTA ENCÍCLICA EVANGELIUM VITAE REFLETINDO SOBRE O
VALOR INCOMPARÁVEL DA VIDA HUMANA

Pe. Jesús Hortal Sanches, SJ


Dr. Francisco de Paula Amarante
Dr. Heitor Bastos Tigre
Prof. Pedro W. Leitão Filho
Pe. Félix Pastor, SJ

Pe. Jesús Hortal Sanches, SJ

Embora seja uma coisa bem conhecida, nunca é de mais explicar o que significa
uma carta encíclica, qual é o seu valor e em que contexto esta Encíclica foi escrita. "En-
cíclica" é uma palavra grega que significa simplesmente circular. Uma carta encíclica é
uma carta circular. por isso não começa dizendo "a Fulano de Tal", mas tem como ins-
crição inicial "aos bispos, aos presbíteros e diáconos, aos religiosos, aos fiéis leigos e a
todas as pessoas de boa vontade". Trata-se de uma carta circular para o mundo inteiro.
Os documentos pontifícios, em geral, são designados pelas duas primeiras palavras do
texto latino. Aqui se trata das palavras Evangelium Vitae. Normalmente essas palavras
têm relação com o conteúdo do documento. Não é propriamente um título. O título é
Encíclica sobre o Valor e a Inviolabilidade da Vida Humana, mas a designação sintéti-
ca é Evangelium Vitae, porque essas palavras são as que abrem o texto latino.

As encíclicas são documentos que chamamos do Magistério Ordinário, ou seja, do


ensinamento que o Papa publica, no exercício de seu múnus de primaz da Igreja Univer-
sal, como parte da sua tarefa quotidiana. As encíclicas normalmente focalizam algum
ponto doutrinário mais importante, ou por causa do momento histórico em que se en-
contra, ou, como tem feito João Paulo II, dentro de todo um programa de desenvolvi-
mento doutrinário. Assim, João Paulo II tem publicado encíclicas sobre Cristo, sobre o
Espírito Santo, sobre Maria, sobre a Santíssima Trindade etc., conforme um plano bas-
tante sistemático.

Esta Encíclica, porém, não entra no plano global doutrinário do ensinamento que
João Paulo II pretendeu fazer desde o início do seu pontificado; mas é uma carta provo-
cada pelas circunstâncias históricas do momento. Aliás, não é a primeira vez que este

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tema é tratado. Existe, dos tempos de Paulo VI, uma declaração da Congregação Para a
Doutrina da Fé sobre o aborto provocado, que é citada repetidamente na Encíclica. Pos-
teriormente, em 22 de fevereiro de 1987, houve outra instrução sobre o respeito à vida
humana nascente e a dignidade da procriação, com o título Dominum et Vivificantem,
que, embora não focalize especificamente o tema do aborto, toca também nele. E, muito
mais recentemente ainda, a Carta às Famílias publicada pelo Papa João Paulo II, no dia
2 de fevereiro de 1994. Esta Carta às Famílias focaliza também, em um certo momento,
o problema do aborto.

A carta encíclica Evangelium Vitae, como digo, é um documento que responde a


uma problemática do momento e trata fundamentalmente de dois temas, unidos, no sen-
tido da vida humana. São eles o aborto e a eutanásia; as duas coisas. Não se trata de uma
encíclica sobre o aborto. É sobre o aborto e a eutanásia. Por que o Papa fala disso? Por-
que houve primeiro aquela Conferência Internacional do Cairo sobre a demografia, em
que a Santa Sé se empenhou a fundo para que o aborto não fosse apresentado como um
meio de política de natalidade dentro das Nações Unidas. Mas isso provocou uma rea-
ção bastante azeda e violenta na imprensa secular, com críticas muito fortes à posição
da Igreja Católica. Era necessário, portanto, que a Igreja expusesse claramente a sua
doutrina a respeito. Também, dentro de todo este contexto, não há dúvida de que as le-
gislações contemporâneas têm ido no sentido de ampliar cada vez mais os supostos de
aborto, não apenas tolerado, mas até legitimado e subvencionado com fundos estatais,
dado que se pretende que os sistemas públicos de saúde paguem os abortos, sob certas
condições, mas cada vez em maior número de casos. Se unimos isso a certas posições
do movimento feminista, inclusive, em alguns casos de grupos que se proclamam cató-
licos, como é o chamado "Católicas pela Livre Escolha", nos Estados Unidos, percebe-
se a necessidade de que a Santa Sé deixasse muito clara qual é sua posição diante dessa
questão.

A mesma coisa se pode dizer da eutanásia; embora nesse caso as legislações sejam
ainda incipientes e não cheguem verdadeiramente, fora algum caso particular, a um le-
que amplo de possibilidades para sua prática. Contudo, as campanhas, que claramente
se veiculam através dos meios de comunicação social, e as posições de certos partidos
políticos, que vão nessa direção, também indicavam um problema que não podia ser
ignorado.

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A encíclica Evangelium Vitae tem uma estrutura bastante fácil de compreender.
Uma pequena introdução nos fala do valor incomparável da pessoa humana, das novas
ameaças a essa vida, de como o Papa quer expor tudo isso em comunhão com os bispos
de todo o mundo, para o que, inclusive, pediu o parecer de todo o episcopado mundial,
recebendo apoio unânime para a publicação. Após essa pequena introdução, a Encíclica
divide-se em quatro capítulos e uma breve conclusão.

O primeiro capítulo, pode-se dizer que é mais ou menos "o ver", a descrição da re-
alidade: "A voz do sangue do teu irmão clama da terra até mim". Ou seja, as atuais a-
meaças à vida humana. Qual é a situação da sociedade atual, e que ameaças pairam so-
bre essa vida humana.

O capítulo segundo corresponde ao "julgar" e é uma reflexão teológica, à luz da


palavra de Deus""Vim para que tenham vida". A mensagem cristã sobre a vida. Começa
já com o Antigo testamento mas se centra sobretudo na figura de Jesus Cristo, que se
proclama a si mesmo: caminho, verdade e vida. E que define a sua tarefa: "eu vim para
que todos tenham vida e a tenham em plenitude". A Encíclica, portanto, não pretende
mostrar simplesmente o lado negativo, mas se concentra no aspecto positivo: na digni-
dade da vida humana, em seu valor inapreciável e portanto, na necessidade de defesa
dessa vida.

Os capítulos terceiro e quarto são, por assim dizer, "o agir", com uma diferença: o
capítulo terceiro é o agir no sentido negativo, o "não matarás"; portanto, a rejeição do
aborto e da eutanásia. O capítulo quarto também é "o agir", mas num sentido positivo.
Não basta dizer""o aborto, não". Não basta dizer: "a eutanásia, não". O que fazemos nós
para defender a vida e para que a vida tenha um sentido de plenitude? Não é portanto
apenas uma questão negativa, não. É dizer: você tem que favorecer toda a vida. E aí, por
exemplo, abre muito mais as perspectivas, incluindo toda a problemática, por exemplo,
dos deficientes físicos, da acolhida aos idosos, do sentido da vida nascente etc. Portanto
este capítulo quarto tem um sentido positivo.

A conclusão é bastante breve e, como acontece com freqüência nos documentos de


João Paulo II, termina numa oração Mariana. Maria, por quem a vida veio ao mundo,
nos fala. O ponto fundamental, portanto, é a parte positiva. Por isso, as primeiras pala-
vras são "O Evangelho da Vida". Não esqueçamos: evangelho é boa nova, boa notícia.

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Significa, portanto, que o evangelho nos dá a boa notícia da vida. A vida é sempre e-
vangelho. A vida é sempre boa nova e boa notícia. E nesse sentido o Papa nos fala.

Dr. Francisco Amarante

Gostaria de dar uma visão médica sobre esses aspectos do aborto e da eutanásia.
Logicamente, como cristãos praticantes, nós temos que ser contra toda forma de tentati-
va contra a vida. A medicina tem, principalmente neste século, obtido um desenvolvi-
mento muito grande. Assim é que novas tecnologias aparecem diariamente. Na tentativa
do progresso da ciência se tem tentado muitas outras formas até de procriação. Quem de
vocês ignora a fecundação in vitro? Alguns casais têm problemas e por um motivo
qualquer não conseguem obter a concepção. Há, então, a tentativa científica de fazer
essa fecundação in vitro.

Nós não poderíamos ser contra determinadas inovações contra determinado tipo
de progresso. Na realidade isso inclui uma série de outros problemas, como por exem-
plo, a fecundação de mais de um embrião. E o que fazer com esse outro embrião? Joga-
se fora? É uma vida. Estes problemas todos têm que ser pesados, argüidos. Tem que se
verificar se esse progresso da ciência não está trazendo também um favorecimento no
sentido de evitar a vida. Nós, hoje, quando falamos em aborto, na podemos evitar tam-
bém a avaliação da contracepção. A contracepção é um método, logicamente, de se evi-
tar uma fecundação e essa contracepção deve ser pesada em todos os seus aspectos. O
indivíduo que tem uma determinada instrução, uma família constituída que tem, por
exemplo, um problema. Vou lhe dar o meu testemunho pessoal. Eu sou pai de quatro
filhos e no quarto filho minha senhora teve uma atonia uterina, perdeu muito sangue, o
útero não voltou ao tamanho normal, os vasos ficaram sangrando e teve inclusive que
receber uma transfusão sangüínea, um risco de vida para ela. Que fazer? Vamos conti-
nuar crescendo a nossa família? Vamos evitar filhos? Então, no meu modo de ver cris-
tão, eu achei que era melhor eu parar em quatro filhos e ter uma mulher que me acom-
panhasse na educação deles do que continuar aumentando a nossa família. Por outro
lado, essa contracepção hoje é muito difundida e está principalmente, vamos dizer as-
sim, até na televisão. Vê-se em todo o lugar propagandas a favor da contracepção, prin-
cipalmente, por causa do problema da AIDS, que se difundiu no mundo todo. Logica-
mente, nós não estamos entendendo essa contracepção familiar, estamos entendendo
essa contracepção, vamos dizer assim, aleatória. Ela não é uma coisa programada, mas

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nós temos que levar em consideração também a difusão de determinadas doenças no
mundo. É o ponto de vista científico, é o ponto de vista médico.

Por outro lado, agora falando da eutanásia, temos que raciocinar que é impossível
nós aceitarmos este tipo de atitude. Mesmo com todo o progresso da ciência em que
hoje nós fazemos determinados tipos de cirurgia, em que vamos tentar continuar uma
vida, mas vamos, sem certeza absoluta de que o indivíduo faleceu, aproveitar os seus
órgãos. Quando falo em certeza absoluta é porque hoje em dia se considera como morte
de um indivíduo a morte cerebral. Quer dizer, não há nenhuma atividade cerebral, ms
aquele coração ainda pulsa. Seria justo nós negarmos uma possibilidade, embora até que
por milagre, desse indivíduo continuar vivendo e retirar os seus órgãos para que outros
vivam mais tempo? É uma questão muito difícil de nós entendermos e vivermos nos
dias de hoje. Mas eu acredito que todo médico que seja cristão deve ser contra esse tipo
de procedimento. Como também não admitimos a eutanásia mas acreditamos que seja
possível evitar-se o prolongamento de um sofrimento, não por impedimento de adminis-
tração de remédios para tirar a dor, por impedimento de determinado tipo de tratamento,
mas não fornecendo possibilidades de prolongamento desse sofrimento. Eu lhes dou um
exemplo: um ancião com noventa anos, já preso ao leito há algum tempo, que não tem
nenhuma possibilidade de melhora numa fase terminal de uma doença, por exemplo,
como o câncer. Não vai adiantar de nada continuarmos administrando remédios, fazen-
do quimioterapia ou radioterapia. Ele poderá até morrer da tentativa de tratamento, ao
invés de se curar. Quanto a esse tipo de procedimento, nós devemos ser contra e deixar
que o doente, até na sua hora de morte, tenha sua dignidade respeitada.

Dr. Heitor Bastos Tigre

A encíclica "o Evangelho da Vida" faz uma análise abrangente sobre a ética da vi-
da e, sobretudo, sobre a inviolabilidade da vida.

Conclui esta agradável e, diria, comovente, leitura mais convencido ainda de que a
defesa intransigente da vida é fundamental, numa sociedade que se diz moderna e que
pretende ser livre.

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Terminei esta leitura convencido também de que defender a vida é obrigação de
todos os homens bem intencionados. A vida deve ter prioridade em relação a qualquer
outro valor.

No contexto em que é abordada na Encíclica, a ética cristã da vida merece uma re-
flexão profunda, não só por parte da comunidade católica, mas por parte de "todos os
homens de boa vontade", nas palavras de João Paulo II.

Neste final de milênio, apesar da indiscutível obrigação do Estado, legitimamente


organizado, de assegurar a todos os membros da sociedade o direito à vida, testemu-
nhamos o mundo banal com que se trata a questão da vida nascente e da eutanásia.

Esta é, felizmente, uma preocupação permanente da Igreja Católica, que, consci-


ente da necessidade de se fazer uma reflexão sobre o caráter inviolável da vida, pediu ao
Papa João Paulo II que nos desse uma Encíclica dedicada toda ela à defesa da vida. Foi
assim que teve início a Carta Encíclica Evangelium Vitae.

O documento papal é resultado de uma assembléia de Cardeais que, reunida em


Roma, em abril de 1991, pediu que o Sumo Pontífice reafirmasse à comunidade católica
em particular e ao mundo, em geral, o valor da vida, e, sobretudo, o caráter inviolável
da vida. O Papa, concordando que era necessário elaborar um documento que reafirmas-
se a posição da Igreja Católica em relação ao mistério da vida, atendeu prontamente o
pedido daquele Consistório, mas não sem antes determinar que os prelados ali presentes
colaborassem com ele nesse extenso trabalho, enviando material sobre o assunto. Queria
o Papa que todas as dioceses, ao apresentarem idéias, pudessem expressar suas respecti-
vas posições em relação ao papel a ser desempenhado pela Igreja na defesa da vida nas-
cente, tema central da Carta Encíclica. A preocupação de João Paulo II era que o docu-
mento fosse efetivamente a voz da Igreja Católica, presente em todos os quadrantes da
terra. Por isso, o resultado final deste trabalho é, sem dúvida, a síntese do pensamento
da Igreja Católica, tanto da África como das Américas, tanto da Europa como da Ásia e
Oceania.

Neste documento, em que o Papa chama a atenção para o caráter santificado da


vida - a vida como uma dádiva de Deus - somos lembrados de que,m mesmo entre os
membros da Igreja Católica, infelizmente não há uma convicção plena de que a vida

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está acima de qualquer outro valor, que deve ser defendida com austeridade e intransi-
gência; em suma, que está acima de qualquer outra consideração terrena.

João Paulo II, em seguida, adverte que é fundamental, na cruzada pela defesa da
vida, o papel dos educadores. A eles cabe a tarefa de mobilizar a sociedade para que "os
homens de boa vontade", para que a "reta razão" saia em defesa da vida - da cultura da
vida em oposição à cultura da morte. Esta evangelização, árdua, diária e permanente,
deve ser conduzida não apenas no núcleo da família, segundo o Santo Padre. Deve con-
tar também com a colaboração dos educadores e dos intelectuais católicos, chamados a
participar ativamente desta campanha em defesa do caráter inviolável da vida. Esta re-
flexão, sobre a ética cristã da vida, deve ser feita nos locais de trabalho - seja na escola,
na universidade, nos laboratórios, nos centros artísticos - enfim, no cotidiano de cada
um.

João Paulo II, ao conclamar os centros de estudos católicos espelhados pelo mun-
do a discutirem a questão da valorização da vida, lembra que muitas vezes os católicos
caem em contradição entre a fé cristã e suas conveniências pessoais - a isso chama de
subjetivismo moral. É o caso, por exemplo, de um católico praticante que conhece os
Mandamentos de Deus, contrários à interrupção da gravidez, mas que, diante do pro-
blema, por conveniências pessoais, se omite e, dessa forma, torna-se conivente com o
crime de aborto. Este comportamento, diz o Papa, é inaceitável.

O Pontífice sugere que temos a obrigação moral de ajudar, de servir ao próximo.


Servir ao próximo é, segundo as palavras de João Paulo II, "servir à vida em toda sua
plenitude".

O Papa demonstra de forma absolutamente convincente na Encíclica Evangelho


da Vida que, sem fé cristã, sem fé em Deus, não há respeito pela vida. Nesse passo, urge
que se consagre um olhar contemplativo em relação à vida; que se olhe para a vida em
toda sua profundidade, reconhecendo nela a beleza, a dimensão de generosidade de seu
Criador. Só assim, ensina, seremos capazes de venerar a vida como um dom de Deus e
honrar todos os homens como filhos do Criador. Este, segundo o Papa, é o verdadeiro
caminho da paz e da liberdade.

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Sem dúvida, a vida é a prova da existência de Deus. Quando discuto a questão do
aborto em escolas do Rio de Janeiro, é muito comum alunos me dizerem: "Mas isso é
coisa da Igreja." Costumo responder: "Felizmente é coisa da Igreja, porque defender a
vida é tarefa que só as instituições sérias sabem fazer; e salvar vidas é certamente o
principal objetivo da Igreja Católica, na medida que a vida é obra do Criador, é a prova
da presença de Deus na Terra.

A questão do aborto, de permitir que a mulher decida se o momento é próprio ou


não para gerar o feto que germina em seu ventre, é colocada pela sociedade como uma
questão de liberdade. A mulher liberada, dizem os abortistas, deve ter a escolha de fazer
ou não um aborto. Ora, na realidade, o que se pretende é legitimar o crime do aborto; é
dar à sociedade os elementos jurídicos para que possam ser eliminadas vidas em forma-
ção; para que se cometa um crime com a proteção da lei. A Carta Encíclica atribui esta
confusão à profunda crise de cultura que predomina hoje em dia; que torna cada vez
mais difícil compreender o verdadeiro sentido do homem, de seus direitos e de seus
deveres.

Diz o Sumo Pontífice que "curiosamente o atentado contra a vida, nesse contexto,
perde o caráter de crime para assumir o de direito". E, nesse quadro, lembra João Paulo
II, cabe à Igreja reafirmar o caráter inviolável da vida, principalmente quando ela é a-
meaçada num momento de total fragilidade, "quando se acha privada de qualquer capa-
cidade de defesa".

A Encíclica aborda, também, a posição da Igreja Católica na questão da eutanásia


- tão mal interpretada de modo geral. Lembra que sua oposição não é em relação à euta-
násia em si, mas ao de se permitir que o homem decida quem deve viver e quem deve
morrer - tarefa que não lhe compete. O momento de viver e o momento de morrer não
pode ser ditado por conveniência econômica, de ordem prática e individual. E esta é
uma tentação cada vez maior, no mundo moderno.

Ainda que não se concorde com a visão da Igreja Católica em relação à origem da
vida - uma obra do Criador -, do ponto de vista moral não se pode negar que a posição
da Igreja, colocada de forma tão clara e simples na Carta Encíclica, faz total sentido.
Quando se fala no direito da mulher ao abortamento, quando se fala em liberdade de

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escolha, certamente não se pensou oferecer ao feto a opção de escolher se deseja viver.
É portanto a supremacia do mais forte sobre o mais fraco. Que liberdade então é essa?

Por outro lado, a Igreja acha que não se deve prolongar artificialmente a vida de
um doente terminal, utilizando-se equipamentos caros e inacessíveis à economia de sua
família. O que não se pode permitir, diz a Igreja, é que sejam ministrados num paciente
terminal, ainda que seja sua vontade, substâncias letais, sob o pretexto de abreviar seu
sofrimento, ou de acelerar a morte de um membro da sociedade, porque ele é muito ido-
so e já não pode oferecer serviços à comunidade. A isso os apologistas da eutanásia de-
nominam de "morte assistida", enquanto a Igreja Católica prefere chamar de "assassina-
to em 1º grau".

O médico que acompanha um paciente nessa situação é, de fato, cúmplice de um


crime premeditado, na opinião do Papa. Curiosamente, diz João Paulo II, "esse ato in-
sensato aparece matizado com um sentido equivocado de compaixão humana".

O Santo Padre lembra que, ao nos defrontarmos com uma situação onde somos le-
vados a escolher entre o bem e o mal, entre a vida e a morte, entre a "cultura da vida e a
cultura da morte", temos o dever de escolher em favor da vida, sem nenhuma outra con-
sideração, porque a vida é no mundo a manifestação de Deus, o sinal de sua presença
entre nós.

O Papa conclui dizendo que "o homem não deve, por um lado, afinar valores co-
mo a dignidade da pessoa humana, a justiça e a paz, e, por outro, aceitar, tolerar ou
mesmo promover as mais diversas formas de desprezo e violação da vida". E encerra
sua Carta Encíclica reconhecendo que o Evangelho da Vida não é privilégio da Igreja
Católica, mas, ao contrário, é um dever de todos, pois somente "a cooperaçãodaqueles
que acreditam no valor da vida poderá evitar a derrota da cultura da vida".

Não será possível, segundo João Paulo II, "construir o bom comum sem reconhe-
cer e tutelar o direito à vida sobre o qual se fundamentam e desenvolvem todos os res-
tantes direitos inalienáveis do ser humano".

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Prof. Pedro W. Leitão Filho

Para este encontro, foi-me solicitado fazer uma leitura da Encíclica e comparar seu
conteúdo ao conteúdo de um documento produzido em 1993 por 60 Academias de Ci-
ência que se reuniram em Nova Delhi, na Índia, como preparação à reunião do Cairo de
1994. Nessa reunião de Nova Delhi, das 60 Academias de Ciência, certamente a Aca-
demia do Vaticano não estava presente, por razões já aqui aventadas, por uma certa dis-
cordância quanto ao conteúdo do que se preparava para o Cairo.

Esse documento trata da questão do crescimento populacional mundial global, em


seus múltiplos aspectos, dentre os quais as questões que eles chamam de saúde, as ques-
tões relativas à saúde populacional, o que tem a ver diretamente com o controle do cres-
cimento populacional, com o controle da natalidade.

Nessa comparação que eu tentei, se destacam, como foi colocado aqui pelo Padre
Hortal, dois capítulos muito importante, possíveis de serem comparados. O capítulo
primeiro, ou seja, o capítulo em que se faz uma leitura da realidade, em que na Encícli-
ca, o Papa estabelece relações entre algumas questões - o crescimento populacional, o
controle da natalidade, o aborto e a eutanásia - e uma série de situações conjunturais e
mesmo estruturais da realidade contemporânea, discutindo ainda relações de causa e
efeito entre elas. Discute o que levaria a sociedade contemporânea a privilegiar aquilo
que ele chama de uma postura pró-morte e não uma postura pró-vida.

Neste sentido, a Encíclica é extremamente pertinente no que diz respeito a uma


leitura radical, a uma crítica radical do que se convencionou chamar de civilização oci-
dental moderna. A modernidade, em seus fundamentos, é revista nesse sentido primeiro
capítulo da Encíclica. É feita uma crítica conducente a uma reflexão a respeito dos valo-
res, da ética que perpassa o comportamento e os modelos civilizacionais da nossa mo-
dernidade.

Em que se distancia a crítica feita pelo Papa, apresentada na Encíclica, da mesma


estrutura contida no documento preparado pelas 60 Academias reunidas em Nova Delhi,
por diversos cientistas, incluindo alguns Prêmios Nobel, em preparação para a reunião
do Cairo? Em muito pouco, com uma única e radical exceção: a questão do aborto, a
questão da saúde feminina, a questão do controle da natalidade.

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Eu diria que ambas as leituras da realidade, apresentadas nos dois documentos - no
caso da Encíclica, numa forma mais breve, mas ainda assim muito crítica com respeito
aos padrões civilizacionais contemporâneos -, se aproximam, têm posturas semelhantes
em relação à realidade contemporânea. A estrutura é praticamente a mesma, os temas
são praticamente os mesmos. Com diferenças de profundidade e detalhes. No caso das
Academias, está se discutindo detalhes relativos a conteúdos e propostas a serem leva-
das à reunião das Nações Unidas.

O Papa se refere, por exemplo, no que diz respeito às causas, ao que levaria a so-
ciedade, a nossa civilização, a se afastar da vida, a praticar essa distorção que prefere a
morte à vida. refere-se à problemática social, à sociedade complexa, à pobreza, à angús-
tia, à exasperação, à luta pela sobrevivência, à dor insuportável e à violência do quotidi-
ano. Isso ele faz de passagem e diz ainda que a cultura da morte é promovida por fortes
correntes culturais, econômicas e políticas, portadores de uma concepção eficientista da
sociedade. Ele contrapõe a ética da solidariedade à ética da eficiência, à ética do prag-
matismo, como o Dr. Bastos Tigre acaba de ressaltar. É nessa "ética" da eficiência, do
curto prazo, do pragmatismo, que o Papa situa a questão do aborto.

Aí é que a diferença se estabelece. Até então, no que diz respeito a uma leitura da
realidade, no que diz respeito a uma crítica à iniqüidade, à menção à angústia, à exaspe-
ração, à luta pela sobrevivência, à dor e violência presentes nas sociedades modernas, os
dois documentos se aproximam. Eles se distanciam na postura assumida pela comuni-
dade científica de colocar-se a serviço do que entende como uma ameaça à estabilidade
ambiental, ou seja, o crescimento populacional desmedido, o crescimento populacional
descontrolado, capaz de contribuir fortemente para a exaustão dos recursos naturais,
para o desequilíbrio ambiental e, conseqüentemente, para colocar em risco a vida em
última instância, e nunca rapidez maior do que se estima que fosse aceitável.

Ambos os documentos, apesar de trilharem caminhos distintos, fazem, menção à


preservação da vida. Os cientistas, pensando na preservação da vida num sentido laico,
evidentemente, e a Encíclica, defendendo a vida, a preservação da vida, num sentido
religioso. nesse sentido seria muito interessante se nós tivéssemos possibilidade de ex-
plorar os detalhes.

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Mas o que chama a atenção, nas diferenças e nas aproximações entre os dois do-
cumentos, são dois fatos que gostaria de apontar para vocês. Em primeiro lugar, o papel
da intelectualidade, o papel dos "intelectuais orgânicos". Num caso, os cientistas, se
percebendo como formadores de opinião, como intelectuais do mundo contemporâneo
da sociedade moderna. Através de suas sociedades científicas, eles tomam a iniciativa
de assumir uma postura ante a questão do crescimento populacional e se colocam à dis-
posição, em vários momentos, para, em nome da preservação da vida, em nome da bus-
ca do equilíbrio ambiental, desenvolverem técnicas, métodos, instrumentos capazes de
estabilizar a população, capazes de reduzir e eventualmente eliminar a pobreza, capazes
de assegurar a eqüidade social e garantir para a mulher o controle sobre as suas decisões
reprodutivas. Ou seja, há, também do ponto de vista da comunidade científica, um con-
junto de valores a serem preservados, em nome dos quais se fala. Com essa enorme e
significativa diferença de postura orgânica, ou seja, a comunidade científica se apresen-
ta enquanto intelectuais, formadores de opinião, capazes de contribuir para o controle do
crescimento populacional, e, conseqüentemente, do equilíbrio ambiental.

Já na Encíclica , no penúltimo capítulo, o Papa faz um apelo aos intelectuais cató-


licos, aos cientistas da Igreja, que se engajem numa campanha pela vida, colocando a
serviço da vida os seus serviços, a sua capacidade científica, a sua capacidade de con-
vencimento, a sua capacidade de influência junto às escolas, universitárias, famílias, à
Igreja, para, numa mensagem de sinal contrário, trabalharem também pela vida.

A diferença fundamental é a questão do controle populacional, dos métodos anti-


concepcionais. Embora em nenhum momento a comunidade científica se coloque dire-
tamente pró-aborto; apesar de, nas entrelinhas dos vários documentos produzidos, ser
possível se estabelecer, digamos assim, algumas atitudes permissivas com respeito a
isso.

Dentre os diversos documentos produzidos nessa reunião, há um muito interessan-


te, que talvez merecesse ser mencionado. Esse trabalho apresenta os obstáculos ao pla-
nejamento familiar, dentre os quais menciona explicitamente a oposição religiosa e cul-
tural. Do mesmo modo como a Encíclica menciona a atividade de pesquisa e desenvol-
vimento, a pesquisa científica como sendo uma contribuição para essa cultura da morte,
do outro lado vê-se o pensamento religioso como uma cultura de oposição ao uso amplo
da assim chamada contracepção moderna. É evidente que aqui as diferenças se acentual.

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A questão que levanto com respeito às possibilidades de concretização da proposta
da Encíclica é justamente sobre a capacidade que teriam os intelectuais católicos, a co-
munidade científica católica, conclamados pelo Papa a trabalharem por uma cultura da
vida, de estabelecer procedimentos e práticas capazes de influenciar populações hoje em
dia extremamente envolvidas nessa prática do controle populacional.

Há cerca de dois anos trouxe, para uma reunião como esta, no centro Loyola, o re-
sultado de um trabalho que havia feito, uma pesquisa de opinião sobre a questão ambi-
ental, publicada num livro chamado O Que o Brasileiro Pensa da Ecologia. Nessa pes-
quisa formulei, para uma amostra da população brasileira com 3.650 pessoas de 260
municípios brasileiros, dentre as quais mulheres de várias faixas etárias, algumas ques-
tões relativas ao controle da natalidade: se essas pessoas achavam que o controle da
natalidade deveria ser estimulado, se achavam que isso deveria ser uma prática do Esta-
do, se achavam que o Estado deveria prover meios para que isso pudesse ser realizado.
Os resultados, para mim, foram extremamente surpreendentes. Mais de 75%, quase 85%
das pessoas, se disseram praticantes, se disseram favoráveis ao controle da natalidade,
em todas as suas formas, e afirmaram serem favoráveis a essa prática por parte do Esta-
do. No Brasil, um país, mesmo com algumas qualificações, tradicionalmente católico,
verificamos esse tipo de reação.

Por isso, embora a Encíclica tenha um valor extremamente significativo, por sua
leitura da realidade, pelas críticas que faz, aquilo que é proposto é uma tarefa árdua,
extremamente difícil. Considerando as possíveis causas - que ela mesma aponta - que
levariam as pessoas a aceitarem, ou a demonstrarem, este tipo de crença e atitudes, a
meu juízo é necessário muito mais do que um envolvimento da comunidade científica
católica, dos intelectuais orgânicos da Igreja Católica, para que posamos de algum modo
realizar uma reversão significativa de opinião e de atitude com respeito ao controle po-
pulacional, entendendo a;i práticas anticoncepcionais e até mesmo abortivas.

Pe. Félix Pastor, SJ

Já foram salientados muitos aspectos das questões tratadas pela Carta Encíclica
Evangelium Vitae: o ponto de vista teológico e canônico, o ponto de vista biomédico, o
ponto de vista jurídico e religioso, o ponto de vista das ciências sociais e da comunidade
científica. Eu vou salientar alguns aspectos d ponto de vista humanístico e teológico.

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Os dois primeiros capítulos da Encíclica salientam sobretudo o tema da vida ame-
açada - a cultura da morte versus a cultura de vida, num contexto muito dialético. O
Papa enumera diversas ameaças à vida: a miséria, a fome, a doença, a guerra, o comér-
cio de armas, as drogas, a sensualidade em forma de risco, instituições internacionais
que defendem ou promovem campanhas de tipo abortista, ou a favor de eutanásia etc.
Em seguida, trata de cada tema básico em particular.

O ponto fundamental, a meu ver, está no primeiro capítulo: a preocupação do Papa


em relação à transformação de delitos em direitos. Quer dizer, 50 anos atrás, todo mun-
do considerava delito uma intervenção como o aborto ou a eutanásia. E em muitos paí-
ses já é direito, ou está prestes a ser direito praticá-los, com meios do Estado, ou à custa
do Estado, obrigando os médicos, mesmos os católicos, por lei, a fazerem coisas contra
a própria consciência, sem reconhecer o direito do médico católico, do jurista católico
etc., à audição de consciência. Quer dizer, o Papa apresenta como preocupação esta mu-
dança de mentalidade no sentido da cultura da morte.

Eu gostaria de ilustrar com alguns exemplos. Quando a campanha pró-abortista


começou na Itália, foi muito violenta. O Partido Radical, muito anticlerical, tinha slo-
gans, quase de mau gosto. Um deles era muito provocante, muito escandaloso: "Ah, se
os padres abortassem, o aborto seria um sacramento!". De modo muito debochado. As-
sim diziam as feministas radicais da Itália. No entanto, Pasolini, que era um grande ra-
dical, já anos antes, um homem que, mesmo saindo da cultura católica - basta só pensar
o Cristo no "Evangelho segundo São Mateus" - era profundamente laico e crítico da
sociedade atual, era intensamente antiabortista. Defendia justamente a posição mais
tradicional. Naquela época, o presidente do Parlamento italiano, um comunista que foi
da guerrilha, antinazista, também era claramente antiabortista. Quer dizer, a cultura era
essa.

Ontem, no Jornal do Brasil, tinha alguns trechos das memórias de um famoso polí-
tico - acho que se chama Juracy Magalhães - com histórias do seu tempo, dos anos qua-
renta, cinqüenta. Um amigo dele, político, se envolveu com uma cantora, que engravi-
dou e lhe disse: "Fiquei grávida, vou ter uma criança, mas, se você deseja, para evitar o
escândalo, posso abortar". Ele então se aconselhou com um amigo, o que acho estranho,
pois hoje em dia provavelmente não faria isso, não se aconselharia com um amigo e o
amigo não teria coragem de dizer o que esse amigo lhe falou: "Você não tem direito a

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matar essa vida". Ele aceitou o conselho. E o Magalhães, com grande surpresa, diz:
"Pois é, o menino se deu muito bem, foi muito bem aceito por seus irmãos, foi um me-
nino muito bom." Conta uma bela história.

Não sei se passou no Brasil um filme de diretor soviético, passado na Mongólia


Interior, uma república da antiga URSS. Passa-se naqueles "pampas" da Sibéria, umas
paisagens belíssimas. O filme começa com uma cena aparentemente selvagem, mas
extremamente amorosa, onde o protagonista, um cavaleiro da Mongólia, caça a laço a
sua namorada. Está sozinho, numa planície imensa, e vai a cavalo, correndo pelos cam-
pos, e pega a moça a laço, e eles têm lá um relacionamento, naturalmente a câmara mu-
da de cena. Mas, é claro, vem uma gravidez e o protagonista então vai a uma das cida-
des soviéticas, habitada por russos, com médicos russos etc. Entra numa farmácia, an-
gustiado, e pega um remédio de tipo abortivo, uma coisa desse tipo. Mais tarde ele joga
aquilo fora e fica tranqüilo. O filme termina quando nasce a criança, com o choro da
criança. Tem um tom vital tremendo, a eclosão da vida, a vida que vence as dificuldades
e a felicidade dele de participar do jogo da vida com seu filho, esposa etc.

Quer dizer, era assim que a humanidade via essa questão durante séculos. Não é
um problema da Igreja católica. É um problema da humanidade. A humanidade via as
coisas assim, pelo menos fundamentalmente. Muitas regiões da África, da América La-
tina, mas também da Europa - da Europa católica e da Europa protestante - sempre fo-
ram extremamente vitalistas. Aqueles filmes de Bergman, em que conta da sua infância,
mostram uma casa com tantas primas, tantas tias. Uma delas fica grávida de um tio,
algo assim, mas o menino nasce e todo mundo ficava contente. No ano seguinte ele es-
tava na festa com os outros meninos, todo o mundo alegre e a vida ia para a frente. Isso
tudo ilustra que não havia uma mentalidade de morte. havia uma mentalidade de vida.
Os "artifícios" pelos quais a vida chega podem ser mais ou menos legais, jurídicos, con-
vencionais ou não, um pouco aquilo que o filósofo Kant chama "as astúcias da nature-
za", para que a vida vá para frente.

Isso é só para dizer que este é um dos temas que, praticamente, armaram mais o
Papa, em torno dos anos noventa, conforme ia crescendo essa mentalidade de cultura de
morte que chegava à opinião pública e, através da opinião pública, aos lobbies de opini-
ão, que chagavam aos parlamentares, que mudavam as leis, no sentido da cultura de
morte. Passando-se do delito ao direito, o que era um delito passava a ser um direito.

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O Papa não gostava, resistiu durante anos à expressão "estruturas de pecado", usa-
da pelos teólogos da libertação e pela esquerda católica nos anos quarenta e cinqüenta, a
respeito do capitalismo. Estrutura de pecado porque gera opressão, gera miséria etc.,
onde há miséria, capitalismo selvagem. Mas nesta Encíclica ele a utiliza. Durante os
últimos anos o Papa tem usado a categoria "estruturas de morte" e aqui também, para
dizer que esta mentalidade abortista, legitimista, é uma verdadeira estrutura de morte.
Quer dizer. não abortar é quase estranho, uma situação assim um pouco embaraçosa. A
solução lógica parece ser essa.

Até aqui procurei salientar as duas primeiras partes da Encíclica. Este é um pen-
samento que eu acho chave na mentalidade do Papa. Outros aspectos já foram salienta-
dos aqui, o materialismo ambiental, o hedonismo, o eclipse de Deus, que naturalmente
traz o eclipse do sentido do homem, do sentido da vida.

Agora, como teólogo, enfatizarei mais o capítulo três. Já se disse que esta é a parte
mais solene, mais dramática e mais comprometedora da Encíclica. E, teologicamente
falando, o Papa usa três vezes a fórmula praticamente do que se chama em teologia "o
depósito da fé" e a regra de fé. Quer dizer. o Papa só podia falar isto. Tinha que falar
isto e, se não falasse, seria um Papa omisso. Porque o que a Igreja católica sempre ensi-
nou foi isto. E ensinou não como coisa própria, como protagonismo, pois o conceito de
depósito é um conceito do mundo antigo, está no Império Romano, no plano jurídico.
Por exemplo, se alguém deixasse 3.000 denários com o senador Sistércio, teria o direito
que lhe fosse restituída quantia exatamente igual. Se não restituísse, pelo Direito Roma-
no, tinha que dar duas vezes, ou, em determinado casos, quatro vezes a quantia. A mes-
ma norma também existia no mundo grego. Como quando Zaqueu chega a Jesus e diz:
"hoje entrou a salvação na minha casa, então eu vou dar esmolas aos pobres, e se de-
fraudei alguém, se de alguém eu tirei, então vou dar quatro vezes esse tanto". Quer di-
zer: "vou ficar em paz com Deus e com os homens". Este conceito de depósito é usado
no Novo Testamento, pela tradição paulina, para falar do depósito da fé que Paulo con-
fia a Timóteo e a Tito, aos primeiros bispos, aos primeiros discípulos dos apóstolos,
para que eles, por sua vez, o passem a outros homens retos, para as novas gerações.

A Igreja transmite a doutrina apostólica na fé, na liturgia, na moral, na espirituali-


dade intacta e tem que defender isso. Tem que guardar o depósito, sem corrupção, sem
contaminação. Por isso, a Igreja não tem por que ficar macaqueando o mundo. Se é mo-

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derno ou se não é moderno, não é problema dela. Quando o Papa foi ao Chile, pergunta-
ram os jornalistas; "O senhor vai pregar a democracia a Pinochet?". Ele respondeu:
"Vou pregar o Evangelho". Democracia não é cômputo do Papa, não é tarefa do Papa. A
democracia pode ser boa, bem vivida e bem usada, como regra de civilização, mas a
democracia não quer dizer que por maioria eu possa votar qualquer coisa. Um tema re-
lativo ao bem comum, sim. Mas votar temas contra a moral, contra a vida, essa demo-
cracia seria perversa, como o Papa vai dizer na Encíclica.

A missão do Papa é defender o depósito da fé, juntamente com o Colégio Episco-


pal. E o Papa apela a esta fórmula em três ocasiões: no número 57, no número 62 e no
número 65, em que ele diz praticamente que esta norma é de lei natural, apela à doutrina
de São Paulo, da Carta aos Romanos, capitulo 2, onde Paulo polemiza com os hebreus,
que se consideravam superiores aos pagãos: "Nós temos a Lei que Deus nos deu direta-
mente." E Paulo vai dizer: "vocês têm a Lei que Deus deu, mas vocês não cumprem a
lei, estão em pecado, precisam de um Salvador, um Redentor, e os pagãos, que não têm
a lei escrita em pedra de Moisés, têm a lei escrita no coração", a lei moral. Isto é um
argumento religioso, na ética, na filosofia, na filosofia da religião. Homens tão diferen-
tes, como Kant e Newman, o colocam como argumento máximo para provar a realidade,
a existência de Deus. Quer dizer, o principio moral, a idéia de bem e mal. Não quer di-
zer que eu faça o bem. Mas eu sei muito bem que isto é certo, aquilo é errado. E quando
faço aquilo que é errado, fico com ansiedade, fico com sentimento de culpa, porque fiz
uma coisa errada. Essa é a consciência moral. O Papa apela à consciência moral.

Eu não sou especialista em temas de aborto, sou mais teólogo dogmático, me de-
dico à teologia dogmática e sistemática, me Interesso mais por problemas fundamentais.
Mas, naturalmente, como teólogo, como pessoa culta, procuro estar Informado. E me
chamou atenção o caso de um dos maiores abortistas ingleses, um grande médico, um
cientista. Ele fazia uma violenta campanha a favor do aborto. E, em sua campanha, quis
promover um vídeo, filmando um aborto. Quando filmava, e viu como o feto reagia
àquele ataque, em que estava sendo destruído, ele teve uma iluminação e disse: "Não!
De fato, eu estou errado". Passou, de abortista empenhado e furibundo, a ser um anti-
abortista convicto. Como dizia o Dr. Heitor, há uma banalização tremenda desses temas.
Fala-se de temas de extrema gravidade, temas que por séculos feriram a sensibilidade
humana, antes de cristã e católica, com uma banalidade, para não dizer malícia, com

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uma superficialidade que horroriza. E este é um dos pontos, no plano mais profundo do
sentimento, em que toca o Papa. O Papa está convencido de que o problema da vida é o
problema de nossa civilização.

Mesmo como obra de cultura humana, a Igreja, para salvar a cultura humana, hoje,
tem que defender a vida. Além de que, como digo, o Papa só pode falar o que falou.
Porque é o que diz não só a consciência religiosa da lei moral, o que se chama lei natu-
ral em sentido teológico, filosófico e religioso, mas também a lei positiva, toda a tradi-
ção bíblica e, depois, a tradição eclesiástica. O Papa cita textos antigos, mas poderia
citar uma verdadeira enciclopédia de textos, desde a epístola de Diometo até Tertuliano.
Em todos os vinte séculos de cristianismo, as Igrejas eram convictamente vitalistas, a
favor da vida.

Nestes três números, o Papa, a Igreja, vai dizer o seguinte: o princípio fundamen-
tal é que a morte direta e voluntária do inocente é sempre gravemente moral. Isto está na
filosofia mora', qualquer Kant ou Hegel não poderiam dizer outra coisa diferente. Não
se pode por razão de Estado matar um inocente. Não se pode por terrorismo matar um
inocente. Isso é imoral. Se se faz, por política de fato, é imoral. Não se pode considerar
que isso possa ser um bem. A Igreja não pode aprovar isto. O cristianismo nunca apro-
vou e nunca pode aprovar e nunca aprovará.

Um bispo da Inglaterra adotou a posição de um desses cientistas ingleses que são


extremamente gentlemen em coisas indiferentes, mas extremamente agressivos nas coi-
sas Importantes. Ele acusava o Papa de retrógrado, pois a ciência diz isso, a ciência diz
aquilo. Primeiramente, o Papa não pode agir como homem de ciência, mesmo supondo
que isso fosse científico. Pois não há ciência Indiferente. Rahner, um dos maiores teólo-
gos de nosso tempo fala da "concupiscência epistemológica". Quer dizer, nós conhece-
mos o que queremos conhecer e desconhecemos o que queremos desconhecer. então, se
eu determino ser imoral, sou, pronto, acabou, ninguém tem nada a ver comigo. Depois
vou arrumar mil justificações para dizer que aquilo é assim por Isso ou por aquilo, por-
que eu quero e acabou. Tudo bem, nós respeitamos, mas não se pode impor essa opinião
a nós, que durante vinte séculos cremos deste jeito, achamos vinculante, achamos bom,
achamos correspondente com a natureza humana.

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O Papa apela portanto ao depósito da fé da Sagrada Escritura, a regra de fé da tra-
dição católica e o magistério constante, ordinário e universal do episcopado católico. O
que, para a teologia católica são as três colunas vinculantes, vamos dizer, o depósito da
fé, a regra de fé e o magistério vivo e autêntico da Igreja. Então o Papa diz: não falo
como João Paulo li, falo como bispo de Roma em comunhão com os nossos irmãos do
episcopado aquilo que a Igreja sempre, em todas as partes, julgou que era verdade de fé
divina.

O Papa apela justamente para o depósito de fé da Escritura, para a regra de fé da


tradição e o Magistério vivo, falando da morte direta e voluntária do inocente, em rela-
ção ao aborto provocado e à eutanásia, com as necessárias distinções que foram men-
cionadas. O Papa não chama eutanásia ao chamado excesso terapêutico, nem aos cuida-
dos paliativos de quem está com graves doenças. Pode dar morfina, pode dar tranqüili-
zante, isso não é eutanásia, mesmo que abrevie um pouco os dias de um doente termi-
nal. Mas a eutanásia não é justa nem que seja a pedido do doente que queira se suicidar,
queira ser ajudado a suicidar-se. Evidentemente, entende-se que uma pessoas deseje
isso, se ela se encontra numa atmosfera de ódio total, em que os filhos a odeiam, por
exemplo. Está ai uma cena para um filme cômicotrágico, a família vai de férias, pega o
avô "gagá", pára num posto de gasolina e diz: " Vovô, daqui a pouco voltamos". E vai
embora, deixando o vovô no posto de gasolina, como se não importasse. São coisas i-
nimagináveis, cômicas se não fossem trágicas. É a mudança de mentalidade pela qual
coisas que considerávamos antes abomináveis, detestáveis, que nem se podia pensar,
hoje em dia se transformam em como que num direito.

O Papa faz então o seu ofício de Papa da igreja Católica. E, quem não estiver de
acordo, saia da Igreja Católica e pronto. Fique na Igreja quem quiser ficar. Porque a
coisa é assim. A Igreja Católica é um grande clube. Quem não quer participar, não par-
ticipa. Participa livremente. O fato de ser batizado de criança não quer dizer nada. O
batismo é atualizado na primeira missa a que se vai. Se a pessoa vai convicta à missa, já
está atualizando o seu batismo. Está vivendo a fé. Se não, o que recebeu? Não recebeu
nada. Se a pessoa foi batizada em criança, mas não quer ser católica, muito bem. Não
precisa se preocupar, porque não é nada. O batismo é sacramento da fé. Se alguém não
quer ter fé, ou não pode ter fé, ou não chega a ter fé, então não tenha. Acabou. Não há

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problema. Que cada um fique na sua, que nós ficamos na nossa. Agora, não temos por-
que claudicar moralmente e humanamente nas nossas posições.

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