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Ser é mover-se: a capoeira como filosofia

Autores
Alécio Donizete,
Cinézio Feliciano Peçanha (Cobra Mansa)
Eduardo Oliveira
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INTRODUÇÃO
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Temos neste ensaio o objetivo de apresentar conceitos e performances
da capoeira, buscando; a) compreendê-los como expressões próprias de uma
concepção de mundo sempre em transição e que busca ‘no movimento
corporal’ elementos de autoconhecimento; b) indagar até que ponto tais
conceitos nos auxiliam na tarefa de entender o que é o Brasil e o que somos
enquanto brasileiros. Como pressuposto assumimos a capoeira como um
referencial privilegiado de reflexão sobre nosso país e nossa cultura.
Na medida em que nos reconhecemos e nos afirmarmos como
brasileiros, vem à tona uma necessidade básica, comum a todo povo que
queira emergir das sombras da submissão: quem somos e qual é nosso lugar
no mundo? Em outras palavras, qual a nossa percepção sobre nós mesmos e
qual a nossa percepção sobre o mundo? Pois, se ainda nos observamos com
lentes alheias, e identificamos nosso topos com ‘mapas’ e cartografias traçadas
além mar, corremos o risco de nos identificar com uma auto-imagem distorcida
e de não reconhecer a própria morada do ‘ser’ que seriamos. Perguntamo-nos
pelo nosso lugar e pelo nosso modo de ser enquanto brasileiros, ao mesmo
tempo em que adotamos a capoeira como um referencial, uma ãncora desde
onde lançar as redes de nossa reflexão. Relacionando capoeira e filosofia,
tratamos, aqui, também de esboçar uma contribuição ao pensamento brasileiro,
apostando nesta ideia simples: a capoeira é representativa de uma parte do
que somos, portanto, seus modos de ser e de se mover, bem como seus
fundamentos conceituais, podem ajudar a pensar o Brasil de modo mais
complexo do que normalmente ocorre.
Quando olhamos separadamente para o status alcançado pela Filosofia
e pela Capoeira, no Brasil, percebemos que, esta última, tradicionalmente foi e
é marginalizada, embora tenha carácter genuinamente brasileiro. Por outro
lado, a filosofia que se faz por aqui, via de regra, se restringe ao comentário de
textos escritos em outro continente, sobretudo o europeu. E esta mesma visão
filosófica é a que dedica à capoeira uma interpretação eivada de desconfiança,
quando não de rejeição. Enquanto uma, a filosofia, é prestigiada pelas elites,
sobretudo pela ‘elite acadêmica’, a outra traz em sua história as marcas do
preconceito e da perseguição. Como então fazer dialogar, em pé de igualdade,
a filosofia com a capoeira, num país de maioria negra, mas com fortes traços
racistas como o Brasil? Ora, se por um lado há, de fato, um distanciamento de
nossa intelectualidade, no que diz respeito à capoeira, por outro – e isso em
todo nosso continente latino americano – são muitas as iniciativas de pensar
por si próprio, buscando ao mesmo tempo fazer a crítica da tradição filosófica
que nos formou, tanto quanto, criar novos conceitos com os quais se possa
pensar nossa realidade mais premente de modo lógico e não somente
ideológico. Dentre essas novas formas de pensar-nos destacam-se, por
exemplo, a Filosofia da Libertação, da qual um dos principais representantes é
Enrique Dussel, pensador argentino em cujo pensamento encontramos as mais
vastas e também mais fundamentadas críticas ao modo de se fazer filosofia na
América sempre de modo excessivamente reverente aos pensadores
europeus. Nessa mesma linha, porém como representante do pensamento
decolonial destacamos Maldonado Torres, cuja obra, sem deixar de estudar
com profundidade os grandes mestres do pensamento ocidental, volta-se para
a busca de uma autenticidade no nosso modo de pensar que venha estancar a
sangria deixada pela ferida da colonização.
1 – Crítica ao eurocentrismo
Ao criticar a ontologia heideggeriana1 e denunciá-la como um novo tipo
de racismo epistemológico, Maldonado Torres afirma que o pensador alemão,
ao procurar as raízes do “Ser” na tradição ocidental, tributária da cultura
europeia, o faz de modo a reforçar uma cartografia imperial da qual são
vítimas, entre outros, a América Latina e a África. Torres considera a grandeza
do projeto de Martin Heidegger, em relação a outros filósofos precedentes,

1 TORRES. Nelson Maldonado. A topologia do Ser e a geopolítica do


conhecimento. Modernidade, império e colonialidade. Revista Crítica de Ciências
Sociais, 80, Março, 2008: 71-114
mas, tal como aqules, o autor de ‘Ser e Tempo’, tinha o olhar fixo na Europa e
sua crise político-filosófica. Diante dessa crise, os pensadores – incluindo
Heidegger – buscavam repostas, porém tal projeto, conforme Maldonado
Torres, não escapa aos limites do eurocentrismo, e não está a “pensar
especificamente na ética quando considerou modos de ser alternativos que
desafiavam os parâmetros da modernidade”. A modernidade aí criticada é
europeia (cuja sustentação exigiu e acarretou a colonização e a escravidão de
outrem), a qual eles presumem universal, e por isso supõe que uma solução
para aquela crise seria também algo universal. Assim, deslocando-se das
questões epistemológicas para as ontológicas, Heidegger pressupunha
compreender os ideais que davam sustentação à chamada ‘vida moderna’ cuja
âncora se encontrava nos avanços da Técnica e da ciência. Esse método,
porém, não satisfaz ao interesse de quem foi ou ‘está’ colonizado, porque a
geopolítica do Ser não muda, continua a mesma. Segundo Torres,
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“a geopolítica de Heidegger é... uma política baseada, na
relação íntima entre o povo, a sua língua e a sua terra. A
geopolítica é, simultaneamente, uma política da terra e
uma política de exclusão”2.
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Torres prossegue. Citando Bambach ele diz: “havia que proteger a
Alemanha do espírito francês do Iluminismo e da latinidade tanto da cultura
gaulesa como da igreja católica”.3 Em seu artigo, Torres destaca, ainda,
Levinas, pensador judeu, e seu projeto ético do qual, rigorosamente, não nos
ocuparemos aqui. Apenas lembraremos que segundo Maldonado Torres, tal
projeto, não obstante, nascido de uma experiência de vítima daquela
Modernidade criticada, também não consegue transcendê-la, pois que se
prende àquela mesma topologia do Ser, ora em crise. Seria preciso ir a outros
topos para desde aí erguer a voz?
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“Não era só em relação a Jerusalém que Heidegger se
mostrava cético. Tal como já vimos, em causa estavam
também Roma, a Ásia Menor, a Rússia e a América.
Heidegger enunciou a sua filosofia num contexto em que

2 TORRES op. Cit. p. 76


3 idem
o imperialismo europeu estava a ser alvo de uma
contestação provinda de várias direções”4.
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Nesse sentido Maldonado torres, citando outra vez Bambach, assume o
pensamento de Fanon como, no mínimo, significando uma esperança.
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Tendo em consideração este contexto geopolítico mais
amplo, Bambach coloca em confronto os esforços de
Heidegger no sentido de encontrar raízes no Ocidente
com os de Frantz Fanon, psiquiatra e filósofo natural da
ilha Martinica. Fanon, que se bateu contra os Alemães na
Segunda Guerra Mundial e, mais tarde, contra o
imperialismo francês na guerra da Argélia, tinha em
mente não apenas a difícil situação dos Judeus durante o
Holocausto, mas também a situação de outras vítimas do
ethos imperial e racista europeu noutras partes do
mundo, especialmente no mundo colonial5.
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Todos nós conhecemos a experiência histórica de Fanon, suas lutas em favor
das liberdades e o seu compromisso político. Para ele:
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O jogo europeu está definitivamente acabado; é preciso
encontrar outra coisa… Durante séculos, em nome de
uma pretensa aventura espiritual, [os Europeus]
sufocaram
quase toda a humanidade. Vejam-nos hoje oscilar entre a
desintegração atómica e a desintegração espiritual […]. A
Europa adquiriu uma tal velocidade, louca e
desordenada, que escapa hoje em dia a todo o condutor
e a toda a razão […]. Foi em nome do espírito, do espírito
europeu, bem entendido, que a Europa justificou os seus
crimes e legitimou a escravidão em que mantém quatro
quintos da humanidade. Sim, o espírito europeu teve
raízes singulares6.
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Conforme Maldonado Torres – seguindo ainda sua interpretação de
Bambach – diante da crise europeia, Martin Heidegger espera encontrar
soluções numa busca de identidade que é, como vimos, ainda mais restritiva
pois que se reduz à identidade alemã. Por outro lado, ainda segundo
Maldonado, corroborado por Bambach, é Franz Fanon, o antigo colonizado que

4 Idem p. 82
5 idem.
6 Fanon, apud Maldonado Torres, op cit p. 82
perceberá a ‘necessidade da diferença’. Torres, não sem razão, expressa seu
otimismo em relação a Fanon por considerar que diante da ‘usurpação do lugar
do ser’ procedida por Martin Heidegger – mas não somente por ele – que
busca, ainda que disfarçadamente, nada mais que as raízes alemãs
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“Fanon veio propor uma deslocação radical da
Europa e suas respectivas raízes. Para Fanon, a
modernidade/niilismo não eram senão uma outra
expressão da modernidade/racismo, a vil
segregação e a pretensão de superioridade da
Europa sobre todos os outros povos da Terra”7
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Justamente nessa altura gostaríamos de fazer nossa inflexão para
perguntarmos: o quanto essa ‘necessidade de diferença’ é legítima, na medida
em que possui como referência a própria Europa e sua crise? Somos
diferentes, mas diferentes do que? Quando é que ousaremos nos comparar a
nós mesmos? Por que nosso modo de pensar, seja qual for ele, tem de se
justificar em relação ao modo europeu? É possível nos pronunciar como seres
pensantes que somos prescindindo da noção de ‘diferente’? Em outras
palavras: desde o nosso lugar, que é território, mas também é corpo, podemos
nos expressar de modo autêntico, como brasileiros, por exemplo?
Apesar de todo o grande esforço de Maldonado Torres tendo como fonte
Franz Fanon, ainda é a Europa e sua forma de pensar que se encontra na
berlinda; ‘naquele jogo’, trata-se de denunciar defeitos do pensamento europeu
e, por outro lado, aplaudir e/ou adotar suas virtudes. Nossa perspectiva é a de
que, enquanto brasileiros e latino-americanos, temos, sim, a incontornável
influência europeia, mas somos também indígenas, somos também negros e
somos os resultados das complexas misturas aqui resultantes. Quando nos
expressamos filosoficamente negando, qualquer que seja, desses aspectos,
para enfatizar outro, estamos fadados a pensar o Ser, ou no mínimo sto é, o
nosso modo ser, fora de sua topologia, ou seja, de modo que não nos afirma
autenticamente e não diz tudo que somos... de nossa parte acreditamos que
alguns conceitos essenciais à capoeira podem nos auxiliar nessa tarefa, não só
de desconstrução do que fizeram de nós, mas sobretudo daquilo que

7 idem
queremos fazer. Assim, paralelamente à rica tradição do pensamento europeu,
bem como à rica tradição de crítica a esse pensamento, colocamos a tradição
da capoeira com seus movimentos próprios, seu modo de ser e de pensar-se,
calcados em conceitos básicos como a Ginga, a esquiva, a negaça, a
mandinga, etc.
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2 - O Brasil de ponta-cabeça: capoeira na filosofia e filosofia na capoeira.

2.1 – A Roda de capoeira

Quando se tem a oportunidade de acompanhar uma roda de capoeira


com curiosidade a atenção, ainda que seja por interesse pessoal ou diversão, é
difícil não se deixar envolver por aquela atmosfera. Os movimentos próprios,
específicos da capoeira como a ginga, a esquiva 8 e a Negativa9 - o qual
também é um movimento de esquiva, ou seja, de defesa - colocam nosso olhar
inevitavelmente em contato com um mundo de códigos e conceitos. E para
uma compreensão mais aproximanda, não basta a observação atenta. É
preciso colocar-se respeitosamente entender e tentar dialogar com aquela
visão de mundo e sua filosofia própria. Contudo, para esboçar uma reflexão
que não seja apenas um olhar externo e frio, é necessário mais do que o
respeito que, desde as nossas instituições política e acadêmicas, tem faltado
ao longo de todos esses anos.

Pode-se refletir inicialmente perguntando ‘o que é a Capoeira’? Mas a


resposta é escorregadia, uma vez que a capoeira não é só luta, não é só
dança, nem só religião e nem só arte... talvez a capoeira seja tudo isso, ou
‘seja e não seja, isto é ‘seja o movimento’, e seja ‘em movimento’. Então, a
capoeira, em parte é arte, pois permite a livre imaginação e a criatividade, mas

8 - Esquiva Atrás ou na Ginga - Movimento de defesa em que o indivíduo flexiona uma


perna e estende a outra para - atrás, colocam o joelho no peito, braço na guarda e a mão do
lado da perna flexionada. Esquiva Lateral ou de Frente - Movimento de defesa em que o
indivíduo flexiona uma perna e estende a outra para o lado, inclinando o corpo para o lado da
perna flexionada, com a mão no chão do lado da perna, dando as costas para o golpe, sempre
saindo
9 Negativa - Movimento de esquiva em que o jogador tendo uma das mãos apoiada no
chão e a perna do mesmo lado semi-estendida para frente senta-se no calcanhar, agachando
na outra perna que está dobrada. Negativa de Angola - O indivíduo na posição da negativa
apóia as duas mãos no chão do lado da perna que esta estendida e olha para o adversário por
baixo do braço do lado da perna que esta dobrada
é também estilo de vida, compreensão do todo, autoconhecimento, afirmação
de pertencimento radical à natureza: “aqui é corpo, camará” e o corpo é alma e
vice-versa. Então, é a capoeira uma filosofia?

2.2 - o que a capoeira quer ser?

Para se caracterizar uma filosofia, remete-se à sua auto-compreensão, a


um dobrar-se sobre si mesmo em busca de identificação. Porém, mesmo os
filósofos, tradicionalmente discordam entre si sobre o significado de sua
atividade. Assim, tão difícil quanto responder à pergunta ‘o que é filosofia, é
responder à pergunta ‘o que é a capoeira’. E mais difícil ainda seria responde
se se a capoeira é uma filosofia. Em primeiro lugar, porque os filósofos,
normalmente não se entendem nem concordam em suas respostas e depois
porque quem deveria responder a isso é a própria capoeira, porém tentar
responder a isso não interessa e talvez o capoeira não queira. Em geral, salvo
engano, “o capoeira” está mais interessado em dizer o que ele não é. A tudo
isso acrescentamos ainda outras dificuldades, pois a Capoeira diz respeito não
só a significados conceituais, mas também a sentidos e vivências, códigos, etc.
Por exemplo, a capoeira não distingue entre discurso e ação, porque não há
necessariamente um discurso, (há sim os ‘corridos’ e ladainnha e códigos
próprios aos movimentos que podem dizer ou não o que ´se enquanto
brasileiro. Enfim, ainda podemos considerar que, se na tradição occidental, não
há filosofia onde não há abstração nem argumentação, na tradição da
capoeira tudo começa no corpo, isto é, sem corpo não há pensamento, e asim
é que conhecer, além de decifrar e explicar, é, também, pertencer. Este
pertencimento vai desde si menso a uma grupo, a uma comunidade, etc.
Quanto a este último ponto, é preciso levar em conta algo curioso: enquanto a
própria filosofia ocidental levou mais de dois mil anos para entender que o
acesso à ‘verdade pura’, por meio das palavras, ou é vedado ou é uma falácia,
e que, a noção de verdade está ligada muito mais ao interesse pelo poder do
que ao saber, a capoeira já nasce e vive do “sim, sim, sim, não, não, não”...
Suas negativas podem ser afirmativas e vice-versa; suas esquivas já são
contra-ataques pois também o adversário nunca mostra tudo o que está
pensando e, isto, é como na vida, como na grande roda. Será que a ilusão dos
gregos de que ‘vence o melhor argumento’ algum dia foi factível? Será que o
argumento nunca veio travestido de retórica e ou prescindir da língua oficial,
muitas vezes imposta? Será que ele não teria de ser dito uma vez em grego,
outra em Latim, outra, ainda, em inglês? Será que ele, o argumento, nunca foi
julgado bom ou ruim, de acordo com a roupa ou a cor da pele de quem o diz?
Todas estas perguntas poderiam ter respostas afirmativas, ou, no mínimo, nos
obrigar a uma suspensão do juízo. Além do mais, o brasileiro, em sua grande
maioria, e de onde emerge o sujeito da capoeira, de um modo geral, nunca
esteve favorecido pela retórica da língua oficial, ou pela qualidade da roupa,
em função de sua condição econômica. Assim, o argumento, formulado pela
‘capoeira’, nunca é transcendente e nem nunca se sublima numa instância
metafísica, pois deve ser movimento contínuo: entrar-saindo e sair-entrando; o
que estava à frente, ao mesmo tempo, pode estar atrás, o de cima pode estar
embaixo, ou circulando como é na vida, como na grande roda. Ou seja, tal
como na dança das palavras falaciosas que sempre caracterizou o pacto das
elites, sejam elas estrangeiras ou nacionais, a essa altura, podemos dizer, com
certa segurança: a negaça não é apenas ‘negativa’ a uma determinada ordem.
Frente à ordem social, considerada a “grande roda”, ela é ‘outra ordem’ ela é
afirmativa dentro de si mesmo frente ao outro, adversário sem escrúpulos. Este
outro, para afirmar-se não recorre exatamente a argumentos lógicos, e mesmo
quando o faz, considera apenas a sua própria lógica – mormente vazada em
falácias, ou mesmo em verdades particulares, que, como já vimos, podem
apresentar-se com sendo fundadas em pressupostos universais. Frente a isso
coloca-se a negaça, mas não apenas como um movimento corporal. É a
negaça daquele que argumenta com o corpo e com seu modo de ser, baseado,
por exemplo, no confiar-desconfiando.

A negaça, ‘do capoeira’, então, passando a ser negação da negação,


constitui-se como afirmação. Mas ao mesno tempo não se pode falar da
negaça ou de um suposto código de ética sem considerar seu fundamento
mais sólido, a mandinga? Esta, ainda que invisível, ainda que exercida com os
olhos ou com a mente, a trabalhar incansavelmente, num jogo de
encantamento e sedução, sustenta toda a ginga, todo negaceio. A mandinga se
põe como modo de ser daquele que se joga pra lá e pra cá, ora pra celebrar a
vida, ora pra provar que está vivo, e não raras vezes, em luta, desesperada,
pra sobreviver. A mandinga, como o chão sustenta as árvores, pode ser
entendida como ‘uma ginga mental’ usada não só na roda de capoeira, quando
o adversário, frente a frente, num jogo limpo, também negaceia, mas,
sobretudo, nos espaços fechados em que se procura tolher ao corpo sua
liberdade e sua elasticidade: sejam outrora os porões dos navios, as senzalas,
os troncos, as correntes... sejam, mais tarde, os cartórios, os escritórios, os
gabinetes governamentais, os laboratórios e mesmo os pátios das academias.
Como ‘ginga mental’ ou movimento da alma, a mandinga, então, deixa de ser
apenas uma categoria física – corpo que seduz, olhos que hipnotizam, ‘bolsas
de feitiço’ que amedrontam – para tornar-se categoria ontológica, isto é,
compreensão do “ser enquanto ser”. Dito de outro modo, a mandinga, não mais
entendida como um subterfúgio, ou como manifestação do ser negado que
poderia assumir sua negatividade como clandestino em si mesmo. Trata-se, ao
contrário, da afirmação de uma identidade que, a despeito de sua condição de
homem livre precisa, a todo tempo, forjar sua liberdade. Esta que não tem
existência autônoma, a não ser enquanto é construída, tanto corporalmente,
quanto metafisicamente. A mandinga é, pois, um modo de ser, num espaço
real, não abstrato, onde ‘ser’ não se distingue de ‘agir’, mas onde a ação, não
raramente é negada; um modo de ser, que só pode se manifestar como ela
própria, a mandinga por si só.

Por um lado, o adversário, ao simular uma ética baseada na força e


veracidade dos argumentos, fez e faz uso de sofisticados jogos retóricos e
jurídicos, em cujo cerne está o ‘feitiço’ das palavras difíceis. Por outro lado,
então, há que se contrapor outros ‘feitiços’: seja o ‘sim, sim, sim, não, não, não’
que nega afirmando e afirma negando, seja o negaceio do corpo indo e vindo,
entrando e saindo ao mesmo tempo, aparecendo e se escondendo ao mesmo
tempo, em outras palavras, mandingueiro, ou seja, “mágico”; seja, enfim, o jogo
de encantamento e sedução para fazer o adversário “acreditar que eu tenho o
que não tenho”, e, ao mesmo tempo o impeça de enxergar o que realmente “eu
tenho”, e que, no limite, será a sua perdição. A mandinga, além de tudo, pode
ser, pois, um modelo ético, um método de negociação que permite uma
equiparação ao adversário teoricamente mais poderoso.

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Para (não) concluir

“A única conclusão é morrer” diz o poeta Fernando Pessoa, com o que a


‘lógica’ da capoeira parece concordar. Contudo, apontamos linhas de fuga que
podemos ou não ter encontrado. Na perspectiva da capoeira temos uma
cosmovisão, ou, se quisermos, uma filosofia, em que movimentos como à
esquiva ou a negativa e outras perfomances, tais como a ginga e a mandinga
ajudama a compreender o mundo circundante e o que somos enquanto
inseridos nele. Assim: a) a Capoeira é uma filosofia quando não distinguirmos o
sentido técnico de qualquer outro sentido para os termos ou perfomences,
tomando-os como leitura de mundo. Lembramos que tanto para a filosofia
como para a capoeira a tecnificação extremada das palavras seria uma espécie
de morte; e b) quando se trata da capoeira, os movimentos, códigos e
perfomances em questão seriam, conforme nosso ponto de vista, conteúdos
obrigatórios de uma antropologia filosófica brasileira

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BIBLIOGRAFIA
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CASTRES, Pierre. Arqueologia da Violência – pesquisas de antropologia
política: Pierre Clastres. São Paulo: Casac Naify, 2014.
CASTRO, Eduardo Viveiros de. O intespetivo, ainda: reaprendendo a ler Clastres. In
CASTRES, Pierre. Arqueologia da Violência – pesquisas de antropologia política:
Pierre Clastres. São Paulo: Casac Naify, 2014, p. 301- 360.
GERBI, Antonello. O novo mundo: história de uma polêmica: 1750-1900. São Paulo:
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KUSCH, Rodolpho. Obras completas, en cuatro volúmenes, Editorial Fundación Ross,
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OLIVEIRA, Eduardo, Filosofia da Ancestralidade. Ed Gráfica Popular, Curitiba,
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Revista brasileira de ciência soc. vol.17 no.49 São Paulo junho, 2002 ttp://dx.doi.org/
10.1590/s0102-69092002000200001 version=html revist.TORRES, TORRES, Nelson
Maldonado. A topologia do Ser e a geopolítica do conhecimento. Modernidade,
império e colonialidade. Revista Crítica de Ciências Sociais, 80, Março, 2008: 71-114

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