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PÚBLICA DE SAÚDE NO BRASIL
O direito à saúde é fundamento inerente à dignidade da pessoa humana, no entanto, é notória a dificuldade cres-
cente de acesso da população aos serviços públicos dessa natureza, levando os cidadãos rotineiramente a apelar
ao Poder Judiciário. Diante disso surge o seguinte questionamento: por que o Poder Judiciário é tão acionado para
resolver questões de saúde pública cuja responsabilidade pela execução é do Poder Executivo? Visando responder
ao problema, nossa hipótese é que há uma incongruência entre a institucionalização das competências dos entes
federados e a composição orçamentária, que impede a implementação das políticas públicas de saúde. Objetiva-se
esclarecer as repartições de competências e de receitas entre os entes federados para analisar a possível relação
da sua incompatibilidade com a ineficiência administrativa do Estado. A análise inicia-se pela apresentação da
legislação aplicável ao Sistema Único de Saúde, para explicitar a forma de operacionalização e a divisão de com-
petências pelas prestações de saúde entre os entes federados. Depois disso, é realizado o estudo acerca da viabi-
lidade de custeio da saúde pública no Brasil, esclarecendo as fontes de receita e as porcentagens de participação
dos entes na arrecadação tributária nacional. Por fim, a análise comprova a hipótese.
Palavras chave: Políticas públicas. Saúde. Judicialização. Capacidade do Estado. Brasil.
ou de qualquer outra situação” (Organização tro motivo, dispõe expressamente, em seu arti-
das Nações Unidas, 1948, n. p.). go 1º, que a República Federativa do Brasil tem
como fundamento, dentre outros, a dignidade
* Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Programa de
Pós-Graduação em Direito e Justiça Social da Faculdade de da pessoa humana (1988, n. p.).
Direito – FADIR.
Santa Vitória do Palmar – Rio Grande do Sul – Brasil. hemer- A presença, no texto constitucional, da
son.pase@gmail.com dignidade da pessoa humana dentre os fun-
http://orcid.org/0000-0002-3322-3003
** Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. damentos da República permite afirmar que o
Programa de Pós-Graduação em Ciência Política.
Farroupilha. Cep: 90010-150. Porto Alegre – Rio Grande do direito à dignidade foi reconhecido pelos re-
Sul – Brasil. anapaulapatella@gmail.com
http://orcid.org/0000-0002-9498-560X presentantes da população brasileira como de
*** Programa de Pós-Graduação em Diversidade Cultural atenção imperiosa (Comparato, 1997). Quer
e Inclusão Social da Universidade FEEVALE.
Vila Nova. Cep: 93525-075. Novo Hamburgo – Rio Grande dizer, como resultado da correlação das forças
do Sul – Brasil. evertons@feevale.br
https://orcid.org/0000-0002-6270-3196 que compunham a Assembleia Nacional Cons-
http://dx.doi.org/10.9771/ccrh.v36i0.31794 1
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zação e a divisão de competências pelas pres- A fusão desses dois conceitos, que con-
tações de saúde entre os entes federados. figura o inicialmente referido estado democrá-
Depois disso, realizar-se-á o estudo acer- tico de direito, foi positivada no parágrafo úni-
ca da viabilidade de custeio da saúde pública co do dispositivo legal supracitado, através da
no Brasil, explicitando as fontes de receita e as seguinte disposição: “Todo o poder emana do
porcentagens de participação dos entes na arre- povo, que o exerce por meio de representantes
cadação tributária nacional. Nesta parte do es- eleitos ou diretamente, nos termos desta Cons-
tudo, os levantamentos se concentrarão no perí- tituição”, reafirmando a soberania das ordens
odo entre 1998 e 2013, porque, segundo pesqui- democrática e jurídica (Brasil, 1988).
sa prévia, é a disponibilização mais completa Mais que isso, na concepção pós-mo-
disponibilizada até o momento do estudo e que derna, a instituição do estado democrático de
está em conformidade com os dados secundá- direito demonstra a superação do paradigma
rios encontrados em bibliografia utilizada. liberal individualista, passando-se a adotar os
Por fim, esclarecidas as repartições de preceitos do estado social, pautado pelos prin-
competências e de receitas entre os entes fe- cípios da dignidade, liberdade e igualdade.
derados, efetuar-se-á uma análise para auferir Em outros termos, a instituição do esta-
a eventual existência de relação entre as estru- do democrático de direito importa na supera-
turas administrativa e orçamentária e a (in)ca- ção do chamado estado de direito legislativo,
pacidade do Estado de implementar as devidas não cabendo mais a dissociação entre lei e
políticas públicas. justiça (Vasconcelos, 2013). Assim, podemos
afirmar que para o direito contemporâneo o
estado democrático de direito compõe-se de
O ESTADO DEMOCRÁTICO DE regras e de princípios, todos carregados de ne-
DIREITO E O DEVER DE ATENÇÃO cessária natureza normativa, impondo a trans-
À SAÚDE posição da concepção positivista e individu-
alista da jurisdição e alcançando um sentido
De acordo com o artigo primeiro da indissociável da normatividade dos princípios
Constituição Federal de 1988, o Brasil é uma constitucionais de justiça e do necessário reco-
república federativa, formada pelos Estados, nhecimento e consequentemente garantia dos
Municípios e Distrito Federal, que constitui direitos individuais e garantias fundamentais
um Estado Democrático de Direito, os quais (Vasconcelos, 2013).
tradicionalmente são entendidos como aque- Nesse sentido, a Constituição Federal de
les em que “a vontade soberana do povo deci- 1988 assegura direitos individuais e as garan-
de, direta ou indiretamente, todas as questões tias fundamentais a todos os cidadãos brasilei- Caderno CRH, Salvador, v. 36, p. 1-18, e023013, 2023
de governo, de tal sorte que o povo seja sempre ros e também aos estrangeiros residentes, com
o titular e o objeto – a saber, o sujeito ativo e o a expressa referência, em seu artigo 1º, da dig-
sujeito passivo de todo o poder legítimo” (Bo- nidade da pessoa humana como fundamento
navides, 1980, p. 17). da República (Brasil, 1988). Logo, é direito de
Ainda, segundo Martinez (2006), por es- todos e de cada um dos cidadãos brasileiros
tados de direito entende-se aqueles em que o e dos estrangeiros residentes o reconhecimen-
poder é adstrito à ordem constitucional, de for- to, respeito, proteção e até mesmo promoção
ma que a própria atuação estatal é vinculada e desenvolvimento da dignidade, podendo in-
aos preceitos legais, não podendo o poder pú- clusive falar-se de um direito a uma existência
blico desconsiderar os deveres impostos pela digna (Comparato, 1997), para a qual a Cons-
legislação e tampouco impor suas vontades tituição Federal prevê, em seu artigo 5°, que
quando desprovidas de embasamento. “todos são iguais perante a lei, sem distinção
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de qualquer natureza, garantindo-se aos brasi- Acontece que tal desrespeito ou contro-
leiros e aos estrangeiros residentes no País a vérsia acerca dos mandamentos legais pode ser
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à praticado ou envolver a atuação do Poder Exe-
igualdade, à segurança e à propriedade” (Bra- cutivo na implementação das políticas devida-
sil, 1988, n. p.). mente formuladas – hipóteses em que os pre-
A partir dessa perspectiva de estado so- tensos destinatários ou demais interessados
cial, com o dever de assegurar direitos, é pos- têm acionado o Poder Judiciário para que esse
sível compreender as políticas públicas como aufira a adequação e regule a aplicabilidade da
forma de assegurar esses direitos. Em outras política, no caso concreto.
palavras, pode-se entender a política pública Quanto a essa questão, há relevante dis-
como a ação do Estado (aqui entendido como o cussão a respeito da legitimidade da interferên-
poder estatal em todas as suas formas), quando cia do Poder Judiciário. Por um lado, é verdade
este se movimenta com o intuito de assegurar que a judicialização da política impõe ao Ju-
direitos aos cidadãos (Hess, 2010). diciário absoluta responsabilidade em decidir
Para o caso brasileiro há bons estudos sobre políticas públicas, especialmente sobre
que demonstram que este processo de constru- questões de direitos garantidos constitucional-
ção de políticas públicas, depois da Constitui- mente, o que acaba por interferir e reduzir a
ção de 1988, passou por uma mudança muito autonomia dos demais poderes. De qualquer
significativa. Martha Arretche (2001; 1999) sorte, por outro lado, afirma-se a supremacia
mostrou como o processo de descentralização da constituição, e a definição de questões po-
das políticas nacionais para estados e muni- líticas na Constituição permitem e até impõem
cípios, e das políticas estaduais para municí- que o Judiciário interfira na seara política e
pios, foi fortemente democratizado pela neces- garanta a implementação das garantias funda-
sidade e possibilidade dos entes mais frágeis mentais, por tratar-se de uma questão constitu-
aderirem ou não às políticas dos entes maio- cional (Barboza; Kozicki, 2012).
res. Os estudos de Arretche demonstram que Sob essa ótica, acredita-se que política
a descentralização ocorreu com mais rapidez e pública é o “conjunto de normas (Poder Le-
completude, quão maiores foram os incentivos gislativo), atos (Poder Executivo) e decisões
financeiros, administrativos e políticos imple- (Poder Judiciário), que visam à realização dos
mentados pelo governo federal e pelos gover- fins primordiais do Estado” e que, portanto, as
nos estaduais, e quão menores foram os custos ordens judiciais emanadas para forçar a imple-
de adesão para municípios e estados. mentação de políticas públicas previstas na
Arretche reconhece a importância do legislação não se traduzem em intervenção do
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formato estatal da Nova República com a reto- Poder Judiciário na atividade do Poder Execu-
mada do equilíbrio entre os três poderes, o con- tivo, pois, em determinados casos, revelam-se
trole das polícias estaduais pelos estados, e a necessárias para a completude do ciclo da po-
autonomia dos executivos e legislativos eleitos lítica (Grinover, 2008, p. 11-12).
de poderem exercer suas posições e oposições. Ainda nessa linha, de acordo com Chie-
Neste sentido, a tripartição dos poderes e ffi e Barata (2009), especificamente no âmbito
o dever constitucional diferenciado de cada um da política pública de saúde, “a judicialização
dos poderes, competindo, de regra, a formulação tem se traduzido como a garantia de acesso a
das políticas pelo Poder Legislativo, a implemen- bens e serviços por intermédio da utilização de
tação delas pelo Poder Executivo e a apreciação, ações judiciais”. Ou seja, essa tem sido a forma
pelo Poder Judiciário, dos casos em que há des- encontrada pela população para ver atendida
respeito ou controvérsia acerca dos preceitos a pretensão de figurar como destinatário das
emanados pelo parlamento (Dallari, 2010). políticas públicas (Chieffi; Barata, 2009).
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Ademais, a atividade estatal vem se de- Democrático de Direito (Brasil, 1988). E, con-
senvolvendo diante da corrente submissão do forme já referido, por Estados Democráticos
Poder Executivo a ordens de prestação positi- entende-se aqueles estruturados para garantir
va proferidas pelo Poder Judiciário. Logo, in- a dignidade dos cidadãos e, por Estado de Di-
dependentemente de, a rigor técnico, ser ou reito, entende-se aquele em que o poder é limi-
não legítima tal sobreposição dos poderes do tado à ordem constitucional, de tal forma que
Estado, é incontroverso que ela faz parte da se de um lado o cidadão não pode reivindicar
realidade e merece, portanto, dessa forma ser direitos quando desprovidos de embasamento
considerada e estudada. legal, de outro lado o Estado não pode impor
Por isso, não se pretende, aqui, definir a suas vontades, ou atuar contra as normas exis-
possibilidade ou a legitimidade da influência tentes (Martinez, 2006).
do Poder Judiciário na implementação da po- Diante de todos esses conceitos e ten-
lítica pública de saúde. O que se pretende é, do em vista a hierarquia existente dentro do
a partir da atual situação em que se encontra ordenamento jurídico-institucional brasileiro,
o ciclo da política pública de saúde, auferir as deve-se entender a Constituição Federal como
causas da ineficiente atuação do Poder Execu- sendo o fundamento básico de todo esse sis-
tivo na implementação da política pública de tema que instituiu o estado social no Brasil,
saúde no Brasil e analisar as consequências do amparando os direitos sociais e garantias in-
seu deslocamento, para a esfera judicial. dividuais.
Logo, considerando-se que dita carta
fundamental prevê, em seu artigo 5°: que “to-
A POLÍTICA PÚBLICA DE SAÚDE dos são iguais perante a lei, sem distinção de
NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA qualquer natureza, garantindo-se aos brasi-
leiros e aos estrangeiros residentes no País a
Para investigar as causas da massiva inviolabilidade do direito à vida, à liberdade,
atividade judiciária na implementação da po- à igualdade, à segurança e à propriedade” e de-
lítica pública de saúde no Brasil, parece rele- termina que o direito à saúde constitui dever
vante explicitar a organização normativo-ad- do Estado destinado a todos, o qual deve ser
ministrativa pela qual se orienta a execução “garantido mediante políticas sociais e econô-
da política, já que, considera-se, aqui, hipótese micas que visem à redução do risco de doen-
segundo a qual há algum fator que dificulta a ça e de outros agravos e ao acesso universal e
sua implementação administrativa, pelo Poder igualitário às ações e serviços para sua promo-
Executivo, acabando por deslocar a sua efeti- ção, proteção e recuperação”, é seguro afirmar
vação para o Poder Judiciário. que o Estado brasileiro tem o dever de garanti- Caderno CRH, Salvador, v. 36, p. 1-18, e023013, 2023
Ainda, para realizar a análise da orga- -lo mediante a prestação universal e igualitária
nização normativo-administrativa da política dos serviços de saúde (Brasil, 1988, n. p.).
pública de saúde, assim como para analisar Quer dizer, o acesso universal e igua-
qualquer outra atividade do Estado brasileiro, litário aos serviços de saúde está presente na
é necessário considerar o sistema de leis vigen- legislação do Estado Brasileiro como política
te, além de considerar esse sistema como um pública fundamental.
conjunto cujas partes se inter-relacionam mú- Para regulamentar a implementação des-
tua e constantemente. sa política, foi editada, em 1990, a Lei n. 8080,
É necessário considerar o sistema de instituindo-se o Sistema Único de Saúde. Tal
leis vigente porque o Brasil é uma república legislação, além de dispor acerca das “condi-
federativa, formada pelos Estados, Municípios ções para a promoção, proteção e recuperação
e Distrito Federal, que constitui um Estado da saúde, a organização e o funcionamento dos
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Diante dessa repartição de competên- bre a Renda, o Imposto sobre Serviços, dentre
cias, recai sobre os Municípios (e Distrito Fe- outros, que devem ser pagos pelo simples fato
deral) o dever de disponibilizar parcela impor- de o contribuinte possuir um veículo, auferir
tante dos serviços de saúde. renda ou prestar serviços, respectivamente. O
A par disso, em virtude da norma Cons- imposto é um tributo não vinculado porque os
titucional, a participação dos Municípios na valores arrecadados em virtude da incidência
repartição da receita tributária nacional vem se dos contribuintes nas situações fáticas previs-
reduzindo consideravelmente, motivo pelo qual tas na lei como geradoras do dever de pagá-los
tais entes têm cada vez menos condições de podem ser utilizados de acordo com as neces-
arcar com os custos de disponibilizar a grande sidades da Administração, não se impondo a
gama de produtos e serviços que lhe compete. sua utilização no respectivo setor. Ou seja, os
valores arrecadados a título de IPVA (Imposto
sobre a Propriedade de Veículos Automotores)
O PACTO FEDERATIVO E O SIS- não precisam ser necessariamente investidos
TEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL na pavimentação de ruas ou estradas.
Por outro lado, de acordo com o artigo 77
A principal fonte de arrecadação de di- da mesma norma, as taxas são tributos cobrados
visas do Estado é o recolhimento de tributo como contrapartida a um serviço prestado ou
- que, conforme descrito no artigo 3º do Có- disponibilizado (Brasil, 1966). Como exemplo,
digo Tributário Nacional, constitui-se de “toda pode-se citar a taxa de coleta de lixo ou a taxa
prestação pecuniária compulsória, em moeda anual de licenciamento dos veículos, cobradas,
ou cujo valor nela se possa exprimir, que não respectivamente, pelo Poder Público Munici-
constitua sanção de ato ilícito, instituída em pal, em vista da disponibilização do serviço de
lei e cobrada mediante atividade administrati- coleta de lixo e pelo Departamento Estadual de
va plenamente vinculada” (Brasil, 1966). Transito, em face da prestação do serviço rela-
Diz-se isso para esclarecer que nem todo tivo ao licenciamento veicular. Pode-se ver que,
tributo é imposto. Os tributos podem ser: ao contrário dos impostos, as taxas são tributos
vinculados porque a arrecadação delas decor-
Quadro 2 – Espécies de Tributos
rente deve ser investida diretamente na manu-
Tributos não vinculados Impostos tenção dos serviços que as originam.
Taxas Ainda, segundo definido no artigo 81
Tributos vinculados
Contribuições de Melhoria também do Código Tributário Nacional, a con-
tribuição de melhoria é a prestação cobrada
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Nesse contexto, tem-se a seguinte distri- nar, aos Estados e Municípios, parte da receita
buição da arrecadação tributária: referente ao Imposto sobre a Renda e Proventos
de Qualquer Natureza e ao Impos-
Gráfico 1 – Proporção da Receita Tributária dos Entes Federados
em 2013 to Sobre Produtos Industrializados
(Brasil, 1966). Inicialmente, cada
um dos fundos era formado por
10% do produto da arrecadação
do IR e do IPI (Brasil, 1966). Atual-
mente, são compostos de montante
equivalente a 24,5% (FPM) e 21,5
% (FPE) da arrecadação da União
com o Imposto de Renda e com o
Imposto sobre Produtos Industria-
lizados (Brasil, 1988). Veja-se a
evolução dos percentuais dos fun-
dos de participação:
Tal concentração na arrecadação é pro- Note-se que as emendas constitucionais
positalmente formulada pela estruturação do 55/2007 e 84/2014 implementaram adicionais
pacto federativo e tem como objetivo a poste- de 1% cada uma delas apenas para o Fundo de
rior redistribuição igualitária dos fundos para Participação dos Municípios. Ainda, diferente-
compensar e reduzir as desigualdades econô- mente do repasse dos outros 22,5% e da tota-
micas e sociais existentes entre as regiões do lidade do Fundo de Participação dos Estados
País. Quer dizer, a Constituição Federal prevê (que ocorrem regularmente nos dias 10, 20 e
a arrecadação tributária concentrada para que 30 de cada mês), a quantia implementada pela
os recursos sejam distribuídos de forma pro- Emenda Constitucional 55/2007 é repassada
porcional – distri- Tabela 2 – Evolução Legislativa e Percentual dos Fundos de Participação
buição que se dá,
além do retorno Dispositivo Legal FPE (%) FPM (%) Vigência
de ICMS (Imposto Código Tributário Nacional (1966) 10,0 10,0 1967/1968
sobre Circulação Ato Complementar 40/1968 5,0 5,0 1969/1975
de Mercadorias e 6,0 6,0 1976
7,0 7,0 1977
Serviços) e dos re- Emenda Constitucional 5/1975
8,0 8,0 1978
passes específicos
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municípios vizinhos, mas de população e ex- repasse do Sistema Único de Saúde e 6,74% re-
pressividade econômica bastante díspares. ferem-se a outras transferências (Brasil, 2014).
No exercício de 2013, tomado por base
na indicação feita acerca das porcentagens arre- Tabela 4 – Fonte de Receita dos Municípios de Rio Gran-
de e São José do Norte - 2013
cadadas diretamente pelas diferentes entidades São José do
Rio Grande Norte
federativas, por exemplo, o Município de Rio
Arrecadação Tribu- 29,37% 8,38%
Grande teve uma arrecadação bruta de 471.882 tária Própria
milhões de reais, sendo que desse total apenas Repasses 59,5% 84,68%
29,37% correspondem à receita própria, 59,5%
Outras Receitas 11,13% 6,94%
correspondem a repasses intergovernamentais e
Fonte dos dados: BRASIL, 2014, s/p
11,13% advêm de outras receitas (Brasil, 2014).
É sabido que tal Município possui atividade eco- De fato, o que se vê é que, independen-
nômica expressiva, disponibiliza um número temente da importância da atividade econômi-
importante de vagas na rede escolar e é referên- ca e do nível de desenvolvimento do Municí-
cia regional em saúde, tendo, consequentemen- pio, é inequívoca a dependência orçamentária
te, os valores de retorno do ICMS e de repasse aos repasses da União. E assim não deve deixar
do FUNDEB e do SUS importantes; assim, dos de ser, pois, como referido inicialmente, a con-
59,5% correspondentes a repasses intergover- centração na arrecadação é parte da estrutura-
namentais, 17,77% referem-se à cota do FPM, ção do pacto federativo e tem como objetivo a
33,92% referem-se à cota do ICMS, 23,1% refe- posterior redistribuição igualitária dos fundos
rem-se ao FUNDEB, 7,14% ao repasse do Siste- para compensar e reduzir as desigualdades
ma Único de Saúde e 18,8% referem-se a outras econômicas e sociais existentes entre as regi-
transferências (Brasil, 2014). De qualquer sorte, ões do País.
considerando a importância da atividade econô- O que ocorre é que, conforme já visto,
mica e o nível de desenvolvimento do Município os Fundos de Participação são compostos uni-
também se espera que a sua arrecadação própria camente pelas receitas de dois dos impostos de
seja mais expressiva. Ainda assim, como dito competência da União – o IR e o IPI – e a institui-
acima, apenas 29,37% da arrecadação municipal ção de novas fontes de receita tem-se dado atra-
correspondem à receita própria. vés da criação de tributos de natureza diversa.
Não por outro motivo, ainda que adote- Por isso, as receitas do repasse consti-
mos um município de menor potencial econô- tucional têm aumentado em uma proporção
mico, é flagrante a dependência orçamentária menor do que o aumento da arrecadação total
aos repasses da União. Exemplificativamente, da União. Em 1998, a receita total do Governo
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adotando-se os dados do Município de São José Federal foi de 18% do PIB e o repasse aos fun-
do Norte, vizinho ao Município de Rio Grande, dos de participação foi de 2,5% do PIB. Quinze
vê-se que, no mesmo exercício de 2013, de uma anos depois, em 2013, a receita do mesmo ente
receita total de 42.271 milhões de reais, apenas alcançou 24,6% do PIB, enquanto que o repas-
8,38% correspondem à receita própria, 84,68% se aos fundos se limitou a 3,0% do PIB (Brasil,
correspondem a repasses intergovernamentais 2013). Vejamos:
e 6,94% advêm de outras recei-
tas, sendo que, da totalidade Tabela 5 – Receita da União X repasse aos fundos entre os anos
de 1998 e 2013
dos repasses intergovernamen-
Ano de 1998 Ano de 2013 Crescimento
tais 34,71% referem-se à cota
do FPM, 19,87% referem-se Receita da União 18% do PIB 24,6% do PIB 36,37%
à cota do ICMS, 21,53% refe- Repasse aos Fundos 2,5% do PIB 3,0% do PIB 20%
rem-se ao FUNDEB, 17,15% ao Fonte dos dados: BRASIL, 2013, s/p.
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dução de investimentos aos Estados e Muni- dá por duas razões. A primeira delas diz com
cípios como condição para o acesso a políti- o entendimento construído pelo Poder Judici-
cas e investimentos promovidos pela União, ário acerca do direito constitucionalmente ga-
reduzindo a autonomia fiscal destes entes e, rantido e a estruturação administrativa do Sis-
consequentemente, a agravando incapacidade tema Único de Saúde. Conforme explicitado
financeira para a implementação de políticas no capítulo específico, de acordo com o artigo
públicas essenciais, como a de saúde. Este 196 da Constituição Federal, “a saúde é direito
ponto, em verdade, constitui uma agenda de de todos e dever do Estado” (Brasil, 1988). Por
pesquisa importante, pois indica mais um fa- isso, a despeito da repartição de competências
tor que possivelmente dificulta a implementa- descrita na Lei Orgânica da Saúde e nas por-
ção da política a nível administrativo, o qual tarias do Ministério da Saúde, no julgamento
merece especial atenção e estudo específico. das ações judiciais de saúde, aplica-se enten-
De tudo isso resume-se que, de um lado, dimento segundo o qual todos os entes são
há redução constante na independência finan- responsáveis por todas e quaisquer prestações
ceira dos Municípios e, de outro lado, há cres- pleiteadas. Isso porque, nas palavras do minis-
cente concentração das competências e deve- tro Celso de Mello:
res de custeio na organização do SUS.
[...] o caráter programático da regra inscrita no art.
Assim, existindo a política pública uni-
196 da Carta Política - que tem por destinatários to-
versal e igualitária, e diante da garantia cons-
dos os entes políticos que compõem, no plano ins-
titucional de acesso à saúde e à vida, não se titucional, a organização federativa do Estado brasi-
pode deixar de alcançar as prestações de saú- leiro não pode converter-se em promessa constitu-
de aos que delas necessitem (Brasil, 1988). cional inconsequente, sob pena de o Poder Público,
Por isso, diante da negativa administrativa, é fraudando justas expectativas nele depositadas pela
coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o
natural a busca pelo atendimento na via judi-
cumprimento de seu impostergável dever, por um
cial, deslocando a implementação dessa políti-
gesto irresponsável de infidelidade governamental
ca para o Poder Judiciário e comprometendo, ao que determina a própria Lei Fundamental do Es-
de consequência, o orçamento dos próprios tado (Brasil, 2006, p. 1-2).
Municípios, dos Estados (cuja competência
administrativa é eminentemente residual) e A segunda razão é pela qual o desloca-
da União (cuja competência administrativa mento da implementação da política de saúde
abrange apenas a alta complexidade). tem a ver com a forma de execução das deci-
sões. Nas demandas judiciais, conquanto haja
ordem para que o ente preste ao cidadão dire-
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atenção aos princípios da administração públi- nicipal, estadual e federal, possam resolver os
ca – dentre os quais se ressalta o princípio da impasses criados pelo desequilíbrio do siste-
economicidade –, causando prejuízos às con- ma de saúde frente às repartições tributárias e
tas estatais e, consequentemente, diminuindo o confronto destas com princípios básicos do
os recursos disponíveis para a execução da po- SUS, como o da equidade na dimensão coleti-
lítica pública de saúde. Exatamente por isso, va (Chieffi; Baratta, 2009).
segundo consignaram Chieffi e Baratta (2009):
crescimento da carga
tributária do Brasil
– diminuindo a capa-
cidade financeira des-
ses entes e aumentan-
do a sua dependência
em relação à União.
Nessa linha, conclui-se que o cresci-
Assim, é possível entender a incapaci-
mento exponencial das demandas judiciais e a
dade dos Municípios de cumprir o seu dever
impossibilidade de previsão orçamentária dos
no sistema de saúde. Ainda, diante da negativa
gastos oriundos dessas ações impedem que os
administrativa, é natural a busca pelo atendi-
gestores do sistema de saúde, nos âmbitos mu-
mento na via judicial, deslocando a implemen-
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O PACTO FEDERATIVO E A IMPLEMENTAÇÃO DA POLÍTICA PÚBLICA...
tação dessa política para o Poder Judiciário e de apontar se a incongruência entre as estru-
comprometendo, de consequência, o orçamen- turas administrativa e orçamentária se deve
to dos próprios Municípios, dos Estados (cuja à inadequação desta ou daquela. De qualquer
competência administrativa é eminentemente sorte, pode-se a partir dela considerar a neces-
residual) e da União (cuja competência admi- sidade de resolução do problema estrutural do
nistrativa abrange apenas a alta complexidade). sistema, antes de pensar-se em inadequação
Ou seja, estima-se que a causa do deslo- ou necessidade de ampliação da política. Quer
camento da implementação da política pública dizer, pode-se, a partir deste trabalho, afirmar
de saúde para a esfera judicial não advém da que não nos falta política, o que nos falta é efe-
ausência ou da insuficiência das respectivas tividade.
previsões administrativas de custeio, mas sim
da incongruência da sua repartição de compe-
Recebido para publicação em 13 de maio de 2019
tências com a estrutura de distribuição da re- Aceito em 05 de junho de 2023
ceita tributária.
Por todas essas razões, identifica-se a
instituição de um círculo vicioso, porquanto o REFERÊNCIAS
aumento do número de ações judiciais objeti-
vando a garantia do direito à saúde e à vida im- ARRETCHE, Marta T. S. Estado Federativo e Políticas
sociais: Determinantes da descentralização. São Paulo:
põe o deslocamento cada vez maior de receita FAPESP; Rio de Janeiro, 2001.
para o atendimento de situações individuais, ARRETCHE, Marta T. S. Políticas Sociais no Brasil:
descentralização em um Estado federativo. Revista
reduzindo a cobertura da prestação de saúde Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, V.14, N. 40, 1999.
do Estado e levando mais cidadãos a ingressar BARBOZA, E. M. Q.; KOZICKI, K. Judicialização da
Política e Controle Judicial de Políticas Públicas. Revista
em juízo para ter acesso às prestações. Direito FGV, São Paulo, p. 059-086, 2012.
Diante disso, está confirmada a hipótese BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da
inicial de que há uma relevante incongruência República, 1988. Disponível em: https://www.planalto.
entre a institucionalização das competências gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso
em: 13 jul. 2023.
dos entes federados e a composição orçamen- BRASIL. Emenda Constitucional nº 55, 2007. Altera o
tária impedindo a implementação administra- art. 159 da Constituição Federal, aumentando a entrega
de recursos pela União ao Fundo de Participação dos
tiva da política pública de saúde. Municípios, 20 de setembro de 2007. Brasília, DF:
Presidência da República, 2007.
Por mais que esta conclusão revele uma
BRASIL. Emenda Constitucional nº 84, de 2 de dezembro
falta de eficiência da capacidade do Estado de 2014. Altera o art. 159 da Constituição Federal para
(Souza, 2017) abre, de outro lado, uma agenda aumentar a entrega de recursos pela União para o Fundo
de Participação dos Municípios, 2 de dezembro de 2014.
de estudos para responder questões como: Há Brasília, DF: Presidência da República, 2014.
Caderno CRH, Salvador, v. 36, p. 1-18, e023013, 2023
alguma relação do tamanho e do nível de desen- BRASIL. Lei nº 5.172, 1966. Dispõe sobre o Sistema
Tributário Nacional e institui normas gerais de direito
volvimento dos municípios com a dependência tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios, 25 de
outubro de 1966. Brasília, DF: Presidência da República,
financeira em relação à União? Há alguma rela- 1966.
ção desses fatores com a incapacidade de pres- BRASIL. Lei nº 8.080, 1990. Dispõe sobre as condições para a
promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização
tar a assistência à saúde que compete aos muni- e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá
cípios? A política de saúde existente, de acordo outras providências, de 19 de setembro de 1990. Brasília,
DF: Presidência da República, 1990.
com a sua forma de prestação administrativa,
BRASIL. Lei Complementar nº 62, 1989. Estabelece
seria capaz de atender às necessidades da po- normas sobre o cálculo, a entrega e o controle das
liberações dos recursos dos Fundos de Participação e dá
pulação, se resolvido o problema orçamentário? outras providências, de 28 de dezembro de 1989. Brasília,
DF: Presidência da República, 1989.
Assim, torna-se esta uma pesquisa ini-
BRASIL. Planilha do Resultado Fiscal do Governo Central.
cial e, por óbvio, incapaz de responder a todas Brasília, DF: Tesouro Nacional, 2013. Disponível em:
as inquietações que surgem quando estudamos https://www.tesourotransparente.gov.br/temas/estatisticas-
fiscais-e-planejamento/resultado-do-tesouro-nacional-rtn-
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O PACTO FEDERATIVO E A IMPLEMENTAÇÃO DA POLÍTICA PÚBLICA...
The right to health is an inherent basis for the Le droit à la santé est un fondement inhérent à la
dignity of the human person. However, the dignité de la personne humaine, cependant, la
increasing difficulty of access to public services difficulté croissante de la population à accéder
of this nature is evident, leading citizens to aux services publics de cette nature est notoire,
routinely appeal to the judiciary to see their amenant les citoyens à faire systématiquement
rights guaranteed. Faced with this, the following appel à la Justice. Face à cela, la question suivante
question arises: why is the Judiciary so active in se pose : pourquoi le pouvoir judiciaire est-il ainsi
resolving public health issues that the Executive appelé à résoudre des problèmes de santé publique
is responsible for executing? In order to answer dont la responsabilité d’exécution incombe au
the problem, our hypothesis is that there is an pouvoir exécutif ? Visant à répondre au problème,
incongruity between the institutionalization of the notre hypothèse est qu’il existe une incohérence
powers of the federated entities and the budget entre l’institutionnalisation des pouvoirs des
composition, which impedes the implementation entités fédérales et la composition du budget, qui
of public health policies. The objective is to clarify empêche la mise en œuvre des politiques de santé
the distribution of powers and revenues among the publique. L’objectif est de clarifier la répartition
federated entities to analyze the possible relation des compétences et des revenus entre les entités
of their incompatibility with the administrative fédérées pour analyser le rapport éventuel de leur
inefficiency of the State. The analysis begins with incompatibilité avec l’inefficacité administrative
an explanation of the legislation applicable to de l’Etat. L’analyse commence par la présentation
the Unified Health System, to explain the way of de la législation applicable au Système Unifié de
operationalization and the division of competencies Santé, afin d’expliquer son opérationnalisation et la
by health services among the federated entities. répartition des compétences des services de santé
After that, the study on the feasibility of costing entre les entités fédérées. Après cela, une étude est
public health in Brazil, clarifying the sources of réalisée sur la faisabilité du financement de la santé
revenue and the percentages of participation of the publique au Brésil, clarifiant les sources de revenus
entities in the national tax collection. Finally, the et les pourcentages de participation des entités à
analysis confirms the hypothesis. la collecte des impôts nationaux. Enfin, l’analyse
prouve l’hypothèse.
Keywords: Public policy. Health. Judicialization. Mots clés: Politiques publiques. Santé. La judiciarisation.
state capacity. Brazil. capacité de l’État. Brésil.
Caderno CRH, Salvador, v. 36, p. 1-18, e023013, 2023
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