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UNIVERSIDADE DE LISBOA

Faculdade de Letras

Cafres e Cafraria. A construção de categorias classificatórias dos africanos


na documentação portuguesa (Séculos XVI e XVII)

Maria da Glória Carriço de Santana Paula

Orientadores: Prof. Doutora Isabel Carmona Barreto Ramos Dias de Castro Henriques
Prof. Doutor José Augusto Nunes da Silva Horta

Tese especialmente elaborada para a obtenção do grau de Doutor no ramo de História,


na especialidade de História de África

2022

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UNIVERSIDADE DE LISBOA
Faculdade de Letras

Cafres e Cafraria. A construção de categorias classificatórias dos africanos


na documentação portuguesa (Séculos XVI e XVII)

Maria da Glória Carriço de Santana Paula

Orientadores: Prof. Doutora Isabel Carmona Barreto Ramos Dias de Castro Henriques
Prof. Doutor José Augusto Nunes da Silva Horta

Tese especialmente elaborada para obtenção do grau de Doutor em História, na


especialidade de História de África

Júri:
Presidente: Doutor Hermenegildo Nuno Goinhas Fernandes, Professor Associado e Director da Área de
História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Vogais:
Doutora Marília Pereira Lúcio dos Santos Lopes Hanenberg, Professora Associada com Agregação da
Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa (1.ª Arguente);
Doutor Carlos José Duarte Almeida, Investigador Integrado do Centro de História da Universidade de
Lisboa (2.º Arguente);
Doutor Manuel João Ramos, Professor Associado com Agregação do ISCTE-Instituto Universitário de
Lisboa (Vogal);
Doutor Rui Manuel Taveira de Sousa Loureiro, Professor Associado com Agregação do ISCTE-Instituto
Universitário de Lisboa (Vogal);
Doutora Maria Eugénia Alves Rodrigues, Investigadora Auxiliar do Centro de História da Universidade
de Lisboa (Vogal);
Doutora Isabel Carmona Barreto Ramos Dias de Castro Henriques, Professora Associada com
Agregação Aposentada da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (Orientadora).

SFRH/BD/70006/2010
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2022
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

A presente dissertação não segue o novo Acordo Ortográfico de 1990

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

À memória de meus pais,


de quem recebi os primeiros horizontes desta África.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

ÍNDICE

Pág.
Dedicatória ii

Resumo / Abstract v

Agradecimentos viii

Siglas e abreviaturas xi

Introdução 1

Parte I. Os “cafres” na construção de uma imagem da África meridional e do


sudeste na documentação portuguesa: dos estereótipos herdados à emergência
de novas visões do mundo 29

1. Contexto espacial e populacional: configurações territoriais e culturais na África


29
do Sudeste
1.1. Populações Khoisan, entre o rio Orange e o rio Kei 31

1.2. Comunidades Bantu, entre os rios Kei e Limpopo 44

1.3. Sociedades do litoral e sociedades do planalto, entre os rios Limpopo e


65
Zambeze
2. Estereótipos herdados: categorias e visões das gentes e das terras 76
2.1.Dos estereótipos dos Antigos à constatação da existência de um mundo
76
austral
2.2.O descobrimento da Terra dos cafres 97
2.3.Empréstimos culturais subjacentes à categoria cafre 106
2.3.1. Cafre: origem semítica da palavra 106
2.3.2. Cafres e bárbaros na visão do mundo de Ibn Battuta 118
2.3.3. O sudeste africano no poema de Ibn Magid, As-Sufaliyya 125

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Parte II. Primeiros encontros luso-africanos através da documentação


portuguesa: imagens e significados 131

1. Zonas de contacto entre portugueses e africanos 131


2. A Cafraria e suas populações nos registos entre 1497-1510 140

2.1.Primeiros contactos, primeira imagem 140

2.2.Primeiros usos e significações do termo cafre na documentação portuguesa 153


2.2.1. Usos do quotidiano: sinonímias e divergências 153
2.2.2. Primeira difusão oficial do termo na Europa 156
2.2.3. A fixação de uma primeira imagem dos cafres 160
2.3. Testemunhos estrangeiros e difusão de imagens para espaços europeus 169
2.4. Morte de D. Francisco de Almeida na Baía de Saldanha em 1510 179

3. A Cafraria e suas populações nos registos entre 1510-1551 187

3.1. Primeiros contactos directos e primeiras imagens das sociedades do planalto


do Zimbabwe 187
3.2. Os gentios da costa leste nas primeiras sínteses: a descrição de Duarte
196
Barbosa

Parte III. Consolidação da negatividade geográfico-antropológica da África do


sudeste e fixação do paradigma de tragédia e perdição, entre a segunda metade 204
do Séc. XVI e a primeira metade do Séc. XVII

1. Discursos sobre a morte de D. Francisco de Almeida 204

1.1. Construção de uma “lenda negra” da Cafraria 204


2. Naufrágios na África do sudeste e o reforço das categorias geográfico-
214
antropológicas discriminatórias
2.1. Os naufrágios 214
2.2. Percepções geográficas e classificações antropológicas na documentação
218
sobre naufrágios
2.2.1. Categorias de percepção da terra 218
2.2.1.1.Naufrágios e a Cafraria oriental 218

2.2.1.2. Limites da Cafraria do poente 265


2.2.2. Cafres, bárbaros, selvagens e gentios
274

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

2.3. De náufragos a abeLungus: a integração entre os cafres 299


3. A Cafraria na documentação missiológica, antes e depois da primeira missão 312
jesuítica: a acentuação das conotações negativas
3.1. Marginalidade da África do sudeste no âmbito da actividade missionária
312
portuguesa
3.2. Início da missão da Cafraria em Inhambane 317
3.3. Missão da Cafraria no Monomotapa 333
3.4. Das representações do martírio do Padre Gonçalo da Silveira à “guerra
346
justa” contra os cafres
3.4.1. Representações do martírio do Padre Gonçalo da Silveira 346
3.4.2. A questão da “guerra justa” 357

4. No dealbar do século XVII: Frei João dos Santos e a dimensão lata da Cafraria 372

4.1.Frei João dos Santos na África do sudeste 372


4.2. Imagens e representações da Cafraria na “Etiópia Oriental” 376
4.2.1. Natureza e paisagem 378
4.2.2. Das significações dos cafres 380
4.2.3. Povos e poderes africanos 385
4.2.4. Invasores e antropófagos 391
4.2.5. Ecos de encontros entre náufragos e cafres 394

399
Conclusões

410
Anexos
1. Documentos 411

1.1. Nota Prévia 412

1.2. Índice de Documentos 413

1.3. Documentos 414

2. Quadros 443

2.1. Nota Prévia 443

2.2. Índice de Quadros 444

2.2. Quadros 445

iii
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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Bibliografia 494
494
- Fontes
494
Manuscritas
498
Impressas
525
Cartográficas
527
Iconográficas

- Estudos 529
- Catálogos, Dicionários, Enciclopédias e Fórum de discussão 576

iv
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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Palavras-chave: Cafres – Cafraria – Alteridade – Representações dos Africanos – África


do Sudeste (sécs. XVI e XVII)

Resumo:
Ao intitularmos esta tese de doutoramento Cafres e Cafraria. A construção de categorias
classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (Séculos XVI e XVII),
procuramos analisar os modos como determinada extensão da terra africana foi
percepcionada, representada e classificada do ponto de vista geográfico e antropológico,
a partir de concepções e olhares exteriores.

Reunimos um corpus documental constituído por uma amostragem significativa de fontes


de diferentes tipologias, as quais materializam as concepções de uma época que assistiu
à dilatação do conhecimento do mundo.

As escritas produzidas no âmbito dos contactos directos com a diversidade geográfica e


humana, ou as que decorreram da recolha de informações orais, leituras, transcrições e
compilações, num âmbito de relações indirectas com o objecto descrito, vieram a
construir sentidos e imagens mentais assentes em estereótipos, categorias e concepções
herdadas de diversas temporalidades. Essas imagens circularam, foram apropriadas e
geraram outras imagens e estereótipos, que se replicaram e cristalizaram naquilo que
constitui um amplo “arquivo” ocidental de representações sobre povos e territórios
africanos.

Representações são imagens que tornam presentes objetos ausentes ou memórias,


implicando mecanismos discursivos que conferem sentido ao que se afigura exterior,
estranho e diverso. É nosso objectivo evidenciar os modos de transmissão dos
estereótipos que sublinharam as diferenças ou procuraram semelhanças relativamente aos
contextos dos sujeitos produtores dos discursos. Também procuramos compreender
alguns momentos da dialéctica do encontro entre portugueses e comunidades do sudeste
africano, atendendo aos níveis de evidência sobre as percepções locais do homem
“branco”.

Com esta dissertação desejamos contribuir para o conhecimento dos conceitos “cafre” e
“Cafraria”, desde o momento em que se fez a transferência do vocábulo árabe kāfir (início

v
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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

do séc. XVI), até que se consumou a sua generalização nos discursos portugueses, e outros
povos europeus se apropriam dos seus sentidos (1652), reinventando-os noutros contextos
históricos de interacção cultural.

Key words: Cafres – Cafraria – Alterity - Representations of the Africans – Southeast


Africa (16th and 17th Centuries)

Abstract:

This Ph.D. thesis is titled "Cafres" and "Cafraria". The construction of categories of
classification of Africans in Portuguese documentation (16th and 17th centuries). With
this research project we seek to analyze the ways in which a certain extent of African land
was perceived, represented and classified from a geographical and anthropological point
of view, on the basis of external conceptions and perspectives. We have assembled a
documentary corpus composed of a significant sample of sources of different types,
which materializes the conceptions of a time that has seen the expansion of the knowledge
of the world. The writings produced in the context of direct contacts with geographical
and human diversity, or those resulting from the collection of oral information, readings,
transcripts and compilations, in a context of indirect relations with the object described,
came to construct meanings and mental images based on stereotypes, categories and
concepts inherited from different temporalities. These images have circulated, been
appropriated and generated other images and stereotypes, which replicated and
crystallized in what constitutes a vast Western archive of representations on African
peoples and territories. The representations are images that present absent objects or
memories, involving discursive mechanisms that make sense of what seems to be
external, strange and diverse. Our goal is to highlight the modes of transmission of
stereotypes that underline differences or seek similarities in the contexts of the subjects
who produce the discourses. We also sought to understand some moments of the
dialectics of the meeting between Portuguese and Southeast African communities, taking
into account the levels of evidence about the local perceptions of white men. With this
thesis, we want to contribute to the knowledge of the concepts of "cafre" and "Cafraria",

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

from the moment when the Arabic word kāfir was transferred (beginning of the sixteenth
century), until its generalization in Portuguese discourses, and other European peoples
appropriate their meaning (1652), reinventing them in other historical contexts of cultural
interaction.

vii
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Agradecimentos

No percurso longo, em que a investigação para esta dissertação decorreu, olho


para trás e recordo a vida intensa de afazeres, no seio da família e da Escola. Foi nestes
contextos e no de estudante da Faculdade de Letras que beneficiei do sustentáculo
emocional e intelectual que alimentou o meu entusiasmo pela História de África.
Na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa recebi sempre o apoio
incondicional dos meus orientadores. É para a Professora Doutora Isabel Castro
Henriques e para o Professor Doutor José da Silva Horta que vai o meu maior
agradecimento, pois sem eles nada teria sido possível. Foram horas incansáveis de
leituras, sugestões críticas, conversas que conduziram sempre a mudanças construtivas
na estrutura, na escrita, no aparato crítico do presente trabalho. Qualquer falha nesta
dissertação será somente da minha responsabilidade. Os meus orientadores foram exímios
e estou-lhes profundamente grata por esta caminhada de investigação e aprendizagem.
Agradeço ao Professor Doutor António Borges Coelho, que tanto me apoiou e
entusiasmou na génese deste projecto de investigação sobre a representação da Cafraria
na documentação portuguesa, e a todos os docentes da Faculdade de Letras que
ministraram os seminários da parte curricular do Doutoramento e cujas leituras críticas
de trabalhos e sugestões bibliográficas foram fundamentais para esta versão da tese.
Destaco os Professores Doutores Carlos Almeida, Eugénia Rodrigues, Luís Frederico
Dias Antunes e Maria Leonor García da Cruz. Estou também grata ao Professor Manuel
Lobato e à Professora Ana Cristina Roque pelas sugestões de leituras e palavras de
encorajamento.
Dos docentes da Faculdade de Letras que me ajudaram com questões linguísticas
específicas e com traduções, expresso a minha gratidão ao Professor Doutor Arnaldo
Espírito Santo, ao Professor Doutor José Augusto Ramos e ao Prof. Doutor Machozi
Tshopo Mbangale. O Prof. Doutor Rui Loureiro foi de um apoio incrível com a sua
biblioteca pessoal, o que é tanto mais importante quando se reside e trabalha longe das
bibliotecas centrais. Estou-lhe grata por toda a generosidade e partilha.
Nas bibliotecas e arquivos encontrei sempre a solicitude, a atenção, o
profissionalismo e simpatia dos seus técnicos, o que contribuiu positivamente para que

viii
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

eu desfrutasse do labor da investigação nos seus espaços mais clássicos. Destaco também
as possibilidades de reprodução digital de documentos e as plataformas de acesso livre a
bibliografia especializada, que me possibilitou a extensão do labor investigativo em casa
e a distância.
No contexto das pesquisas que desenvolvi na África do Sul, agradeço à Dra. Ana
Van Eck, enquanto leitora de Português na Universidade de Witwatersrand, e ao Professor
Thomas Huffman, do departamento de arqueologia da mesma Universidade. No Cabo
Oriental, agradeço ao Professor Jeff Peires, da Universidade de Fort Hare, pela abertura
com que me recebeu e pela generosidade em esclarecer questões específicas. A Gavin
Whitelaw, do KwaZulu-Natal Museum, agradeço a partilha de material de estudo sobre
importantes contributos da arqueologia para o enquadramento deste tema de trabalho. No
East London Museum, fico eternamente grata a Gillian Vernon e Carl Vernon, pelas
conversas em torno do nosso interesse comum sobre naufrágios e por me terem conduzido
à praia do naufrágio da nau Santo Alberto, em Kwelera. As minhas estadias de estudo na
África do Sul não teriam sido tão incríveis sem o apoio da Isabel Barros, da Khareen Pech
e da Loren Bronkhorst. A elas o meu reconhecimento, pleno de amizade.
A Ana Cristina Gomes e a Inês Gomes deram-me uma ajuda na revisão do texto,
como só as famílias de coração o fazem. A Ana Cristina tem sido uma amiga e
companheira ao longo de todo este percurso académico e das pessoas que mais me
incentivaram a terminar a tese. O seu entusiasmo pelos documentos antigos, pelas
bibliotecas e pela escrita foram contagiantes e factores de motivação. Expresso-lhe a
minha maior gratidão.
E que seria deste percurso sem o meu marido, Rui Costa, e a minha filha, Laura,
suportes afectivos na perseverança necessária à concretização deste projecto. A eles tudo
devo. Grata também aos meus queridos irmãos, Célia Paula e Eduardo Paula, sempre
presentes e encorajadores. Aos meus amigos Rosamund Amartefio e Patrick Bennett, José
Eduardo Franco, Rosa Cruz e Silva, Sílvia Ropio, Claude Pereira, Paula Alexandra
Morgado e Conceição Rio, a minha gratidão por terem alimentado sempre o meu
entusiasmo com palavras de optimismo.
Institucionalmente, expresso também o meu agradecimento à Fundação para a
Ciência e Tecnologia que me concedeu uma bolsa de investigação, e ao Ministério da
Educação, que me dispensou das atividades lectivas através do estatuto de equiparação a

ix
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

bolseira, permitindo-me dedicação a tempo inteiro durante uma fase muito importante
deste projecto. No Agrupamento de Escolas Júlio Dantas, onde lecciono, sou grata à
antiga directora, Maria da Graça Cabrita, ao actual director, José Augusto Lopes, e à
directora do Centro de Formação Dr. Rui Grácio, Ana Cristina Madeira, pelo apoio que
me prestaram em tudo o que foi necessário e possível para facilitar a conciliação entre a
investigação e a minha actividade de professora do ensino básico e secundário. Aos
colegas e alunos a minha gratidão pela alegria que recolho todos os dias na vida escolar.
Ao painel de académicos que constituiu o júri desta tese, o meu agradecimento
pela leitura crítica que alimentou a discussão nas provas públicas, bem como pelos
comentários e sugestões construtivas que contribuem para a prossecução deste trabalho,
sempre numa perspectiva de aprofundamento e melhoria.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Siglas e abreviaturas

B.A. – Biblioteca da Ajuda

B.N.P. – Biblioteca Nacional de Portugal

B.P.E. – Biblioteca Pública de Évora

B.P.M.P. – Biblioteca Pública Municipal do Porto

D.P.M.A.C. – Documentos sobre os Portugueses em Moçambique e na África

Central

D.U.P. – Documentação Ultramarina Portuguesa

H.T.M. – História Trágico-Marítima

S.A.H. – South African Humanities

fls – folios

Ms – manuscrito

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Introdução

O estudo das representações portuguesas acerca da África e dos africanos insere-


se numa temática histórica mais vasta, que incide o seu objecto nas imagens que se
formularam nos discursos europeus sobre o continente africano e as suas sociedades. As
percepções e as imagens construídas sobre os africanos, bem como as classificações
inerentes a essas imagens decorrem de paradigmas cognitivos, culturais e ideológicos,
eles próprios resultantes de uma construção histórica, discursiva e dialógica, empreendida
no quadro concreto das relações interculturais entre portugueses e africanos. 1 Referimo-
nos a “Africanos”, ao longo deste trabalho, não como uma categoria unitária e unificadora
das sociedades africanas a que porventura corresponda uma qualquer essência cultural ou
identitária, mas antes como uma unidade genérica enquanto objecto de representação
europeia e, neste caso, portuguesa. Neste sentido, “Africano” é também uma categoria
classificatória cujos conteúdos “resultam da construção de uma representação portuguesa
desse Outro, que se foi estruturando ao longo dos séculos.”2 O que se pretende estudar é
uma parte de uma sequência de discursos e representações sobre uma região do continente
africano, em particular a África do sudeste e os seus habitantes, tal como percepcionada
por uma visão exógena e, frequentemente, simplificadora nas suas generalizações.
Os paradigmas discursivos sobre os encontros com os africanos enformaram a
replicação de ideias e estas moldaram comportamentos,3 normas culturais e sistemas de
pensamento que não apenas vieram a condicionar as percepções de povos e de espaços,
as expressões das identidades e das diferenças, como também determinaram as relações
de poder entre os povos na longa duração.

1
Malvern Van Wyk SMITH, The First Ethiopians. The Image of Africa and Africans in the Early
Mediterranean World, Johannesburg, Wits University Press, 2009, p. 55.
2
Isabel Castro HENRIQUES, De Escravos a Indígenas. O longo processo de instrumentalização dos
africanos (séculos XV-XX), Lisboa, Caleidoscópio, 2019, p. 342.
3
A replicação de ideias remete-nos para o conceito de Mimetismo, como sugerido por Dawkins, de acordo
com o qual “meme” pode definir-se como um “gene análogo” e um elemento auto-replicador de cultura,
que se transmite através da imitação. Partindo do princípio de que a transmissão cultural é análoga à
transmissão genética, assim como os genes, também os “memes” ou pacotes de ideias têm um poder auto-
replicador na mente humana, contribuindo para moldar grandes estruturas culturais e ideológicas. Cf.
Richard DAWKINS, A Devil’s Chaplain: Selected Essays, London, Weidenfeld and Nicolson, 2003, p.
120, Apud Malvern Van Wyk SMITH, ibidem, pp. 52-53.

1
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

As representações, sejam elas sociais, geográficas ou antropológicas, permitem-


nos ir ao encontro daquilo que Roger Chartier considerou serem as imagens que nos
remetem para a memória dos objetos ausentes ou para as palavras e imagens que se
fixaram na imaginação. Um dos sentidos do conceito de representação refere-se ao acto
de fazer presente ou dar a conhecer um referente ausente, sendo que esse “fazer presente”
ocorre através de imagens e signos, que permitem construir um conhecimento de forma
mediática.4 O conceito de representação afirma-se como um instrumento essencial de
análise histórica, uma vez que se refere às “classificações, divisões e delimitações que
organizam a apreensão do mundo social como categorias fundamentais de percepção e de
apreensão do real”, abrindo-nos a possibilidade de compreender os impactos sociais e
culturais destas percepções.5 Neste sentido, recorrendo a Marcel Mauss e Émile
Durkheim a propósito da noção de “representação colectiva”, Chartier chama a atenção
para as possibilidades de articulação do conceito de “representação” com noções de
dominação simbólica.6 É neste sentido que considera que nas sociedades de Antigo
Regime a construção das identidades sociais surge sempre como resultante das relações
de força entre as representações impostas por aqueles que têm o poder de classificar e
nomear e a definição submissa ou resistente, que cada comunidade produz sobre ela
própria.7 Na verdade, este fenómeno tem sido uma constante ao longo da história, não se
circunscrevendo ao Antigo Regime, pois as epistemologias geradoras de dominações
simbólicas terão moldado relações de força em múltiplas dimensões, não só as que se
materializaram nos domínios territorial e do exercício do poder, mas também as que
impactaram a ordenação hierárquica dos indivíduos e dos grupos, bem como as
correspondentes imagéticas de dominação e subordinação.

Objecto de estudo
A presente dissertação visa contribuir para a reflexão em torno dos signos e das
imagens que se foram construindo de África e dos africanos como resultado de múltiplas

4
Roger CHARTIER, “The Meaning of Representation”, in Books & Ideas, August 25th, 2014. Translated
from the French by Michael Behrent, with the support of the Institut Français.
https://booksandideas.net/The-Meaning-of-Representation.html (Consultado em 1/07/2021)
5
IDEM, A História Cultural. Entre Práticas e Representações, Lisboa, Difel, 1988, p. 17.
6
IDEM, “Le monde comme representation”, in Annales. Economies, sociétés, civilisations 44ᵉ année, Nº
6, 1989. pp. 1513-1514. https://doi.org/10.3406/ahess.1989.283667 (Consultado em 27/08/2021)
7
IDEM, ibidem, p. 1514.

2
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

experiências de contacto e relacionamento e cujas memórias se materializaram em textos,


imagens e mapas. Estamos no plano das representações e no âmbito dos primeiros
significados deste conceito, que se referem ao acto de tornar presente um referente
ausente, através de palavras e imagens susceptíveis de mobilizar os mecanismos da
imaginação. Mas a historicidade do conceito de representação envolve um outro sentido,
relacionado com a apresentação de algo que está presente, estabelecendo uma relação
entre a identidade de uma coisa e um determinado signo, implicando auto-exposição e
reflexividade.8
As representações históricas que se construíram na base dos contactos com
diferentes partes do mundo e suas populações podem ser consideradas numa dimensão
dupla. Seguindo a leitura que Chartier faz de Louis Marin, uma das dimensões é transitiva
e os seus mecanismos buscam uma enunciação transparente de algo que foi e não é mais;
outra dimensão é reflexiva, enunciando uma opacidade, em que cada representação é, em
si mesma, a representação de alguma outra coisa.9 É neste sentido que a representação se
afirma como um constructo complexo, pois esta dupla dimensão implica o uso de signos
e de símbolos para trazer à presença algo que está ausente, simbolizando algo mais do
que a própria representação. Os mecanismos envolvidos mobilizam operações de
classificação e hierarquização para traduzir percepções e modos de interpretar o mundo
e, neste sentido, podem contribuir para a legitimação de princípios ligados à identidade e
à pertença, à alteridade e à exclusão, contribuindo para formas de dominação e subjugação
social e cultural.
O objecto de estudo das representações dos africanos tem exigido por parte de
muitos investigadores um trabalho sistemático de pesquisa relativamente aos diversos
espaços com os quais os portugueses estabeleceram relações históricas, no âmbito da
longa duração.10

8
IDEM, “The Meaning of Representation”, (…), p. 4.
9
IDEM, ibidem, p. 5.
10
Para alguns espaços da África Ocidental e da África Central Ocidental foram realizadas investigações
históricas profundas que esclarecem os mecanismos históricos e culturais inerentes à construção das
representações de sociedades africanas. Destacamos o caso da África Atlântica, entre o rio Senegal e a
chamada “Serra Leoa”, que foi estudada na perspectiva das representações por José da Silva Horta, nas suas
dissertações de mestrado e doutoramento apresentadas à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e
as dissertações de mestrado e doutoramento de Carlos Almeida, sobre as representações missionárias do
Reino do Congo e da região Mbundu. Veja-se: José da Silva HORTA, A “Guiné do Cabo Verde”: produção
textual e representações (1578-1684), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian / Fundação para a Ciência e
Tecnologia, 2011; José da Silva HORTA, “A Representação do Africano na Literatura de Viagens, do

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Ao intitularmos esta dissertação de doutoramento Cafres e Cafraria. A construção


de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (Séculos XVI e
XVII), focamos a nossa análise no modo como determinada extensão da terra africana foi
percepcionada, representada e classificada do ponto de vista geográfico e antropológico.
O topos Cafraria corresponde a uma percepção específica da África meridional e do
sudeste; cafre é um dos signos identificativos11 do protagonista humano desses territórios,
a partir de concepções e olhares exteriores.
O conjunto de documentos que nos propomos analisar permite-nos aceder a uma
diversidade de discursos resultantes do olhar e da experiência de interacção com o
africano, por parte de viajantes, náufragos, aventureiros, funcionários e agentes
administrativos, ou das competências inventivas de cartógrafos, compiladores e eruditos
portugueses dos séculos XVI e XVII. Ora, esses testemunhos discursivos são eles
próprios representações, no sentido em que fixam leituras ou interpretações do mundo, e
modos de construir a alteridade, numa época em que se confrontavam paradigmas
culturais e materiais muito diversos. Alfredo Margarido escreveu um artigo pioneiro
sobre as problemáticas da alteridade no quadro do Renascimento português no qual refere
que os actores sociais que acima mencionamos, se por um lado desempenhavam na
Europa o papel de “informadores” privilegiados acerca dos novos mundos, também eram
portadores de uma grelha de leitura civilizacional europeia, de acordo com a qual
classificaram e organizaram a diversidade revelada nos diferentes palcos do mundo. 12
Segundo este historiador, face a cada novidade encontrada, os portugueses aplicavam a
sua grelha cultural de referência, definindo a alteridade essencialmente a partir das

Senegal à Serra Leoa (1453-1508)”, in Mare Liberum, Nº 2, 1991, pp. 209-339; Carlos ALMEIDA, A
Representação do Africano na Literatura Missionária sobre o Reino do Kongo e Angola – meados do séc.
XVI a meados do século XVII, Universidade Nova de Lisboa - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas,
1997; Carlos ALMEIDA, Uma infelicidade feliz. A imagem de África e dos Africanos na Literatura
Missionária sobre o Kongo e a região mbundu (meados do séc. XVI ao primeiro quartel do séc. XVIII),
Dissertação de Doutoramento em Antropologia apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa, 2010. De destacar ainda o trabalho de Vanessa THOMAS, Représentations
européennes des corps africains au cours des premiers contacts sur les rives atlantiques. (1341-1508). Le
passage du mythe à la construction du réel par l’expérience vécue, Dissertação Mestrado em História
especialidade de História de África apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2013
[texto policopiado].
11
José da Silva HORTA, “A Representação do Africano na Literatura de Viagens, do Senegal à Serra
Leoa”, (…), p. 233.
12
Alfredo MARGARIDO, “La vision de l’autre (Africain et Indian d’Amérique) dans la Renaissance
portugaise”, in L’Humanisme Portugais et L’Europe. Actes du XXIe Colloque International d’Études
Humanistes, Paris, Fondation Calouste Gulbenkian, 1984, p. 508.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

diferenças relativamente às práticas do Mesmo, Português, Cristão, Europeu.13 A prática


de “ler o Outro” e classificá-lo através do uso da analogia procede dos tempos homéricos
e tem sido interpretada como uma forma de o destituir da sua existência autónoma. Nesta
perspetiva de tempo longo da história, a alteridade é, como concebeu Levinas, uma
relação totalmente assimétrica, apesar de recíproca.14 Para Levinas, a “filosofia ocidental
foi, na maioria das vezes, uma ontologia: uma redução do Outro ao Mesmo”, o que, na
lição socrática, implicava “nada receber de Outrem a não ser o que já está em mim, como
se, desde toda a eternidade, eu já possuísse o que me vem de fora”.15 O primado e
permanência do Mesmo, num conhecimento construído pela razão, tendeu historicamente
para “neutralizar o outro”, arrebatando-lhe a sua alteridade.16 Afinal, segundo Levinas,
desde a experiência matricial grega, foi necessário neutralizar para compreender ou
captar.17
O pensamento filosófico levinasiano estabelece categorias úteis para a
compreensão das relações entre o “eu”, o Mesmo, fixado na sua identidade, na
consciência de si, e o Outro, aquele que transcende o “eu”, que é diverso e que, ao ser
reconhecido como tal, constitui a alteridade. Sendo a representação uma imagem que
torna presente um objeto ausente ou uma memória, mobiliza mecanismos discursivos e
categorias que permitem dar sentido ao que se afigura exterior, estranho e diverso, tanto
em termos humanos, como da natureza e da geografia.
O presente estudo reporta-se à categoria de representação cafre, um dos signos
identificativos do elemento humano africano, e ao espaço por si habitado, a Cafraria, um
espaço resultante de uma produção exógena sobre os territórios da África meridional e do
sudeste, primeiramente designado na documentação portuguesa por terra de cafres. Em
termos geográficos, a Cafraria corresponde a uma categoria de representação que se foi
construindo historicamente nos diversos textos e nos mapas produzidos no quadro das
viagens marítimas portuguesas da época Moderna. A partir dos êxitos editoriais dos
relatos de naufrágios da segunda metade do século XVI e do século XVII, a Cafraria

13
IDEM, ibidem, p. 509.
14
Pedro Manuel dos Santos ALVES, “Levinas crítico de Husserl e de Sartre. Sobre a teoria da
Intersubjectividade e da Alteridade”, in Cristina BECKERT, Lévinas entre nós, Lisboa, Centro de Filosofia
da Universidade de Lisboa, 2006, p. 145.
15
Emmanuel LEVINAS, Totalidade e Infinito, 3ª ed., Lisboa, Edições 70, 2008, p. 30.
16
IDEM, ibidem, pp. 30-31.
17
IDEM, ibidem, p. 33.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

estabeleceu-se como o topónimo identificativo do espaço sul e sudeste do continente


africano. Com o tempo, a Cafraria passava a abranger os extensos territórios que têm
como referentes o cabo Negro, a ocidente, e cabo das Correntes, a oriente do sub-
continente.
De acordo com o corpus documental, esta categoria geográfica abrange ainda os
planaltos do Zimbabwe e as planícies costeiras do Índico, numa extensão que, para alguns
autores do período em causa, se projecta até às fronteiras da “Etiópia do Preste João”.
A categoria geográfico-antropológica de Cafraria foi objecto de uma evolução,
de uma construção nos textos e nos mapas, que envolveu alguma fluidez em termos das
áreas do continente abrangidas. Importa, pois, analisar a categoria de acordo com as
múltiplas percepções do espaço e das formações socio-políticas a este associadas, no
âmbito do sistema conceptual e das estruturas de pensamento da época. Mas, as categorias
de representação geográfica e antropológica são também variáveis em função da natureza
e duração das interacções e da convivialidade experienciada entre elementos de universos
culturais diversos, sendo que, por vezes, as escritas testemunham uma abertura à
diversidade cultural, o que permite relativizar as classificações gerais e revelar a
apreensão de um mundo heterogéneo.
Este objecto de estudo surgiu a partir de um trabalho de edição crítica e estudo do
manuscrito anónimo Perdição da nao Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, custumes
dos que a abitão até o Cabo das Correntes18, e da leitura dos relatos de naufrágios
ocorridos no sudeste africano, compilados por Bernardo Gomes de Brito na História
Trágico-Marítima, em cuja textualidade o elemento humano cafre e a terra da Cafraria
correspondem, em muitos aspectos, a descrições estereotipadas. Ocorreu-nos indagar,
através de um alargamento do corpus documental, se teriam sido os relatos de naufrágios
dos séculos XVI e XVII os documentos fundadores desses estereótipos, ou se as imagens
veiculadas eram, por sua vez, beneficiárias de experiências históricas já então enraizadas
na longa duração.

18
Tal temática foi trabalhada no Seminário de História de África, no âmbito do Mestrado em História
Moderna. A edição crítica do manuscrito foi publicada alguns anos depois. Cf. Glória de Santana PAULA,
O Naufrágio da Nau Santo Alberto. Discurso de um manuscrito anónimo, Lisboa, Caleidoscópio, 2007.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Quase em simultâneo, no contexto de um intercâmbio pedagógico e cultural com


duas escolas sulafricanas19, concretizou-se uma primeira viagem à República da África
do Sul e também o primeiro contacto com o significado e dimensão contemporânea do
vocábulo cafre / caffer / kaffir. Apercebemo-nos que, com uma forte conotação pejorativa,
a palavra kafir não é usada nem nos documentos, nem nos discursos públicos e, quando
aplicada a africanos, é considerada crime de injúria. Notícias diversas chegavam e
continuam a chegar à Comissão Sul-africana de Direitos Humanos (S.A.H.R.C.)
relatando crimes que integram a designação insultuosa de kafir. Dessas notícias, destaca-
se a história do jovem Lindani Khanyile, aluno de Bryanstone High School (Joanesburgo)
que, em 8 de Junho de 2000, foi agredido por um grupo de seis rapazes, num incidente
considerado de natureza racial. Dessa agressão resultou a perda de 50% de visão num
olho. Cinco anos depois, Khanyile queixava-se que o Departamento de Educação da
Província de Gauteng ainda não o tinha recompensado pelos danos sofridos, sendo que
estes danos não se limitavam à injúria física, mas também à ofensa moral, pois como
atesta em notícia do jornal The Star, “I was kicked and beaten (…). I was told to ‘go back
to the township school where I belonged’ (…) I have gone through a lot of trauma and
was called a k****, (…). I want justice to be done”.20
Na África do Sul pós-apartheid, a designação kaffir / caffer foi claramente definida
na lei como “discurso racial de ódio” (racial hate speeech), pois considerava-se injuriosa
e causadora de preconceito no sentido em que visava perpetuar teorias e crenças de
desigualdade racial.
Ao folhearmos os densos volumes de relatórios de casos decididos nas divisões
locais, dos Distritos Orientais do Supremo Tribunal da África do Sul, durante o século
XX, confrontamo-nos com uma conflitualidade social marcada pela prevalência de uma
ideologia de desigualdade social, económica e política.
Aleatoriamente, detivemo-nos no ano de 1911. Um procedimento criminal
desencadeado pela venda de licor a uma “pessoa proibida”, um “nativo”, trazia à barra do
tribunal a discussão sobre o que definia um “kafir”. A essa data aplicava-se o sentido do

19
Intercâmbio Pedagógico e Cultural entre a Escola Básica 2, 3 Nº 1 de Lagos e as Escolas Sul africanas
Pietersburg English Medium Primary School e Capricorn High School, de Polokwane, Limpopo Province,
República da África do Sul, Anos lectivos 2000/2001 e 2001/2002.
20
Botho MOLOSANKWE, “Ex-pupil in race attack still not compensated”, The Star, Johannesburg,
12/04/2005.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Acto 28, de 1898, secções 1, 2 e 5, de acordo com a qual um “kafir” era um “nativo”.
Ora, tentando contornar o texto legal, que definia um “nativo” como um “kafir”, o arguido
em sua defesa descreveu-se como sendo um “Tembu”, expressão de identidade étnica
ausente da lei vigente e que suscitou, da parte do tribunal, a clarificação das categorias
classificatórias através de jurisprudência. O tribunal viria a declarar que, “pelos traços e
aparência”, o indivíduo em causa era um “nativo”, um “kafir”, inferindo que “um Tembu
é um kafir” e que este se define pelos seus traços somáticos.21
Anos mais tarde, a 6 de Junho de 1927, na divisão da Província do Natal do
Supremo Tribunal foi julgado um “homem nativo” (zulu) acusado de vadiagem a horas
proibidas.22 Duas questões centrais foram definidas na audiência: a primeira, que o
acusado, sendo um homem zulu, estava incluído na categoria de povos chamados
“kaffirs”, que eram todas as tribos originalmente na Colónia. Ora, segundo o magistrado,
era um facto indubitável que as pessoas de qualquer “raça Bantu” na África do Sul tinham
sido comummente chamadas “Kaffirs”, principalmente desde 1869. A segunda questão
relacionava-se com a acusação de vadiagem porque o “homem nativo” passava numa rua
fora do seu bairro a horas proibidas, ou seja, entre as 9 da noite e as 5 da manhã, sem
possuir um passe ou dar uma justificação.
Independentemente da decisão do juíz, o que estava em causa era a própria
doutrina explanada em tribunal sobre a natureza do kaffir, definida na lei 15 de 1869 e
sobre o estatuto legal subjacente à categorização da população “nativa”, condicionada nos
horários e locais a que podia deslocar-se nas áreas não classificadas de “sistema tribal”.
Um kaffir era, então, um homem “nativo”, que fora colonizado e que, de acordo com as
referências supracitadas, era considerado primitivo e inferior, mantendo-se subordinado
às limitações que a lei e a sociedade dominantes lhe impunham.
A partir da institucionalização do apartheid, as populações autóctones eram
educadas de acordo com a lei da Educação Bantu, em conformidade com os princípios
“tribais”, de modo a se prepararem para futuramente trabalhar com o seu próprio povo
nas tarefas que lhe estavam destinadas, prosseguindo o objectivo das vidas separadas.

21
Supreme Court of South Africa, Reports of Cases Decided in Eastern Districts’ Local Division, 1911,
Johannesburg, Digma Publications, 1973, pp. 101-104.
22
Natal Law Reports. Reports of Cases Decided in the Natal Provincial Division of the Supreme Court of
South Africa, Vol. XLVIII, Johannesburg, Digma Publications, 1973, pp. 156-163.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Estava em vigor uma ordem social, política, económica e legal, estruturada com
base na segregação e na desigualdade racial, que determinava a inferioridade dos sectores
maioritários da população. Neste contexto, kaffir era o termo usado para designar
qualquer africano, anteriormente chamado de “nativo” que, de acordo com a arquitectura
social do regime, confinava o nível mais baixo na escala dos excluídos. Os kaffirs, a
esmagadora maioria da população, eram considerados cidadãos de quarta categoria,
confinados aos ghettos urbanos ou aos Bantustões controlados pelo governo de Pretória.
Apesar da legislação de suporte de tal sistema ter sido abolida após a instauração
da democracia constitucional, em 1994, as suas consequências sociais prevalecem ainda
e assiste-se a uma regulamentação legal que visa impedir a continuação do uso de um
discurso de ódio racial que certos vocábulos sugerem perpetuar. Daí que se assista
actualmente a uma política de restrição de qualquer discurso do qual se possa inferir que
uma pessoa, ou grupo de pessoas, é desigual simplesmente devido à sua “raça”.23
A definição da amplitude do “discurso do ódio” conduziu a uma reflexão global
na qual se integram as formas de tratamento e, neste sentido, a palavra kaffir é classificada
como a mais ofensiva aplicada à população africana, dado o seu significado degradante e
humilhante durante o regime do apartheid.
Actualmente, nos jornais ou revistas, quando é noticiada qualquer situação de
violação de direitos, que envolva este modo de tratamento, o vocábulo surge entre aspas
e a maior parte das letras substituídas por asteriscos: “k*****”. Nos discursos orais
institucionais não se pronuncia a palavra e, ainda que esta esteja em análise, fala-se da “K
word”. A palavra tornou-se um tabu, não é pronunciada, não é escrita e, quando usada
relativamente a alguém, suscita de imediato mecanismos jurídicos de protecção do
ofendido e de punição do agressor.
Uma longa história deste termo faz com que o seu uso na actualidade vitimize as
pessoas a quem se aplica porque sugere que são inferiores, ou pior, porque classifica uma
parte da população em virtude dos traços físicos e da diversidade cultural associados a
uma suposta raça ou grupo étnico.24

23
Jane Elizabeth MARSTON, Racial Hate Speech in a Changing Society: from Racial Oppression to
Democracy, Johannesburg, LLD – UP, 1997, pp. 2-4.
24
IDEM, ibidem, p. 9.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Também para os territórios que hoje integram o espaço de Moçambique, o termo


“cafre” esteve historicamente associado a uma classificação das populações locais,
designando os habitantes de origem Bantu, que viviam desde os territórios mais a sul,
passando pela baía de Maputo, até à bacia do Zambeze. Utilizado durante séculos por
povos exteriores, o termo “cafre” designava populações descritas com características
“negróides” e com um perfil espiritual oscilando entre o “infiel” e o “idólatra”, a que se
acrescentavam os adjectivos/categorias de “selvagem”, “rústico”, “bárbaro” e
“ignorante”. Tais atributos estigmatizantes fixaram-se numa categoria classificatória que
perdurou durante séculos, sendo usada tanto pelos viajantes que descreveram a terra e as
gentes, como pelo poder colonial instalado que, numa lógica binária, opunha povos
supostamente civilizados, os colonos, aos autóctones, genericamente designados de
“cafres”.
Em finais do século XIX, com a emergência do paradigma colonial e o seu
pensamento dicotómico, “abissal”, no dizer de Boaventura de Sousa Santos, os africanos
eram remetidos para universos de “primitivismo”, sendo reforçadas as características que
teoricamente consagravam a sua inferioridade.25 É no contexto colonial, e no âmbito dos
processos que conduziram à eliminação da escravatura na legislação portuguesa, que se
afirma a designação de “indígena” como categoria operatória no âmbito do discurso
oficial e da literatura legal.26 A afirmação de uma “política do indigenato” procurava
corresponder às necessidades de garantir uma força de trabalho nas colónias e, nas suas
dimensões teórico-doutrinal e administrativa, assegurava a operacionalização da imagem
do “selvagem”, que só pelo trabalho poderia ser “domesticado”. 27 O estatuto de
menoridade cognitiva, cultural e legal, inerente à categoria de “indígena”, requeria uma
acção de tutela e proteção por parte de uma entidade “civilizadora”, concretizando deste
modo “o princípio de discriminação essencial, construído legalmente através da

25
Boaventura de Sousa SANTOS, “Para além do Pensamento Abissal: das linhas globais a uma ecologia
dos saberes”, in Construindo as Epistemologias do Sul: Antologia Essencial, Vol. I, Buenos Aires,
CLASCO, 2018, pp. 639-675.
26
Isabel Castro HENRIQUES, “A (falsa) passagem do escravo a indígena”, in Os Pilares da Diferença.
Relações Portugal-África. Séculos XV-XX, Lisboa, Caleidoscópio-Centro de História da Universidade de
Lisboa, 2004, pp. 285-297.
27
IDEM, ibidem, pp. 285-286. Veja-se também Fernanda Nascimento THOMAZ, “Disciplinar o
“indígena” com pena de trabalho: políticas coloniais portuguesas em Moçambique”, in Estudos Históricos,
Rio de Janeiro, Vol. 25, N.º 50, pp. 313-330, julho-dezembro de 2012. https://doi.org/10.1590/S0103-
21862012000200003 (Consultado em 24/07/2021)

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

diferenciação entre ‘civilizados’ e ‘indígenas’”. 28 Com a promulgação do Regulamento


do Trabalho dos Indígenas, em 9 de novembro de 1899, o poder colonial português
estatuía o exercício da sua tutela sobre as populações “indígenas”, alegando uma intenção
humanitária que as protegia da escravatura e as conduzia a um “gradual desenvolvimento
moral e intelectual” através do trabalho, concebido como “cooperação útil” e organizado
para aumentar a riqueza da terra africana em prol do governo da “metrópole”.29 Se nos
documentos oficiais se afirma a classificação das populações africanas como “indígenas”,
em registos não oficiais persistia a categorização das populações de Moçambique como
“cafres”, sendo comuns as referências aos costumes “cafriais”. Um exemplo da
persistência da categorização do “indígena” enquanto “cafre” é a publicação de Francisco
Gavicho de Lacerda, Os Cafres: seus usos e costumes.30 Esta obra, produzida por um
colono arrendatário de um dos Prazos da Zambézia, apresenta toda a classificação
pejorativa formulada durante séculos, assumindo uma perspectiva cultural e racial. Na
obra de Lacerda, o traço distintivo dos povos Bantus é a língua, que se organiza em
“vários grupos naturais”, sendo que ao “grupo oriental pertence o Cafre, a língua dos
amahossas, zulos, cafres, e outros que habitam o território que confina com o Zambeze”. 31
Procedendo a uma descrição física pretensamente científica e a uma classificação dos
“cafres” de acordo com suas “raças”, “dialectos” e territórios, o autor definia claramente
um perfil pré-civilizacional para estes povos, que justificava a missão civilizadora dos
portugueses numa perspectiva de paternalismo extremo.32
Diferentes tempos se cruzam nesta temática dos rótulos e categorias de
classificação aplicados pelos europeus às populações do sul da África. O ponto de partida
para este estudo foi um manuscrito do século XVI, depois, apercebemo-nos de como a
sobrevivência das categorizações na longa duração teve implicações até ao presente,
tentamos compreender as actuais problemáticas sociais envolvidas nos discursos que
integram o vocábulo cafre / kaffir, mas é no passado histórico e nos principais momentos

28
Maria Paula MENESES, “O ‘indígena’ africano e o colono ‘europeu’: a construção da diferença por
processos legais”, in e-cadernos CES [Online], 07/2010, p. 71. http://journals.openedition.org/eces/403
(Consultado em 20/12/2020)
29
“Regulamento do Trabalho dos Indígenas”, 9 de novembro de 1899, In Diário do Governo, N.º 259 de
15 de novembro de 1899, pp. 646-647.
30
Francisco Gavicho de LACERDA, Os Cafres. Seus usos e costumes, Lisboa, Livraria Rodrigues, 1944.
31
IDEM, ibidem, p. 23.
32
IDEM, ibidem, pp. 25-26.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

da construção das imagens que vamos centrar a nossa análise, afastando-nos de qualquer
tipo de olhar retrospectivo.
Teremos de remontar aos inícios da centúria de Quinhentos e às viagens da
expansão marítima portuguesa para tentarmos compreender um dos momentos
determinantes da evolução deste termo, enquanto categoria classificatória de grupos de
população. Há quase um século que os portugueses estabeleciam contactos com os litorais
do ocidente africano, designando as populações pelos vocábulos de etíopes, negros,
guinéus ou homens pretos. Esta mesma diversidade lexical identificava as gentes
africanas, trazidas para a Europa no âmbito do comércio de escravos. Cada um destes
vocábulos encerrava códigos e simbolismos estereotipados que os converteram em
categorias. Como esclareceu José da Silva Horta, na senda de François de Medeiros, a cor
negra, na paleta de cores do Ocidente, marcava tanto a imagem do “etíope”, como do “negro”,
que estavam associadas, desde os tempos medievais, à morte, ao sofrimento, à metáfora
do pecado e ao próprio diabo, ainda que pudesse ter um registo alternativo de carácter positivo
ligado às potencialidades de conversão da Gentilidade.33 A cor negra era ainda entendida
como uma consequência das características climáticas da zona tórrida, que produzia
efeitos sobre a moral dos “etíopes” e todas as criaturas habitantes da “África etiópica”. 34
Terá sido nos primeiros anos do século XVI, já em paragens do Índico, que os
portugueses tiveram contacto com o termo que evoluiria em português para cafre. Após
a primeira viagem de Vasco da Gama, o rei D. Manuel ordenou a construção de um forte
em Sofala, de modo a poder beneficiar do comércio do ouro que aí afluía. Os mercadores
muçulmanos, que dominavam o comércio na costa oriental africana, usavam a palavra
kaffir (‫ )كافر‬para designar as populações não convertidas ao Islão, vistas como infiéis do
ponto de vista religioso, e os portugueses adoptaram essa designação aplicada às
populações autóctones. Que significados terão sido transferidos do árabe ou do suaíli para
o uso português da palavra? Que imagens e que conceitos do “stock cultural” 35 dos
viajantes foram mobilizados quando se fez essa adopção? Quais as acepções do vocábulo

33
José da Silva HORTA, “A imagem do Africano pelos portugueses antes dos contactos”, in António Luís
FERRONHA (coord.), O Confronto do Olhar. O encontro dos povos na época das Navegações
portuguesas. Séculos XV e XVI. Portugal, África, Ásia, América, Lisboa, Caminho, 1991, pp. 46-47.
34
François de MEDEIROS, L’Occident et l’Afrique (XIIIe-XVe siècle). Images et representations, Paris,
Éditions Karthala, 1985, p. 224.
35
Edgar MORIN, “De la culturanalyse à la politique culturelle”, in Communications, 14, Paris, 1969, p. 7.
https://www.persee.fr/doc/comm_0588-8018_1969_num_14_1_1192 (Consultado em 20/09/2018)

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

nos primeiros registos documentais? Que reelaborações e invenções transformaram este


vocábulo numa categoria classificatória distintiva?
A história da utilização deste termo por povos europeus para designar populações
africanas é longa e complexa e tem significados subjacentes que importa compreender,
descrever e explicar de acordo com os respectivos contextos históricos.
Importa, pois, questionar as ideias, os preconceitos e os paradigmas que, enraizados
no tempo longo da história, emergiram aquando dos encontros da Europa com a África.
A documentação que nos propomos analisar reúne-se num corpus cuja classificação
tem sido enquadrada por muitos autores no subgénero literário compósito de “Literatura
de Viagens”. Fernando Cristovão analisou as imprecisões terminológicas associadas a
esta tipologia textual, a natureza interdisciplinar dos textos, bem como o papel
desempenhado pela imprensa, pelos editores e leitores na passagem “da simples
historiografia e antropologia para a literatura”.36 De acordo com a definição proposta para
este subgénero, o autor considera ainda que os temas, os motivos e as formas não se
limitam à viagem, enquanto deslocação. De facto, o registo de tudo o que pareceu digno
por ocasião da viagem torna esta textualidade muito vasta: “a descrição da terra, fauna,
flora, minerais, usos, costumes, crenças e formas de organização dos povos, comércio,
organização militar, ciências e artes, bem como os seus enquadramentos antropológicos,
históricos e sociais”.37 Depois, este critério temático amplo necessita de ser organizado
numa tipologia que atenda à diversidade dos textos.
Fernando Cristovão integra na categoria “Viagens de expansão” os textos acerca da
expansão política (cronística, roteiros, regimentos e documentação administrativa), da
expansão da fé (documentação missiológica), da expansão científica (observações da
fauna, flora, geografia, usos e costumes diversos), mas também os relatos de naufrágios
que, para além de constituírem textos compósitos, veiculavam uma visão disfórica da
expansão.
Consideramos que, apesar da notória utilidade que a clarificação deste conceito
possa trazer a um corpus documental, a verdade é que o seu estatuto de “Literatura”,

36
Fernando CRISTÓVÃO, “Introdução. Para uma Teoria da Literatura de Viagens”, in Fernando
CRISTÓVÃO, (coord.), Condicionantes Culturais da Literatura de Viagens. Estudos e Bibliografias,
Coimbra, Almedina - Centro de Literaturas de Expressão Portuguesa da Universidade de Lisboa, 2002, pp.
29-30.
37
IDEM, ibidem, p. 35.

13
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

assente no critério da recepção dos textos pelo público leitor e nos cânones que este acaba
por ditar às casas de edição e impressão, obsta à operacionalidade do conceito no âmbito
deste trabalho. De facto, um número significativo de textos de viagens, resultantes dos
contactos e interações dos viajantes portugueses com uma diversidade de povos,
constituindo aquilo que se considera ser um discurso antropológico fundador, foram
integrados em colectâneas impressas e divulgadas na Europa. De acordo com Luís Filipe
Barreto, Portugal funcionava como um amplo “banco de dados” sobre as novas geografias
e humanidades.38 José Horta acrescenta que as informações e os textos produzidos sobre
matéria ultramarina eram difundidas nos grandes centros impressores, não existindo
mecanismos para controlar a recepção dos textos fora de Portugal.39
Mas se é verdade que integramos no corpus um conjunto de textos que obedecem
ao critério literário, muitos outros ficariam excluídos, devido à sua permanência em
suporte manuscrito ou à própria natureza administrativa ou prática, sendo que também
estes textos circularam, tiveram leitores e veicularam percepções, revelando-se
importantes para a compreensão dos processos de construção das representações dos
africanos da costa sul e leste do continente.
Com base num corpus documental que integra textos administrativos, roteiros,
relatos de viagens, correspondência missiológica, notícias de naufrágios e descrições
geográficas, pretendemos desenvolver três eixos estruturais de análise, que constituem o
objetivo fundamental desta tese.
O primeiro desses eixos refere-se às imagens e representações que se formularam
sobre a terra e as gentes da Cafraria. Que categorias e que esquemas de percepção
estruturaram os discursos? Que sentidos poderão ter sido construídos pelos leitores?
Neste âmbito, sempre que possível, procuramos analisar as condições de produção dos
textos40 e avaliar até que ponto as notícias das terras e povos distantes foram divulgadas

38
Luís Filipe BARRETO, Os Descobrimentos e a Ordem do Saber. Uma análise sociocultural, Lisboa,
Gradiva, 1989, ps. 15 e 36-37.
39
José da Silva HORTA, A “Guiné do Cabo Verde”. Produção textual e Representações (1578-1684),
(…), pp. 30-31. “O Africano: produção textual e representações (séculos XV-XVIII)”, in Fernando
CRISTÓVÃO (coord.), Condicionantes Culturais da Literatura de Viagens. Estudos e Bibliografias,
Coimbra, Almedina, 2002, pp. 267-268.
40
A problemática das relações entre o mundo do texto e o mundo do sujeito, das significações e das
apropriações de sentido encontra-se no cerne das representações, ou melhor, do “mundo como
representação”. Nas últimas décadas, os estudos de Roger Chartier têm sido determinantes para a
conceptualização da “representação” e afirmação da sua pertinência operatória para compreender os
processos de construção das identidades, hierarquias e classificações, com projecções nas práticas sociais

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

pela imprensa da época, contribuindo para a cristalização de imagens estereotipadas e


refigurações da África do Sudeste e seus habitantes.
O segundo eixo de pesquisa refere-se à recepção portuguesa das especificidades
culturais de diversas sociedades da África do Sudeste. Importa esclarecer de que modo os
textos analisados reflectem uma percepção da diversidade espacial e da heterogeneidade
cultural e política, o que equivale a questionar qual o grau de conhecimento que os
portugueses construíram relativamente às sociedades com as quais interagiram, ainda que
de forma temporária e condicionada pelas circunstâncias específicas em que ocorreram
os encontros.
Finalmente, dado que uma parte considerável desta documentação é constituída por
relatos de naufrágios, que descrevem o encontro de diferentes povos numa perspectiva
extra-africana, ser-nos-á possível indagar os valores africanos mobilizados nos momentos
do encontro? Esta documentação abre-nos o caminho para o que terão sido as reacções
de algumas comunidades africanas à presença intermitente de náufragos durante cerca de
um século nas suas terras e revela exemplos de plena integração nas comunidades locais,
facto que nos permite aceder a uma “história escondida” que deixou o seu eco nos
testemunhos orais do povo Mpondo relativamente à presença de ancestrais brancos.
Testemunhos escritos de missionários, já durante a terceira década do século XIX 41,
identificam esses ancestrais brancos (abeLungu) com os sobreviventes do naufrágio de
um navio inglês ocorrido em meados do séc. XVIII.42 Consideramos, porém, que as

do Antigo Regime. De salientar os trabalhos de referência de CHARTIER para esta questão: A História
Cultural. Entre práticas e representações, (…); “The Meaning of Representation”, (…). Veja-se ainda José
da Silva HORTA, A “Guiné do Cabo Verde”. Produção textual e Representações (1578-1684), (…), p. 24.
41
Quando os colonos britânicos se fixaram em Algoa Bay, em 1820, trouxeram consigo vários clérigos.
Um deles, William Shaw, a partir de 1823 ficou encarregado de pregar o Evangelho às “tribos” vizinhas e
fundou seis missões, entre o rio Chalumna e o rio Umzimvubu. Na quarta destas missões, estabelecida entre
o povo Tshomane e seus vizinhos, os missionários receberam informações de que, a um dia de marcha,
encontrariam uma numerosa família de compleição clara, descendente de uma sobrevivente do naufrágio
de um navio inglês que teria casado com um chefe africano. Foi empreendida uma expedição de
reconhecimento ao kraal do chefe Dapa, filho dessa senhora inglesa e, segundo o relato da expedição, o
chefe já idoso, que embora negro tinha feições europeias, não soube informar sobre o nome do navio.
Porém, a calcular pelos seus 70 anos não descendia de nenhuma das mulheres do Grosvenor (naufragado
em 1782), mas de um outro naufrágio anterior. Cf. Report of the Wesleyan Methodist Missionary Society
for the Year ending December, 1827, p. 119 “Letter from Shrewsbury of the 9th October”, 1827, Apud
Percival Robson KIRBY, “Gquma, Mdepa and the Amatshomane Clan: a by-way of miscegenation in South
Africa”, in African Studies, Vol. 13, N.º 1, 1954, pp. 6-7.
42
Segundo Kirby, o naufrágio de um navio inglês na terra dos Tshomane, do qual foi salva uma menina
inglesa (Bessie) a quem seria dado o nome de Gquma, teria ocorrido em 1740. Cf. Percival R. KIRBY,
ibidem, p. 23.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

tradições relativas aos abeLungu se enraízam seguramente num período mais antigo em
que náufragos portugueses caminharam pelas terras da Cafraria interagindo e
estabelecendo a comunicação com diferentes populações locais.
Os parâmetros cronológicos para este estudo das representações portuguesas das
populações e territórios designados de cafres e Cafraria tem como limite a quo a primeira
viagem de Gama (1497-98), na qual se produziram descrições pioneiras relativas às
populações da extremidade africana e às primeiras interacções culturais, vistas segundo
o prisma dos viajantes portugueses.43
O limite ad quem é assinalado pela instalação dos holandeses no Cabo, sob o
comando de Jan Van Riebeck, em 1652. A construção de um forte e a instalação de uma
guarnição militar no Cabo da Boa Esperança, destinados a dar apoio à Companhia das
Índias Orientais, fazia emergir um corpus discursivo não português, com as suas
especificidades e impacto nas categorias classificatórias.
De finais da década de 40 do século XVII são também os relatos dos naufrágios das
naus Nossa Senhora da Atalaia do Pinheiro e Santíssimo Sacramento (1647), escritos por
Bento Teixeira Feio.44 São estes os últimos testemunhos de náufragos portugueses que
atravessaram a extensa terra da Cafraria, desde os territórios a sul do rio Great Fish,
habitados por pastores Khoikhoi, passando depois pelos territórios habitados pelas
comunidades de pastores-agricultores, das quais descendem os actuais Xhosa, Mpondo,
Zulu, até à foz do rio então conhecido como de Lourenço Marques, área de comunidades
Tsonga.
A obra de Frei João dos Santos, publicada em Évora, em 1609, considera-se uma
importante síntese que compila memórias e informações recolhidas pelo missionário nos
territórios entre Sofala, Ilhas Quirimbas e Vale do Zambeze. Assumimos esta obra no

43
“Relato Directo da Viagem de Descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia, segundo o Manuscrito
Anónimo existente na Biblioteca Municipal do Porto”, in José Pedro MACHADO e Viriato CAMPOS,
Vasco da Gama e a sua Viagem de Descobrimento, Lisboa, Edição da Câmara Municipal de Lisboa, 1969,
pp. 111-225.
44
Bento Teyxeyra FEYO, Relaçam do naufragio que fizeram as naos Sacramento, & Nossa Senhora da
Atalaya, vindo da India para o Reyno, no Cabo de Boa Esperança; de que era Capitaõ mòr Luis de Miranda
Henriques, no anno de 1647, Lisboa, Impressa na officina de Paulo Craesbeck (?), 1650 (?), [contrafacção
do século XVIII]. Desta edição existe a dúvida se terá ocorrido na data referida e se a impressão terá sido
realizada na tipografia de Paulo Craesbeck.
Bento Teixeira Feio, sobrevivente do naufrágio da nau Atalaia, narrou a tragédia marítima e a subsequente
marcha pela costa até à baía de Maputo; no mesmo relato escreveu sobre o naufrágio da nau Santíssimo
Sacramento, também ocorrido em 1647.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

corpus como um ponto de chegada, pois os seus conteúdos foram traduzidos e publicados
tendo ampla divulgação nos centros cultos da Europa. A sequência cronológica deste
corpus tem continuidade até meados do século XVII com os relatos de naufrágios, os
quais sustentam uma dimensão de análise fundamental nesta dissertação. Portanto, a
sequência cumpre-se com fontes de tipologia diversa, numa abordagem global dos
discursos sobre as representações.

Problemática e objectivos
De que modo se construiu o conhecimento português dos espaços culturais e das
sociedades da África do Sudeste nos séculos XVI e XVII? Que paradigmas moldaram
essa construção? Que concepções cosmológicas e éticas aí interferiram ao ponto de
prevalecerem as ideologias marginalizadoras daquele espaço geográfico e antropológico?
Eis as questões gerais que orientam a presente dissertação.
Tendo em consideração que a Cafraria correspondia a vastos territórios de
contorno obrigatório pelas naus da Carreira da Índia, durante os séculos XVI e XVII, que
razões poderão explicar a sua marginalidade do ponto de vista dos juízos valorativos?
Qual o verdadeiro peso dos estereótipos, que oscilam entre os mitos do Paraíso
terrestre em África45, os mitos Camíticos, justificativos da escravatura, e os mitos da
antropofagia africana, nos quais se enraízam caricaturas grosseiras de povos monstruosos
e selvagens? Terão essas imagens contribuído para a exclusão de tais vastidões territoriais
dos objectivos da coroa portuguesa?
E a dimensão dialógica? Entre os problemas técnicos relacionados com a
navegação a Este do Cabo da Boa Esperança, as dificuldades de comunicação com as
populações autóctones, a ausência de estímulo económico nos territórios mais
meridionais, terão as experiências históricas desfavoráveis, como a morte de D. Francisco
de Almeida na baía de Saldanha, em 1510, potenciado velhos paradigmas que

45
Francesc RELAÑO, “Paradise in Africa. The History of a Geographical Myth from its Origins in
Medieval Thought to its Gradual Demise in Early Modern Europe”, in Terrae Incognitae. The Journal for
the History of Discoverie, Society for the History of Discoveries, Vol. 36, 2004.
https://doi.org/10.1179/tin.2004.36.1.1 (Consultado em 6/07/2018)

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

projectavam as gentes e os territórios da Africa extremitas para uma “geografia de


imaginação”?46
E para além de todos os conceitos e preconceitos envolvidos na construção da
alteridade? Em que momentos da dialética do encontro se superaram os estereótipos e foi
possível conceber o outro como um manifesto diferencialista?47
Com esta dissertação temos o propósito de reunir um corpus constituído por
documentos portugueses dos séculos XVI e XVII, relativos a experiências de contacto
com a África do Sudeste, permitindo esclarecer a formulação histórica das categorias de
representação conhecidas por cafre e Cafraria. Baseamo-nos sobretudo fontes impressas,
muitas destas reunidas em grandes colectâneas documentais, mas também selecionamos
alguns manuscritos inéditos que, no seu conjunto, constituem uma amostragem
significativa do que terá sido a materialização das concepções geográficas e
antropológicas da época.
Se é importante referir a natureza diversa das fontes, que abrangem documentos
administrativos da fortaleza de Sofala, ou outros emanados do Conselho Ultramarino,
roteiros e regimentos de viagens no quadro da Carreira da Índia, descrições de viagens,
sínteses geográfico-antropológicas, relatos de naufrágios, cartas de missionários,
cronística e também mapas e algumas gravuras coevas, também é importante definir a
necessidade de proceder a uma abordagem global deste corpus. A permeabilidade
discursiva será essencial para compreendermos uma determinada moldura ideológico-
conceptual, de acordo com a qual as categorias em estudo são integradas no sistema de
classificações do “Outro”, que tem como parâmetros de leitura dos aspectos somáticos,
políticos, religiosos e culturais.
Durante os séculos XVI e XVII, os conceitos de cafre e Cafraria estavam em
construção no discurso relativo ao “Outro” e aplicavam-se a uma variedade de territórios
e povos da África meridional e do sudeste. Importa conhecer o processo de construção
destes conceitos, desde o momento inicial em que se fez a transferência do vocábulo árabe

46
O conceito de “geografia de imaginação” é-nos dado por Luís de ALBUQUERQUE em “Realidades e
mitos de Geografia Medieval”, in Estudos de História, Vol. V, Coimbra, Por Ordem da Universidade, 1977,
p. 30.
47
Esta noção da aceitação do outro como “manifesto diferencialista” é, no dizer de Luís Filipe Barreto,
uma conquista do segundo andamento do Renascimento quando, a partir de meados do século XVI, certos
discursos permitem-nos aceder a visões que expressam atitudes mentais de aceitação horizontal das
diferenças humanas. Cf. Luís Filipe BARRETO, Descobrimentos e Renascimento: formas de ser e pensar
nos séculos XV e XVI, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1983, pp. 60-61.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

kaffir, aplicando-se a populações africanas, até que se generalizou o uso do vocábulo


português cafre e se implementou o topónimo Cafraria. Importa também determo-nos
nas significações e campos semânticos que sustentam cada um destes conceitos que,
circulando na produção historiográfica portuguesa e integrando também circuitos
editoriais europeus, permitiram a outros povos apropriar-se dos seus sentidos.48 O
movimento de tradução e impressão, noutras línguas europeias, de obras historiográficas
portuguesas dos sécs. XVI e XVII, versando povos e territórios considerados exóticos,
conduziu à divulgação de um conhecimento geográfico e antropológico que outros povos
europeus assimilaram, mesmo antes de empreenderem as suas viagens de exploração. Aos
dados objectivos veiculados, essas obras acrescentavam juízos de valor e preconceitos
que reverteram em imagens estereotipadas sobre as comunidades humanas africanas.

Procuramos ainda evidenciar os modos de transmissão e re-elaboração dos


estereótipos que, em determinada época, sublinharam as diferenças ou procuraram
semelhanças relativamente ao Mesmo cultural.
Por fim, procuramos na documentação os indicadores que nos permitem
compreender alguns momentos da dialéctica do encontro entre portugueses e
comunidades do sudeste africano, sendo importante questionar os diversos níveis de
evidência documental sobre as percepções africanas do homem branco, tendo em
consideração os valores matriciais da cosmovisão dos povos em questão.

Estado da questão
Destaquemos as investigações que, até aos nossos dias, escolheram como objecto
as representações portuguesas das sociedades da região, dos séculos XVI e XVII.
Entre 1898-1902, George MacCall Theal procedeu a traduções parciais dos relatos de
naufrágios, tanto os que constam da História Trágico-Marítima, como alguns avulsos,
que incluiu na sua vasta colectânea documental intitulada Records of South-Eastern
Africa.49 H. P. Junod50, missionário suíço que se destacou como autoridade em Língua e

48
Destaca-se a este respeito o estudo de Marília dos Santos LOPES, Da Descoberta ao Saber. Os
conhecimentos sobre África na Europa dos séculos XVI e XVII, Viseu, Passagem Editores, 2002.
49
George McCall THEAL, Records of South-Eastern Africa, 9 Vols., Cape Town, Struik, 1964.
50
Henri Alexandre JUNOD, Usos e Costumes dos Bantos: a vida de uma tribo sul-africana, 2 Vols., 2.ª
ed., Lourenço Marques, Imprensa Nacional, 1944-1946.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Sociedade Tsonga, e A. T. Bryant51, que fixou em suporte escrito as Tradições Orais e


História dos Povos Zulu, procederam a extensas análises da documentação portuguesa
traduzida por Theal, porém, sem um carácter sistemático.
Mónica Wilson, num artigo de 1959,52 fez uma leitura dos relatos de naufrágios
dos séculos XVI e XVII e realçou a importância destas fontes escritas como testemunhos
da presença de Povos Nguni nos territórios do Transkei e Ciskei. Tais documentos
assumiam um valor histórico fundamental enquanto evidências que permitiam
problematizar a tradição de que os povos Thembu, Xhosa e Mpondo teriam permanecido
na zona montanhosa do alto Umzimvubu por tempo indefinido, até que desceram para
junto da costa. De acordo com a autora, não existem registos de tradições que indiquem
qualquer movimento substancial de povos Nguni do norte do Drakensberg – e muito
menos do Limpopo – no período coberto pelas genealogias, isto é, desde 1300.53
Shula Marks e Anthony Atmore referem, em 1970, que nenhum exame completo
do material português, tanto de fontes publicadas como inéditas, foi feito para a secção
da costa, correspondente ao Natal e Zululândia, chamando a atenção para a urgência de
se juntarem os fragmentos de evidência numa explicação coerente.54
O contexto português dos relatos de naufrágios foi, nas décadas de 70 e 80 do séc.
XX, profundamente analisado por Charles Boxer e Eric Axelson.55
De destacar também a coordenação da colectânea documental bilingue, intitulada
Documentos sobre os Portugueses em Moçambique e na África Central, por António da
Silva Rego e Baxter e publicada sob os auspícios do Centro de Estudos Históricos

51
Alfred Thomas BRYANT, Olden Times in Zululand and Natal: Containing Earlier Political History of
the Eastern-Nguni Clans, London, Longmans, Green, 1929.
52
Mónica WILSON, “The Early History of the Transkei and Ciskei”, African Studies, Vol. 18, N.º 4, 1959,
pp. 167-179.
53
IDEM, ibidem, p. 178.
54
Shula MARKS and Anthony ATMORE, “The Problem of the Nguni: An Examination of the Ethnic and
Linguistic Situation in South Africa before the Mfecane”, in Language and History in Africa. A Volume of
Collected Papers Presented to the London Seminar on Language and History in Africa (Held at the School
of Oriental and African Studies, 1967-69), New York, Africana Publishing Corporation, 1970, pp. 120-
132.
55
Charles Ralph BOXER, Further Selections from the Tragic History of the Sea, 1559-1565. Narratives of
the shipwrecks of the Portuguese East Indiamen Aguia and Garça (1559) São Paulo (1561) and the
misadventures of the Brazil-ship Santo António (1565), Trans. and ed. Charles Ralph BOXER, Cambridge,
Hakluyt Society, Second Series, Vol. CXXXII, 1968. Eric AXELSON,
Recent identifications of portuguese wrecks on the south african coast, especially of the São Gonçalo
(1630), and the Sacramento and Atalaia (1647), Lisboa, Inst. Investigação Científica Tropical, Centro de
Estudos de História e Cartografia Antiga, 1985, pp. 43-61. Eric AXELSON, Portuguese in South Africa,
1488-1600, Cape Town, C. Struik (Pty), 1973.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Ultramarinos e do National Archives of Rhodesia and Nyasaland que, entre 1962 e 1989,
disponibilizou à investigação sobre esta região africana milhares de documentos que
estavam dispersos em bibliotecas e arquivos do mundo.
Paul Hair examinou o vocabulário comum de origem Bantu presente nos relatos
de naufrágios ocorridos no período entre 1550-1650, nas costas do Transkei, Natal e sul
de Moçambique (entre a Baía da Alagoa e o Rio de Lourenço Marques).56
Já nos anos 90 do século passado, Giulia Lanciani explorou a literatura de
naufrágios atendendo à matriz literária dos relatos e aos modelos narrativos. O seu estudo
sobre os naufrágios, muitos deles ocorridos na costa oriental africana, contribui para as
reflexões em torno deste corpus literário.57
Malyn Newitt editou, em 2002, a obra East Africa,58 uma compilação de
documentos portugueses, alguns já anteriormente traduzidos para inglês por académicos
como George Theal, E. G. Ravenstein e Charles Boxer. Para os séculos XVI e XVII e
para os contextos relacionados com a história de Moçambique, referimos a existência de
um amplo escol de historiadores que trabalharam a documentação portuguesa.
Destacamos a importância de António Rita-Ferreira59 e Alexandre Lobato60, entre muitos
outros investigadores que trabalharam problemáticas da história de Moçambique de
forma muito competente
No que se refere à questão específica das representações da África do Sudeste,
consideramos que o estudo de W. G. L. Randles61, contando já mais de meio século, foi
pioneiro na abordagem temática sobre a construção de imagens através da literatura e
cartografia europeias.
Josiah Blackmore, em Manifest Perdition, explora a temática da narrativa de
naufrágios na perspectiva de um discurso que abre brechas na mentalidade expansionista

56
Paul Edward Hedley HAIR, “Portuguese Contacts with the Bantu Languages of the Transkei, Natal and
Southern Mozambique 1497-1650”, in African Studies, Vol. 39, N.º 1, 1980, pp. 3-46.
57
Giulia LANCIANI, Sucessos e Naufrágios das Naus Portuguesas, Lisboa, Caminho, 1997.
58
Malyn NEWITT (Editor), East Africa. Portuguese Encounters with the World in the Age of Discoveries,
John VILLIERS (General Editor), Hampshire, Ashgate Publishing, 2002.
59
António RITA-FERREIRA, Povos de Moçambique – História e Cultura, Porto, Afrontamento, 1975.
IDEM, Fixação Portuguesa e História Pré-Colonial de Moçambique, Lisboa, Instituto de Investigação
Científica Tropical, 1982.
60
Alexandre LOBATO, A expansão portuguesa em Moçambique de 1498 a 1530, Lisboa, Agência-Geral
do Ultramar, 1954, 3 vols.
61
William G. L. RANDLES, L’Image du Sud-Est Africain dans la Littérature Européenne au XVI Siècle,
Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1959.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

e hegemónica do império marítimo português, promovendo o espaço africano como um


cenário de catástrofe e, simultaneamente, de encontro com o “Outro” africano.62
François Xavier Fauvelle-Aymar, com a sua obra L’Invention du Hottentot.
Histoire du regard occidental sur les Khoisan (XVe-XIX Siècle)63, elaborou a história de
um arquétipo do Outro chamando a atenção para os mecanismos de formação e
transmissão das imagens relativas à África austral e às suas populações. Incidindo a sua
análise sobre a construção europeia de uma imagem do Hotentote, a obra de Fauvelle-
Aymar reforçou a nossa convicção de que urgia fazer a história da construção do conceito
antropológico de cafre e das terras por si habitadas – a Cafraria – a partir da
documentação portuguesa dos séculos XVI e XVII.
A obra de Malvern Van Wyk Smith, The First Ethiopians. The Image of Africa
and Africans in the Early Mediterranean World,64 explora profundamente e na longa-
duração a temática da construção de imagens sobre África e os africanos desde os tempos
do Egipto faraónico. Inspirado pela curiosidade relativamente às origens do racismo na
África do Sul, examina minuciosamente uma diversidade de fontes históricas e acaba por
defender que os preconceitos ocidentais face aos africanos têm a sua raiz na própria
África,65 nomeadamente nos complexos padrões de identidade cultural entre as duas
civilizações da África do nordeste - o Egipto e a Núbia Cushítica – cujas concepções
transitaram para o mundo Euro-Mediterrânico.66
Para este autor, os conflitos decorrentes do encontro histórico entre os europeus e
os povos do sul da África foram a manifestação de políticas expansionistas, dinâmicas de
interação assumidas como raciais e paradigmas que, desde os tempos mais antigos
marginalizaram os povos do sul da África.

62
Josiah BLACKMORE, Manifest Perdition: Shipwreck Narrative and the Disruption and the Empire,
Minneapolis, Minnesota University Press, 2002.
63
Fançois-Xavier FAUVELLE-AYMAR, L’Invention du Hottentot. Histoire du regard occidental sur les
Khoisan (XVe-XIX Siècle), Paris, Publications de la Sorbonne, 2002.
64
Malvern Van Wyk SMITH, op. cit.. Segundo o autor desta obra, as evidências discursivas dos diversos
momentos do encontro da Europa com a África sugerem preconceitos anteriormente firmados, que são
invocados de forma estereotipada. O Imperialismo do Séc. XIX, o Iluminismo, o Renascimento e a Idade
Média Cristã evidenciaram, repetidamente, percepções pouco compreensivas de África e dos africanos. Até
mesmo Gregos e Romanos parecem ter invocado ideias sobre os africanos negros que, segundo o autor,
encontram raízes mais além, no Egipto faraónico. Terá sido das concepções egípcias sobre um hinterland
africano que se instituiu o paradigma para quase todas as compreensões da África, que irradiaram a partir
do mundo Euro-Mediterrânico.
65
Utilizamos aqui a categoria relativa de Ocidente / ocidental com a mesma acepção do autor, de
abrangência euro-mediterrânica.
66
Malvern Van Wyk SMITH, op. cit., pp. 236-237.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

A linha de investigação que pretende explicar os significados subjacentes às


categorias de percepção e classificação do Outro, bem como a problemática conceptual
que aponta para uma análise atenta dos paradigmas históricos que enformaram e
sustentaram conflitos contemporâneos, parece-nos também ser um reforço justificativo
do nosso objecto de estudo.
Van Wyk Smith procura demonstrar como o continente africano pode ser
analisado como uma ideia, ou como um produto de mitos, discursos e conceitos. 67 Na
verdade, a revisão dos estudos africanos na perspectiva pós-colonial tem refletido sobre
os condicionalismos externos ao pensamento sobre África, tem constatado os postulados
etnocêntricos e os essencialismos binários que marcaram os discursos em diferentes
temporalidades históricas.68
Sendo as representações o conjunto de imagens e versões produzidas nas
informações dos viajantes europeus ou nas redes de informação desenvolvidas a partir
dessa base, a noção saïdiana de “Orientalismo” é válida para as construções sobre os
africanos e para significados pré século XIX. 69 Trata-se da construção de um
“Africanismo”, assente em categorias com fundamentos epistemológicos etnocêntricos e
que conduziram a uma ideia de África construída a partir da sua exterioridade. Valentin
Mudimbe centra a reflexão em torno da construção do sistema de conhecimento sobre
África e dos alicerces do discurso, reclamando a necessária africanização do
conhecimento e interrogando as imagens herdadas dos paradigmas ocidentais. 70 A
abordagem das representações permite-nos olhar para o modo como os discursos sobre
África e os africanos foram produzidos em determinado tempo histórico e, nesse sentido,
as concepções que enformam tais discursos são tanto uma expressão da história da
expansão dos impérios europeus, como constituem uma parte da história africana,
elaborada e “inventada” por epistemologias exteriores. Como observou José da Silva

67
IDEM, ibidem, pp. 2-3.
68
José Rivair MACEDO, “Intelectuais africanos e estudos pós-coloniais: considerações sobre Paulin
Hountondji, Valentin Mudimbe e Achille Mbembe”, OPSIS (On-line), Catalão-GO, Vol. 16, Nº 2 (Jul./Dez.
2016), pp. 280-298. Trata-se do Dossiê intitulado Descolonizar as Ciências Humanas: campos de
pesquisas, desafios analíticos e resistências - Parte 2.
69
Edward W. SAID, Orientalismo. Representações ocidentais do Oriente, 2ª Edição, Lisboa, Livros
Cotovia, 2004.
70
Valentin-Yves MUDIMBE, The Invention of Africa. Gnosis, Philosophy, and the Order of Knowledge,
Oxford – Bloomington, James Currey Ltd – Indiana University Press, 1988. IDEM, The Idea of Africa,
Bloomington e Indianapolis, Indiana University Press, London, James Currey, 1994.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Horta, a análise das representações funciona como um objeto de charneira entre a história
europeia e a história africana.71
Em Portugal, a obra O Confronto do Olhar, editada por Luís Albuquerque,
António Luís Ferronha, Rui Loureiro e José da Silva Horta, introduziu uma nova
abordagem para a documentação portuguesa a partir da temática das representações sobre
o “Outro”, destacando-se o olhar sobre África e o africano, tendo a obra marcado entre
nós o início deste debate.72
Em Portugal, um momento muito importante de síntese sobre a temática das
representações africanas ocorreu num colóquio organizado pelo CHAM, no ano 2009, em
Ponta Delgada, reunindo em reflexão os olhares sobre África e da África para o mundo,
de que resultou a publicação Representações de África e dos Africanos.73
No âmbito das investigações mais recentes relativas à África Sul Oriental, com
base em fontes portuguesas, destacam-se os trabalhos de Ana Cristina Roque, cuja
dissertação de Mestrado envolveu uma leitura crítica da costa oriental africana, segundo
as fontes portuguesas.74 Além da grande obra de referência sobre as “Terras de Sofala”
entre os séculos XVI e XVIII, 75 os seus trabalhos incidem nas imagens da biodiversidade
nos territórios da África do Sudeste,76 analisam as interrelações entre portugueses e
africanos e reflectem sobre a forma como estas influenciaram as conceptualizações sobre

71
José da Silva HORTA, “Entre história europeia e história africana, um objecto de charneira: as
representações”, in Actas do Colóquio ‘Construção e Ensino da História de África, Lisboa, Grupo de
Trabalho do Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1995, pp.
189-200.
72
Luís de ALBUQURQUE, António Luís FERRONHA, José da Silva HORTA, Rui LOUREIRO, O
Confronto do Olhar. O encontro dos povos na época das Navegações portuguesas. Séculos XV e XVI.
Portugal, África, Ásia, América, Lisboa, Caminho, 1990.
73
José Damião RODRIGUES e Casimiro RODRIGUES (Editores), Representações de África e dos
Africanos na História e Cultura – Séculos XV a XXI, Ponta Delgada, Centro de História de Além Mar,
2011.
74
Ana Cristina Ribeiro Marques ROQUE, A Costa oriental de África na 1.ª metade do séc. XVI segundo
as fontes portuguesas da época, Dissertação de Mestrado em História dos Descobrimentos e da Expansão
Portuguesa, 3 Vols., Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa,
1994, (texto policopiado).
75
IDEM, Terras de Sofala: persistências e mudança. Contribuições para a História da costa Sul-Oriental
da África nos séculos XVI-XVII, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2012.
76
IDEM, “A costa sul oriental de África e o conhecimento da natureza no século XVI: saberes, experiência
e ciência”, in Atas do I Encontro Internacional de História Ambiental Lusófona, Inês AMORIM e Stefania
BARCA (org.), Debates, Nº 1, Março/2013, pp. 145-173. IDEM, “Portugueses e africanos na África Austral
no século XVI: da imagem da diferença ao reforço da proximidade”, in José Damião RODRIGUES e
Casimiro RODRIGUES (Editores), op. cit., pp. 89-105.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

o Outro.77 Sobre a presença dos portugueses no Vale do Zambeze, zona de contacto e de


fronteiras fluidas e sincretismos culturais, destaca-se a obra de referência de Eugénia
Rodrigues, Portugueses e Africanos nos Rios de Sena, sobre os prazos da coroa em
Moçambique nos séculos XVII e XVIII.78 No estudo da presença de populações asiáticas
na costa oriental africana, destacam-se as investigações de Luís Frederico Dias Antunes,
que nos convidam a pensar esta zona de contacto na perspectiva do “Mundo do Oceano
Índico”.79
Manuel Lobato, na introdução à Etiópia Oriental de Frei João dos Santos, na
edição da CNCDP (1999), esclareceu as raízes do conceito cafre, aplicado às populações
africanas não islamizadas da África Oriental. Para além da edição crítica e comentada da
obra de Frei João dos Santos, analisou contextos histórico-religiosos e sociais que têm no
centro as categorias de representação “cafres” e “muzungos”.80
Sobre o conceito de cafre, que é central no presente estudo e que se afirmou
historicamente como categoria classificatória de povos africanos, devemos atender ainda
a Gabeba Baderoon, que num artigo sobre a proveniência do termo kafir na África do
Sul81, afirma que o primeiro registo do termo (sob a forma “cafre”) apareceu na obra
compilatória de Richard Hakluyt, The Principal Navigations, Voyages, Traffiques and

77
Ana Cristina Ribeiro Marques ROQUE, “Portugueses e Africanos na África Austral no século XVI: da
imagem da diferença ao reforço da proximidade”, in Representações da África e dos Africanos na História
e Cultura – séculos XV a XXI, pp. 89-105. Da mesma autora, veja-se ainda, de 2003, “Para uma outra leitura
da Carreira da Índia: A importância dos Diários de Navegação, Roteiros e Relatos de Naufrágios para o
conhecimento da Costa Sul-Oriental de África no séc. XVI”, in A Carreira da Índia – Atas do V Simpósio
de História Marítima, Lisboa, Academia de Marinha, pp. 205-212.
78
Eugénia RODRIGUES, Portugueses e Africanos nos Rios de Sena. Os Prazos da Coroa em Moçambique,
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2013.
79
Luís Frederico Dias ANTUNES, “Os mercadores baneanes guzuerates no comércio e a navegação da
costa oriental africana - Século XVIII, in Actas do Seminário Moçambique: navegaçöes, comércio e
técnicas, (org. Faculdade de Letras da Universidade Eduardo Mondlane de Maputo e Comissäo Nacional
para as Comemoraçöes dos Descobrimentos Portugueses), Lisboa, Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998, pp. 67-93.
80
Frei João dos SANTOS, Etiópia Oriental e vária História de cousas notáveis do Oriente, Introdução de
Manuel LOBATO, notas de Manuel LOBATO e Eduardo MEDEIROS, coordenação da fixação do texto
por Maria do Carmo Guerreiro VIEIRA, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 1999. De Manuel Lobato, veja-se também: “Entre cafres e muzungos.
Missionação, islamização e mudança de paradigma religioso no Norte de Moçambique nos séculos XV a
XIX ”, in Actas do Congresso Internacional Saber Tropical em Moçambique: História, Memória e Ciência,
Lisboa, IICT 2013, pp. 1-14.
81
Gabeba BADEROON, The Provenance of the term ‘Kafir’ in South Africa and the notion of Beginning,
[2004]. http://www.cilt.uct.ac.za/usr/cci/publications/aria/download_issues/2004/2004_MS4.pdf
(Consultado em 3/12/2012).

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Discoveries of The English Nation,82 cujo primeiro volume foi publicado em 1589. Ao
reflectir sobre as implicações deste termo na África do Sul considera que, antes do
vocábulo se associar às relações políticas de holandeses e britânicos com os povos Nguni
do Cabo Oriental, já carregava consigo uma história de relações com a África Oriental e
o Oceano Índico, com os suaíli e comerciantes falando língua árabe e também com os
portugueses.83 De facto, tal como expressa esta autora, a história da palavra kaffir, com
um primordial sentido religioso, remete-nos para a história do encontro da África com o
Islão na longa duração e para as questões relacionadas com a extensão do tráfico pré-
colonial em bens, escravos e a circulação de ideias em torno do Oceano Índico.
Consideramos, porém, que o termo cafre, aplicado a populações dos territórios
correspondentes à atual República da África do Sul, é bastante anterior à data apontada
por Baderoon. Parece-nos também, que as evidências da antiguidade da presença islâmica
na África Oriental e do processo de aculturação que esteve na base da cultura suaíli, não
são por si só suficientes para que se compreenda o enraizamento dos sentidos pejorativos
associados à palavra kaffir. A nossa hipótese de trabalho assenta na ideia de que, desde
os primeiros anos do século XVI, os portugueses desempenharam um papel crucial na
transmissão do vocábulo árabe designando as populações não islamizadas da África Sul-
Oriental. Para além do processo de apropriação e transmissão do termo, os novos
utilizadores reinventaram-no como conceito que se densificou em significados e que,
através de interpretações extensivas se transformou numa categoria classificatória,
disponível e em aberto para vir a ser utilizada por outros povos europeus.
As imagens estereotipadas dos cafres, fixadas nos escritos de Quinhentos, seriam
ulteriormente replicadas e reinventadas no âmbito das políticas de fixação na África
meridional, levadas a cabo por holandeses e britânicos. Tentaremos contribuir, deste
modo, para a temática que reflecte sobre o sentido e a importância dos rótulos
classificatórios europeus aplicados aos africanos, tendo em consideração a variedade de
palavras que os designavam e os significados subjacentes, seja no contexto sociocultural
e geográfico africano, seja no contexto europeu.84

82
Richard HAKLUYT, The Principal Navigations, Voyages, Traffiques and Discoveries of The English
Nation, London, Imprinted by George Bishop and Ralph Newberie, 1589.
83
Gabeba BADEROON, op. cit.
84
Thomas Foster EARLE and Kate J. P. LOWE (Editors), Black Africans in Renaissance Europe, New
York, Cambridge University Press, 2010.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Metodologia
A presente dissertação estrutura-se em três partes principais, nas quais são
abordados os seguintes temas: a categoria de “cafre” na construção de uma imagem da
África meridional e do sudeste, os primeiros encontros luso-africanos, através da
documentação portuguesa e, finalmente, a fixação do paradigma de tragédia e perdição,
que se inicia na segunda metade do século XVI e se prolonga até aos meados do século
XVII. No final do texto surgem os Anexos constituídos pela transcrição de dois
documentos inéditos e quatro quadros-síntese. Os dois primeiros quadros referem-se a
aspectos comparativos de alguns documentos, o terceiro e o quarto registam as imagens
e estereótipos da Cafraria e dos cafres nos relatos de naufrágios dos séculos XVI e XVII.
Tanto os documentos, como os quadros são antecedidos por notas explicativas nas quais
se justifica a sua integração no âmbito deste trabalho. Relativamente aos documentos, são
apresentadas as regras de transcrição adoptadas e um índice com os seus sumários.
Relativamente aos mapas e às imagens, decidiu-se incluí-los directamente no
corpo do trabalho, de forma a facilitar a compreensão dos conteúdos aí explanados.
Por fim, consta a bibliografia dividida em fontes e estudos.
Em termos da metodologia seguida, definimos um objecto de estudo, as categorias
classificatórias cafre e Cafraria, e um corpus documental, que materializa as concepções
antropológicas e geográficas no período definido. É a partir da análise das fontes
históricas, atendendo à sua linguagem, aos conceitos e seus fundamentos teóricos e
ideológicos e às simbioses com o registo empírico do novo, que procuramos explicar a
construção das categorias de representação.
Previamente à abordagem das representações, entendidas como constructos
discursivos exteriores às próprias sociedades africanas, sentimos a necessidade de
proceder a uma contextualização dessas sociedades atendendo aos diversos complexos
geográficos constituídos pela África meridional, pela costa do sudeste africano e pelos
planaltos do Zimbabué. Definimos também um conjunto de heranças cosmográficas,
linguísticas e conceptuais que estruturaram as visões do mundo ocidental dominantes no
período das viagens marítimas e condicionaram a formulação das imagens mentais, no
âmbito dos contactos com a alteridade.
Nesta contextualização das sociedades africanas confrontamo-nos com algumas
limitações decorrentes da própria natureza exógena das fontes históricas que analisamos

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

e das lógicas coloniais que marcaram grande parte da historiografia da região. Os


complexos espaciais que definimos relacionam-se com as zonas de contacto, a partir das
quais as representações foram construídas, e também com lógicas de similaridade
cultural. A este propósito é importante esclarecer que ao falarmos de espaços nos quais
os povos realizaram a sua historicidade, não estamos a vincular-nos a qualquer tipo de
opção etnicista que conceba teoricamente as sociedades humanas como sistemas
fechados, fixos e classificáveis quanto aos domínios político, económico ou religioso,
mas antes assumindo o sincretismo destas mesmas sociedades, abertas e de fronteiras
fluidas, e a cultura como uma produção resultante de uma relação de forças intercultural. 85

85
Jean-Loup AMSELLE, Logiques métisses. Anthropologie de l’identité en Afrique et ailleurs, Paris,
Éditions Payot, 1990, p. 55.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Parte I. Os “cafres” na construção de uma imagem da África meridional


e do sudeste na documentação portuguesa: dos estereótipos herdados à
emergência de novas visões do mundo

1. Contexto espacial e populacional: configurações territoriais e culturais na África


do Sudeste

O objecto de estudo desta dissertação define-se no âmbito dos processos de


construção das representações acerca de um vasto espaço africano e das respectivas
sociedades que transformam o espaço geográfico no “lugar antropológico”. Neste sentido,
se o espaço geográfico corresponde à África meridional e do sudeste, o “espaço
antropológico” é aquele no qual, segundo Marc Augé, se inscrevem a identidade, as
relações e a história dos que o habitam, o lugar partilhado, aquele que é comum aos que
o habitando são identificados como tal pelos que não o habitam.86
Nas representações que os portugueses construíram sobre os espaços africanos, o
Cabo da Boa Esperança simbolizava uma poderosa fronteira. Essa fronteira não era
apenas física, a barreira oceânica para o Oriente, a zona de contacto entre a Europa, a
Ásia e a África, era também, como considerou Noël Mostert, uma concomitante barreira
mental, de consciência global, que se construiu ao longo de séculos como uma paisagem
cultural com significados variados.87 Ora, se as barreiras mentais e simbólicas estão
inerentes às imagens historicamente construídas sobre espaços e sociedades africanas,
impõe-se considerar essas sociedades antes de se proceder à análise das representações, a
partir da documentação portuguesa. Assim, importa estabelecer os contornos dos dois
grandes complexos geográficos em interacção com os quais as diversas sociedades
humanas teceram a sua história.
O primeiro destes complexos integra-se na designação de África meridional88,
geograficamente delimitado entre o rio Orange, no Atlântico, e uma área flexível no

86
Marc AUGÉ, Le Sens des Autres. Actualité de l’Anthropologie, Paris, Fayard, 1994, p. 154.
87
Noël MOSTERT, Frontiers. The Epics of South Africa’s Creation and the Tragedy of the Xhosa People,
New York, Alfred A. Knopf, 1992, p. xv.
88
Adopta-se a designação e a extensão da África Meridional tal como foi definida pelo grupo de
historiadores africanos reunido em Gabarone, sob os auspícios da UNESCO, em 1977.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Índico, entre o rio Limpopo e o Cabo das Correntes, correspondendo a vastos territórios
a sul e este do deserto do Kalahari.
O segundo complexo geográfico abrange os territórios e as sociedades de entre o
Limpopo e o Zambeze, que David Beach designou de “Grande Crescente”. Este complexo
espacial comporta as terras altas do planalto do Zimbabwe e as regiões adjacentes e é
marcado por três vales de grandes rios: o médio Zambeze, o baixo Zambeze e o Save-
Limpopo.89
As evidências de que o planalto assistiu a uma fixação da população, que
aumentou ao longo da história, levaram Beach a designar de “Grande Crescente” as terras
de alta e média altitude, que se alimentam das águas do Zambeze e das bacias do Save-
Limpopo. A ocidente deste “crescente”, as terras revelavam-se mais planas, mas também
mais secas, arenosas ou sódicas. Para leste, o “Grande Crescente” era limitado por vales
profundos que dividiam o território montanhoso, marcado por grandes afloramentos
graníticos.90
Mapa 1 – Contexto espacial e populacional

89
David BEACH, The Shona and their Neighbours, Oxford, Blackwell, 1994, pp. 16-19.
90
O complexo do “Grande Crescente”, tal como explicado por David Beach, corresponde a um macro-
espaço que Elikia M’Bokolo designa de “Savanas Meridionais”, a sul da grande floresta equatorial. Cf.
Elikia M’BOKOLO, África Negra. História e Civilizações, até ao Século XVIII, Tomo I, Lisboa, Editora
Vulgata, 2003, p. 162.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

1.1. Populações Khoisan, entre o rio Orange e o rio Kei

Ensaiemos uma aproximação ao sul do continente africano observando a


passagem de Ocidente para Oriente do Cabo da Boa Esperança. Segundo Noël Mostert,
a passagem do Cabo “é como que o cruzar de uma linha distinta desenhada sobre o mar,
é a passagem de uma região costeira e climática para outra, do infrutífero e semi-árido
litoral ocidental a sul do sub-continente, para o verde, húmido e vividamente belo litoral
oriental; do Atlântico gelado, para o morno, efervescente Oceano Índico”.91
No promontório, as montanhas precipitam-se sobre o mar numa paisagem
imponente que, até ao Cabo das Agulhas, estabelece uma transição, não só oceânica, mas
também climática e paisagística. Passando o Cabo Tormentoso no sentido leste, as
montanhas afastam-se do mar, apesar de permanecerem próximas e dominantes. Uma
faixa verdejante de florestas, rios, pântanos e lagoas separa a costa da grande escarpa que
percorre todo o caminho, formando um dos traços paisagísticos da extremidade sul do
continente. A visão marítima desta paisagem, em que se salienta a cintura montanhosa do
Cabo, hoje designada por Cape Fold Belt, fora traduzida em meados da década de setenta
do século XVI, pelas palavras e desenhos do Roteiro de Manuel de Mesquita Perestrelo
que, ao descrever a Baía Formosa, destacava como “suas mais claras conhecenças (…) as
serras do sertam que se conhecem de muyto longe assim por serem altas e espinhosas
com os picos miudos e huma certa igualdade nelles que parece não se leuantarem mais
huns que outros”.92 Nesta costa sul, as cordilheiras do Cabo cedem gradualmente lugar às
cadeias montanhosas de leste, que vão confluir no proeminente traço orográfico
constituído pelo uKhahlamba-Drakensberg.

91
Noël MOSTERT, op. cit., p. xxi (tradução nossa).
92
Manuel de Mesquita PERESTRELO, Roteiro dos portos, derrotas, alturas, cabos, conhecenças,
resguardos e sondas, que á per toda a costa desdo cabo de boa esperança ate o das correntes, B.P.E., Ms.
Cod. CXV / 1-23, fl. 11 vº. Citamos directamente a partir do manuscrito de Évora que, juntamente com os
manuscritos do British Museum (Add. 16:932), da B.P.M.P. (Cod. Nº 149) e o da B.A. (51-VI-54, nº 26,
fls. 103-116) constituem as cópias conhecidas do original de Manuel de Mesquita Perestrelo. Este roteiro
resultou de um reconhecimento realizado entre 1575-76, por ordem do rei D. Sebastião e foi publicado por
Abel Fontoura da COSTA (ed.), Roteiro da África do Sul e Sueste desde o Cabo da Boa Esperança até ao
das correntes (1576), Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1939, p. 34. O manuscrito da B.A. foi publicado
na colectânea Documentos sobre os Portugueses em Moçambique e na África Central, Vol. VIII (1561-
1588), Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, National Archives of Rhodesia and Nyasaland,
1975, pp. 464-515.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Entre a linha da costa e a escarpa montanhosa, o clima temperado oferece uma


variedade de ecossistemas que proporcionaram durante milénios os recursos de
subsistência às comunidades humanas. As colinas cobertas de vegetação abundante e os
cursos de água que desciam das terras altas criavam condições propícias à abundância de
caça e, posteriormente no tempo histórico, à actividade da pastorícia, que havia de
estruturar em termos sócio-económicos um dos modos de vida dominantes das
comunidades Khoisan. Ainda hoje, as “serras do sertam”, referidas por Perestrelo,
guardam nos seus nomes a memória das línguas indígenas, como são as designações
khoikhoi das montanhas de Outeniqua, da floresta de Tsitsikamma ou do rio Gamtoos.93
A vasta e heterogénea região que se estende entre o rio Orange (Gariep), fronteira
que marca a transição entre o deserto do Namibe e o planalto do Karoo, e os litorais do
sul, era percorrida por povos falando línguas Khoisan.
Segundo Fauvelle-Aymar, é hoje impossível dizer com precisão que grupos
viviam no passado, numa ou noutra parte deste território, e quais os seus etnónimos, pois
a mobilidade das comunidades de pastores e caçadores, a mobilidade social e as mutações
identitárias impossibilitam qualquer reconstituição histórica da geografia humana destas
regiões.94
Ao tempo dos primeiros contactos dos portugueses com os territórios mais
meridionais do continente africano, comunidades de pastores semi-nómadas instalavam
os seus acampamentos ao longo dos cursos de água, enquanto as áreas adjacentes,
abundantes em caça, e os litorais ricos em marisco e mamíferos marinhos forneciam a
base de subsistência a pequenas comunidades de caçadores-recolectores.
Estamos perante modos de vida diversos em termos económicos e culturais que
foram distinguidos na literatura histórica através das designações de Khoi, aplicada aos
pastores, e San, aplicada aos caçadores-recolectores. Dada a controvérsia em torno das
identidades e da permeabilidade das fronteiras entre caçadores e pastores na África
austral, tais sociedades foram abordadas como integrando um mesmo grupo que, por
conveniência académica, se designou de Khoisan. Este termo conjuga duas palavras (Koï
+ San), usadas pelos pastores Khoikhoi para identificar o seu próprio povo e os seus

93
Noël MOSTERT, op. cit., p. 36.
94
François-Xavier FAUVELLE-AYMAR, L’Invention du Hottentot. Histoire du regard occidental sur les
Khoisan (XVe-XIX Siècle), (…), p. 13.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

vizinhos não Khoikhoi respectivamente.95 São termos que nos conduzem à questão da
“polarização étnica” e sócio-económica tornada evidente nos processos de construção das
identidades.96 O termo Khoikhoi traduz-se por “homens dos homens”, no sentido de “o
povo verdadeiro”, e é a variante moderna Namaqua de um termo identitário usado pelos
pastores do Cabo para se referirem a eles mesmos. 97 Em contraste, San é a adaptação de
uma palavra que os Khoikhoi usaram para se referirem aos outros, as comunidades que
viviam da caça e lhes roubavam muitas vezes o gado, tendo o significado de “ladrões” ou
“bandidos”.98
Trata-se de uma etiqueta vaga, de sentido pejorativo, tal como a de
Bosjesman/Bushman, usada pelos colonos holandeses e ingleses a partir do século XVII,
que se referia a um modo de vida, pois que tais termos designam literalmente “aquele que
vive no mato” (bush) e que, por definição, é um não assimilado ou um resistente.99
Hottentot foi a designação aplicada pelos primeiros colonos holandeses, fixados
no Cabo a partir de 1652, aos pastores Khoikhoi, tendo-se generalizado como etnónimo,
associado a relatos e descrições que apresentavam as populações locais como selvagens,
cruéis, disformes e vagabundos.100
A origem desta designação suscitou muito debate, sendo o académico sul-africano
J. Du Plessis a trazer à luz, em 1932, uma passagem do relato da viagem do francês
Augustin de Beaulieu, como comandante de uma expedição às Índias Orientais (1619-
1622), no qual é descrito o provável contexto em que a palavra surgiu.101 Beaulieu
descreveu que ao passar no Cabo, os seus habitantes saudavam os europeus com uma

95
François Xavier FAUVELLE-AYMAR, “Against the ‘Khoisan paradigm’ in the interpretation of
Khoekhoe origins and history: a re-evaluation of Khoekhoe pastoral traditions”, in South African
Humanities (S.A.H.), Vol. 20, 2008, p. 78.
96
François-Xavier FAUVELLE-AYMAR, “Histoire d’un point d’eau PELLA: (XVIIIe-XXe Siècle).
Reconfigurations Spatiales et Identitaires dans l’Ouest de l’Afrique du Sud”, in Clio en Afrique, Nº 10,
Verão de 2003. https://docplayer.fr/176702801-C-l-i-o-e-f-r-i-q-u-e.html (Consultado em 10/03/2019).
97
Susan NEWTON-KING, Masters and Servants on the Cape eastern frontier, 1760-1803, Cambridge,
Cambridge University Press, 1999, p. 25.
98
François-Xavier FAUVELLE-AYMAR, “Histoire d’un point d’eau PELLA: (XVIIIe-XXe Siècle).
Reconfigurations Spatiales et Identitaires dans l’Ouest de l’Afrique du Sud”, (…).
99
Shula MARKS, “Khoisan resistance to the Dutch in the Seventheenth and Eighteenth Centuries”, in
Journal of African History, Vol. XIII, Nº 1 (1972), p. 58.
100
Jean-Jaques de MELET, “La description des sauvages Hottentots par Mellet”, in Dominique LANNI,
Fureur et Barbarie. Récits de Voyages chez les Cafres et les Hottentos - 1665-1721, Paris, Cosmopole,
2001, pp. 24-35.
101
G. S. NIENABER, “The origin of the name “Hottentot”, African Studies, Vol. 22, Nº 2 (1963), pp. 65-
90. https://doi.org/10.1080/02561751.1935.9676356 (Consultado em 17/07/2021)

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

canção em que no começo, nas partes e no fim se ouvia a palavra “hautitou”.102 Em 1623,
o dinamarquês Olafsson teria testemunhado das populações da baía da Mesa uma dança
acompanhada de palavras, que se aproxima do relato de Beaulieu.103
Segundo Fauvelle-Aymar, é muito provável que o vocábulo tivesse nascido neste
contexto de viagem marítima e contacto nos litorais, sendo forjada em Batavia a partir
dos relatos sobre as canções Khoikhoi, vindo posteriormente a generalizar-se o seu uso
no Cabo, com o estabelecimento de Jan Van Riebeck.104 A palavra com grafia “Ottentoo”,
“Ottentots” e “Hottentot” afirma-se nos documentos oficiais e no registo diário das
ocorrências da colónia, a partir de 7 de abril de 1652, como um termo genérico que se
aplicou a uma variedade de populações Khoikhoi.105 Na linguagem comum da colónia
dava-se uma transição entre o termo cafre / cafres, anteriormente usado para designar
genericamente os povos do sul e sudeste de África, e o termo hotentot, que passava a
aplicar-se às comunidades de pastores, como uma categoria que os diferenciava das
populações bantófonas, tanto as da costa ocidental, como as da costa oriental africana,
que eram percepcionados como partilhando línguas e culturas similares. Em 1668, Olfert
Dapper regista o sentido de “gago” ou “aquele que gageja” para a palavra hottentot, em
uso nos Países-Baixos, passando esta a revestir-se de uma natureza pejorativa e
zombateira, associada a uma imagem do Outro cuja língua era definida, acima de tudo,
como estranha e incompreensível.106
Hottentot e Bushman foram termos usados pelos primeiros colonos europeus que
procuravam diferenciar, não só o modo de vida, mas também etnicamente, os pastores
dos caçadores-recolectores. O significado do vocábulo San, oscilou historicamente entre
o valor de um etnónimo, que perdurou na literatura antropológica até aos nossos dias, e

102
J. Du PLESSIS, “The name Hottentot in the records of early travellers”, in South African Journal of
Science, XXIX (1932), p. 663, Apud François-Xavier FAUVELLE-AYMAR, L’Invention du Hottentot.
Histoire du regard occidental sur les Khoisan (XVe-XIX Siècle), (…), pp. 130-131.
103
François-Xavier FAUVELLE-AYMAR, L’Invention du Hottentot. Histoire du regard occidental sur
les Khoisan (XVe-XIX Siècle), (…), p. 130.
104
IDEM, ibidem, pp. 132-133.
105
Jan van RIEBEECK, Dagverhaal, ed. Historisch Genootschap, Vol I (1652 - 1655), Utrecht, Kemink &
Zoon, Utrecht / Martinus Nijhoff, Den Haag, 1884. Cópia do exemplar da Biblioteca da Universidade de
Leiden, online (2008): http://www.dbnl.org/tekst/rieb001dagv02_01/colofon.php (consultado em
17/07/2021)
106
François-Xavier FAUVELLE-AYMAR, L’Invention du Hottentot. Histoire du regard occidental sur les
Khoisan (XVe-XIX Siècle), (…), p. 134.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

uma designação social, que se aplicou tanto a pastores proletarizados ou exilados das
linhagens dominantes, como a brancos ou negros considerados predadores.107
A ausência de um termo genérico, favorável à identidade dos caçadores-
recolectores, e a actual ignorância das designações assumidas pelas populações
individuais de caçadores nómadas para períodos recuados, como os dos séculos XVI e
XVII, conduzem à preferência do uso do termo San na literatura antropológica,
arqueológica e histórica, em abordagens científicas relativas aos grupos humanos de
caçadores-recolectores da África austral.108
O termo compósito Khoisan, formulado nos anos 20 do século passado, foi
utilizado no campo da antropologia física, num esforço de organização das evidências
biológicas e linguísticas destas duas entidades humanas num mesmo conjunto, que se
supunha resultar de processos históricos de hibridização.109 O termo adquiriu validade
etnológica a partir dos anos 30, com a obra de Isaac Shapera, The Khoisan Peoples of
South Africa: Bushman and Hottentots, na qual o autor se entregava a um estudo
comparativo destas populações.110 Tal obra resultou numa visão dos grupos de caçadores
e de pastores como dois segmentos de um mesmo conjunto, conduzindo a investigações
posteriores, tanto no campo da antropologia, como da linguística, da genética e da
arqueologia que resultaram na constatação da inadequação dos esquemas dicotómicos 111
percepcionados pelos primeiros europeus fixados no Cabo.
Segundo Richard Elphick, a designação étnica de Khoikhoi reportava-se a
qualquer pessoa aceite como membro pleno de uma comunidade Khoikhoi, comunidade
na qual se falava um dialecto de uma língua Khoikhoi e onde a pastorícia era a actividade
económica predominante. Segundo o autor, a designação aplica-se a um grupo
relativamente homogéneo de populações com origens comuns, linguagem comum
(dividida em dialectos), cultura comum e aspirações económicas comuns.112 Esta
definição, que assenta nos critérios clássicos da antropologia para classificar as

107
Shula MARKS, op cit., p. 58.
108
Susan NEWTON-KING, op cit., p. 25.
109
François-Xavier FAUVELLE-AYMAR, “Against the ‘Khoisan paradigm’ in the interpretation of
Khoekhoe origins and history: a re-evaluation of Khoekhoe pastoral traditions”, (…), p. 78.
110
François-Xavier FAUVELLE-AYMAR, L’Invention du Hottentot, Histoire du regard occidental sur les
Khoisan (XVe-XIXe siècle), (…), p. 11.
111
IDEM, ibidem.
112
Richard ELPHICK, Khoikhoi and the Founding of White South Africa, Johannesburg, Ravan Press,
1985, p. xxi.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

sociedades humanas, salienta os traços de identidade social e cultural que decorrem de


uma mesma tradição de descendência bem como de uma cultura, de uma língua e de um
nome comuns.
De acordo com o “paradigma Khoisan”, cuja desconstrução Fauvelle-Aymar
propõe113, as comunidades de caçadores da África meridional designadas por San eram,
em muitos aspectos, semelhantes aos Khoikhoi, mas convencionalmente distintas destes
pela sua actividade económica baseada na caça e recolecção e pela ausência de criação
de gado, que seria um dos traços fundamentais do estilo de vida Khoikhoi. No extremo
deste paradigma, os Khoikhoi eram mesmo considerados “Bushman com caprinos e
bovinos”114, ou seja, caçadores-recolectores que adquiriram por empréstimo de outros
povos exteriores aspectos fundamentais da sua cultura.115
Ao questionar se os elementos de diferenciação entre as duas tipologias de modus
vivendi se limitavam aos aspectos económicos, Richard Elphick explica o próprio
processo de construção do conhecimento acerca destas sociedades, tanto no campo da
história, como da antropologia e da linguística.116 De acordo com esse processo destaca
a classificação das línguas dos caçadores em três famílias, por Dorothea Bleek (1927):
“Bush do Norte”, “Bush Central” e “Bush do Sul”. Bleek terá verificado que existiam
grandes semelhanças entre uma das línguas do “Bush Central”, o Naron, e o Khoikhoi. A
partir daí, sucederam-se vários estudos comparativos evidenciando semelhanças não só
de vocabulário, mas também morfológicas, que enquadravam os falares destes grupos
numa mesma família de línguas, o que contribuiu para pôr em causa a clássica dicotomia
pastores Khoikhoi /caçadores Bushman, construída pelos europeus.117
Em meados dos anos sessenta do séc. XX estabeleceu-se um consenso, tanto na
linguística, como na genética e na arqueologia, de que os Khoikhoi não eram racialmente
distintos dos San. Do ponto de vista arqueológico, este consenso relacionava-se com a

113
François-Xavier FAUVELLE-AYMAR, “Against the ‘Khoisan paradigm’ in the interpretation of
Khoekhoe origins and history: a re-evaluation of Khoekhoe pastoral traditions”, (…), pp. 77-92.
114
Alan Barnard considera útil pensar nos actuais Naron e G |wi como caçadores-recolectores com cabras.
De acordo com a sua perspectiva antropológica, e num exercício especulativo, admite que os Khoikhoi do
Cabo pudessem ter sido simplesmente San com cabras. Cf. Alan BARNARD, “Ethnographic analogy and
the reconstruction of early Khoekhoe society”, in S.A.H., Vol. 20, 2008, p. 73.
115
François-Xavier FAUVELLE-AYMAR, “Against the ‘Khoisan paradigm’ in the interpretation of
Khoekhoe origins and history: a re-evaluation of Khoekhoe pastoral traditions”, (…), p. 85.
116
Richard ELPHICK, op. cit., pp. 4-10.
117
IDEM, ibidem, pp. 6-7.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

dificuldade em distinguir, em determinados abrigos de montanha, se se estaria perante


vestígios de uma comunidade de pastores ou de caçadores. Essa dificuldade terá levado
alguns arqueólogos a sublinhar a falta de evidências materiais e, por conseguinte, a
defender a “invisibilidade” dos pastores durante o primeiro milénio.118
Na última década do século passado, a arqueologia desenvolveu modelos que
permitem distinguir um sítio arqueológico de pastores ou de caçadores baseando-se em
associações de certo tipo e número de artefactos.119 O modelo de distinção cultural,
formulado por Andrew Smith em duas fases (1990-91 e 1993), envolve a questão da
assinatura pastoril na cultura material, marcada por grandes quantidades de restos de
animais domésticos bem como uma muito maior proporção dos fragmentos cerâmicos
relativamente aos artefactos de pedra lascada, a serem encontrados em sítios de
caçadores-recolectores.
Sítios arqueológicos como Kasteelberg, Bushmanland e Seacow Valley
demonstram que alguns locais foram ocupados o tempo suficiente para que fossem
deixados vestígios duradouros, como são as estruturas de pedra e densas lixeiras. Por
outro lado, as investigações mais recentes colocaram ênfase nas comunidades de pastores
fixadas em determinados pontos da paisagem, nomeadamente no interior, junto aos vales
dos rios ou em sítios de contexto aberto, onde os vestígios são dispersos e de baixa
densidade.120
Uma grande variedade de sítios arqueológicos, desde estruturas de aldeamento
com currais de pedra, aos acampamentos temporários e aos abrigos de montanha, parece
atestar a diversidade das comunidades de pastores bem como a dinâmica de adaptação,
desenvolvida no processo histórico de dispersão destas comunidades até à extremidade
sul do continente africano. No âmbito desta diversidade salienta-se, ainda, para um
período mais tardio, o cultivo do sorgo, a sua moagem e uso na confecção de pão e de
uma bebida fermentada, como testemunhou o viajante sueco Anders Sparrman, em

118
Karim SADR, “Invisible herders? The archaeology of Khoekhoe pastoralists”, in S.A.H., Vol. 20, 2008,
pp. 179-203. Ao rever as evidências arqueológicas, Sadr defende a “invisibilidade” dos pastores durante o
primeiro milénio, justificando que os Khoikhoi seriam uma construção social específica do segundo
milénio. Apesar da probabilidade dos Khoikhoi não terem existido como entidade cultural coerente, durante
o primeiro milénio, já existiriam então os elementos separados que mais tarde vieram a constituir a sua
identidade (língua, economia, sistema de parentesco, mentalidade e práticas de criação de gado). Veja-se
Karim SADR, op cit, p. 180.
119
IDEM, ibidem, p. 212.
120
IDEM, ibidem, p. 214.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Tsitsikamma.121 Este caso de complementaridade agrícola à actividade principal, que era


a pastorícia, não deverá ter sido isolado. O cultivo era, acima de tudo, facilitado pelas
condições climáticas e ambientais da região de Tsitsikamma, caracterizadas por
temperaturas moderadas e chuvas dispersas ao longo do ano, facilitando as sementeiras
que, certamente, teriam um papel secundário na vida destas comunidades.
No lento e complexo processo de dispersão e adaptação às paisagens e ambientes
da África meridional, as comunidades de pastores Khoikhoi interagiram de forma
profunda com comunidades proto-Sotho e proto-Nguni. Esta interação é confirmada por
mútuos empréstimos linguísticos, nomeadamente a adopção de vocábulos e de consoantes
completamente novos - os cliques -, pelas comunidades proto-Bantu do Sudeste. Neste
sentido, como afirma Ehret, as novas adições à fonologia que acompanham os
empréstimos profundos, como são os cliques, implicam uma densidade demográfica
significativa por parte da comunidade Khoikhoi, que deverá ter sido a componente
maioritária na sociedade proto-Nguni em evolução.122 Andy Chebanne confirma a ideia
de que a presença de vocabulário e traços fonéticos Khoisan nas línguas dos seus vizinhos
atesta situações de contacto social positivo.123
Estudos linguísticos mais recentes demonstram que algumas línguas Bantu, como
o Setswana, falado na África do Sul e no Botwana e ainda em contacto activo com falantes
de várias línguas Khoisan, não têm cliques, pelo que este indicador linguístico não pode
funcionar como o critério de validação por excelência da interacção entre os Khoisan e
os Proto-Bantu do Sudeste. O Setswana terá sido influenciado por diferentes línguas
Khoisan sob a forma de empréstimos de palavras e da extensão do campo semântico
lexical, baseado em padrões de polissemia comuns nas línguas Khoisan.124

121
Anders SPARRMAN, A Voyage to the Cape of Good Hope Towards the Antarctic Polar Circle Round
the World and the Country of the Hottentots and the Caffres from the Year 1772-1776, Edited by V. S.
FORBES, Vol. II, Cape Town, Van Riebeck Society, 1977, pp. 18-19.
Se Sparrman observou, no século XVIII, o cultivo de cereais de Verão entre os Khoikhoi, tal prática deverá
ter sido adquirida por empréstimo dos vizinhos Nguni, mas certamente instalou-se como um modo de
subsistência suplementar porque o clima o permitiu. Cf. Christopher EHRET, “The Early livestock-raisers
of Southern Africa”, in S.A.H., Vol. 20, 2008, p. 22.
122
IDEM, ibidem, pp. 13-14.
123
Andy CHEBANNE, “Where Are the 'Skeletons' of Dead Khoisan Languages?”, in Botswana Notes and
Records, Vol. 44 (2012), pp. 85-86. https://www.jstor.org/stable/43855562 (consultado em 17/07/2021)
124
Hilde GUNNINK, “Language contact between Khoisan and Bantu languages: The case of Setswana”,
in Southern African Linguistics and Applied Language Studies, Volume 38 (2020), pp. 27-45.
https://doi.org/10.2989/16073614.2020.1737158

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Se a visibilidade arqueológica dos pastores é baixa, as evidências linguísticas


revelam que eram dominantes na paisagem humana da África Austral e que contribuíram
em larga medida para a formação das sociedades dos actuais povos falando línguas Bantu
do Sudeste.125
A investigação no campo da estratigrafia linguística deu um contributo
fundamental para o conhecimento do Southern African Khoesan (SAK), cujas evidências
lexicais validam uma divisão binária do ramo Khoe em dois sub-ramos: o Khoekhoe e o
Kalahari Khoe que, por sua vez, se divide em Kalahari Ocidental e Kalahari Oriental. 126
Uma outra língua que mereceu a atenção dos especialistas foi o Kwadi que, sendo
uma língua próxima das extensas línguas Khoe, uma vez que cerca de 50% das palavras
nucleares têm raiz comum Khoe, é classificada como uma língua não Khoe.127 Os estudos
estratigráficos mostram que terá existido um centro a partir do qual se processou uma
diversificação em várias etapas, pressupondo a existência de uma língua anterior, da qual
evoluíram separadamente as línguas Kwadi e as línguas Khoe. Na região nordeste do
Kalahari teria existido o proto-Kwadi-Khoe, do qual derivaram grupos associados às
línguas dos caçadores-recolectores.
Os ancestrais dos povos proto-Khoikhoi, que estão na origem dos dois ramos do
grupo Khoe, falados pelos pastores, são localizados por Ehret numa área adjacente à
anterior, que corresponde às fronteiras actuais do Botswana com a África do Sul e o
sudoeste do Zimbabwe. Terá sido a partir dessa zona nuclear que divergiram para o
Khoekhoe do Limpopo, hoje extinto, e o Khoekhoe-Gariep do Cabo.128
Tendo sido o Botswana o locus da diversidade de línguas Khoisan, este
“santuário” revela-se problemático no sentido em que muitos grupos perderam
completamente as suas terras, sendo que muitos caçadores foram “colonizados” por
agricultores com gado. Na perspectiva histórica e social, a interação com muitos dos
povos vizinhos resultou numa cultura e num estilo de vida transformado e as dinâmicas

125
Christopher EHRET, op. cit., p. 34.
126
IDEM, ibidem, pp. 7-35.
127
IDEM, ibidem, p. 8. Ehret baseia-se num estudo de Güldemann (2004) que afirma que o Kwadi não
apenas permanece fora do Khoe Kalahari Oriental, mas também que o Khoe e o Kwadi deveriam ser
considerados sub-ramos irmãos de um nível profundo do grupo Kwadi-Khoe. As suas conclusões tiveram
a virtude de acrescentar algumas evidências lexicais ao Kwadi, previamente inexplicadas. Acrescenta que
duas palavras centrais do Kwadi (mulher e lua) têm padrões de ocorrência que excluem esta língua como
membro do Khoe Kalahari Oriental e do Kalahari Khoe como um todo.
128
IDEM, ibidem, p. 18.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

sociolinguísticas mostraram não ser favoráveis às línguas Khoisan quando colocadas em


situação de contacto.129
Em finais do século XV e inícios do século XVI, quando ocorrem os primeiros
contactos dos portugueses com comunidades de pastores Khoikhoi do Cabo, muitas
destas comunidades seriam, provavelmente, recém-chegados aos territórios mais
meridionais do continente africano. Fauvelle-Aymar destaca, a este respeito, alguns dos
argumentos de Schapera e Elphick: a baixa densidade demográfica na região do Cabo; as
áreas “vazias” com boas pastagens, que podem ser indicativos de que o processo de
expansão ainda estaria em curso; a baixa variabilidade linguística das línguas Khoikhoi
sobre áreas muito vastas, desde o norte da Namíbia à Península do Cabo e para leste, até
à região do rio Great Fish, que parecem atestar não apenas o processo de rápida expansão
destas comunidades, mas apontam também para uma recente dispersão.130 Andrew Smith
mencionou também que as evidências da ocupação pastoril da área de Seekhoe Valley,
um dos grandes vales a sul do rio Orange (Gariep), não deve ter ocorrido antes do século
XIV131, apesar de existirem datações de restos de caprinos e cerâmica na Namíbia e em
Namaqualand que apontam para os dois milénios de presença de comunidades pastoris.
As línguas dos caçadores, distinguindo-se das dos pastores, caracterizam-se pela
sua extrema diversidade e natureza local, o que conduz à interpretação de que a dispersão
das comunidades de caçadores teria ocorrido numa temporalidade muito anterior à dos
pastores.132
A mais recente investigação tende a ver os Khoikhoi como comunidades com uma
cultura pastoril altamente especializada e, portanto, marcadamente diferenciada, dos

129
Andy CHEBANNE, op. cit., p. 86.
130
François-Xavier FAUVELLE-AYMAR, “Against the ‘Khoisan paradigm’ in the interpretation of
Khoekhoe origins and history: a re-evaluation of Khoekhoe pastoral traditions”, (…), pp. 87-88.
131
Andrew SMITH, “Origins and spread of pastoralism in Africa”, in Nomadic Peoples, 32, 1993, p. 99.
132
Estudos sobre as sequências do genoma completo dos caçadores-recolectores parecem também
confirmar que a dispersão destas comunidades se processou num tempo tão recuado, que a especificidade
do modo de vida se traduziu numa enorme diversidade da estrutura genética. O estudo dos genomas dos
Khoisan e dos Bantu da África Austral (2009), baseado em marcadores mitocondriais e pequenos
marcadores nucleares fixos, mostram que a estrutura genética dos caçadores-recolectores que hoje vivem
no Kalahari é divergente da dos outros humanos. Este estudo, feito com base em cinco indivíduos
pertencentes a cinco grupos diversos que habitam actualmente o Kalahari, mostra que estes caçadores-
recolectores se caracterizam, em média, por uma significativa diversidade uns em relação aos outros, o que
levanta questões que se relacionam com as adaptações genéticas a um estilo de vida agrícola, mas também
revela a antiguidade destes grupos humanos e da sua dispersão na África Austral. Veja-se Stephan C.
SCHUSTER et al., “Complete Khoisan and Bantu genomes from Southern Africa”, in Nature, Vol. 463/18
Fev. 2010, pp. 943-947.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

bandos de caçadores-recolectores. Os modos de vida das comunidades indígenas San e


Khoikhoi assentavam em diferentes técnicas e culturas, mas também em diferentes visões
do mundo, associadas ao regime de subsistência, ao uso do tempo, à política, à
acumulação de riquezas e à transmissão da propriedade, às noções de hierarquia social e
à própria identidade dos grupos.133 Apesar das diferenças estruturais entre caçadores e
pastores, ao nível do indivíduo e da sociedade, parece ser hoje unânime a aceitação de
que existiu uma estreita relação histórica entre os pastores Khoikhoi e os seus vizinhos
caçadores.134 Estes, interagiram em diversas fases das suas histórias, nomeadamente
durante a dispersão das comunidades de pastores. Elphick distingue quatro diferentes
modalidades de contacto entre os imigrantes Khoikhoi e os caçadores-recolectores:
1) Contacto conflituoso, expresso através de incursões e raids feitos pelos
caçadores às comunidades de pastores, decorrentes da competição pelos mesmos recursos
de caça e recolecção que, sendo a base de subsistência das comunidades de caçadores
complementavam também a economia pastoril dos Khoikhoi. Em articulação com estas
bases de subsistência, o domínio dos cursos de água mostrava-se essencial tanto para o
gado, como para os animais de caça.135
2) Contacto através do comércio e outros modos de cooperação económica. Trocas
periódicas de bens provenientes das comunidades de caçadores, tais como peles de
animais selvagens, mel, bagas e raízes, assim como arcos e flechas, por leite ou carne
proveniente das comunidades pastoris, teriam conduzido gradualmente a uma
incorporação de grupos de caçadores nas comunidades Khoikhoi.
3) Processos de assimilação através dos quais são incorporados caçadores como
clientes subordinados de comunidades Khoikhoi, nomeadamente nas tarefas de
apascentar os gados, situação que se traduzia numa melhoria alimentar e numa redução

133
Alan BARNARD, op cit., pp. 66-74.
134
Segundo a tese de Elphick, as comunidades de pastores Khoikhoi terão derivado o seu modo de vida a
partir de grupos de caçadores. Um dos bandos do “Bush central”, do norte do Botswana, terá adquirido
caprinos e bovinos, provavelmente através do contacto com comunidades de agricultores e pastores,
ocorrendo uma “revolução pastorícia” antes da dispersão para a Namíbia e para o Cabo Ocidental,
condicionada pela necessidade de explorar novas pastagens. Restos de caprinos e cerâmica em sítios
arqueológicos da Namíbia e do Cabo foram datados dos primeiros séculos da EC. Elphick considera que, a
ser o mesmo povo a introduzir tanto os caprinos como a cerâmica, as deslocações migratórias deverão ter
ocorrido de forma suficientemente rápida para chegar quase em simultâneo a regiões tão afastadas. Neste
sentido, a “revolução pastoríl” deve ter ocorrido pelo menos um ou dois séculos antes, ou seja, algures no
início do primeiro milénio. Ver Richard ELPHICK, op. cit., pp. 10-13.
135
IDEM, ibidem, p. 32.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

da insegurança entre aqueles que eram absorvidos nas comunidades de pastores. 136 A
concorrência pelos mesmos territórios de pastagem, os mesmos pontos de água e os
mesmos recursos terão empurrado grupos de caçadores não assimilados para as zonas
mais áridas, que os colonos vieram a designar de Bushmanland. Por seu turno, também
se terá verificado a absorção de indivíduos marginalizados das comunidades Khoikhoi,
que foram constrangidos a viver nos espaços mais áridos onde foram assimilados pelos
grupos de caçadores através de processos de “bushmanização” social.137
4) Casamentos de caçadores em posição de clientela dentro das sociedades
Khoikhoi, prática integrada nas redes de trocas entre unidades sociais, nas quais se insere
a circulação de mulheres.138 Segundo Elphick, este aspecto deve ter ocorrido de acordo
com o padrão do homem Khoikhoi casando com mulheres das comunidades clientelares
de caçadores e não o contrário, pois existiria entre os Khoikhoi um sentimento
generalizado de desdém relativamente aos grupos San. De acordo com o costume dos
caçadores de dar ou “vender” as suas crianças para evitar os difíceis tempos de fome, as
mulheres ficariam disponíveis para vir a integrar famílias poligâmicas, que resultavam do
enriquecimento de alguns indivíduos, numa sociedade pastoril em expansão, como seria
a sociedade Khoikhoi.139
Estas modalidades de contacto em algumas regiões específicas terão resultado
numa assimilação entre Khoikhoi e caçadores, dando origem, em termos somáticos, a
uma população mestiça e de maior estatura 140. Aliás, o fenómeno de assimilação ocorreu
tanto entre os Khoikhoi e as comunidades de caçadores, como também com as
comunidades proto-Bantu do Sudeste.
Mas, se a interacção entre grupos ocorreu historicamente, também é certo que os
traços de diferenciação económica, social e de estruturação política se tornaram evidentes
aos observadores exteriores, nomeadamente os que se referem a caçadores não
assimilados, cada vez mais empurrados para as montanhas inóspitas, e aos pastores

136
IDEM, ibidem, pp. 34-35.
137
François-Xavier FAUVELLE-AYMAR, “Histoire d’un point d’eau PELLA: (XVIIIe-XXe Siècle).
Reconfigurations Spatiales et Identitaires dans l’Ouest de l’Afrique du Sud”, (…).
138
Jean-Loup AMSELLE, “Ethnies et espaces: pour une anthropologie topologique”, in Jean-Loup
AMSELLE et Elikia M’BOKOLO, Au Coeur de l’Ethnie. Ethnies, tribalisme et état en Afrique, Paris,
Editions La Découverte, 1985, 24. O autor considera a troca de mulheres um dos elementos estruturantes
das redes de relações que caracterizaram os espaços pré-coloniais.
139
Richard ELPHICK, op. cit., p. 36.
140
IDEM, ibidem, p. 37.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Khoikhoi, em expansão para todas as áreas que pudessem suportar gado, num processo
de mobilidade que foi facilitado pela vantagem de uma maior produtividade, decorrente
da posse de animais domésticos.
Em termos político-sociais, as comunidades Khoikhoi agrupavam-se em
linhagens hierárquicas e ligavam-se entre si através de relações de vassalidade e
aliança.141 Segundo Elphick, as comunidades estavam agrupadas por laços de parentesco
e existiria uma linhagem principal. Era nos “clãs” que emergiam as chefias de forma
hereditária e a sua autoridade baseava-se na capacidade mediadora de conflitos, que a
acumulação de riquezas e a expansão territorial envolveram.
Estas comunidades realizavam a sua existência vivendo no que se veio a designar
de kraals ou aldeamentos compostos por algumas centenas de cabanas dispersas em torno
de um curral de gado, onde os seus animais (bovinos e caprinos) eram recolhidos à noite.
Os animais domésticos estavam no centro do sistema de valores e eram também a base
da riqueza, factor que criou clivagens sociais, sustentou o prestígio das autoridades
políticas e justificou a conflitualidade entre grupos, nomeadamente através de incursões
territoriais.
Entre os grupos de caçadores-recolectores assistimos a padrões de mobilidade
diversos, pois os duros condicionalismos do seu modo de vida levavam a que cada
geração abandonasse os territórios dos seus ancestrais. Elphick considera que ao tempo
dos primeiros contactos com os europeus, estes grupos de caçadores teriam uma espécie
de chefia, tal como existe actualmente entre os !Kung do Botswana e foi observado entre
os Naron e alguns bandos de caçadores do rio Orange (Gariep). Apesar da possível
existência de algum tipo de chefia entre os bandos de caçadores, o igualitarismo e a
ausência de propriedade, bem como o valor do trabalho direccionado para o consumo
imediato, levam a considerar que a organização e as decisões dos grupos seriam tomadas
por consenso.142

141
François-Xavier FAUVELLE-AYMAR, “Histoire d’un point d’eau PELLA: (XVIIIe-XXe Siècle).
Reconfigurations Spatiales et Identitaires dans l’Ouest de l’Afrique du Sud”, (…).
142
Alan BARNARD, op. cit., p. 66.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

1.2. Comunidades Bantu, entre os rios Kei e Limpopo

Na extremidade sudeste do continente africano, os territórios entre o rio Great Fish


e o rio Kei, estabelecem uma área de transição geográfica entre a costa do Cabo ocidental
e a costa do Índico. O caudal de grandes rios, como o Great Fish, o Keiskamma e o Kei,
é engrossado por numerosos outros cursos de água, procedentes das terras altas do interior
que se precipitam em dramáticas embocaduras no litoral. Em termos climáticos, este é
também um espaço de transição do Ocidente, em que os Invernos frios, as chuvas
abundantes entre Outubro e Fevereiro e as condições propícias para pastagens de Verão
cedem lugar, à medida que se entra no Índico, a um regime de chuvas de Verão, favorável
ao cultivo de sementeiras tropicais como o sorgo e o milho miúdo (milhete).
Nos finais do século XVI, tais territórios eram uma fronteira flutuante entre as
comunidades Khoikhoi e as comunidades agro-pastoris falando línguas Bantu, em
processo de expansão para a extremidade sudeste do continente africano e envolvendo
fenómenos de mestiçagem com populações aí preexistentes.
O relato de um sobrevivente do naufrágio da nau da Carreira da Índia, Santo
Alberto, ocorrido em 1593, a sul do rio Kei, descreve as primeiras populações com quem
os náufragos contactaram:

“Vjuem estes negros em aldeas piquenas feitas a modo de currays de gado da nossa terra
e dentro no mesmo corral tem suas cazas que são humas uaras arcadas com a pomta ambas
no çhão que serião - 15 - ou / uinte, que todas postas com as pontas no chão e cubertas
com alguma palha mal postas que não defendem a çhuiua, fiqua parecendo a modo de
hum forno em que cozem os padeiros o pão (…) aquy se metem marido e molher filhos
grandes e piquenos e todos quoanto são, de modo que neste curral d’espinhos há duas ou
três choupanas destas que é o tribo ou família de cada hum, e se algum aserta de morrer
loguo tem agouro e se mudão a outro curral nouo que fazem a pouoação de 4 - 5 currais
e em cada hum curral há 3 - 4 - 5 - choupanas também dentro e chama-se ysto huma aldea.
(…) São estes cafres todos desta paragem pretos e compridos e muj bem apeçoados,
trazem os bigodes compridos as barbas tozadas, e a sua mor cortezia na saudação é correr
as mãos por elas huns aos outros, vestem huns mantoims a modo de frades menores de
coiro de bezerro hou de cabra os coais andão tão emgraxados com gurdura de uaqua hou
carnejro que os trazem muito brandos, na cabesa carapusa aguda do mesmo, nos pés huns

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

couros duros como couro de doba redomdos (…) tomão muita casa de ueados e outras
alimárias a coso, nas mãos trazem huns paos de tamanho de hum couado deliquado, na
ponta amarrado hum rabo de hum bicho como de rapoza ou rabo de mungus que se auanão
das moscas, trazem na cinta hum sinto do mesmo couro e defronte das naturas
dependurado hum pedaço de couro de largura de quatro dedos o qual lhe não cobrem
nada, desta mesma maneira andão as molheres, não lauão as mãos nem pés nem couza
alguma que ayão de comer que é uaqua e carneiro (…)”.143

Destaque-se, neste texto de final do século XVI, a utilização do vocábulo “tribo”,


no sentido de família, para designar a organização social do aldeamento. A fonte é tão
mais interessante pois utiliza este conceito em finais do século XVI.
A descrição parece corresponder a uma comunidade de pastores Khoikhoi que,
dada a sua localização a sul do rio Kei, seria provavelmente Gonaqua.144 As aldeias
dispersavam-se desde as colinas ondulantes até à orla marítima, entre o rio Great Fish e
os territórios a sul do rio Kei, uma área de fronteira fluida que assistia, na viragem do
século XVI para o XVII, à fixação de clãs Xhosa.145
As fontes escritas mencionando o etnónimo Gonaqua, assim como outros
etnónimos associados a clãs Khoikhoi desta região, datam de finais do século XVII e do
século XVIII e constituem-se, em parte, por diários resultantes de expedições aos
territórios extremos da colónia holandesa do Cabo, com a finalidade de negociar gado e
recolher informações sobre os povos da “fronteira”. Na falta de fontes nativas, são estes
diários de expedições coloniais os registos mais antigos acerca das comunidades de
pastores vivendo para leste do rio Gamtoos e das montanhas de Outeniqua. Em 1686, um
agente colonial holandês de nome Schrijver negociou 500 cabeças de gado e alguns
caprinos com um chefe Inqua, de uma próspera comunidade Khoikhoi. Nesta expedição,
o comerciante foi informado pelo chefe sobre os outros grupos de pastores que viviam
nos territórios do sudeste, tendo-se salientados três povos, de acordo com a sua definida
identidade histórica: os Kubuquaas, os Damaquas e os Gonaquas.146 Segundo o chefe

143
Perdição da nao Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, costumes dos que a abitão ate o Cabo das
Correntes, in Glória de Santana PAULA, op. cit., p. 128.
144
Christopher SAUNDERS and Robin DERRICOURT (ed.), Beyond the Cape frontier: studies in the
history of the Transkei and Ciskei, London, Longman, 1974, p. 73.
145
IDEM, ibidem.
146
Susan NEWTON-KING, op. cit., p. 32.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Inqua, os Kubuquaas correspondiam aos povos de pele negra, os Xhosa, que possuíam
muito gado e viviam em casas feitas de barro. Estando a uma distância de cinco dias de
caminho, vinham muitas vezes fazer trocas e por vezes tinham grandes inimizades com
os Inquas.147 Os Damaquas também viviam em casas feitas de barro, tinham muita riqueza
em pessoas e gado e dispunham de contas de ferro e cobre que sabiam como obter.
Segundo o informador, para lá dos territórios dos Kubuquaas e Damaquas viviam os
Gonaqua, um povo rico em gado, de quem os Inqua adquiriam “dagha”.148
Devido à sua mistura peculiar com os Xhosa, os clãs Gonaqua atraíram a atenção
dos europeus que viajaram até aos territórios mais extremos, a leste da colónia do Cabo,
e foram referidos noutras fontes do século XVIII. Entre essas outras fontes destacamos o
diário de Carel Albregt Haupt, escrivão ao serviço de uma expedição enviada ao Cabo
oriental, em 1752, sob o comando de August Fredrik Beutler149, e o diário do naturalista
sueco Anders Sparrman, que viajou até à fronteira oriental da colónia do Cabo, nos anos
de 1775 e 1776.150 O conteúdo informativo de tais fontes permite constatar que terá
existido um longo e complexo processo de interacção e mestiçagem entre Gonaqua e
Xhosa.
O único registo escrito que se conhece, anterior à fixação dos holandeses no Cabo,
produzido por uma testemunha presencial e versando as comunidades Khoikhoi da zona
de fronteira e contacto com comunidades bantus, é o já mencionado relato anónimo do
naufrágio da nau Santo Alberto, da última década do século XVI. O texto descreve
fisicamente as populações e as suas pequenas aldeias familiares, nas quais os currais de
gado ocupavam um lugar central, menciona a natureza nómada destas gentes, que não
praticavam o cultivo das terras e que retiravam o seu sustento do pastoreio de vacas e

147
IDEM, ibidem.
148
IDEM, ibidem. A “dagha” / “dagga”, juntamente com o gado, o ferro e o cobre, estava entre os bens que
integravam um comércio de longa distância entre comunidades Khoikhoi e entre estas e comunidades
Bantu. Consistia numa planta da família Cannabaceae (cannabis sativa) cultivada tanto pelas suas fibras,
como pelas sementes e folhas, de efeito intoxicante, muito apreciadas entre os Khoikhoi. Elphick refere o
cultivo de “dagga” entre os Khoikhoi do Cabo Oriental, que a designavam por “Hamcunqua”. Os relatos
de viajantes, oficiais e missionários, posteriores à instalação dos holandeses no Cabo, mencionam o cultivo
em diversos territórios, a sua importância no sistema de trocas e o hábito de fumar as suas folhas, à
semelhança de tabaco. Veja-se Richard ELPHICK, op. cit., pp. 62-63.
149
IDEM, ibidem.
150
Anders SPARRMAN, op. cit.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

carneiros e da caça.151 Viviam num regime de “transumância sazonal dos pastores”152 e


não estavam vinculados ao ciclo do trabalho da terra, pois abandonavam com facilidade
as suas povoações. As aldeias eram unidades de parentesco ligadas à autoridade do chefe
de linhagem, ele próprio também o protagonista das práticas religiosas.
Associado às práticas religiosas destes pastores, salienta-se o ritual que o chefe da
comunidade de Tiombe protagonizou no momento do encontro com os náufragos. Depois
de morto um carneiro que ofereceu a Nuno Velho, líder dos náufragos, tomou as entranhas
ainda palpitantes do animal, rompeu o bucho e lançou-o ao mar com palavras e gestos de
agradecimento.153 O ritual descrito coloca no seu centro um carneiro e este facto pode
indicar estarmos perante uma comunidade Khoikhoi pois, como sublinhou Monica
Wilson, entre as culturas de agricultores-pastores bantófonos da região, a preferência iria
para a vaca.154 De acordo com um axioma há muito estabelecido para as reconstruções
etnográficas comparadas, a primazia de determinado animal ou frutos da terra, nas
observações rituais, é quase um marcador certo da maior antiguidade desse animal ou
fruto da terra entre a comunidade em análise.155 Ora, a maior antiguidade de animais
domésticos entre os pastores vai para os caprinos, pelo que podemos ver neste ritual, um
indicador de que se trataria de uma comunidade de pastores Khoikhoi.
Dado que para o século XVIII as fontes escritas atrás mencionadas atestam uma
evidente mestiçagem entre os pastores Khoikhoi e os povos falando línguas Bantu,
considera-se muito provável que a interacção entre estas sociedades já estivesse em curso
a sul do rio Kei, em 1593, tal como se pode depreender das descrições patentes nas fontes
portuguesas relativas ao naufrágio da nau Santo Alberto, tanto o manuscrito anónimo,
como o relato de João Baptista Lavanha.156 Só deste modo se entende que tais pastores
falassem ou entendessem uma língua Nguni (o Xhosa), e também só deste modo se

151
Perdição da nao Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, costumes dos que a abitão ate o Cabo das
Correntes, in Glória de Santana PAULA, op. cit., p. 128.
152
John ILIFFE, Os Africanos - história dum continente, Lisboa, Terramar, 1999, p. 146.
153
Perdição da nao Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, costumes dos que a abitão ate o Cabo das
Correntes, in Glória de Santana PAULA, op. cit., pp. 131-132.
154
Christopher EHRET, “The Early livestock-raisers of Southern Africa”, op. cit., p. 12.
155
IDEM, ibidem.
156
Perdição da nao Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, costumes dos que a abitão ate o Cabo das
Correntes, in Glória de Santana PAULA, op. cit., pp. 127-128; João Baptista LAVANHA, “Naufrágio da
Nau Santo Alberto no Penedo das Fontes, no ano de 1593 e Itinerário da gente que dele se salvou até
chegarem a Moçambique. Escrito por João Baptista Lavanha Cosmógrafo-mor de Sua Magestade no ano
de 1597”, in Bernardo Gomes de BRITO, História Trágico-Marítima, (anotações, comentários e estudo por
António SÉRGIO), Vol. III, Lisboa, Editorial Sul, 1956, pp. 29-30.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

explica que o momento em que o chefe da comunidade de pastores foi recebido por Nuno
Velho, na praia do naufrágio (Tiombe), a comunicação tenha sido mediada por dois
escravos africanos, sendo um pertença “de Manuel Fernandes Girão, que entendia a
língua destes cafres e falava a de [ilha de] Moçambique, e outro de Antonio Godinho, que
sabia esta, e falava a nossa”.157 Hair já havia chamado a atenção para a questão linguística
num artigo sobre os contactos portugueses com as línguas Bantu no Transkei, Natal e sul
de Moçambique, referindo acerca desta primeira comunicação histórica entre grupos que,
através da acção dos dois intérpretes, o Nguni terá sido traduzido para o Suaíli e o Suaíli
terá sido traduzido para o Português, numa sequência susceptível de estabelecer uma
comunicação verbal, ainda que eventualmente parcial.158
Se admitirmos que a comunicação verbal se efectivou, então temos que considerar
também que estas comunidades de pastores, cujas descrições parecem corresponder aos
traços dos Khoikhoi, estariam em pleno processo de interacção com os povos Nguni,
sendo que a mestiçagem cultural então envolvida se tornava notória pela integração de
traços linguísticos Nguni. Só assim seria possível estabelecer uma comunicação verbal
através de intérpretes falantes de outras línguas Bantu. Um século mais tarde, as fontes
europeias produzidas no contexto da colónia holandesa do Cabo referem-se ao fenómeno
da mestiçagem, que se tornava evidente aos europeus não só pela semelhança dos traços
físicos, mas também pelo modo de vida idêntico, que resultava das trocas comerciais e
dos casamentos.159
Porém, na interpretação do momento do encontro dos náufragos portugueses com
os pastores, podemos colocar a hipótese de um cenário completamente diferente e, neste
sentido, aquilo que João Baptista Lavanha fixou no seu texto podia resultar de uma
construção de carácter literário, própria de um cronista, sem correspondência com a
vivência histórica. Assim, vamos supor que a tradução não se concretizou e a
compreensão verbal não se estabeleceu. O manuscrito anónimo relatando o mesmo
naufrágio não contém informações suficientes que nos permitam inferir que se
estabeleceu uma comunicação verbal mutuamente compreensível. Parece evidente neste
documento, resultante de um testemunho presencial, que grande parte da comunicação

157
João Baptista LAVANHA, op. cit., p. 29.
158
Paul Edward Hedley HAIR, op. cit., pp. 3-46.
159
Susan NEWTON-KING, op. cit., p. 33.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

estabelecida entre os dois grupos seria de natureza não-verbal: o chefe foi recebido numa
alcatifa e quando os portugueses lhe falavam era de joelhos para lhe mostrar reverência
“o qual o negro mal entendia”.160 Diz ainda o texto que o chefe “como pasmado esteue
olhamdo para todos” e que com grandes brados agradeceu ao mar ter trazido às suas terras
gentes tão semelhantes, por terem cinco dedos, olhos, mãos e pés, e ao mesmo tempo tão
diferentes que, pela alvura, deviam ser filhos do Sol. 161 Todo este sentido pode ter sido
inferido a partir de gestos rituais e comunicação não-verbal. Se o texto do náufrago
sobrevivente menciona que Nuno Velho “mandou dizer” pelos intérpretes e que havia
“cafres nossos que os entendião”162, isso não significa que a comunicação verbal se tenha
efectivado através da sequência de traduções entre diferentes línguas Bantu e o Suaíli e,
finalmente, entre o Suaíli e o Português, e que tenham ocorrido respostas ao ponto de se
desenvolver um diálogo.
Parece-nos importante, ainda, destacar que todos os testemunhos históricos
relativos aos primeiros contactos com comunidades Khoikhoi aludem expressamente às
características linguísticas destes povos, sublinhando as particularidades vocálicas dos
cliques; neste caso, estamos perante a inexistência de qualquer referência a estes aspectos
particulares das línguas Khoikhoi.
Se esta primeira comunidade de Tiombe/Tizombe fosse de pastores Khoikhoi, a
comunicação verbal seria dificultada por falta de intérpretes. Coloca-se então a hipótese
destes pastores estarem historicamente em processo de miscigenação com os Nguni, neste
caso, com clãs Xhosa em expansão. A verificar-se esta hipótese, estariam em curso
processos de assimilação, evidentes ao nível linguístico, permitindo o estabelecimento de
algum entendimento com falantes de outras línguas Bantu. Nesta conformidade, parece-
nos essencial atender aos dados cronológicos relativos às listas de reis Xhosa, recolhidas
no século XIX, e que Christopher Saunders e Robin Derricourt apresentam:
Ngcwangu, 1550-1580;
Sikomo, 1580-1610 e, em algumas listas, 1520-1550;

160
Perdição da nao Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, costumes dos que a abitão ate o Cabo das
Correntes, in Glória de Santana PAULA, op.cit, p. 131.
161
IDEM, ibidem.
162
IDEM, ibidem.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Togu, 1610-1640, de acordo com as informações recolhidas por Brownlee, neste


reinado os Xhosa iniciaram a sua fixação nas margens do rio Kei, sendo um período de
interacção com os Khoi;
Gconde, 1640-1670, de acordo com as tradições, os irmãos deste rei mudaram-se
para sul do rio Kei, fixando-se numa área entre o rio Bufalo e o Chalumna, pressionando
o território Gonaqua.163
Ora, se ocorreu comunicação verbal, através de processos de tradução, entre uma
língua Nguni e outras línguas Bantu, entre o chefe da comunidade de pastores de Tiombe
e os intérpretes africanos do grupo de sobreviventes do naufrágio da nau Santo Alberto
(1593), ocorrido a sul do rio Kei, então devemos ponderar a hipótese de que o processo
de interacção Xhosa-Khoi (Gonaqua) teve início antes do reinado de Togu (1610-1640).
É ainda importante considerar que as datas associadas às listas genealógicas não
são precisas, que os anos de duração de alguns reinados são estimados e datados
retrospectivamente a partir de 1736, data em que está documentado o reinado de Phalo. 164
Jeff Peires avança também a hipótese de alguns nomes de chefes terem sido esquecidos
ou de alguns nomes de reis como Togu, Sikomo e Ngconde, acerca dos quais nada se
sabe, serem nomes de louvor de uma mesma pessoa.165 Por todos estes motivos,
associados à falibilidade cronológica das listas genealógicas, considera-se muito plausível
que a interacção Xhosa-Khoi (Gonaqua) estaria já em curso a sul do rio Kei, na última
década do século XVI.
Para norte do rio Kei, o território era drenado por numerosos cursos de água
correndo das elevadas escarpas do interior para o mar, com solos ricos em pastagens. Os
abundantes cursos de água condicionavam os padrões humanos de fixação, ao mesmo
tempo que determinavam a importância da actividade da pastorícia entre a maioria das
comunidades Nguni que aí se fixavam. Áreas abundantes em rios e ribeiros comportavam
muita gente e podiam acomodar diversos conjuntos de populações, pois os cursos de água
funcionavam como marcadores “vivos”166 de apropriação identitária dos territórios.

163
Christopher SAUNDERS and Robin DERRICOURT (ed.), op. cit., p. 57.
164
Jeff PEIRES, The House of Phalo. A History of the Xhosa People in the Days of their Independence,
Johannesburg, Jonathan Ball Publishers, 2003, pp. 21-22.
165
IDEM, ibidem.
166
Isabel Castro HENRIQUES, Território e Identidade. A construção da Angola colonial (c. 1872-c. 1926),
Lisboa, Centro de História da Universidade de Lisboa, 2004, p. 22.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

O termo Nguni designa povos que falavam línguas aparentadas (marcadas pela
presença de cliques) e partilhavam alguns aspectos de uma cultura comum. No sentido
restrito, Nguni é um termo linguístico cuja utilização para a história pré-Mfecane167 não
deixa de ser complexa168, pois as alterações climáticas, as fomes e as migrações bem
como as convulsões políticas e militares postas em acção por Dingiswayo e Shaka, no
século XIX, acabaram por obliterar as divisões linguísticas e sócio-políticas anteriores.
Por conseguinte, apenas por referência aos padrões culturais e à linguística podem fazer-
se inferências sobre as possíveis origens dos diversos povos que se fixaram a sul do rio
Limpopo, entre a cadeia montanhosa do uKhalamba-Drakensberg e o Oceano Índico.
Alfred Bryant169 e John Henderson Soga170 parecem ter sido os primeiros
colectores de tradições orais a fazer uso na língua inglesa do termo Nguni, pois até aí a
designação aplicada aos africanos em questão provinha dos observadores europeus, que
os designavam de cafres e kaffirs.
Em 1861, na primeira edição do Zulu English Dictionary, o bispo John William
Colenso sugeria que Nguni era uma outra designação para AmaXhosa. Porém, na quarta
edição de 1905, revista por sua filha Harriette, Nguni adquiriu um sentido mais amplo e

167
A expressão zulu Mfecane, que significa “O Esmagamento”, refere-se a um período de ruptura na
estrutura das sociedades Bantu da África meridional, a partir da década de 20 do século XIX. A
historiografia europeia de finais do século XIX, inícios do século XX, viu no Mfecane um movimento de
construção agressiva das nações Zulu e Ndebele, sob os governos respectivamente de Shaka e Mzilikazi.
Hoje, a visão do Mfecane, como uma catástrofe causada pela agressividade militar do estado Zulu, é
questionada pelas evidências arqueológicas e pelos estudos de dendroclimatologia (Martin Hall) que
mostram que, após um período excepcionalmente húmido (1787-1789), que assistiu a um aumento da
população e das cabeças de gado, seguiu-se um período de seca, causadora de uma grave crise que afectou
o norte do Natal nos inícios do século XIX, conhecida como “Mdalatule Famine”. O anterior crescimento
da população, o esgotamento dos recursos naturais, a devastação pela fome e pela guerra conduziram não
só a extensas migrações de agricultores e criadores de gado, como também ao surgimento do estado Zulu
no seio de uma sociedade Bantu, tipicamente pastoril e descentralizada. A “Mdalatule Famine”
desempenhou um papel decisivo nas mudanças político-sociais marcadas pela centralização e militarização
do estado e pela expansão militar de Shaka. Os chefes Nguni do Norte submeteram-se a Shaka e foram
absorvidos na sua máquina administrativa e o movimento de perturbação militar ao ponto de, aquando da
morte de Shaka, em 1828, nenhum grupo de população da África meridional viver nas suas terras de origem.
Veja-se: Jeff PEIRES, Before and After Shaka. Papers in Nguni History, Grahamstown, Institute of Social
and Economic Research, 1981, p. 9. Philip BONNER, Kings, Commoners and Concessionaires. The
Evolution and Dissolution of the Nineteenth-Century Swazi State, Cambridge, Cambridge University Press,
1982, pp. 21-24.
http://www.britannica.com/EBchecked/topic/379568/Mfecane
168
Shula MARKS and Anthony ATMORE, op. cit., p. 121.
169
Alfred Thomas BRYANT, op. cit..
170
John Henderson SOGA, The South-Eastern Bantu (Abe-Nguni, Aba-Mbo, Ama-Lala), Johannesburg,
Witwatersrand University Press, 1930.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

abrangente, uma vez que designava os amaXhosa, Qwabe e Zulu, bem como outras
formações político-sociais e identitárias.171
John Henderson Soga, descendente de Xhosas e Escoceses, considerava que o
termo Nguni tinha origem num nome próprio, o do pai putativo dos Xhosa.172
Tanto os Xhosa como os Thembu foram considerados por Bryant como Nguni.173
Este autor, juntamente com Soga, referindo-se às migrações Bantu para o sudeste africano
consideraram três ramos principais, sendo um destes ramos o dos Nguni, justificando que
era esse o modo como o povo genericamente se distinguia a ele próprio dos outros ramos,
os Sotho e os Tongas.174
Segundo Clement Martyn Doke, a designação de Nguni refere-se a um dos grupos
linguísticos dos Bantu do Sudeste no qual se englobam línguas que possuem traços
fonéticos e gramaticais comuns, demonstrando entre si um elevado grau de compreensão
mútua, de tal modo que membros de diferentes comunidades podem, sem dificuldades,
comunicar entre si.175 Neste âmbito, parece ser possível estabelecer-se uma conexão entre
as semelhanças linguísticas e a proximidade ou familiaridade cultural. O Nguni integra-
se num conjunto linguístico mais amplo, marcado por uma relativa homogeneidade dentro
da categoria Bantu, que Doke designou de “Southern Bantu” e que Malcolm Guthrie
classificou como integrando o “Grupo - S”176 da África Austral.
Apesar de existirem traços culturais que conferem uma determinada unidade aos
povos Nguni, apenas pode estabelecer-se a sua área de implementação em termos
linguísticos, dado o fenómeno dos “empréstimos” ao nível dos costumes, fruto da
interacção histórica com os outros grupos.177 Carolan Postma Ownby reforça a definição
de Nguni como um grupo linguístico distinto, dentro da família dos Bantus do Sudeste,
compreendendo falantes que podem ser encontrados no Transvaal (Ndebele do
Transvaal), Lesotho, Swazilandia e, a este do Drakensberg, estendendo-se, a norte, até à

171
Shula MARKS and Anthony ATMORE, op. cit., p. 122
172
IDEM, ibidem, p. 123.
173
IDEM, ibidem.
174
IDEM, ibidem.
175
Clement Martyn DOKE, The Southern Bantu Languages, London – New York – Cape Town,
International African Institute by the Oxford University Press, 1954, p. 20.
176
Paul Stuart LANDAU, Popular Politics in the History of South Africa, 1400-1948, New York,
Cambridge University Press, 2010, 49.
177
Monica WILSON e Leonard THOMPSON, The Oxford History of South Africa - (South Africa to 1870),
Vol. 1, Oxford, Clarendon Press, 1969, p. 76.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

fronteira de Moçambique e, a sul, até à província do Cabo Oriental.178 O Ngoni da África


Oriental (extinto) e o Ndebele do Zimbabwe também se integram na classificação de
línguas Nguni. Por extensão, a designação é aplicada aos povos que falaram a língua. 179
Atendendo ao conteúdo informativo dos relatos de naufrágios de navios
portugueses no sudeste africano, parece ser possível estabelecer os contornos de uma
definição cultural dos Nguni nos séculos XVI e XVII. Os testemunhos dos náufragos que
no século XVI percorreram estes territórios, interagindo com os povos locais, revelam-se
de extrema importância, pois resultaram do olhar atento sobre a ocupação humana do
território que, nesta tipologia de fontes históricas, se designou de terra de cafres e
Cafraria.
As extensões da África do Sudeste, correspondentes à categoria geográfica de
Cafraria, eram, nas palavras do sobrevivente anónimo de 1593, habitadas por “tantas
nasomis [sic] de barboras e silvestres gentes”180. A designação étnica de “nações”,
aplicada até ao século XVIII a grupos de população unidos por uma origem comum,181
remete-nos para a questão da organização político-social destas sociedades.
Segundo as descrições dos náufragos dos séculos XVI e XVII, existiam a esse
tempo, a norte do rio Kei, unidades político-sociais de reduzida escala. Tratava-se dos
clãs autónomos (izizwe)182, correspondentes a conjuntos de habitações familiares
dispersas pelos campos, que estavam sujeitos à autoridade de um chefe. Através de um
processo lento e gradual de incorporação voluntária e involuntária de outros clãs, muitos
dos quais Khoisan, essas unidades político-sociais evoluiram no sentido das grandes
formações políticas dos Nguni do Sul: os Xhosa, os Thembu, os Mpondo e os

178
Carolan Postma OWNBY, Early Nguni History the Linguistic Evidence and its correlation with
Archaeology and Oral Tradition, Dissertation for the degree of Doctor of Philosophy in History, Los
Angeles, University of California, 1985, (texto policopiado), p. 6.
179
IDEM, ibidem, p. 7.
180
Perdição da nao Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, costumes dos que a abitão ate o Cabo das
Correntes, in Glória de Santana PAULA, op.cit, p. 116.
181
Anaïs LEBLON, “Le Pulaaku. Bilan critique des etudes de identité peule en Afrique de l’Ouest”, in
RAHIA (Recherches en Anthropologie & en Histoire de l’Afrique), N.º 20, Aix-en-Provence, Éditions du
Centre d’Étude des Mondes Africains, 2006, pp. 5-6.
182
Jeff Peires adopta o conceito de izizwe no sentido de clã ou nação, a partir de H. Lichetenstein (1812-
1815), que estaria bem informado pelas conversações com Johannes Van der Kemp (1804) e Ludwig
Alberti (1810). Cf. Jeff PEIRES, The House of Phalo. A History of the Xhosa People in the Days of their
Independence, (…), ps. 20 e 220.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Mpondomise, descendentes respectivamente dos clãs fundados pelos chefes Tshawe,


Hala, Nyawuza e Majola.183
No que se refere aos Xhosa, sendo o seu nome um empréstimo Khoi que significa
“homem zangado”, refere-se ao povo que reconhece a autoridade da casa reinante
Tshawe, que terá sido fundada algures a este de Mthatha, num período impreciso, mas
provavelmente anterior a 1600.184
As tradições orais apontam para a instalação dos amaTshawe como família
reinante, que conquistou vários clãs (izizwe) distintos na sua grandeza e nos seus
parentescos. De acordo com as tradições, Tshawe, um favorito entre o povo de sua mãe,
ter-se-ia distinguido como caçador e guerreiro corajoso e, pela conquista, uniu diversos
clãs independentes fundando uma nação.185 Tshawe teria derrotado em batalha os clãs de
Cira e Jwara (referidos em algumas tradições como irmãos), criando uma comunidade
política na qual os amaTshawe se tornaram o clã real, sendo o homem mais velho deste
clã o rei ou chefe supremo.186 Depois, os Tshawe expandiram-se através da dispersão dos
filhos do chefe reinante, conquistando gradualmente novos territórios e sujeitando outros
clãs através fundação de novas “Casas”187, aumentando deste modo a descentralização.
Jeff Peires salienta a impossibilidade de uma precisão cronológica a partir das
tradições orais e das listas genealógicas que estabelecem Tshawe como o fundador da
realeza Xhosa.188 No entanto, há realidades históricas que as tradições parecem indiciar,
como é o caso dos membros de um clã (izizwe) não serem forçosamente aparentados ou
biologicamente descendentes de um homem a partir do qual o seu clã foi designado. 189
Deste modo, o clã na origem dos Xhosa define-se como um grupo exogâmico reclamando
uma descendência comum. O tamanho e composição destas unidades político-sociais

183
IDEM, ibidem, p. 23.
184
Jeff PEIRES, Before and After Shaka. Papers in Nguni History, (…), p. 125.
185
Jeff PEIRES, The House of Phalo. A History of the Xhosa People in the Days of their Independence,
(…), pp. 18-21.
186
Jeff PEIRES, Before and After Shaka. Papers in Nguni History, (…), p. 125.
187
De acordo com Paul Landau, “a Casa” designa um componente da herança política dos povos Bantu do
grupo-S. “A Casa” indica uma antiga tradição de associação, herança e unidade na raiz das políticas de
todos os povos agricultores, aceitando e integrando todos os seus estabelecimentos. Envolvia direitos
recíprocos das gentes e abria as possibilidades de fixação de imigrantes, que desejassem subordinar-se ao
chefe reinante, ou de aliança de agricultores e as respectivas mudanças de identidade comunitária. A Casa
era, entre outras coisas, o segmento maternal constituído pela “cabana”, habitação, aldeia que estava longe
de corresponder a um grupo de parentesco homogéneo. Cf. Paul Stuart LANDAU, op. cit., pp. 49-50.
188
Jeff PEIRES, The House of Phalo. A History of the Xhosa People in the Days of their Independence,
(…), p. 21.
189
Jeff PEIRES, Before and After Shaka. Papers in Nguni History, (…), p. 126.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

variaram ao longo dos tempos, fazendo-se a sua expansão não só através de conquistas,
mas também pela incorporação voluntária de indivíduos ou grupos de origem exterior.190
Os limites dos Xhosa não eram étnicos, nem geográficos, mas sim políticos: todas as
pessoas ou grupos que aceitavam o governo da Casa de Tshawe tornavam-se Xhosas.191
As comunidades Xhosa foram-se instalando entre o rio Great Fish e o rio
Mzimkulu, beneficiando das características da zona temperada, livre da mosca portadora
da tripanosomíase e do mosquito da malária, o que permitiu a prática simultânea das
actividades da criação de gado e da agricultura.192
Os náufragos de navios portugueses que percorreram estes territórios mencionam
as grandes extensões sem ocupação humana que se sucediam a áreas densamente
povoadas.193 Trata-se provavelmente dos territórios entre chefaturas, que se estendiam
para além das áreas das aldeias em todas as direcções. Nestas terras de fronteira, as
comunidades praticavam a caça e a recolecção que complementavam a pastorícia e a
agricultura e, em tempos de crise, serviam até como reserva para pastagens.194
Os aldeamentos, que se dispersavam de acordo com as áreas de influência fluvial,
localizavam-se preferencialmente nas encostas das serras, sendo a disposição das
habitações organizada de forma semi-circular, em volta de um curral de gado feito de
ramagens de árvores. À semelhança das comunidades Khoikhoi, o curral funcionava
como o centro das actividades sociais. O espaço entre as habitações e o curral (inkundla)
revestia-se da maior importância, pois era aí que se dava o encontro simbólico com os
ancestrais.195 Entre o aldeamento e o ponto de água que assinalava o seu território,

190
Jeff PEIRES, The House of Phalo. A History of the Xhosa People in the Days of their Independence,
(…), p. 20. Sobre a integração de indivíduos não aparentados, Peires refere para um período mais recente
o caso documentado de Hermanus Matroos, herói da 8ª Guerra de Fronteira que atravessou a fronteira da
colónia como escravo fugitivo, tendo sido admitido entre o clã de Jwara. A documentação portuguesa
também testemunha diversos casos de indivíduos sobreviventes de naufrágios que, impossibilitados de
caminhar ficaram entregues aos cuidados dos chefes das aldeias, sendo posteriormente integrados na
composição social dos clãs. Estes exemplos de integração mostram que os clãs, enquanto sociedades sócio-
políticas, não eram entidades constantes e imutáveis, mas sim corpos sociais dinâmicos e abertos.
191
Paul Stuart LANDAU, op. cit., p. 85.
192
Jeff PEIRES, Before and After Shaka. Papers in Nguni History, (…), p. 4.
193
Perdição da nao Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, costumes dos que a abitão ate o Cabo das
Correntes, in Glória de Santana PAULA, op.cit, pp. 140-142, 146-147 e p. 151.
194
Jeff PEIRES, Before and After Shaka. Papers in Nguni History, (…), p. 4; Christopher SAUNDERS
and Robin DERRICOURT (ed.), op. cit., pp. 56-57.
195
Jeff PEIRES, The House of Phalo. A History of the Xhosa People in the Days of their Independence,
(…), p. 8.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

ficavam as terras cultivadas. Vários clãs estavam sujeitos à autoridade de um chefe, cuja
morada estaria situada no meio dos territórios das aldeias. 196
A posição do curral, como centro em torno do qual se organizavam as habitações
familiares, mostra bem a importância do gado para estas sociedades Bantu. Era pelo
número de cabeças de gado que se demarcavam os estatutos sociais, que se diferenciavam
as posses dos homens comuns da riqueza dos chefes e que se sustentava o poder político,
bem como as obrigações, as fidelidades e as alianças que se lhe associavam. Mas, o valor
do gado era também central no estabelecimento de relações entre diferentes linhagens,
pois constituía um elemento central na troca de presentes entre noivos, que em zulu se
designa lobola197 e em xhosa ikhazi. No processo de construção de uma associação entre
duas famílias, com novas relações de sangue, a aliança era consagrada em rituais em que
os abapantsi (membros do clã já partidos e que operavam a partir do mundo espiritual)
eram convidados e que participavam numa comunhão espiritual através do sacrifício de
um animal. Neste sentido, o gado era um pilar da estruturação social, da construção
identitária e da relação dos homens com o mundo dos espíritos, tendo significados
cosmológicos com profunda influência na vida de todos os dias.198
À excepção do leite extraído, o gado não constituía uma fonte de alimento
principal. Apenas como oferta cerimonial ou quando morria um animal era comido. A
base alimentar provinha do cultivo dos campos, do labor das mulheres, a quem os
cuidados do gado eram vedados. Tanto a actividade masculina da pastorícia, como os
produtos da terra decorrentes da actividade feminina, eram centrais na troca social do
casamento, mas também em outras trocas hierárquicas: entre os ancestrais e os seus

196
Christopher SAUNDERS and Robin DERRICOURT (ed.), op. cit., p.56.
197
Nas sociedades Bantu do Sudeste, existia (e persiste ainda) o costume de transferir para a família da
noiva um valor em cabeças de gado (lobola) como forma de ratificar a união entre duas famílias, ou isintu.
A mulher passava da sua família natal para a fundação de uma nova família, através de uma recompensa
em gado. Este último não tinha apenas um valor económico, mas tinha um poderoso valor simbólico,
estando associado à fertilidade, nas dimensões humana e cósmica. Esta troca assume uma variedade de
formas ideológicas, rituais e organizacionais, no âmbito da vida cultural da África do Sudeste. Para Adam
Kuper, lobola é um dos complexos institucionais que imprimem carácter a um conjunto de culturas
relacionadas. Segundo Huffman, a partir de escavações levadas a efeito em Broederstroom, a tradição
provavelmente já existiria na Primeira Idade do Ferro (Early Iron Age). A presença deste padrão hoje e no
passado arqueológico revela a existência de povos com os mesmos atributos culturais e indica também o
valor deste costume estruturante na visão do mundo destas sociedades. Cf. Thomas HUFFMAN, “The
Antiquity of lobola”, in Southern African Archaeological Bulletin, 53, 1998, pp. 57-62; Adam KUPER,
Wives for cattle: bridewelth and marriage in Southern Africa, London, Routledge & Kegan Paul, 1982.
198
Nicola ANSELL, “‘Because it’s Our Culture!’ (Re)negotiating the Meaning of Lobola in Southern
African Secondary Schools”, in Journal of Southern African Studies, Vol. 27, Nº 4, Dezembro, 2001, pp.
698-704.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

descendentes; entre os chefes de cada círculo de autoridade e poder e os seus


subordinados; ou em outras permutas em que estavam envolvidos bens de prestígio.199
Quantas vezes os náufragos portugueses, caminhantes por entre comunidades dos Bantu
do Sudeste, foram surpreendidos por gentes das aldeias que lhes traziam a beber cabaços
com leite e facilmente trocavam o seu gado por objectos de latão, cobre e ferro, os metais
mais escassos e, portanto, os mais desejados pelas comunidades locais?
Quando morto e sacrificado, o gado proporcionava a invocação dos ancestrais
(abapantsi) e de outras entidades protectoras, o que nos leva a considerar o seu poderoso
valor simbólico, pois permitia assegurar a protecção dos espíritos e manter a ordem
cósmica.200 Estudos linguísticos, levados a cabo por Carolan Postma Ownby, revelaram
que a importância do gado é evidente no vocabulário e que essa importância se
desenvolveu em diferentes etapas da expansão Nguni. 201 Com base numa extensa
experiência arqueológica, Thomas Huffman estabeleceu uma abordagem de análise das
sociedades Nguni baseada numa conexão cultural directa entre as evidências etnográficas
e os dados arqueológicos. O modelo conhecido por “Central Cattle Pattern” é
etnograficamente derivado e tem como ponto de partida o trabalho de Adam Kuper e o
seu conceito de “Cultura Bantu do Gado”. O modelo não parte de simples analogias
etnográficas, mas desenvolve uma abordagem interpretativa dos dados provindos da
investigação arqueológica, que permitem estabelecer relações complexas entre os códigos
espaciais dos aldeamentos e outros códigos simbólicos. A principal premissa desta
abordagem é a de que a organização social e a disposição espacial do aldeamento são
diferentes aspectos de uma mesma realidade e produtos de uma mesma visão do mundo.
À escala do modelo, a continuidade histórica dos padrões de organização do espaço da
aldeia constitui uma evidência da continuidade na organização social e na visão do
mundo. Por conseguinte, em termos metodológicos, onde não existem diferenças cruciais
entre os padrões de sedentarização, no presente etnográfico e no passado arqueológico,
haverá uma identidade fundamental na visão do mundo e nos modos de organização
social.202

199
Adam KUPER, op. cit., p. 10.
200
Monica HUNTER, Reaction to Conquest. Effects of Contact with Europeans on the Pondo of South
Africa, London, International African Institute of Oxford University Press, 1961, p. 134.
201
Carolan Postma OWNBY, op. cit., p. 158.
202
Thomas HUFFMAN, “The Central Cattle Pattern and interpreting the Past”, in S.A.H., Vol. 13, 2001, p.
23.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

De acordo com este modelo são enfatizados os princípios fundamentais que dão
ordem a uma sociedade, que estabelecem as relações entre os componentes físicos da
aldeia e os conceitos ligados ao parentesco e às forças da vida. Segundo Tom Huffman,
o “Central Cattle Pattern” original deriva da visão do mundo de dois grandes grupos
Bantus do Sudeste da África meridional, os Nguni e os Sotho-Tswana, que partilham uma
ideologia patrilinear, a preferência pelo gado na lobola, a hereditariedade da chefia por
via masculina e certas crenças sobre o papel dos ancestrais na vida diária.203
Huffman demonstrou a aplicação deste modelo em escavações da 1ª Idade do
Ferro (Early Iron Age) e aponta como exemplos KwaGandaganda, no vale do rio Umgeni,
província de KwaZulu-Natal, e Broederstroom, entre Johannesgurg e Pretória.204 Os
dados recolhidos nestes dois sítios arqueológicos apoiam de tal forma o modelo do
“Central Cattle Pattern”, durante a 1ª Idade do Ferro, que, segundo Huffman, se torma
inconcebível que noutros aldeamentos contemporâneos com idêntica assinatura cultural-
material e, por conseguinte, idêntica linguagem e visão do mundo, pudesse haver
organizações sociais e espaciais do aldeamento marcadamente diferentes. 205 O “Central
Cattle Pattern” demonstrara uma organização culturalmente específica de acordo com a
qual a cerca de gado se localiza no centro da aldeia, sendo este rodeado por habitações
que se organizam de forma circular ou semi-circular. O curral central é associado às
actividades masculinas, enquanto a área residencial ou doméstica é predominantemente
feminina. Se os textos do século XVI descrevem estabelecimentos sedentários que podem
corresponder ao padrão descrito, são insuficientes quanto a outros elementos
fundamentais que estruturam de forma mais completa a compreensão do passado. A
arqueologia fornece-nos outros dados materiais, como o dos sepultamentos e das áreas de
fundição, que tanto podem ocorrer fora da área da aldeia, como nas próprias áreas
domésticas.206 Sítios arqueológicos como Ndondondwane, na bacia do baixo Tukela,
suscitaram um debate aberto entre os arqueólogos da Idade do Ferro na África do Sudeste,

203
IDEM, ibidem, p. 21.
204
Em Broederstroom está atestada a prática da mineração em associação com uma área residencial em
torno de uma cerca de gado contendo, pelo menos, um enterramento de prestígio, uma cova de
armazenamento de estrume e restos de dois outros enterramentos, duas áreas de forja com grande
quantidade de escórias associadas e o chão de duas cabanas próximas. Um nível de ocupação mais elevado
continha chãos de três cabanas e quatro contentores de cereais. Cf. IDEM, ibidem, p. 30.
205
IDEM, ibidem.
206
Duncan MILLER & Gavin WHITLAW, “Early Iron Age metal Working from the site of
Kwagandaganda, Natal, South Africa”, in South African Archaeological Bulletin, 49, 1994, pp. 79-89.

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devido ao facto da área metalúrgica se encontrar no interior do aldeamento, quando são


conhecidas as restrições e tabus que durante a Segunda Idade do Ferro (Late Iron Age)
envolvem a mineração e, por conseguinte, estabelecem a sua actividade fora do recinto
das aldeias.207 Perante os debates suscitados por Maggs, Greenfield e Tracy Luedke,208
Tom Huffman sublinha que o modelo se baseia em princípios fundamentais de
organização e que, como em qualquer sociedade, haverá sempre uma variedade de
costumes causados por outros factores e outros traços culturais sem significado crucial
no estabelecimento do padrão espacial. As continuidades de longa duração, como a lobola
e a organização espacial das aldeias, cuja centraliade material e simbólica está no gado,
indicam a presença de sociedades com os mesmos atributos culturais. 209 A percepção das
próprias sociedades sobre este padrão de organização espacial está atestada em gravuras
nas rochas, nas quais a representação gráfica de um anel de cabanas envolve a cerca do
gado.210
Nestas sociedades, as relações entre os membros de cada aldeamento tinham, na
sua base, o parentesco e o chefe da aldeia (umninimzi) era o homem mais velho da
linhagem, aquele que assumia o protagonismo das práticas religiosas e que, de acordo
com o costume, seria sepultado dentro da cerca central do gado.
Cada aldeamento correspondia a um clã, enquanto unidade de parentesco
independente, e estava ligado aos seus vizinhos pelas necessidades locais de cooperação
nas pastagens, nas caçadas, nas celebrações festivas, na defesa militar e nas épocas de
crise. Neste sentido, tornava-se inevitável um conceito de territorialidade baseado na

207
Haskel Joseph GREENFIELD, Duncan MILLER, “Spatial patterning of Early Iron Age metal
production at Ndondondwane, South Africa: the question of cultural continuity between the Early and Late
Iron Ages”, in Journal of Archaeological Science, 31, 2004, pp. 1511-1532; Haskel Joseph GREENFIELD,
“On the Nature of daga houses, kraals, metallurgy and intra-settlement spatial organization of EIA
settlements in Southern Africa: a response to Whitelaw”, in Azania, XLI, 2006, pp. 165-178. Greenfield
sugere uma revisão do modelo “Central Cattle Pattern” na compreensão da natureza da sociedade no EIA.
Cf. ibidem, p. 175.
208
Tracy LUEDKE, “Gendered states. Gender and agency in economic models of Great Zimbabwe”, in
Karen Anne PYBURN (Editor), Ungendering Civilization, New York-London, Routledge, 2004, pp. 47-
70. Tracy Luedke critica o modelo “Central Cattle Pattern” devido à análise se expressar espacialmente
através de dicotomias, tais como: estatuto elevado/estatuto baixo; direita/esquerda; dentro/fora; e
masculino/feminino. Cf ibidem, p. 56.
209
Deve sublinhar-se que, neste nível de profundidade cultural, a semelhança entre o presente e o passado
não nega a historicidade destas sociedades, antes pelo contrário, permite conhecer o contexto no qual têm
desenvolvido a sua história.
210
Tim MAGGS, “Patterns and perceptions of Stone-built settlements from the Thukela Valley, Late Iron
Age”, in Annals of the Natal Museum, Vol. 29(2), Outubro 1988, pp. 417-432. Sobre as gravuras em rocha,
pp. 425-431.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

autoridade. Na sociedade Nguni, tal autoridade tomou a forma de chefatura hereditária


em que o chefe, ao garantir a contínua estabilidade do sistema social, beneficiava de
tributos e outras obrigações por parte da comunidade.211
A organização sócio-política baseava-se em dois princípios de natureza e
ideologia diversa. De um lado, a autoridade centrada no clã, no parentesco e no espaço
da aldeia, de outro lado, a autoridade baseada no domínio territorial, centrada na figura
do chefe. Os chefes identificavam-se com o Estado no sentido em que exerciam o poder
nas esferas executiva, militar, judicial e fiscal. O aparato estatal de um chefe Xhosa, por
exemplo, não se organizava burocraticamente, sendo antes uma agregação variável de
pessoas referidas como os ibandla, ou seja, as pessoas que, em dado momento, estavam
voluntariamente reunidas à sua volta.212 Os conselheiros eram os que exerciam as funções
dos velhos chefes de clãs, obrigados a prestar ajuda enquanto estivessem ao serviço do
chefe supremo. A ideologia do parentesco era, neste sentido, utilizada em favor da
autoridade do chefe, o grande proprietário das terras e dos gados. Porém, a lealdade dos
conselheiros também era, em certa medida, voluntária, pois havia sempre a possibilidade
de se evadirem e criarem vínculos noutra chefatura. Por esta razão, o chefe tinha que ser
generoso para com os conselheiros e ibandla, partilhando com eles uma boa proporção
das suas aquisições.213 Segundo Peires, apesar da ideologia subjacente à autoridade do
chefe ter sucedido a do parentesco, em determinado momento histórico, nunca a
substituiu por completo.214
Entre os meados do século XVI e durante o século XVII, as margens do rio
Umzivumbu assistiram à fixação dos Mpondo, descendentes do clã real de Nyawuza,
como nação autónoma, exercendo o seu poder sobre outros clãs locais e expandindo-se
até ao rio Mtavuna. Tradições orais, recolhidas na primeira metade do século XIX por
Charles Pacalt Brownlee215, enquanto Secretário dos Assuntos Nativos ao serviço do
governo colonial, referem o seguinte:

211
Jeff PEIRES, Before and After Shaka. Papers in Nguni History, (…), p. 6.
212
IDEM, ibidem, p. 132.
213
IDEM, ibidem, p. 133.
214
IDEM, ibidem, pp. 135-136.
215
Charles Pacalt Brownlee era o filho mais velho do reverendo John Brownlee, nascido na Escócia, em
1791, e enviado para o Cabo Oriental como missionário, ao serviço da London Missionary Society, tendo
sido o fundador da cidade de King William’s Town, onde faleceu, a 21 de Dezembro de 1871. Seu filho
mais velho, Charles, nasceu no Cabo Oriental, em 1821. Cedo saiu de casa dos seus pais para acompanhar,
como intérprete, os missionários americanos no Natal, pois dominava as diversas línguas dos Nguni do Sul.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

“Ten or twelve generations back, the Pondos under their chief Tahle were settled near the
coast on both banks of the Umzivumbu, and about this time, judjing genealogically, the
Xesibes under Di, the ancestor of Jojo, migrating from the Impafane, a tributary of the
Tugela, settled on the Umtavuna which now forms the boundary between the Colony of
Natal and Pondoland”.216

De acordo com este registo proveniente da oralidade, os Mpondo ter-se-iam fixado


nas margens do rio Umzivumbu dez ou doze gerações antes do ano 1836, data em que
Brownlee esteve na terra dos Mpondo e recolheu a tradição oral. Se estimarmos uma
média de 25 anos para cada geração, podemos assinalar a chegada dos clãs Mpondo ao
rio Umzivumbu nos meados do segundo milénio. No entanto, como já referimos
anteriormente, a estimativa do tempo de cada reinado/geração é falível. 217 Quanto ao
chefe Tahle218, o seu nome figura como o quinto governante numa lista genealógica da
casa real, na linha de sucessão da “Casa da Mão Direita”,219 que se separou da casa mais
antiga dos chefes Mpondo a seguir ao reinado de Ncindise. Através desta segmentação
fundou-se uma nova unidade política, da qual Tahle foi chefe reinante, entre 1536 e 1586,
sendo de considerar as devidas margens temporais. Não sendo Tahle aquele que exercia
a autoridade máxima, aquando da sedentarização das comunidades Mpondo nas margens
do rio Mzivumbu, foi o chefe que a memória fixou.

Mais tarde, fixou-se como fazendeiro na zona que assistiu às sangrentas “Guerras Xhosa” ou “Guerras de
Fronteira”, tendo mediado a paz assinada no final da sétima destas guerras (1846-1847), ocorrida nas
margens do rio Keiskamma, entre as tropas do poder colonial e os guerreiros do chefe Sandile (Gaika). Pelo
profundo conhecimento das línguas e costumes locais, Brownlee ocupou a posição de Secretário dos
Assuntos Nativos e Comissário da Administração da Justiça para os Gaika. As suas Reminiscências sobre
a vida e a história Kaffir são, acima de tudo, um testemunho contemporâneo da vida dos povos forçados a
integrar a British Kaffraria.
216
Brownlee esteve na Terra dos Pondo em 1836, como Secretário dos Assuntos Nativos. Cf. Charles
BROWNLEE, Reminiscences of Kaffir Life and History, and Other Papers, Lovedale, Lovedale Mission
Press, 1896, ps. 82 e 195.
217
Jan VANSINA, “Once upon a Time: Oral Traditions as History in Africa, Daedalus, vol. 100, Nº. 2,
The MIT Press, 1971, p. 447. http://www.jstor.org/stable/20024011 (consultado em 20/08/2021)
218
Hazel CRAMPTON, The Sunburnt Queen, Johannesburg, Jacana, 2005 (reimpressão da edição de 2004),
p. 47. As listas apresentadas pela autora baseiam-se sobretudo nos levantamentos da tradição oral presentes
na obra de John Henderson SOGA, op. cit..
219
William David HAMMOND-TOOKE, “Segmentation and Fission in Cape Nguni Political Units”, in
Africa: Journal of the International African Institute, Vol. 35, No. 2 (Apr., 1965), pp. 143-167. Jeff
PEIRES, “The rise of the «Right-Hand House» in the History and Historiography of the Xhosa”, in History
in Africa, vol. 2, 1975, pp. 113-125. Entre os Nguni, as unidades sócio-políticas genealogicamente
aparentadas formavam um grupo e reconheciam por soberano o chefe da formação mais antiga. Através da
segmentação e da cisão na linha de sucessão estebeleciam-se novas unidades políticas. O processo de
fragmentação foi facilitado pela existência da “Grande Casa” e da “Casa da Mão Direita”, à qual o costume
reconhecia a possibilidade de se separar e fundar a sua própria autoridade.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Os Mpondo, tal como os Xhosa, fixavam as suas aldeias ao longo das colinas,
virados para leste, e tinham nos currais de gado a sua maior riqueza material, social,
económica e espiritual.

O ferro, matéria-prima de ferramentas e armas, tinha grande valor entre estas


comunidades. Porém, os depósitos minerais escasseavam nos territórios onde se fixaram
e somente através de longas rotas comerciais por terra, com os Sotho, os Tswana e
diversas comunidades vivendo a norte do rio Tukela220, era possível adquirir tanto o
cobre, como o ferro.221 A ocorrência de náufragos, passando ocasionalmente pelos seus
territórios, permitiu o acesso a objectos de ferro e cobre, que eram trocados por cabeças
de gado e outros víveres indispensáveis à sobrevivência e à continuidade dos percursos
por terra, rumo à baía de Lourenço Marques e ao reino do Inhaca.

O autor do manuscrito anónimo (1593) afirmava que, ao fim de um mês de


caminhada dos náufragos na direcção nor-nordeste, chegaram a um rio considerado o
maior que até aí passaram. É provável que se tratasse do rio Umtavuna ou do Umzimkulu,
pois a partir deste imponente curso de água inflectiram a caminhada na direcção les-
nordeste, uma vez que para norte e noroeste predominavam as serrarias “medonhas” e
“carregadas”, certamente os maciços centrais da cadeia montanhosa do uKhalamba-
Drakensberg.222

Os territórios a norte do Umtavuna eram mais densamente povoados, mas as


aldeias continuavam a corresponder a grupos de parentesco, cada um sob a autoridade de
um chefe (inKosi). Entre as comunidades implantadas mais junto à costa praticava-se uma
economia agro-pastoril, na qual o gado tinha um lugar central, mas em que a abundância
de cabras, carneiros e aves domésticas bem como o cultivo de cereais, como o sorgo e o

220
As comunidades que formaram o povo Hlubi viviam, antes do século XVIII, a norte do rio Mzinyathi
(rio Buffalo). Durante o século XVIII fixaram-se numa área entre as montanhas doDrakensberg e os
afluentes do rio Thukela: os rios Mpofana (Mooi), Mtshezi (Bushmans), Msuluzi, Njesuthi e Mnambithi
(Klip). Este povo tinha na metalurgia uma importante actividade e era intermediário no comércio do minério
de ferro, que importava, transformava e exportava para outras comunidades muitas centenas de quilómetros
a sul, entre as quais os Mpondo. Veja-se John WRIGHT e Andrew MASON, The Hlubi Chiefdom In
Zululand-Natal, a History, Ladysmith, Ladysmith Historical Society, 1983, p. 8.
221
Jeff PEIRES, The House of Phalo. A History of the Xhosa People in the Days of their Independence,
(…), p. 109.
222
Perdição da nao Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, costumes dos que a abitão ate o Cabo das
Correntes, in Glória de Santana PAULA, op.cit, p. 147.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

nachenim (Eleusine coracana), os legumes e os vegetais da família das cucurbitácias


enriqueciam a dieta alimentar.223

Foi nestas terras, correspondentes à região do Natal, que os náufragos da nau Santo
Alberto (1593) destacaram uma zona de abundância a que puseram o nome de “Vale da
Misericórdia”.224 Aqui resgataram vacas, cabras, galinhas, leite, manteiga, mel, grãos,
feijão e milho em troca de pregos, pedaços de cobre, caldeirões, bem como contas de
vidro e de coral, que ofereciam aos chefes que lhes providenciavam guias. São descritos
os prados cobertos de gado que se estendiam para além das aldeias povoadas de muita
gente. A abundância destas comunidades provinha, não apenas do pastoreio, mas também
do amanho da terra. Cada família cultivava o suficiente para se alimentar e os excedentes
destinavam-se às trocas. A recolecção de frutos e raízes e a caça certamente
complementariam a dieta destas comunidades.

A forma de saudação era diversa da que caracterizara os primeiros grupos,


encontrados nas terras mais meridionais, e o tipo físico era também diferenciado: “estas
jentes destas aldeias são todos como mulatos”.225 Tratava-se, certamente, de grupos
Khoisan miscigenados com Bantus, cuja interacção cultural se intensificou a partir do
segundo milénio.
A norte da terra do Natal, os náufragos da Santo Alberto atravessaram uma zona
“deserta”, caminhando durante três dias por terras despovoadas, muito provavelmente
uma área de transição entre diferentes unidades sócio-políticas.226 As primeiras
povoações encontradas depois de percorrido o despovoado tinham uma maneira diferente
de saudar “dizendo nhanha, nhanha”.227 Só nove dias depois atravessaram um rio, que
provavelmente seria o Umfolozi228, antes de chegarem à lagoa de Santa Luzia. Aqui, já
tinham oitenta e quatro dias de caminhada e, nesta zona encontraram tantas povoações
abastadas, que os sobreviventes do naufrágio da nau S. Tomé tinham designado de “Rio

223
Andrew DUMINY e Bill GUEST, Natal and Zululand, from Earliest Times to 1910. A New History,
Pietermaritzburg, University of Natal Press, 1989, p. 36.
224
Perdição da nao Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, costumes dos que a abitão ate o Cabo das
Correntes, in Glória de Santana PAULA, op.cit, p. 149.
225
IDEM, ibidem, p. 145.
226
Monica WILSON and Leonard THOMPSON, op. cit., p. 85.
227
Perdição da nao Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, costumes dos que a abitão ate o Cabo das
Correntes, in Glória de Santana PAULA, op.cit, p. 155.
228
IDEM, ibidem, p. 158.

63
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

da Abundância”.229 Estas comunidades praticavam uma economia mista, baseada na


pastorícia, agricultura e pesca, pois foram referidas as inúmeras armadilhas de peixes que
os pescadores locais deixavam no areal à espera da maré enchente. Pela primeira vez,
para além de galinhas, feijões, ovos, milho e carneiros, resgataram muitas tainhas e outros
peixes.230
Parece tratar-se de uma comunidade culturalmente diversa dos Nguni, entre os
quais se praticava a interdição de ingerir peixe. Este tabu cultural demarcava-os não só
dos Tsonga, mas também de algumas comunidades do nordeste da costa do Natal que
teriam evoluído de uma das ramificações do proto-Nguni, os Lala, que se caracterizavam
por padrões de fixação junto à costa e utilização do peixe.
Uma vez que entre os Nguni existiria um tabu relativo à ingestão de peixe e que
tanto a arqueologia como a linguística parecem confirmar este facto, os Lala teriam
adoptado a actividade da pesca e o próprio verbo “pescar” de povos que aí se fixaram
antes da expansão Nguni para sul do rio Limpopo.231 W. D. Hammond-Tooke fala de um
“enclave Lala”, dentro da área Nguni, que teria ocupado partes do centro e sul do Natal,
e de cuja identidade cultural pouco se sabe. Acrescenta que estas comunidades,
dispersadas ou destruídas no período Mfecane, deixaram alguns vestígios linguísticos até
aos nossos dias, que se caracterizam por trocas de sons e enfraquecimento das consoantes,
em semelhança com o que sucede no Shona e no Tsonga.232 Estamos perante uma área de
fronteira cultural, na qual os hábitos e modos de vida parecem expressar clivagens sócio-
identitárias. Tais clivagens estão associadas à vasta fronteira entre os povos Nguni e os
Tsongas que, de acordo com referências da documentação portuguesa do século XVI, se
estenderia numa área alargada a norte do Natal, entre a lagoa Mhlathuze 233 e a lagoa de
Santa Luzia.
Para este e sul, as comunidades Nguni interagiram com os Sala e os Khoisan. Para
oeste e noroeste, a história Nguni conduziu a uma crescente associação com os povos
falando Sotho, que ocupavam as estepes altas do sul do Transvaal,234 praticavam a criação

229
IDEM, ibidem, p. 159.
230
IDEM, ibidem.
231
Carolan Postma OWNBY, op. cit., pp. 91-93.
232
William David HAMMOND-TOOKE, The Bantu-speaking Peoples of Southern Africa, (…), p. 61.
233
Foi provavelmente a esta lagoa (actual Richard’s Bay) que os sobreviventes do naufrágio da nau S. Bento
(1554) chamaram de “Ponta da Pescaria”. Cf. Andrew DUMINY e Bill GUEST, op. cit., p. 40.
234
Carolan Postma OWNBY, op. cit., p. 85.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

de gado em maior escala, viviam em grandes aldeias, teriam uma maior coesão política e
praticavam o comércio a longa distância. Para norte, tinham como vizinhos, os povos
pertencentes ao grupo linguístico Nos textos do século XVI encontramos também
referências a pequenos grupos de caçadores, populações não absorvidas por estas grandes
formações culturais, nem em termos da estrutura sócio-económica, nem em termos
linguísticos e culturais.

1.3. Sociedades do litoral e sociedades do planalto, entre os rios Limpopo e


Zambeze

“Limpopo mobile belt” foi a designação atribuída pelos geólogos ao vale do rio
Limpopo e alguns dos seus afluentes, devido às variações fluviais aí ocorridas ao longo
dos tempos. Este factor, conjugado com os processos de erosão de milhões de anos, fez
com que no curso médio do rio se formassem grandes afloramentos de arenito e terraços
fluviais, ao lado de outros afloramentos basálticos e diques de dolerite.235 A vegetação
alternou entre a floresta de palmeiras ilala (Hyphaene natalensis), nos períodos mais
húmidos, e uma maior escassez na cobertura vegetal, que caracterizou os períodos mais
áridos, destacando-se as árvores de mopane (Colophospermum mopane), os imbondeiros
(Adansonia digitata) e outras espécies como Salvadora angustifolia236, ainda hoje
predominantes na paisagem.
O vale deste rio, a que os historiadores atribuem um papel de marcador fronteiriço
na África meridional, forneceu desde sempre recursos aos grupos de caçadores-
recolectores. Atraídos pelas águas e também por outros recursos como os minérios e as
manadas de elefantes, comunidades pertencentes à cultura Zhizo e, posteriormente, outro
povo pertencente à cultura Leopard’s Kopje, fixaram-se na bacia média do Limpopo e
fundaram entre cerca do ano 900 e o século XIII poderosos reinos, cujos vestígios
materiais foram exumados em sítios arqueológicos da margem sul, como Schroda, K-2 e
Mapungubwe.237 Entre a assinalável diversidade de vestígios, encontrados na bacia do

235
Thomas HUFFMAN, Mapungubwe. Ancient African Civilisation on the Limpopo, Johannesburg, Wits
University Press, 2001, p. 8.
236
IDEM, ibidem.
237
Andrie MEYER, The Archaeological Sites of Greefswald: Stratigraphy and Chronology of the Sites and
a History of Investigations, Pretoria, University of Pretoria, 1998. Do mesmo autor, “K2 and

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Shashi-Limpopo, destacamos as contas de vidro, que atestam a participação destes


estados do interior numa rede comercial ligada ao Índico.
A emergência e queda dos estados do Limpopo associam-se às condições
climáticas da bacia deste rio, em que períodos de seca conduziram ao abandono dos sítios
e à migração para outras áreas mais húmidas.
Tanto o Limpopo como o Zambeze funcionaram historicamente como marcadores
geográficos, linguísticos e culturais, embora tais divisórias jamais possam ser vistas como
rígidas.
Na grande extensão territorial, que fica entre os vales destes rios, torna-se
necessário separar as terras altas da savana das terras baixas, quentes e húmidas, onde os
matos facilmente se infestam de mosca tsé-tsé.
Dada a relativa unidade geográfica das terras elevadas entre o Kalahari e o Oceano
Índico e entre os vales do Limpopo e do Zambeze, David Beach designou de “Planalto”
os territórios do interior onde decorreu a história dos povos Shona que se identificam
como descendentes dos povos associados à entidade política Caranga.238 Aí predominam
as savanas, um clima marcado por grandes amplitudes térmicas, por um padrão de chuvas
regulares e abundantes, que se tornam raras à medida que se avança no sentido ocidental,
onde começam as areias do extenso Kalahari.
Para leste, no sentido do Índico, segundo Malyn Newitt a “água que brota das
terras altas é recolhida por grandes rios e levada através das planícies rumo aos baixios
da costa. Aí, os rios depositam os seus resíduos que, uma vez misturados com a areia do
mar, formam um mundo de terrenos pantanosos, línguas de areia e florestas de
mangues.”239
Para Newitt, que se baseia em Thomas Huffman e David Beach, as savanas de
entre o Limpopo e o Zambeze eram o coração da cultura Shona, uma espécie de “ilha”
cultural e económica, mas que penetrou e dominou muitas das terras baixas que
constituem o actual estado de Moçambique.240 Paul Landau, por sua vez, chama a atenção
para a construção histórica que tem acentuado a subjectividade do grupo étnico Shona,

Mapungubwe”, Goodwin Series, vol. 8, South African Archaeological Society, 2000, pp. 4–13.
https://doi.org/10.2307/3858042 (consultado em 22/08/2021)
238
David BEACH, The Shona &Zimbabwe (900-1850). An Outline of Shona History, London, Heinemann,
1977, p. 3.
239
Malyn NEWITT, História de Moçambique, Lisboa, Publicações Europa-América, 1997, p. 46.
240
IDEM, ibidem, p. 47.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

considerado o autor colectivo que desenvolveu o estado do Zimbabwe, mas que não se
pode provar que existitiria como tal em 1400.241 O arqueólogo e historiador de arte, Peter
Garlake, exprime também as suas reservas quanto à designação de Shona para os séculos
XV e XVI, considerando que a influência do Grande Zimbabwe tem sido exagerada e que
vários outros centros partilharam a paisagem à sua volta.242
Nas terras planálticas a sul do Zambeze distinguem-se duas áreas predominantes:
a região do Dande, correspondente às terras do norte, aptas para a agricultura, e a região
de Guruuswa, uma espécie de “Crescente” entre o Save e o Limpopo, nas terras altas do
sul, mais secas e apropriadas à criação de gado.
As comunidades humanas aqui existentes praticavam a agricultura, a mineração
do ouro e tinham no gado a sua principal riqueza. A análise das tradições cerâmicas,
nomeadamente a decoração e a grande diversidade de formas do vasilhame produzido,
tem funcionado como um marcador cultural que permite observar as variações ocorridas
de uma região para outra e ao longo do tempo. Uma das classificações latas, mas não
universalmente aceite, é a de que a cerâmica do planalto zimbabweano, em Guruuswa, se
integra no vasto “Complexo Chifumbaze”, associado à chegada dos povos Bantu nos dois
primeiros séculos do primério milénio d.C..243 Beach pretende ver um continuum entre as
primeiras comunidades de agricultores, presentes no planalto desde c. de 200 e os povos
Shona, que considera terem vivido nas terras do Crescente desde antes de 1500. Esta
posição, muito discutível, baseia-se na própria continuidade dos estilos cerâmicos do
sudoeste do planalto.244
Na zona do “Grande Crescente”, particularmente nos territórios entre o Save e o
Limpopo, destacou-se a cultura conhecida por Leopard’s Kopje, correspondente a
sociedades que viviam no topo das colinas rochosas, onde as aldeias cresciam à medida
que aumentavam as manadas de bovinos e se intensificava a mineração do ouro.
Pelo menos desde c. de 1100, que se afirma uma dinastia reinante, do grupo
Gumanye, associado à cultura Leopard’s Kopje, cujo poder e riqueza se correlacionam
com o aumento de cabeças de gado e o estabelecimento de rotas comerciais entre as
jazidas auríferas do sudoeste do planalto e a costa índica. A elite governativa tornou-se

241
Paul Stuart LANDAU, op. cit., p. 44.
242
IDEM, ibidem, p. 45.
243
David BEACH, The Shona and their Neighbours, (…), p. 35.
244
IDEM, ibidem, p. 39.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

poderosa e rica com a acumulação de gado, a que se juntou o controlo direto das áreas de
mineração, a taxação da extração mineira e dos mercadores em trânsito, que pagavam
uma percentagem dos bens de comércio que desejavam trocar por ouro e marfim.245
Descobertas arqueológicas feitas na baía de Vilanculos, em frente ao arquipélago
do Bazaruto, parecem apontar para a existência nesse local de um dos mais antigos centros
de comércio costeiro, onde foram encontradas cerâmicas persas e vidraria islâmica, assim
como contas de vidro amarelas, verdes e azuis, análogas às de K-2 e Shroda. Segundo
Thomas Huffman, algumas contas azuis tubulares desta série são do mesmo tipo que as
contas de vidro mais antigas encontradas no Zimbabwe.246 Os contactos das sociedades
do planalto com as cidades-estado do litoral Índico consolidaram o poder da elite e, em
breve, os centros urbanos do planalto destacariam áreas circundadas com muros de pedra
(os zimbabwes), que se identificavam com o espaço do grupo dirigente.
A estrutura urbana do Grande Zimbabwe atesta uma história de acumulação de
poderes, em que se conjugam o político, o económico e o religioso, bem como uma
crescente complexidade social. Para Huffman, tal complexidade é expressa no próprio
esquema urbano do Grande Zimbabwe. O gado, considerado capital e elemento de
riqueza, não era guardado no centro.
Enquanto para os povos Nguni, do sul do Limpopo, foi constatada a presença de
um padrão de organização do espaço social, que Huffman designou de “Central Cattle
Pattern” (CCP), para o Zimbabwe, o mesmo arqueólogo observou um esquema urbano
diferenciado que designou de “Zimbabwe Plan” (ZP). Nas cidades ZP, não só o curral de
gado ficava fora da corte dos homens, como também existia um centro complexo e
diferenciado que albergava a torwa247e outras instituições de género. Este padrão urbano,
que proliferou entre os povos falantes de línguas pré-Shona, no ambiente pós 1400, teria

245
David BEACH, “Cognitive Archaeology and Imaginary History at Great Zimbabwe”, in Current
Anthropology, vol. 39, no. 1, 1998, p. 56. www.jstor.org/stable/10.1086/204698 (Consultado em
8/07/2020)
246
Thomas HUFFMAN, “L’Afrique méridionale au sud du Zambèze”, in Histoire Generale de l’Afrique,
III. L’Afrique du VIIe au XIe siècle, Paris, UNESCO/NEA, 1990, p. 719.
247
Torwa é, de acordo com David Beach, a designação Shona para um conjunto de membros da elite
governativa não ligados pelo parentesco, que residiam num determinado espaço, dentro do perímetro do
Grande Zimbabwe. Veja-se David BEACH, “Cognitive Archaeology and Imaginary History at Great
Zimbabwe”, in Current Anthropology, (…), p. 57.
www.jstor.org/stable/10.1086/204698 (Consultado em 8/07/2020)

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

surgido como a única grande diferenciação entre a massa de estabelecimentos em que


predominava o padrão central do gado.248
Aos primeiros contactos dos portugueses com as sociedades do interior do
planalto pareceu evidente o colapso da grande chefatura Caranga, tal como é designada
nas fontes portuguesas, ou “dinastia Shona”, como David Beach prefere chamar. Quando
o Grande Zimbabwe começava a declinar, emergia a norte do planalto o Estado que os
portugueses do século XVI designaram por “Império do Monomotapa”. As tradições orais
falam de um chefe, o Mutota, que abandonou o Grande Zimbabwe em busca de sal,
comércio e terras de pastagem e que fundou uma nova dinastia, entre 1425 e 1450. As
várias tradições das origens deste Estado acentuam a sua génese no sul, o que de resto é
confirmado pela arqueologia que permitiu analisar um padrão de progressão de
zimbabwes construídos no sentido norte, por membros da elite política, durante os séculos
XIV e XV.249 As linhagens Caranga ter-se-iam deslocado para norte em busca de
pastagens para o gado, de terras mais próximas das grandes manadas de elefantes, do ouro
aluvial dos afluentes do Zambeze, das jazidas de sal e de cobre. Enfim, o objectivo estaria
ligado ao domínio mercantil250, em função do qual a rota fluvial do Zambeze oferecia
vantagens relativamente à do Save, como forma de acesso ao Índico. A carta de Diogo de
Alcáçova para o rei D. Manuel251, em 1506, descreve conflitos no seio das elites Caranga,
que conduziram à dispersão de chefaturas e ao estabelecimento de um novo poder a norte,
junto à escarpa do Zambeze. Para além dos factores referidos pela tradição oral, é
provável que a conflitualidade entre as elites Carangas tenha, de facto, contribuído para
o abandono do Grande Zimbabwe e para o estabelecimento da chefatura do Muene
Mutapa.252
No norte, o poder do Muene Mutapa deu continuidade à tradição ZP e cresceu em
riqueza. No sul, o estado do Butua deu também prosecução ao poder, de acordo com o
modelo ZP. Beach refere-se a Butua como o estado Torwa (torwa), usando a mesma

248
Paul Stuart LANDAU, op. cit., p. 45.
249
IDEM, ibidem, p. 101.
250
Alberto da Costa e SILVA, A Enxada e a Lança. A África antes dos portugueses, São Paulo, Editora
Nova Fronteira -Editora da Universidade de S. Paulo, 1992, p. 408.
251
“Carta de Diogo de Alcáçova para El-Rei”, in Documentos sobre os Portugueses em Moçambique e na
África Central, Vol. I (1497-1506), Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, National Archives
of Rhodesia and Nyasaland, 1962, pp. 388-401. (Doravante D.P.M.A.C.).
252
Malyn NEWITT (Editor), East Africa. Portuguese Encounters with the World in the Age of Discoveries,
(…), p. xviii.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

palavra que definiu os actores da elite política que construíram o Estado do Grande
Zimbabwe. Butua, como Estado satélite do Grande Zimbabwe assistiu à emergência da
dinastia Changamira, que havia de construir os seus estabelecimentos ao longo do rio
Save. Trata-se das chefaturas Rozvi que floresceram a norte do Limpopo, cujas estruturas
urbanas incluem fortificações em pedra, num novo tipo de povoamento identificado por
Maggs como “tipo – V”.253
Posteriormente, em meados do século XV, o Estado do Mutapa, sediado na região
de Dande, entre os rios Mazowe e Hunyani (Manyame), conquistou todas as terras ao sul
do Zambeze e ao longo da costa até ao rio Save. A rota prioritária de ligação do interior
aos litorais do Índico passava a fazer-se através do rio Zambeze e seus afluentes, que se
desenvolveu, de forma crescente, como um espaço de interacção mercantil, conhecido na
documentação portuguesa como Rios de Cuama, Rios de Sofala ou Rios de Sena.254
Este eixo do poder político e económico, exercido por dinastias Caranga, no norte
do planalto, entrou em contacto com os portugueses, que estabeleceram relações
comerciais com o litoral desde os primeiros anos do século XVI. As fontes portuguesas
coevas mencionam as sociedades e os poderes do planalto como “Caranga” /
“Mocaranga”, associando esta designação aos construtores do complexo urbano do
Grande Zimbabwe e aos fundadores do famoso reino do Muene Mutapa. Isaacman
também designa estes Esatdos por “Karanga”, não adoptando o etnónimo Shona.
Em finais do século XVI, Frei João dos Santos diferenciava em termos linguísticos
os Mocarangas dos Botongas: aos habitantes do reino do Monomotapa “(…) chamam
mocarangas, porque todos falam a língua mocaranga; e por essa razão chamam também
a todas estas terras o Mocaranga, tirando as fraldas do mar destes reinos, porque em alguas
delas falam outras línguas diferentes, particularmente a língua botonga, polo que chamam
às mesmas terras Botonga, e aos habitadores delas botongas”.256
Enquanto os primeiros – os Carangas – exercem um domínio político-cultural
sobre as sociedades do planalto, os segundos – os Tongas – são descritos como um povo

253
Paul Stuart LANDAU, op. cit., p. 53.
254
Eugénia RODRIGUES, op. cit., p. 25.
256
Frei João dos SANTOS, Etiópia Oriental e Vária História de Cousas Notáveis do Oriente, (Introdução
de Manuel LOBATO; Notas de Manuel LOBATO e Eduardo MEDEIROS; Coordenação da fixação do
texto por Maria do Carmo Guerreiro VIEIRA), Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 1999, pp. 204-205.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

culturalmente diferenciado e geograficamente separado, bem como politicamente


independente do grande Estado da savana:

“(…) porque o Reino de Inhambane fica junto do Cabo das Correntes pera a banda do
Cabo de Boa Esperança, e do rio de Inhambane pera a banda da Índia vai correndo outro
Reino chamado Botonga, e acaba junto do rio da Sabia, de que é Rei o Sedanda, cujo
Reino vem correndo até perto de Sofala, e em Sofala se começa o Reino do Quiteve, e
chega até o rio de Tendanculo, e daqui corre o Reino do Manamotapa até o rio de Luabo;
e deste rio de Luabo até Moçambique são cento e trinta léguas ao longo da costa. Nas
quais terras há muitos reis de diferentes castas, e nações de cafres, e nenhum destes, nem
dos mais que nomeámos, paga tributo, nem vassalagem ao Manomotapa, antes todos são
livres, e supremos, e alguns deles têm guerra com o mesmo Manamotapa, como já
dissemos. Donde fica claro não estarem os Reinos de Inhambane, e do Manamotapa
juntos entre Sofala, e Moçambique, senão mui distantes, e apartados um do outro; nem
menos estes reis serem vassalos do Manamotapa, nem lhe pagarem tributo, nem menos
andarem seus filhos na sua corte.”. 257

Segundo David Beach, os povos construtores do Estado do Zimbabwe, falando


línguas pertencentes ao ramo Bantu da grande família linguística Niger-Congo, são mais
aparentados aos Bantus do Sul, como os Nguni, os Sotho, os Tsonga, do que aos povos
Bantu do norte do Zambeze.258 Apesar das dificuldades em traçar historicamente as
fronteiras linguísticas da região, devido às mudanças ocorridas nos últimos quatro
séculos, que envolveram movimentos de populações, ainda assim Beach define os limites
linguísticos do que considera ser a cultura Shona. A noroeste do planalto, os Shona dão
lugar a povos falando línguas da Zambézia do norte, como o Tonga do médio Zambeze e
o Leya. Ao longo do curso do rio Zambeze, povos falando línguas da Zambézia ocupam
a margem sul do rio e comunidades falantes de línguas Shona vivem na margem norte,
sendo o espaço cultural ao longo deste rio marcado por uma grande permeabilidade
linguística. As populações vivendo junto ao Zambeze, entre Tete e Sena, foram
classificadas como sendo Tonga do Zambeze.259 De Tete até ao mar, a situação é mais

257
IDEM, ibidem, pp. 218-220.
258
David BEACH, The Shona and their Neighbours, (…), p. 25.
259
IDEM, ibidem, p. 26.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

confusa, pois as comunidades são classificadas como pertencendo ao “Grupo Sena”,


numa zona em que a entidade política do Barué parece ter exercido o seu poder decorrente
de uma dinastia Shona, sobre comunidades Sena, a norte, e Shona, a sul do rio Pungwe.
Segundo Allen Isaacman, a peculiaridade geopolítica do Zambeze prende-se exactamente
com o facto de se constituir como área exterior à fronteira de numerosos Estados, tanto
as realezas Maláui, como os Estados do Muene Mutapa.260
No quadrante sudeste, as terras entre o Save e o Limpopo não foram capazes de
sustentar uma população densa, daí a atracção por zonas mais férteis, que conduziu
naturalmente a migrações para sul do Limpopo, para a região conhecida por
“Soutpansberg”, no curso médio deste rio. Os povos que assumem a denominação Venda,
apesar de distintos dos Shona, dos Sotho e dos Tsonga foram, por isso, historicamente
influenciados, tanto pelos Sotho, como pelos Shona, cujo desenvolvimento económico e
político se estendeu ao vale do Limpopo.261

As terras baixas entre o Cabo das Correntes e o norte do Natal eram espaços
habitados por comunidades Tsonga. As fontes portuguesas destacam, na foz do Limpopo,
os chefes da linhagem Inhaca, que controlavam o comércio da península e ilhas a sudeste
da baía de Lourenço Marques e com quem os portugueses estabeleciam o trato do
marfim.262
A historiografia do grupo linguístico Tonga-Tsonga tem sido marcada por uma
falta de consenso no que se refere tanto à classificação, como às relações entre os vários
povos que a falaram. Desde os trabalhos do missionário e etnógrafo suíço, Henri
Alexandre Junod263, que se estabeleceu uma problemática terminológica em torno deste
grupo linguístico africano. O termo ‘Tonga’, um empréstimo Nguni (Zulu), usado no
século XIX para se referir aos povos conquistados das áreas costeiras a norte do Natal,
foi usado com o mesmo sentido pejorativo em várias chefaturas do sul de Moçambique,
sendo que, pelo menos uma destas chefaturas seria mais tarde classificada como falando
língua Tsonga.

260
Allen ISAACMAN, Mozambique. The Africanization of a European Institution: the Zambesi Prazos,
1750-1902, Madison, The University of Wisconsin Press, 1972, p. 16.
261
IDEM, ibidem, p. 27.
262
Andrew DUMINY e Bill GUEST, op. cit., p. 42.
263
Henri Alexandre JUNOD, The Life of a South African Tribe, 2 Vols., 1912 e 1913.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Também no Zambeze, o termo foi aplicado a grupos conquistados ou tributários.


A hipótese explicativa apresentada por Isaacman para a existência de uma área Tonga
junto ao Zambeze, era a de que membros do clã Chilendje teriam chegado às margens do
Zambeze, a sul de Tete, e subjugaram um outro povo que incorporaram em chefaturas
Tonga. Tal facto poderia explicar a razão pela qual a realeza aí teria permanecido como
monopólio dos clãs Chilendje.264
Outra hipótese é a de que os clãs que ostentam o nome Chilendje sejam os
descendentes directos do primeiro Tonga a chegar ao Zambeze e todos os grupos
possuindo nomes de outros clãs fossem membros de grupos subsequentemente
assimilados.265 A organização política dos povos Sena, vivendo entre Sena e as bocas do
Zambeze, caracterizou-se historicamente por um notório paralelismo com a organização
política Tonga, e socialmente também foi marcada pela ausência de um clã real
dominante. Tal peculiaridade pode sugerir mais um movimento de migração de grupos
não aparentados, do que a ocorrência, no passado, de um movimento de conquista por
uma elite ou um grupo homogéneo.266
Quanto à origem do termo ‘Tonga’ na língua Nguni, Leroy Vail267 sugere duas
possibilidades. A primeira, é a alteração fonética causada pela palavra Tsonga /ronga/,
que significa ‘orientais’, e que em zulu se pronuncia /tonga/. Ou seja, o vocábulo tem um
significado geográfico, sendo empregue por povos do ocidente para se referirem a
comunidades vivendo a oriente.268 A segunda possibilidade é a de que, em período
anterior ao século XVI, os habitantes da costa Este, vivendo a sul do Save, eram chamados
de ‘Tonga’, e apesar da sua língua e cultura revelar afinidades com os grupos Tsongas e
Chopes, estudos de linguística histórica indicam uma diferenciação bastante pronunciada
entre os ‘Tongas’ e os ‘Tsongas’, sugerindo uma separação destes grupos em tempos
muito recuados.269 Apesar da imprecisão com que os Zulus usaram o termo ‘Tsonga’ no

264
Allen ISAACMAN, op. cit., p. 4.
265
IDEM, ibidem, p. 4.
266
IDEM, ibidem, p. 5.
267
Leroy VAIL (Editor), The Creation of Tribalism in Southern Africa, Berkeley – Los Angeles – Oxford,
University of California Press – California Digital Library, 1989, p. 85.
http://publishing.cdlib.org/ucpressebooks/view?docId=ft158004rs&chunk.id=d0e2273&toc.depth=1&toc.
id=d0e2188&brand=eschol (Consultado em 15/06/2018)
268
António RITA-FERREIRA, A Presença Luso-Asiática e Mutações Culturais no Sul de Moçambique
(Até c. 1900), Lisboa, Instituto de Investigação Científica Tropical, Junta de Investigações Científicas do
Ultramar, 1982, p. 45.
269
IDEM, ibidem.

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século XIX, os colonos adoptaram a palavra com um sentido geral e aplicaram-na aos
povos vivendo ao longo da costa, entre o norte do Natal e o rio Save, independentemente
das filiações culturais ou linguísticas. Devido à dimensão pejorativa e à própria
imprecisão de que o termo estava imbuído, este nunca foi usado pelo povo a quem se
aplicou. Somente no século XX, os linguistas tentaram expurgar as conotações abusivas
do termo, inicialmente introduzindo um /h/ aspirado e finalmente adoptando o termo
‘Tsonga’270, que continua a suscitar polémica, pois é visto como uma construção recente
que reduz uma realidade histórica e sociológica complexa e fluida a uma simples
“entidade étnica”, classificada como tal de acordo com os propósitos da administração
colonial.271
Apesar da polémica em torno da designação dos povos, que se relaciona tanto
com processos de construção da etnicidade, como com critérios definidos na base do
etnocentrismo colonial, há que considerar uma ampla identidade Tonga/Tsonga, baseada
em semelhanças linguísticas, numa estrutura social e numa cultura material comuns. O
consenso existe para o século XVIII, considerando-se que em territórios do sul de
Moçambique se distinguiam três grupos culturais – Tsonga, Chopi e Tonga. Os primeiros,
habitavam o sul de Moçambique e áreas adjacentes, os Tonga habitavam a área de
Inhambane e os Chopi a costa a norte da baía de Lourenço Marques.
As sociedades partilhando da identidade Tonga/Tsonga caracterizavam-se pela
fragmentação política. A base da sua organização era a aldeia governada pelo chefe de
linhagem (mfumu). Porém, existiam chefias (mambos) que estendiam o seu domínio sobre
um agrupamento de aldeias, por vezes com dimensões suficientemente grandes para que
os portugueses lhes chamassem “reinos”.272 O chefe (mambo) tinha importantes funções
religiosas e políticas e era assistido por um conselho de anciãos e um grupo de chefes das
aldeias (afumu/mfumu), geralmente os membros mais velhos da linhagem dominante
local.273
Enquanto a sul do Limpopo as comunidades Nguni eram estruturadas em torno de
uma economia pastoril, cujo significado social e correlação com o simbolismo do poder

270
Leroy VAIL (Editor), op. cit., p. 85.
271
Fumiko OHINATA, “The beginning of ‘Tsonga’ archaeology: excavations at Simunye, north-eastern
Swaziland”, in S.A.H., 2002, Vol. 14, p. 25.
272
Stanislaus I. Gorerazvo MUDENGE, A Political History of Munhumutapa c. 1400-1902, Harare, James
Currey, Zimbabwe Publishing House, 1988, p. 18. Malyn NEWITT, História de Moçambique, (…), p. 47.
273
Allen ISAACMAN, op. cit., p. 4.

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aumentaram gradualmente ao longo do segundo milénio, entre os Tsonga haveria muito


pouco gado, ou nenhum, sendo toda a terminologia para o gado de origem zulu.274 A
unidade cultural expressava-se através da língua e de manifestações religiosas como os
santuários das chuvas, de função vital para as comunidades de agricultores, e a crença nos
espíritos dos antepassados como zeladores da prosperidade comunitária. Tanto os
guardiões dos santuários como os médiuns que invocavam os espíritos dos antepassados
tinham um poder político que chegava a rivalizar com o poder dos chefes. As fraquezas
da chefatura Tsonga enquanto instituição estariam associadas, segundo Hammond-
Tooke, à ausência de gado nas terras baixas, onde os chefes se viam privados do principal
meio de acumulação e redistribuição de riqueza na região.275
Sobre estes mundos económicos, políticos, sociais, culturais e simbólicos em
mutação, os portugueses construíram imagens e representações que assentam em
estruturas de pensamento, ligadas à identidade e à leitura da diversidade, algumas forjadas
na longa duração, outras também, não menos determinantes, resultantes da dialéctica do
encontro e da interação entre os observadores viajantes e as populações locais.

274
William David HAMMOND-TOOKE, The Bantu-speaking Peoples of Southern Africa, (…), p. 69.
275
IDEM, ibidem.

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2. Estereótipos herdados: categorias e visões das gentes e das terras

2.1. Dos estereótipos dos Antigos à constatação da existência de um mundo


austral

A análise do discurso histórico relativo à África do sudeste nos séculos XVI e


XVII remete-nos para a complexa problemática da construção da alteridade e das
fronteiras identitárias entre o Mesmo e o Outro.
De acordo com o filósofo Emmanuel Lévinas, o pensamento ocidental ter-se-á
desenvolvido, desde os clássicos gregos, como um discurso de dominação em que a
Ontologia se perspectivou numa dimensão unificadora e totalizante, excluindo o
confronto e desvalorizando a diversidade, entendida como abertura para o Outro. A visão
Lévinasiana da alteridade remete para uma radical “desintegração do Eu intencional” e
“secundarização da sua primordialidade”, uma vez que o seu destaque, ao longo da
história ocidental, conduziu a uma “usurpação de toda a terra”.276
Para Lévinas a relação do Mesmo com o Outro assume uma dimensão metafísica,
uma projecção transcendente e uma imanência ética. A transcendência está na “passagem
ao outro, absolutamente outro”277, um Outro que é “infinitamente estranho”278, que é
condição da existência e condição, também, para que o eu construa a consciência de si,
da sua identidade e da sua relação com o mundo. O Outro metafísico de Lévinas “não é
um simples inverso da identidade, nem de uma alteridade feita de resistência ao Mesmo,
mas de uma alteridade anterior a toda a iniciativa, a todo o imperialismo do Mesmo; (…)
outro de uma alteridade que não limita o Mesmo, porque nesse caso o Outro não seria
rigorosamente Outro”.279 Nesta perspectiva, estamos perante uma consciência ética que
institui o “Eu-Outro”, passivo, que sai de uma ordem estabelecida e se oferece a uma
aliança com o que é excluído do mundo, numa relação de face-a-face assente numa
responsabilidade, num imperativo moral anterior à consciência do Eu.280

276
Maria Helena Mano PINHEIRO, Subjectividade Plural. Trajectos do Sofrimento em Emmanuel Lévinas,
Porto, Campo das Letras, 2001, p. 192.
277
Emmanuel LEVINAS, Totalidade e Infinito, 3.ª ed., Lisboa, Edições 70, 2008, p. 28.
278
IDEM, ibidem, p. 188.
279
IDEM, ibidem, p. 25.
280
Maria Helena Mano PINHEIRO, op. cit., pp. 193-195.

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A alteridade, enquanto ideia central do pensamento filosófico de Levinas, articula-


se de forma sistemática com as categorias de “totalidade”, “infinito”, “metafísica, “rosto”,
“ética”, implicando a supressão conceptual das fronteiras e limites culturais e identitários.
Ora, esta visão da alteridade não é mais do que um dos pontos de chegada da
reflexão filosófica acerca dos complexos processos de construção das identidades e
diferenças. Um ponto de chegada que assinala uma viragem no sentido em que concebe
uma humilde tomada de consciência acerca da anterioridade do Outro, bem como a
assunção de uma relação assimétrica de não exclusão, pressupondo uma visão
reconciliadora da História do Homem, em geral, e do encontro de povos e culturas, em
particular.
Vejamos qual terá sido o ponto de partida deste processo de construção das
identidades e diferenças no plano discursivo ocidental.
Se recorrermos ao texto de Hartog281 teremos uma desmontagem conceptual
daquilo que foi a fundação, no pensamento ocidental, de uma ordem discursiva que
interroga e confronta o Mesmo e o Outro. A narrativa homérica é esse elemento fundador;
a viagem, a oportunidade do confronto com a diversidade cultural, a experiência que
alarga o horizonte de possibilidades. Através da narrativa de viagem é construída uma
representação do mundo conhecido, a Oikuméne. Nesse mundo ordenam-se, inventariam-
se e classificam-se os povos. De um lado, os Gregos, de outro, os não-Gregos, os bárbaros,
sendo que as diferenças entre uns e outros são o resultado daquilo que Hartog designou
de “retórica da alteridade”.282
A categoria de “bárbaro” é talvez aquela que mais é mobilizada nos contextos de
viagem e confronto com a diferença. Os antigos Gregos e os herdeiros do seu sistema
conceptual, comparavam-se com os outros povos com os quais competiam pelos lugares
ricos da Terra. “Bárbaro” começou por ser um rótulo onomatopaico com conotações
distintamente negativas e que ficou disponível nas escritas europeias subsequentes.
Tornou-se uma designação etnocêntrica dirigida aos povos exteriores que diferiam dos

281
François HARTOG, Le Mirroir d’Hérodote. Essai sur la représentation de l’autre, Paris, Galimard,
1980.
282
IDEM, ibidem, p. 225.

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Gregos na submissão à lei de uma polis organizada, na língua falada, nos ideais literários
e artísticos, no urbanismo, atributos que eram vistos como a “norma”.283
Com o tempo, o termo “bárbaro” traduziu desconfiança pelos outros,
principalmente os guerreiros que usavam armas e tácticas imprevisíveis e cruéis (furor
barbaricus), estabelecendo uma “barreira moral” que dividia culturas e sociedades. 284
Uma vez que o processo histórico de construção da identidade cultural implica a
criação de fronteiras geográficas, estas últimas são também ponto de partida para a
definição da alteridade, do que é distante, do que não é familiar. Sendo as identidades,
por natureza, fluidas e multifacetadas, decorrem da forma como determinada sociedade
concebe e organiza o espaço, atendendo a um complexo conjunto de “conhecimentos,
signos e códigos específicos”.285 Neste sentido, os lugares, as regiões, os sectores
geográficos do mundo correspondem a “espaços mentais”286, ou seja, são criações do
homem. Seguindo a linha de revisão do discurso do encontro dos europeus com os outros
povos do mundo, iniciado por Tzvetan Todorov (1982)287, Anthony Pagden (1982)288,
Peter Mason (1990)289 e prosseguido por Edward Said e outros pensadores, podemos
afirmar que existe acerca do Ocidente, do Oriente e também da África, uma história e
uma tradição de pensamento, de imagens e um vocabulário conceptual que lhe conferem
“uma realidade e uma presença no e para o Ocidente”.290 O conhecimento sobre a África
e as suas populações foi-se construindo como um “corpo composto de teoria e prática” e
este é simultaneamente um modo de conhecer o Outro, mas também um filtro para se
poder penetrar na própria consciência ocidental.291
A respeito da imagem que o Ocidente foi construindo da extremidade meridional
de África e das suas populações salientam-se dois estudos, já mencionados na Introdução,

283
W. R. JONES, “The Image of the Barbarian in Medieval Europe”, in Comparative Studies in Society and
History, Cambridge University Press Vol. 13, No. 4 (Oct., 1971), pp. 376-377.
https://www.jstor.org/stable/178207 (Consultado em 1/09/2021)
284
IDEM, ibidem,p. 378.
285
Filomena SILVANO, Antropologia do Espaço. Uma Introdução, 2.ª edição, Oeiras, Celta Editora, 2001,
p. 44.
286
Henri LEFEBVRE, La Production de l’Espace, Paris, Anthropos, 1981, ps. 12 e 14.
287
Tzvetan TODOROV, A conquista da América. A questão do outro, São Paulo, Martins Fontes, 2021
(reimpressão).
288
Anthony PAGDEN, The Fall of Natural Man: The American Indian and the Origins of Comparative
Ethnology, New York, Cambridge University Press, 1982.
289
Peter MASON, Deconstructing America: representations of the other, London, Routledge, 1990.
290
Edward W. SAID, op. cit., p. 5.
291
IDEM, ibidem, p. 7.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

um pelo pioneirismo, e outro, pela proximidade da temática sobre a qual reflectimos.


Trata-se do trabalho de William G. Randles sobre a construção da imagem do sudeste
africano na Europa do século XVI292, a partir dos discursos literário e cartográfico, e da
tese de doutoramento de François-Xavier Fauvelle-Aymar293, sobre a construção no
Ocidente do estereótipo do Hotentote, aplicado às populações Khoikhoi, da região do
Cabo da Boa Esperança. Ambas as obras colocam a tónica na construção das imagens e
estereótipos, enquanto estruturas de longa duração, cuja análise deve ser empreendida a
partir de uma multiplicidade de discursos que veiculam, ao mesmo tempo, o olhar sobre
o Outro em determinado momento histórico, mas também a ética e as estruturas de
pensamento do sujeito produtor do discurso.
Os viajantes que nos deixaram os seus testemunhos, os cronistas e escritores que
compilaram informações relativas à diversidade do orbe, ou os cartógrafos que
projectaram graficamente as diversas secções do planeta eram os portadores de uma visão
do mundo centrada nos valores civilizacionais da Europa Cristã Ocidental e esta, por sua
vez, herdeira de muitas expressões culturais do mundo mediterrânico Antigo. De acordo
com a matriz valorativa desta civilização ocidental era feita a classificação das terras e
dos povos com quem os portugueses estabeleceram interacção no quadro do processo
expansionista e das diferentes configurações imperiais. Tal classificação, que emana do
próprio entendimento do mundo, tem as suas raízes na cultura clássica e ganha força de
validação nas Escrituras.294 Uma longa tradição é constantemente retomada, seja nos
discursos de natureza teórica, seja naqueles que decorrem de um conhecimento empírico,
sempre que o sujeito produtor do discurso se confronta com descontinuidades no plano
das manifestações culturais.
Assim, é da Antiguidade que provém o termo Ethiopia ou Aethiopia que, na
cultura grega designou em termos latos, não apenas a África sub-egípcia, mas também
toda a massa do continente que se estendia para sul das franjas mediterrânicas. Os Gregos
designavam por Aethiops os ocupantes destas terras, significando a palavra “homem com

292
William G. L. RANDLES, op. cit.
293
François-Xavier FAUVELLE-AYMAR, L’Invention du Hottentot. Histoire du regard occidental sur les
Khoisan (XVe-XIXe siècle, (…).
294
José Augusto MOURÃO, “As duas culturas: o cruzamento dos saberes (in)sustentáveis”, comunicação
apresentada ao Congresso, in José Eduardo FRANCO (Coord.), Obra Selecta de José Augusto Mourão, O
Vento e o Fogo, a Palavra e o Sopro, o Espelho e o Eco, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2017,
pp. 611-629.

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o rosto negro, queimado pelo sol”.295 A pigmentação da pele, decorrente da variante


ambiental, era o traço distintivo do Aethiops. Este traço físico funcionou, na Antiguidade,
como um critério por referência ao qual eram medidas as gradações cromáticas dos povos
que habitavam o mundo conhecido.
Os termos Ethiopia e Aethiops parecem ter sido correntes nos tempos
homéricos296 e constituem, porventura, dos mais antigos registos dentro do vasto léxico
da Antiguidade histórica297 aplicando-se tanto a africanos negróides que viviam no espaço
mediterrânico, como aos habitantes dos territórios mais distantes da África. Aethiops
designava populações que integravam os Outros, no âmbito de um quadro cosmológico e
etnográfico dos povos do Mediterrâneo.298 Quanto à palavra Ethiopia, parece ter existido
alguma indefinição relativamente aos territórios africanos a que se aplicava, no entanto,
os Gregos, desde Heródoto a Diodorus Siculus, confinaram o termo à Núbia Meroítica.
No século V a. C., Heródoto registava nas suas Histórias o conhecimento do
mundo grego acerca dos povos geograficamente mais distantes. Sobre o reino dos etíopes,
o texto expressa uma simbiose entre o conhecimento da terra historicamente cobiçada
pelo imperador persa Cambyses II e uma terra mítica, onde se localizava a “Mesa do Sol”,
um vasto prado abundante em carnes que a própria terra renovava, onde os grilhões eram
feitos de ouro e existiria uma fonte da longevidade. Etiópia, essa terra encantada,
localizava-se nos confins do mundo e os seus habitantes, os etíopes, eram descritos como
um povo longínquo, falando uma língua distinta, e também como os mais altos e formosos
de todos os homens.299 Diz Heródoto que o imperador persa teria enviado espiões à terra
dos etíopes para saber se realmente existiriam os míticos prados da “Mesa do Sol”.
Quando resolveu empreender uma expedição militar, o seu exército, incapaz de atravessar
o deserto, foi forçado a regressar ao Egipto. Este relato reforçou a noção de distância
física da Ethiopia relativamente ao mundo mediterrânico conhecido, pois que se impunha

295
William Leo HANSBERRY, Africa & Africans as seen by Classical Writers, Joseph E. HARRIS
(Editor), Washington, Howard University Press, 1981, pp. 5-6.
296
De acordo com William HANSBERRY, o conhecimento e o contacto próximo dos gregos com os
africanos, então designados de Aethiops, está bem documentado nas descobertas arqueológicas, sendo
mesmo de sublinhar a sua presença em áreas do Mar Egeu, vários séculos antes do tempo de Homero. Veja-
se William Leo HANSBERRY, op. cit., p. 6.
297
IDEM, ibidem, pp. 21-22.
298
Malvern Van Wyk SMITH, op. cit., p. 69.
299
Alfred John CHURCH, Stories of the East from Herodotus, 7.ª ed., London, Seeley & CO., 1885, pp.
193-199.

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a difícil travessia de desertos. Apesar de Heródoto se referir a uma Ethiopia cujos


territórios parecem identificar-se com a Núbia Meroítica, as expressões vagas como
“confins da terra”, “povos distantes”, “os Etíopes de vida longa, os mesmos que vivem
na Libya, pelo mar do sul”300, deixam campo aberto para a existência de outros etíopes
de outras partes de África.301 Uma imagem lendária e mitificada da Ethiopia terá ecoado
pelos séculos, desde Heródoto aos autores Helénicos e, segundo Van Wyk Smith, essa
imagem re-emergiu nas lendas do Preste João, do Monomotapa e da Ophir Solomónica,
com localizações cada vez mais para sul da África oriental.302
Nos tempos clássicos tardios e do Cristianismo primitivo, o termo Ethiopia passou
a associar-se predominantemente à Abissínia Etiópica. No entanto, como sublinha Van
Wyk Smith, em termos míticos, a Ethiopia expande e retrai alternadamente na imaginação
mediterrânica e europeia, desde os tempos de Heródoto até ao século XVII. Por
conseguinte, as construções mentais sobre este espaço africano podem reportar-se tanto
ao misterioso governo de terras desconhecidas a montante da segunda catarata do Nilo,
como às vastas massas territoriais que incluem quase toda a África subsariana central e
oriental.303
A designação grega de Aethiops corresponde a critérios de especificidade étnica,
aplicável a populações negróides e decorre de uma identificação somática, que concebe a
negritude como um traço congénito.
Esta natureza congénita parece encontrar paralelo nos textos bíblicos, onde a cor
escura da pele surge associada a terras e povos longínquos e de natureza esbelta e onde
este conhecimento se consolida de forma proverbial: “pode um etíope mudar a sua própria
pele, ou um leopardo as malhas de que se reveste?” (Jer, 13, 23); “o povo esbelto de pele
bronzeada, o povo poderoso e longínquo” (Is, 18, 1-7); “sou morena, mas formosa”, “Não
repareis na minha tez morena, pois foi o sol que me queimou” (Cant, 1, 5-6).
No Antigo Testamento é o termo Cush que designa, tanto o primeiro filho de
Cham, como o país dos Cushitas. Apesar do país dos Cushitas não corresponder a
coordenadas geográficas precisas, também não recobre perfeitamente o termo grego

300
Nossa tradução de “the long-lived Ethiopians, the same that dwell in Libya, by the South Sea.” Veja-se
IDEM, ibidem., p. 192.
301
Malvern Van Wyk SMITH, op. cit., p. 65.
302
IDEM, ibidem, p. 290.
303
IDEM, ibidem.

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Aethiopia304, pois associado ao vocábulo Cush existem prolongamentos étnicos extra-


africanos.305
A designação de Ethiopia cristalizou-se na cultura grega e transitou para a cultura
geográfica europeia, sem que tenha tido qualquer uso corrente entre os povos locais, que
nunca se designaram a si próprios Aethiops ou à sua terra Ethiopia, nem os seus vizinhos
egípcios ou as nações asiáticas fizeram uso destes termos para se referirem à sua
coloração mais escura.306
No seu sentido mais lato, de acordo com a compilação enciclopédica de Raphael
Bluteau, a Ethiopia consiste numa faixa do continente coincidente com a zona tórrida:
“Região da Africa debaixo da Zona tórrida, entre a Arábia, & o Egypto, alem do rio Níger,
de hum a outro Oceano”.307
O termo Líbia teria sido aplicado, nos tempos clássicos, aos territórios a ocidente
do Egipto que se projectavam para sul do litoral mediterrânico. Abrangia desde as regiões
da Cirenaica e Tripolitânia, até à orla do deserto do Sahara. Aos habitantes da Líbia os
gregos chamaram líbios e os latinos, por sua vez, chamaram bárbaros, de que derivou a
designação de berberes, aplicada a estas populações mediterrânicas. Segundo o dicionário
de Raphael Bluteau, os Antigos dividiam a Líbia em duas: A Líbia exterior que
“começava alèm do Egypto para o meyo dia, & correndo ao longo das ribeyras do Nilo
pela parte esquerda, se estendia athè a Ethiopia (...). A Líbia interior corria do monte Atlas
atè ao rio Níger, & nella se comprehendião as vastisimas, incultas, & esterilíssimas terras,
chamadas hoje Deserto de Sarra, ou Zaarra, & isso he propriamente Líbia”.308 As
designações de Ethiopia e Líbia, quando vulgarizadas e usadas no seu sentido mais amplo,

304
François de MEDEIROS, op. cit., pp. 48-50.
305
“(…) até à fronteira da Etiópia” (Ez. 29, 9-10).
306
A palavra etíope Qevs (ou Kesh) pode identificar-se com a palavra egípcia Kush e a palavra hebraica
Cush, designação geralmente aplicada à Etiópia durante centenas de anos pelos egípcios e pelos povos da
Ásia ocidental, entre quem existiram contactos próximos durante a História da Antiguidade. A apelação
Kesht ou Keshli parece ser o equivalente etíope para o egípcio Kashto e o hebraico Cushit. A descoberta da
palavra em inscrições etíopes parece indicar estarmos perante vocábulos indígenas ao país e aos povos a
que geralmente se aplicava, apontando para uma derivação de sul para norte e este. No Antigo Testamento,
Cap. 10 do Génesis, Cush, filho de Ham, surge no esquema genealógico como um ancestral dos povos
negros. Exceptuando esta passagem, o termo Cush tem sido traduzido, no Antigo Testamento, como
Etiópia. Na Literatura Rabínica, os termos cushita e cushitas são geralmente usados com a significação de
negróide. Cf. William Leo HANSBERRY, op. cit., pp. 9-15.
307
Raphael BLUTEAU, Vocabulario Portuguez e Latino aulico, anatomico, architectonico, bellico,
botanico .... Autorizado com exemplos dos melhores escritores portugueses e latinos e offerecido a El Rey
de Portugal D. João V Pelo Padre D. Raphael Bluteau, Vol. 3, Coimbra, Colégio das Artes da Companhia
de Jesus, 1713, p. 354.
308
IDEM, ibidem, Vol. 5 (1716), p. 114.

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aplicaram-se indiferenciadamente a vastas regiões do continente africano consideradas de


“clima tórrido”.
Para ocidente da terra dos líbios estava a Numídia a que os gregos chamavam
Nemein que, segundo Bluteau, significa pastar, pois estes povos viviam entre o gado que
pastava no campo.309 O antigo reino berbere da Numídia (201 a.C-46 a.C) terá sido
integrado no Império Romano e constituía o cerne da África proconsular que viria a ser
objecto da propaganda Cristã, destinada a influenciar profundamente a sociedade onde
havia de nascer Santo Agostinho.
Entre o antigo reino dos Númidas e o Oceano Atlântico jaziam as terras da
Barbaria, expressão que ora se aplicava ao Magreb ocidental, ora designava todo o norte
de África a ocidente do Egipto. O termo generalizou-se relativamente aos habitantes dos
litorais do norte de África, conhecidos por dominarem o comércio de escravos e por
ameaçarem com o corso as embarcações do Mediterrâneo. A designação de Barbaria terá
também coexistido com a de Mauritania que, nos escritos latinos, se referia ao espaço
líbio (ou africano) oposto ao da Ibéria.310 Na Cristandade medieval, a Mauritania
construiu-se como um espaço itinerante e indeterminado, associado a uma zona de
fronteira, de alteridade religiosa, linguística e racial.311 O habitante deste espaço (o
mouro) era, como sublinha José da Silva Horta, o opositor político-religioso fundamental
associado à terra de África.312
Ethiopia, Líbia, Numídia, Barbaria, Mauritania eram algumas das designações
que, herdadas dos tempos clássicos e medievos, se aplicavam a fragmentos da terceira
parte do mundo, correspondente ao continente africano, sendo Ethiopia a designação mais
genérica.313
Um conjunto de imagens do Mundo Antigo teria passado para a Idade Média
através de processos literários e a cosmovisão europeia medieval consumou um
afastamento relativamente ao conhecimento físico e cultural dos povos e terras africanas.
A verdade das Escrituras afirma-se nos diversos planos do saber e a geografia «de

309
IDEM, ibidem, Vol. 5 (1716), p. 772.
310
Josiah BLACKMORE, Moorings. Portuguese Expansion and the Writing of Africa,
Minneapolis/London, University of Minnesota Press, 2009, p. 2.
311
IDEM, ibidem, p. 3.
312
José da Silva HORTA, “A imagem do Africano pelos portugueses antes dos contactos”, (…), p. 50.
313
Frank M. SNOWDEN, op. cit., p. 15.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

imaginação»314 ganha peso e projecção real nos textos, nos mapas e nas mentalidades. O
mundo africano, associado ao clima tórrido e ao elemento humano “negroide”,
representado de forma estereotipada na sua forma física, torna-se um espaço marginal no
âmbito de uma hierarquia geográfico-civilizacional.
Foi comum, durante a Idade Média, assimilar o etíope à negritude do demónio o
que, em termos simbólicos, se relaciona com a ideia da sua permanência no Inferno, sendo
a cor negra uma “consequência do calor da zona tórrida donde provém o etíope”.315
Inúmeras são as manifestações literárias em que o personagem maléfico, espiritualmente
perigoso, o Príncipe das Trevas é o negro assimilado aos “etíopes”.316 A obra de Jean
Devisse conduz-nos numa viagem às mentalidades e consciências do Ocidente Cristão
Medieval, em que se operou uma transferência dos sentimentos de hostilidade do “etíope”
para o “Mouro negro”.317
Duas teorias fundamentais parecem ter modelado a geografia mental relativa ao
continente africano durante o período medieval: a teoria ptolomaica e a teoria
macrobiana.318
A cartografia ptolomaica, apesar dos fundamentos correctos de que partiu, que
permitiam a localização aproximada numa tábua ou carta, caracterizava-se pela falta de
rigor, decorrente dos Itinerários antigos que estavam na sua base, e também pela
impossibilidade de medir a longitude.319 O sistema de coordenadas ptolomaicas apenas
terá fornecido esboços satisfatórios para a Europa e a África mediterrânicas, para o Mar
Negro e Próximo Oriente.320 Trata-se de um conhecimento geográfico que tem no seu
centro o Mediterrâneo. Por conseguinte, os desenhos ignoram totalmente o Pacífico e o
continente americano, revelando-se insuficientes relativamente ao Oriente, ao Mar
Vermelho, ao norte da Europa e à África.321

314
Luís de ALBUQUERQUE, “Realidades e mitos de Geografia Medieval”, (…), p. 30.
315
José da Silva HORTA, “A imagem do Africano pelos portugueses antes dos contactos”, (…), p. 47.
316
Jean DEVISSE, L’Image du Noire dans l’Art Occidental, II, Fribourg, Office du Livre, 1976, p. 18.
317
IDEM, ibidem, p. 82.
318
William G. L. RANDLES, op. cit., pp. 1-16.
319
Só no século XVIII, quando o inglês John Harrison inventou o cronómetro marinho de elevada precisão,
se tornou possível determinar a longitude em viagens de longa distância.
320
Um dos erros mais significativos de Ptolomeu era o cálculo do comprimento do grau de longitude, o que
levou a que que a Europa e a Ásia ocupassem mais de metade da circunferência da Terra. Esta perspectiva
colocava o Mediterrâneo no centro e projectava-o num comprimento 50% maior do que é na realidade (62º
em vez de 42º). Veja-se Michael SWIFT, Mapas do Mundo, Lisboa, Bertrand, 2006, pp. 10-11.
321
Luís de ALBUQUERQUE, “Realidades e mitos de Geografia Medieval”, (...), pp. 26-27.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Na representação ptolomaica, os contornos da África projectavam-se


rectangularmente para sul do Mediterrâneo. A sudeste da extremidade meridional, África
ligava-se a uma longa faixa de “Terra Incógnita” que se unia ao Extremo Oriente, fazendo
do Índico um mar interior, sem qualquer comunicação com o Atlântico. Para sul da linha
do Equador estendiam-se terras estranhas, preenchidas por cordilheiras míticas como as
Montanhas da Lua e as nascentes dos grandes rios africanos, de que o principal era o Nilo.
As reproduções quatrocentistas destacam duas legendas a sudeste do continente africano:
“SINVS BARBARICVS”322, para assinalar as terras mais afastadas da civilização cristã
ocidental, terras essas consideradas bárbaras, estranhas e ocultas, e “PRASODVM
MARE”, para designar o mar oriental, que banhava o mítico promontório Prasso. Aos
territórios desconhecidos associava-se a fabulação, o mito, a incerteza, a imprecisão e por
isso, também, a barbárie e o bestial. Numa das conhecidas reproduções quatrocentistas da
carta ptolomaica, da autoria de Henricus Martellus Germanus323, é a sul do Equador que
o cartógrafo acrescenta a seguinte legenda: “Regio magna Ethiopum in qua elefantes albi
omnes sunt et rinocerontes similiter & Tigrides”324, ou seja, “Grande região da Etiópia
na qual todos os elefantes são brancos e, igualmente, os rinocerontes e os tigres”.
Numa outra reprodução de Lorenzo Fries da Tabua IV da África de Ptolomeu,
datada de 1525, edição de Viena, é traçada uma linha oblíqua que, ligando a ocidental
“Sinus Hespericus” à oriental “Sinus Barbaricus”, se cruza com a linha Equinocial, sob a
qual se lê: “Regio Ethiopam na qua Elephantes albi omnes gignut et Rinocerontes et
Tigrides”325, que pode ser traduzida como "Região da Etiópia onde todos os elefantes
brancos geram não só rinocerontes mas também tigres" ou "Região da Etiópia onde todos
os elefantes brancos geram e, igualmente, os rinocerontes e os tigres".326

322
Do latim sinus, que pode significar “região muito afastada, raia dum país, confins”, mas também “lugar
oculto, recanto”, e barbaricus, um empréstimo do grego que se refere aos povos que não são gregos; depois
aos povos não romanos; entre os cristãos equivale aos gentios ou pagãos. Veja-se Alfred ERNOUT e Alfred
MEILLET, Dictionnaire Étymologique de la Langue Latine. Histoire des Mots, 4.ª ed., Paris, Libraririe C.
Kincksieck, 1967, p. 66.
323
Henricus Martellus GERMANUS, Florença, início da década de 1490, Biblioteca Nazionale Centrale
de Florença, Magl. XIII, 16, ff. 88 v.-89 r.
324
Michael SWIFT, op. cit., p. 10.
325
http://www.raremaps.com/gallery/detail/20640/Africa_Tabula_IIII_Aphricae_Hae_Sunt_E_Cognitis_T
otius_Orbis/Fries.html
326
Esta tradução foi generosamente verificada e corrigida pelo Professor Doutor Arnaldo Espírito Santo, a
quem agradecemos.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

A linha do Equador era um marcador não apenas geográfico, mas também


conceptual, que separava a Oikuméne, o mundo ordenado e habitável, sobre o qual
existiam referências, de um outro mundo longínquo, desconhecido, projectando-se para
os confins da terra, habitado por animais considerados fantásticos.
De acordo com Numa Broc, esta visão geográfica de Ptolomeu não teve grande
divulgação na Europa ocidental, antes de 1409, data da tradução do texto grego para o
latim, por Jacobus Angelus.327 Terá sido a partir desta data que se operou a verdadeira
recepção da teoria ptolomaica no mundo erudito e a sua circulação fez-se ainda sob a
forma de reprodução manuscrita. Em Portugal, as “novas” ideias geográficas seriam
confrontadas com as novidades da Expansão marítima, num processo de constante
aferição com as provas da experiência. Apesar da produção textual da época acentuar a
novidade empírica, o que muitas vezes se processa por confronto e negação com a
representação ptolomaica, é comum verificarmos a presença de estereótipos antigos, que
se projectam em processos de categorização geográfica e antropológica.
Terá sido a concepção Macrobiana do mundo a que maior influência exerceu no
âmbito da geografia mental da Idade Média ocidental.328 Macrobius promulgou a ideia de
uma Terra redonda, dividida em cinco zonas climáticas delimitadas por paralelos,
consolidando uma longa tradição que atribuía normalidade e equilíbrio às duas zonas
temperadas, as únicas habitáveis, e desequilíbrio, tanto às zonas frígidas, meridional e
setentrional, como à zona tórrida, onde não seria possível a vida humana. No contexto de
uma filosofia que postulava um cosmos em harmonia e equilíbrio, as massas de terra
emersa no globo terrestre deveriam obedecer a uma distribuição simétrica. Neste sentido,
à zona temperada do hemisfério norte, coincidente com a ecúmena, deveria corresponder

327
Numa BROC, La géographie de la Renaissance, Paris, Les Éditions du Comité des Travaux Historiques
et Scientifiques, 1986, p. 9.
328
Ambrosius Theodosius Macrobius (séc. V), gramático e filósofo latino que, nos seus Commentarii in
Somnium Scipionis (Comentário do Sonho de Cipião), escrito c. do ano 430, discursou sobre a natureza do
Cosmos. Na secção dos Comentários dedicada à explicação do sonho, Cipião “Africano” (o sonhador) é
guiado pelo seu avô adoptivo que descreve a Terra e a sua divisão em zonas e compara a grandeza do
mundo com o pequeno espaço ocupado pelo Império Romano. A descrição do avô enfatiza a Cipião a
brevidade da vida humana e as realizações mundanas (nomeadamente glória e fama), contrastando com a
magnitude e permanência das esferas celestes e da vida da alma. Afirma que a Terra é escassamente
habitada e que os lugares povoados são como manchas separadas por vastas terras desertas. Os habitantes
destas áreas permanecem separados, alguns obliquamente, outros transversalmente, estando outros, ainda,
diametralmente opostos. Cf. Alfred HIATT, “The Map of Macrobius before 1100”, in Imago Mundi, Vol.
59, Nº 2 (June 2007), p. 150.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

uma “Antiterra” ou Antichthone na zona temperada do sul, separada da anterior por um


oceano equatorial.
A teoria de Macrobius admite a existência de um continente austral, separado do
bloco da Europa, Ásia e África por um oceano cujas águas atravessavam toda a zona
tórrida. Desde sempre cosmógrafos e físicos conjecturaram sobre a existência de uma
terra austral, de uma Antichthone, situada para lá do Equador e separada da ecúmena pelo
oceano. Muitos escritores da Antiguidade fizeram alusão a esta terra; muitos admitiram a
sua existência, mas nesses tempos esta concepção era ainda indecisa e flutuante. Na Idade
Média, os Árabes e os Escolásticos recolheram esta hipótese com a herança da ciência
antiga e, nos meios eruditos, foi discutida com algum detalhe.329 Este exercício
especulativo conduzia, por extensão, à ideia da existência de uma “Anti-humanidade” no
hemisfério austral.
Martianus Capella330 (séc. V), baseando-se nas teorias de Crates de Mallus (séc.
II a.C.)331, sustentava que a "Terra Australis” era habitada pelos antípodas332, pois o
conceito da separação das massas de terra por um oceano equatorial pressupunha a
existência de uma humanidade em cada uma das terras separadas pelas águas. As noções
acerca da existência de um continente austral habitado e da possível circumnavegação das
terras emersas do mundo foi-se transmitindo através da tradição e da divulgação dos
escritos de autores antigos, como Capella e Plínio.333
Duas das mais influentes autoridades medievais - Santo Agostinho (354-430) e
Santo Isidoro de Sevilha (c. 560-636) - contestaram a possibilidade de tal conceito. Santo
Agostinho afirmou que as escrituras não mentem e “seria demasiado inverosímil afirmar-

329
Armand RAINAUD, Le Continent Austral. Hypothèses et Découvertes Thèse presentée à la Faculté de
Lettres de Paris, Paris, Armand Colin, 1893, pp. 2-3.
330
Enciclopedista romano, não cristão, do Séc. V, nativo do norte de África. Viveu como advogado em
Cartago e a sua obra maior, escrita provavelmente entre 410 e 429, consistiu numa colectânea enciclopédica
de 9 volumes, dos quais os primeiros dois se intitulam De nuptiis Philologiae et Mercurii, tendo os restantes
7 volumes os seguintes títulos: De arte grammatica, De arte dialectica, De arte rhetorica, De geometrica,
De arithmetica, De astrologia e De harmonia.
Cf. http://www.catholic.org/encyclopedia/view.php?id=7623
331
Filósofo estóico nascido em Mallus, na Cilicia, costa sudeste da Ásia Menor. Viveu em Pérgamo onde
fundou uma escola literária e dirigiu a biblioteca. De acordo com a Geographia, de Estrabão, Crates terá
feito um dos mais antigos globos terrestres, assinalando aí as terras habitadas, a zona tórrida e as terras dos
antípodas.
Cf. http://www.britannica.com/EBchecked/topic/141955/Crates-of-Mallus
332
William G. L. RANDLES, op. cit., p. 4.
333
Francesc RELAÑO, The Shaping of Africa. Cosmographic Discourse and Cartographic Science in Late
Medieval and Early Modern Europe, Hampshire – Burlington, Ashgate, 2002, p. 122.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

se que alguns homens tenham podido navegar através da imensidade do oceano até
chegarem à outra parte onde também se teria estabelecido o género humano procedente
do primeiro e único homem”.334 Como poderiam as terras temperadas do continente
austral ser habitadas por humanos? Não diziam os Evangelhos sobre a pregação da Fé de
Cristo que “a toda a terra se propagou a sua voz, e até aos confins do mundo, as suas
palavras” (Romanos, X, 18)? Os Apóstolos não podiam ter pregado neste continente dos
antípodas, pois que a travessia do oceano implicava a passagem através da zona tórrida,
o que era por natureza impossível, pois nenhuma forma de vida aí poderia subsistir devido
ao calor extremo. Como os antípodas não podiam ser privados da evangelização, então o
continente austral não seria habitado e os antípodas não existiam.335
Isidoro de Sevilha, na obra De natura rerum, que versa assuntos de astronomia e
geografia, conclui categoricamente que o oceano é intransponível pelo homem.336 Na sua
obra maior, Etimologias, utilizou um procedimento enciclopédico socorrendo-se tanto de
fontes pagãs como de fontes cristãs para fixar o conhecimento que, à época, era possível
compilar acerca de matérias muito vastas, nas quais se distinguia a astronomia,
cosmologia, lógica, fisiologia, entre outras. Neste sentido, terá também cristalizado as
opiniões mais diversas exprimidas pelos autores antigos relativamente ao continente
africano. Doravante, a África Etiópica passaria a ter uma utilização simbólica na literatura
patrística e os seus habitantes, os Aethiops, seriam objecto de leituras alegóricas que os
conotavam com o pecado, a abjecção, a barbárie e as terras incultas devido ao extremo
calor do sol.337
Desde Isidoro de Sevilha que se fixou na Imago Mundi a tripartição do mundo em
Ásia, Europa e África, materializada nos diagramas e mapas “T em O”. De acordo com
estas representações, a distribuição de terras obedecia ao seguinte esquema: Ásia no topo,
Europa na parte inferior esquerda e África na parte inferior direita, sendo a divisão destas
partes do mundo feita pelo Mar Mediterrâneo e pelo Mar Vermelho (que intersectavam
formando a letra “T”) e tudo rodeado pelo Oceano (o “O”).

334
Santo AGOSTINHO, A Cidade de Deus, Livro XVI, Cap. IX, (tradução, prefácio, nota biográfica e
transcrições de J. Dias PEREIRA), Vol. III, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, p. 1477.
335
William G. L. RANDLES, op. cit., p. 5.
336
Francesc RELAÑO, The Shaping of Africa. Cosmographic Discourse and Cartographic Science in Late
Medieval and Early Modern Europe, (…), ps. 119 e 139.
337
François de MEDEIROS, op. cit., p. 55.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

A concepção teórica de Martianus Capella e Macrobius, que sustentava a ideia da


existência de terras habitadas num continente a sul, coexistia com as concepções
teológicas da Patrística, que hostilizavam e consideravam herética a hipótese da
existência de antípodas.338
Alfred Hiatt, estudioso das diversas cópias manuscritas dos Comentarii in
Somnium Scipionis, de Macrobius, esclarece que do texto original terá sido feita uma
cópia em Ravena, antes do ano 485, e que, entre o fim do séc. V e o séc. VIII, terão sido
reproduzidos manuscritos nas ilhas britânicas, antes da sua reintrodução no continente. A
partir do século IX, o texto foi copiado em mosteiros de França, especificamente em
Tours, Fleury, Corbie e Auxerre, tendo alcançado, no século X, os scriptoria monásticos
da Suíça e do sul da Alemanha, incluindo St. Gall, Echternach, Lorsch, Freising e
Regensburg. Em finais do século XI, o texto podia ser encontrado por quase toda a Europa
ocidental. Ora, a disseminação do mapa de Macrobius está intimamente relacionada com
a história da reprodução e divulgação dos Comentarii339 e a este respeito é importante
considerar que nem todos os manuscritos reproduzem a totalidade do texto. De acordo
com Bruce Barker-Benfield, existe um sub-grupo de manuscritos contendo uma versão
abreviada do texto que, dispensando as discussões filosóficas do início e do fim dos
Comentarii, retêm a secção central relativa à matéria cosmológica e são complementados
por excertos da História Natural, de Plínio.340 Dos manuscritos e fragmentos do séc. IX
nenhum contém o mapa completo, nem foi originalmente desenhado de acordo com o
correcto posicionamento no texto dos Comentarii, dando a entender que os escribas se
confrontavam com o problema da ausência do mapa. Contrastando com esta ausência, os
manuscritos de meados do séc. X contêm geralmente representações desse mapa, facto
que pode decorrer de uma reconstrução feita pelos escribas ou de alguma cópia de um
exemplar antigo que não sobreviveu. Apesar da forma-padrão a que obedece a
representação gráfica do mundo de Macrobius, que inclui uma divisão em zonas
climáticas e a disposição das massas de terra separadas por um oceano equatorial, estes
mapas do séc. X manifestam diferenças significativas entre si, que resultam dos processos
de cópia de cada mosteiro, tal como demonstrou Alfred Hiatt.341

338
IDEM, ibidem, p. 54.
339
Alfred HIATT, op. cit., p. 154.
340
IDEM, ibidem.
341
IDEM, ibidem, p. 159.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Durante os séculos XI e XII, a imagem macrobiana do mundo foi sujeita a


adaptações e mutações, das quais destacamos dois manuscritos analisados por Hiatt,
copiados no sul da Alemanha e que se encontram depositados na Bayerische
Staatsbibliothek, de Munich. O primeiro é um pergaminho latino intitulado Commentarii
in Ciceronis Topica, cópia do texto de Macrobius, escrito por Anicius Manlius Severinus
Boethius,342 que representa as zonas climáticas do mundo através de linhas horizontais
não legendadas. O hemisfério sul está em branco, contrastando com uma ecúmena
detalhada no norte e, na extremidade sul da ecúmena, surge a legenda “Ethiopia”, à
semelhança de um mapamundi não-macrobiano.343 O segundo manuscrito intitula-se,
Rhetorica ad Herennium. Macrobii in Somnium Scipionis libri II.344 Ao dividir o mundo
em paralelos climáticos, acrescenta a legenda “inhabitabilis” às zonas frígidas das
extremidades Norte e Sul, e a legenda “habitabilis” às zonas temperadas a Norte e a Sul
do “Oceanus”.345 O esquema mental do mundo associado a estas representações gráficas
concebe uma “Ethiopia” a sul da África mediterrânica e é separada desta por um grande
rio, que se supõe seja um dos braços do Nilo, correndo paralelamente ao Mediterrâneo
para desaguar a ocidente do continente. A Ethiopia estende-se até aos confins do mundo
habitado e tem a sua fronteira meridional no Oceano equatorial. Para sul destas águas
intransponíveis existiria uma outra terra de clima ameno e, portanto, no plano
especulativo, essa terra seria habitável.
Um outro corpus de mapas que, no período medieval, corresponde a uma das
formas de representar o mundo filia-se no Mapamundi de contorno elíptico incluído nos
Comentários ao Apocalipse (776), da autoria do Beato de Liébana (c. 730 - c. 800), monge
do mosteiro cantábrico de Santo Toribio. O autor segue a tradição de representar a
ecúmena cristã posicionando Jerusalém como centro do mundo. Porém, acrescenta à

342
Anicius Manlius Severinus Boethius, Commentarii in Ciceronis Topica, cota Clm 6362.
343
Alfred HIATT, op. cit., p. 161. Cf. Reprodução digital do Manuscrito Clm 6362, fl. 74 r., da Bayerische
Staatsbibliothek, Munich.
http://daten.digitalesammlungen.de/~db/0006/bsb00065170/images/index.html?seite=151&fip=193.174.9
8.30 (Consultada em 13/07/2012)
344
Rhetorica ad Herennium. Macrobii in Somnium Scipionis libri II, cota Clm 14436
345
Alfred HIATT, op. cit., p. 160. Cf. Reprodução digital do Manuscrito Clm 14436, fl. 58 r., da Bayerische
Staatsbibliothek, Munich.
http://daten.digitalesammlungen.de/0003/bsb00033074/images/index.html?fip=193.174.98.30&id=00033
074&seite=119 (Consultada em 13/07/2012)

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

convencional tripartição Isidoriana do mundo em Ásia, Europa e África uma outra


categoria de terra, separada dos confins da “Aethiopia” por um “Mare Rubrum”. Este mar
evoca a noção de uma fronteira aquática na zona tórrida, também presente nos padrões de
representação macrobianos, e sustenta a ideia de uma quarta parte do mundo,
desconhecida e inóspita, supostamente existente para além do mundo habitado.
O Mapamundi de Etherio de Osma (Beato de Osma), contemporâneo do Beato de
Liébana, obedecendo à mesma arquitectura cartográfica, dispõe no centro do mundo a
Terra Santa, o Paraíso terrestre no Oriente e um imenso rio-oceano separa o continente
africano de uma outra extensão de terra designada de “Terra Australis ou Incognita” que,
devido ao calor excessivo, seria habitada por criaturas estranhas. Neste mapa é de destacar
o elemento iconográfico relativo aos habitantes do mundo austral, notoriamente seres
fabulosos, aqueles que as cartas tradicionais representavam habitualmente entre o Geão
(um dos rios do Paraíso, correspondente ao braço mais oriental do Nilo) e o Oceano.
Nos séculos X e XI fizeram-se cópias dos Comentários ao Apocalipse e das
ilustrações, das quais consta o Mapamundi, do Beato de Liébana. Na cópia que consta do
manuscrito da Catedral de Santa Maria de Gerona, conhecido por Beato de Gerona, de
finais do século X, a legenda da faixa de “Terra Australis ou Incognita”, separada da
África por um rio-oceano, esclarece que aí não existiria vida devido ao calor extremo.
Esta versão do Mapamundi de Beato, apesar de aludir a existência de uma quarta parte
do mundo, esta surge como inabitável, devido ao insustentável clima tórrido.
Os exemplos referidos parecem testemunhar a permanência da hipótese no plano
especulativo, durante a medievalidade cristã, sobre a existência de uma “Terra Australis”
ou “Antichthone” separada do restante continente africano; é flutuante a ideia de que essa
terra austral ou Antíctona é habitada, ainda que por seres disformes.
Entretanto, na cartografia do mundo árabe, alguns autores difundiram o conceito
de Árin, como o local mais central da Terra.346 François de Medeiros destaca, a este
respeito, Platão de Tivoli (1116), tradutor do Livro sobre a Ciência das Estrelas, do árabe
All Battani, que assegurou a difusão do conceito de Árin, uma cidade situada no mar das
Índias, na “terra nigrorum”.347 Platão de Tivoli reflecte a vitalidade, que existiu no século

346
François de MEDEIROS, op. cit., p. 57.
347
IDEM, ibidem; Referência ao manuscrito da Bibliothèque Nationale de France, Mss 7266 (Latim, Séc.
XIV).

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

XII, sobre as questões geográficas envolvendo o continente africano e as suas projecções


para sul, interesse este que se materializou numa produção cartográfica abundante.
Relativamente à noção deste continente austral, é importante considerar o papel
desempenhado pela geografia islâmica na transmissão das teorias sobre um oceano
inteiramente navegável. Os princípios ptolomaicos foram-lhes familiares durante toda a
Idade Média e, apesar da adesão a esta tradição, que concebe uma inflexão para leste da
península africana a sul do Equador, os geógrafos árabes não admitiam a noção de que os
oceanos do mundo se encontravam em bacias isoladas e, portanto, que o Oceano Índico
fosse um mar fechado. O geógrafo Albufeda citava um autor do século XI que se referia
ao grande “Mar do Meio”, na parte extrema do continente, onde se faziam as navegações
“para lá de Sofala”, na terra dos Zendj. Para sul dessa parte extrema haveria uma
passagem entre o Oriente e o Ocidente, onde não era possível navegar devido às grandes
vagas que desfaziam os navios. Esse “Mar do Meio” permitia a passagem do Índico para
o Atlântico, num espaço próximo às derradeiras montanhas do Sul,348 muitas vezes
identificadas como as míticas “Montanhas da Lua”.
No epílogo da tradição cristã medieval assistimos a sincretismos de concepções
geográficas que projectam para a extremidade sul do continente africano os mais antigos
estereótipos sobre a terra austral ou Antichthone.
Andreas Walsperger, monge beneditino de Salzburgo, no seu Mapamundi de
1448349, tenta conciliar a tradição cristã do mundo-ilha rodeado pelo oceano, que continua
a ter Jerusalém como centro simbólico, com a concepção ptolomaica, de acordo com a
qual não existiria passagem entre o Atlântico e o Índico. A extremidade austral do
continente africano confina com o Pólo Antárctico. No topo do mapa lê-se a legenda: “O
pólo Antárctico diz-se que se localiza ao contrário do Ártico. Aí a terra é inabitável. E em
redor deste pólo encontram-se os monstros mais maravilhosos, não só entre os animais
mas também entre os homens.”350
O Mapamundi do veneziano Giovanni Leardo (1452) concebe o mundo a partir
do seu centro em Jerusalém e cercado pelo Oceano. Destaca-se na extremidade sul da

348
William G. L. RANDLES, op. cit., pp. 8-9.
349
Biblioteca Apostólica Vaticana, Pal. lat. 1362 B. Veja-se Francesc RELAÑO, The Shaping of Africa.
Cosmographic Discourse and Cartographic Science in Late Medieval and Early Modern Europe, (…), ps.
129 e 142.
350
IDEM, ibidem, p. 129.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

África uma legenda no sentido latitudinal, que separa a terra habitada de uma extensa
franja de terra deserta. Tal legenda - “DIXERTO DEXABITADO PER CALDO” – não
é mais do que a fronteira entre uma massa de terra preenchida por signos gráficos e
legendas, entre as quais “Imperio del presto Janí”, e uma terra vermelha, que evoca
estereótipos acerca dos confins do mundo, localizada no sul do continente africano, onde
o clima tórrido seria incompatível com a vida humana.
No Mapa Mundi de Fra Mauro, desenhado no Mosteiro de S. Miguel de Murano,
em Veneza, entre 1457 e 1459, está presente a passagem entre o Atlântico e o Índico e o
continente africano é concebido como geograficamente circumnavegável: “Adoncha
sença alguna dubitatio(n) se può affermar / che questa p(ar)te austral e de garbin sai
nauigabile e ch(e) / quel mar indiano sai oceano e no(n) stagnon, e cusì / affermano tuti
queli che nauegano quel mar / e che habitano quele i(n)sule” 351, ["Portanto sem dúvida
nenhuma pode afirmar-se que esta parte austral atingida pelo vento que sopra de sul-
oeste chamado 'garbino' é navegável e que o mar indiano é oceano e não um grande
estagno/charco. E isso é o que dizem todos os que navegaram por aqueles mares e que
vivem naquelas terras."].352
Segundo Fra Mauro, na extremidade sul da África ficava a “ETHYOPIA
AVSTRAL”353 separada da “ABASSIA”354 e da “ETHYOPIA OCCIDENTAL”355 por
um grande rio que, tanto pode ser conjectural, como pode evocar o Limpopo.
Para sul deste rio-fronteira não existem quaisquer sinais gráficos alusivos a reinos
ou outros modos de organização das sociedades humanas. O vazio é preenchido com o
grafismo de grandes montanhas e com legendas que, de Este para Oeste, acentuam a ideia
de uma extremidade desconhecida do mundo: “Ethyopia quasi / saluaça e meridional” -
“Ethyopia quasi deserta / e montuosa”356 - Ethyopia arenosa / e quasi abandonata”.357
Para leste desta finisterra, no sul do continente africano, está o cabo de “DIAB”, uma ilha
separada da Etiópia austral por um canal navegável que, segundo Roberto Almagiá, tanto

351
Tullia GASPARRINI LEPORACE (transcrizione) e Roberto ALMAGIÀ (presentazioni di), Il
Mappamondo di Fra Mauro, Roma, Instituto Poligrafico dello Stato, 1956, Tábua XI, p. 27.
352
Tradução do dialecto de Veneza, feita por Mariagrazia Russo, da Università degli Studi Internazional di
Roma, à qual muito agradeço.
353
IDEM, ibidem, Tábua IV da trascrizione, p. 24.
354
IDEM, ibidem, Tábua X da trascrizione, p. 26.
355
IDEM, ibidem, Tábua XI da trascrizione, p. 27.
356
IDEM, ibidem.
357
IDEM, ibidem, Tábuas IV e VII da transcrizione, pp. 24-25.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

poderia representar o Cabo da Boa Esperança (ainda não alcançado pela navegação
portuguesa), como a ilha de Madagáscar, cujas informações poderiam ter chegado a Fra
Mauro por via das fontes árabes. A base informativa constituída pelas fontes árabes é
também sublinhada por Francesc Relaño, tendo em consideração a linhagem etimológica
de diversos topónimos ao longo dos litorais do Índico, tais como “Soffala”, “Xegiba”
(Zanzibar) e “Maabase” (Mombasa).358
O monumento cartográfico tardo-medieval, encomendado a Fra Mauro, monge do
Mosteiro de Murano pelo rei de Portugal, D. Afonso V, parece ter constituído um esforço
de síntese das teorias e conjecturas geográficas acerca de uma grande parte do continente
ainda desconhecido da Europa.
A revelação gradual do continente africano aos europeus, pelas navegações
exploratórias, a cargo da coroa portuguesa, iria solicitar novas formulações conceptuais,
mas estaria também destinada a prolongar algumas das velhas noções relativas a esta
extremidade do mundo.
Quanto à sobrevivência das antigas imagens destacamos, a título de exemplo, o
texto de Mestre António, físico e cirurgião de Guimarães, que ao fazer a Historia
Geografica de varias partes do mundo359, em 1512, tomava como ponto de partida a
matriz genesíaca do Antigo Testamento que Isidoro de Sevilha integrou na sua vasta
compilação: “Esta machina ou redondeza do mundo he partida em três partes principaes
segundo Santo Isidoro escreve no quinze Livro das ethimologias, a saber Asya – Afriqa,
Europa”.360 Estas partes do mundo terão sido distribuídas, depois do Dilúvio, pelos três
filhos de Noé - “Sem o primeiro filho ouve Asya; Cam Afriqa; Jafet filho menor ouve
Europa”.361 Segundo o autor, Africa “tomou este nome de Afer filho de Abrahão, o qual
como trouvesse grande exercito em aquella parte, e vencese os abitadores della hos que

358
Francesc RELAÑO, The Shaping of Africa. Cosmographic Discourse and cartographic Science in Late
Medieval and Early Modern Europe, (…), p. 135.
359
Mestre António, Historia Geografica de varias partes do mundo e huma breve noticia de algumas
couzas mais raras delle tudo por Mestre Antonyo Fisyquo, e Colorgião natural e morador de Guimaraens,
em 1512, B.P.M.P., Fundo Azevedo, Pasta 16 (Cópia com letra do séc. XVII – XVIII). Sobre este
manuscrito veja-se Carlos Manuel VALENTIM, “Uma Corografia Renascentista útil ao poder e aos
poderes”, in Noroeste. Revista de História, Braga, Núcleo de Estudos Históricos da Universidade do Minho,
Vol. 1, Nº 2 (2006), pp. 433-451.
360
Mestre António, Historia Geografica de varias partes do mundo e huma breve noticia de algumas
couzas mais raras delle tudo por Mestre Antonyo Fisyquo, e Colorgião natural e morador de Guimaraens,
em 1512, (…), fl. 35 v.- 36.
361
IDEM, ibidem, fl. 36 v.

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depois a posuhirão forão chamados Africos, ou Africanos, donde toda aquella terra Afriqa
se chamou”.362 Tal matriz genesíaca persiste neste texto de Mestre António, mesmo após
decorridos três quartos de século desde que se iniciaram os contactos directos dos
portugueses com a África subsariana. Mestre António reserva para este território do
mundo as mais fantásticas raridades. Explica em termos bíblicos a origem do nome
“África” e, ao dissertar sobre as “couzas mais raras”, refere-se ao grande continente com
a designação clássica de Ethiopia, uma terra de fontes misteriosas e dos animais mais
singulares do planeta. Na modernidade europeia do século XVI, a construção do
conhecimento do mundo faz-se olhando sempre para o passado e a verdade é
condicionada pelo peso da autorictas dos Antigos.363 Como afirmou José Augusto
Mourão, “a verdade é mais de ordem filológica do que geográfica”.364
Mas, o processo de exploração empírica da costa africana para sul do Equador
conduziu fundamentalmente a uma atitude de observação crítica e descrição da novidade,
pelo que os documentos portugueses passaram a sublinhar a descoberta de um “novo
mundo” e a passagem a um “outro mundo”.365
Para sul da linha equinocial penetra-se nesse “outro mundo”, expressão que pode,
no seu início, evocar dois sentidos diferentes: por um lado, a teoria da existência de um
mundo austral; por outro, o sentido de que se revelavam terras desconhecidas dos Antigos,
na zona tórrida, que se acreditava ser inabitável. O “Novo Mundo” localiza-se, de início,
para além do Equador, antes de ser aplicado às terras de além Atlântico.
Diogo Cão, ao navegar pelo rio Congo (1484), terá sido o primeiro europeu a
verificar a existência de um “mundo austral” e provavelmente não foi tanto a carta de
Vespúcio, “Mundus Novus” a lançar o conceito de Novo Mundo, mas sim a entrada
empírica no hemisfério sul, com a revelação das novas estrelas, a certeza que se podia
chegar às terras dos antípodas, terras afinal habitadas, e de que era possível navegar de
ocidente para oriente.366

362
IDEM, ibidem.
363
Numa BROC, op. cit., 1986, p. 19.
364
José Augusto MOURÃO, op. cit., p. 14.
365
William G. L. RANDLES, “Le Nouveau Monde, l’Autre Monde et la Pluralité des Mondes”, in
Congresso Internacional de História dos Descobrimentos. Actas, Vol. 4, Lisboa, Comissão Executiva das
Comemorações do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, 1961, pp. 347-385.
366
IDEM, ibidem, p. 361.

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Em 1485, D. João II enviava em missão diplomática, ao Papa Inocêncio VIII, o


jurisconsulto Vasco Fernandes de Lucena, a fim de proferir a Oração de Obediência. À
semelhança de outros autores da época, Lucena sublinhava perante o novo Pontífice, o
valor das novidades do mundo, conquistadas no reinado de D. Afonso V: “novas
províncias, novos reinos, novas ilhas, e como que novos e desconhecidos mundos”.367
Lucena expressava também a convicção de uma passagem para o Índico através da
circum-navegação do continente africano:
“(…) acresce a esperança bem fundada de explorar o Golfo Arábico, onde reinos e povos
que habitam a Ásia, mal conhecidos de nós por notícias muito incertas, praticam
escrupulosamente a fé santíssima do Salvador, dos quais, a dar crédito a experimentados
geógrafos, já a navegação portuguesa se não encontra senão a alguns dias de viagem.
Efectivamente, descoberta já uma parte enormíssima da costa africana, chegaram os
nossos no ano passado [1484] até perto do Promontório Prasso, onde começa o golfo
Arábico”.368

Sublinhe-se que a geografia africana explanada por Lucena é em si mesma uma


simbiose entre a geografia positiva, atenta à novidade do orbe recentemente desvendado,
e a geografia de imaginação, marcada por incertezas e mitos. A este respeito destaca-se o
Promontório Prasso, que no desenho ptolomaico do mundo se localizava na extremidade
sudeste do continente africano e que vai persistindo na cartografia portuguesa, embora
movendo-se para norte, num processo de ajustamento aos contornos do continente, à
medida que as expedições exploratórias avançam ao longo da costa e que vão chegando
aos cartógrafos informações mais concretas.
Em 1493, o bispo de Ceuta, D. Fernando de Almeida, protagonizava a terceira
embaixada de D. João II ao Papa Alexandre VI.369 O seu texto da oração de obediência
do rei ao novo Papa sublinha o valor do monarca,

367
Vasco Fernandes de LUCENA, “Oração de obediência, dirigida ao Sumo Pontífice Inocêncio VIII por
Vasco Fernandes, doutor em ambos os direitos e orador do Ilustríssimo Rei de Portugal”, 1485, in Abel
Fontoura da COSTA, Às Portas da Índia, Lisboa, Edições Culturais da Marinha, 1990, p. 77.
368
IDEM, ibidem, p. 80.
369
Segundo o costume cristão era enviada uma embaixada de obediência quando se consumava a sagração
de um novo Papa. A 26 de Agosto de 1492 Rodrigo Borja subia ao trono de S. Pedro, sob o nome de
Alexandre VI, a quem D. João II enviou, durante o ano de 1493, três embaixadas, porque as duas primeiras
não conseguiram cumprir a missão e chegar ao seu destino. Veja-se Abel Fontoura da COSTA, Às Portas
da Índia, (...), p. 92.

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“(…) que, descobrindo novos homens, aumentou o género humano; que, juntando à terra
novas e muitas ilhas longínquas, acrescentou o próprio mundo; que sob seus auspícios e
aumentando a República cristã, tornou certas e de nós conhecidas essas terras que por
completo ignorávamos; e que implantou a bandeira da cruz da nossa redenção para além
de 48:000 estádios de distância do seu Reino, e aos bárbaros crudelíssimos que a
desprezavam compeliu-os e ensinou-os a adorá-la e a amá-la”.370

Estamos perante um discurso oficial que constata a existência de um mundo


austral, um mundo que é novo porque até então desconhecido. Com as designações
“novos homens” e “bárbaros crudelíssimos” o autor refere-se, muito provavelmente, aos
antípodas, cuja hipótese de existência teria gerado polémica e suspeitas de heresia durante
a Idade Média. A atribuição de uma natureza extrema a estas gentes decorre da sua própria
implantação geográfica que, vivendo em territórios geograficamente opostos, entendidos
como uma das orlas do mundo, eram assimilados à barbárie.
Desvendada a passagem sul do continente africano, abre-se o caminho para os
mercados do Índico, mas surgem também no continente africano vastidões geográficas e
diversidade antropológica até então incógnitos. Tornava-se necessário reconhecer,
diferenciar e catalogar os novos espaços com os quais os portugueses passavam a
interagir, espaços e povos que já não se enquadravam nas categorias clássicas e que
seriam objecto de uma produção textual susceptível de análise específica.

2.2. O descobrimento da Terra dos cafres

Durante os séculos XV, XVI e XVII assistiu-se ao encontro dos portugueses com
a África num processo histórico que decorre de expedições marítimas ao longo de
extensos litorais. A exploração geográfica de territórios até então desconhecidos e a
consequente interacção com comunidades africanas vieram a integrar o conhecimento do
mundo. Territórios e sociedades africanas entraram nas dinâmicas comerciais do ocidente
europeu, com destaque para o tráfico de escravos. Nesse contexto, a presença quotidiana

370
Fernando de ALMEIDA, “Discurso de Fernando de Almeida, Bispo eleito de Ceuta e orador do
Serenísimo Rei de Portugal, D. João II, ao Sumo Pontífice Alexandre VI”, in Abel Fontoura da COSTA,
ibidem, p. 104. (sublinhado nosso)

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das gentes africanas na sociedade portuguesa, em particular, e europeia, em geral, pôs em


contacto não só pessoas e costumes, mas também as imagens identitárias de uma
sociedade estamental, em que todos os estatutos estavam bem definidos nas mentalidades,
nos comportamentos e na própria lei, com o elemento humano africano que, sendo
escravo ou cativo, era, no dizer de Isabel Castro Henriques, desenraizado, dessocializado,
dominado e de tudo despojado.371 O relacionamento social assimétrico, que
historicamente se impôs, implicou o uso de designações ou modos de nomear que se
transformam em categorias classificatórias e interpretativas desta humanidade africana,
no âmbito dos quadros sociais e culturais de um Portugal que despertava para a
Modernidade.
De acordo com a colectânea de estudos reunida sob o título Black Africans in
Renaissance Europe,372 uma das dificuldades que se coloca na emergente temática,
reflectindo sobre o sentido e a importância dos rótulos europeus aplicados a África e aos
africanos, é a da própria variedade de palavras que designavam um africano ou um
descendente africano, sem que essa variedade se reportasse a um local ou a um nível de
conhecimento da respectiva pessoa. O processo histórico de trazer os africanos para a
Europa retirou-lhes os traços de distinção e esbateu as identidades, dando-lhes uma nova
dimensão europeia e rotulando-os como “negros”, “pretos”, “etíopes” ou “guinéus”. Um
africano na Europa dos séculos XV e XVI era distinguido rotineiramente mais a partir da
pigmentação da sua pele ou da suposta religião do que de acordo com o seu local de
nascimento ou a língua falada. As designações aplicadas a África e aos africanos
correspondiam às categorias de Guiné/guinéu, Etiópia/etíope, que eram forçosamente
genéricas, simplistas e derivadas sobretudo da redução dos indivíduos a uma bitola
cromática e axiológica.
As designações de Guiné e Ethiopia, como modos de identificar o continente
africano, foram objecto de uso indiferenciado nos textos. Porém, em determinada altura,
opera-se nos discursos uma clarificação destas categorias geográficas.
O termo Ethiopia, enquanto categoria geográfica, predominou até tarde nos
discursos sobre a África. Para Duarte Pacheco Pereira existiam duas Etiópias africanas,

371
Isabel Castro HENRIQUES, A Herança Africana em Portugal, Lisboa, CTT Correios de Portugal, 2009,
p. 11.
372
Thomas Foster EARLE and Kate J. P. LOWE (Editors), op. cit..

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integradas na Etiópia Inferior, e uma Etiópia Asiática ou Superior, que “começa no rio
Indo, além do grande Reyno de Pérsia, do qual a Índia este nome tomou”.373 Nos inícios
do século XVI, Duarte Pacheco Pereira distinguia no continente africano a Etiópia
Inferior ou Etiópia Baixa Ocidental, também designada “Guiné” ou “região das Ethiopias
de Guinee”374, que se estendia desde o rio Senegal até ao Cabo da Boa Esperança e a
Etiópia Inferior “sob-Egipto”, que abrangia as extensões africanas entre o Cabo da Boa
Esperança e o Cabo Guardafui.375
Quanto à categoria de Guiné, de acordo com José da Silva Horta existiriam
também vários sentidos. O sentido lato, que abrangia toda a costa da África Atlântica até
ao Cabo da Boa Esperança. Este sentido extenso correspondia à categoria jurídica
operatória no âmbito da administração régia e da Ordem de Cristo 376 e era legitimado
pelas bulas papais. Mas havia, em simultâneo, outros sentidos mais específicos, entre os
quais a Guiné do Cabo Verde, que constituía uma sub-zona da África Atlântica, localizada
entre o rio Senegal e a Serra Leoa.377
A acepção mais extensa de Guiné colocava o seu começo no Cabo Bojador, mas
o início da Terra dos Negros era assinalado pelo rio Senegal. Esta Guiné de abrangência
continental tinha correspondência geográfica com a classificação ptolomaica de Etiópia
Austral, Inferior ou Baixa Ocidental, que foi adoptada por Duarte Pacheco Pereira.
Ao longo dos séculos XV e XVI verificou-se, numa perspectiva extra-africana,
uma gradual revelação da África atlântica que, implicando um conhecimento prático dos
litorais, das entradas fluviais, dos sertões e dos seus habitantes conduziria, do ponto de
vista da síntese teórica, a um processo de divisão e classificação do continente em
secções, ou seja, a uma desmontagem da extensa Etiópia de Guiné em parcelas
geográficas, marcadas por particularismos.
Duarte Pacheco terá iniciado a redacção do seu tratado de cosmografia,
provavelmente entre Agosto de 1505, tendo sido interrompido nos primeiros meses de

373
Duarte Pacheco PEREIRA, Esmeraldo de Situ Orbis, Edition critique et commentée por Joaquim
Barradas de CARVALHO, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1991, p. 606.
374
IDEM, ibidem, p. 661.
375
IDEM, ibidem, p. 606.
376
José da Silva HORTA, A “Guiné do Cabo Verde”: produção textual e representações (1578-1684),
(…), p. 43.
377
IDEM, ibidem, p. 44.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

1508.378 O autor era detentor de um conhecimento baseado na sua experiência técnica de


navegador que, em simultâneo com a influência de autores antigos como Pompónio Mela,
Plínio, Sacrobosco e, em menor grau, Ptolomeu, confluiu num esquema mental
geográfico, antropológico e económico, de acordo com o qual avaliou extensões
significativas do continente africano.
Em termos antropológicos, Duarte Pacheco associou a vastidão da África
subsariana, as Ethiopias, aos traços físicos identificados por autores desde a Antiguidade
- “as gentes que nestas Etiópias habitam, são negros e têm os cabelos curtos e crespos,
feitos como frisa de pano”379. Tal imagem genérica do africano, de cabelo eriçado
(comparado a tecido grosseiro) e pele negra, é também associada a juízos morais
depreciativos decorrentes de uma negação da espiritualidade: “os Etiópios, quase bestas
em semelhança humana, alienados do culto divino”.380
A costa da Ethiopia, entre Arguim e o Golfo da Guiné, é, por si, descrita com
detalhe pois, como afirma, “a experiência nos tem ensinado, porque por muitos anos e
tempos que esta região das Etiópias de Guiné temos navegadas e praticadas”.381 Tal
descrição começa com a medição dos graus de latitude e das léguas de distância entre os
lugares do litoral e os do interior. Prossegue depois com as gentes e as mercadorias
essenciais à vitalidade comercial do complexo do ouro e dos escravos.382 Uma profusão
de rios, ilhas, portos, tratos, resgates, pescarias e conquistas são a evidência registada de
um conhecimento prático que se fixa num roteiro de navegação e num inventário
geográfico e antropológico destas partes da África.
Para sul do Cabo de Santa Catarina e da linha equinocial estendia-se uma terra em
que “muita parte dela é deserta, e algua que é habitada, pouco comércio ou nada nela se
acha; porque se fora de rico trato, como a que atrás fica, receberia muito contentamento

378
Joaquim Barradas de Carvalho considera que o início da redação da obra terá sido, provavelmente, em
Agosto de 1505, tendo sido interrompida nos primeiros meses de 1508. A este propósito, veja-se: a
“Esquisse Biographique de Duarte Pacheco Pereira”, de Joaquim Barradas de Carvalho, em Duarte Pacheco
PEREIRA, op. cit., p. 6. Por seu turno, Augusto Epifânio da Silva Dias, concorda com a proposta de Jaime
Cortesão para as prováveis datas de “entre 1505 e 1507-1508”. Veja-se “Introdução” à obra Duarte Pacheco
PEREIRA, Esmeraldo de situ orbis, Reprodução da edição crítica de 1905, anotada por Augusto Epifânio
da Silva DIAS, Lisboa, Sociedade de Geografia de Lisboa, 1975.
379
Duarte Pacheco PEREIRA, Esmeraldo de Situ Orbis, Edition critique et commentée por Joaquim
Barradas de CARVALHO, (…), p. 606.
380
IDEM, ibidem, Prólogo, p. 531.
381
IDEM, ibidem, p. 661.
382
IDEM, ibidem, pp. 601-655.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

em escrever o proveito que daquela região podiamos receber.”383 Só era digna de registo
a área geográfica correspondente ao “Reino do Congo”384 em que, na sequência da
primeira viagem de Diogo Cão, o Mwene Kongo Nzinga Nkuwu e a elite congolesa
aceitaram baptizar-se. A cristianização da “terra de Manicongo” é entendida como um
vector de civilização por excelência e o ensino das coisas da fé, naquelas terras a sul do
Equador, a única realidade capaz de estabelecer uma demarcação entre os diversos graus
de humanidade dos africanos. Apesar do Cristianismo funcionar como um marcador
positivo, que assinala naquelas terras uma espécie de apropriação espiritual, a Cristandade
kongolesa é vista como corrompida pela própria natureza das gentes: “pela pouca
participação que com esta gente temos, a doutrina antre eles se vai perdendo quanto
pode”.385 Esta apreciação de uma cristandade corrompida relaciona-se, certamente, com
a apropriação do Cristianismo pelas sociedades locais através de processos ritualísticos e
simbólicos que, de algum modo, operaram continuidades com o modo de ver o mundo,
renovando e acrescentando algumas referências fundamentais que reforçaram os poderes
da elite, além de que os processos de tradução cultural da teologia cristã para a cosmologia
do Kongo terão resultado em duplos sentidos e ambiguidades, com reflexos nas
representações.386
Para os desconhecidos sertões do nordeste, na província de Anzica ou “terra dos
Anzicos”, Duarte Pacheco Pereira referia a existência de um povo de negros
antropófagos, que tinham muita “guerra com Manicongo”.387 Carlos Almeida refere, a
este propósito, que os europeus sempre ouviram falar que nas terras para norte do rio
Zaire viviam povos que “praticavam o costume de comer carne humana”.388 A questão
da antropofagia é um tópico recorrente nas escritas sobre a África Central, nomeadamente
os territórios a norte do rio Kongo.

383
IDEM, ibidem, p. 666.
384
IDEM, ibidem, p. 668.
385
Duarte Pacheco PEREIRA, Esmeraldo de Situ Orbis, Edition critique et commentée por Joaquim
Barradas de CARVALHO, (…), p. 668.
386
Carlos ALMEIDA, “Christianity in Kongo”, Oxford Research Encyclopedia of African History
https://oxfordre.com/africanhistory/view/10.1093/acrefore/9780190277734.001.0001/acrefore-
9780190277734-e-641 (consultado em 2/09/2021)
387
Duarte Pacheco PEREIRA, Esmeraldo de Situ Orbis, Edition critique et commentée por Joaquim
Barradas de CARVALHO, (…), p. 669.
388
Carlos ALMEIDA, Uma infelicidade feliz. A imagem de África e dos Africanos na Literatura
Missionária sobre o Kongo e a região mbundu (meados do séc. XVI ao primeiro quartel do séc. XVIII),
(…), p. 524.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

As primeiras notícias acerca dos sertões do reino do Kongo chegaram a Portugal


na sequência da segunda viagem de Diogo Cão que, de acordo com a proposta de
interpretação de Carmen Radulet, ter-se-ia realizado em 1483-84. Nesta viagem seguiam
a bordo alguns africanos aprisionados na primeira viagem para que, em ulterior
expedição, servissem de intérpretes ou informadores. É provável também, como sugere
Radulet, que membros desta segunda expedição tivessem adquirido junto dos cativos
alguns conhecimentos da língua do Kongo, de modo a protagonizarem a embaixada
enviada ao Mwene Kongo com o objectivo de “estabelecer relações e obter informações
sobre a região”.389 A notícia da alegada existência de povos canibais pode provir desses
rumores iniciais, transmitidos oralmente pelos africanos, ou de outras informações
colhidas posteriormente entre estes e os marinheiros ou residentes portugueses, parecendo
corresponder a uma imagem que os kongoleses transmitiam de outros povos que
constituíam ameaça militar, que saqueavam e roubavam gado ou que, de um modo geral,
simbolizavam perigo. Jared Staller, num estudo sobre as construções do pensamento,
tanto de africanos, como de europeus, que convergem para o mito duradouro do
canibalismo africano, chama a atenção para a necessária desconstrução metodológica dos
discursos que remetem estranhos invasores e traficantes de pessoas para o extremo do
espectro das práticas do mal, no qual se situa o canibalismo. Nas narrativas africanas, a
violência e a opressão por parte de outros povos era percepcionada como “devoradora”
de comunidades, vindo a assumir, entre os receptores europeus desta mensagem, a
dimensão do canibalismo. Tal interpretação decorria do conhecimento limitado das
línguas Bantu, não sendo compreendida a amplitude do campo semântico e dos sentidos
alegóricos dos verbos “comer” e “consumir”.390 Ao longo da história da África central,
se essa violência gerou um conjunto de ideias e símbolos que socialmente construíram o
medo em certas comunidades, noutras, a imagem do canibal terá sido útil como táctica de
terror, permitindo maximizar os efeitos das ofensivas militares. A verdade é que, segundo
Staller, o mito do medo revestiu-se da figura do canibal, que integrou discursos escritos
e atravessou barreiras sociais, culturais e temporais.391

389
Carmen RADULET, “As Viagens de Descobrimento de Diogo Cão. Nova Proposta de Interpretação”,
in Mare Liberum, N.º 1, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos
Portugueses, 1990, p. 189.
390
Jared STALLER, Converging on Cannibals. Terrors of slaving in Atlantic Africa, 1509-1679, (Africa
in World History), Ohio University Press, Edição do Kindle, p. 8.
391
IDEM, ibidem, pp. 173-174.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Para sul “de Manicongo”, avizinhava-se uma extensa terra desolada. Duarte
Pacheco salienta as Ilhas das Cabras, localizadas a nove graus de latitude sul, onde as
terras são baixas, abundam as pescarias e os búzios nzimbu circulam por moeda. Próximo
do Monte Negro, cerca de quinze graus de latitude sul, começa uma costa de muita areia,
“quase deserta e de muito pouca povoração”392, terra sem proveito, de gente pobre e
idólatra que sazonalmente vem do sertão para ali pescar e “fazem casas com costas de
baleias cobertas com seba do mar, e em cima lançam areia, e ali passam sua triste vida”.393
O autor destaca a dezasseis graus e dois terços de latitude sul uma imponente
conhecença: a Ponta das Pedras e o Cabo Negro. Adiante deste cabo toda a costa é descrita
como trabalhosa de navegar (razão por que as naus da Índia se afastam para ocidente, no
Atlântico sul) e cujo sertão é baixo, coberto de areia e mau de conhecer. Um pouco mais
a sul, na Angra das aldeias, duas povoações assinalam a última presença humana. Depois,
apenas areais, pedras e penedos compõem a paisagem até ao Cabo da Boa Esperança.
Estamos perante uma extensão do continente africano correspondente ao litoral
namibiano, que carecia de exploração mais detalhada, mas que não suscitava interesse,
pois parecia daí não se vislumbrar qualquer ganho económico ou espiritual.
De acordo com esta concepção geográfica, no “fermoso promontório” de Boa
Esperança terminava a África Atlântica e tinha início a Ásia.394 Seguindo o paradigma
geográfico de Ptolomeu395, Duarte Pacheco Pereira associa a natureza montanhosa destes
confins do continente com os Montes da Lua, onde estaria oculta a nascente do rio Nilo.396
Para leste do Cabo da Boa Esperança, o autor sublinha a inexistência de comércio ou
resgates significativos, refere os animais observados (os lobos marinhos e o pinguim
africano), descreve as conhecenças e classifica as gentes: os habitantes da região do Cabo,

392
Duarte Pacheco PEREIRA, Esmeraldo de Situ Orbis, Edition critique et commentée por Joaquim
Barradas de CARVALHO, (…), p. 671.
393
IDEM, ibidem, p. 672.
394
IDEM, ibidem, ps. 678 e 680.
395
Apesar de Duarte Pacheco Pereira escrever que os “Montes da Lua”, de Ptolomeu, devem ser as “serras
fragosas do promontório da Boa Esperança”, de acordo com Joaquim Barradas de Carvalho esta
identificação não é exacta, pois Ptolomeu situa as fontes do Nilo a 12o,5 de latitude Sul, enquanto Duarte
Pacheco Pereira localiza a 34o,5 ou 35o de latitude Sul, no Cabo da Boa Esperança. Acresce que Ptolomeu
afirma na sua Geografia que as Montanhas da Lua são tão altas que estão cobertas de neve e que toda a
cordilheira se estende por 11 graus de longitude, isto é, por cerca de 700 milhas. Veja-se Joaquim Barradas
de CARVALHO, As fontes de Duarte Pacheco Pereira no “Esmeraldo de Situ Orbis”, Lisboa, Imprensa
Nacional Casa da Moeda, 1982, pp. 59-60.
396
Duarte Pacheco PEREIRA, Esmeraldo de Situ Orbis, Edition critique et commentée por Joaquim
Barradas de CARVALHO, (…), p. 679.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

os Khoiokhoi, são categorizados como “gentios”397 e descritos como “negros bestiais /


“gente bestial”, que “andam vestidos de peles e calçados de uas alparcas de couro
cruu”398; são negros, mas não tanto “como os de Jalofo e Mandinga e outras partes de
Guiné” e vivem da pastorícia; na Aguada de S. Brás os “negros desta terra” são
considerados “muito má gente”, capaz de matar a companha das naus.399 Importa, a este
respeito, salientar que, na altura em que Duarte Pacheco Pereira redigiu a obra Esmeraldo
de situ orbis estava já na posse de notícias veiculadas na sequência de diversas armadas
que, estacionando temporariamente na região do Cabo, interagiram com as populações
Khoikhoi, de que resultaram momentos de hostilidade. Das apreensões desses primeiros
contactos forjaram-se imagens que haviam de persistir nos discursos escritos sobre esta
remota parte do mundo, onde a violência dos mares era complementada pela bestialidade
destes “outros Etíopes”400, cuja peculiaridade o autor sublinha. Na escala cromática
afiguram-se gente “não tão negra”, vestem-se com peles de animais, o que acentua a sua
marginalidade em termos humanos, e são considerados uma ameaça para as tripulações
das naus portuguesas que, na derrota da Índia, necessitavam ancorar na costa confinante
com o cabo da Boa Esperança.
Progredindo no sentido da costa oriental de África, a “Ethiopia sob-Egipto”,
Pacheco Pereira destaca a mina de Sofala, que identifica como sendo a Ophir bíblica, e a
vila de Melinde, que anunciara a Vasco da Gama os “Índicos mares e Asiáticas
ribeiras”401, a parte do mundo onde abundava o trato da pedraria preciosa e especiarias.

397
A categorização dos povos designados de “gentios” pressupõe a existência de um referencial bíblico
que, na longa duração, ficou associada à marginalidade espiritual, à ignorância da lei de Deus, à idolatria e
ao paganismo. A propósito do conceito de “gentio”, como categoria elaborada no plano teológico,
previamente aos contactos e a sua utilização no contexto das viagens, veja-se José da Silva HORTA, “A
imagem do Africano pelos portugueses antes dos contactos”, (…). Veja-se ainda, José da Silva HORTA,
“A categoria de Gentio em Diogo de Sá: funções e níveis de significação”, in Clio: Revista do Centro de
História da Universidade de Lisboa, 10, 2004, pp. 137 e 145-146.
398
Duarte Pacheco PEREIRA, Esmeraldo de Situ Orbis, Edition critique et commentée por Joaquim
Barradas de CARVALHO, (…), p. 679.
399
IDEM, ibidem, p. 684.
400
“Other Ethiopians” é a expressão usada por Andries Walter Oliphant na sua leitura sobre a ficção, a
história e o mito no romance de André Brink, The First Life of Adamastor. O autor parte da visão clássica
de Heródoto que concebia duas Etiópias: a dos Etíopes de longa vida, o povo belo e saudável, vivendo na
Núbia Cushítica; a dos “outros etíopes”, moradores das partes ocidentais do continente, que eram
associados a espaços de seres fabulosos e monstruosos. Veja-se Andries Walter OLIPHANT, “Other
Ethiopians. Sideway Glances at Fiction, History and Myth in The First Life of Adamastor”, in Ivan
VLADISLAVIC (Editor), T’Kama Adamastor: Inventions of Africa in a South African Painting,
Johannesburg, University of the Witwatersrand, 2000, pp. 59-69.
401
Duarte Pacheco PEREIRA, Esmeraldo de Situ Orbis, Edition critique et commentée por Joaquim
Barradas de CARVALHO, (…), p. 693.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Em suma, Duarte Pacheco Pereira concebe duas Etiópias: a ocidente, as


“Ethiopias de Guiné”, com uma primeira área de interesse comercial, entre Arguim e o
Cabo de Santa Catarina, e uma outra área correspondente ao Reino do Congo, onde se
concentrou a esperança de trazer a gentilidade à Salvação; a oriente do continente
africano, é o ouro de Sofala que confere notabilidade à “Ethiopia sob-Egipto”.
Entre o Kongo, na costa ocidental, e Sofala, na costa oriental africana, uma vasta
área geográfica surgia como marginal aos interesses de apropriação territorial da coroa
portuguesa. Esta marginalidade, atestada no discurso de Duarte Pacheco Pereira,
associava-se aos povos considerados “gentios” e idólatras, uma vez que as suas
características escapavam às “classificações padronizadas”,402 bem como às terras
percepcionadas como desertas e estéreis, sendo que a construção dessa imagem resultava
de uma óptica exterior e de observação marítima. Fazendo ainda uso das designações
clássicas de Ethiopia, o autor do Esmeraldo de situ orbis atribui aos territórios mais
meridionais do continente africano uma natureza selvagem prolongando, neste sentido,
não só os estereótipos medievais relativos aos vazios da extremidade austral africana,
destituída de civilização e identidade, mas também os rótulos presentes no mapa mundi
de Fra Mauro de uma Ethiopia Austral arenosa, deserta e abandonada.
O entendimento deste espaço intermédio, entre o “Reino do Congo” e a “mina de
Sofala”, e a necessidade de nomear ou “catalogar” uma vastidão geográfica, que mostrava
já não ser a “Guiné” no seu sentido lato ou a “Ethiopia” herdada dos Antigos, originou
historicamente as novas designações de “Terra de cafres”, “Costa de cafres” e “Cafraria”
que surgem, primeiro nos textos para serem transpostos para os mapas, ao longo dos
séculos XVI e XVII.
O topos Cafraria definir-se-ia gradualmente a partir de múltiplas percepções e
seria construído, inventado e recriado a partir de vivências históricas que, submetidas a
uma grelha de leitura civilizacional, narravam a novidade do mundo ao mesmo tempo
que tentavam explicá-la recorrendo, muitas vezes, a um arquivo cultural bíblico e
clássico.

402
Carlos ALMEIDA, Uma infelicidade feliz. A imagem de África e dos Africanos na Literatura
Missionária sobre o Kongo e a região mbundu (meados do séc. XVI ao primeiro quartel do séc. XVIII),
(…), p. 78.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

De acordo com a documentação em análise, a categoria de representação


geográfica historicamente conhecida por Cafraria viria a assumir amplitudes variáveis:
podia compreender os territórios entre os dois referentes topográficos constituídos pelo
cabo Negro, a ocidente, e cabo das Correntes, a oriente, balizados pelas entidades político-
culturais que os portugueses designam de “Reino do Congo” e “Império do
Monomotapa”.
Mas a Cafraria, enquanto categoria de representação do espaço, podia assumir
também uma dimensão geograficamente mais ampla, estendendo-se por toda a África
oriental subsariana, exceptuando o então designado “Reino do Preste João”, o Ngusa
Negast.
No contexto dos séculos XV, XVI e XVII, em que se dá o encontro dos
portugueses com a África e os povos africanos, é importante atendermos às leituras
interpretativas e classificatórias que passaram pelo uso de um léxico social do qual
destacamos os vocábulos de “negros”, “pretos”, “etíopes” ou “guinéus”, a que se
acrescentaram os “cafres”.
Importante será assinalar o momento em que se processa esta destrinça relativa à
classificação de uma parte do território africano e das suas populações. Em que
momentos, em que registos e com que sentidos surgem as categorias de “cafre” e
“Cafraria”?

2.3. Empréstimos culturais subjacentes à categoria “Cafre”

2.3.1. “Cafre”: origem semítica da palavra

A procura da origem da palavra cafre, cujo uso histórico na documentação


portuguesa se aplicou, entre outros, aos povos não islamizados, de religião autóctone, da
África Oriental, conduziu-nos até à sua raiz semítica, composta pela sequência das
consoantes K-p-r.403 Esta raiz triconsonântica está presente na formação de substantivos

403
O processo de formação do tronco das línguas semíticas tem sido descrito em termos de raiz intervocálica
com um “padrão”. A raiz é um conjunto de consoantes numa sequência específica e identifica o domínio
geral do significado de uma palavra. Determinado tronco pode ser distinguido pelo padrão ou pela raiz, No

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

e verbos, tanto na língua hebraica - ‫( כפר‬kaf-pei-resh)404, como na língua árabe - ‫( َكفَ ََر‬kāf-
fāʼ-rā)405, e os desenvolvimentos semânticos são similares em ambas as línguas.
Na língua hebraica a raiz, que se compõe de três ou quatro consoantes, expressa a
ideia comum principal de um grupo de palavras relacionadas e é, em termos semânticos
e gráficos, uma componente firme e imutável da maior parte dessas palavras. 406 Diversos
homónimos comportando a raíz k-p-r aparecem no Hebraico e em outras línguas semíticas
antigas. Do mesmo modo, encontram-se raízes diferentes mas com forma homógrafa, o
que faz com que a discussão entre os linguistas sobre as interpretações etimológicas e
conceptuais não seja consensual.
Da raiz hebraica k-p-r - ‫ כפר‬- formou-se o verbo kipper, a que os académicos
têm atribuído o significado de “cobrir”, “tapar”, relacionando-se este com a noção,
presente na literatura bíblica, de que a expiação consiste em cobrir os pecados. 407 Porém,
segundo Baruch Abraham Levine, o hebraico bíblico kipper e as suas formas relacionadas
não se reduzem a cobrir ou esconder os pecados, assumindo antes o sentido de “limpar”
e da eliminação resultante desse acto. O sentido de “cobrir” teria, segundo Levine, uma
conotação mais tardia.408
De acordo com o estudo deste autor sobre os termos cúlticos na história antiga
de Israel, o uso de kipper, no hebraico bíblico, assemelha-se ao sentido do acádico
kuppuru, que significa “limpar”, “apagar”, e este sentido está presente em diversos
dialectos aramaicos, aplicando-se a contextos não cúlticos.409
Outras formas relacionadas, com base na mesma raíz, sustentam esta
interpretação. É o caso do termo koper, que significa “resgate, pagamento expiatório” e

primeiro caso, os troncos têm uma raiz comum e partilham um campo semântico comum. No segundo caso,
o padrão pode ser combinado com outra raiz e, neste caso, o conceito de campo semântico muda.
As línguas semíticas são marcadas, principalmente, pelas consoantes, recorrendo apenas em certas ocasiões
a sinais que representam os sons vocálicos. Veja-se “Semitic Languages”, in Britannica academic
https://academic.eb.com/levels/collegiate/article/Semitic-languages/66720 (Consultado em 20/12/2020)
404
“Hebrew alphabet”, in Britannica academic https://academic.eb.com/levels/collegiate/article/Hebrew-
alphabet/39759 (Consultado em 20/12/2020)
405
“Arabic alphabet”, in Britannica academic https://academic.eb.com/levels/collegiate/article/Arabic-
alphabet/8156 (Consultado em 20/12/2020)
406
Rewen MERKIN, Z. BUSHARIA, E. MEIR, “The Historical Dictionary of the Hebrew Language”, in
Literary and Linguistic Computing, Oxford University Press, Volume 4, Issue 4, 1989, p. 271.
https://doi.org/10.1093/llc/4.4.271 (Consultado em 6/08/2021)
407
Baruch Abraham LEVINE, In the Presence of the Lord. A Study of Cult and Some Cultic Terms in
Ancient Israel (Studies in Judaism in Late Antiquity, 5), Leiden, Brill, 1974, pp. 56-57.
408
IDEM, ibidem, p. 57.
409
IDEM, ibidem, pp. 60-61.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

que, de acordo com a interpretação clássica dos etimologistas, seria interpretado como
“cobrir, ocultar, esconder” – uma dívida, uma ofensa ou um crime.410
No hebraico bíblico encontram-se verbos derivados de k-p-r com os seguintes
sentidos: aplacar, restituir, expiar, redimir (através de oferendas rituais), perdoar (tendo
Deus como sujeito). Tais formas verbais relacionam-se com o substantivo koper/kofer411,
“resgate, expiação”, que designa o pagamento feito com o propósito de “apagar” ou
“limpar” a culpa resultante de uma ofensa ou, em termos cúlticos, é associado a um
pagamento expiatório que visa a purificação.412
No hebraico e no aramaico tardios encontramos as conotações legais: “negar,
repudiar” (kapranut) e, numa das derivações da raiz k-p-r, a forma nominal
kepirah/kefirah, com o significado de “recusa, descrença”.413 Ocorre, depois, a extensão
deste contexto legal para conotações teológicas: “negar” a crença básica na divindade
(kapar be’iqqar).414 A derivação deste ramo de conotações, relacionadas com a negação
da divindade, está atestada no aramaico e no hebraico tardios (kapar/kepar)415. Esta
posição é também sublinhada por Yitzhaq Feder, segundo o qual o sentido de “negação”,
subjacente à noção de “herético” e “heresia”, não está evidente no hebraico bíblico,
aparecendo no hebraico rabínico, mais tardio.416
Os desenvolvimentos semânticos conduzem-nos à palavra kefira – 417
‫ירה‬
ָ ‫כְּ ִפ‬
que, no hebraico moderno, define heresia, descrença, incredulidade, repúdio, afastamento
ou negação dos princípios tradicionais da fé judaica. Neste sentido, koper/kofer é aquele
que pratica kefira, que transgride qualquer dos mandamentos (Mitzvot).

410
IDEM, ibidem, p. 58.
411
Resposta de Yitzhaq FEDER (Bar-Ilan University) na rede de discussão da H-net (H-Judaic)
relativamente à questão dos significados associados ao radical KPR, bem como aos nomes Kefira e Kofer,
06/12/2010.http://h-net.msu.edu/cgi-bin/logbrowse.pl?trx=vx&list=H-
Judaic&month=1012&week=a&msg=/uO2dvOSuwjkUuWqPCeYdA&user=&pw=
412
Baruch Abraham LEVINE, op. cit., pp. 61-62.
413
IDEM, ibidem, pp. 124-125.
414
IDEM, ibidem, p. 125.
415
IDEM, ibidem.
416
Resposta de Yitzhaq FEDER (Bar-Ilan University) na rede de discussão da H-net (H-Judaic)
relativamente à questão dos significados associados ao radical KPR, bem como aos nomes Kefira e Kofer,
(questão colocada em 06/12/2010).
http://hnet.msu.edu/cgibin/logbrowse.pl?trx=vx&list=HJudaic&month=1012&week=a&msg=/uO2dvOSu
wjkUuWqPCeYdA&user=&pw= (Consultado em 7/10/2010)
417
“Heresy and heretics”, JewishEncyclopedia.com, https://jewishencyclopedia.com/articles/7591-heresy-
and-heretics (consultado em 20/08/2021)

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

De raiz diferente, mas com forma homógrafa, derivaram outras palavras como
kapar/kefar - ‫ כְּ פָ ר‬, que significa aldeia, e ‫ַּפרי‬
ִ ‫ כ‬, aldeão.418 O significado de aldeia e aldeão
encontra-se também na origem da palavra pagão (paganus = habitante das aldeias, rústico,
não urbano) e das conotações do paganismo.
Kefira (Chephirah) é ainda a designação de um povoado bíblico, cidade
originalmente dos Gibeonitas, uma das nações cananeias que, depois da divisão das terras,
passou para o domínio da tribo de Benjamim, uma das doze tribos de Israel.419
No hebraico bíblico kefira - ‫ירה‬
ָ ‫כְּ ִפ‬, transliterado kĕphiyrah (Strong H3716),
designa a forma feminina de kefir - ‫( כְּ ִפיר‬H3715), que significa jovem leoa.420 O
simbolismo do leão na Bíblia está ligado à ideia de força, coragem e majestade.421 No
Talmud há um uso figurativo do leão muito semelhante ao do Antigo Testamento e, neste
sentido, a própria voz de Deus é assemelhada ao seu rugido. No entanto, este animal
majestoso, que na literatura rabínica é enumerado entre as feras perigosas, pode também
simbolizar o espírito de tentação e sedução para a idolatria.422
O descrente ou o idólatra é aquele que nega ou repudia a verdade da unidade e
grandeza de Deus através de cultos fraudulentos ao sol, à lua e às estrelas ou às suas
representações, bem como o culto a outros seres, pela simples razão de que estes foram
criados por Deus.

418
Diversos povoados mencionados em escritos bíblicos e judaicos incluem a palavra kapar/kefar, de que
são exemplos: a) a cidade bíblica de Cafarnaum, Kapar Nahum (aldeia de Nahum); b) o povoado judaico
de Kefar Sava, mencionado no Talmud e nas Antiguidades, de Flavius Josephus; c) o povoado de Kefar
Baram, entre muitos outros: http://www.britannica.com/EBchecked/topic/314183/Koefar-Sava
(Consultado em 7/10/2010)
https://www.jewishvirtuallibrary.org/site-search?q=kefar (Consultado em 7/10/2010)
http://www.jewishencyclopedia.com/view.jsp?artid=123&letter=C&search=kefar (Consultado em
7/10/2010)
419
Após a conquista da região de Canaã, a cidade de Kefira, como outras cidades dos Gibeonitas teria
passado para o domínio de uma das tribos que formaram a monarquia de Israel. Veja-se "Dictionary and
Word Search for Kĕphiyrah (Strong's 3716)". Blue Letter Bible.
http://www.blueletterbible.org/lang/lexicon/lexicon.cfm?strongs=H3716&t=KJV (Consultado em
12/12/2011)
http://www.jewishencyclopedia.com/view.jsp?artid=423&letter=C&search=Chephirah
(Consultado em 7/10/2010)
420
Blue Letter Bible. “Dictionary and Word Search for kᵊp̄ îr (Strong's 3715)”. Blue Letter Bible. 1996-
2010. https://www.blueletterbible.org/lexicon/h3715/kjv/wlc/0-1/
421
Emil G. HIRSH, I. M. CASANOWICZ, Solomon SCHECHTER, “Chephirah”, in Jewish Encyclopedia,
http://www.jewishencyclopedia.com/view.jsp?artid=436&letter=L&search=chephirah (Consultado em
10/12/2011)
422
IDEM, ibidem.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

De acordo com a Jewish Encyclopedia, entre as diversas designações do


Talmud423 para as heresias salienta-se "kofer ba-Torah" (R. H. 17a) ou "kofer ba-
'ikkar”424, sendo que esta é aplicada a quem nega um dogma fundamental da religião
judaica.
São considerados 'koferim ba-Torah': (1) aqueles que dizem que a Torah não veio
de Deus; alguém é um kofer, ainda que diga um simples verso ou letra que tenham sido
pronunciados por Moisés no Pentateuco; (2) aquele que nega a interpretação tradicional
da Torah e se opõe às autoridades que declararam a tradição, tal como fizeram Zadok e
Boethus; (3) aquele que diz, como fizeram os Nazarenos e os Maometanos, que o Senhor
concedeu uma nova aliança e que aboliu a Lei antiga, ainda que fosse de origem divina.425
De acordo com a Torah, os heréticos seriam excluídos do mundo que há-de vir
(Maimonides, "Yad," Teshubah, iii. 6-14) e seriam condenados a Gehinnon, a punição
eterna (R. H. 17a; comp. Ex. R. xix. 5).426
"Kofer ba-'ikkar” é das designações talmúdicas a que mais se aproxima do sentido
da palavra “ateu”. De todas as outras designações aplicadas a heréticos nos escritos
rabínicos nenhuma outra parece sugerir de forma tão manifesta a negação de Deus, da sua
unidade e supremacia.427 Associado ao "kofer ba-'ikkar” está um ateísmo que se
caracteriza mais por uma conduta perversa e imoral do que propriamente por uma
formulação filosófica ou convicção metafísica.428 A conduta ateísta poderá ser inferida a
partir de práticas quotidianas como a observância ou a negligência, tanto das Leis e
Ordenações, como do dia do descanso sagrado ou Sabbath.429
Alguns homónimos que têm a raiz KPR aparecem no Hebraico e noutras línguas
Semíticas, e os sentidos estão etimologicamente ligados a koper (herético) e kefira
(heresia).

423
Segundo Kaufmann Kholer, para além de "kofer ba-Torah” e "kofer ba-'ikkar”, os termos rabínicos
específicos para designar as heresias, entendidas no sentido de cisões ou divisões religiosas, são “min”,
“hizonim” (estranhos ou pessoas alheias a determinado grupo ou sociedade), “apikoros” e “poresh mi-darke
zibbur”. Cf. Kaufmann KOHLER, “Heresy and heretics”, in Jewish Encyclopedia
http://www.jewishencyclopedia.com/view.jsp?artid=623&letter=H&search=heresy and heretics#1660
(Consultado em 10/12/2011)
424
IDEM, ibidem.
425
IDEM, ibidem.
426
IDEM, ibidem.
427
Kaufmann KOHLER e Emil G. HIRSCH, “Atheism”, in Jewish Encyclopedia
http://www.jewishencyclopedia.com/view.jsp?artid=2081&letter=A#6352 (Consultado em 12/12/2011)
428
IDEM, ibidem.
429
IDEM, ibidem.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Na língua arábica, o sentido original do radical KFR - kāf-fāʼ-rā ( َ‫ ) َكفَ َر‬significa


“cobrir”, “tapar”, “ocultar” em contextos de expiação, mas também designa a
ingratidão.430 Segundo Baruch Levine é na língua árabe que encontramos pela primeira
vez a conotação emancipada de “cobrir”, sendo de admitir a possibilidade de existirem
homónimos em que kaffara - “cobrir” não tenha qualquer relação com “ser ingrato,
expiar” pois, tal como nas outras línguas semíticas, da mesma raíz podem sair derivações
homógrafas, mas não necessariamente relacionadas. Se o verbo kaffara - “cobrir” - com
uma capa, com escuridão, etc. - está de algum modo relacionado com a raíz k-p-r, a forma
kaffara, no sentido de “expiar, negar”, no árabe, no hebraico e no aramaico, representaria
um ulterior desenvolvimento semântico do hebraico koper e do aramaico kupra “resgate”,
logo “suborno”, e então expressaria uma noção de dissimulação em contextos legais e
religiosos a que se associa o sentido de “cobrir”.431 Segundo W. Björkman, na
Encyclopédie de l’Islam, kaffara teria o efeito de cobrir as más acções com um véu para
as ocultar ou esconder dos olhares.432
Na sua origem, a palavra kāfir (‫ )كافر‬tem o sentido daquele “que apaga”, “que
cobre”, depois, “que encobre, que dissimula os benefícios recebidos”, ou seja, o sentido
de “ingrato”. O mesmo vocábulo designa também a noite, que cobre as coisas com as
suas trevas.433 A dimensão semântica de encobrir ou ocultar é encontrada na poesia árabe
antiga e também no Corão, sendo que aqui a palavra toma uma acepção religiosa: “que
guarda o silêncio sobre os benefícios de Deus”.
De acordo com Marilyn Waldman, os termos kufr, kāfir e outras formas derivadas
da raíz KFR estão no centro do sistema de valores do Corão, sendo que esta raíz aparece
cerca de quinhentas vezes no livro sagrado.434 Numa abordagem cronológica dos sentidos
KFR nas Suratas do Corão, a autora reflecte sobre um conceito cujo desenvolvimento se
liga à história da pregação de Maomé e a fraca recepção por parte dos Mequenses, bem
como a crescente tensão e ruptura entre os seguidores do Profeta e os descrentes. 435

430
Baruch Abraham LEVINE, op. cit., p. 125.
431
IDEM, ibidem, pp. 126-127.
432
Walther BJÖRKMAN, “Kafir”, in Emeri J. Van DONZEL, Bernard LEWIS, et Charles PELLAT,
Encyclopédie de l’Islam, Nouvelle Édition, Tome IV, Leiden, Brill, 1978, p. 424.
433
IDEM, ibidem.
434
Marilyn Robinson WALDMAN, “The Development of the concept of kufr in the Qur’ān”, in Journal of
American Oriental Society, Vol. 88, Nº 3 (Jul.-Sep., 1968), p. 442.
435
IDEM, ibidem, p. 443.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

De acordo com a abordagem cronológica de Waldman, KFR é, no primeiro


período de Meca, uma das muitas raízes usadas para descrever aqueles que resistem ao
chamamento do Profeta. No entanto, não é ainda uma raíz dominante estando muito ligada
a outras raízes como KDhB, na forma de “negar algo”, de esconder, de ser falso. kaffara
aparece apenas numa quarta parte das 48 Suratas deste período, enquanto kadhdhaba
consta de quase em todas.436 Quando kaffara aparece pela primeira vez, o seu sentido não
é muito claro e tem uma conexão com o vocábulo kadhdhaba.
KFR torna-se distinto por designar a atitude daqueles que mentem. Enquanto
kaffara pode significar a negação, o kāfir é, neste período Corânico, aquele que não vê
ou que se recusa a ver os sinais da presença e do poder de Deus, podendo os seus actos
incluir a mentira. Gradualmente, depois de estabelecido o sentido da raíz KDhDhB, usada
para descrever a rejeição ou negação das bençãos de Deus pelos homens, KFR afirma-se
como uma raíz que descreve a ingratidão humana perante Deus. Esta negação de Deus e
a ingratidão face aos benefícios recebidos conduzem a uma forma simples de definir o
kāfir como um descrente, aquele para quem o fogo dos infernos estará preparado no
último dia. O que conduziria o kāfir ao Inferno pode ser depreendido da Surata 36 =
LXXIV, 43-46: quando questionado no dia do Julgamento, o kāfir responde que não era
daqueles que orava ou alimentava os pobres, mas era alguém que se envolvia em
conversas vãs ou falsas e que considerava o julgamento do último dia uma mentira
(Kadhdhaba).437
No segundo período de Meca dá-se um desenvolvimento do conceito kufr, ligado
à condenação. Na 4ª Surata deste período (52 = XXXVII, 21) há uma referência àqueles
que não são mu’minun e que consideram mentira ou falsidade o julgamento. O conceito
de kufr expande-se a par da própria expansão teológica de Maomé, mas não anulando as
definições anteriores. Enquanto no período anterior, KFR era apenas uma das raízes que
descrevia os oponentes ao chamamento, não sendo a dominante, neste peíodo torna-se a
principal palavra ligada a shirk, o principal tópico discutido e, em vez de aparecer num
quarto das Suratas, está presente em quase todas.438 A razão para o crescente uso desta
raíz não é clara, mas parece estar ligada à apropriação da ideia de “ingratidão” associada

436
IDEM, ibidem, p. 444.
437
IDEM, ibidem, p. 447.
438
IDEM, ibidem, p. 448.

112
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

a kufr. Tal ingratidão pode decorrer do não reconhecimento dos benefícios divinos e
também do politeísmo, através do qual o kāfir não só não acede ao valor de Deus, como
opõe ao seu poder infinito, o poder de outras divindades menores. No primeiro período,
o kāfir não está necessariamente consciente que tem que ser grato a Deus. É ingrato por
ignorância. No segundo período, o kāfir é ainda descrito deste modo, mas cada vez mais
surge como alguém que aceita a criação do mundo por Deus, mas recusa ser grato pelos
benefícios recebidos.
No terceiro período de Meca foi demonstrado conclusivamente que nenhum aviso
usado por Maomé iria ter proveito naqueles que continuassem a mostrar-se hostis à sua
mensagem. Verificam-se pelo menos duas sugestões de que kufr se considerava uma
condição hereditária (Suratas 53 = LXXI, 26-27; 70 = XVIII), que não deixa esperança,
pois a sua atitude implica um corte com a orientação divina, com a luz que conduz os
homens no sentido da verdade e da escolha moral correcta. No Corão, kufr é um conceito
ligado à atitude, às escolhas morais erradas439; kāfir é aquele que, confrontado com a
escolha moral fundamental, por alguma razão vira as costas a Deus e segue os seus
próprios desejos.440 Quando é negada a unidade de Deus, quando os homens se viram
para o mundo das coisas e negam as bençãos divinas tornam-se ingratos, além de que, ao
negarem a possibilidade e o significado de um julgamento, essa negação funciona como
uma causa adicional da punição que espera o kāfir. A forma maior pela qual o kāfir
manifesta kufr é a rejeição do Dia do seu Julgamento, o que equivale, em última análise,
a um estado de cegueira espiritual. Porém, aceder ao coração fechado do kāfir, ao seu
estado de cegueira espiritual, só a Deus compete. Quanto aos homens, estes conhecerão
o kāfir através das manifestações concretas do seu kufr, pelos actos com os quais KFR se
liga ao Corão.
No período de Medina, mercê das exigências da guerra, intensifica-se a oposição
entre kāfirun e mu’minun. A polarização entre KFR e AMN é maior neste período uma
vez que, juntamente com o seu papel político e militar, os mu’minun recebem agora
prescrições e obrigações de Mohammed, das quais o kāfir está naturalmente
excluído.441Kāfir torna-se um termo genérico que define o grupo a ser combatido pois, de

439
IDEM, ibidem, p. 450.
440
IDEM, ibidem, p. 451.
441
IDEM, ibidem.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

acordo com o desejo Divino, o partido dos crentes (mu’minun) deveria cortar a raíz dos
kāfirin. Apesar do carácter genérico do conceito de kāfir e da raíz flexível KFR, o dever
de combate não abrange todos os grupos não integrados na Lei de Mohammed, sendo de
distinguir os munāfiqun, Judeus e Cristãos (Surata 106 = LXIII, 1-3).442
O estudo de Waldman mostra que, ao significado inicial de kaffara, ocorre
historicamente uma acumulação de sentidos em que o “significado básico” se expande
para abranger os “significados relacionais”.443 A crescente oposição entre KFR e AMN
parece derivar menos de um crescimento intelectualizado dos conceitos de “crença” e
“descrença”, do que de uma crescente polarização política, militar e religiosa das partes
designadas por mu’minun e kāfirun.
Como resultado de uma polarização entre os crentes piedosos e os kāfirs, que tem
como pano de fundo um cenário de expansão político-militar, o sentido mais geral de
“infiel” passa a associar-se aos que não professam a fé islâmica e que são ameaçados pela
punição de Deus através do fogo do Inferno. Do mesmo modo, os hadiths, ou seja as
tradições respeitantes às acções e elocuções de Mohammed, referem-se ao destino do
kāfir no dia do Juízo Final e às penas do Inferno em que incorre.
Kāfir, no sentido de “infiel, renegado, incrédulo”, aplica-se àqueles cujo coração
está envolvido pela impiedade, cobrindo ou ocultando a verdade, estando subjacente um
acto de negação e rejeição. Assim, associa-se a alguém cujo coração se fecha à verdade
do Islão e que, por isso, pratica kufr (‫)كفر‬444. O Corão usa o termo kufr para designar a
atitude, o pecado da negação dos fundamentos do Islão. O perfil do kāfir está referido no
versículo corânico “Quem não acreditar em Alá, nos Seus anjos, nos Seus Livros, nos
Seus mensageiros e no Dia do Juízo Final, perde-se irremediavelmente” (An-Nisā:
136).445
No Islão, a incredulidade, a falta de fé e a ingratidão para com Deus, características
do Kāfir, podem ocorrer sob diversas categorias correspondentes a níveis de gravidade e

442
IDEM, ibidem, p. 452.
443
Os conceitos de “basic meaning” e “relational meanings” resultam do trabalho de Toshihiko IZUTSU,
God and Man in the Qur’an: Semantics of the Qur'anic Weltanschauung, Tokyo, Keio Institute of Cultural
and Linguistic Studies, 1964, Apud IDEM, ibidem, p. 453.
444
“Nove regras a respeito de Kufr e Takfir”, Compilado pelo Comité Editorial do Salafi Publications,
Islam em linha, https://www.islamemlinha.com/index.php/artigos/islam/item/nove-regras-a-respeito-de-
kufr-e-takfir (Consultado em 23/08/2021)
445
“Quiconque ne croit pas en Allah, en Ses anges, en Ses Livres, en Ses messagers et au Jour dernier,
s’égare, loin dans l’égarement” (An-Nisā: 136). Tradução portuguesa nossa.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

formas de transgressão, que podem ir desde o paganismo, passando pela hipocrisia e pela
blasfémia, até à mais grave de todas as categorias, a apostasia446. Apesar de o infiel ser,
sob todos os pontos de vista, um impuro torna-se possível graduar a infidelidade em dois
grandes níveis de distinção:
Num primeiro nível, existe o Kuffar al-Tahāra, aquele que vivendo no próprio
mundo muçulmano, o Dar al-Islām, obtém um determinado grau de indulgência
compatível com um direito à protecção legal, designando-se pelo nome de dhimmis e
musta’mins.447
Fora do mundo muçulmano, existe o Kuffar al-Djihād ou seja, no contexto da
guerra santa contra os habitantes infiéis do Dār al-harb, através do pagamento da djizya
e do kharādj, aqueles podem tornar-se dhimmis, recebendo a mesma protecção
material.448
Num segundo nível, existem os outros infiéis propriamente ditos, designados por
kāfirun asliyyun. A estes espera-os a morte ou a servidão, no caso de cairem como
prisioneiros de guerra nas mãos dos muçulmanos.
Durante o processo de penetração progressiva do Islão em África, a diferença
entre apóstatas e pagãos de origem parece ter sido difícil de estabelecer, pelo que a
designação genérica de kāfir acabou por se impôr.
Para compreender o desenvolvimento histórico da atitude do Islão face aos povos
que não professavam a mesma religião, torna-se necessário observar que esta atitude foi
condicionada, nos primeiros séculos, menos por razões religiosas do que político-
económicas. A este respeito, parece revestir-se de importância primordial o
relacionamento de natureza comercial estabelecido entre a Arábia antiga e os territórios
africanos que, entre outras mercadorias, forneciam mão-de-obra escrava, compondo esta
o estrato mais baixo da sociedade.
Porém, nem todos os escravos se destinavam a desempenhar as tarefas mais duras;
alguns eram tocadores, outros eram poetas. Ora, através de uma análise de fontes literárias
e anedotas, produzidas por alguns escravos poetas que se tornaram notáveis, Bernard

446
https://www.islamemlinha.com/index.php/artigos/islam/item/nove-regras-a-respeito-de-kufr-e-takfir
(Consultado em 23/08/2021)
447
Walther BJÖRKMAN, “Kafir”, in Emeri J. Van DONZEL, Bernard LEWIS, et Charles PELLAT,
Encyclopédie de l’Islam, (…), p. 426.
448
IDEM, ibidem.

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Lewis constatou que os preconceitos face aos negros africanos afirmaram-se na Arábia
antiga, durante os séculos VII e VIII.449 Nos versos e narrativas de poetas, descritos como
“negros”, está patente o lamento devido ao insulto e discriminação de que eram objecto,
devido à sua ascendência africana, sempre associada ao estatuto inferior da negritude e
aos padrões de uma estética negativa. Traços físicos como a pele mais pigmentada, o
cabelo retorcido/encrespado, o formato do nariz e o cheiro da pele eram satirizados. Os
insultos de ignorância, falta de discernimento e fraqueza mental agravavam o padrão de
fealdade de que eram vítimas os descendentes de africanos.
Com o advento do Islão assistiu-se à condenação, na literatura religiosa, da
arrogância social patente em tal discriminação e é proclamada a igualdade de todos os
muçulmanos perante Deus. A religião funcionou como um nivelador social, pois “pela
crença o negro asemelhava-se ao branco”.450 No entanto, nesta literatura religiosa ligada
à emergência do mundo islâmico, surgem novos padrões de discriminação e hostilidade
racial.451 O mundo muçulmano via-se a si mesmo como o mundo civilizado por
excelência, uma espécie de ecúmena pois, de acordo com a matriz islâmica, considerava-
se que o mundo exterior era habitado por povos infiéis e bárbaros. Alguns eram
reconhecidos como tendo formas aproximadas de religião e verniz civilizacional, mas
outros – politeístas e idólatras – eram vistos como reservatórios de mão-de-obra escrava.
A escravidão era vista como benefício que iniciava os povos pagãos e bárbaros num modo
de vida mais polido, através do qual seriam moldados pela “fé verdadeira”.452
Um dos autores que classificou os povos do mundo, de acordo com esta matriz,
foi Sa’id al-Andalusi (d. 1070), um qadi da cidade de Toledo que distinguia os povos
civilizados, os que cultivavam a ciência e o saber, dos povos bárbaros, que “se parecem
mais com as bestas do que com os homens”. 453 Considerava existirem no mundo os
bárbaros do norte, que vivem entre o último dos sete climas e os limites do mundo
habitado, e os bárbaros do sul, que vivem próximo e para além da linha equinocial, nos
limites meridionais da ecúmena. De acordo com este qadi de Toledo, os bárbaros do sul
caracterizavam-se pelo seu temperamento quente e humor feroz, falta de firmeza na mente

449
Bernard LEWIS, Race and Slavery in the Middle East. An Historical Enquiry, New York, Oxford
University Press, 1990, pp. 28-30.
450
IDEM, ibidem, p. 35.
451
IDEM, ibidem, p. 36.
452
IDEM, ibidem, pp. 37-38 e 42.
453
IDEM, ibidem, p. 47.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

e sobejava-lhes inconstância, imbecilidade e ignorância. Estes povos, designados por


Nubios, Zanj e outros, tinham o estigma físico da cor negra e do cabelo lanoso e o seu
espaço geográfico situava-se na extremidade da Terra da Ethiopia.454
No âmbito da construção da identidade islâmica, que pressupõe a concepção
simultânea de um esquema paralelo “em negativo”, os autores integrados naquela matriz
designaram de Zanj os povos falando línguas Bantu da África Oriental, a sul dos Etíopes.
De entre os povos com quem os mercadores islâmicos estabeleceram ligações, os Zanj
eram os menos respeitados, os mais capturados e vendidos como escravos.
No século XV colocavam-se várias questões legais directamente relacionadas com
a aquisição, a manutenção e a venda de escravos africanos. O âmago de tais questões
ligava-se à própria natureza espiritual do indivíduo reduzido à condição de escravo.455 Os
doutores da Lei Sagrada consideravam que a prática da “escravatura é descrença [kufr]”.
Mas, seria este princípio incompatível com outro, há muito estipulado, de que era legítimo
capturar e escravizar os infiéis (kāfirs)? E tal princípio seria aplicável mesmo depois da
conversão?456
As respostas as estas questões determinam claramente o direito de capturar
indivíduos descrentes (kāfirs) e reduzi-los ao estatuto de escravo. Os indivíduos vivendo
no Dar al-Harb (ou Dar al-Kufr) estavam sujeitos às humilhações inerentes à condição
de escravo, mesmo depois de convertidos ao Islão pelos seus senhores. É a descrença
original que os conduz à escravidão e esta condição não cessa, pois consiste não apenas
na punição de uma existência passada, mas tem também uma dimensão pedagógica, pois
visa desencorajar a infidelidade.457
Após a época das Cruzadas, os conflitos militares, os sentimentos de ódio aos
Francos, e talvez também as querelas dogmáticas que daí decorreram, conduziram à
formação de uma caricatura grotesca do kāfir, na imaginação popular, e a uma dimensão
injuriosa do termo. A partir do turco, a palavra kāfir terá penetrado na maior parte da
línguas eslavas; por outro lado, pela via do árabe kāfir e kuffār entrou no português e

454
IDEM, ibidem, pp. 47-48.
455
“A Legal Ruling (Fifteenth Century)”, traduzido por Ahmad AL-WANSHARISI, in Kitab al-Mi’yar al-
Mughrib, vol. 9 (Fes, 1313 A. H./1896), pp. 171-172, Apud IDEM, ibidem, p. 148.
456
IDEM, ibidem.
457
IDEM, ibidem.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

espanhol “cafre” e no francês “cafard”, transportando consigo uma carga simbólica


depreciativa destinada a perdurar nas diversas línguas até à actualidade.458
Este vocábulo, que classifica populações de acordo com a fé praticada, foi objecto
de uma longa história tanto nas línguas semíticas, como no Suaíli, no Português em outras
línguas europeias e asiáticas. Na longa história do uso deste vocábulo verificaram-se
apropriações e extrapolações de sentidos, que transformaram o substantivo original,
designando um opositor religioso, numa categoria classificatória de populações,
amplamente preenchida por significados derivados de padrões culturais e civilizacionais
marcados pelo etnocentrismo.

2.3.2. “Cafres” e “bárbaros” na visão do mundo de Ibn Battuta

Dos viajantes do mundo árabe, produtores de discursos versando a diversidade


geográfica, cultural e religiosa, destaca-se Ibn Battuta que, saído de Tânger em 1325,
percorreu durante quase três décadas um complexo itinerário entre o Magrebe e a distante
China, através das milenares rotas terrestres e marítimas do “Velho Mundo”.
A geografia mental fixada por Ibn Battuta no relato da sua viagem (Rhila)
corresponde a uma imagem do mundo, predominante no período anterior à expansão
marítima dos povos peninsulares. Um mundo que se estrutura em torno do Mar
Mediterrâneo, cujo âmago, para os adeptos do Islão, se localiza na Península Arábica.
Assim, numa primeira fase da sua viagem, Battuta desloca-se num espaço plenamente
reconhecível, pela cultura aí implantada, pelas gentes, pelos valores, pela própria
configuração das cidades. Trípoli, Alexandria, Cairo, Meca, Medina, Gazza, Jerusalém,
Tiro, Alepo, Antioquia, Damasco, Cufa, Baçora, Bagdad, Nínive são alguns dos centros
vitais do Dar al-Islam. Nestas cidades, o centro cívico e religioso é a mesquita, a qual se
associa à oração, ao ensino, à administração da justiça, aos aspectos da vida financeira,
aos banhos públicos, exigidos “à salubridade da cidade e à purificação dos seus
habitantes” e até mesmo à hospitalidade a prestar aos visitantes e peregrinos em
trânsito.459 Para além da mesquita, são constantemente descritos o palácio, sede da

458
Walther BJÖRKMAN, “Kafir”, op. cit., p. 426.
459
António Dias FARINHA, O Imaginário da Cidade Muçulmana, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,
1989, p. 71.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

autoridade política e militar, os mercados, as ruas e os arredores, normalmente ricos em


hortas e pomares.
À medida que a viagem se distancia do centro simbólico do mundo e que as
descrições versam as errâncias, através do extremo hemisfério oriental, a ideia de unidade
cultural e de equilíbrio, que preside ao universo islâmico, vai gradualmente dando lugar
a uma noção da diversidade de espaços, paisagens, cidades e gentes, nos quais se
assinalam rupturas e descontinuidades. A religião islâmica, enquanto circunstância viva,
ergue-se neste relato de viagem como um padrão de cultura, em função do qual são
analisadas as sociedades distantes. Assim, uma visão dualista coloca de um lado os
muçulmanos, os verdadeiros crentes, de outro, as populações não islamizadas, que Battuta
designa por “bárbaros” e “cafres”.
A infidelidade (kufr), entendida como oposição ou negação dos fundamentos do
Islão, é um traço definidor de sociedades com religiões opositoras à ética e à prática
islâmica, que o autor assinala na Europa Balcânica, marcada pelo Cristianismo Ortodoxo,
na Etiópia cristã e em vastas áreas da Ásia, como a Índia e a China. Estas sociedades
localizavam-se no Dar al-Harb, que significa “a região da guerra”460, por vezes designada
de Dar al-Kufr, ou seja, a morada dos infiéis ou inimigos religiosos.
A este espaço de infidelidade e portanto, de guerra, opunha-se o Dar al-Islam, que
era o espaço da identidade, que se esbatia nas regiões periféricas, ou mesmo
excêntricas.461
Nos percursos pela Índia, Ibn Battuta encontra Emires muçulmanos, em plena
acção de expandir o Islão, num confronto belicoso com os “Cafres Indios”, pagãos e
rebeldes.462 O texto que relata as suas viagens estabelece bem a oposição entre os
“pacíficos, de religião boa” e os ímpios, designados pelas expressões “Cafres” / “paíz
dos Cafres” / “aldea dos Cafres”.463

460
Mark HORTON & John MIDDLETON, The Swahili. The Social Landscape of a Mercantile Society,
Malden, Blackwell Publishers, 2000, p. 48.
461
Joseph CUOQ, Histoire de L’Islamization de l’Afrique de l’Ouest: des origines à la fin du XVI e siècle,
Paris, Librairie Orientaliste Paul Geuthner, 1985, p. 106.
462
Ibn BATTUTA, Viagens Extensas e Dilatadas do Célebre Árabe Abu-Abdllah, mais conhecido pelo
nome de Ben-Battuta, José de Santo António MOURA (Tradutor), Tomo II, Lisboa, Na Typografia da
Academia, 1855, ps. 62, 64, 234. Esta continua a ser a única edição portuguesa desta obra.
463
IDEM, ibidem, pp. 266-267; 218-219.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

O viajante relatou algumas realidades que considerou abomináveis entre os


“cafres da Índia”, das quais destacou a ingestão de alimentos impuros;464 a prática da
feitiçaria ou encantamentos;465 o culto a ídolos de pedra, em espaços considerados
tenebrosos e sombrios;466 as cerimónias fúnebres, em que as viúvas cafres se faziam
queimar vivas com seus maridos defuntos;467 os ataques guerreiros em que, de forma
banal, os cafres cortavam as cabeças aos seus inimigos.
A designação de cafre, aplicada às populações não islamizadas da Índia, está
repleta de significados negativos, afirmando-se como uma categoria de classificação dos
povos considerados inimigos da fé islâmica e, como tal, desprovidos de qualidades
humanas como a generosidade. No texto das viagens de Ibn Battuta, os cafres, senhores
de territórios em guerra, nos quais o cenário dominante é o caos das aldeias devastadas,
simbolizam oposição e ameaça e, por esse motivo, tornam-se alvo do espírito e da acção
da “Guerra Santa”, estando condenados à morte e à captura.
Nos complexos trilhos da sua viagem, Battuta empreendeu uma peregrinação a
Meca e, a partir da Península Arábica, navegou para sul do Mar Vermelho até alcançar as
primeiras cidades do litoral oriental africano.
A navegação para sul, ao longo da costa conhecida por Azânia ou Terra dos
Zanj468, constituía desde os tempos romanos uma rota comercial de acesso a mercadorias
raras, como a goma arábica da região do Cabo Guardafui, carapaças de tartaruga, corno
de rinoceronte, cristal de quartzo e, principalmente, marfim, ouro e escravos,469
mercadorias estas que mobilizavam um sistema de trocas de longa distância entre os
portos do litoral e o interior do continente africano. Segundo Bernard Lewis, a busca de
mercadorias como o ouro e os escravos terão levado os árabes a desenvolver com o
continente africano um intensivo comércio por terra.470

464
IDEM, ibidem, p. 7.
465
IDEM, ibidem, p. 219.
466
IDEM, ibidem, p. 29.
467
IDEM, ibidem, p. 28.
468
H. Nevile CHITTICK, “The Coast of East Africa”, in Peter Lewis SHINNIE (Ed.), The African Iron
Age, Oxford, Clarendon Press, 1971, p. 110.
469
A exportação de escravos deve ter sido significativa até ao séc. IX. Este facto pode ser explicado pela
revolta dos escravos Zanj, no sul do Iraque, entre 869-883. Segundo Bernard Lewis, os trabalhos de
drenagem de marinhas e preparação de terrenos para a agricultura, nas terras baixas a este de Basra, eram
feitos por escravos negros, oriundos da África oriental. Aqui trabalhavam grupos de quinhentos a cinco mil
homens, havendo mesmo referência a um grupo de quinze mil homens. Cf. Bernard LEWIS, Os Árabes na
História, Lisboa, Editorial Estampa, 1990, p. 118.
470
IDEM, ibidem, p. 103.

120
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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Para além desta dimensão do comércio por terra, ou ao longo do litoral africano,
mais recentemente emergiu a noção de um “Mundo do Oceano Índico” como uma macro-
região, onde uma economia de trocas tras-oceânicas se desenvolveu ao ritmo das
monções, estabelecendo as bases de uma economia global que precedeu a do mundo
Atlântico do século XVI.471
Segundo Sunil Gupta está documentada a presença de artefactos estrangeiros na
costa Suaíli entre os séculos I e VII, evidências que podem ser cruzadas com relatos que
referem viagens aos mais longínquos portos da Azânia.472 Mercadores vindos do Mar
vermelho, Golfo Pérsico e Índia deslocavam-se até aos limite sul desta costa, em Maputo,
Cabo das Correntes, Sofala, Quelimane, Angoche, Moçambique.473
A crescente importância de algumas cidades do litoral, a partir do século X, deixa
perceber a existência de redes comerciais entre povoações do interior e as povoações
costeiras onde estavam em formação as línguas suaíli.474 Estes centros urbanos, de
dimensão variada, ligavam-se, por um lado, às populações africanas do interior, por outro,
ao mundo do Islão, através de laços mercantis e da partilha de todo um código moral e
religioso, que trazia segurança às transacções comerciais e prestígio às elites
governantes.475 Mark Horton assinala a questão da islamização da África oriental como
um dos tópicos mais polémicos e controversos da história deste litoral. Os padrões e os
meios pelos quais o Islão se propagou na costa oriental africana são variáveis, mas parece
ser evidente que, veiculada pelos mercadores, a religião terá chegado a algumas
povoações do litoral e que terá sofrido um processo de reelaboração pelas sociedades
locais, de acordo com o seu próprio contexto cultural. Segundo o autor existem evidências
arqueológicas da prática do Islão na África oriental, datadas do séc. VIII.476

471
Gwin CAMPBELL, “Africa and the Early Indian Ocean World Exchange System in the Context of
Human–Environment Interaction”, in Gwin CAMPBELL (ed), Early Exchange between Africa and the
Wider Indian Ocean World, Montreal, Palgrave Series in Indian Ocean World Studies, 2016, p. 1.
472
Sunil GUPTA, “Contact between East Africa and India in the First Millennium CE”, ibidem, p. 169.
473
IDEM, ibidem, p. 160.
474
H. T. WRIGHT, “Trade and Politics on the Eastern Littoral of Africa, AD 800-1300”, in Thursten
SHAW, Paul SINCLAIR, Bassey ANDAH & Alex OKPORO (Eds.), The Archaeology of Africa. Food,
Metals and Towns, London, Routledge, 1993, p. 659.
475
Mark HORTON & John MIDDLETON, op. cit., p. 48.
476
A investigação arqueológica em Shanga, levada a efeito por Mark Horton, permitiu confirmar que a
Mesquita, construída cerca do ano 1000, se alicerçava sobre estruturas de uma outra mesquita mais antiga
e de menor dimensão. As análises de radiocarbono, realizadas de acordo com os níveis estratigráficos,
permitem datar essa mesquita primitiva como sendo seguramente do século VIII. Veja-se Mark HORTON
& John MIDDLETON, op. cit., p. 49.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Cerca do século X, o Islão começou a propagar-se pelos núcleos urbanos


dinamizadores do comércio na costa da Azânia. As primeiras cidades islamizadas
parecem ter sido as ilhas de Pemba e Zanzibar, mas Kilwa, Shanga e Manda também se
terão desenvolvido como grandes centros urbanos com edifícios da elite e mesquitas
construídas em pedra de coral.477
No séc. X, segundo uma descrição de Al-Mas’udi (916), Qanbalu (Pemba) tinha
uma população mista, constituída por muçulmanos e “idólatras Zanj”.478 Segundo o
testemunho de Al-Idrisi, de cerca de 1150, cidades como Barawa, Mombaça e Melinde,
assim como outras não identificadas, seriam ainda cidades pagãs. Segundo este geógrafo,
Barawa, no sul da Somália, era a última cidade na terra dos infiéis. 479 Apesar da fixação
de mercadores muçulmanos, a maioria das cidades costeiras terão permanecido pagãs até
cerca do séc. XIII. Do ponto de vista do observador islâmico, as populações autóctones
eram integradas em categorias religiosas marginais: idólatras, infiéis e pagãos. 480
O itinerário de Ibn Battuta pela costa oriental africana, em 1331, conduziu-o a
cidades como Aden, Zailá, Mogadishu (Maqdaxau), ilha de Mombaça e Coluá (Kilwa?).
Antes de entrar na costa Suaíli, visitou as duas sentinelas do Mar Vermelho: Adém481, na
costa meridional da Arábia, a curta distância do Estreito de Bab-el-Mandeb, e Zailá, na
costa africana, cidade que no século XIV se tornou uma importante metrópole comercial,
em ligação com a Etiópia.
A propósito desta cidade, Ibn Battuta afirma:
“he cidade dos barbaros, pois he hum povo da Ethiopia da seita Xafeaia e o seu paiz hum
deserto de hum mez de marcha (...) os seus rebanhos são camelos, e tem ovelhas, celebres
pela gordura. Os habitantes de Zailá tem cor negra e a maior parte delles são Uabeda, que
he cidade grande, e tem huma magnifica praça, posto que a mais immunda, a de maior

477
Anneli EKBLOM, Paul LANE, Chantal RADIMILAHY, Jean-Aime RAKOTOARISOA,
Paul SINCLAIR, and Malika VIRAH-SAWMY, “Migration and Interaction between Madagascar
and Eastern Africa, 500 BCE– 1000 CE: An Archaeological Perspective”, in Gwin CAMPBELL (ed),
Early Exchange between Africa and the Wider Indian Ocean World, Montreal, Palgrave Series in Indian
Ocean World Studies, 2016, p. 212.
478
Greville S. P. FREEMAN-GRENVILLE (Ed.), The East African Coast. Select Documents from the first
to the earlier nineteenth century, London, Rex Collings, 1975, p. 14.
479
Mark HORTON & John MIDDLETON, op. cit., p. 47.
480
Greville S. P. FREEMAN-GRENVILLE (Ed.), op. cit., Al-Mas’udi (séc. X), p. 14; Crónica de Kilwa
(c. 1520), pp. 36-37, ps. 39 e 46.
481
Devido à sua importância estratégica, a cidade de Adém recebia produtos da Índia e da China que, depois
de subirem o Mar Vermelho, alcançavam os mercados mediterrânicos. Esta cidade foi visitada em 1488 por
Pero da Covilhã. Estava a quatro dias de viagem de Zailá.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

fedor do mundo habitado, e a mais agreste. (...) preferi pernoutar no mar, não obstante o
seu vehemente terror, por não pernoutar nella por causa da sua immundicie ”.482

A pureza urbana, subjacente ao imaginário da ciadade islâmica, contrasta com a


representação desta cidade africana, definida pelo autor como “bárbaros” sectários.
Ibn Battuta, que esteve em Mogadishu (Maqdaxau), atesta que os povos falam em
idioma desconhecido, embora o Sultão mostrasse conhecer algumas palavras da língua
arábica. 483
Na descrição física dos habitantes das cidades costeiras, é salientada a cor negra:
“Os habitantes de Zailá tem cor negra”484; “Ethiopes de cor negra bem firme”.485 Quanto
aos traços de carácter colectivo, destaca a barbárie: “cidade de bárbaros”486,
“bárbaros”487, “cidades immundas, agrestes e de maior fedor do mundo habitado”.488
Do mesmo modo que analisou os povos da Índia, de acordo com uma lógica de
oposição binária entre muçulmanos e cafres, também na costa oriental africana opõe os
“Cafres da Ethiopia”, de religião Cristã, aos habitantes islamizados de Kilwa, descritos
como guerreiros dotados de religião e bondade.489
Através da oralidade, Ibn Battuta recebeu de um mercador de Kilwa a informação
de que a cidade de Sofala estaria “a metade de hum mez de caminho distante de Coluá; e
que entre Sofala e Iufi do paiz dos Allimiins ha a marcha de hum mez. De Iufi traz-se o
ouro em pó para Sofala”.490
A África Subsariana visitada por Ibn Battuta integra as regiões consideradas
periféricas relativamente aos grandes “centros vitais” do Islão. Tanto a costa suaíli, como
o Império do Mali, foram visitados por Ibn Battuta, pelo facto de serem regiões
islamizadas. No entanto, tanto no eixo oriental, como no ocidental, Battuta foi

482
Ibn BATTUTA, op. cit., Tomo I, (…), pp. 315-316.
483
IDEM, ibidem, p. 316.
484
IDEM, ibidem, pp. 315-316.
485
IDEM, ibidem, p. 323.
486
IDEM, ibidem, p. 315
487
IDEM, ibidem, p. 317.
488
IDEM, ibidem, p. 316
489
IDEM, ibidem, p. 323.
490
IDEM, ibidem, p. 323.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

surpreendido por práticas e costumes que considerou estranhos, atendendo ao seu


enraizamento nas religiões autóctones.491
Entre os anos de 1352 e 1353, a sua última grande aventura levou-o ao Mali, onde
visitou as mais importantes cidades do bilad al-sudan,492 ou “terra dos negros”. Em
muitos aspectos, Ibn Battuta revelou incompreensão relativamente às diferenças culturais.
No Mali, o Islão dos príncipes e dos notáveis coexistia com práticas religiosas locais. De
facto, o Islão em expansão na África sudanesa, que Ibn Battuta testemunhou, era ainda
essencialmente um “fenómeno de chefes”, sem que isso implicasse alterações nas
estruturas tradicionais da sociedade.
Quando Ibn Battuta visitou a África oriental, no séc. XIV, o Suaíli estava a evoluir
para uma das principais línguas de comércio ao longo da costa. 493 Esta língua incorporava
numerosos empréstimos do árabe, do persa, do hindu, principalmente palavras religiosas,
políticas e relacionadas com o comércio mas é, no fundamental e na estrutura, uma língua
africana Bantu associada a uma cultura mercantil, urbana e litoral.494
A palavra árabe sahil significa costa, litoral, e os habitantes desta costa eram
designados por sauahil. Por oposição a estes sauahil ou habitantes da costa, vivendo em
núcleos urbanos crescentemente islamizados, os árabes designavam por idólatra, pagão
ou kāfir as populações não islamizadas do interior, onde predominavam as sociedades e
as religiões tradicionais. No contexto da expansão do Islão e de um longo processo de
aculturação, que marcou os núcleos urbanos do litoral, o vocábulo árabe kāfir terá sido
integrado na língua Suaíli, sob a forma kafiri, um substantivo designando um infiel, um
descrente e aplicando-se a quem não praticava a religião do Corão.495
Na língua Suaíli, o substantivo, kufuru significa blasfémia, sacrilégio, impiedade,
profanidade; como verbo traduz-se por blasfemar, amaldiçoar, cometer sacrilégio.
Segundo Machozi Mbangale496, a palavra kafiri é hoje aplicada pelos muçulmanos
suaíli às gentes não professas no Islão. Para este autor, o significado actual do vocábulo
não está isento de uma dimensão insultuosa; não se trata apenas de um substantivo, mas

491
IDEM, ibidem, pp. 119-121.
492
Said KAMDUN & Noël KING, Ibn Battuta in Black Africa, Princeton, Markus Wiener Publishers, 2003
(Ed. de 1994 revista e aumentada), p. xxv.
493
IDEM, ibidem, p. xx.
494
IDEM, ibidem, pp. xx-xxi.
495
http://africanlanguages.com/swahili/
496
Dados obtidos numa entrevista com o Prof. Doutor Machozi Tshopo Mbangale, na Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa, em 09/12/2010.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

antes de um modo de classificar “os outros”, os negros, atribuindo-lhes marginalidade


cultural e civilizacional. Sendo originalmente um vocábulo árabe de sentido religioso,
estamos perante uma classificação que parte da religião como critério civilizacional por
excelência e esse critério integra, em si, preconceitos raciais.
A palavra cafre terá sido uma das que, tendo uma origem árabe, entrou no léxico
português durante os primeiros anos do séc. XVI, fruto dos contactos dos portugueses
com os mercadores suaíli da região de Sofala. De acordo com a opinião de Machozi
Mbangale pode explicar-se, em termos linguísticos, a entrada do vocábulo cafre na língua
portuguesa, tanto a partir tanto da língua Árabe, como da língua Suaíli.
Assim, a entrada da palavra a partir do Árabe kāfr ou kāfir poderá ter ocorrido de
duas formas:
1º) A passagem do árabe "kāfr" ao português "cafre" /kafre/, pelo fenómeno de
paragoge, em que a vogal /e/ se acrescenta no final da palavra portuguesa /kafre/;
2º) A passagem do árabe "kāfir" ao português "cafre" /kafre/, que se pode explicar
por dois fenómenos: por síncope, em que a vogal /i/ do meio da palavra árabe desaparece;
por paragoge, em que a vogal /e/ se acrescenta no final da palavra portuguesa /kafre/.
Mas, se eventualmente a entrada da palavra na língua portuguesa ocorreu a partir
do Suaíli, neste sentido terão ocorrido dois fenómenos: 1º) por síncope, a vogal /i/ do
meio da palavra desaparece; 2º) a mudança da vogal anterior /i/ do final da palavra suaíli
para a vogal central /e/ em português.

2.3.2. O sudeste africano no poema de Ibn Magid, As-Sufaliyya

De que modo a concepção geográfica e antropológica de matriz islâmica


representava a África do sudeste? Terá essa concepção exercido influência nas
representações portuguesas dos primeiros tempos de contacto com esse espaço africano?
Que significados envolviam o vocábulo cafre, que migrou do Árabe para o Suaíli e de
uma destas línguas para o Português?
Para responder a estas questões, parece-nos ser pertinente abordar um texto de
viagem que é, em si mesmo, uma síntese de um sistema simbólico de representação.

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Trata-se do poema-roteiro de Ibn Magid497, As-Sufaliyya, que tem por objecto o litoral da
Terra dos Zanj, os seus ancoradouros e as suas gentes.
Este texto fixa uma visão poética e mitificada sobre a costa oriental africana
(Azânia) que concebia Sofala, “a baía do ouro”, como o terminus de uma viagem marítima
na direcção do sul.498 Às portas de Sofala, a costa era arenosa, as águas clareavam e as
terras verdejantes, assinaladas pelos bosques de coqueiros, eram um convite à
ancoragem.499 A dois dias de navegação para sul de Sofala, encontrava-se uma baía
abrigada de todos os ventos e, depois desta baía, chegava-se à ilha de Wasika500, terra de
marfim e âmbar cinzento, a principal de um arquipélago que os portugueses viriam a
designar de Bucicas ou Hucicas Grandes501, para se diferenciarem das Hucicas Pequenas,
que se localizavam na foz do rio Save. Para sul, nada mais era conhecido, à excepção da
ilha de Wazah, que os portugueses viriam a designar por Ilha do Inhaca, e nenhum piloto
ousava navegar para além deste limite onde a terra acabava inflectindo, a partir daí, para
ocidente.502 Um conjunto de topónimos de difícil identificação, podem atestar a existência

497
Ahmad Ibn Magid foi um conhecido mestre de navegação do Índico, que redigiu diversos roteiros e
tratados náuticos estudados, copiados e traduzidos posteriormente. Generalizou-se a lenda de que foi este
o piloto que conduziu Vasco da Gama até Calicute. O orientalista francês, Gabriel Ferrand, divulgou esta
tese no meio académico. Segundo Ferrand, o manuscrito 2292=A, da Biblioteca Nacional de Paris, contém
19 roteiros e tratados náuticos de Ibn Majid. Cf. Gabriel FERRAND, Introduction a l’Astronomie nautique
Árabe, Paris, Librairie Orientaliste Paul Geuthner, 1928, pp. 198-199. O manuscrito do poema intitulado
As-Sufaliyya, que integrava, para além deste roteiro, outros dois poemas do piloto, encontrava-se
conservado no Instituto Oriental de Leninegrado e só em 1957 Teodor Adamovich Schumovsky publicou
em fotocópias a tradução para língua russa. Três anos depois, Myron Malkiel-Jirmounsky publicava a
tradução portuguesa: Três Roteiros Desconhecidos de Ahmad Ibn- Madjid o Piloto Árabe de Vasco da
Gama, Lisboa, Comissão Executiva das Comemorações do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique,
1960. Utilizamos a edição crítica de Ibrahim KHOURY, de 1983. Trata-se de um trabalho de exegese
baseado nas versões russa e portuguesa e que procede a uma clarificação das passagens falsificadas do
poema. De acordo com este estudioso, 106 poemas relativos aos portugueses foram acrescentados
posteriormente, não sendo da autoria de Ibn Magid. Cf. Ibrahim KHOURY, As-Sufaliyya. “The Poem of
Sofala” by Ibn Magid, Coimbra, Junta de Investigações do Ultramar, 1983.
498
Ibrahim KHOURY, op. cit., p. 88, verso “697. The reefs, the coast, the measurement, the wind, the
sailing season and the people, / 698. the anchorages, the islands sailing season, (…)”.
499
IDEM, ibidem, pp. 73-74, versos 488, 489 e 503.
500
Segundo Lereno Barradas, o roteiro de Ibn-Madjid integra vários topónimos duvidosos e sem
identificação possível. É o caso das terras de Mulbayuni e Malabati e das ilhas de Sadbuwah que o viajante
encontraria antes de chegar à ilha Wasika, no extremo sul. De acordo com o sistema de conversão de
coordenadas não se verifica uma conciliação entre estas informações do roteiro e a realidade. Cf. Lereno
BARRADAS, O Sul de Moçambique no Roteiro de Sofala do Piloto Ahmad Ibn-Madjid, Coimbra,
Agrupamento de Estudos de Cartografia Antiga – Junta de Investigações do Ultramar, 1967, p. 16.
501
Arquipélago do Bazaruto de que a Ilha Wasika seria a maior, Cf. IDEM, ibidem, p. 172
502
Ibrahim KHOURY, op. cit., p. 80, versos 576-589.

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de povoados costeiros ou estabelecimentos simples integrando-se e articulando-se no


complexo comercial do Índico.503
Na visão do poema, a esta terra banhada pelo Mar dos Zanj, bem conhecida pela
presença multissecular de muçulmanos, seguiam-se os reinos “pagãos”, detentores dos
centros do ouro, a maioria dos quais considerados “bárbaros”, que governavam “terras
desoladas” até ao fim do mundo.504 Tais reinos localizavam-se a sul dos limites
navegáveis, onde o interface com o continente era dificultado por recifes, lodos e
montanhas só conhecidas por Deus. Para o interior do continente haveria desertos e uma
grande cadeia de montanhas onde se localizava a nascente do Nilo e de outros rios
africanos. Estes rios passavam por entre terras de “perfídia”, repletas de répteis e animais
selvagens e habitadas por homens rústicos.505 Segundo o poema-roteiro, nas vastidões
desconhecidas desta parte do mundo, não existiriam rotas para os viajantes e, na natureza
não domesticada, as árvores uniam-se e entrelaçavam-se.506
Apesar desta imagem, que conceptualiza uma finisterra agreste e inacessível,
existem tradições orais africanas que indiciam terem ocorrido contactos entre mercadores
árabes ou suaíli e comunidades que habitavam a extremidade sudeste do continente, a sul
do rio Limpopo. Entre os Mpondo existe uma lenda que descreve a chegada de estranhos
navios que ancoravam nos seus litorais. De noite, eram enviados pequenos batéis, até à
terra firme, com homens armados, usando turbantes e longas vestes ondulantes e que
cuidadosamente aí se escondiam. Diz-se que, ao romper do dia, chegavam à praia outros
barcos com mais homens e que estes deixavam na areia quantidades significativas de
pedras e contas vermelhas, retornando posteriormente ao navio. As gentes locais, que
observavam este ritual a partir das colinas circundantes, depois desciam à praia a recolher
as preciosas contas vermelhas. Era então que alguns daqueles homens escondidos os
cercavam na praia e levavam as mulheres.507
Esta lenda poderá evocar episódios de contacto entre mercadores muçulmanos e
populações costeiras do sudeste africano. Poderemos estar perante a intenção unilateral
de estabelecer o milenar “comércio silencioso”, que os mercadores árabes praticavam,

503
Ana Cristina Ribeiro Marques ROQUE, Terras de Sofala: persistências e mudança. Contribuições para
a História da costa Sul-Oriental da África nos séculos XVI-XVII, (…), pp. 172-175.
504
Ibrahim KHOURY, op. cit., pp. 78-79, versos 548, 550, 552, 553, 563 e 564.
505
IDEM, ibidem, 81, versos 586 e 595-603.
506
IDEM, ibidem, verso 606.
507
Hazel CRAMPTON, op. cit., pp. 18-19.

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tanto na costa ocidental africana, como com os povos da África oriental, desde Axum até
ao Zimbabué508. Tal prática comercial, em que a troca de mercadorias se estabelecia sem
o contacto directo das partes envolvidas, poderia ser uma forma de ultrapassar as
dificuldades de comunicação, decorrentes da barreira linguística e seria, certamente,
desconhecido dos Mpondo.509 Dado que o litoral da terra dos Mpondo estava fora do
alcance dos ventos de monção e, portanto, das embarcações suaíli, as tentativas de
estabelecer este método comercial, a sul do Cabo das Correntes, acabavam por resultar
em raids de captura de escravas, o que possivelmente deverá ter ocorrido numa base
acidental ou irregular510, mas que marcou a memória colectiva destas populações.
No sítio arqueológico de KwaGandaganda, no vale do rio Umgeni, próximo de
Durban, no contextos da 1ª Idade do Ferro (Early Iron Age), foram encontrados um
fragmento de cerâmica vidrada islâmica e algumas contas de vidro, que parecem atestar
ligações comerciais entre populações Nguni e comerciantes suaíli, actuando ao longo da
costa oriental africana e no âmbito das redes comerciais do Próximo Oriente e do Oceano
Índico. Segundo Peter Mitchell, estas redes podem ter alcançado territórios e
comunidades tão a sul quanto a região do Natal.511
As navegações dos portugueses rumo à Índia processavam-se no sentido inverso
ao das navegações árabes ao longo da costa da Azania. Contrariamente à visão do mundo
árabe, expressa no poema de Ibn Magid, que concebe as terras a sul do rio Limpopo como
terras desoladas até ao fim do mundo, as primeiras referências documentais portuguesas
desta costa africana, observada no sentido de sudoeste para nordeste, referem-na como
“densamente povoada” por gente de “bom agasalho”.
O vocábulo cafre, que corresponde a uma categoria de representação
antropológica, é uma das heranças da geografia mental árabe, que assinalava como terras
do fim do mundo Mulbayuni, próximo do Cabo da Correntes, e Wazah, ilha sobranceira

508
António Fernandes, que viajou pelos territórios africanos entre Sofala e o Monomotapa, entre 1514-
1515, descreveu este método comercial, que Gaspar Veloso deu a conhecer na sua carta para o rei de
Portugal. Veja-se Hugh TRACEY, António Fernandes descobridor do Monomotapa (1514-1515), trad.
portug. e notas por Caetano MONTEZ, Lourenço Marques, Arquivo Histórico de Moçambique, 1940, p.
24.
509
“Silent Trade”, in Encyclopædia Britannica
http://www.britannica.com/EBchecked/topic/544086/silent-trade (Consultado em 17/01/2011)
510
Hazel CRAMPTON, op. cit., p. 19.
511
Peter MITCHELL, The Archaeology of Southern Africa, Cambridge, Cambridge University Press, 2002,
p. 288.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

à foz do rio Limpopo. Concebia, também, para sul destes topónimos, a existência de terras
desconhecidas, habitadas por “pagãos selvagens” vivendo numa natureza remota e não
domesticada.
Esta matriz de apreensão e de representação das terras austrais e dos seus
habitantes estava subjacente à designação de cafre, vocábulo adoptado pelos falares
portugueses. Importa problematizar até que ponto a carga pejorativa implícita a este
vocábulo foi resultado de uma construção cumulativa dos discursos portugueses sobre os
africanos que, em parte, mostrou ser convergente com as acepções que este termo assumia
nos discursos muçulmanos locais. Pode também questionar-se se terá ocorrido uma
transferência dos significados negativos nos contextos sociais em que se verificou a
adopção da palavra.
Terá sido no contexto de uma produção documental de natureza administrativa,
relativa à feitoria de Sofala, que encontramos pela primeira vez o registo dos vocábulos
cafre e chaffer.
Na Biblioteca Pública de Évora conserva-se um manuscrito do século XVIII
intitulado Compendio de alguns Vocabulos Arabicos, que se uzão no Idioma Portuguez,
da autoria de Frei João de Sousa, religioso da Ordem Terceira da Penitência. 512 Apesar
de, aparentemente ser distante do período temporal abordado, não deixa de ser um texto
importante atendendo à escassez de outras fontes semelhantes para os séculos anteriores.
Por outro lado, o próprio autor alude a ter compilado autores antigos e a elucidação do
termo “Caferon” revela já ser uma fixação de significados que se construíram na língua
portuguesa sobre o vocábulo de origem árabe “cafre”. Neste compêndio figura a seguinte
definição:
“Caferon. Val o mesmo, que homem infiel, sem Ley, impio, incredulo etc.ª.
Deriva-se do verbo [...] Cafara que significa o mesmo que fica dito.
Tambem se pode derivar este nome do primitivo [...] Cafron /fl. 31 v.º/escrito com a letra
[...], e não com [...] e significa homem rustico salvagem, sem cultura; taes como são os
Cafres que vivem no interior de Africa, Asia e America, que alem de não cultivarem as
terras, são bravios, incomunicaveis, e quazi como brutos: E sendo derivado de [...] Cafron

512
Frei João de Sousa, Compendio de alguns Vocabulos Arabicos, que se uzão no Idioma Portuguez, e
outros Persicos com suas derivações, Etymologias, e significações genuinas; Recopilados de alguns
Authores Portuguezes, Antigos e Modernos, B.P.E., Cod. CXI/2-24, (manuscrito do século XVIII).
Transcrição nossa. Neste manuscrito existe uma referência escrita posteriormente que indica que terá sido
impresso em 1789.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

que val o mesmo que terra secca, arida, falta de agua, inculta, que nada produz, tem então
as significaçoens apontadas.”513

A derivação de “Cafron”, a forma mais antiga da palavra, estabelece uma partilha


de identidade entre as populações africanas, às quais é aplicada a designação, e as terras
áridas e incultas, ou seja, entre o elemento humano e o elemento natural, ambos não
domesticados. Tal versão corresponde a uma categoria antropológica, que integra os
sentidos da própria visão de Ibn Magid, no poema As-Sufaliyya, relativa aos povos
“pagãos” vivendo nos incomensuráveis e desconhecidos sertões africanos.
Tanto os valores herdados da Antiguidade clássica e da civilização judaico-cristã,
como os herdados da civilização islâmica, concebem gradações de agrupamentos
humanos que ora aproximam, ora afastam o reino humano do reino animal, de acordo
com as complexidades inerentes à organização social, à estruturação religiosa e ao
controle e domesticação da natureza circundante.514 Numa das extremidades estaria o
homem selvagem ou natural, a criatura negativa, sem ciência, sem religião e sem lógica;
na outra extremidade, o homem domesticado, a criatura positiva, civilizada, considerada
superior por estar mais “afastado do passado bruto, orgânico” e, portanto, também
imbuído da missão de ajudar os outros grupos a debruçarem-se sobre as insuficiências
que é preciso ultrapassar.515

513
IDEM, ibidem, fl. 31 v.
514
Serge MOSCOVICI, Homens domésticos, homens selvagens, Lisboa, Bertrand, 1976, p. 24.
515
IDEM, ibidem, pp. 25-26.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Parte II. Os primeiros encontros luso-africanos através da documentação


portuguesa: imagens e significados

1. Zonas de contacto entre portugueses e africanos

Previamente à abordagem das representações, é forçoso que consideremos as


coordenadas contextuais dos sujeitos envolvidos na construção dos discursos versando o
mundo do sudeste africano.
Em função do corpus documental, em grande parte constituído por registos
emanados de universos de viagem, contextualizamos Portugal como um pequeno reino
do sudoeste da Europa que, a partir do século XV, esteve envolvido num movimento de
expansão marítima.
Este projeto, assumido pela coroa, ocorreu num tempo em que na Europa se
processava a transição da medievalidade para a modernidade. Afirmava Marques de
Almeida que a chave de toda mudança radicava no século XV, um tempo de síntese das
heranças e preparação do vindouro, tanto na vida material, como ao nível dos saberes, das
mentalidades e dos imaginários.516
A Europa definia-se, acima de tudo, como uma comunidade cristã e latina dos
homens do Ocidente e opunha-se a outras comunidades religiosas, políticas e militares,
com destaque para o mundo Islâmico, em expansão triunfante no Mediterrâneo Oriental,
que ficou simbolizada pela tomada de Constantinopla pelos Turcos Otomanos, em
1453.517
No “Velho Mundo” europeu e, por isso, também no Portugal do século XV, o
ideário cristão enformava a visão cosmológica e condicionava as ações dos homens,
empreendidas em diferentes níveis. A ideia da vontade divina era omnipresente em todos
os momentos da vida dos homens comuns, sustentava os poderes e legitimava as decisões,
desde as linhas de acção régia, passando pelas estruturas de administração do reino e seus
senhorios, até às gentes das tripulações que embarcavam nas caravelas.

516
António A. Marques de ALMEIDA, “Paradigma e Invenção em Pedro Nunes”, in Maria da Graça
Mateus VENTURA e Luís Jorge Semedo de MATOS (coord.), As Novidades do Mundo: conhecimento e
representação na Época Moderna/Oitavas Jornadas de História Ibero-Americana. XI Reunião
Internacional de História da Náutica e da Hidrografia, Lisboa, Edições Colibri, 2003, p. 382.
517
Michel BALARD, Jean BOULÈGUE, Jean-Pierre DUTEIL, Robert MUCHEMBLED, Les Civilisations
du monde vers 1492, Paris, Hachette, 1997, p. 9.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

O Cristianismo era o referente máximo em função do qual o mundo natural e


humano era percepcionado, classificado e registado nos discursos orais e escritos, sendo
este horizonte religioso a moldar os contactos dos portugueses com as outras partes do
mundo.
Desde a década de quarenta do século XV, que as embarcações portuguesas
demandavam os litorais da África ocidental, buscando mercadorias e novos parceiros para
as trocas, como forma de responder aos efeitos devastadores deixados pela crise do século
XIV, nomeadamente a carência metais preciosos, cereais e mão-de-obra. Ao mesmo
tempo que um conjunto de conhecimentos tecnológicos e a prática de navegação
permitiam o avanço das expedições marítimas ao longo da costa ocidental africana, a
coroa portuguesa afirmava também o desejo de ampliar o senhorio espiritual da
Cristandade, com uma base de legitimação sustentada nas bulas pontifícias. 518
A presença comercial e muitas vezes militar e administrativa da coroa portuguesa
noutras partes do mundo levou, a partir do século XV, a uma itinerância de homens e
imaginários que estabeleceram relação com outros complexos geográficos, outras
sociedades, economias e culturas. Os contactos regulares que se foram estabelecendo,
entre espaços civilizacionais distintos, levaram à emergência de “zonas de contacto”,
onde não só se trocavam mercadorias, tecnologias e conhecimentos, mas também se
confrontavam mentalidades, crenças e modos de viver.519
Assinalamos, de forma breve, algumas das importantes “zonas de contacto” que
interferem com o nosso objeto de estudo.
Os três primeiros espaços de encontro situam-se na África atlântica e constituem-
se como experiências históricas de interação, que permitiram a acumulação de dados

518
A bula Romanus Pontifex, de 8 de Janeiro de 1455, atribui aos reis de Portugal o direito de conquista,
ocupação e apropriação dos territórios, portos, ilhas e mares a sul do Cabo Bojador, em toda a Guiné e até
à sua extremidade meridional, impondo as suas leis, edificando templos cristãos e reduzindo à escravidão
tanto “infiéis”, como os “pagãos”. Em 21 de Junho de 1481, a Bula do Papa Sisto IV, Aeterni Regis
clementia, confirma as concessões feitas pela bula Romanus Pontifex. “Bula de Nicolau V, Romanus
Pontifex”, 8 de Janeiro de 1455, in Portugaliae Monumenta Africana, Luís e ALBUQUERQUE e Maria
Emília Madeira SANTOS (Dir.), Maria Luísa Oliveira ESTEVES (Org.), Vol. I, Lisboa, Instituto de
Investigação Científica Tropical, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos
Portugueses, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1993, pp. 60-73. “Bula do papa Sisto IV, Aeterni Regis
clementia”, 10 de Abril de 1488, in Portugaliae Monumenta Africana, Vol. I, (…), pp. 275-284.
519
O conceito de “zona de contacto” como espaço social onde as culturas se encontram, confrontam e lutam
umas com as outras, muitas vezes em contextos marcadamente assimétricos ao nível das relações de poder,
foi definido por Mary Louise PRATT, “Arts of the Contact Zone”, Profession, 1991, New York, Modern
Language Association, p. 34. JSTOR, http://www.jstor.org/stable/25595469 (Consultado em 6/09/2020)

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

informativos e a produção de um saber sobre a terra e as gentes, textualmente


materializado num vasto universo discursivo. A quarta zona de contacto identifica-se com
os longínquos litorais asiáticos, em função dos quais as políticas da coroa portuguesa se
redefiniram e expandiram ao longo do século XVI, com o objetivo de se apropriar de
pontos estratégicos para o comércio
O primeiro dos complexos ou “zona de contacto” corresponde à África ocidental
atlântica, a sul do rio Senegal e até à Serra Leoa, um enorme espaço catalizador e uma
encruzilhada de rotas de comércio. Desde há séculos que diferentes identidades étnicas e
formações políticas, religiosas e linguísticas conviviam na base de interesses mercantis
comuns, estabelecendo articulação entre rotas e sistemas comerciais de longa distância,
que se ligavam ao interior do continente. De acordo com Boubacar Barry, o conjunto
ocidental africano onde se desenvolveram os Impérios do Ghana, Mali e Songhaï,
construiu-se, através do comércio inter-regional, como um espaço de compementaridades
e integração das zonas ecológicas do Sahel, da Savana e da Floresta, ao mesmo tempo
que foi também um espaço de de fronteiras fluidas e migração em todos os sentidos.520 A
partir do conceito de Senegâmbia, de Boubacar Barry, José da Silva Horta e Eduardo
Costa Dias definem a Grande Senegâmbia como um espaço de “convivialidade e
conveniência”, “complementaridade e transição”, sendo percorrido por mercadores
locais, muçulmanos e não muçulmanos, que dinamizavam o comércio desde as zonas
costeiras e bacias fluviais até ao interface Sahariano-Saheliano.521 Este vasto espaço da
África ocidental, onde se inscreviam as identidades e os poderes políticos dos Fula ou
Fulbé e Wolof, a norte, e dos Mandé, a sul, assistiu, no século XV, a uma viragem para o
Atlântico, desencadeada pela chegada de mercadores portugueses.
Foi nas franjas atlânticas e nas margens dos rios que se estabeleceu o interface de
contacto com os portugueses, por vezes assimétrico e violento, como ocorreu com o
comércio de escravos, e por vezes também integrador, como aconteceu com a formação
de comunidades afro-portuguesas nos “Rios de Guiné” e arquipélago de Cabo Verde. A
viragem atlântica gerou novas dinâmicas de poder associadas aos circuitos mercantis que

520
Boubacar BARRY, Senegâmbia: o Desafio da História Regional, Rio de Janeiro, SEPHIS – Centro de
Estudos Afro-Asiáticos, 2000, pp. 65-67.
521
Boubacar BARRY, La Sénegambie du XVe au XIXe Siècle. Traite Négrière, Islam et Conquête
Coloniale, Paris, L’Harmattan, 1988; Eduardo Costa DIAS et José da Silva HORTA, “ ‘La Sénégambie’:
un concept historique et sociocultural et un object d’étude réévalués”, in Mande Studies, Vol. 9, 2007, pp.
10-11.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

ligavam a costa da Guiné às Ilhas de Cabo Verde e definiu modos de articulação entre os
interesses comerciais desenvolvidos nestes espaços complementares, que em muito
tentavam escapar ao esforço de controlo burocrático-administrativo da coroa portuguesa.
Neste contexto, foi-se afirmando um grupo de indivíduos que viviam e actuavam
comercialmente à margem das autoridades da coroa e se “lançavam com os negros” nas
terras de Guiné. As designações de “lançados” e “tangomaos” aplicavam-se a indivíduos,
que se inseriam nas comunidades locais e aí desenvolviam uma atividade comercial que
rivalizava com os interesses monopolistas da coroa portuguesa.522 A verdade é que estas
categorias correspondem a indivíduos integrados nas culturas africanas, nas quais
constituíam família e geravam descendência afro-portuguesa.523 O domínio das línguas
locais permitia-lhes estabelecer o papel de intérpretes e intermediários, tanto com os
poderes africanos, como com os agentes portugueses do comércio das feitorias e dos
navios. Estabelecidos nos litorais ou nas margens dos rios, dedicavam-se ao trato do
marfim, dos escravos e do ouro, entre outras mercadorias do comércio local e regional,
cujo afluxo aos litorais aumentou constantemente ao longo dos séculos XV e XVI. 524
Antes de mais, estas categorias são a expressão da formação de comunidades
caracterizadas pelas mestiçagens socio-culturais e pelas identidades fluidas.
A Guiné, no sentido amplo, fora também um espaço de recolha de dados
informativos e acumulação de riqueza, que permitiu a continuidade portuguesa na
exploraração da costa africana para sul. A fim de se assegurar que as comunicações
poderiam ser empreendidas com povos dos territórios mais a sul, os cativos provenientes

522
A designação de Lançados ou tangomaus foi aplicada aos intermediários entre os poderes africanos e os
europeus que se envolviam nos circuitos comerciais de longa distância e tentavam escapar ao controlo
oficial português do comércio da costa da Guiné, em actividades e modos de vida considerados irregulares
e marginais. A este respeito veja-se: José da Silva HORTA, “Evidence for a Luso-African identity” in
‘Portuguese Accounts on ‘Guinea of Cape Verde’ (Sixteenth-Seventeenth Centuries)”, in History in Africa,
v. 27 (2000), p. 101. Carlos LOPES, “Construção de identidades nos rios da Guiné do Cabo Verde”, in
Africana Studia. Revista Internacional de Estudos Africanos, Nº 6 (2003), pp. 45-64.
523
A propósito da formação de comunidades euro-africanas ao longo da costa da Senegâmbia e Alta Guiné,
e inspirados pela abordagem conceptual das “lógicas mestiças”, lançada po Jean-Loup Amselle, veja-se:
George E. BROOKS, Eurafricans in Western Africa: commerce, social status, gender, and religious
observance from the sixteenth to the eighteenth century, Athens, Ohio University Press, 2003. Peter MARK,
‘Portuguese’ Style and Luso-African Identity: precolonial Senegambia, sixteenth–nineteenth centuries,
Bloomington, Indiana University Press.
524
Maria Emília Madeira SANTOS, “Lançados na Costa da Guiné: aventureiros e comerciantes”, in Carlos
LOPES, Mansas, Escravos, Grumetes e Gentio. Cacheu na Encruzilhada de Civilizações, Bissau, Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisa, 1993, p. 70.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

da Guiné eram baptizados e instruídos e muitos terão desempenhado a função de


“línguas”, intérpretes ou tradutores que acompanhavam as viagens.525
Ainda na África ocidental, uma segunda zona de contactos afro-portugueses é
desenvolvido no eixo mercantil Mina-Benim. A procura europeia de ouro e escravos
levou a uma intensificação deste comércio entre os povos de língua Akan. Os portugueses
transportavam nas caravelas homens do Kongo e do Benim que eram vendidos nos
mercados Akan a troco de ouro.526 Desde 1500 que o tráfico atlântico de escravos se
expandiu da Senegâmbia ao Golfo da Guiné, ao Kongo e a Angola.527 Além dos escravos,
os portugueses levavam como mercadorias missangas, panos, bacias de latão, manilhas e
barras de ferro e, dos ecossitemas africanos da floresta, traziam nozes de cola.528 O intenso
comércio com as cidades Akan levou os portugueses a se estabelecerem em Accra cerca
de 1550.
Dos contactos com o Benim, iniciados em 1486, com o enviado de D. João II,
salienta-se a recusa do Oba e da elite em adoptar o Cristianismo, uma vez que o Estado
centralizado se legitimava através de um panteão de divindades do qual descendia o
lendário fundador da dinastia Edo.529
No contexto de afirmação política através de campanhas militares de expansão do
Benim, verificou-se a participação de mercenários portugueses em apoio do Oba e um
grupo de comerciantes de S. Tomé residiu na cidade do Benim. O século XVI é um
período em que a expansão do Estado coincide com a chegada de novas mercadorias,
pelas mãos dos portugueses. Toneladas de manilhas de cobre e latão eram fundidas para
dar origem às placas que celebravam as vitórias militares do Oba Esigie, nas quais
figuram também representações de portugueses de longas barbas e cabelos lisos, numa
associação com os símbolos cosmológicos de Olokum. Esta entidade divina da água e do
oceano passa a estar associada a imagens de soldados e comerciantes portugueses, que
contribuiram para a afirmação e o enriquecimento do Benim.530

525
Diogo Gomes de SINTRA, Descobrimento Primeiro da Guiné, Aires A. NASCIMENTO (edição crítica)
e Henrique Pinto REMA (introdução histórica), Lisboa, Edições Colibri, 2002, p. 46.
526
Jill DIAS, África nas Vésperas do Mundo Moderno, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações
dos Descobrimentos Portugueses, 1992, p. 100.
527
IDEM, ibidem.
528
IDEM, ibidem, p. 108.
529
IDEM, ibidem, p. 259.
530
IDEM, ibidem, pp. 262-263.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Uma terceira “zona de contacto” estabeleceu-se na África central ocidental. Na


sequência das viagens de Diogo Cão, que entrou pelo rio Zaire até aos limites da sua
navegabilidade, em Ielala, os portugueses vieram a estabelecer o contacto direto com o
reino do Kongo. Aos imediatos interesses comerciais mútuos, associaram-se outros de
natureza mais simbólica e ritualística que conduziram à aceitação do baptismo por parte
do soberano, o Mwene Kongo. A implementação de processos de evangelização da elite
reinante, que sustentou relações diplomáticas com a coroa portuguesa e o Papado, viria a
traduzir-se no envio de padres e missionários para aquele reino africano.
O comércio terá servido os interesses de ambos. Os tecidos levados pelos
portugueses integraram o circuito dos bens de luxo, permitindo ao Mwene Kongo
alimentar as redes de dependência, que sustentavam o seu poder e autoridade. Por seu
turno, as guerras que este travava para controlar as rotas do cobre garantiam a captura de
escravos que eram vendidos em larga escala aos portugueses, numa tendência que se
intensificou e sistematizou.531 Linda Heywood, num artigo que examina a escravatura no
Kongo, refere que durante a maior parte do século XVI os escravos eram obtidos nas
guerras contra os Estados vizinhos. Em finais do século, era possível vender como
escravos pessoas nascidas no Kongo, condenadas por crimes. A partir de 1590, quando o
Kongo resvala para um período de guerras civis, a ideia de que os súbditos do Kongo
podiam ser escravizados por crimes (incluindo rebelião) comprometeu a proteção que os
reis garantiam à população. Com o tempo, ocorreu a manipulação das leis relativas aos
crimes que conduziam à escravização e à massificação do tráfico.532
Para além do tráfico, a cristianização dos povos da região mbundu revestiu-se de
muitas complexidades, entre as quais, como esclareceu Carlos Almeida, os processos de
apropriação local e reintrepretação de práticas rituais e elementos simbólicos do
Cristianismo pelos africanos, num confronto entre diferentes cosmologias.533 O comércio
e a missionação justificaram a crescente presença portuguesa nesta “zona de contacto” da
África central.

531
Carlos ALMEIDA, Uma infelicidade feliz. A imagem de África e dos Africanos na Literatura
Missionária sobre o Kongo e a região mbumdu (meados do séc. XVI ao primeiro quartel do séc. XVIII),
(…).
532
Linda HEYWOOD, “Slavery and its transformations in the Kingdom of Kongo: 1491-1800”, in Journal
of African History, 50 (2009), pp. 1–22.
533
Carlos ALMEIDA, Uma infelicidade feliz. A imagem de África e dos Africanos na Literatura
Missionária sobre o Kongo e a região mbumdu (meados do séc. XVI ao primeiro quartel do séc. XVIII),
(…), pp. 118-119.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Desde finais do século XV, novas mercadorias e gentes chegavam à Europa


através do porto Lisboa. Marfim, malagueta e muitos escravos introduziram alterações
quanto aos valores mercantis, mas também nos prazeres do quotidiano e nas paisagens
humanas, tanto urbanas como rurais.
Entretanto, a viagem de Gama, de 1498, iniciava uma carreira marítima regular
que fazia de Lisboa o grande centro de uma nova rede de redistribuição de especiarias e
produtos de luxo na Europa. O acesso aos mercados produtores da Ásia passava a fazer-
se através da rota do Cabo, que competia com o antigo sistema medieval, estruturado em
torno do Mediterrâneo.534
A travessia dos oceanos envolveu uma complexidade imensa de factores, entre os
quais: a construção e a utilização dos conhecimentos físico-geográficos sobre as correntes
marítimas e os ventos alíseos; o desenvolvimento da ciência ligada a técnicas de
navegação astronómica e rumação por alturas; a preparação das armadas, desde a
construção naval ao financiamento das viagens, abastecimento em tripulantes e em
víveres e a fixação de pontos de apoio para aguadas durante a longa viagem. 535 Neste
quadro complexo de factores, era necessário compilar os saberes técnicos envolvidos nas
viagens, reter os processos para determinar a posição dos navios em alto mar, assim como
fixar os conhecimentos e observações dos que dirigiam as armadas em roteiros, diários
de bordo e esboços cartográficos. Tripulantes das naus, soldados, oficiais administrativos,
missionários, comerciantes e aventureiros em trânsito entre o Atlântico e o Índico também
redigiram as suas memórias em diários, cartas, relatos e descrições, que se constituem
como o “locus” discursivo sobre as gentes que habitavam as diversas “paisagens
civilizacionais”536.
A chegada à Ásia significou o deslumbramento, em simultâneo com a convicção
de que só pela força os interesses da coroa portuguesa poderiam afirmar-se nas redes do
trato das especiarias e dos artigos de luxo. A aliança inicial com o rei de Cochim e a
proteção de alguns soberanos do Malabar permitiram aos poderes portugueses estabelecer

534
Paulo GUINOTE, Eduardo FRUTUOSO e António LOPES, Naufrágios e outras perdas da “Carreira
da Índia”. Séculos XVI e XVII, Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 1998, p. 69.
535
Vitorino Magalhães GODINHO, Mito e Mercadoria, Utopia e prática de navegar, Lisboa, Difel, 1990,
p. 339.
536
António Borges COELHO, “Manipulador do tempo”, in O Tempo e os Homens. Questionar a História
– III, Lisboa, Caminho, 1996, p. 17.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

as primeiras feitorias na Ásia, acendendo a rivalidade com o samorim de Calecute, aliado


dos mouros de Meca e dos interesses envolvidos nas tradicionais redes de coméricio pelo
Golfo Pérsico e mar Roxo.
A amplitude geográfica da Ásia conduziu à formação de várias “zonas de
contacto”, que se dispersavam desde a costa oriental africana até Malaca, a porta do
extremo Oriente, prosseguindo depois até Java, Timor, Molucas, China e Japão. A
presença militar, mercantil e religiosa acompanhava esta dispersão e materializava-se em
edificações que dependiam, em muits casos, das autorizações e concessões dos poderes
locais, mas, acima de tudo, dependiam dos oceanos, das correntes marítimas e das
tecnologias de navegação para se abastecerem em missionários, militares, burocratas e
munições.
Na sequência da viagem de Gama desenvolveu-se na África do Sudeste uma “zona
de contacto” entre os portugueses, os poderes locais e os mercadores “mouros”, sendo
ampliada uma rede antiga de relações que já se estabeleciam com o mundo do Oceano
Índico. Com o estabelecimento de uma feitoria em Sofala e outros assentamentos em
Inhambane, ilha de Moçambique e ao longo do vale do Zambeze, desenvolvem-se
relações diplomáticas e comerciais e também a fixação de muitos homens em
comunidades locais, nas quais se verificam processos de africanização. É esta zona de
contacto na África do Sudeste que os portugueses nomearam Cafraria, que é objecto de
estudo ao longo deste trabalho.
A partir de 1510, Goa afirmava-se como capital política do Estado da Índia, sede
do Padroado Português do Oriente e centro de gestão do comércio oficial português da
Ásia. No entanto, como demonstra António Manuel Hespanha, para além da presença
política e militar da coroa portuguesa e dos seus mecanismos de controlo institucional
nestes territórios distantes, formaram-se, espontaneamente, comunidades autónomas que
correspondem ao que tem sido designado como fenómeno “sombra” do império.537 Uma
expansão informal de gentes ligadas às viagens, à vida a bordo, à mercância portuária,
que acabaram por se fixar nas terras de destino, estiveram na origem de comunidades

537
António Manuel HESPANHA, Filhos da Terra. Identidades Mestiças nos confins da Expansão
Portuguesa, Lisboa, Tinta da China, 2019, p. 21.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

culturalmente mestiças, autoidentificadas como “portuguesas” e que desempenharam um


papel importante na “exploração de redes privadas de tráfego interasiático”. 538
O império marítimo português é, nos séculos XV e XVI, um espaço em rede,
disperso e heterogéneo, cuja ligação é assegurada pelas navegações entre continentes,
civilizações e matrizes culturais. É neste espaço diverso, móvel e fluido que os viajantes,
religiosos e laicos, mercadores e nobres, eruditos e degredados forjam as suas imagens
sobre os outros, constroem categorias de representação que mobilizam estereótipos e
definem identidades.
Ao longo desta dissertação veremos quem foram os homens que viajaram e que
chegaram ao espaço da África meridional e do sudeste. Quem foram os que escreveram
e o que escreveram sobre os africanos? Que referenciais civilizacionais transportavam
consigo? Que visão do mundo transportavam na itinerância dos lugares físicos e
humanos? De que forma os referenciais e a interioridade transportados pelos viajantes
condicionam as interações e as leituras sobre a diversidade e dissemelhança dos
africanos? Qual a evolução dos olhares e das leituras?

538
IDEM, ibidem, pp. 31-32.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

2. A Cafraria e as suas populações nos registos entre 1497-1510

2.1.Primeiros contactos, primeira imagem

Data de 1497-1498 o primeiro relato escrito da viagem de Vasco da Gama sobre


o encontro dos portugueses com as populações da África austral, de autoria anónima,
geralmente atribuída a Álvaro Velho.539 Porém, as primeiras interacções com este espaço
africano e as populações Khoisan ocorreram uma década antes, na expedição exploratória
de três caravelas comandadas por Bartolomeu Dias.
Na expedição de Bartolomeu Dias foi dobrado o Cabo da Boa Esperança e aberto
o caminho para o mar das Índias, sendo navegada uma extensa faixa da costa africana,
até ao rio do Infante, que correspondia ao Keiskama, na costa oriental da actual República
da África do Sul. Dos testemunhos coevos, destaca-se apenas uma referência de Cristovão
Colombo que, tendo estado em Lisboa no ano de 1488, teria recebido a notícia, a qual
registou sob a forma de anotação marginal em duas obras de sua propriedade:540 um
exemplar da Imago Mundi, de Pierre d’Ailly, e a Historia rerum ubique gestarum, de Pio
II.541 Nessa anotação usa a designação genérica de Guiné (in guinea) para o continente
africano, e a designação ptolomaica de Agesinba (in agesinba) para a extremidade sul da
África, onde se encontra o Cabo da Boa Esperança.542
O silêncio documental que envolve esta viagem pioneira é compensado pelas
descrições da cronística quinhentista, sendo a mais completa a de João de Barros. No
âmbito do primeiro contacto com a extremidade sul do continente, é destacado o facto de
seguirem a bordo quatro “negras” da costa da Guiné. Nesta viagem exploratória, segundo
João de Barros, as mulheres africanas estavam destinadas a permanecer nos “novos”
territórios com mostras de prata, ouro e especiarias, a fim de obterem informações dos

539
“Relato Directo da Viagem de Descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia, segundo o
Manuscrito Anónimo existente na Biblioteca Municipal do Porto”, in José Pedro MACHADO e Viriato
CAMPOS, op. cit., pp. 111-225
540
De acordo com Carmen Radulet, as mais recentes análises da grafia apontam para anotações feitas pela
mão de Cristovão Colombo. Cf. Carmen RADULET, Documenti delle Scoperte Portoghesi, I-Africa, Bari,
Adriatica Editrice, 1983, p. 419.
541
IDEM, ibidem. Segundo Carmen Radulet, a obra Imago Mundi, tem a anotação de Colombo no capítulo
VIII, num exemplar da 1ª edição do livro, de 1480 ou 1483; o exemplar da Historia rerum ubique gestarum,
de Pio II, seria da edição de Veneza, de 1477.
542
IDEM, ibidem, pp. 420-421.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

autóctones sobre a Índia e o “Preste João” e também para que, se entrassem pelo sertão,
dessem notícia às populações locais do reino de Portugal:
“(…) assy leuáua quatro negras destoutra cósta de Guiné. A primeira das quáes leixou na
angra dos jlhéus, onde assentou o primeiro padram, e a segunda na angra das vóltas e a
terceira morreu, e a quarta ficou na angra dos jlhéus de sancta Cruz com duas que ali
tomarã que andáuam mariscando: e nam as quisseram trazer porque mandaua el rey que
nam fizessem fórça nem escandalo aos moradóres das terras que descobrissem”.543

Este episódio, narrado por Barros, dá-nos conta de uma estratégia praticada no
âmbito da exploração da costa africana, que consistia em capturar homens e mulheres,
trazê-los para Portugal, baptizá-los e ensinar-lhes a língua para que depois regressassem
a África, na qualidade de intérpretes, “línguas” ou tradutores.544 Estas mulheres negras da
Guiné, largadas em angras da extremidade sul da África, devem ter causado impacto nas
comunidades locais, pois terá sido a primeira vez que gentes Khoikhoi viam mulheres
com aspecto físico e vestuário diferentes e linguagem imperceptível. Dado que na costa,
onde foi deixada a quarta negra da Guiné, andavam mulheres a mariscar, é provável que
a africana treinada para intérprete tenha sido acolhida pela comunidade local e que,
devido à sua chegada por mar e aos conhecimentos que acumulou provenientes do mundo
africano ocidental e do Portugal de Quatrocentos, esse acolhimento e integração tivessem
ocorrido envoltos em misticismo.
Do olhar de Bartolomeu Dias, a informação que chegou a Barros é a de que existia
na costa meridional africana, na angra que chamam dos Vaqueiros, população de pastores
e “como nã leuauam lingua que os entendesse, nã podéram auer fala deles: ante como
gente espantáda de tal nouidade careáram seu gádo pera dentro da térra, com que os
nóssos nam podéram sabér mais delles que verem ser negros de cabello reuolto como os
de Guiné”.545
A primeira descrição antropológica das populações da África meridional consta
do relato anónimo, atribuído a Álvaro Velho. O texto refere-se aos habitantes da Baía de

543
João de BARROS, Ásia de João de Barros: dos feitos que os portugueses fizeram no descobrimento e
conquista dos mares e terras do Oriente, Primeira Década, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda,
1988 (facsimile da edição revista e prefaciada por António BAIÃO, da Imprensa da Universidade de
Coimbra de 1932), p. 85.
544
Diogo Gomes de SINTRA, op. cit., p. 46.
545
João de BARROS, op. cit., p. 86.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Santa Helena onde a armada de Gama ancorou oito dias. Aos olhos dos viajantes, estes
africanos revelavam-se diferentes de todos os outros habitantes do extenso continente já
visitado pelos portugueses. Os homens da extremidade meridional da África foram
descritos como “baços” e “pequenos de corpo”, cobrindo-se com peles de animais e
trazendo “bainhas em suas naturas”, alimentando-se de “lobos-marinhos e baleias e carne
de gazelas e raízes de ervas”.546 Tais habitantes de terras longínquas, sadias e temperadas,
viviam da caça e recolecção, tinham como armas, cornos tostados metidos em varas,
ignoravam a canela, o cravo, o aljôfar e o ouro, mas davam indícios de prezar o cobre.
Na descrição somática destas populações, o autor começa por usar o vocábulo
distintivo “baço”, que significa moreno, escuro, sombreado, retratando deste modo uma
coloração mais clara e acobreada das populações Khoisan, habitantes do mundo austral,
um mundo novo que se revelava pelo litoral, ante o avançar da armada portuguesa. Num
primeiro momento, a definição cromática “baços” parecia esbater o estereótipo da
representação do corpo dos africanos e captar a novidade.
Mas quando ocorre o primeiro episódio de conflito entre os autóctones e os
marinheiros portugueses, motivado pela tentativa de intrusão de Fernão Veloso, que
pretendia ir às aldeias ver como viviam as gentes547, o vocábulo “negro” impôs-se como
dominante como se, repentinamente, a identidade do outro fosse revelada: “os negros
começaram de correr ao longo da praia”.548
Apesar destas populações se distinguirem em termos cromáticos dos povos da
Guiné, ao observador europeu elas revelam participar dos mesmos padrões de
“negritude”, subjacentes a uma concepção civilizacional que remetia o africano para um
plano marginal.
Como sugere o texto, o marinheiro português tentara forçar a sua entrada no
espaço social destas populações onde mulheres e crianças estariam em segurança.549 A
intrusão mostrava-se perigosa, suscitando o medo e originando a atitude de expulsão. De
acordo com a perspectiva africana, o espaço da aldeia, enquanto complexo socialmente
coerente, estava limitado por regras, tabus e crenças, que o demarcavam e separavam do

546
“Relato Directo da Viagem de Descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia, segundo o Manuscrito
Anónimo existente na Biblioteca Municipal do Porto”, (…), p. 117.
547
IDEM, ibidem, pp. 13-14.
548
IDEM, ibidem, p. 14.
549
Richard ELPHICK, op. cit., p. 55.

142
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

mundo marítimo, por natureza estranho e místico. A praia, enquanto espaço marginal, na
fronteira entre a terra-mãe e a vastidão do outro mundo, era por natureza perigosa,
tornando-se uma zona onde todas as estruturas se tornavam vulneráveis.550 Permitir que
um ser estranho, proveniente do “outro mundo” marítimo, ultrapassasse a zona de
contacto para entrar no espaço social poderia implicar a violação de regras que punham
em causa a própria segurança e coesão do grupo. Mas, tais possíveis significados,
inerentes à organização dos espaços sociais nestas terras austrais, não eram sequer
considerados como existentes para os visitantes do Velho Mundo.
Entretanto, a viagem prosseguiu. Contornado o Cabo, a armada de Gama avistou
uma “angra muito grande que entra pela terra bem seis léguas”551 sem que fosse lançada
âncora. Foi na baía de S. Brás, mais tarde conhecida como angra dos Vaqueiros, que a
esquadra estacionou por mais treze dias. O texto estabelece a semelhança de traços físicos
entre os habitantes da baía de Santa Helena e os da angra de S. Brás, sugerindo unidade
étnica e a rápida comunicação entre as populações.
De facto, a armada estava perante variações geográficas e culturais de um mesmo
grupo, para o qual se pressupõe uma origem comum, que a Linguística designou por
Khoisan.552 A descrição de Álvaro Velho, sobre as gentes do primeiro contacto reporta-
se, muito provavelmente, a um grupo de caçadores-recolectores e, a segunda, a um grupo
de pastores Khoikhoi. Estes organizavam-se em unidades políticas ligadas pelo
parentesco, que a historiografia tem designado de “tribos”, as quais resultavam da
aglomeração de clãs, sendo movidos por impulsos migratórios com vista ao domínio de
territórios de pastagem553, o que implicava mobilidade dos grupos e envolvia competição.
Ora, devido a tal mobilidade, não poderemos afirmar que o grupo de pastores que
interagiu com a tripulação da expedição de Bartolomeu Dias, em 1488, tenha sido o
mesmo que uma década depois interagiu com as gentes da armada de Gama.
Os pastores que, em 1497, usavam manilhas de marfim nos braços, tocavam
flautas e bailavam “como negros”, eram provavelmente pertencentes a comunidades
Hessequa, que acampavam ocasionalmente nas vizinhanças da Aguada de S. Brás e

550
Mary DOUGLAS, Purity and Danger. An Analysis of Concepts of Pollution and Taboo, London, Pelican
Books, 1970 (reimpressão da ed. de 1966 de Routledge & Kegan Paul), p. 145.
551
“Relato Directo da Viagem de Descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia, segundo o Manuscrito
Anónimo existente na Biblioteca Municipal do Porto”, (…), p. 121.
552
Richard ELPHICK, op cit., p. 7.
553
IDEM, ibidem., pp. 14-15.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

próximo dos numerosos rios que corriam para sul.554 A expressão “bailavam como
negros”555 parece traduzir o processo mental de “leitura” dos gestos e ritmos corporais,
em conexão com uma musicalidade que conjugava vozes, palmas e flautas e que é
considerada pelo autor do texto de forma surpreendentemente positiva: “concertavam
muito bem para negros, de que se não espera música”.556 Esta apreciação favorável pode,
no entanto, ter outro sentido, ou seja, pode pressupor a ideia que os “negros”, por serem
considerados civilizacionalmente inferiores, eram incapazes de alcançar a sofisticação
das artes musicais.
Do lado dos africanos, estas manifestações de dança e música poderiam envolver
uma dimensão de celebração, ou ser simplesmente a dramatização de uma história ou um
ritual de aplacação perante os estranhos que vinham do mar. Tais expressões faziam com
que os portugueses comparassem estes pastores a outros africanos já contactados na
África ocidental, devido a padrões de semelhanças encontrados.
Segundo o relato de Álvaro Velho, a interacção de Bartolomeu Dias com as
populações locais já teria sido marcada pela desconfiança e agressão. Consta que
enquanto os marinheiros faziam o abastecimento de água “à beira do mar, eles lha
defenderam às pedradas de cima de um outeiro que esta sobre esta aguada. E Bartolomeu
Dias lhes atirou com uma besta e matou um deles”.557 Na perspectiva africana local, as
fontes de água, para além de estarem impregnadas de um valor sagrado, eram dos mais
importantes bens na definição dos territórios das comunidades, associando-se ao sentido
de propriedade e à sobrevivência dos grupos humanos e seus gados. Ora, o desembarque
destas tripulações estranhas aos africanos, que se apropriavam da água, representa muito
mais do que uma ameaça territorial ou patrimonial, pois poderia também estar envolvido
o perigo de contaminação no sentido místico o que, em termos cosmológicos, produziria
impacto na própria ordem social das comunidades.
Duas visões do mundo tão diversas conduziam a atitudes e reacções susceptíveis
de desencadear mal-entendidos.

554
IDEM, ibidem., p. 139.
555
“Relato Directo da Viagem de Descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia, segundo o Manuscrito
Anónimo existente na Biblioteca Municipal do Porto”, (…), p. 123.
556
IDEM, ibidem.
557
IDEM, ibidem.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

A permanência da armada de Gama na aguada de S. Brás prolongou-se por treze


dias e o contínuo abastecimento de água sem permissão das populações locais, tal como
sucedera com Bartolomeu Dias uma década antes, poderá ter estado na origem do
desentendimento. A desconfiança instalou-se entre os africanos que fizeram recolher os
seus gados para o interior. Por sua vez, Gama terá interpretado este gesto como uma
ameaça e mandou responder com as armas de fogo, provocando a fuga dos pastores para
longe da praia.
Destes primeiros encontros ficam-nos sobretudo interrogações sobre qual terá sido
a interpretação africana. Que leitura os Khoikhoi fizeram deste uso de armas de fogo, para
eles desconhecido? A que histórias e a que explicações terão dado origem estas
manifestações assustadoras, protagonizadas por seres provindos da vastidão marítima
com quem haviam festejado músicas e danças? Que registos terão ficado na tradição oral,
a que jamais será possível termos acesso? Que percepção da chegada dos navios,
provenientes do espaço marítimo, tão impregnado de misticismo? Como seriam vistos os
navios, esses imensos artefactos de madeira, de altos mastros e velas brancas, que
deslizavam em direcção a terra? A que estereótipos terão correspondido homens tão
diversos e tão estranhos saídos de tais navios? Que imaginário terá tudo isto provocado
no mundo indígena?
Poderemos encontrar algumas respostas, por analogia com outras situações na
costa atlântica, de acordo com as quais a aparição talássica dos marinheiros portugueses
suscitava profunda surpresa e admiração entre as comunidades africanas, que concebiam
o mar como um espaço mítico de migração das almas dos antepassados. A ancoragem
dos navios e a descida em terra de tantos homens de tez clara seria necessariamente
interpretada no âmbito do universo sagrado. Porque eram brancos, como albinos,
venerados como espíritos das águas, vinham do mar, uma barreira entre este e o outro
mundo, e falavam uma língua estranha, as populações locais interpretaram os portugueses
como seres associados à dimensão “mbumba”, ou seja, como espíritos do mar e da
terra.558
Tradições orais, fixando as memórias dos Khoikhoi, extinguiram-se juntamente
com estas populações, incapazes de competir com as forças militares holandesas pelo

558
Anne HILTON, The Kingdom of Kongo, Oxford Clarendon Press, 1985, pp. 50-51.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

domínio territorial, a partir de finais do século XVII.559 O texto de Álvaro Velho é a única
fonte que nos narra estes primeiros contactos. Porém, deixou-nos apenas uma das
perspectivas de como foi percepcionado o encontro. De qualquer modo, pode considerar-
se que as primeiras interacções entre os portugueses e as comunidades Khoikhoi terão
produzido um forte impacto que, certamente, perdurou na memória colectiva, pois os
momentos do encontro foram momentos de ruptura na vida normal de todos os dias. E o
“normal” deve aqui ser entendido em dois sentidos: o sentido da vida quotidiana regida
por normas que eram observadas pela comunidade desde sempre; um outro sentido, que
tem a ver com as vivências comuns e as coisas simples da vida e do mundo, que foram
temporariamente abaladas.560
Deixando para trás uma marca de inquietação entre estes grupos de pastores, a
armada de Gama prossegue a sua navegação para Oriente, tendo ficado registada uma
visão positiva da terra que medeia entre o último padrão de Bartolomeu Dias e o Rio do
Infante. Ao longo da costa índica, a terra é “muito graciosa e bem assentada”, de praias
extensas, alto arvoredo e abundância de gados.561 É “muito povoada” e, em termos
político-sociais, existem aí “muitos senhores”. O texto descreve populações diversas das
anteriores: “homens e mulheres negros”, de “grandes corpos”, gente de bom agasalho,
vivendo em aldeias com “casas de palha”, praticando o cultivo de cereais e a criação de
aves domésticas.
A norte do rio Limpopo, numa aguada a que foi dado o nome de Terra da Boa
Gente562, provavelmente em Inharrime ou em Inhambane, abundava o cobre e o marfim,
as azagaias eram feitas de ferro, existiam objectos de estanho, produzia-se o sal e os panos
de linho tinham alta cotação nos mercados locais.
Para o observador europeu, o uso de armas cujos materiais pressupunham a
fundição de minérios, a produção do sal e a circulação de tecidos, envolvendo actividades

559
A expedição contra o kraal do chefe Klaas (1693-1701) assinala o declínio do equilíbrio entre as tribos
Khoikhoi do Cabo ocidental, a sua riqueza em gados e a gestão dos territórios de pastagem, de acordo com
os ciclos naturais. Todo o equilíbrio fora comprometido pelas alianças forçadas com os colonos holandeses,
cuja economia de expansão agrícola implicava uma contracção dos territórios tradicionais dos Khoikhoi.
Veja-se Richard ELPHICK, op. cit., ps. 144-145 e 170-174.
560
Evan M. ZUESSE, Ritual Cosmos. The Santification of Life in African Religions, Ohio, Ohio University
Press, 1979, p. 3.
561
“Relato Directo da Viagem de Descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia, segundo o Manuscrito
Anónimo existente na Biblioteca Municipal do Porto”, (…), p. 129.
562
IDEM, ibidem, p. 133.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

produtivas de transformação da natureza, funcionavam como marcadores civilizacionais.


Neste sentido, da primeira viagem teria resultado uma percepção geográfica e
antropológica da África meridional que definia o cabo da Boa Esperança como território
de “homens bestiais”. Estes, para além de se cobrirem escassamente com peles de
animais, usavam, como armas, cornos tostados metidos em varas, o que indiciava a
ausência de ferro. Acresce que, enquanto grupos humanos, os Khoikhoi do Cabo
simbolizaram o bloqueio a uma livre utilização dos cursos de água, pelas tripulações dos
navios portugueses, pois a travessia dos oceanos implicava o necessário abastecimento
em pontos estratégicos da viagem.
Na Terra da Boa Gente a aguada fez-se com a colaboração dos africanos com
quem se trocaram objectos que simbolizavam um encontro pacífico. Nas bocas do
Zambeze, zona do Rio dos Bons Sinais,563 assinalava-se a existência de mercadores da
“seita de Mafamede”, que “falam como mouros” e se vestiam com ricos panos de linho e
algodão, usavam turbantes “com vivos de seda lavrados com fio de ouro” e comerciavam
muitas mercadorias preciosas, entre as quais o ouro, trazido ao litoral pelas próprias
gentes da terra. Tais mercadores muçulmanos foram descritos fisicamente como sendo
“ruivos”,564 designação cromática que poderá aproximar-se do sentido de “pardos” ou
“baços”, transmitindo a percepção de uma mestiçagem que caracterizava as gentes da
cultura suaíli. João de Barros havia de fixar uma imagem dessa mestiçagem ao afirmar
que entre os habitantes deste rio viviam “homens fullos que pareciam mestiços de negros
e mouros, e alguns entendiam palauras de arauigo”.565
As diversas tonalidades cromáticas dos humanos eram consideradas importantes
elementos de registo. Álvaro Velho aponta a coloração dos habitantes dos territórios entre
a Baía de Santa Helena e o Rio Zambeze - “homens baços”, “negros”, “ruivos”.
Do texto de Álvaro Velho está ainda ausente o vocábulo cafre. Porém, é muito
provável que a palavra, a esse tempo aplicada às populações africanas não islamizadas,
tenha sido ouvida pela primeira vez pelo marinheiro Fernão Martins, um dos elementos
da tripulação que, tendo sido cativo de mouros no passado, entendia o árabe e podia
estabelecer alguma comunicação com os mercadores locais. Por isso, desempenhou o

563
IDEM, ibidem, p. 135.
564
IDEM, ibidem, p. 139.
565
João de BARROS, op. cit., Primeira Década, (…), p.130.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

papel de intérprete e colector de informações sobre as riquezas e o comércio naquelas


terras.566 Um factor determinante desse comércio era o domínio, por parte dos poderes
políticos africanos do interior, das jazidas auríferas, da extracção do ouro e do seu
transporte até aos entrepostos mercantis do litoral. Ora, os mercadores suaílis, que
dominavam os entrepostos comerciais do litoral, designariam por cafres as populações
africanas não islamizadas dos sertões. Sendo os “mouros” os interlocutores de Fernão
Martins, muito provavelmente o vocábulo cafre foi empregue, referindo-se aos “outros”,
aos poderes pagãos, aqueles que dominavam a produção do ouro no interior das terras
africanas. O cronista João de Barros acrescenta elementos que nos confirmam que nesta
viagem teria havido a recolha de informações sobre o comércio local, nomeadamente o
trato do ouro de Sofala. Afirma que, depois de rompida a paz com o xeque de
Moçambique, da fuga dos dois pilotos e de um grumete, um “mouro” que ficou retido nas
naus portuguesas e foi pressionado com perguntas, teria falado sobre o “tracto da terra
ouro de Çofala”.567
Apesar do diário da primeira viagem não ser um relato oficial, cumpre a função
de registar a novidade antropológica e geográfica ao mesmo tempo que elucida sobre os
objectivos comerciais, subjacentes a toda a organização da expedição. Se o texto atribuído
a Álvaro Velho refere como um dos objectivos da viagem de Gama a busca, na Índia, de
cristãos e especiarias, as notícias colhidas na costa africana, sobre a existência abundante
de ouro no seu interior, haviam de condicionar a realização de uma segunda viagem ao
Índico. Depois da viagem exploratória, a coroa portuguesa apontou objectivos e definiu
um plano de actuação que, em grande parte, resultou das informações da primeira
expedição marítima, mas certamente também das informações que Pero da Covilhã teria
enviado ao rei D. João II, sobre a natureza do comércio e dos poderes na África Oriental.
A segunda armada, enviada à Índia pelo rei D. Manuel, em 1501, levava por
missão fundar uma feitoria em Sofala. Desta armada naufragaram quatro navios, nas
paragens do Cabo da Boa Esperança, e perderam-se as instruções quanto à construção da
feitoria. Cabral chegava à Ilha de Moçambique com seis navios desmantelados, não lhe
sendo possível mandar fundar a feitoria. Entretanto, as pretensões portuguesas sobre

566
Álvaro VELHO, op. cit., p. 139.
567
João de BARROS, op. cit., Primeira Década, (…), p.136.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Sofala tinham motivado a inimizade do rei de Quíloa, cuja riqueza e poder dependiam
dos direitos do ouro daquela região.
Na torna-viagem, já em 1501, Sancho de Tovar, que fora destacado por Pedro
Álvares Cabral para realizar uma expedição de reconhecimento da “mina de Sofala”, terá
sido acompanhado pelo “língua” Gaspar da Gama568, um bom piloto de Melinde e
mercadores de Moçambique. Tovar levou como presentes de cortesia, peças de seda
vermelha, espelhos, barretes, cascavéis, campainhas da Flandres e continhas de vidro
cristalinas.569 Consta que pediu a amizade do rei de Sofala e licença para negociar na
região como qualquer outro mercador, o que lhe terá sido concedido. Segundo Gaspar
Correia, o rei de Sofala teria selado esta amizade enviando ao capitão-mor um conjunto
de “continhas d’ouro”.570
Ainda que este encontro entre Tovar e o soberano de Sofala seja narrado em fontes
históricas posteriores, Ana Cristina Roque considera que as informações recolhidas sobre
Sofala como terra de “grande riqueza” e “resgate d’ouro”571 poderiam facilmente provir
do piloto e mercadores, sem que isso implicasse a concretização de um encontro com o
soberano local. A dúvida sobre a realização desse encontro decorre, segundo Ana Roque,
da falta de informações precisas sobre o porto ou a indicação de “conhecenças”, assim
como a ausência de conhecimento mais concreto das principais mercadorias do comércio
local.572
Durante a expedição de Tovar, em que busca informações sobre a região de Sofala,
através da mediação de um intérprete, pode levantar-se a hipótese do vocábulo cafre ter
entrado, de novo, nas conversações para designar e referir as populações autóctones, não
islamizadas, que dominavam as minas e detinham o poder nos sertões. A palavra era de
uso comum entre os mercadores islamizados de quem os portugueses obtiveram as
informações iniciais sobre a mina, suas populações e poderes.
Entretanto, ainda durante o ano de 1501, antes de Cabral regressar a Lisboa, D.
Manuel enviou à Índia uma nova armada, sob o comando de João da Nova, com intuitos

568
Gaspar CORREIA, Lendas da Índia, Volume Primeiro, Introdução e revisão de M. Lopes de ALMEIDA,
Porto, Lello & Irmão Editores, 1975, p. 227.
569
IDEM, ibidem, p. 228.
570
IDEM, ibidem, p. 229.
571
IDEM, ibidem, p. 227.
572
Ana Cristina Ribeiro Marques ROQUE, Terras de Sofala: persistências e mudança. Contribuições para
a História da Costa Sul-Oriental de África nos séculos XVI-XVIII, (…), p. 201.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

comerciais e de reconhecimento dos litorais da África meridional. Saindo do porto de


Belém, a 5 de Março de 1501, entraram na Aguada de S. Brás, a 7 de Julho. Pouco tempo
antes estivera aí, desarvorado, Pêro de Ataíde que deixou dentro de um sapato velho, uma
carta com o relato das ocorrências da Índia, durante a permanência de Cabral, a notícia
de que se não dera prossecução ao projecto de uma fortaleza em Sofala, pelas perdas
sofridas nos naufrágios da passagem do Cabo, em que se perdera Bartolomeu Dias, e a
informação de que em Mombaça o degredado António Fernandes ficara com cartas
destinadas à primeira armada que surgisse.573
No ano de 1502, saíram do Tejo três armadas, somando um total de vinte navios,
sob os comandos de Vicente Sodré (5 navios), Vasco da Gama (10 navios) e Estevão da
Gama (5 navios).
Em 10 de Fevereiro de 1502, largavam do Tejo o Almirante Vasco da Gama e
Vicente Sodré, em comando de uma esquadra de doze naus e três caravelas, de que se
perderam duas velas nas paragens do cabo da Boa Esperança. A 1 de Abril era enviada
para o Índico uma terceira armada cujo comando foi entregue a Estevão da Gama.574
Em 3 de Junho, onze embarcações da armada sob os comandos de Vasco da Gama
e Vicente Sodré, faziam a primeira escala na costa sul africana e, depois, em Sofala.575
Enquanto Vicente Sodré seguia com as naus maiores para Moçambique, Vasco da Gama
navegou para Sofala com quatro navios mais pequenos, de forma a cumprir o regimento
e de que resultou “algu resgáte douro com os mouros que estauã na pouoaçam”. 576
Lançada âncora em Sofala, a partir de 10 de Junho, e após o consentimento do chefe local,
mandou Vasco da Gama três navios a fazerem o reconhecimento do rio Búzi, então
chamado o rio de Sofala. Nessa missão, seguia “um dos seus feitores, Rodrigo Reinel,
que conseguiu trocar anéis de cobre, espelhos e panos de lã por um pouco de ouro”.577
Na armada de Estevão da Gama, numa nau capitaneada pelo italiano João de
Bonagracia, seguia o escrivão Tomé Lopes, que escreveu um diário da viagem de 1502.
Sobre Sofala, a Ophir salomónica refere: que os “da terra fizeram-nos muitas rogativas e

573
João de BARROS, op. cit., Primeira Década, (…), p. 207.
574
Luís Adão da FONSECA, Vasco da Gama: o homem, a viagem, a época, Lisboa, Edição do
Comissariado da Exposição Mundial de Lisboa, 1998, p. 172.
575
Geneviève BOUCHON (coord. ed. portuguesa Carlos ARAÚJO), Vasco da Gama, Lisboa, Terramar,
1998, p. 198.
576
João de BARROS, op. cit., p. 224.
577
Geneviève BOUCHON, op. cit., p. 199.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

vimos muitos fumos com que nos convidavão a entrar, o que não fizemos, perdendo nisso
muito; (…) julgámos que os fumos erão sinal para chamar-nos”.578
Verificada a fraca actividade no mercado da região, os navios seguiram para
Moçambique, onde se deu entendimento com as autoridades locais para abastecimento de
víveres essenciais, como água, madeiras, galinhas e limões.579
Segundo Gaspar Correia, Pero Afonso de Aguiar terá sido enviado ao rei de
Sofala, “que era cafre gentio”, a buscar paz e amizade para mandar a sua terra os
portugueses com mercadorias para o trato. Nesse mesmo tempo, Aguiar teria recolhido
do xeque muitas informações sobre o modo de se resgatar ouro por panos, em Sofala.580
A armada de 1504, que levava como capitão-mor Lopo Soares, terá dado
aviamento “nas cousas de Çofala, que estaua contrato bem assentado e pacifico”. 581
Segundo Alexandre Lobato, quando Gaspar Correia refere que Lopo Soares em
Moçambique deu aviamento às coisas de Sofala, poderá isso querer dizer que Pero Afonso
de Aguiar foi enviado para essa expedição a Sofala em 1504, e não em 1502. tendo sido
acompanhado por um piloto de Moçambique que lhe forneceu o xeque e que levou ao rei
de Sofala o habitual presente, da parte do capitão-mor. Aguiar foi a terra com mais de 20
homens “bem vestidos” e expôs a sua missão que era pedir amizade e licença para os
portugueses irem a Sofala comerciar em pé de igualdade com os outros mercadores. O rei
acedeu e declarou que já o havia prometido a Sancho de Tovar, enviado por Pedro Álvares
Cabral (1500), e jurou paz e amizade “polo sol e polo ceo, e sua cabeça e barriga”.582
Deste modo, em 1502 ou 1504 terá sido selada amizade com o rei de Sofala, com
objetivos comerciais.
Em Março de 1505 era enviada à Índia a armada de D. Francisco de Almeida. O
regimento que a acompanha atribui uma importância crucial à construção de uma
fortaleza em Sofala. Ordena que seja escolhido um sítio forte e seguro, assim como

578
Thomé LOPES, “Navegação às Índias Orientaes escrita em Portuguez por Thomé Lopes”, in Collecção
de Notícias para a Historia e Geografia das Nações Ultramarinas que vivem nos domínios Portuguezes,
publicada pela Academia Real das Sciencias, Tomo II, Nº 5, 2ª ed., Lisboa, Typographia da Academia,
1867, p. 160.
579
Geneviève BOUCHON, op. cit., p. 199.
580
Gaspar CORREIA, op. cit, p. 272.
581
IDEM, ibidem, pp. 494-495.
582
IDEM, ibidem, p. 274.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

favorável ao abastecimento “de lenha e toda outra cousa”.583 Adverte que não deveria ser
feito qualquer dano “aos naturaes da terra”, tanto em suas pessoas como em suas fazendas,
mas contra os mouros deveria ser travada guerra contínua, por serem inimigos da fé.584 O
regimento menciona o envio do capitão, gente, artilharia e coisas necessárias ao
estabelecimento da fortaleza, cuja obra deveria ser realizada o mais breve possível. 585
Os interesses da coroa portuguesa centravam-se nestas “terras do ouro” e na Índia.
O Cabo da Boa Esperança é, neste regimento de D. Francisco de Almeida, um obstáculo
a transpor com cuidado. A extensa costa entre o promontório e Sofala surge como um
espaço intermédio, útil para as aguadas, onde eram deixados sinais e cartas para os navios
que porventura se perdessem do corpo da armada, mas era, acima de tudo, um espaço de
transição, de passagem.586 O próprio discurso do regimento é sumário e transitório no que
se refere ao extenso litoral, designado de “Costa do Cabo da Boa Esperança”.
A descrição da viagem do primeiro vice-rei da Índia regista conformidade com o
regimento, a mesma transitoriedade relativa ao promontório e à costa que se lhe segue:

“Dobrarom ho Cabo de Boa Esperança aos 26 dias de Junho e forom afastados delle 70
legoas. (...) 18 dias de Julho virom a primeyra terra alem do Cabo de Boa Esperança 565
legoas a saber Ylhas Derradeyras, e 30 legoas de Ylha Moçambique”.587

Os vastos territórios africanos para este e nordeste do Cabo da Boa Esperança, que
algumas décadas mais tarde seriam designados de Terra dos cafres e Cafraria, não
despertavam o interesse da coroa portuguesa. Apenas um ponto na costa leste - Sofala -
captaria a atenção da coroa para a construção de uma fortaleza a partir da qual fosse
possível controlar o comércio do ouro.
A 18 de Maio de 1505 largava de Lisboa uma outra armada de seis naus,
comandada por Pero de Anhaia, e em Setembro partiam mais duas velas, onde seguiam
Cide Barbudo e Pero Quaresma.588

583
“Regimento do Capitão-mor D. Francisco de Almeida – Lisboa, 5-Março-1505”, in D.P.M.A.C., Vol. I,
(1497-1506), (…), p. 182.
584
IDEM, ibidem, p. 180.
585
IDEM, ibidem, p. 184.
586
IDEM, ibidem, pp. 170-172.
587
“Descrição da Viagem de D. Francisco de Almeida, Vice-rei da Índia, pela costa oriental de África”, 22
de Maio de 1506, in D.P.M.A.C., Vol. I (1497-1506), (...), pp. 520-522.
588
João de BARROS, op. cit., Primeira Década, (…), p. 367.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Anhaia chegava a Sofala a 4 de Setembro e seria o seu primeiro capitão, enquanto


Manuel Fernandes ia designado para feitor daquela que era considerada uma “riquíssima
praça, pela fertilidade das minnas do mais fino e precioso ouro que se tem descuberto”.589
Anhaia obteve autorização do rei local para erigir uma fortaleza de estacas e a sua
construção ter-se-ia iniciado a 21 de Setembro de 1505.
Inicialmente, é esta a zona de contacto dos portugueses com a África Oriental, de
onde vão chegando notícias relativas aos reinos do ouro, suas populações, culturas,
crenças e hábitos.

2.2. Primeiros usos e significações do termo cafre na documentação


portuguesa

Analisemos a natureza dos primeiros documentos portugueses que integram o


vocábulo cafre e centremo-nos no contexto em que foram produzidos.

2.2.1. Usos do quotidiano: sinonímias e divergências

Datam de 1505 e 1506 documentos escritos pelo primeiro capitão de Sofala, Pero
de Anhaia, e pelo capitão da fortaleza de Quíloa, Pero Ferreira Fogaça, que usam
alternadamente os signos identificativos preto, negro, negra, cafre aplicados às
populações locais e alguns dos moradores das referidas fortalezas.590 O termo cafre entra
em uso com grafia e significado variável – chaffer, cafer, cafere, cafre.
A carta do rei D Manuel de Portugal aos Reis Católicos, narrando as viagens dos
Portugueses, entre 1500 e 1505, faz uso do vocábulo Chaffer para designar os habitantes
“idolatras” de Calicute, o que nos faz compreender que o vocábulo estava imbuído de

589
“Conquista da India per humas e outras armas reaes, e evangelicas”, Documentação Ultramarina
Portuguesa, António da Silva REGO (Prefácio), Vol. I, Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos,
1960, p. 287. (Doravante D.U.P.)
590
“Mandado de Pero de Anhaia, Capitão-mor de Sofala, para os contadores de El-Rei”, in D.P.M.A.C.,
Vol. I, (…), ps. 366, 370, 382, 384, 506-508 “Rol do pagamento do mantimento de fevereiro de 1506 na
Fortaleza de Sofala”, in D.P.M.A.C., Vol. I, (…), p. 436. “Rol do pagamento do mantimento de Abril de
1506 na Fortaleza de Quiloa”, in D.P.M.A.C., Vol. I, (…), p. 462. “Rol do pagamento do mantimento de
Maio de 1506 na Fortaleza de Quiloa”, in D.P.M.A.C., Vol. I, (…), ps. 494,496 e 500. “Mandado de Manuel
Fernandes, Capitão de Sofala, para os contadores de E-Rei”, in D.P.M.A.C., Vol. I, (…), p. 614.

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significados religiosos.591 Chaffer surge aqui como um qualificativo proveniente da


matriz religiosa e cultural dos informantes muçulmanos dos portugueses e o seu
significado parece ser o mesmo, tanto para identificar as populações de Calicute, como
as da área de Sofala.
Veremos adiante, quando considerarmos os testemunhos de viajantes estrangeiros
a bordo de navios das primeiras armadas da Carreira da Índia, que o vocábulo “cafre” foi
registado num relato anónimo de um agente alemão, que acompanhou a frota dos
Albuquerques, em 1503-1504. Trata-se de um registo estrangeiro, manuscrito, mas que
reflecte a circulação de informações no contexto local, que tanto alcançou este viajante
alemão, como terá também sido adquirido pelos viajantes portugueses. Seguramente, em
1503, ter-se-á dado uma adopção do vocábulo para designar as populações do interior de
Sofala, a partir de um empréstimo árabe-suaíli.
Nos documentos relativos às despesas da feitoria de Sofala encontramos
referência, em 1506, a um “Pero negro” tornado cristão e que, “por saber a lingoa dos
cafres e ser muito boom aravigo”, entrou ao serviço da coroa portuguesa.592 Este “negro”
baptizado desempenhava um papel de destaque no contexto antropológico da região
funcionando como intérprete entre os portugueses da feitoria, os mercadores islamizados
e as populações pagãs, designadas de “cafres”. Devido ao seu estatuto de cristão, “Pero
negro” não é designado de “cafre”, mas antes por “negro”, vocábulo que o identificava
quanto às suas características somáticas, mas além disso “negro” afirmava-se como uma
categoria totalizadora aplicada aos africanos. Com o tempo, operam-se especificações
categorizantes em que aos africanos locais baptizados se aplicava a designação compósita
de “cafres cristãos”.

A importância dos “línguas” ou intérpretes, dentro da estratégia portuguesa de


implantação no território de Sofala, é atestada na documentação relativa ao pagamento
dos mantimentos dos que serviam a feitoria. Encontramos nos róis desses pagamentos, de
1510, a descrição do mantimento mensal pago a alguns dos “Negros del rey da feitoria”,
também designados de “Escravos del rey nosso senhor”, como eram “Gaspar limgoa” e

591
Prospero PERAGALLO, “Carta de El-Rei D. Manuel ao Rei Catholico narrando-lhe as viagens
portuguesas á India desde 1500 até 1505”, in D.P.M.A.C., Vol. I, (…), p. 64.
592
“Mandado de Pero de Anhaia, Capitão-mor de Sofala, para os contadores de El-Rei”, in D.P.M.A.C.,
Vol. I, (…), p. 382.

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“Francisco limgoa”. A ambos eram pagos sete alqueires de milho, mas Gaspar teria o seu
mantimento aumentado para dez alqueires de milho, por ser casado.593 Os “línguas” eram
os intermediários entre o poder português, que visava estabelecer-se em Sofala, e os
poderes da terra, e a sua importância estratégica é evidenciada pelo pagamento dos
mantimentos a cargo da coroa portuguesa. Apesar de escravos, o seu soldo era superior
ao de alguns homens de armas, bombardeiros, escrivães, físicos, pedreiros, carpinteiros,
telheiros, ferreiros, barbeiros e os degredados, que todos recebiam seis alqueires de
milho.594

No rol das pessoas a quem se pagava o mantimento da fortaleza de Quiloa, de 1


de Maio de 1506, consta o vocábulo “negro” antecedido dos nomes próprios: Bastiam
negro, Gonçalo negro, Isabel negra, Luzia negra, Andre negro, Diogo negro, Violante
negra, Eytor negro, Simam negro, Fernando negro.595 Nos documentos de natureza
administrativa seguia-se o costume, já praticado relativamente aos africanos da costa
ocidental, de acrescentar as designações de “negro”, “negra” ou “preto” aos nomes
próprios, como forma de precisar a cor, num sentido identificador do africano.596 “Negro”
pode funcionar como um marcador identitário somático gerado pela cor da pele e, no caso
de “preto”, por dilucidação cromática. Mas pode também assinalar a identidade de
“negros” através dos seus contornos mais sociais do que raciais.

Se em determinados documentos os vocábulos “negro” e “preto” parecem assumir


alguma distinção, relativamente ao vocábulo “cafre”, verifica-se noutros documentos
uma indeterminação relativamente ao seu uso e significado. É o caso de um mandato de
pagamento do capitão de Sofala para os contadores do rei, de 25 de Agosto de 1506, em
que pedia para ter em conta:

“hum fambulle gramde da tixa de cimquo miticaes que mandey daar a hum filho dum rey
que vive pollo rio acima que se chama Maxamdyra e tres vespiças dobradas da taixa de
tres miticaes cada hum a tres negros que com elle vieram pera os trazer a nosa

593
“Rol do pagamento do mantimento de Junho de 1510 na Fortaleza de Sofala”, in D.P.M.A.C., Vol. II,
(...), p. 458. “Rol do pagamento do mantimento de Janeiro de 1511 na Fortaleza de Sofala”, in D.P.M.A.C.,
Vol. II, (...), p. 568.
594
IDEM, ibidem, pp. 562-570.
595
“Rol do pagamento do mantimento da Maio de 1506 na Fortaleza de Quiloa”, in D.P.M.A.C., Vol. I,
(...), pp. 494, 496 e 500.
596
Portugaliae Monumenta Africana, Vol. II, 1995, (…) , Doc. 46, p. 84 e Doc. 58, p. 102.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

comversaçam amyzade (sic) e quatro baretes baixos vermelhos que deu a tres caferes que
vieram aquy resgatar”.597

Neste documento, as designações de “negros” e “caferes”, aplicadas às populações


que vivem nos sertões de Sofala, têm o mesmo significado. Apenas o documento relativo
ao pagamento do “língua” “Pero negro” parece definir um sentido diferenciado no uso
das designações de “negro” e “cafre”.
Estamos perante o período inicial em que o vocábulo entra em uso nos
documentos administrativos, verificando-se a alternância dos termos “negro” e “cafre”,
como designações a aplicar às populações indígenas não islamizadas, e num cenário em
que os vocábulos assumem, muitas vezes, valor sinonímico. A designação de “negro”,
assume-se como uma definição geral do africano, enquanto o vocábulo “cafre”, adquirido
por empréstimo da língua árabe ou do suaíli, seria cada vez mais usado para identificar
as populações africanas de religião autóctone, da África oriental. Há, portanto, um sentido
religioso subjacente ao uso inicial deste vocábulo para classificar outros povos.

2.2.2. Primeira difusão oficial do termo na Europa

O primeiro documento régio usando o termo cafre, na acepção de “pagão” ou


“idólatra”, é a Carta de El-Rei D. Manuel ao Rei Catholico narrando-lhe as viagens
portuguesas á Índia desde 1500 até 1505.598 A palavra é usada a propósito dos habitantes
de Calecute: “o povo não é muito negro” e “o rei e os gentishomens são idolatras
chamados Chaffer”.599 A categoria cafre é aplicada não aos africanos, mas aos habitantes
de Calecute, o que pode indiciar que as informações chegadas ao monarca foram
recolhidas de informantes muçulmanos, tanto na costa oriental africana, como em
Calecute. Esta categorização era já antiga entre os viajantes muçulmanos. De facto, como
foi anteriormente analisado para as categorias de representação patentes no relato das

597
“Mandado de Manuel Fernandes, Capitão de Sofala, para os contadores de El-Rei”, in D.P.M.A.C., Vol.
I, (...), p. 614.
598
Próspero PERAGALLO, Carta de El-Rei D. Manuel ao Rei Catholico narrando-lhe as viagens
portuguesas á India desde 1500 até 1505, Lisboa, Typografia da Academia Real das Sciencias, 1892.
599
IDEM, ibidem, p. 27.

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viagens de Ibn Battuta, este aplicou amplamente aos povos não islamizados da Índia, a
categoria classificatória de cafre.600
A carta de D. Manuel é um documento muito importante a vários níveis: porque
revela oficialmente a descoberta de um novo mundo, tão diverso do dos Antigos, e porque
veicula imagens e estereótipos relativos aos habitantes da África oriental, destinados a
perdurar durante séculos no imaginário europeu.
Ao referenciar o cabo da Boa Esperança, a carta de D. Manuel nega a autoridade
da geografia ptolomaica. Aos confins da África, outrora designada de Terra Incógnita,
opõe a descrição de uma “costa mui bem povoada de gente não muito preta; é fertil, e
abunda em fructos de toda a qualidade e em aguas”.601 É, afinal, a revelação de um novo
mundo que se projectava na extremidade sul do continente africano.
Do ponto de vista antropológico, nesta carta o rei dá voz oficial ao mito da
antropofagia e da monstruosidade dos habitantes dos sertões do mundo austral. Diz sobre
Sofala que:

“(…) é uma ilha ao pé da barra de um rio: é habitada por muitos mercadores; aonde há
ouro infinito, que ahi é introduzido do sertão da Africa por homens de baixa estatura, mas
fortes, e monstruosos muitos d’elles; pois comem carne humana, principalmente de seus
inimigos, e teem pequena voz”.602

Este documento oficial, a par das referências de Duarte Pacheco Pereira à


existência de populações antropófagas na região do Kongo, antecipa em cerca de noventa
anos, as descrições de práticas antropófagas respeitantes aos habitantes dos reinos do
Kongo, Matamba e Angola, patentes na obra de co-produção textual603 de Duarte Lopes
e Filippo Pigafetta (1591).604 Antecipa também, em quase oitenta anos, o ensaio de
Montaigne “Des Cannibales”, no qual é analisada a barbárie dos selvagens do Novo

600
Cf. nesta dissertação: 5. 2. “Cafres” e “bárbaros” na visão do mundo de Ibn Battuta.
601
Próspero PERAGALLO, op. cit., p. 11.
602
IDEM, ibidem.
603
A ideia de que este texto resultou de um trabalho de co-autoria foi apresentada por José da Silva HORTA,
“O Africano: produção textual e representações (sécs. XV-XVII)”, in Condicionantes Culturais da
Literatura de Viagens: Estudos e Bibliografias, (Coord. Fernando CRISTOVÃO), Coimbra, Almedina,
2002, p. 271.
604
Duarte LOPES & Filippo PIGAFETTA, Relação do reino de Congo e das terras circunvizinhas, reed.
do texto traduzido por Rosa Capeans (1951), estudo introdutório de Ilídio do AMARAL, Benavente,
[Câmara Municipal], 2000.

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Mundo numa perspectiva polémica para a época, pois coloca em paralelo a barbárie da
antropofagia dos índios com a crueldade dos civilizados
Tais registos, acerca da antropofagia africana nas terras auríferas de Sofala,
parecem invocar velhos mitos sobre a existência de antropófagos nos confins da Etiópia,
particularmente em territórios associados à mineração do ouro. A este respeito saliente-
se que o Mapamundi de Fra Mauro, de meados de 1459, numa das legendas da “Tavola
XVIII”, relativa ao sertão africano confinante com o Golfo da Guiné, refere a existência
de uma província de populações antropófagas:

“p(rouincia) giantropophagi, / (id est) terra de queli che ma(n)zano / carne humana.” 605

Recorde-se ainda que Duarte Pacheco Pereira mencionava a existência de povos


canibais nos sertões a nordeste do Reino do Kongo e que esse rumor teria chegado ao seu
conhecimento através dos processos da oralidade africana ou dos marinheiros portugueses
aí residentes. Ocorre-nos questionar se o mito da existência de povos antropófagos,
guardadores das fontes do ouro africano, não terá tido a sua origem em África, integrando
processos africanos de representação de outros povos vizinhos e ameaçadores ou distantes
e “inventados”.
Episódios concretos de antropofagia ritual poderão ter ocorrido em determinadas
sociedades, porém, se a notícia destes rituais desencadeou o afastamento de elementos
exógenos, esse facto pode ter revertido a favor dos poderes e forças sobrehumanas que
protegiam as fontes do ouro. É que o trabalho das minas, que levava os homens ao interior
da terra, estava envolvido por crenças e preceitos ligados ao sagrado, que a presença de
estranhos desestabilizava e até poluía.
As notícias da eventual existência de povos que praticavam a antropofagia ritual
associada à guerra, nos sertões da África oriental, ter-se-iam combinado com notícias e
histórias fabulosas relativas à grandeza das minas do ouro que afluía ao litoral. Essas
jazidas auríferas no interior de África oriental foram mesmo interpretadas como sendo a
Ophir bíblica, a fonte das riquezas do rei Salomão. Expandia-se a notícia de que as minas
eram guardadas por povos monstruosos, antropófagos, selvagens. Relançava-se o debate,

605
Tullia Gasparrini LEPORACE, Il Mappamondo di Fra Mauro, (…), Trascrizione, Tavola XVIII, p. 32.

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já antigo, sobre os limites entre o humano e o infra-humano, erguia-se um “marcador


negativo” destinado a perdurar nas representações portuguesas e europeias sobre estes
povos.606
O desvio da normalidade e a deformidade a que correspondia a descrição destes
africanos solicitava a milenária reflexão de Santo Agostinho que concebia a possibilidade
de existirem povos monstruosos dentro do género humano. Segundo o bispo de Hipona,
o Criador formara a beleza e a riqueza do Universo, reservando um lugar e uma função
para o dissemelhante e o disforme.607 Concluía a “questão com prudência e cautela: ou o
que se conta dessas raças não se verifica; ou, se se verifica, não são homens; ou se são
homens, provêm de Adão”.608 Estas interrogações teriam deixado campo aberto para que,
durante a Idade Média, o maravilhoso, o fantástico e o monstruoso povoassem o
imaginário relativo aos territórios ainda inexplorados e seus habitantes. Os sertões
incógnitos dos territórios longínquos haviam gerado uma miríade de criaturas
extraordinárias que encheram os bestiários. Quanto aos humanos fantásticos,
questionava-se se seriam filhos de Noé. Tais homens, tanto poderiam assumir formas
gigantes e monstruosas, como poderiam medir um “côvado de altura”.609
O documento diplomático de D. Manuel, ao mencionar a existência de “homens
de baixa estatura”, monstruosos e antropófagos, veicula uma imagem genérica, formulada
a partir de uma síntese de estereótipos procedentes de uma longa tradição com
enraizamentos míticos. Tal tradição lança as suas raízes no mundo clássico, consolida-se
nos tempos medievais e transita como dado adquirido para os tempos das viagens, que
põem em contacto diferentes sectores da humanidade.
Os alegados actos de comer carne humana, considerados selvagens e animalescos,
serviam para sustentar a ideologia vigente nos documentos oficiais da coroa portuguesa
que consideravam a Guiné, a Núbia e a Etiópia terras de infiéis e gentios, que só a
conquista e a evangelização poderiam conduzir a formas de redenção espiritual. Foi neste
sentido que as bulas papais610 atribuíram a Portugal o senhorio e conquista de territórios

606
Isabel Castro HENRIQUES, “A invenção da antropofagia africana”, Os Pilares da Diferença. Relações
Portugal-África. Séculos XV-XX, Lisboa, (…), pp. 225-226.
607
Santo AGOSTINHO, A Cidade de Deus, Vol. III, Liv. XVI, Cap. VIII, (...) p. 1474.
608
IDEM, ibidem, p. 1476.
609
Umberto ECO, (dir. de), História do Feio, Lisboa, Difel, 2007, p. 114.
610
“Bula do Papa Nicolau V, Romanus Pontifex”, 8 de janeiro de 1455, in Portugaliae Monumenta
Africana, (…), Vol. I, pp. 60-73; Bula do Papa Sisto IV, que confirma a bula de Nicolau V. Cf. “Bula do

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

em África, até às costas mais meridionais, cuja missão consistia em evangelizar, purificar
terras e povos distantes da Cristandade, como seriam estes a quem a Carta Régia se
referia.
Será necessário esperar pelas representações mais próximas dos contactos
efectivos, para que se produzam registos descritivos de viagens e expedições, que terão o
valor de verdadeiros inventários sobre os poderes africanos e suas hierarquias, as
actividades produtivas, as mercadorias e rotas comerciais, os costumes, as crenças e os
rituais que organizam a diversidade humana nos mundos africanos.

2.2.3. A fixação de uma primeira imagem dos cafres

Os anos de 1505 e 1506 revelavam-se de extrema importância nos contactos entre


os portugueses e os litorais do sul da África e na própria construção de uma imagem sobre
este espaço geográfico e respectivas comunidades humanas.
Em 18 de Maio de 1505, cerca de dois meses depois de sair do Tejo a armada de
D. Francisco de Almeida, largava uma outra armada, de 6 naus, comandada por Pêro de
Anhaia. Três destas naus destinavam-se à Índia e outras três à fortaleza de Sofala, cuja
construção estaria a ser iniciada. Numa das naus, destinada à Índia, seguia a bordo um
nobre de Salamanca, de nome Martín Fernandez de Figueroa, cujas notas de viagem
viriam a ser publicadas naquela cidade, por Juan Augur de Trasmiera, no ano de 1512.611
Em 8 de Setembro de 1505, D Manuel enviava uma terceira armada pela Rota do
Cabo. Cid Barbudo era o capitão-mor de uma nau e uma caravela que, de acordo com o
projecto do regimento, tinha como objectivo primordial procurar sobreviventes das naus
de Pero de Mendonça, varada perto da aguada de S. Brás, e da de Francisco de
Albuquerque, que se perdeu entre o cabo das Correntes e Sofala.612 Associada a esta
missão humanitária estava a exploração minuciosa de “todallas amgras e portos” da costa
oriental africana, o contacto com as gentes locais em busca de notícias613, mas também a

papa Sisto IV, Aeterni Regis clementia”, 10 de Abril de 1488, in Portugaliae Monumenta Africana, (…),
Vol. I, pp. 275-284.
611
Sobre a publicação de Figueroa e o seu teor no que se refere à imagem da África oriental, veja-se neste
trabalho a Parte II, ponto 3. A Cafraria e as suas populações nos registos entre 1510-1551.
612
“Regimento de Cide Barbudo (Projecto)”, in D.P.M.A.C., Vol. I, (...), p. 274. Simão Ferreira PAIS, “As
Famozas Armadas Portuguezas”, in D.P.M.A.C., Vol. I, (...), pp. 90-92.
613
IDEM, ibidem.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

descoberta dos baixios próximos à ilha de S. Lourenço, actual Madagáscar, de modo a


confirmar dados úteis à navegação anteriormente observados por Lopo de Abreu.614
A carta que Pero Quaresma escreveu a D. Manuel, em 31 de Agosto de 1506,
confirma que terá havido interesse, por parte do rei, em ser explorada a costa meridional
de África, entre o cabo da Boa Esperança e Sofala.
As duas paragens que a armada fez ao longo da costa - aguada de Saldanha, junto
ao cabo da Boa Esperança, e aguada de S. Brás, actual Mossel Bay - assumem um
significado especial. Na primeira paragem, que durou oito dias, Cid Barbudo “vystio e
fez paz com a gemte”.615 É possível que esta armada fosse também incumbida de uma
missão de paz com os habitantes da aguada, que tinha como sentinela a montanha da
Mesa, três anos antes escalada por António de Saldanha e cuja relação com as populações
locais fora marcada por alguma violência e animosidade.
A segunda paragem da armada, com a duração de treze dias, ocorreu na aguada
de S. Brás e a carta enviada ao rei assinala dois momentos fundamentais na percepção do
espaço: primeiro, o momento do reconhecimento e identificação da aguada; segundo, um
momento de insegurança e incerteza.
A identificação da aguada de S. Brás foi possível devido a aí existir uma ermida
construída por João da Nova, na expedição de 1501-1502. A edificação de um templo
cristão, ainda que modesto e singelo, simbolizava a apropriação daquela terra distante
para a fé apostólica, um primeiro passo para a ampliação do senhorio espiritual das terras
que a coroa portuguesa considerava “conquistadas” e a Santa Sé confirmava com bulas.
Apesar da familiaridade assegurada pelo símbolo cristão, a paragem nesta aguada
revestiu-se de um sentimento de insegurança. Cid Barbudo, contrariando o regimento
régio, não quis ancorar a caravela, enviando a terra um degredado e um grumete em busca
de sinais das naus perdidas. Ao fim de três dias, os enviados regressavam dizendo que
foram ao lugar onde estivera a nau de Lopo d’Abreu (da armada de 1504) e que
encontraram uma ossada de homem. Não é mencionado qualquer encontro com habitantes
locais. Porém, a referência à ossada humana convida-nos a recriar mais um episódio
dramático entre os tripulantes da nau de Lopo de Abreu e os pastores Khoikhoi, já de

614
IDEM, ibidem, p. 278.
615
“Carta de Pero Quaresma para El-Rei” (Moçambique, 31 Agosto 1506), in D.P.M.A.C., Vol. I, (…), p.
622.

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sobreaviso acerca das acções e intenções dos seres estranhos que às suas terras chegavam
por mar. É provável também que, após algum confronto, o grupo de pastores mudasse o
seu aldeamento mais para o interior, pois apesar de fértil em pastagens e cursos de água,
o litoral da aguada de S. Brás tornara-se vulnerável e inseguro para estas comunidades.
A descrição feita pelos homens enviados a terra, ainda que não tivesse sido
confirmada pelos responsáveis da expedição, pois Quaresma afirma não saber “quamto
ysto poderra ser verdade”, parece acentuar sentimentos de receio e desolação, relativos à
costa entre o cabo da Boa Esperança e Sofala e seus habitantes.616
A carta de Pero Quaresma para o rei descreve ainda o cenário do forte de Sofala
destruído, com Pero d’Anhaya, o alcaide e setenta e seis homens mortos, a que se somou
a grande necessidade de todo o tipo de mantimentos que encontrou em Moçambique. 617
Regista, acima de tudo, as dificuldades suscitadas pela interacção dos portugueses com a
África Índica. Muitas destas dificuldades decorrem da extensão territorial onde, a pouco
e pouco, por ordem de regimentos régios, se iam assinalando alguns pontos de paragem
(as aguadas), fronteiras de encontros nem sempre pacíficos com a diversidade humana,
horizontes de uma paisagem que permanecia ainda incógnita.
Em suma, a expedição saída do Tejo em Setembro de 1505 teve como finalidades:
procurar alguma gente das naus perdidas de Pero de Mendonça e Francisco de
Albuquerque; fazer paz com os habitantes da aguada de Saldanha; consolidar o
conhecimento da costa, o que se depreende das referências à contagem das pedras que
funcionavam como conhecenças; proceder ao registo da navegação efectuada em função
dos ventos e das correntes dominantes, de acordo com o calendário da viagem.
Fica-nos a interrogação se teria esta viagem dado origem a algum esboço
cartográfico relativo à secção da costa entre o cabo da Boa Esperança e Sofala. Segundo
a Relação das Náos e Armadas da Índia, “[...] partirão Cide Barbudo e Pero Coresma
para descobrirem a Terra do Cabo da Boa Esperança”.618 Também o esboço do regimento
dado a Cid Barbudo sublinha a dimensão de busca e descoberta desta expedição. João de

616
“Carta de Pero Quaresma para El-Rei” (Moçambique, 31 Agosto 1506), in D.P.M.A.C., Vol. I (...), pp.
622-628.
617
IDEM, ibidem.
618
Maria Hermínia MALDONADO (leitura e anotações), Relação das Náos e Armadas da India com os
sucessos dellas que se puderam saber, Para Noticia e instrucção dos curiozos, e amantes da Historia da
India (British Library, Códice Add. 20902), Coimbra, Biblioteca Geral da Universidade, 1985, p. 14.
Sublinhado nosso.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Barros confirma que estes dois capitães foram enviados pelo rei para “que fossem
descobrir toda a terra do cábo de bóa esperança te Sofala”.619 Ora, considerando que a
missão de “descobrir” implica um trabalho exploratório de carácter técnico, parece-nos
plausível que tenha sido elaborado algum relatório pormenorizado, acompanhado de
esboço cartográfico que não chegou aos nossos dias. 620
À data desta expedição, o Planisfério de Cantino era o documento cartográfico
mais perfeito e detalhado do continente africano cujos contornos foram fixados a partir
do mar, através de métodos de navegação astronómica.621 Apesar da perfeição atingida
neste monumento cartográfico, verifica-se ainda uma importante influência de elementos
ptolomaicos visíveis, acima de tudo, na toponímia sudeste do continente. Mas, o
planisfério representa também os avanços na exploração dos litorais cujos marcos
simbólicos são os padrões de pedra: os padrões implantados por Diogo Cão no cabo
Negro e no cabo Padrão (Cape Cross) durante a sua segunda viagem (1483-1484)622, o
padrão de S. Filipe, que Bartolomeu Dias implantou no cabo da Boa Esperança (1487-
88), e o “padrão de S. Gregório”.623 Na costa oriental, seis bandeiras assinalam “Sofala,
Moçambique, Quiloa, Melinde, Mogadoxo e Barbara, entre uma toponímia que é muito
menos densa do que a das costas ocidentais e austrais do continente”624, locais onde
chegaram as expedições de Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral e cujo conhecimento
o Planisfério de Cantino sintetiza e assinala.
Porém, depois de Cabral (1500), outras armadas dobraram o Cabo:
- a armada de quatro velas capitaneada por João da Nova (1501-1502);
- a segunda viagem de Vasco da Gama à Índia, com vinte velas repartidas
entre três capitanias (Vicente Sodré, Vasco da Gama e Estevão da Gama);
- a frota de 1503, que levava Afonso de Albuquerque, Francisco de
Albuquerque e António de Saldanha como capitães de uma armada de nove velas;

619
João de BARROS, op. cit., Primeira Década, (…), p. 367. (sublinhado nosso)
620
“Regimento de Cide Barbudo (Projecto)”, in D.P.M.A.C., Vol. I, (...), pp. 284-286.
621
Avelino Teixeira da MOTA, A África no Planisfério Português Anónimo “Cantino” (1502), Lisboa,
Junta de Investigação do Ultramar – Centro de Estudos de Cartografia Antiga, 1977, ps. 3 e 12.
622
Data proposta por Carmen Radulet para a segunda viagem de Diogo Cão. Cf. Carmen RADULET, “As
Viagens de Descobrimento de Diogo Cão. Nova Proposta de Interpretação”, (…), pp. 189-190.
623
Os restos deste padrão foram localizados por Eric Axelson, em Kwaihoek, no Cabo Oriental e
encontram-se actualmente na Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo.
624
Avelino Teixeira da MOTA, op. cit., p. 10.

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- a armada de 1504, capitaneada por Lopo Soares de Meneses, em que na


viagem de retorno se perdeu a nau de Pero de Mendonça, que “encalhou quatorze
legoas da Aguoada de São bras”625;
- a armada de D. Francisco de Almeida, de 1505, da qual se perdeu, na
viagem de ida, a nau de Lopo Sanches, perto do cabo das Correntes devido a um
temporal. Da madeira desta nau perdida, a tripulação terá feito um caravelão que
depois se perdeu, nunca mais sendo encontrados sobreviventes.626

Ora, pelo número de navios que, entretanto, dobraram o Cabo (47 velas) e pelas
perdas sofridas, entre o cabo da Boa Esperança e o cabo das Correntes, justificava-se uma
missão de reconhecimento, incumbida a Cid Barbudo e Pero Quaresma, que juntasse, à
busca de eventuais sobreviventes das naus perdidas, uma missão geográfica capaz de
aprofundar e actualizar o conhecimento desta secção da costa africana, relativamente ao
que fora fixado no Planisfério dito de Cantino, que cumpria essencialmente funções
políticas.
Se, de algum modo, encontramos um vazio documental na sequência desta
expedição de 1505, há outros dados que, de forma indirecta, podem confirmar o
aprofundamento no conhecimento da costa meridional do continente africano.
A este respeito, salientamos o regimento de Diogo Lopes de Sequeira, de 13 de
Fevereiro de 1508, que estabelece um ancoradouro diferente do habitual para aguada e
encontro das naus, após a passagem do cabo da Boa Esperança:

“(…) E dobrado o dito cabo prazemdo a Nosso Senhor hirees demandar a Amgra da Roca
porque dally nos parece que devees fazer voso caminho pera a terra de Sam Lourenço por
parecer mais proveitoso. E queremos que toquees aquy na Amgra da Roca pera se algum
navio da vosa conserva se apartar de vos ho irdes ally buscar a elle a vos como ao diante
vos sera declarado.

625
Memoria das armadas que de Portugal passaram à Índia e esta primeira é a com que Vasco da Gama
partiu ao descobrimento dela por mandado de El-Rei Dom Manuel no segundo ano de seu reinado e no do
nascimento de Cristo de 1497, Edição fac-similada do Manuscrito da Academia das Ciências de Lisboa, in
Luís de ALBUQUERQUE (Introd. De), Macau, Instituto Cultural de Macau, Museu Marítimo de Macau e
Comissão Territorial de Macau para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1995, fl. 4.
626
IDEM, ibidem, fl. 5.

164
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

(…) depois de dobrado o Cabo da Boa Esperamça como atras vos fica declarado e aquy
esperares por qualquer dos navios de vosa comserva que de vos se perdese dez dias e
nestes vos repairarees aquy do que vos comprir asy d’auga como lenha como qualquer
outra cousa”.627

Este dado poderá reflectir um conhecimento mais preciso e concreto da costa


meridional de África, em resultado da expedição de Cid Barbudo e Pero Quaresma.
O referido regimento destaca a angra ou Golfo da Roca, que em documentos mais
tardios terá a designação de Baía Formosa e também Baía da Lagoa, como um porto
favorável, onde existia água, lenhas e “qualqueer outra cousa”, além da sua boa
localização para fazer o “caminho direito a pomta da terra de Sam Louremço da bamda
d’alloeste”.628 A preferência desta baía, relativamente à aguada de S. Brás, poderá ter
resultado das informações registadas pela expedição de Cid Barbudo e Pero Quaresma.
Ao mesmo tempo que se aprofundava o conhecimento geográfico do litoral
africano entre o cabo da Boa Esperança e Sofala, também se ia definindo na
documentação uma imagem de perigo associada aos seus habitantes. Notícias avulsas e
relações de armadas divulgavam episódios dramáticos que passaram a associar-se a
determinados espaços. Na Relação das Armadas, apresentada por Simão Ferreira Pais,
registava-se que, em 1505 “(...) João de Queirós querendo fazer agoada aquem do Cabo
das Correntes 60 legoas o matarão os cafres629 com o mestre e piloto, e quasi todos os que
com elle hião no batel.” 630 João de Queiroz terá sido um dos tripulantes da armada de
Pero d’Anhaia que, em 1505, saltaram em terra com vinte homens para tomar água e
gado. As populações locais mataram-no e feriram muitos outros, ao que parece tendo por
base uma experiência de 1504 em que António do Campo fez aguada, foi acolhido com
hospitalidade pelas gentes locais e, na retirada, aprisionou e levou consigo alguns
cativos.631 João de Barros também localiza os acontecimentos cerca de sessenta léguas
aquém do cabo das Correntes, o que corresponde muito provavelmente à foz do Limpopo

627
“Regimento de Diogo Lopes de Sequeira”, in D.P.M.A.C., Vol. II (1507-1510), (...), pp. 240-246.
628
IDEM, ibidem, p. 246.
629
Sublinhado nosso.
630
Simão Ferreira PAIS, “As Famozas Armadas Portuguezas” (Ms. 1650), in D.P.M.A.C., Vol. I (1497-
1506), (...), p. 90.
631
João de BARROS, op. cit., Primeira Década, (…), p. 369.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

que viria a ser explorada anos mais tarde por Lourenço Marques.632 Porém, Manuel de
Mesquita Perestrelo, no seu roteiro do sul da África refere ter sido na aguada de S. Brás
que mataram João de Queirós, “com quasi toda sua companhia, no ano de mil quinhentos
e cinco, na armada de Pêro de Anaia, por se meter pela terra dentro a tomar gado por
força”.633
Em 20 de Novembro de 1506, Diogo de Alcáçova escreveu de Cochim uma carta
para o rei, com informações relativas ao sertão de Sofala.
Para Alcáçova, que afirma ter um conhecimento “muito certo” sobre as coisas de
Sofala, as populações indígenas são descritas como ladrões e descrentes. Afirma que os
mouros que dominam o comércio no litoral não penetram mais que quatro léguas pelo
sertão “porque os roubam os caferes e matam porque nom creem em nenhuma cousa”.634
A designação das populações como cafres está associada aos perigos da selvajaria, porque
matam e roubam, e à incredulidade, que categoriza estas populações como pagãs ou
gentias. A imagem da selvajaria e descrença dos cafres é construída com memórias da
experiência de destruição do forte de estacas recentemente erguido e a morte do capitão
e do feitor. Mas o autor da carta poderá também ter recebido informações de mercadores
islamizados da região, que designavam as populações do interior como descrentes.
Alcáçova refere-se também ao grande reino de Ucalanga, de onde provém o ouro de
Sofala, com “muytas villas muito grandes”, desde o sertão até à “beyra do mar”, extensões
imensas que os reis “nom curam muito nem pouco dela se a senhoream os mouros”.635
Esta carta estabelece alguns dos estereótipos que vão constituir o “topos”
Cafraria, vindo a consolidar e ampliar a imagem monstruosa da antropofagia, veiculada
oficialmente pela carta de D. Manuel ao rei Católico pouco tempo antes.
O desconhecimento real dos territórios do interior alimentava-se de factos e mitos
que se mesclavam, que se refaziam e transmitiam dentro das tradições de oralidade, nas
quais se integram as africanas.

632
IDEM, ibidem.
633
Manuel de Mesquita PERESTRELO, “Roteiro dos portos, derrotas, alturas, cabos, conhecenças,
resguardos e sondas, que á per toda a costa desdo cabo de boa esperança ate o das correntes”, in COSTA,
Abel Fontoura da (ed.), Roteiro da África do Sul e Sueste desde o Cabo da Boa Esperança até ao das
Correntes (1576), Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1939, p. 22.
634
“Carta de Diogo de Alcáçova para El-Rei”, in D.P.M.A.C., Vol. I (1497-1506), (...), p. 390. (sublinhado
nosso)
635
IDEM, ibidem.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

O estigma da desconfiança em relação às populações do litoral sul oriental de


África, que tinha sido lançado logo na expedição de Bartolomeu Dias, e fora confirmado
uma década depois por Vasco da Gama, prolonga-se nas expedições seguintes. Os
sentimentos de desolação, receio e desconfiança provinham, antes de mais, do
desconhecimento do território, da incompreensão relativamente aos códigos culturais das
comunidades locais, das dificuldades da navegação costeira devidas à força dos ventos e
correntes. A par deste deconhecimento e incompreensão, João de Barros viria a
responsabilizar os homens do mar por muitos dos males causados: “por muy pequenas
cubiças, que alguus dos nossos cometérã cõ os naturáes da terra onde forã aportar, os
segundos que depois aly foram tér pagaram pelos primeiros”.636

Uma carta de Duarte Lemos para o rei de Portugal, datada de 30 de Setembro de


1508, integra um verdadeiro relato de viagem que sublinha as dificuldades de navegação
na passagem do cabo da Boa Esperança. Refere os temporais que impediam a navegação
com velas hasteadas e forçavam os navios a afastar-se da terra alguns dias para depois
virem a demandá-la completamente desguarnecidos. Assim, de acordo com a sua
experiência, Duarte Lemos afirma que alcançados os 40 graus de latitude sul e navegando
vários dias sem nenhuma vela, foi encontrada terra “antre o ryo do Ymfante e a pomta de
Samta Luzia”.637 Esta costa, comummente conhecida por “Terra do Natal”, é referida pela
primeira vez como uma terra de salvação, pois, segundo refere, vindo a nau “desabasticida
de carnes e pescados pescaram ali de meu navio que foy causa da yemte se remedear de
todo que ya alguma della vinha doemte porem pouqua qua Deus seya louvado”.638 A
partir dali, a frota seguiu a caminho do cabo das Correntes e, de acordo com informações
desta carta, Duarte Lemos terá encontrado Diogo Lopes de Sequeira que andava ao longo
da costa com seus navios em busca do “ryo omde mataram Joam de Queiros pera tomar
hii agoaa de que ya vinha desfalecido”.639 Ambos correram o dito rio em que ancoraram
dois dias. A identificação do rio - “ryo omde mataram Joam de Queiros” - surge em
associação a uma memória das perdas e dificuldades resultantes da interacção com as
comunidades destes litorais africanos.

636
João de BARROS, op. cit., Primeira Década, (…), p. 369.
637
“Carta de Duarte Lemos para El-Rei”, in D.P.M.A.C., Vol. II (1507-1510), (...), pp. 282.
638
IDEM, ibidem.
639
IDEM, ibidem.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

No dia 25 de Agosto de 1509, o escrivão da fortaleza de Moçambique registava


os testemunhos de nove homens do mar que navegavam a bordo da nau Madanela [sic],
capitaneada por Jorge da Cunha. Necessidade de água e lastro teriam levado a nau a
arribar à aguada de S. Brás contra as ordens do regimento régio, de que resultaram dois
mortos e vários feridos devido a confronto com as populações locais.640
Entre os nove homens chamados a testemunhar os acontecimentos, um designa de
“negros” e oito de “mouros” os habitantes indígenas da baía de S. Brás. Significa isto que
o termo cafre, usado em documentos da fortaleza de Sofala, desde 1506, por referência
às populações autóctones da África meridional e oriental, não era ainda de circulação
comum entre os homens do mar. Entre os portugueses que actuavam na região entre
Sofala e Moçambique o vocábulo já era conhecido e entrara nos falares, mas o seu uso
tinha ainda uma dimensão regional.
Aos olhos destes marinheiros, questionados em 1509, as populações Khoikhoi da
aguada de S. Brás não eram “negras” como as populações da costa ocidental africana,
mostrando-se, por analogia cromática, mais semelhantes aos “mouros”. A designação de
“mouro”, aplicada aos pastores Khoikhoi, reporta-se provavelmente às características
somáticas particulares, nomeadamente a pigmentação mais clara destes grupos pastores.
Mas será também, neste tempo, a transferência da imagem estereotipada do inimigo da
Fé, do opositor, e também daquele que não partilha os mesmos elementos de identidade
cultural.
A secção da costa meridional da África, entre o cabo da Boa Esperança e o cabo
das Correntes, apesar de evitada nos regimentos régios, revelava-se útil à navegação, pois
oferecia baías de frescas aguadas e providenciava socorro a muitas naus desarvoradas. O
conhecimento geográfico terá aumentado a partir da expedição de Cid Barbudo e Pero
Quaresma e, lentamente, foi-se aprofundando em função das necessidades da navegação.
Paralelamente aos avanços no conhecimento geográfico do litoral sul de África
assistia-se à construção de uma memória versando este vasto espaço. O número elevado
de homens que compunha as tripulações dos navios, e que eram agentes anónimos desta

640
“Inquirição de testemunhas, tirada por Rui Varela, escrivão da feitoria de Moçambique” [Moçambique,
25 de Agosto de 1509 – sobre as razões que conduziram à arribada da nau Madanela à Aguada de S. Brás],
D.P.M.A.C., Vol. II (1507-1510), (...), pp. 356-369.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

história da relação dos portugueses com a África meridional, deve ser considerado quando
se reflecte sobre uma determinada imagem em construção. Em finais do século XV e
durante os séculos XVI e XVII, a produção escrita era apenas uma das dimensões da
transmissão das notícias das viagens. Como demonstram os estudos de Bouza Álvarez,
na Época Moderna os mecanismos da transmissão oral desempenhavam um papel crucial
na divulgação de notícias, nomeadamente entre os que não tinham acesso à leitura.641 Nas
“notícias”, que circulavam no âmbito da cultura popular, incluíam-se relatos de
experiências de interacção com terras e gentes muito distantes vividas pelas tripulações
das naus. No regresso das viagens, tais notícias eram contadas e recontadas, matizavam-
se com outras informações, com contos orais, com lendas e fabulações, que permaneciam
nas memórias dos que contavam e dos que ouviam. Tais notícias estavam sujeitas ao
imaginário, aos arquétipos que estruturam o pensamento e a invenção,642 por isso também
terão contribuído para a construção de uma imagem dos povos dos confins da África.

2.3.Testemunhos estrangeiros e difusão de imagens para espaços europeus

Na armada da segunda viagem de Vasco da Gama à Índia, de 1502, seguia a bordo


um marinheiro flamengo que fez publicar a sua narrativa de viagem em Antuérpia, no ano
de 1504, sob o título Calcoen.643
No texto de Calcoen, as terras mais meridionais da África são genericamente
designadas por “Cabo da Boa Esperança” e, já no quadrante sudeste, por “terra ou o país
dos Paepians”. Uma visão marítima do Cabo destaca a “grande tempestade de chuva,
neve, trovões e relâmpagos (…) tormenta”.644 Acima de tudo, o texto retém o mundo
físico da viagem marítima. Porém, em Scafal (Sofala), na costa oriental, o autor capta a
oposição existente entre o rei de Sofala e os Paepians do sertão, fechados “pelos muros”

641
Fernando Jesus BOUZA ÁLVAREZ, Del Escribano a la Biblioteca. La Civilizatión Escrita Europea en
la Alta Edad Moderna (Siglos XV-XVII), Madrid, Editorial Síntesis, 1992, pp. 27-28.
642
Partilhamos a ideia de Lucian Bóia, de que a história, como “aventura do espírito”, é permanentemente
trespassada pelo imaginário. Cf. Lucian BOIA, Pour une Histoire de l’Imaginaire, Paris, Les Belles Lettres,
1998.
643
Jean Philibert BERJEAU, (introd. e trad. para inglês), Calcoen. A Dutch Narrative of the Second Voyage
of Vasco da Gama to Calicut, printed at Antuerp circa 1504, London, Basil Montagu Pickering, 1874.
644
Augusto Carlos Teixeira de ARAGÃO, Vasco da Gama e a Vidigueira. Estudo Histórico, Lisboa,
Imprensa Nacional, 1898, p. 89. Este estudo sobre Vasco da Gama inclui, entre as páginas 87-95, a tradução
portuguesa do texto impresso em Antuérpia, cerca de 1504, p. 88.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

porque a terra “abunda em prata, oiro, pedras preciosas e riqueza”.645 A descrição da terra
dos Paepians refere-se a gentes e reis, lugares, costumes e mercadorias da África oriental.
O rio dos Paepians era provavelmente o Zambeze ou Cuama e Miskebyc, a ilha de
Moçambique. Neste texto, acerca do sudeste africano, estão ausentes juízos de valor
decorrentes de percepções da diversidade cultural. Porém, quando no relato da viagem o
curso da armada se aproxima da terra da Arábia, então o autor refere-se a Meca, como a
cidade onde jaz “o demónio dos pagãos”.646 O espaço africano e as suas populações, não
suscitaram oposição nem juízos negativos. Essa atitude está antes associada ao espaço do
Islão, cujos estereótipos negativos estariam enraizados na cultura europeia cristã.
Um ano depois, na armada de 1503, sob o comando de Afonso de Albuquerque,
numa das naus seguia a bordo o mercador florentino, Giovanni da Empoli, como agente
de uma casa comercial de Florença, que registou as suas impressões sobre os habitantes
da África meridional. O seu relato foi integrado na colectânea de textos sobre as
novidades das navegações portuguesas, organizada em três volumes por Giambattista
Ramusio, e publicada pela primeira vez em Veneza, no ano de 1550. Uma segunda edição
do primeiro volume saía logo no ano de 1554, o terceiro volume em 1556 e o segundo
volume, em 1583, sob o título Delle Navigationi et Viaggi.647 A integração nesta
colectânea, do texto de Giovanni da Empoli sobre a escala feita na aguada de S. Brás,
consagra a primeira difusão de uma descrição dos Khoikhoi. De um modo completamente
diverso do texto flamengo Calcoen, Empoli narra uma terra de águas abundantes e prados
repletos de gado, onde vivia uma humanidade bruta e bestial – “huomini bestiali”.
Segundo a descrição, esta gente vestia-se com peles de animais, comia carne crua e falava
uma língua que ninguém entendia, pois que na armada viajavam homens conhecedores
de diversos idiomas e mostraram-se incapazes de decifrar tais falares.648

645
IDEM, ibidem, p. 89.
646
IDEM, ibidem, p. 91.
647
Giovanni Battista RAMUSIO, Primo volume della Navigationi et Viaggi nel quale si contiene la
Descrittione dell'Africa, & del paese del Prete Janni, con viaggi dal mar Rosso à Calicut, & insin'all'isole
Molucche, doue nascono le spetierie, et la nauigatione attorno il mondo, Venezia, Appresso gli heredi di
Lucantonio Giunti, 1550. A 2ª edição saíu em 1554; a 3ª edição, em 1563; a 4ª edição, em 1588 e a 5ª
edição, em 1606. Veja-se sobre este assunto, Luciana Stegagno PICCHIO, Portugal e os Portugueses no
Livro das «Navigationi» de G. B. Ramusio, Lisboa, Centro de Estudos de História e de Cartografia Antiga
– Instituto de Investigação Científica Tropical, 1984, Série Separatas, Nº 152, pp. 3-4.
648
Giovanni Battista RAMUSIO, ibidem, fl. 156 vº.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Para Fauvelle-Aymar, o relato deste mercador imobiliza o tempo do encontro, em


que o “outro” deixa de ser um actor e passa a ser um sujeito fixo no meio de um quadro,
que o olhar é livre de observar. O modo como Empoli olha o encontro e o desejo de fixá-
lo como novidade resulta da sua qualidade de estrangeiro. O discurso que produz também
não teria como destinatário um público de navegadores, mas o leitor de um novo género
que nascia e que versava as curiosidades do mundo.649
Face aos desafios colocados aos editores, que procuravam ir ao encontro de uma
cultura de curiosidade dos leitores, questionamo-nos se o texto que Empoli produziu
originalmente não teria sido objecto de tratamento para a edição, que ocorreu quase meio
século depois da viagem? Até que ponto o editor Ramusio terá interferido no texto inicial,
introduzindo pormenores que contribuíram para uma visão estereotipada dos pastores da
aguada de S. Brás?

A partir de 1502 está registada a participação de agentes comerciais alemães em


viagens à Índia, no contexto de acordos estabelecidos com a coroa portuguesa, que
concediam condições especiais a companhias de mercadores, banqueiros e cidadãos do
Sacro Império Romano-Germânico.650 Entre os agentes alemães que viajavam para a
Índia, alguns exerciam a função de espingardeiros, mas a maioria cumpria objectivos de
natureza comercial. Sobre a participação de cidadãos alemães na segunda viagem de
Vasco da Gama à Índia existem dois manuscritos distintos: um de autoria anónima, da
Biblioteca Nacional de Viena (Cod. 6948), publicado por Christiane Von Rohr, em 1939;
outro, conhecido como o manuscrito de Bratislava, integrado no Codex Bratislavensis
(Lyc.515/8).651 Antes do regresso da Índia destes primeiros germânicos, embarcava com
o mesmo destino outro viajante, que acompanhou a frota comandada por Afonso e
Francisco de Albuquerque, nos anos 1503-1504, e redigiu um relatório da expedição,
conhecido como o “Manuscrito de Leutkirch”.652 A transcrição e edição deste manuscrito

649
François-Xavier FAUVELLE-AYMAR, L’Invention du Hottentot. Histoire du regard occidental sur les
Khoisan (XVe-XIX Siècle), (…), p. 53.
650
Marion EHRHARDT, A Alemanha e os Descobrimentos Portugueses, Lisboa, Texto Editora, 1989, pp.
95-100.
651
Jürgen POHLE, Os Mercadores-Banqueiros Alemães e a Expansão Portuguesa no Reinado de D.
Manuel I, Lisboa, Coleção CHAM eBooks, CHAM, 2017, pp. 83-86.
652
Segundo Marion Ehrhardt, este relatório de viagem manuscrito integra-se num códice com o título
“Livro Paumgartneriano de Usanças”, da família dos Paumgartner que, em meados do século XVI, se
moveu nos altos círculos mercantis e banqueiros, entre Nuremberga e Augsburgo. Terá sido Hans I

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

por Marion Ehrhardt, revela-nos um relato minucioso do itinerário de viagem, das praças
mercantis importantes, suas mercadorias, pesos, medidas e valores. Neste itinerário
descreve “Sofala do rei de Quiloa”, terra do ouro, que provinha das terras africanas do
interior, cujos habitantes “os pagãos” chamam “cafres”:
“O ouro chama-se arábico, e não se encontra em Sofala mas vem da terra, e o povo trá-lo
e dá-o aos pagãos em troca de mercadoria, cuja maior parte são panos de algodão de
cambaia. E os pagãos chamam ao povo da terra cafres”.653

Este texto do agente alemão anónimo, redigido entre 1503 e 1504, integra um dos
primeiros registos escritos que se conhecem do vocábulo “cafre” para designar as
populações africanas dos territórios do interior, que forneciam o ouro a Sofala.
Curiosamente, o autor designa de “pagãos” os mercadores muçulmanos que
desenvolviam o trato em Sofala. Esta poderá ter sido uma designação corrente aplicada
às gentes não cristãs, professas em qualquer outra religião, pois como observámos no
texto do mercador flamengo, intitulado Calcoen, a cidade de Meca foi identificada pelo
autor como aquela onde jaz “o demónio dos pagãos”. O signo “pagãos” é aplicado pelos
observadores europeus, neste contexto, aos mercadores suaíli, que são os responsáveis
por transmitir o vocábulo “cafre”, identificativo do povo da terra.
A introdução do vocábulo “cafre”, que resulta da recolha de informações durante
a referida expedição de 1503-1504, pressupõe contextos de comunicação verbal com
gentes da costa leste africana no âmbito dos quais, tanto o agente alemão, como os
portugueses desta armada, foram expostos aos significados do vocábulo identificativo.

Em 1505, três armadas dobraram o cabo da Boa Esperança, sulcaram os mares


meridionais e aportaram nos litorais africanos, dando origem à produção de diferentes
tipos de registo.
A primeira destas armadas, que largou do Tejo em Março e levava para o Oriente
D. Francisco de Almeida, integrava três navios armados por um consórcio de Augsburgo,
que reunia capitais dos Fugger e dos Welser, enviando como feitor Baltasar Springer, a
bordo da nau S. Leonardo, e Hans Mayr, a bordo da nau S. Rafael.

Paumgartner que compilou este códice, fixando aí vastas informações relativas ao comércio europeu e
ultramarino. Sobre este assunto veja-se Marion EHRHARDT, op. cit., pp. 71-72.
653
IDEM, ibidem, p, 78. (sublinhado nosso)

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Sobre Hans Mayr, sabe-se que era escrivão da nau e que deixou um relato que foi
integrado no Manuscrito de Valentim Fernandes. Na sua descrição sobre a conquista de
Quíloa, refere a riqueza desta cidade bem como as populações que a habitavam,
distinguidas entre “senhores” (“moiros da terra”, “mouros aluos”, “mouros brancos e
senhores destes escravos”) e os “escravos negros”, muitos dos quais serviam como
frecheiros dos “reis mouros”, usando na guerra “setas sem ferro”.654 Também em
Angediva, Mayr refere a autoridade exercida por “mouros brancos” sobre os habitantes
locais, “gentios baços”. Os “senhores das cidades” tinham no seu exército gente a cavalo
e tinham sempre guerra “com os gentios”.655
O relato de Mayr transmite uma percepção das cidades suaíli como espaços
urbanos associados a um domínio “branco” / “alvo”, islamizado, exercido sobre
populações “negras” / de “escravos” / “gentios”. Ora, esta percepção de populações
muçulmanas e populações gentias que partilham um mesmo espaço expressava também
as próprias percepções identitárias locais, no contexto das quais terá sido recolhido o
vocábulo “cafre”, associado aos “negros”, “gentios”, ou seja, às populações não
islamizadas. Este é um dado muito importante que nos confirma que o vocábulo “cafre”
entrou nos falares portuguese e europeus pela via dos mercadores suaíli.

Em 1506, na viagem de regresso, o navio em que Springer viajava abrigou-se das


tempestades durante alguns dias, na baía da Lagoa (actual Algoa Bay) e na baía dos
Vaqueiros (actual Mossel Bay), antes da passagem do Cabo da Boa Esperança, entre 6 e
8 de Julho, o que lhe permitiu testemunhar as populações locais e redigir uma descrição
das mesmas.656
Desta participação germânica na armada de D. Francisco de Almeida, resultou um
relato da viagem, escrito por Baltasar Springer, que foi impresso em Augsburg, em 1508.
As primeiras impressões sobre as novas terras e “povos exóticos” foram reunidas num
conjunto de textos breves, acompanhados das gravuras do reconhecido Mestre ilustrador,
Hans Burgkmair. Em 1509, Springer editava um panfleto e publicava uma versão

654
Códice Valentim Fernandes, leitura paleográfica, notas e índice por José Pereira da COSTA, Lisboa,
Academia Portuguesa da História, 1997, pp. 348-352.
655
IDEM, ibidem, p. 357.
656
Jean Michel MASSING, “Hans Burgkmair's Depiction of Native Africans.” RES: Anthropology and
Aesthetics, The University of Chicago Press, No. 27 (Spring 1995), p. 41.

173
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

aumentada do relato em forma de livro. Posteriormente, multiplicavam-se as reproduções


destas gravuras em diferentes obras, algumas coloridas à mão, o que demonstra a
curiosidade e a popularidade do tema.657 Uma reprodução das gravuras, com introdução
de alguns pormenores, foi impressa em 1511, por Georg Glockendon, um conhecido
editor e impressor de Nuremberga.
As ilustrações de Burgkmair, num conjunto de seis placas que ilustram as etapas
da viagem de Springer, continham uma representação gráfica dos povos das várias partes
do mundo, percorridas na viagem de 1505-1506. Da série de gravuras de Augsburgo,
conhecidas como “Nativos da África e da Índia”, as duas primeiras placas referem-se a
povos africanos: a primeira, com a legenda “IN GENNEA” representa povos da Guiné,
nomeadamente os pescadores Lebu com quem contactou junto ao cabo Verde, onde a
armada fez aguada.
A segunda placa, com o título “IN ALLAGO”, contém elementos que permitem
identificar os personagens representados com populações Khoi. Para Springer, o nome
“Allago” é genérico, referindo-se a uma área que se estende por 550 milhas ao longo da
costa oriental africana, integrando o “reino de Sofala”. O texto que acompanha as
gravuras descreve os habitantes desta costa como pretos ou mouros e gente meio
selvagem, que se vestem com peles de animais, usam calçado de couro nos seus pés, têm
como armas longas lanças e pedras que atiram e trocam um boi ou um carneiro por uma
bacia ou uma faca.658
A imagem correspondente ao título “IN ALLAGO” é composta um casal sentado,
com duas crianças, estando uma de pé e outra a ser amamentada. Da escassa vestimenta
dos adultos salientam-se os mantos de peles de animais selvagens, aparentando ser de
grandes felinos; a cabeça da mulher é coberta com uma pele de carneiro, que termina com
o casco do animal descendo-lhe pelo ombro; grandes tangas de pele cobrem os genitais;
na criança que está de pé, uma fita segura o genital, na vertical; grandes sandálias
redondas, feitas de couro. Os traços físicos africanos são evidenciados pelo cabelo crespo
do homem e da criança. Dos adornos, destacam-se os pendentes nas orelhas e os cordões,
que tanto a criança maior como o casal usam à volta do pescoço. Trata-se de uma espécie

657
Mark P. McDONALD, “Burgkmair’s Woodcut Frieze of the Natives of Africa and India”, in Print
Quarterly, Vol. 20, No 3 (September 2003), p. 230.
658
Jean Michel MASSING, op. cit., pp. 42-43.

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de fitas elaboradas a partir dos intestinos dos animais, transmitindo a ideia de comunhão
entre o elemento humano e os animais de criação.659
Numa outra versão desta temática, impressa em 1508, um casal de adultos está de
pé, vestem-se com peles de animais e seguram bastões, uma criança está ao peito da
mulher e outra entre os adultos, levantando uma perna.
Como afirma Fauvelle-Aymar, a gravura sublinha o aspecto “peludo” dos adultos,
deixando campo aberto aos leitores para a livre associação com figuras mitológicas ou
lendárias. Porém, as posturas dos corpos, os gestos e a composição do cenário parecem
evocar um certo estado de inocência, que caracteriza as representações de Adão e Eva em
Dürer. Ao tempo destas primeiras gravuras impressas, não havia convenções seculares
para a representação iconográfica dos habitantes de terras estranhas e o protótipo para a
nudez nativa era encontrado nas cenas de Adão e Eva no Paraíso.660 Segundo Fauvelle-
Aymar, a postura dos corpos, os gestos, o décor, com a árvore no plano anterior, evocam
um certo estado de inocência que caracteriza as representações de Adão e Eva em Dürer,
ou mesmo em Burgkmair.661
Com base no relato de viagem escrito por Springer e outras informações que estão
presentes em detalhes que não constam do texto, Burgkmair criou uma imagem das
populações Khoi, que fontes e relatos de expedições posteriores haveriam de
confirmar.662 Burgkmair não viajou e não observou estes habitantes da costa meridional
africana, mas é muito provável que tenha tido acesso a alguns esboços feitos por
acompanhantes de Springer, pois só deste modo tais pormenores, ausentes do texto,
poderiam ser representados com tanta precisão.

659
Nas comunidades de pastores Khoikhoi havia um intenso envolvimento entre os humanos e os animais
de criação. Quando se sacrificava um animal nos rituais de nascimento, puberdade, casamento e morte, os
seus intestinos passavam a ser usados para fazer adornos usados em volta do pescoço e tronco. As entranhas
dos animais, convertidos em símbolos de comunhão e bem-estar nestas comunidades, repugnaram os
europeus que, desde os primeiros contactos, registaram graficamente este estranho elemento de
identificação. Cf. Noël MOSTERT, op. cit., p. 35.
660
François-Xavier FAUVELLE-AYMAR, L’Invention du Hottentot. Histoire du regard occidental sur les
Khoisan (XVe-XIX Siècle), (…), p. 59.
661
IDEM, ibidem. Veja-se nota 141 do autor.
662
Jean Michel MASSING, op. cit., p. 43.

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Fig. 1 - In Allago, Burgkmair (1508)

In Allago (In Algoa), impresso a partir das gravuras de Hans Burgkmair, em 1508.
Representação que segue de forma mais próxima as descrições de Springer.

© The Trustees of the British Museum


https://www.britishmuseum.org/collection/object/P_1856-0614-105 (consultado em
30/12/2020)

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Fig. 2 - In Allago, Burgkmair (1511)

Nativos da Guiné e Algoa: a primeira folha do friso impresso a partir das gravuras de Hans Burgkmair.
In Natives of Guinea and Algoa, natives of Arabia and India. Two sheets of a frieze printed from eight blocks
joined together, printed by Georg Glockendon, 1511.
© The Trustees of the British Museum
https://www.britishmuseum.org/collection/image/56801001 (consultado em 30/12/2020)

Nestas representações gráficas, a distância cultural expressa-se através de


elementos como a nudez ou a escassa cobertura dos corpos com peles de animais
selvagens, a negritude, o cabelo encrespado e os estranhos adornos, como eram os
intestinos secos de animais.663 Segundo Mudimbe, a imagem do africano, criada por estas
gravuras, expressa uma determinada ordem discursiva que estabelece uma dupla

663
Valentin-Yves MUDIMBE, op. cit., p. 9.

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representação: primeiro, os corpos exóticos são integrados e assimilados à metodologia


da pintura italiana do séc. XVI, que reduz e neutraliza as diferenças no sentido em que as
submete à matriz artística do Renascimento;664 depois, estabelece uma segunda
representação em que a unidade é percebida através da similitude e em que eventualmente
se articulam distinções e separações. Há como que signos de uma ordem epistemológica
que, silenciosamente, mas de modo imperativo indicam o processo de integrar e
diferenciar os elementos dentro do normativo identitário.665 Em termos bíblicos, as
similitudes estariam directamente relacionadas com a mesma origem de todos os seres
humanos, enquanto as diferenças encontravam a sua explicação no processo de difusão
geográfica e diversificação das comunidades humanas.
Destinadas a circular nos meios culturais da Europa central e no norte, as gravuras
de Hans Burgkmair são uma representação iconográfica resultante de um processo de
filtragem cultural que ocorreu em diferentes momentos, de acordo com variados níveis
de interferência. Primeiro, o olhar do viajante Baltasar Springer está sujeito aos “filtros”
apriorísticos do próprio, que são uma natural emanação da sua visão do mundo; depois,
ocorre o processo de representação escrita, resultante da necessidade de fixar num suporte
durável a experiência da novidade testemunhada, que se traduz num conjunto de traços
diferenciadores. Questionamo-nos, então, quando terá ocorrido o momento da escrita?
Terá sido simultâneo à experiência do encontro com os Khoi? Ou terá sido num tempo
posterior, quando o trabalho da memória interpõe outros elementos de distanciação?
Só depois destes níveis de apropriação, que integram o processamento das
informações pelo sujeito observador e produtor do discurso, poderemos passar para o
leitor dos registos. É neste plano que se encontra Hans Burgkmair, que não vivenciou a
aventura da viagem, nem presenciou a diversidade antropológica, mas que traduziu em
signos iconográficos o que outrém visualizou e fixou na escrita com signos linguísticos,
ou até, eventualmente, também reuniu informação de desenhos esboçados durante a
viagem, que divulgou nas suas gravuras. Este nível, por sua vez, também se encontra
sujeito aos cânones estéticos da representação humana e às possibilidades técnicas
vigentes nos alvores do séc. XVI.

664
IDEM, ibidem, p. 8.
665
IDEM, ibidem, p. 9.

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Tantas intervenções e condicionalismos subjectivos terão resultado na invenção


de uma imagem das populações da África do sudeste, que vai ao encontro do paradigma
dos povos primitivos e selvagens. Estes ícones enquadram-se num corpus de
representações iconográficas de uma humanidade considerada primitiva e selvagem.

2.4. Morte de D. Francisco de Almeida na Baía de Saldanha em 1510

“(...) o Viso Rey D. Francisco de Almeyda (...) fazendo seu caminho passou com bom
tempo o Cabo de Boa Esperança; e como quem se avia já por navegado, disse: Ia as
feiticeiras de Cochim, ficarão mentirozas; e isto era porque em a India andava em a boca
de alguns, que elle o não avia de passar, o qual pronostico dezião proceder das feiticeiras
da terra. E como vinha necessitado de agua, e por detraz do Cabo a avia a que chamão a
aguada de Saldanha, mandou aos pilotos que a fossem tomar: & por se recrearem os
homens da tristeza do mar, deu licença, que quando os bateis fossem em terra, sahissem
alguns soldados a fazer resgate com os negros, que logo acudirão a praya (...)”666

Em 1510, a armada que transportava o vice-rei da Índia, D. Francisco de Almeida,


de regresso ao reino de Portugal estacionou para fazer aguada numa baía, que por ser
próxima à montanha escalada por António de Saldanha, era desighnada como Baía de
Saldanha. O local, onde corria um rio de água doce, era habitado por gentes do clã
Goringhaiqua, um dos grupos de pastores Khoikhoi do Cabo Ocidental.667 Os habitantes
da pensínsula observaram a chegada dos portugueses com interesse e, após a ancoragem
das naus, aproximaram-se da praia para estabelecerem trocas de bens com o grupo de
marinheiros. Após alguns dias de permutas amistosas, um grupo de portugueses
deslocaram-se até uma aldeia Khoi, originando uma escaramuça que viria a ter um
desenlace trágico, uma vez que resultou na morte do vice-rei e mais cerca de sessenta
nobres do reino. Uma elite de guerreiros cristãos, que regressavam ao reino, imbuídos de
um sentimento de vitória depois de terem erigido os alicerces do “Estado da Índia”,

666
“Do fim mizeravel que teve D. Francisco de Almeyda em o anno de 1510”, in Rellação de Varios
Naufragios. B.P.M.P., Reservados, Códice 737, (data desconhecida), fl. 1. (Transcrição nossa). Vide
Anexos, Doc. 1.
667
Richard ELPHICK, op. cit., pp. 51-53.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

sucumbiam, em 1510, junto ao Cabo da Boa Esperança, numa batalha com pastores
Khoikhoi.
Este acontecimento originou relatos e evocações em quase todas as obras
clássicas dos historiadores portugueses. Discursos orais e escritos confluiram para uma
versão que havia de se materializar na escrita dos cronistas e que, devido à distância
espacial, temporal e vivencial, relativamente aos factos a que se refere, havia de se
constituir como uma representação, ou seja, como uma construção do objecto, ou mesmo
uma recriação, resultante de condições culturais e mentais.668
Na ausência de testemunhos escritos resultantes da vivência directa, apenas
podemos analisar o acontecimento da aguada de Saldanha a partir da versão que se tornou
comum nos relatos indirectos, que foram redigidos muito posteriormente a 1510.
Baseados em diversas fontes informativas, esses relatos não são unívocos quanto ao
motivo que desencadeou a agressão. Porém, parecem ser unânimes em reconhecer a
responsabilidade dos portugueses, tanto no desencadear da escaramuça, como no
posterior agravamento da interacção entre os portugueses e o clã Goringhaiqua.
Dizem os textos que, passado o Cabo com tempo bonançoso, os navios fizeram
escala na aguada de Saldanha. Entre o abastecimento de água e lenha e a troca de carne
por peças de metal e tecidos, alguns marinheiros aventuraram-se a acompanhar os
africanos até às suas aldeias (cerca de uma légua pelo sertão), onde as habitações se
organizavam à volta de currais abundantes de gado.
De acordo com o texto de Fernão Lopes de Castanheda (1552), um homem de
nome Diogo Fernandes Labaredas ter-se-á aventurado até uma aldeia no sertão trazendo
de lá um grande carneiro.669 Gabou a terra e sua abundância em gados, pelo que o vice-
rei lhe ordenou que lá voltasse com mais doze homens para “resgatar daquele gado pera
fazer carnajem”.670 Foram bem agasalhados e banquetearam-se em convívio com os as
gentes da terra, quando um dos homens se lembrou de tomar à força um “negro” a fim de
o levar ao vice-rei que o vestiria ricamente, para que eles e os portugueses vindouros
viessem a beneficiar nos resgates daquela aguada. O negro ameaçado com um “punhal

668
José da Silva HORTA, “O Africano: produção textual e representações (séculos XV-XVII)”, in
Condicionantes Culturais da Literatura de Viagens. Estudos e Biografias, (…), p. 265.
669
Fernão Lopes de CASTANHEDA, História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses,
Liv. II, Cap. CXXIII, Porto, Lello & Irmão, 1979, Vol. I, p. 484.
670
IDEM, ibidem.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

nos peitos” gritou por ajuda, ao que os outros acudiram atirando muitas pedras, que
feriram alguns portugueses.
João de Barros, na sua Década II (1553), descreve uma mesma abordagem inicial
pacífica, baseada na permuta de bens entre os marinheiros, que tiveram licença para vir a
terra “recrear da tristeza do mar”, e as populações autóctones, que logo acorreram à praia
assim que viram as naus ancoradas.671 Infere-se das palavras de Barros que alguns homens
abusaram desta licença e acompanharam os Khoi às suas aldeias, a uma légua pelo sertão,
e que nessa ida alguns perderam ou lhes roubaram os punhais. Para disto se vingar,
Gonçalo Homem, criado do vice-rei, trouxe “enganosamente” dois “negros” para a praia,
o que conduziu à agressão que o deixou com “os fucinhos feitos em sangue, e alguns
dentes quebrados”.672
Noutros textos, como Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel, de Damião de Góis,
Da Vida e Feitos de El-Rei D. Manuel, de D. Jerónimo Osório, Ásia Portuguesa, de
Manuel de Faria e Sousa, a narrativa destes episódios sofre algumas variações, o que é
próprio de relatos indirectos, redigidos muito posteriormente aos acontecimentos.673
O relato de Gaspar Correia dá-nos pormenores sobre a estadia na aguada de
Saldanha que mais nenhum cronista refere.674 Este cavaleiro, que viajou para o Oriente
em 1512, onde passou a maior parte da sua vida e morreu em 1563, foi escrivão particular
de Afonso de Albuquerque. Pela sua anterioridade relativamente a Barros e a Castanheda,
o seu relato merece a nossa atenção.675 Refere que D. Francisco de Almeida permaneceu
dez dias na aguada de Saldanha, para recolha de água e lenha. Explica que a estadia se
alongou devido à distância da fonte e porque os marinheiros traziam a água em barris,
enchendo depois as pipas nos batéis. O caminho “era per antre huns matos, dentro do qual
auia pouoações de Cafres, que tem criações de cabras e vaccas, pera sua mantença de seu
leite e manteiga”.676 O autor procura sondar o “Outro” e interpretar as suas expectativas

671
João de BARROS, op. cit., Segunda Década, (…), p. 144.
672
IDEM, ibidem, pp. 144-145.
673
Damião de GÓIS, Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel, Nova edição conforme a Primeira de 1566,
Parte II (1953), Coimbra, Por Ordem da Universidade. Jerónimo OSÓRIO, Da Vida e Feitos de El-Rei D.
Manuel, Edição actualizada e prefaciada por Joaquim FERREIRA, Vol I, Porto, Livraria Civilização, 1571.
Manuel de Faria y SOUSA, Ásia Portuguesa, Tomo I (1666), Tomo II (1674), Lisboa, En la Officina de
Antonio Craesbeeck de Mello Impressor de Sua Alteza.
674
Gaspar CORREIA, op. cit..
675
Joaquim Veríssimo SERRÃO, A Historiografia Portuguesa. Doutrina e Crítica Vol., Lisboa, Editorial
Verbo, 1972, p. 237.
676
Gaspar CORREIA, op. cit., p. 992.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

e receios. Neste sentido, refere que os habitantes daquela baía, ao verem três naus e tanta
gente, temeram que os estranhos se apoderassem da aguada, o que os levaria a perder os
seus gados. Por isso, andavam pelos matos escondidos enquanto os portugueses
acartavam água. Vindo alguns habitantes locais ao resgate com os portugueses, houve
marinheiros que quiseram tomar uma vaca sem pagar o preço pedido, facto que teria
originado um mal-entendido a que, de um lado e do outro haviam de acudir mais homens
com as armas que cada um tinha, de que resultaram muitos feridos.
Segundo Castanheda, ao chegarem feridos e ensanguentados diante do vice-rei, os
marinheiros contaram a história de modo que não assumiram ser eles a “causa de se
levantarem os negros”. Gaspar Correia vai mais longe, emitindo mesmo um juízo sobre
a condição portuguesa em que os homens sempre querem tomar o alheio às “pobres gentes
da terra”.677
Damião de Góis, Jerónimo Osório, Faria e Sousa reforçam a ideia de que terá sido
forjada uma versão para que os culpados ficassem ilibados e o vice-rei fosse incitado a
punir os africanos. Faria e Sousa não poupa críticas àqueles que se pronunciaram a favor
do ataque:
“(…) imprudentíssimos cavaleiros, que com aquêle facto se deram por feridos no que êles
chamam quási divindade, para tirar satisfações persuadiram o Vice-Rei (não se meteram
nisto, se bem que o acompanharam, Lourenço de Brito, Jorge de Melo e Martim Coelho)
a que para esta acção saísse a terra, em vez de o persuadirem a que castigasse o seu criado
por ir ofender gente cuja terra se ia procurar para refrêsco. Esta seria a política.”678

As posições dividiram-se, mas venceu o partido daqueles que queriam dar uma
lição aos africanos e o vice-rei acabou por aceder em empreender o que seria uma fatídica
expedição punitiva numa aldeia Khoi. Cento e cinquenta homens deixaram a praia já
depois da uma hora da manhã para que o ataque-surpresa ocorresse de madrugada. Pelo
caminho apoderaram-se de algum gado grosso. Pero Barreto e Jorge Barreto entraram
cada um com sua gente por duas diferentes partes da aldeia, ao que os africanos de
imediato responderam com as suas armas. Dizem os relatos que a primeira vítima do lado
dos portugueses foi Fernão Pereira, que estava dentro de uma cabana e que terá sido

677
IDEM, ibidem, p. 992
678
Manuel de Faria e SOUSA, Ásia Portuguesa., Vol. 5, Biblioteca Histórica, Série Ultramarina, Lisboa,
Livraria Civilização Editora, 1945, p. 277.

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atingido por um dos seus companheiros que, ouvindo ruído no interior da habitação,
julgou ser um cafre e o atravessou com uma lança.
Estavam em confronto dois grupos de grande contraste: de um lado - os Khoikhoi,
pastores de coloração acastanhada, a cor “baça” dos primeiros registos; de outro lado - os
portugueses, homens pálidos de barbas negras, ricamente vestidos. Os primeiros,
conhecendo o terreno em que se moviam e usando como armas surrões de couro cheios
de pedras, molhos de “curtos arremessões” e lanças de pau tostado; os segundos,
estranhos aos “ásperos” caminhos do sertão, levavam consigo apenas lanças e espadas.
Estavam tão auto-confiantes da sua missão que não se fizeram acompanhar de armas de
fogo. Quando se aperceberam da desvantagem, e numa tentativa de intimidação do
inimigo, agarraram algumas crianças, o que causou ainda maior fúria entre os africanos,
que se lançaram no combate como “gente que se vinha offerecer á morte por saluar os
filhos”.679 É então que, por certos assobios e sinais dirigidos ao gado, os animais foram
utilizados pelos africanos na sua estratégia de guerra. Os portugueses desbarataram rumo
à praia, sempre seguidos dos adversários e suas manadas de gado que os pisavam, ferindo
e matando muitos. Na praia, já o cansaço lhes tolhia os passos e o desalento lhes tomava
o espírito. Por coincidência, os batéis tinham sido levados para mais longe porque a
corrente marítima tinha mudado e, numa atitude de desespero, alguns homens entravam
pelo mar tingindo-o de sangue. Neste quadro dramático, o vice-rei foi atingido por uma
lança de pau tostado que lhe atravessou a garganta e lhe retirou a vida.
Consta nos relatos que, no final, os africanos despiram o vice-rei e levaram como
troféu as suas peças de vestuário de veludo carmesim. Os corpos ficaram espalhados por
aquela praia dos confins da África e, só quando pareceu seguro, os sobreviventes
regressaram nos batéis para recolher os feridos e dar sepultura aos mortos. Ali teriam
ficado os restos mortais do vice-rei, em terra estranha, não cristã, no próprio espaço que
simbolizava a abertura do vasto Oriente.
O primeiro documento fazendo menção à morte do vice-rei na aguada de
Saldanha data de 2 de Março de 1510, o dia imediato à tragédia. Trata-se de uma acta
redigida pelo escrivão da nau Belém, António Martins, que formalizou a nomeação de
Jorge Barreto como capitão da nau Garça. A referência à morte do vice-rei resume-se ao

679
João de BARROS, op. cit., p. 146.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

seguinte: “Aos ij dyas do mes de março de 1510, nagoada d Amtonio de san (sic)
saldanha, foy morto Dom Framçysquo d Almeida vyso Rej das Jmdeas (...)”.680
Este documento de natureza administrativa terá sido escrito após os
sobreviventes da tragédia regressarem à praia para recolherem os feridos e sepulturar os
mortos. Mesmo assim, não se encontra no texto qualquer traço de consternação.
O primeiro texto impresso que associa a tragédia à aguada de Saldanha e ao cabo
da Boa Esperança foi escrito por Martin Fernández de Figueroa e publicado em Saragoça,
por Juan Augur, em 1512.681 Ao descrever o regresso de Duarte Lemos para Portugal
afirma que, perante a necessidade de abastecimento de água, junto ao Cabo da Boa
Esperança, a armada ancorou na aguada de Saldanha onde viram muitas cabeças de
mortos, sepulturas e pedaços de vestuário e que logo reconheceram ser gente do vice-rei,
tendo mesmo identificado o corpo de D. Francisco de Almeida.682
O texto estabelece uma dicotomia entre “los negros de aquella tierra”, povo
estranho de uma terra distante e não cristã, autor das maiores crueldades, e as pessoas
“mas catholicas, valientes, generosos y esfforçadas de portogal” que, através daquele
conflito, se converteram em mártires imortais. A dicotomia que este primeiro texto
impresso parece fixar reflecte o impacte da notícia da morte do vice-rei e das
circunstâncias em que ocorreu, tanto na corte portuguesa, como na castelhana. A
percepção daquela batalha, entre portugueses e pastores Khoikhoi, como um “massacre”
ecoou pelos séculos através da pena dos mais diversos autores portugueses, desde os

680
“Morte de D. Francisco de Almeida”, in Portugaliae Monumenta Africana, (…), Vol. 3, 1995, doc. 6,
p. 21.
681
Juan AUGUR [segundo notas de Martin Fernández de Figueroa], “Conquista de las Indias de Persia y
Arabia que fizo la armada del rey don Manuel de Portugal & de las muchas tierras: diuersas gentes: extrañas
riquezas & grandes batallas que alla ouo”, Salamanca, 1512, Seg. o exemplar da Bibl. Palha, n.º 4139,
Biblioteca da Univ. Harvard, Capítulo XLIX-L, pp. 150-154. Existe uma cópia do texto original de Martín
Fernández de Figueroa, que se conserva na biblioteca do Harvard College e que foi traduzido e comentado
por James B. McKENNA, A spaniard in the portuguese indies. The narrative of Martin Fernández de
Figueroa, Cambridge, Harvard University Press, 1967.
682
Duarte Lemos embarcara para a Índia, em 9 de Abril de 1508, como capitão de uma das 13 caravelas da
armada de que era capitão-mor seu tio materno, Jorge de Aguiar, que ia substituir D. Francisco de Almeida
como vice-rei. Com o naufrágio de Jorge de Aguiar, abertas as sucessões determinadas pelo rei, Duarte de
Lemos achou-se sucessor do tio como Capitão-mor do Mar e da Costa da Etiópia e da Arábia, cargo
importante e o mais rendoso a seguir ao de Vice-Rei, em que se viu sucessor D. Afonso de Albuquerque,
com quem Duarte de Lemos se incompatibilizou, pois defendia a estratégia comercial de D. Francisco de
Almeida e não a visão imperial de Albuquerque. Por pressão deste, depois de ter desempenhado o seu cargo
durante três anos, Duarte de Lemos é mandado regressar a Lisboa. Regressa em dezembro de 1510,
chegando a Lisboa em 3 de Julho de 1511. Cf Jean AUBIN, “A propôs de la Relation de Martín Fernández
de Figueroa sur les conquêtes portugaises dans lÓcéan Indien (1505-1511)”, in Bulletin des Etudes
Portugaises, Tome Trente, Lisbonne, Institut Français au Portugal, 1969, p. 54.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

cronistas, aos poetas, aos anónimos compiladores, que publicaram ou deixaram


manuscritas as suas versões.
O texto de Figueroa é seguido, cronologicamente, pelo Roteiro das Costas Sul e
Oriental da África, de data posterior a 1535683, sublinhando-se o grande intervalo de
tempo entre as referências a este episódio histórico, que tanto marcou a memória colectiva
dos portugueses.
No roteiro, para além de todas as informações úteis aos pilotos - derrotas,
conhecenças, latitudes, ventos e correntes dominantes, peixes e aves que assinalam
determinadas partes da costa - consta um aviso acerca das populações da aguada de
Saldanha:
“Item, se nesta Aguoada (sic) desembarcardes ver lhes huma gramde aberta com humas
serras muy altas d’ambollas partes e esta em altura de 34 graos larguos e he huma grande
ribeira que vem ao mar e se a ella fordes não vos comfies dos negros porque nella matarão
o viso rei Dom Framcisquo muita jemte. E asy ferirão a Diogo Botelho 3 ou 4 omens e
lhe tomarão allgumas pipas por yrem acucadas de ferro por elle achareis muitas carnes
resgatamdo as com hos negros de sorte que estareis sempre a recado porque doutra
maneira não vos deixarão de cometer treição senão quando não podem”.684

Este aviso num roteiro, cerca de vinte e cinco anos depois da morte do vice-rei,
alertava aqueles que governavam as naus para uma atitude de cautela relativamente à
utilização da aguada, habitada por gentes já categorizadas como negros traiçoeiros. Se os
dados técnicos do roteiro se destinavam a ser lidos e interpretados pelos pilotos e sota-
pilotos, esta informação teria, certamente, um alcance mais vasto, em termos da tripulação
dos navios. Não será difícil imaginar de que modo este dado roteirístico terá reforçado os
medos, as fantasias e os mitos que alimentavam o imaginário dos homens do mar, bem
como as divagações fabulosas sobre aquele espaço intermédio onde confluiam o Atlântico
e o Índico, onde terminava a África e começava o Oriente, onde se avistava uma
misteriosa montanha, a Mesa do Cabo, terra de frescas águas e abundância de carnes, mas
que era um espaço habitado por uma estranha humanidade, que viam como selvagem e
perigosa.

683
“Roteiro das Costas Sul e Oriental da África”, [post. 1535], in D.P.M.A.C., Vol. VI (1519-1537), (...),
pp. 440-457.
684
IDEM, ibidem, p. 456.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Do ponto de vista dos Khoi , que sofreram a agressão perpetrada pelos estranhos
que chegaram pelo mar, semelhantes a outros com quem ocasionalmente haviam trocado
objectos metálicos pelos seus animais domésticos, destaca-se um confronto que terá sido
marcante na memória do grupo: desde a desvalorização do gado (o bem mais precioso
para estas comunidades), que os marinheiros queriam roubar ou diminuir nos termos das
trocas, ao temor pelas suas vidas e famílias, até à batalha que matou muita gente dos dois
lados e expulsou os intrusos agressores para o mar. Consideramos que este acontecimento
terá deixado, certamente, forte marca na memória colectiva, a qual não nos é possível
aceder.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

3. A Cafraria e suas populações nos registos entre 1510-1551

3.1. Primeiros contactos directos e primeiras imagens das sociedades do


planalto do Zimbabwe

As primeiras referências impressas aos cafres constam da obra Conquista de las


Indias de Persia y Arabia que fizo la armada del rey don Manuel de Portugal, de Martín
Fernández de Figueroa, publicada em Salamanca, em Setembro de 1512.685 Figueroa
entrou ao serviço da coroa portuguesa em 1505, rumou à Ásia na armada de Pero
d’Anhaia, que chegou a Sofala a 4 de Setembro de 1505, tendo aí permanecido em escala
até que a nau em que viajava, destinada à Índia, prosseguisse a sua derrota. As notas de
Figueroa relativas à sua experiência na África oriental e no Índico (entre 1505 e 1511)
foram preparadas pelo escritor Juan Augüro de Trasmiera, que as coligiu com os escritos
de Poggio e Marco Polo e também com a carta do rei D. Manuel.686 A Conquista de las
Indias … dará, em livro impresso, a notícia da abertura do mundo pela coroa portuguesa,
permitindo a divulgação de muitas informações sobre terras e povos distantes.
O texto atende às especificidades zoológicas e botânicas daquele território,
enfatizando as riquezas, nomeadamente o sândalo branco, âmbar e ouro. Figueroa
considera separadamente os litorais de Sofala e as terras do planalto, onde se localiza o
reino do Muene Mutapa, que é definido como um “reino de cáferes”:

“(…) su tierra caliente, de mucho arroz e mijo. Trigo no lo hay. Los carneros de aquella
tierra son grandes, no tenientes cuernos ni lana; el pelo es como de perro blanco. Dice
Figueroa que en aquel río hay caballos marinos que salen a pacer en tierra e se vuelven
a la mar, las cola e ancas como potros, que en ninguna cosa difieren excepto en el efecto
del fin para que su nombre suena. Hay cañas de azúcar. (...) Hay sandalo blanco, oro,
ambar e otras riquezas. […] E cient leguas dentro en tierra, en un reino de cáferes que
se llama Benamotapa se halla el oro com que tratan en aquellas partes muy
copiosamente.”687

685
Frederick John NORTON, Printing in Spain 1501-1520, New York, Cambridge University Pres, 1966,
p. 177..
686
Donald Frederick LACH, Asia in the Making of Europe, Vol. II, Chicago, The University of Chicago
Press, 1994, p. 165.
687
Juan AUGUR [segundo notas de Martin Fernández de Figueroa], op. cit., p. 35.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Em 1512, este discurso impresso dava notícia das novas terras, ao mesmo tempo
que valorizava o empreendimento cristão, sublinhando a dimensão épica da dilatação do
mundo conhecido, Figueroa descrevia a diversidade da terra e das gentes, bem como os
contactos históricos testemunhados:

“Andando peregrinando por tan estrañas tierras, el buen caballero Pedro de Añaya e los
suyos llegaron a una [ciudad] llamada de sus pobladores Quiloam, que dista de Sofala
doce leguas. Su gente es moros, cáferes ricos, los cuales no se circuncidan como hacen
los moros o los judíos.”688

As terras de entre Sofala e Quíloa são referidas como “estranhas”, habitadas por
“moros, cáferes ricos”, gente que não se circuncida, como fazem os mouros ou os judeus.
Na primeira referência parece haver alguma indefinição quanto à natureza dos cafres,
porém o adjectivo “ricos” torna-os objecto de curiosidade. Os próprios mouros destas
partes da África revelavam marcas distintas daqueles que historicamente já eram do
conhecimento ibérico, pois não praticavam a circuncisão.
O autor acrescenta informações que contribuem claramente para a definição de
um retrato moral dos cafres. Ao narrar o encontro de Pero d’Anhaia com os náufragos
portugueses de uma das naus perdidas em 1504689, entre o Cabo das Correntes e Sofala,
o relato dos acontecimentos conduz à formulação de uma imagem dos cafres, enquanto
elemento humano associado à desintegração da ordem. Na descrição de Figueroa, os
náufragos portugueses figuram como “perdidos” em terra estranha, enquanto os cafres,
usando o poder de senhores da terra, escarnecem e deleitam-se com o seu esgotamento,
negando-lhes alimento e obrigando-os a dançar até à exaustão. A derrota imposta pelos
cafres aos náufragos perdidos foi tal que, quando foram encontrados por Pero d’Anhaia,
aparentavam ter sofrido um processo de metamorfose, que envolveu a mutação cromática.
O discurso enfatiza um conjunto de marcadores culturais inteligíveis, dentro de
um sistema de linguagem e pensamento peculiar do ocidente europeu. François de

688
IDEM, ibidem.
689
Em 1504 naufragaram nos “Baixos de S. Lázaro” a nau Rainha, comandada por Francisco de
Albuquerque e a nau Faial ou Faia, que levava por capitão Nicolau Coelho. Ambos os naufrágios
ocorreram na viagem de regresso. Cf. Paulo GUINOTE, Eduardo FRUTUOSO e António LOPES, op. cit.,
p. 187.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Medeiros aborda a questão da cor negra na escala de valores da cristandade ocidental,


chamando a atenção para que o branco e o preto devam ser entendidas como duas cores
regidas por uma relação de contrariedade. No esteio da filosofia tomista, esta relação é
comparada a uma escala, também horizontal, entre “verdadeiro” e “falso”.690 Daí que, S.
Tomás de Aquino associasse a cor branca à ideia de santificação e, por associação, o “não
branco” e o “negro” ao “pecado”.
Assim, o enegrecimento da pele dos náufragos, mas também o seu desnudamento,
o despojo de todos os atavios e a quebra dos padrões alimentares comuns aos europeus,
que valorizavam sobretudo os cereais cultivados e a transformação dos alimentos pelo
fogo, haviam provocado nestes portugueses perdidos uma morte simbólica. Tal morte
decorria da forçada deambulação por terras estranhas, habitadas e dominadas por povos
considerados humanamente marginais:
“Iban desnudos, negros e encanijados, que parecían embalsamados, despojados por los
cáferes de todos sus atavíos, de gente armada cercados e escarnecidos. No comían sino
yerbas porque no lo habían, e cangrejos; e por amor de Dios les daban allí algún puño
de mijo, el cual crudo comían como pájaros. E antre que les diesen limosna, contaban
que los hacían bailar una hora hasta que cansados mortales en el suelo caían, en que los
cáferes se deleitaban;”691

O texto de Figueiroa procede à caracterização antropológica dos cafres, definindo-


os relativamente às suas crenças e ao corpo.
No que se refere ao primeiro aspecto, afirma que a religião dos cafres se centra no
culto a divindades astrais como o sol e as estrelas, facto que os define como adoradores
de forças de grandeza relativa, cujo resplendor dependente da vontade e poder do Deus
bíblico, que desconheciam.692
Quanto aos aspectos somáticos dos cafres, foram descritos como escassamente
cobertos com panos de algodão, sendo que alguns apenas tapavam as partes vergonhosas.
No rosto, parte frontal do corpo, destacam-se seis ou sete furos nos lábios, expressão de

690
Para uma análise da cor “negra” na escala de valores ocidentais, veja-se François de MEDEIROS, op.
cit., pp. 224-226. Ver ainda Theresa H. PFEIFER, “Deconstructing Cartesian Dualisms of Western
Racialized Systems: A Study in the Colors Black and White”, in Journal of Black Studies, Vol. 39, No. 4
(Mar., 2009), p. 533.
691
Juan AUGUR [segundo notas de Martin Fernández de Figueroa], op. cit., p. 36.
692
A Bíblia de Jerusalém, (Nova Edição Revista), S. Paulo, Edições Paulinas, 1986, Jeremias, 31-35.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

convenções sociais, culturais e estéticas não inteligíveis para o observador europeu.


Como o corpo físico era entendido como microcosmos da sociedade693, estas referências
de pormenor destinavam-se a ser lidas como extensões de todo um sistema cultural
radicalmente diverso
“Los moradores de Sofala son cáferes que adoran al sol e las estrellas. Andan vestidos
com paños de algodón pintados e otros cubiertas solamente las partes vergonzosas. No
hay lino. Las mujeres traen descubiertas las cabezas, manillas de latón en las piernas.
Traen los labios foradados, seis o siete agujeros, lo cual tienen por hermosa e apuesta
cosa."694

Acresce, a esta descrição, um poderoso juízo valorativo que define os cafres como
inimigos de guerra. Ao usarem processos bélicos estranhos, como os ataques nocturnos
inesperados, ao manipularem armas rústicas, como setas, flechas, dardos e azagaias, ao
integrarem gritos e alaridos na sua estratégia de guerra e ao levantarem a terra com os
pés, por forma a afirmarem a sua força e a simbiose com as forças ctónicas, os habitantes
das novas terras ambicionadas pela coroa portuguesa suscitavam o apelo dos cristãos à
guerra contra os cafres, como serviço de Deus e forma de alcançar a Salvação:

“El rey de Sofala e los cáferes llegaron a los cristianos dando voces e alaridos, echando
tierra e levantando arena com los pies, tirando flechas. Lo cual sentido de Pedro de Añaya,
mandó llamar e armar su gente a mucha priesa. […] Quién podría contar la excelencia,
grande ánimo e orden de Pedro de Añaya, fiero león a sus enemigos, armado e a punto,
que decía como viese venir infinidad de saetas e flechas, dardos e azagayas de los cáferes:
A ellos, compañeros e hermanos míos, generosos cristianos de España! Dad en ellos, que
la guerra de los cáferes más parece juego de cañas que gente de lid.”695

Esta imagem desfavorável dos habitantes da África oriental e o apelo à guerra


contra os cafres, presente numa obra impressa em Salamanca em 1512, estaria destinada
à leitura tanto por portugueses, como por castelhanos, no contexto do bilinguismo

693
Mary DOUGLAS, Natural Symbols, 3ª ed., New York, Routledge Classics, 2003, p. 80.
694
Juan AUGUR [segundo notas de Martin Fernández de Figueroa], op. cit., p. 36.
695
IDEM, ibidem, pp. 48-50

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

castelhano-português do século XVI, contribuindo para que se afirmassem ideias


estruturantes no discurso da alteridade.696

A partir de 1512, à medida que os leitores ibéricos e europeus tinham acesso às


primeiras imagens da África do Sudeste e dos cafres, em território africano iam ocorrendo
as primeiras tentativas de prospecção dos sertões por ordem da coroa portuguesa.
Nos documentos portugueses da feitoria de Sofala destaca-se uma carta da autoria
do escrivão da feitoria de Moçambique, Gaspar Veloso, que não está datada, mas
provavelmente terá sido redigida entre 1512 e 1516.697 Neste documento ficaram
registadas informações detalhadas das viagens pioneiras de António Fernandes ao
Monomotapa. João Vaz de Almada, capitão de Sofala, confirma os dados de Gaspar
Veloso sobre este viajante do sertão.698
António Fernandes era um degredado, muito provavelmente analfabeto,
carpinteiro de naus, que embarcou para África na armada de Vasco da Gama ou na de
Pedro Álvares Cabral e que, na segunda década do séc. XVI, realizou pelo menos duas
viagens ao planalto zimbabweano, tendo sido destacada a sua riqueza em ouro, marfim e
muitos mantimentos.699 Hugh Tracey realizou um estudo detalhado sobre as viagens de
Fernandes às terras do planalto entre os rios Limpopo e Zambeze. Na base do estudo de
Tracey esteve a carta de Gaspar Veloso para o rei, que Eric Axelson encontrou no Arquivo
Nacional da Torre do Tombo, antes de 1939.700 Enquanto Hugh Tracey interpretou os
documentos de Veloso e Almada como contemporâneos e identificou duas viagens ao
planalto, Alexandre Lobato reavalia a cronologia das fontes e aponta três viagens, tendo
duas delas ocorrido entre 1511-1512 e uma terceira, descrita por Almada, em 1516.701

696
Sobre a questão do bilinguismo castelhano-português no século XVI, veja-se Pilar VÁSQUEZ
CUESTA, “O bilinguismo castelhano-português na époda de Camões”, in Arquivos do Centro Cultural
Português, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian – Centro Cultural Português, 1981, pp. 807-827. Ver
também Ana Isabel BUESCU, Aspectos do bilinguismo português-castelhano na Época Moderna, in
Hispania, LXIV/1, num. 216 (2004), pp. 13-38.
697
Segundo Randles, esta carta data de 1512. Veja-se William G. L. RANDLES, L’Empire du Monomotapa
du XVe au XIXe Siècle, Paris, École des Hautes Études en Sciences Sociales - Centre de Recherches
Historiques, 1975, p. 18. Hugh Tracey estabelece como datas prováveis para esta carta 1515 ou 1516. Veja-
se Hugh TRACEY, op. cit., p. 20.
698
“Apontamentos de Gaspar Veloso, Escrivão da Feitoria de Moçambique, enviados a El-Rei (1515-16)”,
in D.P.M.A.C., Vol. III, 1964, pp. 180-188.
699
Hugh TRACEY, op. cit., pp. 17-19.
700
IDEM, ibidem, pp. 5 e 9.
701
R. W. DICKINSON, “António Fernandes – A Reassessment”, in Rhodesiana, Salisbury, nº 25 (Dez.
1971), pp. 46-47.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Das viagens realizadas por António Fernandes resultou um conjunto de


conhecimentos de natureza geográfica, política, económica, militar e antropológica que o
autor guardava em segredo e tencionava transmitir ao rei:
“Todas estas coisas tinha António Fernandes em segrêdo, sem as dizer aqui a ninguém,
para as dizer a Vossa Alteza. E porque ele volta ao Monomotapa, com riscos de morrer
por causa das muitas guerras que há nas terras, roguei-lhe que, se algumas (“coisas”,
informações) de vosso serviço tinha guardadas para dizer a Vossa Alteza mas dissesse,
para eu as escrever a Vossa Alteza, por ele sempre me dizer que desejava ir a Portugal
para dizer a Vossa Alteza coisas de seu serviço.”702

Quando António Fernandes realizou as suas viagens, já estava familiarizado com


línguas e costumes locais que lhe permitiram o acesso a chefaturas, reinos e cortes, a saber
Amçoçe, Barue, Inhaperapara, Boece, Mazose, Mombara, Quitengue, Betongua, Baro e
Embiri, residência do grande senhor do Monomotapa, que reclamava a hegemonia de
todo o planalto, bem como os seus estados rivais de Butua e Inhócua.703
O autor fornece informações sobre as diversas entidades políticas, localizadas
entre Sofala e o Monomotapa, e sobre as dinâmicas expansionistas dos povos Caranga.
Seguindo a hipótese explicativa de Randles, estes povos lançaram-se num processo de
conquista desde o séc. XV, avançando ao mesmo tempo para sudoeste e para o norte do
planalto, à custa dos territórios dos Tonga, mas também para leste rumo às planícies
costeiras do Índico.704 Segundo Randles, Mocomba terá sido o último Monomotapa a
dominar todo o planalto e os territórios até ao mar, mas o seu império não durou mais que
algumas décadas, em finais do séc. XV. Depois dele, as conquistas realizadas no nordeste
e na planície costeira esboroaram em consequência das novas dinâmicas estabelecidas
com a instalação dos portugueses em Sofala e no Vale do Zambeze. Assim, ao longo dos
sécs. XVI e XVII, assiste-se à fragmentação do Império em vários estados independentes
como o Monomotapa, Manica, Quiteve e Sedanda, Quissanga e Barué. A natureza
mercantil da presença portuguesa, motivada pela riqueza do subsolo, estaria destinada a
interferir poderosamente na estrutura social, nas concepções de riqueza e na solidez
política destes estados africanos.

702
“Carta de Gaspar Veloso para o rei”, in Hugh TRACEY, op. cit., p. 28.
703
IDEM, ibidem, ps. 83 e 87.
704
William G. L. RANDLES, L’Empire du Monomotapa du XVe au XIXe Siècle, (…), pp. 33-38.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Ao enumerar as diversas entidades políticas existentes entre Sofala e o


Monomotapa, António Fernandes informa sobre as distâncias que as separam, descreve
as suas riquezas, especificando se eram só de mantimentos ou se existiam mercadorias
preciosas como o ouro e o marfim, onde se realizavam as feiras, que tipo de resgate aí era
desenvolvido e que gente as frequentava.705 Sugere à coroa portuguesa a construção de
uma feitoria num dos afluentes do Zambeze, num ilhéu existente no meio do rio, até onde
seria possível navegar desde o litoral. De acordo com a sua visão, a feitoria nesse ilhéu
iria atrair o comércio de todo o ouro das terras circundantes e do Monomotapa, que se
localizava a dez dias de distância. Neste sentido, reflecte uma posição que valorizava a
área norte do planalto, identificada com a rede hidrográfica do Zambeze e as feiras aí
dinamizadas.706 Na sua percepção, o trato, pela via do Zambeze, de grandes quantidades
de ouro e marfim seria suficiente para alimentar o comércio com a Índia e compensar a
fraqueza económica que atingira Sofala. As considerações de natureza política e
económica tinham subjacente o interesse em conhecer a região para poder vir a dominar
as rotas mercantis que ligavam os reinos do planalto aos litorais do Índico. O
conhecimento dos poderes e recursos do sertão era considerado um dos pontos de partida
para a implementação de uma estratégia mercantil da coroa portuguesa na região, que
seria integrada num projecto mais vasto de domínio comercial do Índico.
Mas, António Fernandes pretendeu também ser útil nas suas observações de
natureza antropológica. Designa de cafres as populações africanas não islamizadas, que
diz serem fisicamente não muito negras, mas com os cabelos “como os de Guiné”.707 Aos
diversos povos do sertão, Fernandes atribui menoridade religiosa, pois que esta gente
“não crê noutra coisa (senão?) na lua nova”.708 A lua, que através da repetição dos ciclos
afirmava a sua perenidade no firmamento, fazia parte de uma constelação de seres
superiores que integravam a cosmovisão destas sociedades africanas. Ora, de acordo com
um olhar moldado pelo paradigma cristão ocidental, qualquer manifestação interpretada
como culto a elementos da natureza, fazia integrar tais sociedades na categoria dos povos
idólatras e pagãos. Podemos estar perante uma ilação ou algo que os autores e

705
Hugh TRACEY op. cit, p. 20.
706
Ana Cristina Ribeiro Marques ROQUE, Terras de Sofala: persistências e mudança. Contribuições para
a História da Costa Sul-Oriental de África nos séculos XVI-XVIII, (…), p. 51.
707
Hugh TRACEY op. cit., p. 30.
708
IDEM, ibidem.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

informadores não compreendiam, mas a mobilização do tópico de que as populações


“gentias” manifestariam uma crença nos astros também é recorrente.
De entre as populações locais, o autor destaca um grupo que habitava a sete dias
de jornada do Monomotapa, a ocidente do planalto zambiano, nas terras designadas de
Mombara. Tais povos chamaram a sua atenção pelos seguintes traços: pela coloração
“baça”709, pois “não são muito negros”; por lhe parecerem “mal proporcionados”, o que
poderá significar que tinham baixa estatura; por terem “Rabos como de carneiro”; porque
“adoram as vacas” e quando alguém morria comiam-no e enterravam uma vaca.710
Referia-se a comunidades de pastores para quem o gado tinha um valor sagrado, pois
estando associado à protecção, assumia um significado essencial na vida social e política
e só era morto em situações rituais, como as que assinalavam o momento da morte.
Mombara, Butua e Batonga eram os estados mais ocidentais do planalto e os mais
distantes do litoral. As suas populações de baixa estatura, pele clara e “rabos como de
carneiro” seriam, muito provavelmente, de origem Khoisan, fisicamente diferentes das
populações Bantu e Suaíli da África Índica com quem o viajante já estaria familiarizado.
O registo “têm Rabos como de carneiro” corresponde a uma analogia que poderá
evocar alguns traços da esteatopígia dos povos Khoisan, acentuado pelo efeito visual das
peles usadas para se cobrirem. Poderemos, ainda, estar perante a referência a um elemento
etnográfico que consiste numa cobertura posterior em pele, semelhante à “cutuba”,
descrita em registos bem mais tardios, como os de Capello e Ivens.711
Randles afirma que a palavra “Butua” vem de “Twa”, que nas línguas Bantu
significa “país Khoisan”.

709
IDEM, ibidem, pp. 24 e 30.
710
IDEM, ibidem, p. 24.
711
Segundo a narração do itinerário desta viagem exploratória, através do planalto que liga Angola à contra-
costa, para leste do rio Cunene “habitam os bana-cutuba, assim denominados pelo uso de um cinto, d’onde
pende posteriormente uma pequena rodella de sola”. A descrição de uma cobertura posterior em couro, a
cutuba, que parece corresponder ao efeito visual de “rabos como de carneiro”, suscitou a curiosidade dos
viajantes e foi objecto de diversos registos gráficos no caderno de viagem de Roberto Ivens. A própria
narrativa do itinerário descreve os bana-cutuba como povos mestiços em que predomina o elemento
Khoisan, que durante milénios viveram nos territórios então em disputa pelas potências europeias aquando
da expedição de Capelo e Ivens. Cf. Hermenegildo CAPELLO e Roberto IVENS, De Angola à Contra-
Costa. Descripção de uma Viagem atravez do Continente Africano, Vol. I, Lisboa, Imprensa Nacional,
1886, p. 224. Manuel VILARINHO, Expedição Capello e Ivens através da África em 1884-85. Itinerários
da Viagem, Lisboa, Edições Culturais da Marinha, 1989.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

O plural de “Twa” é “Batwa”, por vezes “Vatua”, o que corresponde não apenas
a um dado linguístico, mas também étnico.712 Muito provavelmente, a descrição de
António Fernandes referia-se às populações que compuseram um poderoso estado
Khoisan, a oeste do planalto, que explorava o cobre da região de Mombara e que terá sido
submetido a processos de absorção por povos Bantu, a partir do séc. XV, tal como a
arqueologia parece confirmar.713 De acordo com as informações que Gaspar Veloso
recolheu de António Fernandes, e que constam da carta enviada para o rei de Portugal, os
homens de Mombara traziam cobre a vender ao Monomotapa e praticavam o “comércio
silencioso”, tanto com os “mouros”, como com os “cafres”. 714 Além disso, referia que
estes povos praticavam a antropofagia ritual, ingerindo os seus mortos. Note-se que a
carta de Gaspar Veloso aludia a que esta informação teria sido transmitida oralmente a
António Fernandes pelos autóctones, muito provavelmente Carangas, com quem este terá
comunicado. A expressão “e dizem que …” indicia estes processos de circulação de
informações que se inscrevem num registo de oralidade. Neste contexto, teria ouvido
dizer que “quanto mais um negro fôr preto mais dinheiro dão por êle, para o comerem, e
dizem que a carne dos brancos é mais salgada que a dos pretos”.715
O tópico da antropofagia, patente neste texto, difundia e ampliava imagens
provenientes da oralidade africana e resultantes das construções da alteridade, no âmbito
da diversidade dos espaços culturais africanos. Deste modo, imagens africanas sobre
“outros” africanos entram em textos cuja leitura irá reforçar o estereótipo de que os povos
dos sertões africanos eram povos bárbaros, selvagens, antropófagos e temíveis.
As informações de António Fernandes, transmitidas pela pena de Gaspar Veloso,
referiam-se a comunidades humanas organizadas segundo um sistema de pensamento e
crença muito diverso do sistema cristão ocidental, o que se traduzia naquilo que Lévinas
designou por “alteridade absoluta” e por “heterogeneidade radical do outro”.716 O sistema
de referências do “Mesmo” esbarrava com a diversidade do “Outro”, com a separação

712
William G. L. RANDLES, L’Empire du Monomotapa du XVe au XIXe Siècle, (…), pp. 36-37.
713
IDEM, ibidem, p. 37. A hipótese da vassalização dos Khoisan pelos povos Caranga encontra
confirmação na arqueologia que revela que a cultura de Khami sucede à de Leopard’s Kopje: os crânios da
fase II têm características Khoisan (+ ou – 1080 d. C.) e os da fase III (1450) têm características mais
negróides.
714
Hugh TRACEY, op. cit., p. 24.
715
IDEM, ibidem.
716
Emmanuel LEVINAS, op. cit., pp. 20 e 22.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

radical, a impossibilidade de se encontrarem traços de identificação cultural e com a


remissão destes povos para um plano marginal da Humanidade.

3.2. Os gentios da costa leste na descrição de Duarte Barbosa

Da pena de Duarte Barbosa viria a primeira descrição sistemática das costas do


Índico, e mares adjacentes, de Sofala à China e a Maluco.717
Segundo Ramúsio, Duarte Barbosa terminava em 1516 a sua síntese sobre o que
viu e ouviu no Oriente, resultante da experiência e do olhar de testemunha dos primeiros
tempos da presença portuguesa no Índico, nomeadamente no mundo costeiro, portuário e
urbano.718
É muito provável que Barbosa tenha passado à Índia logo no início da centúria de
Quinhentos, pois na armada que largou de Lisboa, a 5 de Março de 1501, comandada por
João da Nova, a terceira que D. Manuel enviou àquelas partes do mundo, terá também
embarcado Diogo Barbosa, pai do autor desta primeira síntese portuguesa sobre as
sociedades do Oriente.719 Viajando e permanecendo em terras do Malabar, durante a
mocidade, Duarte Barbosa vivenciou a diversidade cultural que lhe suscitou curiosidade,
apreço e maravilha.
Tendo por objectivo dar notícia dos mais diversos reinos e cidades, assim como
usos, costumes e mercadorias que animavam tanto os países de “mouros”, como os dos
povos “gentios”, o manuscrito de Duarte Barbosa viria a ser traduzido para italiano e
impresso pela primeira vez em 1563, integrando o volume I da compilação de Giovanni
Battista Ramusio, Navigationi et Viaggi, numa secção intitulada “Libro di Odoardo
Barbosa Portughese”.720

717
O Livro de Duarte Barbosa, Maria Augusta da Veiga e SOUSA (Prefácio, texto crítico e apêndice), Vol.
II, Lisboa, Ministério da Ciência e Tecnologia - Instituto de Investigação Científica Tropical - Comissão
Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000, p. VIII.
718
IDEM, ibidem, p. IX. Duarte BARBOSA, Livro em que dá relação do que viu e ouviu no Oriente Duarte
Barbosa, Augusto Reis MACHADO (Introdução e notas), Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1946, p. 6.
719
Francisco Fernandes LOPES, “Duarte Barbosa”, in Dicionário de História de Portugal, dirig. por Joel
SERRÃO, Vol. I, Porto, Livraria Figueirinhas, s.d., p. 298.
720
Giovanni Battista RAMUSIO, Primo volume, & quarta editione delle Navigationi et viaggi raccolto da
M. Gio. Batt. Ramusio & com molti vaghi discorsi da lui in molti luoghi dichiarato, & illustrato. In Venetia,
nella Stamperia de Giunti, 1588, fls. 287 vº. - 323 vº.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

A versão portuguesa deste texto circulou sob a forma manuscrita, até aos começos
do século XIX, quando Mendo Trigoso o publicou na Colecção de Notícias para a
História e Geografia das Nações Ultramarinas, com a chancela da Academia Real das
Ciências. O número de cópias manuscritas, assim como a diversidade de locais onde se
conservam hoje essas versões, muitas vezes acrescentadas, interpoladas e glosadas pelos
copistas, são a prova de que o texto teve projecção na sua época pelas novidades que
versava.
Neste itinerário, em que o autor conduz o leitor pelas coisas “maravilhosas e
estupendas”721 do Oriente, destaca Ormuz e o Mar da Pérsia, passa pelo Gujerate, por
Ceilão e demora-se no Malabar, onde aprende os falares e exerce o ofício de escrivão da
feitoria de Cananor.
Com um discurso desprovido de erudição ou recurso às autoridades, a
credibilidade de Duarte Barbosa é atribuída por Ramúsio à experiência vivida em toda a
Índia e por ter amplamente navegado com os capitães portugueses.722 O próprio Duarte
Barbosa, no seu prefácio, declara ter feito todas as diligências para confrontar as notícias
que recolheu de informadores locais e ser o mais exacto possível nos conhecimentos que
veicula.
O traço orográfico do Cabo da Boa Esperança, onde então se considerava ser o
início do Oriente, marca o começo do texto, seguindo-se o Índico, numa estrutura que
lembra a de um roteiro.
Dois macro-espaços estão presentes na sua visão da África Sul-Oriental: o
primeiro, entre o Cabo da Boa Esperança e o Cabo de S. Sebastião (Inhambane); o
segundo, do Cabo de S. Sebastião até à Costa Suaíli e aos grandes centros mercantis de
Quíloa, Mombaça e Melinde. A cada um destes macro-espaços correspondiam
especificidades geográficas e antropológicas
Do ponto de vista antropológico, o texto de Duarte Barbosa destaca aspectos como
a cor da pele e o modo como são cobertos os corpos: as gentes são “pretas”, escassamente
cobertas com peles de animais selvagens. A descrição das primeiras gentes como
“pretas”, bem poderia corresponder às representações iconográficas de Burgkmair ou à

721
Duarte BARBOSA, Livro em que dá relação do que viu e ouviu no Oriente Duarte Barbosa, (…), p. 13.
722
Giovanni Battista RAMUSIO, Primo volume, & quarta editione delle Navigationi et viaggi raccolto da
M. Gio. Batt. Ramusio & com molti vaghi discorsi da lui in molti luoghi dichiarato, & illustrato, (…), fl.
287 vº.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

primeira imagem dos “cafres do cabo da [boa] esperança”, do Codex Casanatense


1889723, em que o escasso vestuário, a cor escura da pele e a posse de um simples arco e
flecha de madeira são indicadores do seu posicionamento no âmbito de uma determinada
ordenação moral e cultural dos povos do mundo.

Fig. 3 - “cafres do cabo da [boa] esperança”, Codex Casanatense 1889724

A noção de distância cultural face aos povos deste primeiro macro-espaço é tão
acentuada que Barbosa afirma:

723
“cafres do cabo da [boa] esperança”, in Album di disegni, illustranti usi e costumi dei popoli d'Asia e
d'Africa con brevi dichiarazioni in lingua portoghese, Ms. 1889, 1540.
http://opac.casanatense.it/Record.htm?idlist=42&record=19921765124917499479#
724
“cafres do cabo da [boa] esperança”, ibidem.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

“os nossos nunca poderão haver notícia de língua, nem serem informados do que vai pela
terra dentro; nem eles têm navegação, nem se servem do mar, nem os mouros da Arábia
e Pérsia nunca até ali navegaram, nem a descobriram por causa do Cabo das Correntes
ser muito tormentoso.”725

Esta visão da África oriental mais meridional encontra algum paralelo nas
representações que o mundo árabo-suaíli produziu sobre os territórios e suas populações
a sul do Cabo das Correntes.726 O texto de Duarte Barbosa acrescenta que tais gentes
pretas se dedicavam a apascentar os seus gados e que nas “terras formosas de muitas
montanhas e campos (…) há muita criação de muitas vacas, carneiros e muitas alimárias
monteses”.727
Entrando no segundo macro-espaço, para norte dos Cabos de S. Sebastião e das
Correntes, que tinham por referência Inhambane, informações sobre reinos, poderes,
gentes e mercadorias revelam-se mais detalhadas. Duarte Barbosa concebe duas
categorias organizadoras do espaço antropológico, tendo por base as crenças religiosas e
o domínio dos circuitos comerciais.
No litoral, o espaço limite do continente, nas ilhas e nos rios predominavam as
comunidades suaíli, designadas de “mouros”, estabelecendo uma dinâmica mercantil,
tanto com os reinos costeiros de Quiloa, Mombaça e Melinde, como com os reinos do
sertão. Estas populações são descritas como “pretos” e “baços”, cobrem-se da cintura para
baixo com panos de algodão e seda, usam toucas mouriscas 728e tanto falam em árabe,
como na “língua da terra”, que é a dos “gentios”. Estamos perante o retrato uma sociedade
mestiça em termos somáticos e culturais, a sociedade Suaíli, que se desenvolveu em
pontos estratégicos da costa sudeste africana, com objectivos comerciais ligados à
produção aurífera e outros recursos provenientes do grande planalto.
No interior, predominavam os povos categorizados como “gentios”, que
senhoreavam os reinos do ouro e do marfim. Quanto aos poderes políticos locais -
“gentios”, o autor destaca nos territórios do sertão o “Grande Reino de Benametapa” e o

725
Duarte BARBOSA, op. cit., p. 15.
726
Atenda-se a este respeito o sub-ponto 2.3.3. desta dissertação, sobre o poema de Ibn Magid, As-Sufaliyya.
727
Duarte BARBOSA, op. cit., p. 15.
728
IDEM, ibidem, p. 17.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

“Zimbaoche”. O reino de Monomotapa ou Muene Mutapa é descrito como sendo “de


gentios, a que os mouros chamam cafres. São homens pretos, andam nus, sòmente cobrem
suas vergonhas com panos pintados de algodão da cinta para baixo”.730 Alguns cobrem-
se com peles de animais selvagens e os indivíduos hierarquicamente distintos “trazem das
mesmas peles umas capas com uns rabos que se arrastam pelo chão (…) trazem também
nas mãos azagaias e outros arcos e frechas meãos que não são tão compridos como de
ingreses, nem tão curtos como de turcos; (…) Eles são homens de guerra e outros grandes
mercadores.”731
A seis jornadas de caminho para sul de “Benametapa” e quinze ou vinte jornadas
de distância pelo sertão, a partir de Sofala, estava a grande cidade do “Zimbaoche”, que
não é descrita por Duarte Barbosa como um grande recinto amuralhado, mas antes como
uma cidade “em que há muitas casas de madeira e de palha, que é de gentios”. 732 É
provável que esta tenha sido uma das informações obtidas no litoral, numa altura em que
o Muene Mutapa se afirmava como um centro político e económico dominante no norte
do planalto e o Zimbabué declinava a sua influência política e económica na região.
Muene Mutapa destacava-se como o centro de onde os mercadores traziam o ouro até
Sofala, onde eram permutados por panos pintados e contas de Cambaia. As fontes do ouro
permanecem incógnitas, mesmo para os informadores de Duarte Barbosa. Tudo o que o
autor apura é a sua localização no sertão, algures num dos estados vassalos do Muene
Mutapa, este percepcionado como centro nevrálgico de um vasto império territorial,
político e militar:
“(…) este ouro vem de muito mais longe, de contra o cabo da Boa Esperança, doutro
reino que é sujeito a este de Benametapa, que é mui grande senhor de muitos reis que tem
debaixo de seu porte. Ele é senhor de muito grande terra que corre pelo sertão dentro,
assim para o cabo da Boa Esperança, como para Moçambique”. 733

Recorrendo a detalhes fornecidos por informadores, Duarte Barbosa explana a


grandeza deste império e detém-se na imagem divina do “Benamatapa”, como aquele que
simbolicamente é ocultado dos olhares, que se mantém numa posição sobranceira face ao

730
IDEM, ibidem, p. 18; sublinhado nosso.
731
IDEM, ibidem, pp. 18-19.
732
IDEM, ibidem, p. 19.
733
IDEM, ibidem, pp. 19-20.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

comum dos mortais e a quem os outros reis enviam grandes presentes. Afirma ainda que
este imperador tem grande exército, o qual inclui “cinco a seis mil mulheres que também
tomam as armas e pelejam, com a qual gente anda sossegando alguns reis que se levantam
ou querem alevantar contra seu Senhor”.734 Tal referência, num texto do início da centúria
de Quinhentos, terá permitido criar nos seus leitores imagens poderosas de exércitos
femininos pelejando pelo seu rei, nos confins da África, mobilizando os mitos clássicos
das Amazonas que replicarão em muitos textos posteriores.735
Descreve também a ilha de Angoche, que o autor designa de “Angoia”,736
localizada no terminus de um dos braços do Zambeze.737 A esta ilha chegavam grandes
quantidades de ouro e marfim provenientes do interior, trocados por panos de seda e
algodão e contas de Cambaia que aí eram conduzidos pelos “mouros de Sofala, de
Mombaça, de Melinde e Quilôa em uns navios muito pequenos, escondidamente dos
nossos navios”.738 Afirma que a região da ilha de Angoche é terra de “homens pretos,
baços”, quase nus, usando panos de algodão e seda e falando tanto a língua dos gentios
como a língua árabe.739
Detém-se depois na ilha de Moçambique que, devido ao seu bom porto, foi
apropriada pela coroa portuguesa, a fim de prestar apoio às armadas da Índia. A terra
firme oposta à ilha “é habitada de gentios, que são uns homens bestiais, que andam nus e
barrados todos com um barro vermelho; trazem as suas naturas emburilhadas em umas
tiras de pano azul de algodão, sem nenhuma outra cobertura; trazem os beiços furados
com três furos; em cada beiço três búzios, e neles metidos uns ossos com umas pedrinhas
e outros brinquinhos.” 740
Se a descrição das gentes “pretas”, das terras a sul do cabo das Correntes, parece
ter resultado de informações genéricas recolhidas pelo viajante em territórios mais a norte,
a representação destes habitantes da terra firme, frente à ilha de Moçambique, parece
resultar de uma apreciação presencial, física e visual, na qual se confrontaram códigos
absolutamente divergentes de representação do corpo. A distância cultural manifestada

734
IDEM, ibidem, p. 20
735
Duarte LOPES & Filippo PIGAFETTA, op. cit., p. 73.
736
Leia-se “Angoja”.
737
Duarte BARBOSA, op. cit., p. 21.
738
IDEM, ibidem.
739
IDEM, ibidem, pp. 21-22.
740
IDEM, ibidem, pp. 22-23.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

pelo autor, que se coloca perante a alteridade, expressa-se em juízos depreciativos que
categorizam as populações locais como “homens bestiais”.741
Proseguindo para norte, ao longo da costa oriental africana, nas ricas cidades de
Quiloa, Mombaça e Melinde, os mouros surgem ricamente ataviados com panos de seda
e algodão, ornamentando-se com ouro. A estrutura urbana de Mombaça e Melinde chega
mesmo a ser elogiada, estabelecendo-se uma semelhança com o que seria familiar ao
autor: “O qual lugar é de mui formosas casas de pedra e cal, de muitos sobrados com
muitas janelas e terrados, à nossa maneira; o lugar está mui bem arruado” 742, sendo ainda
de destacar a cintura de hortas, pomares e frescas águas. As populações destas cidades
são descritas como de brancos, pretos e alguns de cor baça.743
Os segmentos da população islamizada do sudeste africano são reconhecidos pela
língua falada e por seus atavios, como os turbantes e as vestes de seda e algodão,
elementos que correspondiam a uma imagem física do muçulmano, formada desde o
período medieval, fruto de contactos históricos duradouros na Península Ibérica. Nesse
período, quando o Islão se constituíu como ameaça e desafiou mecanismos colectivos de
apuramento dos quadros identitários e da alteridade, fixaram-se estereótipos
desfavoráveis, os quais definiam o muçulmano como um oposto em termos teológicos,744
o que muitas vezes era extensível ao plano comercial. De algum modo essa herança
cultural está presente na atenção dispensada pelo autor aos centros urbanos e aos eixos
comerciais dominados por comunidades islamizadas.
Quanto aos povos designados de “gentios”, a descrição de Duarte Barbosa revela
a preocupação em fornecer detalhes fisionómicos capazes de proporcionar ao leitor
atributos mais concretos para a construção deste modelo de “gentio” ou “cafre”. As
descrições, ainda que pouco extensas, permitem a formulação de uma imagem não só do
corpo físico, mas também do corpo social e ritual, porém, sem que essa imagem
envolvesse a compreensão dos seus significados complexos.
O texto de Duarte Barbosa, resultante da sua visão do Oriente nas duas primeiras
décadas do século XVI, conhecerá várias edições e traduções em outras línguas europeias,

741
IDEM, ibidem, p. 22.
742
IDEM, ibidem, p. 25.
743
IDEM, ibidem, p. 24.
744
Philippe SÉNAC, L’Image de l’autre, histoire de l’Occident médiéval face à l’Islam, Paris, Flammarion,
1983.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

já na segunda metade do século XVI. A arquitectura civilizacional que está subjacente ao


seu discurso terá sido assimilada pelas estruturas de pensamento dos leitores e, nessa
arquitectura, os povos “gentios” ocupavam uma dimensão marginal na escala ético-
religiosa e cultural.
Em breve, em diversos pontos da Europa, os leitores da obra impressa de Ramusio
teriam uma imagem estereotipada dos cafres, os gentios do sudeste africano: gente preta,
quase nua, cobrindo-se com peles de animais selvagens ou com têxteis obtidos pela troca
do ouro, cujas fontes dominam e escondem; alguns cobrem o corpo com peles de animais
selvagens, outros andam nus e pintam-se com barro vermelho; furam o rosto para adorná-
lo com búzios, ossos e pedrinhas, habitam em casas de palha; são belicosos e alguns
fundaram reinos poderosos nos sertões.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Parte III. Consolidação da negatividade geográfico-antropológica da África do


Sudeste e fixação do paradigma de tragédia e perdição, entre a 2.ª metade do Séc.
XVI e a primeira metade do Séc. XVII

1. Discursos sobre a morte de D. Francisco de Almeida

1.1. Construção de uma “lenda negra” da Cafraria

Datam de meados do século XVI os primeiros textos impressos em Portugal


relatando a morte de D. Francisco de Almeida. Nos anos de 1552 e 1553 saíam impressas
as versões de Fernão Lopes de Castanheda e João de Barros, respectivamente. Mas, nesta
altura, tinha já ocorrido o naufrágio do galeão S. João e a tragédia de Manuel de Sousa
de Sepúlveda e D. Leonor de Sá, que sucumbiram em terras da África do Sudeste,
consideradas nos relatos dos naufrágios como terras selvagens e de perdição e designadas
por terra dos cafres. O relato da tragédia do galeão S. João (1552), no qual pereceram
mais de 400 pessoas, teve um impacte imediato na época e a classificação das populações
africanas construiu-se em antinomia com a dos “heróis mártires”.
Em 1554 naufragava a nau S. Bento, na foz do rio Umsikaba, costa do Transkei,
da qual fora sobrevivente Manuel de Mesquita Perestrelo, autor do relato do naufrágio.
Assim, quando foram produzidas as grandes obras da cronística portuguesa da
segunda metade do séc. XVI, estas passaram a integrar as imagens e os léxicos então já
disponíveis acerca dos litorais da África meridional e das suas populações. Podemos dizer
que os discursos construídos a posteriori sobre a morte de D. Francisco de Almeida,
ocorrida em 1510, acabariam por contribuir para a fundação de uma “lenda negra” da
Cafraria.
É necessário questionar o tempo, a sua duração e o efeito produzido nas
mentalidades. Até que ponto a distância temporal entre os acontecimentos históricos e a
escrita das Crónicas poderá ter contribuído para consolidar o paradigma de tragédia e
perdição associado às terras mais meridionais do continente africano?

204
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Em 1566 saía dos prelos a Parte II da Crónica de D. Manuel, de Damião de


Góis.745 Entretanto, o Cardeal D. Henrique ordenava a D. Jerónimo Osório que
trabalhasse uma versão latina da crónica de Góis. A obra De rebus Emmanuelis gestis
Lusitaniae é publicada em 1571 e estaria destinada a uma leitura universal no contexto
da intelectualidade europeia.746
Estes relatos cronísticos integram versões relativas à morte de D. Francisco de
Almeida, nas quais confluem registos de factos reais que, nos casos de Barros e
Castanheda, poderão provir de testemunhos de sobreviventes. Contudo, tais versões são
também o receptáculo de juízos de valor, preconceitos e estereótipos com raízes
profundas no tempo. Os seus discursos concebem a narrativa do confronto entre
portugueses e africanos em termos de nós e os outros, reforçando os princípios
complementares de identidade e alteridade, com fortes implicações e projecções, tanto
em termos antropológicos como geográficos.
As diversas obras da cronística quinhentista reconhecem a responsabilidade dos
portugueses no desencadear do conflito com as populações da Aguada de Saldanha. No
texto de Barros, as gentes locais foram inicialmente movidas por um sentimento de
justiça, pois que se vinham “offerecer á morte por salvar os filhos”.747 Porém, o
sentimento que atribui uma malignidade colectiva aos africanos está patente nas várias
partes do texto, nomeadamente na descrição de um combate iníquo e desigual onde os
Khoi fazem intervir os animais:
“(...) deram no corpo de nossa gente, tomando por industria cariar o seu gado. O qual
como tem acostumado para aquelle mister da peleja, começaram de lhe assoviar, e fazer
outras noticias per que o mandavam de maneira, que mettidos entre elle como em
esquadrão de seu amparo, dalli era tanto o páo tostado sobre os nossos, que começáram
logo de cair alguns feridos, e trilhados do gado ”.748

Perante os códigos de guerra que os portugueses tinham como referência, a


estratégia mostrava-se estranha, o combate desleal. Dizia Barros que os habitantes da
Aguada de Saldanha actuavam “tam léues e soltos que pareciam auees: ou por melhór

745
Damião de GÓIS, op. cit..
746
Jerónimo OSÓRIO, op. cit..
747
João de BARROS, op. cit., p. 146.
748
IDEM, ibidem, pp. 146-147.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

dizer algozes do demonio”.749 A responsabilidade inicial dos portugueses, no desencadear


do conflito, é como que anulada por argumentos que permitem integrar o habitante destas
terras longínquas no estereótipo da selvajaria e da barbárie que, na percepção portuguesa,
era evidenciada nas rudes armas de paus tostados, no modo de pelejar, usando os animais,
e na estranha comunicação (por assobios) estabelecida com o gado para contra-ataque aos
nobres portugueses. Através de uma associação ao demónio, o texto de Barros explicava
a conduta do africano, que impunha tão cruel fim a homens que no Oriente haviam
militado “por seu deos e por seu rey”.750 A imagem de uma bestialidade demoníaca do
africano culminava com a descrição do acto de esmagar as cabeças das vítimas com
pedras. Abria-se uma fissura na natureza humana destas criaturas, consolidava-se o
estereótipo da barbárie, integravam-se estes seres numa concepção do mundo que parte
do centro, onde domina a normalidade, para as periferias, espaços por excelência dos
povos fabulosos.751
À barbárie dos homens juntava-se a rudeza do espaço, que teria determinado a
derrota dos portugueses e a morte do vice-rei: “sómente hum pequeno caminho e huma
pouca de area assy os decepou em fraqueza, que com verdade se póde dizer que estas
duas cousas serem a principal causa de sua morte”.752
Aquela e outras praias da África austral haviam sido espaço de refresco para as
armadas, espaços de encontro, de trocas simbólicas, de resgates pacíficos. As areias que
simbolizavam ao mesmo tempo horizonte e fronteira, um “limes” entre o familiar e o
estranho, convertiam-se agora num espaço de conflito, num “triste desterro” e sepultura
distante. Estava criado o estigma das “brutas areias da Cafraria” subjacente à literatura de
naufrágios que, a partir da segunda metade do século XVI, fabricava os cenários de uma
terra estéril, selvagem, perigosa, habitada por bárbaras nações.
Em Castanheda, os Khoi são “homens tão bestiais” que se lançam sem receio “às
pedradas e azagayadas”, falam ao gado e pelejam “muy brauamente”753 fazendo “muytos
biocos & geitos medonhos”.754

749
IDEM, ibidem, p. 147.
750
IDEM, ibidem, p. 148.
751
Lucian BOIA, op. cit., p. 118.
752
João de BARROS, op. cit., p. 148.
753
Fernão Lopes de CASTANHEDA, op. cit., p. 486.
754
IDEM, ibidem, p. 487.

206
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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Góis retoma o esterótipo da barbárie: “homens tam barbaros”; “gente tam barbara
& desarmada”. Na Crónica de D. Manuel, os habitantes desta África distante ora são
designados de “negros”, ora de cafres. O primeiro termo salienta a coloração da pele
como traço físico marginalizador, mas remete sobretudo para uma dimensão
civilizacional. A segunda designação deriva do árabe kaffir, ou seja infiel, renegado,
selvagem, aquele que nunca foi alcançado por qualquer lei divina sendo, por isso,
marginalizado espiritual e culturalmente.
O discurso de D. Jerónimo Osório é, em si mesmo, um percurso ascendente na
construção de uma escala da bestialidade. Os africanos, que revelavam no início ser
“bondosos” e dotados de “rara singeleza e humanidade”, passam depois a “índios boçais”
e “brutos” e, num crescendo, tornam-se “um povo tão parecido às feras nos costumes e
meneio da vida”.755 Jerónimo Osório convoca o estereótipo do etíope, cujas raízes recuam
a Aristóteles, tendo-se difundido no imaginário medieval, associado à cor “negra”, ao
cabelo crespo e a uma “constituição física irracional”.756 Correspondem-lhe os traços de
selvajaria que os fazia parecer medonhos:
“homens negros de côr, cabelo retorcido e queimado, como os mais da Etiópia, mui feios
de semblante, que ainda fazem mais horrendo com esgares medonhíssimos, por
parecerem na guerra mais ferozes. Para nos meterem mêdo vinham desengonçando
ferinamente todas as feições, horrorizando gestos, desentoando gritas ”.757

A alusão às feições distorcidas remete para associações com o elemento


demoníaco, frequentemente representado sob a forma de “etíopes negros”.758 O texto de
Osório culmina com uma reflexão que exprime um elaborado conceito civilizacional
mobilizado através de um inventário de diferenças em que o africano é radicalmente
desvalorizado: selvagens desarmados, nus, sem costumes nem polícia de cidade, sem
armas trabalhadas, sem disciplina nem instinto de glória, mas ferozes “como as brutas
feras carniceiras”.759 Estes marcadores da bestialidade ou selvajaria assumem outros

755
Jerónimo OSÓRIO, op. cit..
756
José da Silva HORTA, “A representação do Africano na Literatura de Viagems, do Senegal à Serra Leoa
(1453-1508”, (…), p. 239. Este autor retoma o trabalho de exegese sobre o estereótipo do etíope na tradição
medieval, de Fraçois de MEDEIROS, op. cit., pp. 217-220.
757
Jerónimo OSÓRIO, op. cit., p. 309.
758
José da Silva HORTA, “A imagem do Africano pelos portugueses antes dos contactos”, (…), pp. 46-47.
759
Jerónimo OSÓRIO, op. cit., p. 309.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

sentidos. Por exemplo, o facto de não usarem armas significa que expunham os seus
corpos de forma suicida, ou por falta de entendimento, ou pela incapacidade de possuírem
armas dignas desse nome. A posse de armas pressupunha um artifício humano e não
apenas a mera adaptação do que vinha da natureza. O protótipo de uma vida sem costumes
e sem polícia traduzia-se numa incapacidade de organização de defesa armada, pelo que
recorriam a gestos, feições e gritos assustadores nas suas investidas. A ferocidade é, pois,
um adjectivo do campo semântico da animalidade.

Aquando da primeira edição da obra De rebus Emmanuelis passavam sessenta e


um anos sobre o confronto na Aguada de Saldanha. Com o avançar das décadas perdia-
se a materialidade histórica dos acontecimentos, o que os tornava mais vulneráveis aos
mecanismos falaciosos da memória. Assim, o texto de Jerónimo Osório, distante dos
acontecimentos e do espaço geográfico-antropológico dos Khoi, compõe um retrato dos
africanos em que salienta traços de uma fealdade extrema através da descrição de gestos
horríveis; a sua negritude é equiparada à dos outros povos da Etiópia; a imagem do
africano torna-se susceptível de associação às representações dos demónios que
povoavam o imaginário desses tempos.
Os textos impressos têm um papel fundamental na expansão e divulgação destes
preconceitos e estereótipos sobre o “outro”. Porém, apesar da implementação da
tipografia, o livro impresso em Portugal continua a ser um objecto restrito nos séculos
XVI e XVII, não só pelo seu elevado custo, mas também porque a alfabetização foi um
processo lento e a leitura não era uma aquisição de todos. Ana Isabel Buescu, num estudo
sobre a cultura impressa e manuscrita na Época Moderna, menciona a importância das
práticas de leitura em voz alta, herdadas de séculos anteriores, que divulgavam “a cultura
escrita junto de grupos sem convívio directo com o livro, de que os iletrados fazem
também parte”.760
Nestes tempos, não só a leitura em voz alta, mas também a continuidade de uma
cultura de reprodução manuscrita dos textos coexistia com os impressos, contribuindo
todas estas formas de comunicação para a difusão dos saberes entre públicos diversos.761

760
Ana Isabel BUESCU, “Cultura Impressa e Cultura Manuscrita em Portugal na Época Moderna: uma
sondagem”, in Penélope, N.º 21, 1999, p. 18.
761
Fernando Jesus BOUZA ÁLVAREZ, op. cit., (…), pp. 35-48.

208
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

As histórias e os relatos manuscritos eram copiados à mão, o que, se permitia introduzir


nos textos um determinado cunho pessoal, o essencial era a repetição da informação e
também, das imagens e estereótipos subjacentes ao discurso. A este respeito salientamos
o Códice 737 da Biblioteca Pública Municipal do Porto, cujo primeiro texto - Do fim
mizeravel que teve D. Francisco de Almeyda em o anno de 1510 - versando o trágico
epílogo do primeiro vice-rei da Índia, resulta, quanto a nós, de uma “reciclagem” do texto
impresso de João de Barros, já que, sendo cotejados os dois textos, se verifica que o relato
do autor anónimo segue muito ao pé da letra o texto do cronista.762
“(...) Viso Rey [...] atravessando lhe a garganta em aquelle areal que tinha mohido, com
huma vara tostada sem ferro; e sentindo se ferido de morte, o valeroso Viso Rey, cravou
logo os joelhos em terra, e os olhos em o Ceo: & encomendando sua alma a Deos, espirou
logo com grande dor dos seus, que perderão nelle pay, irmão, e companheiro juntamente,
porque o foi elle sempre, de todos os quatro annos que governou em aquellas partes da
India. [...] Morrerão com o Viso Rey muytos soldados velhos dos melhores que vinhão
em as embarcações; & entre elles doze principais capitães, que he vergonha dize lo: os
quais pelejando com os Barbaros, e não se sabendo menear em a muyta area que avia,
vierão a morrer mais de 80.”763

A passagem da História para o mito é-nos dada a entender na epopeia camoniana


que, no Canto V, consagra diversas estrofes às escalas que os navios de Gama efectuaram
nas baías de Santa Helena e de São Brás. O primeiro habitante encontrado (recolector de
mel) nestas “partes tão remotas” é descrito como sendo de “pele preta”, “Selvagem mais
que o bruto Polifemo”764. No episódio de Fernão Veloso, em que a sua vida é ameaçada
por um “bando” de indígenas, estes são descritos como gente de “malícia feia e rudo
intento / bestial, bruta e malvada”.765 O espaço destes encontros é o da praia-limite-
fronteira, com raras incursões no “mato”, que ficava para lá dos “ásperos outeiros”.
Camões fixou os contornos de uma humanidade selvagem, negra como a “escura
treva”, nua, feia e monstruosa. Estão presentes os ecos de um imaginário longínquo, entre

762
“Do fim mizeravel que teve D. Francisco de Almeyda em o anno de 1510”, in Rellação de Varios
Naufragios, B.P.M.P., Cod. 737, fls. 1-4. Cf. com João de BARROS, Ásia de João de Barros, Segunda
Década, (…), pp. 147-148.
763
Ibidem, fl. 3 vº.
764
Luís de CAMÕES, Os Lusíadas, (ed. organizada por SARAIVA, António José), Porto, Livraria
Figueirinhas, 1978, Canto V: 28.
765
IDEM, ibidem, Canto V: 34.

209
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

os quais se percebem elementos clássicos da epopeia homérica, mas não só. Heródoto, “o
pai da História”, acreditava que nos territórios africanos para sul do Sahara, nessa Etiópia
distante, viviam homens “com cabeças de cão e sem cabeça, cujos olhos ficavam no
peito” e não falavam nenhuma língua humana766; Plínio, o Velho, na sua Historia
Naturalis localizava as “raças humanas monstruosas” do mundo algures na Etiópia, onde
o calor excessivo era responsável pela disformidade das criaturas.767
A herança erudita de concepções geográficas sobre a África modelava as
formações de um imaginário que o poeta explanou. De um lado, a geografia macrobiana,
conforme já foi referido, concebia a Terra dividida em cinco zonas: tórrida; temperada,
do norte e do sul, glacial, ártica e antárctica. Segundo esta concepção, só as zonas
temperadas permitiam a presença humana, pois a sua sobrevivência não era possível nem
na zona tórrida, nem nas zonas geladas. Duarte Pacheco Pereira rebateu estas ideias com
a fundamentação da experiência. Porém, algo daquela geografia ter-se-ia enraizado nas
percepções deste novo mundo. De outro lado, Ptolomeu havia representado
superficialmente algumas zonas do nosso planeta, ignorando por completo a África a sul
do Equador. Tais concepções do mundo deixaram campo aberto à fauna, à flora e à
“geografia de imaginação”, assim como à “geografia de anomalias”, e portanto, a
representação dos espaços da África meridional abriam-se à lenda e à projecção
persistente dos mitos fantásticos.768
Na senda de concepções geográficas que postulavam um centro, a Europa cristã,
e periferias, a extremidade sul do continente africano radicava numa das orlas do mundo.
Aí, no degredo dos rochedos da “Africa extremitas”, onde pesavam todos estes
referenciais geográficos, a figura mitológica do Adamastor estava destinada a transfigurar
as imagens e os conceitos que há muito se associavam ao elemento humano. A sua
natureza titânica é inspirada na mitologia grega e o nome é tirado de Rabelais,
especificamente da genealogia do gigante Pantagruel em Gargântua e Pantagruel,
publicado quarenta anos antes d’Os Lusíadas.769 Através deste empréstimo, Camões

766
Jill Rosemary Rainey DIAS, África: nas Vésperas do Mundo Moderno, Lisboa, Comissão Nacional para
as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1992, p. 18.
767
IDEM, ibidem.
768
Luís de ALBUQUERQUE, “Realidades e mitos de Geografia Medieval”, (…), pp. 30-31.
769
Ivan VLADISLAVIC, op. cit., p. 42.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

introduzia na epopeia um elemento capaz de suscitar a livre imaginação e de converter a


viagem para a Índia numa viagem pela mente.
O registo dos adjectivos atribuídos ao Adamastor permitia criar uma significativa
imagem de monstruosidade: “figura robusta e válida, de disforme e grandíssima estatura”,
“rosto carregado”, “barba esquálida”, “crespos os cabelos”, de “boca negra”, “dentes
amarelos”, fala num tom “horrendo e grosso”.770 Será possível descobrir nesta descrição
uma associação, ainda que implícita, entre este gigante disforme e terrível e os habitantes
da África meridional, cuja “fealdade” e “malignidade” foi sublinhada pelos autores da
cronística? Vários são os atributos correspondentes, nomeadamente “a cor terrena e
pálida”, “crespos os cabelos” e a “boca negra”.771
A morte do vice-rei é encarada n’Os Lusíadas como manifestação da Providência
que governa o mundo. É o sacrifício necessário para aceder ao Oriente, em que a figura
do Adamastor simboliza os grandes obstáculos a transpor. No encontro de Gama com o
Adamastor este último profetizava “naufrágios, perdições de toda a sorte. / Que o menor
mal de todos seja a morte!”.772 Entre as desgraças que vaticinou estava a do vice-rei D.
Francisco de Almeida, de quem o Adamastor seria “eterna e nova sepultura”.773 Estava
em curso uma “lenda negra” da Cafraria, fundada num paradigma de leitura do “outro”
que se construía na memória dos textos: nos textos práticos (roteiros), nos relatos dos
historiadores, nos manuscritos que integram na sua textualidade passagens do discurso
cronístico, reflectindo uma diversidade de círculos de difusão e reciclagem de notícias; e
nas estrofes da epopeia camoniana, que permitiram associar os habitantes da Aguada de
Saldanha ao símbolo grotesco e terrível do Adamastor.
Mas, se as grandes obras impressas na segunda metade do século XVI
cristalizavam uma representação do episódio histórico da Baía de Saldanha em termos
binários, reforçando a imagem das populações nativas como criaturas do mal, a verdade
é que também surgiram vozes que relativizaram estes juízos. João Pereira Dantas defendia
a instalação de uma base fortificada na costa meridional africana, a partir da qual
considerava poder ser feita a evangelização dos autóctones, a dinamização do comércio e

770
Luís de CAMÕES, op. cit., Canto V: 39-40.
771
IDEM, ibidem, Canto V: 39.
772
Luís de CAMÕES, op. cit., Canto V: 44.
773
IDEM, ibidem, Canto V: 45.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

o apoio às armadas do Índico.774 Num texto de 1556, os seus argumentos em prol de uma
presença mais estruturada da coroa portuguesa naqueles territórios, esbateu o discurso
que se afirmara como oficial, defendendo os habitantes da região do Cabo face aos abusos
dos homens de D. Francisco de Almeida:
“(…) o que aconteçeo naquella costa ao V. Rey Dom francisco dalmeida, e a outros,
porque por ventura ouve da nossa parte tanta sem rezão que bastou a gerar os tais
escandalos porque com a gente dalgumas outras naos converçarão e tratarão
amigavelmente”.775

Estas palavras de João Pereira Dantas testemunham a sua opinião sobre os abusos
que poderão ter existido por parte dos homens que acompanhavam D. Francisco de
Almeida. Note-se que classifica como “sem rezão” a ação dos portugueses, contrastando-
a com outras situações de trato amigável.
A morte do primeiro vice-rei da Índia pelos Khoikhoi do Cabo pode ter
contribuído para um afastamento das embarcações portuguesas da costa meridional de
África, pois os roteiros aconselhavam a que os navios da Carreira da Índia se afastassem
da costa, por resguardo dos ventos e correntes marítimas, e fossem evitadas as aguadas.776
O Livro de Marinharia de Bernardo Fernandes (c. 1548) alerta para o “mui grande
cuidado e vigia nesta derrota” e, caso se faça sentir a necessidade de proceder a aguada,
os navios podem “entrar na Baía de Saldanha e na da Roca ou da Lagoa; e na de Saldanha
(…); da qual baía vos saireis logo por não vos tomar o poente dentro”.777 A regra deverá
ser, ao demandar a terra do Cabo da Boa Esperança, os navios afastarem-se “logo dela 30
ou 40 leguas”, devido à força das correntes do levante. No roteiro de Perestrelo há
referência, na vasta costa do Cabo da Boa Esperança, a dois espaços especiais para
aguadas: o mais antigo ancoradouro daquela costa, na aguada de S. Brás,778 e ao norte da

774
“Apontamentos que fez João Pereira Damtas por mandado Del Rey Dom João Terceiro no Anno de
1556”, in Maria Emília Madeira SANTOS, O carácter experimental da Carreira da Índia. Um plano de
João Pereira Dantas, com fortificação da África do Sul (1556), Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar,
1969, Sep. da Revista da Universidade de Coimbra, Vol. XXIV 24, p. 32.
775
IDEM, ibidem.
776
Gabriel Vitor do Monte PEREIRA (Ed.), Roteiros portugueses da viagem de Lisboa à Índia nos séculos
XVI e XVII, Lisboa, Imprensa Nacional, 1898, ps. 87, 107, 126, 156 e 159.
777
Livro de Marinharia de Bernardo Fernandes, Abel Fontoura da COSTA (Prefácio e notas), Lisboa,
Agência Geral das Colónias, 1940, pp. 59-61.
778
Manuel de Mesquita PERESTRELO, “Roteiro dos portos, derrotas, alturas, cabos, conhecenças,
resguardos e sondas, que á per toda a costa desdo cabo de boa esperança ate o das correntes”, in Abel
Fontoura da COSTA (ed.), (…), pp. 22-26.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

baía de Lourenço Marques, na aguada da Boa Paz, onde a “gente da terra é de nação
Mocaranga e nossa amiga”.779

779
IDEM, ibidem, pp. 54-56.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

2. Naufrágios na África do sudeste e o refoço das categorias geográfico-


antropológicas discriminatórias

2.1. Os naufrágios

O movimento de navios ao serviço da coroa portuguesa envolvia acontecimentos


imprevistos, tais como os naufrágios, atribuídos pela mentalidade da época ao Destino, à
Providência e também aos pecados humanos, como a cobiça e ambição.
Entre as datas de 1500 até 1649, registaram-se 69 naufrágios de navios
portugueses na costa africana, entre o cabo da Boa Esperança e as ilhas de Quirimbas. 780
Da totalidade destes naufrágios, 59% aconteceram na viagem de ida, 35% na viagem de
regresso da Carreira da Índia, desconhecendo-se a fase da viagem para 6% das perdas.
A segunda metade do século XVI assinala um agravamento dos naufrágios, tanto
no trajecto de ida, como na viagem de regresso 781, sendo que 20% dos navios saídos de
Lisboa com o objectivo de regressarem a este porto não o fez “por desaparecer no mar,
devido a temporal, erro de navegação, ataque inimigo ou qualquer outra causa, conhecida
ou não”.782
De acordo com o inventário dos naufrágios de navios portugueses, feito por
Guinote, Frutuoso e Lopes, a geografia das perdas na costa Sul-Oriental africana permite
identificar duas grandes áreas críticas marcadas por uma elevada acidentalidade: a
primeira pode ser balizada entre o cabo da Boa Esperança e o cabo das Correntes; a
segunda ocorre no Canal de Moçambique, entre o parcel de Sofala e a ilha de
Moçambique, sendo registado um naufrágio ao largo das Quirimbas.783
O tema dos naufrágios da Carreira da Índia, nos séculos XVI e XVII, reteve a
atenção dos pensadores da época e suscitou uma vasta produção literária específica com
ampla aceitação e difusão entre o público leitor. Na segunda metade do século XVI, os
relatos de naufrágios tornaram-se textos de circulação corrente. Enquanto notícias que
publicavam informações detalhadas sobre o desaparecimento de navios, enfatizavam os
perigos da aventura oceânica, as tragédias, a morte e os tormentos passados pelos

780
Paulo GUINOTE, Eduardo FRUTUOSO e António LOPES, op. cit., pp.184-256.
781
IDEM, ibidem, pp. 124- 125.
782
IDEM, ibidem, p.105.
783
IDEM, ibidem, pp.184-256.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

náufragos em terras distantes e incógnitas, além de que levavam o imaginário da viagem


àqueles que fisicamente não haviam partido para a travessia dos mares. Estas notícias da
época proliferavam e atravessavam fronteiras, as impressões tipográficas multiplicavam-
se, registando-se autênticos êxitos editoriais. O género discursivo acabou por se definir e
padronizar. Na sua maioria, estes textos observavam determinada forma e incluíam certas
unidades de conteúdo. Segundo Giulia Lanciani, muitos dos relatos de naufrágios
reproduzem “modelos narrativos presentes na prosa portuguesa (e não só portuguesa)
medieval e renascentista”.784 Lanciani acrescenta ainda que, apesar de nem todos os
autores estarem cientes da sua dependência de tais modelos narrativos, alguns estariam
indubitavelmente conscientes da sua qualidade de escritores. 785
Mas, se o interesse pela temática dos naufrágios conduziu à multiplicação de
edições impressas, também levou à reprodução manuscrita de textos, que ora copiavam
os impressos, ora apresentavam versões narrativas diversas sobre matérias comuns.
Segundo Eleutério Cerqueira, a tiragem média dos folhetos de cordel, consagrados
aos naufrágios, andava sempre à volta dos 3000 exemplares, enquanto a tiragem da
primeira edição de Os Lusíadas oscilou entre os 400 e os 600 exemplares.786
Josiah Blackmore interpreta esta tradição discursiva como um capítulo disruptivo
na historiografia da expansão marítima e considera que o discurso de representação do
desastre é, a um mesmo tempo, acontecimento e texto, experiência trágica e narrativa
dessa experiência.787 A palavra naufrágio, derivando do latim navis (navio) + fractio
(quebrado, partido), assume o significado metafórico da fracturação da consciência, dos
projectos, das comunidades, como que assinalando o reverso de uma ordem de harmonia
e racionalidade.788 O momento da ruptura, no qual se constata a perda em termos
concretos e simbólicos, implica, na sua dimensão textual, uma fractura no discurso
hegemónico da historiografia oficial. Não significa isto que tais relatos não exponham a
ideologia da conquista, mas afirmam e expõem também o contrário, a visão disruptiva
dos autores, normalmente exterior às redes discursivas oficiais, a qual emerge de um

784
Giulia LANCIANI, op. cit., p. 71.
785
IDEM, ibidem.
786
Alfredo MARGARIDO, “O trabalho de luto nos relatos dos naufrágios”, in Afreudite, Lisboa,
Universidade Lusófona, Ano IV, 2008 - n.º 7 / 8, p. 75.
787
Josiah BLACKMORE, Manifest Perdition: Shipwreck Narrative and the Disruption and the Empire,
(…), p. 40.
788
IDEM, ibidem, p. 51.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

sentimento colectivo, como um impulso contra-ideológico.789 Alfredo Margarido havia


já interpretado este corpus textual, constituído pelos relatos de naufrágios, como a
emanação de sentimentos que mobilizavam o mecanismo psíquico do luto.790 O “material
literário” composto pelos relatos de naufrágios permitia consolidar um sofrimento que
ultrapassava largamente a dimensão individual ou familiar, destinando-se a lembrar o
fenómeno dos mortos da nação portuguesa no mar salgado, mas também a introduzir um
elemento de reflexão sobre a condição humana791, ao fazer depender dos povos da África
oriental, referidos como “cafres” e “bárbaros”, a sobrevivência de muitas centenas de
náufragos.
Em muitos casos a perda do navio não impediu o salvamento de tripulantes e
passageiros que, arrastados para praias desertas, se viram forçados a uma errância pelas
terras estranhas do sul e do leste africano. Os relatos de naufrágios contêm uma
extraordinária riqueza informativa, não apenas relativa aos problemas náuticos que
estiveram na origem da perda dos navios, mas também no que se refere à construção de
imagens e representações das terras e povos onde ocorreram os acidentes. Tais imagens
permitem-nos aceder a uma perspectiva de pensamento sobre África e os africanos, num
determinado tempo histórico.
O mapa da página seguinte permite localizar os sítios de alguns dos mais
representativos naufrágios no sudeste africano, os quais originaram relatos escritos nos
séculos XVI e XVII.792
Do total de naufrágios ocorridos na África do sudeste, alguns deram origem a uma fixação
escrita, seja em obras que não tendo por objecto principal os naufrágios, os referem como
episódios históricos, seja em textos especificamente produzidos para relatar as aventuras
vividas pelos náufragos. De entre os textos sobre naufrágios ocorridos nesse espaço
africano, nos séculos XVI e XVII, destacamos os que constam do Quadro 3 dos anexos e
cuja leitura nos permitiu aceder às imagens genéricas da terra africana bem como definir
os estereótipos que lhe estão subjacentes.793

789
IDEM, ibidem, p. 41.
790
Alfredo MARGARIDO, “O trabalho de luto nos relatos dos naufrágios”, (…), pp. 73-83.
791
IDEM, ibidem, p. 80.
792
Mapa 2 – naufrágios de navios portugueses na Cafraria nos séculos XVI e XVII, página seguinte.
793
Anexos: Quadro 3 – Imagens e estereótipos da terra africana nos relatos de naufrágios (sécs. XVI e
XVII), p. 454.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Mapa 2 – Naufrágios de navios portugueses na Cafraria nos séculos XVI e XVII

Mapa elaborado pela autora

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Harry Garuba, ao reflectir sobre a tendência académica contemporânea para


problematizar e teorizar lugares e espaços geográficos, considera essencial a perspectiva
temporal da longa duração para uma compreensão genealógica do presente,
nomeadamente no que se refere a uma percepção da África a partir do Cabo.795 Partindo
desta ideia de uma genealogia das ideias e conceitos, considera-se que as percepções da
costa do sudeste africano, denominada de Costa do Cabo da Boa Esperança, Costa de
Cafres / Terra de Cafres e, posteriormente, Cafraria, patentes numa discursividade
dramática, produzida ao longo dos séculos XVI e XVII, mercê da sua ampla divulgação
tipográfica estariam destinadas a desempenhar um papel crucial nos legados conceptuais
que perduraram no tempo longo e ainda permeam o presente.

2.2. Percepções geográficas e classificações antropológicas na documentação


sobre naufrágios

2.2.1. Categorias de percepção da terra

2.2.1.1. Naufrágios e a Cafraria oriental

Sendo o naufrágio um acontecimento fracturante no percurso de uma viagem


marítima, a escrita que o acompanha funciona simbolicamente como uma reencenação do
desastre, uma representação da perda.796 A tipologia documental na qual se integram as
descrições de naufrágios de navios portugueses dos séculos XVI e XVII, permite-nos
analisar as percepções do espaço de acordo com diversos níveis e amplitudes.
O primeiro nível de percepção abrange a dimensão geográfica da Carreira da
Índia, cujos referenciais são os portos de partida e de chegada, bem como as escalas ou
lugares estratégicos na travessia das grandes massas oceânicas. Os naufrágios que
analisamos ocorreram em contextos de circumnavegação da África, entendida esta como
um “macro-obstáculo” continental interposto entre Lisboa e Cochim. A costa do Cabo da

795
Harry GARUBA, “How to not think Africa from the Cape”, in Mail & Guardian, Johannesburg, 5th of
July 2011 (online) https://thoughtleader.co.za/readerblog/2011/07/05/how-not-to-think-africa-from-the-
cape/ (Consultado em 24/08/2011)
796
Josiah BLACKMORE, Manifest Perdition: Shipwreck Narrative and the Disruption of Empire, (...), pp.
28-29.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Boa Esperança e as suas extensões no Canal de Moçambique constituía um ponto


nevrálgico neste obstáculo, pois nessa área ocorreram grande parte dos naufrágios desta
Carreira.
O Padre Jerónimo Lobo, ele próprio náufrago da nau Belém, que se perdeu em
1635, confirma no seu Itinerário 797 ser este:
“(…) o lugar de maior perigo que há em toda a navegação da India, he a prova porque
sinco naos são perdidas naquella paragem […]. A nao Sam Alberto, capitão Nuno Velho
Pereira, que caminhando por terra e atravesando a Cafraria foy sair junto a Melinde […].
2.ª o galião de Manoel de Sousa de Sepulveda que querendo caminhar por terra, perecerão
todos por largarem as armas, morrendo o capitão e sua molher a puro desamparo com a
mayor lastima e mais misseravel naofragio que jamais se vio. 3.ª a nao São João, os quais
partindo por terra na volta de Moçambique 279 pesoas, escaparão com vida 23; 4.ª a nao
Sam Gonçalo que por se não atreverem a caminhar por terra fizerão dous pataxos en que
se salvarão; a 5.ª foy a nao Belem que he esta de que fallo que tomou o mesmo conselho
de fazer embarcações, huma das quais com 118 pesoas, e pode ser a 6.ª, varou depois de
3 dias de navegação nesta mesma paragem”. 798

À data da perda da nau Belém, havia já uma acumulação de informações de


carácter utilitário partilhadas por sobreviventes de naufrágios precedentes, ocorridos na
costa do sudeste africano, conhecida por Cafraria. As experiências de sobrevivência e
morte foram de tal modo marcantes, que o vice-rei da Índia, Matias de Albuquerque, em
funções entre 1591-97, mandou redigir um regimento para andar nas naus desta Carreira.
Este regimento é, na sua essência, um roteiro e guia de sobrevivência. Contém descrições
detalhadas de paisagens e caminhos, usa de conhecenças e topónimos, divulga vocábulos
elementares para empreender a comunicação com as populações locais, nomes de chefes
e comportamentos colectivos a adoptar em caso de naufrágio nos litorais do sudeste
africano.799

797
Jerónimo LOBO, Itinerário e outros escritos inéditos, Ed. crítica do Padre M. Gonçalves da Costa
BARCELOS, [Lisboa], Livraria Civilização - Editora, [imp.1971].
798
IDEM, ibidem, pp. 609-610.
799
“Regimento que se fez por ordem do snor’ Visorrej Matias Dalbuquerque tirado do Roteiro da viagem
que fez por terra da cafraria a gente da Não Santo Alberto governada por Nuno velho pereira”, B.A. (Cod.
51-VI-54, nº 27), publicado por Maria Emília Madeira SANTOS, O carácter experimental da carreira da
Índia. Um plano de João Pereira Dantas, com fortificação na África do Sul (1556), Lisboa, Junta de
Investigações do Ultramar – Agrupamento de Estudos de Cartografia Antiga, 1969, documento anexo nº 4,
pp. 48-53.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

O salvamento de tripulantes e passageiros, quando as circunstâncias o permitiram,


conduziu sempre à revelação de um “outro” espaço, terrestre, cuja percepção geográfica,
socio-política e cultural iremos analisar.
Ao descrever a viagem, por vezes com grande detalhe, o autor de um relato de
naufrágio fornece ao leitor dados geográficos de carácter informativo. Porém,
paralelamente ao discurso informativo, o texto do relato integra também uma dimensão
subjectiva, pois não é possível entender o espaço de forma neutra. Segundo Dubois, o
corpo material do espaço é explorado pelos meios sensoriais, que deixam intacta a própria
materialidade da natureza800; porém, todo o discurso a seu respeito é uma construção
feita com signos e significados imbuídos de diferentes densidades psicológicas, morais e
metafísicas, que transformam um itinerário físico também num itinerário espiritual e
gnoseológico.801
Nos testemunhos de sobreviventes, muitos dos quais nunca chegaram à imprensa,
o texto resulta do modo como o espaço foi apreendido pelos sentidos e do subsequente
processamento psico-intelectual, constituído pela “tradução” da experiência dos sentidos
para signos linguísticos, por sua vez, destinados a integrar um discurso convencional.
François Hartog havia designado por “tradução” o modelo pelo qual o autor de uma
narrativa de viagem transmite ao seu próprio grupo a informação relativa a outro grupo
ou território que se lhe oferece como novo.802 O objecto escrito ou representado está entre
o mundo que se conta e o mundo ao qual se reconta, sendo que a distância entre estes dois
mundos diversos coloca a necessidade da “tradução”. Mais recentemente, Joan-Pau
Rubiés coloca esta questão em termos de formação de “imagens mentais”, distinguindo
as “imagens mentais primárias” das “imagens mentais secundárias”. As “primárias” são
as que provêm da experiência empírica dos observadores directos, autores ou
transmissores das primeiras representações literárias; as “secundárias” são produzidas
quando, subsequentemente, outros europeus leêm e interpretam as primeiras
representações.803 Nos relatos impressos, a distância entre as primeiras imagens mentais

800
Claude-Gilbert DUBOIS, L’Imaginaire de la Renaissance, Paris, Presses Universitaires de France, 1985,
pp. 95-96.
801
IDEM, ibidem.
802
François HARTOG, op. cit., p. 225.
803
Joan-Pau RUBIÉS, “Imagen mental e imagen artística en la representación de los pueblos no Europeos.
Salvajes y civilizados 1500-1650”, in Joan LLUIS PALOS e Diana CARRIÓ-INVERNIZZI (ed.), La
Historia Imaginada. Construcciones Visuales del Passado en la Edad Moderna, Madrid, Centro de
Estudios Europa Hispánica, 2008, p. 334.

220
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

e as representações dos leitores ainda é maior, pois o editor interferia intencionalmente


no texto, de modo a que este fosse apelativo ao público e, neste sentido, introduzia
alterações nas fontes originais. Os textos que operam a transferência entre a percepção
empírica e os códigos da escrita, visando substituir a experiência directa, podem ser muito
complexos, pois além do recurso à analogia, que enquanto processo retórico transformava
o distante e diferente em próximo e familiar, mobilizavam também pressupostos culturais,
perspectivas religiosas, identidades sociais e interesses económicos muito variados e
circunstanciados.804
Na longa viagem entre Lisboa e o Oriente, ou no retorno ao reino, o navio
constitui-se como um espaço físico, tecnológico e simbólico peculiar, pois materializava
a pátria e integrava, numa dimensão micro-cósmica, a representação de normas e estatutos
sociais plenamente reconhecidos na época. Ao fracturar-se o navio, todos esses níveis
espaciais imbuídos de significados e referências se desintegravam num processo
complexo que assistia, em simultâneo, à emergência de um “outro espaço”, que era tanto
geográfico, como imaginário e simbólico, porque se afirmava para além das fronteiras do
mundo conhecido.
Nos relatos de naufrágios, África revela-se como um locus estranho,805 exterior
ou alheio aos paradigmas de referência e a descrição dos espaços onde ocorreram a
perdição/naufrágio, a arribada, o salvamento e a longa peregrinação por terra, ocupa uma
porção substancial das unidades narrativas. A categorização desse locus estranho traduz-
se numa necessidade de nomeação das terras percorridas pelos náufragos e esta nomeação
constitui o primeiro mecanismo no sentido de uma apropriação simbólica do território.
As primeiras designações que surgem nos relatos de naufrágios são as de terra de cafres
e costa de cafres, que prevaleceram até à generalização do topónimo Cafraria.
A versão da História Trágico-Marítima do relato anónimo do naufrágio do galeão
S. João, ocorrido em 24 ou 25 de Junho de 1552, cuja primeira edição tipográfica teria
saído ao público sob a forma de folheto de cordel, entre 1555 e 1564806, fixava na escrita
os fios dispersos das memórias de uma “desaventurada viagem” de retorno ao reino. E

804
IDEM, ibidem, p. 348.
805
Josiah Blackmore salienta o sentido etimológico do adjectivo português “estranho”, como derivando do
latim extraneus, que significa externo, estrangeiro, exterior, que é de fora, que não é da família ou da pátria.
Veja-se Josiah BLACKMORE, Moorings: Portuguese Expansion and the Writing of Africa, (…), p. 75.
806
Charles Ralph BOXER, “An Introduction to the História Trágico-Marítima”, in Revista da Faculdade
de Letras, Nº 3, Série I, Lisboa, Universidade de Lisboa, 1957, p. 50.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

porque desses fios da memória pesava mais a dimensão da tragédia e da morte do que a
novidade ou a épica sobrevivência de poucos, um dos náufragos, Álvaro Fernandes, teria
transmitido a um redactor anónimo,807 não só as suas impressões e lembranças sobre o
desastre colectivo no mar e arribada a terra, como também teria divulgado outros
testemunhos, entre os quais as vívidas memórias das escravas de Dona Leonor de Sá sobre
as circunstâncias da morte desta fidalga e seus filhos e, também, o desaparecimento
suicida de Manuel de Sousa de Sepúlveda nos matos da terra dos cafres.
Num manuscrito quinhentista, não datado, da Biblioteca da Ajuda, intitulado
“Perdimento do gualeão São João que vinha da Imdia pera Portugall Manoell de Sousa
de Sepulluada por capitão”808, consta uma única vez o topónimo “cafrarya”. Este
manuscrito é, segundo Kioko Koiso, anterior à primeira edição impressa da Historia da
muy notauel perda do Galeão grande Sam João (entre 1555 e 1564).809 Nesta época,
como já mencionado, os manuscritos circulavam e eram copiados, sendo muito provável
que o editor da primeira impressão tenha usado partes de um manuscrito anterior na
composição da edição do folheto de cordel. Tal topónimo singular teria transitado para a
primeira edição impressa deste relato de naufrágio e todas as que se sucederam ao longo
dos séculos XVI e XVII, até à sua integração na compilação de Gomes de Brito, bem
como as versões daí procedentes:

“não ha duuida senão que sem homens despinguardas atreuesarão a cafrarya toda”.810
(Manuscrito anónimo da Biblioteca da Ajuda)

“agora sabemos por esta perdição e pela da nau S. Bento, que cem homens de espingarda
atravessariam toda a Cafraria”.811

807
Prólogo à “Relação da mui notável perda do Galeão Grande S. João em que se contam os grandes
trabalhos e lastimosas cousas que aconteceram ao Capitão Manuel de Sousa Sepúlveda e o lamentável fim
que ele e sua mulher e filhos, e toda a mais gente, houveram na Terra do Natal, onde se perderam a 24 de
Junho de 1552”, in H.T.M., Vol. I, (…), pp. 13-14.
808
B.A., Cod. 50-V-22 – Miscelânea Histórica, Vol. II, fls. 418vº-433, publicado por Kioko KOISO, Mar,
Medo e Morte: aspectos psicológicos dos náufragos na História Trágico-Marítima, nos testemunhos
inéditos e noutras fontes, Vol. II, Cascais, Patrimonia Historica, 2004, pp. 515-551.
809
IDEM, ibidem, p. 485.
810
IDEM, ibidem, p. 542. (sublinhado nosso)
811
“Relação da mui notável perda do Galeão Grande S. João em que se contam os grandes trabalhos e
lastimosas cousas que aconteceram ao Capitão Manuel de Sousa Sepúlveda e o lamentável fim que ele e
sua mulher e filhos, e toda a mais gente, houveram na Terra do Natal, onde se perderam a 24 de Junho de
1552”, in H.T.M., Vol. I, (…), p. 32. (sublinhado nosso)

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

O uso deste topónimo uma única vez no texto, comparativamente com o uso
frequente da designação terra de cafres, parece indiciar que em meados do século XVI
está em construção, tanto no plano discursivo como imaginativo, uma representação
territorial da costa do Cabo da Boa Esperança até Inhambane, à qual são atribuídos traços
definidores e identitários. Dado que o topónimo Cafraria não volta a ser utilizado nos
relatos de naufrágios até ao texto do sotapiloto da nau S. Tomé, que naufragou em 1589,
podemos considerar que a representação territorial expressa numa fórmula toponímica
ainda está longe de se generalizar.
O apuramento do topónimo Cafraria na produção escrita pressupõe o
reconhecimento de uma identidade geográfica, humana, cultural, política e linguística que
se foi consolidando progressivamente nos textos, para posteriormente integrar a
cartografia, num processo complexo que mobilizava também o imaginário dos leitores.
O relato anónimo do naufrágio do galeão S. João812 é um “texto fundador” no que
se refere ao género literário, à estrutura, aos elementos que o tipificam e também no que
se refere à construção de imagens sobre a terra e as gentes. Na textualidade deste relato
fundem-se as memórias de uma experiência de sobrevivência813 com a dimensão
noticiosa do folheto de cordel, intencionalmente impresso para divulgar o acontecimento
dramático. A tragédia é contínua, não se limitando ao episódio do desastre marítimo ou
naufrágio, mas antes prolongando-se no tempo e no espaço, através da peregrinação pela
terra dos cafres, entre as proximidades do rio Mtavuna até Inhambane. A narrativa desta
peregrinação permitiu compôr paisagens conceptuais, que foram retomadas em textos do
mesmo género, no âmbito de uma lógica de tradição.
Após dois meses de navegação no Índico, em viagem de regresso ao reino, os
viajantes do galeão S. João avistavam a costa do Cabo da Boa Esperança. Diz o texto que
o piloto fez o “caminho para ir à terra do Cabo das Agulhas”, “foram ver a Terra do
Natal”; foi correndo a costa “até ver o Cabo das Agulhas”.814 Estes topónimos tinham-se
tornado correntes nos regimentos de navegação e na cartografia portuguesa desde os

812
IDEM, ibidem, pp. 2-37.
813
O autor anónimo da “Relação da mui notável perda do Galeão Grande S. João (…)” refere ter sido um
Álvaro Fernandes, guardião do galeão, o qual “muito particularmente” lhe contou em Moçambique as
vicissitudes deste naufrágio, no ano de 1554. IDEM, ibidem, p. 13.
814
IDEM, ibidem, p. 16.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

primeiros anos do século XVI815 e atestam a construção de um conhecimento geográfico


que resultava da gradual sobreposição da experiência ao saber livresco. Porém, toda esta
toponímia roteirística corresponde a um conhecimento construído na perspectiva do
viajante marítimo, que observa o perfil costeiro a partir dos convés e varandas dos navios
em trânsito.
Na iminência de naufrágio, a aproximação retórica ao espaço africano mobiliza o
conceito de fronteira enquanto lugar para onde confluem os extremos: de um lado, o mar
com suas tempestades; de outro, a terra firme, materializada em penhascos, veredas,
matos e desertos. No âmbito do discurso que relata a perdição do galeão S. João, a
fronteira natural corporiza-se num conjunto de fenómenos atmosféricos, como ventos
furiosos, temporais e mares muito grossos, que conduziram o navio a “varar em terra de
cafres”.816
Uma vez que o naufrágio ocorreu no interface entre o mar e a terra, a “praia”
ergue-se como símbolo de uma experiência de iniciação em que as dificuldades, as
ameaças e os perigos se constituem como um somatório de provações confluindo para o
drama final de Manuel de Sousa de Sepúlveda e sua família. Contínuas referências aos
matos, aos “ásperos caminhos”817 e às terras de grande “esterilidade”818 ou desertos onde
os náufragos sucumbiram à fome, constroem no texto a imagem de um território limite e
adverso.
O espaço da peregrinação, empreendida pelos náufragos, entre o local do
naufrágio, a escassos quilómetros a norte do rio Mthavuna, e Inhambane, no Cabo das
Correntes, recebe a designação de terra de cafres, a que se associa o tópico das terras
selvagens, ásperas e incultas, dos matos onde foi experienciada a fome, o abandono da
alma e a morte de quase todos os viajantes:

815
Recorde-se que a expedição de carácter exploratório, de Cid Barbudo e Pero Quaresma (1505),
contribuiu para aumentar a informação sobre os litorais sul do continente.
816
“Relação da mui notável perda do Galeão Grande S. João em que se contam os grandes trabalhos e
lastimosas cousas que aconteceram ao Capitão Manuel de Sousa Sepúlveda e o lamentável fim que ele e
sua mulher e filhos, e toda a mais gente, houveram na Terra do Natal, onde se perderam a 24 de Junho de
1552”, in H.T.M., Vol. I, (…), p. 22.
817
IDEM, ibidem, p. 31
818
IDEM, ibidem, p. 26

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

“se forão metendo pelos matos tomando desvayrados caminhos comendo frutas brabas, e
raizes de ervas, fazendo conta com Deos, e com suas Almas, como homens que hyão em
estado que cada dia ficauão por esses matos mortos de fome”. 819

A palavra “alma”, presente no excerto, é, segundo Gaston Bachelard, uma palavra


imortal820 e, pela sua força subtil, é susceptível de elencar um compromisso do leitor com
todo o texto. A imagem de “terra da fome”, presente no manuscrito avulso do século
XVIII, depositado na Biblioteca Pública de Évora, pode ser o testemunho de como as
notícias deste naufrágio e da perda de quase quinhentas vidas em territórios da África do
sudeste, ecoaram e repercutiram noutras mentes e noutros corações, no âmbito daquilo
que Bachelard denomina de “transubjectividade da imagem”.821 Cada nova imagem
escrita está repleta de força subjectiva que, ao ser processada pela consciência criadora,
resultará noutras imagens, umas geradoras de emoções, outras, mais ligadas aos circuitos
do conhecimento e, por isso, geradoras de conceitos.822
As escritas relatando as novidades da época multiplicavam-se através da
tipografia. No século XVI saíram três edições impressas do relato anónimo do naufrágio
do galeão S. João, sob a forma de folhetos de cordel, continuando a divulgação destes
dramas materiais e humanos através da cópia de manuscritos e da leitura em voz alta.823
Deste modo, os conteúdos dos relatos, os seus significados e transubjectividades
alcançaram públicos muito vastos, que recriaram imagens e definiram conceitos fixados
em estereótipos.824
No âmbito das imagens susceptíveis de constituir estereótipos, o texto impresso
do naufrágio do galeão S. João veicula a de um território que é o habitat de “tigres e
leões”, “tigres e serpentes”, “feras alimárias”, ou seja, um espaço de animalidade
selvagem em absoluto.825 Conceptualmente, estes textos postulam um vazio

819
“Relação da perdição do Galeão São João vindo da India na Costa da Cafraria de que hera Cappitam
Manuel de Sousa Sepulueda”, B.P.E. (letra do século XVIII), códice com a cota CXV/2-8, fl. 52 vº.
820
Gaston BACHELARD, The Poetics of Space. The classic look at how we experience intimate spaces,
Boston, Beacon Press, 1994, p. xx.
821
IDEM, ibidem, p. xix.
822
IDEM, ibidem, p. xxi.
823
Ana Isabel BUESCU, op cit., p. 18.
824
Também Alfredo Margarido afirma que a fixação escrita do naufrágio alarga a oralidade, permitindo a
normalização dos diferentes acidentes das narrativas. Alfredo MARGARIDO, “O trabalho de luto nos
relatos dos naufrágios”, (…), p. 82.
825
“Relação da mui notável perda do Galeão Grande S. João em que se contam os grandes trabalhos e
lastimosas cousas que aconteceram ao Capitão Manuel de Sousa Sepúlveda e o lamentável fim que ele e

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

civilizacional, associado ao estereótipo da “terra inculta”, vazio esse preenchido com


imagens de “animais brauos”, devoradores de humanos, e de negros traiçoeiros 826,
destinados a reforçar o carácter antinómico deste locus estranho.
O referido manuscrito avulso da Biblioteca Pública de Évora827, contendo um
curto relato deste naufrágio, classifica a praia da tragédia como “fremosa”, mas “tudo o
mais herão rochas asperissimas em que não havia esperança de saluação”.828 O texto
encerra em si uma dimensão geográfica subjectiva, que associa a terra de cafres a um
território agreste e selvagem, onde foi experienciada colectivamente a tragédia, o
sofrimento e a expiação dos pecados829.
A par da transubjectividade, os relatos do naufrágio do galeão S. João
contribuiram também para o desenvolvimento de uma geografia positiva, destacando-se
neste caso o registo das particularidades da baía de Lourenço Marques, nomeadamente
os vários rios que faziam a grandeza daquela barra: Beligane, Anzate, Ofume e
Manhiça.830
Dois anos após a perdição do galeão S. João ocorreu, no mesmo litoral do sudeste
africano, na foz do rio Msikaba, o naufrágio da nau S. Bento (1554). Manuel de Mesquita
Perestrelo descrevia a fúria dos ventos e a tormenta marítima como prenúncios da
perdição do navio: “uma onda, que de muito longe vinha levantada por cima das outras
todas em demasiada altura, (…) que não pareciam ser senão diabos”831 e a “grossura dos
mares” contribuiam para o entupimento das bombas, a inundação dos porões e a abertura
de fendas no costado do navio, fazendo a todos perceber que estava próximo o “derradeiro
ponto”.832 A “vista da terra”, no “Cabo do Arrecife”833, se por um lado alimentou a
esperança de salvamento da morte no mar, por outro lado, aumentou a angústia colectiva,
pois pronunciava outra tragédia, associada a um conjunto de elementos definidores de

sua mulher e filhos, e toda a mais gente, houveram na Terra do Natal, onde se perderam a 24 de Junho de
1552”, in H.T.M., Vol. I, (…), p. 27.
826
IDEM, ibidem, p. 34.
827
“Relação da perdição do Galeão São João vindo da India na Costa da Cafraria de que hera Cappitam
Manuel de Sousa Sepulueda”, B.P.E., CXV/2-8, fls. 46-54 vº.
828
IDEM, ibidem, fl. 48
829
IDEM, ibidem, fl. 53.
830
IDEM, ibidem, fl. 51.
831
Manuel de Mesquita PERESTRELO, “Relação Sumária da viagem que fez Fernão D’Álvares Cabral
desde que partiu deste Reino por Capitão-mor da armada que foi no anno de 1553 às partes da Índia até que
se perdeu no Cabo de Boa Esperança no ano de 1554”, in H.T.M., Vol. I, (…) p. 53.
832
IDEM, ibidem, p. 57.
833
IDEM, ibidem, p. 56.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

uma terra em “negativo”. Após o episódio da fúria marítima e da perdição do navio, o


olhar dirige-se para as “ingremes serras e bravas penedias daquela tão estranha e bárbara
terra”.834
A memória recente da perdição do galeão S. João e dos tormentos passados pelos
náufragos sobreviventes justificavam a adjectivação aplicada ao território que se oferecia
como “tábua de salvação”. Na praia do naufrágio espalhavam-se “fazendas, drogas
odoríferas, coisas preciosas” e, no desespero para alcançar a terra, sucumbiam vidas na
turbulência das vagas, onde flutuavam todo o tipo de destroços do navio. Este cenário
caótico convidava à reflexão sobre o valor da ambição e da riqueza, da pobreza e do
despojamento da matéria e de como são ténues os limites entre a vida e a morte.
Passadas as barreiras da tempestade e da perdição do navio, revelava-se a terra
firme, a “praia grande de areia”, na “boca do rio do Infante”.835 Nesta praia ficara a
“ossada” da nau836, como se as areias simbolizassem uma macro-sepultura dessacralizada
a partir da qual se abria um pórtico simbólico para a “terra estranha”, que acolhia como
“abrigo e companhia”837 e que, ao mesmo tempo, exilava e desterrava, num processo que
implicava o sacrifício de todos os elementos identitários.
Nas palavras de Perestrelo, o areal é partilhado com a “aspereza dos penedos em
que sairam, que eram tão ásperos e pontiagudos”.838 O reforço pleonástico da “aspereza”
da terra define um tópico recorrente em todos os relatos de naufrágios, não só
caracterizando os locais de encalhe dos navios, como também definindo a natureza do
espaço por onde os náufragos peregrinaram rumo a um porto conhecido, na esperança de
resgate. Dona Leonor de Sá trilhara, em 1552, “áperos caminhos tão trabalhosos”.839
Ásperos eram os matos e os desertos estéreis, as veredas de elefantes840 que existiam em

834
IDEM, ibidem. (sublinhado nosso)
835
IDEM, ibidem, p. 57.
836
IDEM, ibidem, p. 67.
837
IDEM, ibidem, p. 67.
838
IDEM, ibidem, p. 60.
839
“Relação da mui notável perda do Galeão Grande S. João em que se contam os grandes trabalhos e
lastimosas cousas que aconteceram ao Capitão Manuel de Sousa Sepúlveda e o lamentável fim que ele e
sua mulher e filhos, e toda a mais gente, houveram na Terra do Natal, onde se perderam a 24 de Junho de
1552”, in H.T.M., Vol. I, (…), p. 31.
840
Manuel de Mesquita PERESTRELO, “Relação Sumaria da Viagem que fez Fernão de Álvares Cabral
desde que partiu deste Reino por Capitão-mor da armada que foi no ano de 1553 às partes da Índia até que
se perdeu no Cabo de Boa Esperança no ano de 1554”, in H.T.M., Vol. I, (…), ps. 67 e 96.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

vez de caminhos humanos. Ásperas eram as serras, os outeiros, as costras íngremes cheias
de “penedos, ervas e mato”.841
A transitoriedade da presença dos sobreviventes deste e de outros naufrágios
condiciona em muito a percepção do espaço, enquanto heterotopia ou grandeza
contrastante,842 uma vez que os textos sublinham a ausência de caminhos e construções
feitas pela mão do homem, o que definia para este território uma marginalidade, em
termos dos referenciais civilizacionais.
Nesta percepção de uma terra contrastante são comuns as expressões relativas à
esterilidade do solo, que apenas produzia “raízes e bagas do mato”.843 Apesar do
predomínio descritivo de paisagens inóspitas, o texto deixa abertura para as semelhanças
ou para a evocação de imagens míticas que alimentavam a esperança, como as sugeridas
pelo abrigo nocturno encontrado nas moitas, junto a um cômoro. 844 Foi junto à árvore
bíblica que os náufragos se abrigaram após grandes frios e tempestade de areia, que lhes
deixou o corpo em chagas.845
Ainda que, em certas passagens da peregrinação por terra, os náufragos tivessem
sido acolhidos por comunidades que, praticando a agricultura e a pesca, tinham
abundância de mantimentos, como ocorreu na “Barra da Pescaria”, na área envolvente da
actual cidade de Durban, logo se seguiram “desertos” ou extensões de terra “despovoada
e em extremo estéril de árvores e ervas”. 846 Passado o rio “Medãos do Ouro”,
provavelmente o Umfolozi, foi tanta a carência de alimentos, que os “constrangeu a comer
os sapatos” e “ossos de alimária” no carvão, quase se consumando a antropofagia,

841
IDEM, ibidem, p. 68.
842
Henri LEFEBVRE, op. cit., p. 190.
843
Manuel de Mesquita PERESTRELO, “Relação Sumaria da Viagem que fez Fernão de Álvares Cabral
desde que partiu deste Reino por Capitão-mor da armada que foi no ano de 1553 às partes da Índia até que
se perdeu no Cabo de Boa Esperança no ano de 1554”, in H.T.M., Vol. I, (…), p. 66.
844
O sicómoro ou Ficus sycomorus é uma árvore com um habitat muito disperso, estendendo-se desde o
Médio Oriente a várias partes da África subsahariana, sendo cultivado há milénios. Na maioria das línguas
europeias o seu nome deriva do hebraico “sikmah”, através do grego “sukomorea”. Esta árvore, robusta,
alta e de copa arredondada e densa é, por diversas vezes, citada na Bíblia, como elemento característico das
paisagens campestres. O reconhecimento, pelos náufragos, de uma árvore bíblica nestes territórios africanos
de errância, muito provavelmente desempenhou sentimentos de segurança e proteção.
Cf. “Ficus sycomorus L. subsp. Sycomorus”, http://pza.sanbi.org/ficus-sycomorus-subsp-
sycomorus%C2%A0 (Consultado em 7/10/2020)
845
Manuel de Mesquita PERESTRELO, “Relação Sumaria da Viagem que fez Fernão de Álvares Cabral
desde que partiu deste Reino por Capitão-mor da armada que foi no ano de 1553 às partes da Índia até que
se perdeu no Cabo de Boa Esperança no ano de 1554”, in H.T.M., Vol. I, (…), p. 88.
846
IDEM, ibidem, p. 90.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

impedida pelo capitão para evitar a fama de que comiam gente.847 Devido à fraqueza e à
fome, muitos caminhantes iam ficando pelos matos perante a indiferença sentimental
daqueles que ainda conseguiam caminhar, situação que, segundo o autor, mais parecia de
“alimárias irracionais que por ali andavam pascendo”.848 Como acontecera meio século
antes, em 1505, com os náufragos encontrados por Pero d’Anhaia, os deambulantes
sofriam um processo de morte simbólica, a qual pressupunha a corrupção dos valores
civilizacionais e a aproximação ao estado irracional e selvagem.
Manuel de Mesquita Perestrelo retoma o tópico que associa esta terra ao habitat
da fauna selvagem, sendo comuns as descrições de vastas charnecas onde pasciam
“grande bando de búfanos mecenos, zevras e cavalos”,849 “alimárias, que naquela terra
deviam ser muitas, segundo o infinito género de pegadas com que toda estava coberta”.850
Mesmo próximo dos domínios do rei Inhaca, que inspirara a esperança de salvação entre
os náufragos, é referida uma “mata antiga e grande, onde havia muitos tigres, leões e todo
o outro género de alimárias nocivas”851, de tal modo que durante quatro meses se
verificaram ataques de felinos à povoação grande, “tendo levado mais de 50 cafres”.852
O rio da Alagoa, designado nos textos e nas cartas por rio do “Espírito Santo” ou
de Lourenço Marques, retém a atenção do autor, que fornece dados sobre a sua
hidrografia. Assim, designa os três rios que, de sul para norte, desaguam na ampla baía:
pelo lado sul, o “mar do Zembe”; depois, o rio Santo Espírito, em cujos territórios se
localiza o reino do Inhaca; a norte, o rio Manhiça, associado a outro reino onde ocorreu
o “desbarato” de Manuel de Sousa de Sepúlveda.
O detalhe descritivo acerca da geografia desta baía relaciona-se com a presença
de embarcações portuguesas que aí vinham anualmente fazer o comércio do marfim e
com a economia monetária praticada pois, segundo o autor, foi “o primeiro lugar” onde
aceitaram dinheiro a troco de carne de hipopótamo.853
Para Perestrelo, a expessão “má terra” sintetiza toda a experiência de privação
vivida entre o local do naufrágio e o embarque que resgatou os sobreviventes, nos

847
IDEM, ibidem, p. 103.
848
IDEM, ibidem, p. 90.
849
IDEM, ibidem, p. 96.
850
IDEM, ibidem, p. 93.
851
IDEM, ibidem, p. 112.
852
IDEM, ibidem, p. 114.
853
IDEM, ibidem, p. 108.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

domínios do Inhaca, junto à baía de Lourenço Marques. A “má terra” correspondia a uma
parte da Etiópia ainda não conhecida dos europeus: “estranha, estéril e quase não
conhecida costa da Etiópia”, onde os náufragos passaram
“(…) por tantas brigas, por tantas fomes, calmas, frios e sedes, nas serras, vales e
barrancos, e finalmente, por tudo aquilo que se pode imaginar contrário, medonho,
pesado, triste, perigoso, grande, mau, desditoso, imagem da morte e cruel, onde tantos
homens, mancebos, rijos e robustos, acabaram seus dias, deixando os ossos insepultos
pelos campos e as carnes sepultadas em alimárias e aves peregrinas, e com suas mortes a
tantos pais e irmãos, a tantos parentes, a tantas mulheres e filhos, cobertos de luto neste
reino.”854

A categorização de uma terra como “estranha”, marginal e oponente contribui para


a imagem de um novo espaço africano, que está em construção e que é ainda escassamente
mapeado855.
Em 1585, a nau Santiago, na sua viagem de ida para a Índia, dobrava o Cabo da
Boa Esperança e navegava os litorais da “terra do Natal”, designação atribuída ao milagre
de “quem escapa das grandes tormentas que nela sempre há pode com razão dizer que
nasce”.856 Esta explicação, acrescentada ao relato de Manuel Godinho Cardoso, na edição
de Bernardo Gomes de Brito, retoma a noção de que a transição Atlântico - Índico, por
via da navegação entre o Cabo da Boa Esperança e o Canal de Moçambique, era em si
mesmo um trajecto iniciático, marcado por perigos, avisos e prognósticos. A este respeito,
a versão incluída na História Trágico-Marítima menciona um “peixe que ninguém soube
determinar” qual seria, mas cuja “feição era de uma baleia não muito grande, fusco e mal
encarado (…) e nunca os desamparaou até a noite em que se perderam”857, como se
tivesse intenção de guiá-los “para alguma desaventura”.858
A nau Santiago naufragou de noite, fracturando-se nos recifes e penedos de um
baixio que muitos supunham ser o Baixo da Judia, mas que o autor sustenta ser um outro,
pois o Baixo da Judia estaria localizado na altura de 22º, além de que diziam ter areia,

854
IDEM, ibidem, p. 123.
855
IDEM, ibidem, p. 74: “topámos um rio que não está posto nas cartas”.
856
Manuel Godinho CARDOSO, “Naufrágio da Nau Santiago no ano de 1585 e Itinerário da gente que
dele se salvou”, in H.T.M., Vol. II, (…), p. 164.
857
IDEM, ibidem, pp. 162-163.
858
IDEM, ibidem, p. 167.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

praia, terra, árvores, e este, onde o navio encalhou, seria em 21º30’ de latitude sul, não
dispondo de nenhuma das referidas conhecenças. É destacada a ausência de sinalização
do baixio “nas cartas antigas de marear” 859, facto atribuído ao descuido de pilotos e
cartógrafos, mas que reforça a concepção de um vasto espaço marítimo no sudeste
africano, ainda por conhecer e mapear.
O texto de Manuel Godinho Cardoso, com o título “Relaçam do Naufragio da Nao
Santiago, & itenerario da gente que delle se salvou”, foi editado em Lisboa, por Pedro
Craesbeeck, no ano de 1602.860 Foi este texto que Gomes de Brito acrescentou, no século
XVIII, com dados sobre o itinerário da nau desde Lisboa até ao Canal de Moçambique 861
e terá sido, também, com base neste texto, que foi redigido o relato incluído no códice
737, da Biblioteca Pública Municipal do Porto.862 Esta versão, incluída numa colectânea
manuscrita de naufrágios, do século XVII, segue muito ao pé da letra o texto publicado
em 1602, diferindo geralmente na pontuação ou em detalhes descritivos, alguns com
assinalável extensão, nomeadamente os que se reportam às bocas do Zambeze.
Inclinamo-nos para que a versão incluída no códice 737 seja a mais próxima do que terá
sido o texto original de Manuel Godinho Cardoso, pois os manuscritos dos autores ao
serem editados passavam por um processo de intervenção técnica, que incluía revisão do
texto, alteração da pontuação, acréscimo de informações provindas de outras fontes
escritas e orais e ainda, posteriormente, o processo complexo da impressão tipográfica.863
Todas estas intervenções resultavam no “processo colectivo” de construção da
materialidade e textualidade de uma obra.
Nas palavras do autor da compilação manuscrita,

859
IDEM, ibidem, pp. 170-173.
860
Manuel Godinho CARDOSO, Relaçam do naufragio da nao Santiago, & itenerario da gente que delle
se salvou. Escrita/ por Manoel Godinho Cardozo, Em Lisboa, impresso por Pedro Crasbeeck, 1602.
861
De acordo com nota de António Sérgio, a versão deste naufrágio, da mão de Manuel Godinho Cardoso,
a qual se inicia com a narração da catástrofe, teria sido acrescentada por Bernardo Gomes de Brito. A
narrativa detalhada da viagem, desde a sua largada de Lisboa, passando pelas calmarias equatoriais, a
passagem do Cabo da Boa Esperança e navegação pelo Canal de Moçambique até à sua perdição ter-se-ia
baseado em manuscritos hoje desconhecidos. Veja-se Manuel Godinho CARDOSO, “Naufrágio da Nau
Santiago no ano de 1585 e Itinerário da gente que dele se salvou”, in H.T.M., Vol. II, (…), pp. 156-157.
862
“Naufragio Horrendo de Fernão de Mendonça 1585.”, in Rellação de Varios Naufragios, B.P.M.P., Cod.
737, fl. 35.
863
Roger CHARTIER, “Ecrit et Cultures dans l’Europe moderne”, comunicação proferida em seminário
no âmbito de uma Cátedra entre o Collége de France e a Universidade de Lisboa (ULisboa), Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian (Auditório 3), 30/05/2014. Veja-se, a este propósito, a obra recentemente
publicada de Roger CHARTIER, José Damião RODRIGUES e Justino MAGALHÃES (org.), Escritas e
Cultura na Europa e no Atlântico Modernos, Lisboa, Centro de História e Instituto de Educação da
Universidade de Lisboa, 2021.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

“(…) o que fes este naufragio mais medonho foy ser de noite, e tão escura, que mal se
vião huns a os outros; a grita, e confusão da gente era grandissima, como de homens, que
se vião sem nenhuma esperança e remedio, no meyo do mar que bramia, com a morte
diante dos olhos, na mais triste, e horrenda figura que imaginar se pode em nenhum dos
naufragios passados”. 864

De acordo com o relato incluído no Códice 737, quase meio milhar de almas foram
confessadas na noite do naufrágio pelos religiosos que seguiam a bordo, pois todos se
preocupavam naquela hora mais com a “salvação das almas, por quão desenganada se
vira da dos corpos”.865
A circum-navegação meridional do continente fazia-se com grandes perigos,
todos eles marcos iniciáticos no percurso marítimo pelo globo. A costa do cabo da Boa
Esperança já havia sido explorada com objectivos associados a uma maior segurança nas
navegações. Porém, este naufrágio, num atol de coral do Canal de Moçambique, ampliava
uma visão geográfica desfavorável, associada à grande margem de desconhecimento
daquela periferia do mundo. Num plano subjectivo, tal periferia englobava primeiro, o
espaço marítimo e, depois, a terra africana, como se as águas que bramiam e conduziam
as naus a destroços e ruína, se comportassem como uma vasta aura líquida envolvente da
terra dos cafres.
As referências geográficas patentes no relato de Manuel Godinho Cardoso
definem uma concepção que cruza a denominação clássica de Etiopia866, aplicada à massa
continental africana, com a mais recente designação de terra dos cafres, assinalando um
espaço com identidade específica, no sudeste do continente.867
À extensão territorial designada por terra dos cafres correspondia um imaginário
fixado em relatos de naufrágios anteriores, os quais concebiam a praia como um lugar de
contacto com o oponente antropológico:

864
“Naufragio Horrendo de Fernão de Mendonça 1585.”, in Rellação de Varios Naufragios, B.P.M.P., Cod.
737, fl. 35 vº. Passagem textual muito próxima à da versão de Manuel Godinho CARDOSO integrada na
História Trágico-Marítima, Vol. II, (…), pp. 167-168.
865
“Naufragio Horrendo de Fernão de Mendonça 1585.”, in Rellação de Varios Naufragios, B.P.M.P., Cod.
737, fl. 35 vº.
866
Manuel Godinho CARDOSO, “Naufrágio da Nau Santiago no ano de 1585 e Itinerário da gente que
dele se salvou”, in H.T.M., Vol. II, (…), p. 210.
867
O códice 737, da B.P.M.P., não obstante seguir muito de perto o texto publicado em 1602, diverge por
omissão em certas passagens do texto, nomeadamente na utilização do conceito geográfico clássico de
Etiópia.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

“em uma praia de bárbaros”868;

“saídos destes trabalhos do mar, começaram a experimentar os da terra, que os estavam


esperando; porque, no mesmo dia que desembarcaram, deram alguns cafres sobre eles e
os despiram a todos, dando duas azagaiadas ao Padre Frei Tomás Pinto e ferindo num
olho a um marinheiro; e esta foi a boa hospedage que na terra tão desejada de todos
acharam”.869

Aqueles que no batel salva-vidas escaparam do naufrágio vieram a sofrer pela


oposição de populações autóctones, pelos males de águas peçonhentas e pelo clima
agreste, marcado por grandes amplitudes térmicas, sendo que, a novidade digna de registo
foram os frios extremos, que permitiram relativizar as concepções geográficas mais
antigas sobre a zona tórrida, um mito perene, com um complexo imaginário antropológico
associado:

“quão errados vão os que dizem «na zona tórrida não há frio», o que parece se deve
entender nos que habitam junto à Linha equinocial; e nesta terra não durava mais o frio
que até uma hora depois do sol saído, e todo o mais dia até o pôr do sol era a calma
insuportável”.870

No macro espaço continental desta Etiópia, o texto impresso destaca


positivamente o rio de Cuama, por ser rodeado de terras férteis e abundantes, e o reino de
Chicova, pela abundância em ouro e prata.871
“O rio a que os portugueses chamam Cuama é um dos famosos da Etiópia, e que pelas
notáveis coisas que em si tem pode competir com os tão celebrados rios Ganges e
Nilo”.872

868
Manuel Godinho CARDOSO, “Naufrágio da Nau Santiago no ano de 1585 e Itinerário da gente que
dele se salvou”, in H.T.M., Vol. II, (…), p. 186.
869
IDEM, ibidem.
870
IDEM, ibidem, p. 188.
871
IDEM, ibidem, pp. 212-213.
872
IDEM, ibidem, pp. 210-211.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Porém, a benignidade associada a estas terras, decorrente da sua riqueza material,


é atenuada pelo carácter doentio atribuído ao clima.873 Também Duarte Gomes Sólis, um
dos sobreviventes deste naufrágio, numa passagem da sua obra Alegación en favor de la
Compania de la India Oriental, referindo-se à região entre Quelimane e Luabo e entre
Sena e Tete, confirma ser “la tierra en si tan enferma” e “de mal clima”.874
Em 1589, a nau S. Tomé afundava-se nas proximidades da actual Kosi Bay, a norte
da Terra do Natal, cerca de cinquenta léguas a sul da baía de Lourenço Marques.875
O texto que havia de celebrizar esta tragédia foi escrito por Diogo do Couto, em
1611, na obra Vida de D. Paulo de Lima Pereira,876 da qual seria extraída a Relação do
naufrágio da nao S. Thomé na Terra dos Fumos, no anno de 1589, impressa pela primeira
vez em 1736, quando integrada no volume II da compilação de Bernardo Gomes de Brito,
História Trágico-Marítima.877
Porém, o relato de testemunha mais antigo que conhecemos, veio da pena do sota-
piloto da nau, Gaspar Ferreira Reimão, datado de 1590.878 O título deste relato inclui duas
referências à “terra de cafres”, situação que é significativa da divulgação e uso corrente
desta classificação toponímica.
Certamente terão sido redigidas outras versões deste naufrágio, após o resgate dos
sobreviventes que, tendo permanecido um ano na ilha do Inhaca, foram finalmente
recolhidos por um navio de Moçambique. Um dos textos que relata este naufrágio,

873
IDEM, ibidem, pp. 213-214.
874
Duarte Gomes SOLIS, Alegación en favor de la Compania de la India Oriental y comércios
ultramarinos que de nuevo se instituyó en el reyno de Portugal, Alcalá de Henares, Universidad
Complutense, 1628, p. 273.
875
Diogo do COUTO, “Relação do Naufrágio da Nau S. Tomé na Terra dos fumos, no ano de 1589 e dos
grandes trabalhos que passou D. Paulo de Lima nas terras da Cafraria, até sua morte”, in H.T.M., Vol. II,
(…), p. 239.
876
Esta obra, redigida em 1611, a pedido de D. Ana de Lima, irmã de D. Paulo de Lima, ficaria manuscrita
até à impressão de 1765, com o título: Vida de D. Paulo de Lima Pereira Capitam Mór de Armadas do
Estado da Índia, onde por seu valor, e esforço nas batalhas de mar, e terra, de que sempre conseguio
valerosas vitórias, foy chamado o Hercules Portuguez, Lisboa, Na Officina de Jozé Filippe, 1765.
877
Diogo do COUTO, “Relação do Naufrágio da Nau S. Tomé na Terra dos Fumos, no ano de 1589 e dos
grandes trabalhos que passou D. Paulo de Lima nas Terras da Cafraria, até sua morte”, in H.T.M., Vol. II,
(…), pp. 217-266.
878
Gaspar Ferreira REIMÃO, “Trattado dos grandes trabalhos que passarão os portuguesses, que se
saluarão do espantosos naufragio que fez a nnaao São Thome que vinha pera o Reino no Anno 1589, a qual
abrindo muita agoa, querendo se hir ao fundo perto da terra do Natal se meterão no batel e nelle nauegarão
ate hirem dar em terra de caferes, pela qual caminharão duzentas legoas passando muitos trabalhos, fomes,
perigos, necessidades, ate nosso senhor ser seruido de traser alguns deles a terras de christãos, e os mais
acabarão as vidas por teras de cafres, com muito desemparo, como neste tratado se vera. Feito por Gaspar
Ferreira sotapiloto da mesma Naao Anno de 1590”, in Kioko KOISO, op. cit., Vol. II, pp. 563-623.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

integrado na já referida compilação manuscrita do século XVII, afirma que de


Moçambique se “tornarão para a India. (…) os que escaparão deste infortunio, ate que
tiuerão comodidade de passar a Goa”.879 Na época, as notícias sobre esta perdição terão
circulado na oralidade e na escrita, causando impacte, tanto em Goa, como no reino. A
prova de que diversas versões circularam está na existência de textos manuscritos, como
os que se encontram depositados na Biblioteca Pública de Évora 880, os que integram
complilações de diversos naufrágios, como o códice 737, da Biblioteca Pública Municipal
do Porto881, ou, ainda, o manuscrito da Livraria 1076, da Torre do Tombo.882
Os diversos textos que difundiram a notícia relatam que aos dois meses de viagem,
após largada de Cochim, tornava-se infrutífero o trabalho de tripulantes e passageiros para
bombear a água que havia de fazer submergir a nau, tão perto da costa. A aproximação a
terra fora dificultada pela grande tempestade, que levou a que se lançasse ao mar o batel
de salvação. Seriam sacrificados todos os que não tiveram lugar nesse batel e alguns que
foram alijados ao mar, para garantir que não se repetisse o risco de afundamento por
excesso de peso.883
Apenas 98 sobreviventes alcançariam uma das praias da “Terra dos Fumos” que,
segundo o sota-piloto da nau, “está em 27 1/3 graos yunto da primeira Terra do Natal”,
descrita como uma “praja d’area muito grande chea de muitos medos, ao lomgo dos quaes
auia serrania chea de muito matto espesos que estrouaua ha vista do serttão”.884

879
“Navfragio Lastimozo de Estevão da Veiga. 1588.”, in Relação de Varios Naufragios, B.P.M.P., Códice
737, sem autoria, data desconhecida [século XVII?], fls. 58-61 vº.
880
“Historia de Dom Paulo de Lima escripta por Dom António de Ataíde”, B.P.E., Cod. CXVI/1-24, 278
fólios f.to 8º. “Relaçam do Naufragio da Náo São Thomé de que era Cappitão Esteuão da Veiga, a qual se
perdeo na Terra dos Fumos no anno de 1589, e dos grandes trabalhos, que passou Dom Paulo de Lima e
mais Companheiros nas Terras da Cafraria, até sua morte”, B.P.E., Cod. CXVI/1-22, 407 fólios f.to 8º. Esta
obra, sem menção de autoria, revela grandes semelhanças com o texto do códice com a cota Cod. CXVI/1-
24. Não deixam de existir, porém, algumas diferenças de pormenor, assim como na extensão e na
organização-divisão dos conteúdos. Daí que se tenha optado por apresentar este texto nos Anexos. As
semelhanças e as diferenças entre os conteúdos destes códices, que versam a mesma matéria textual,
interessam-nos, neste ponto, para testemunhar a prática de circulação, apropriação e cópia total ou parcial
de manuscritos, durante o século XVII. Vide Anexos – Doc. 2.
881
“Navfragio Lastimozo de Estevão da Veiga. 1588.”, in Rellação de Varios Naufragios, (…), fls. 58-61
vº.
882
“Naufragio da nao S. Thome aonde se conta a lastimosa perdição d’Dom Paulo de Lima Pereira e de sua
mulher Dona Britis de Monte Rojo”, A.N.T.T., Manuscrito da Livraria 1076, publicado por Kioko KOISO,
op. cit., Vol. II, (…), pp. 625-656.
883
Diogo do COUTO, “Relação do Naufrágio da Nau S. Tomé na Terra dos Fumos, no ano de 1589 e dos
grandes trabalhos que passou D. Paulo de Lima nas Terras da Cafraria, até sua morte”, in H.T.M., Vol. II,
(…), pp. 234-235.
884
Gaspar Ferreira REIMÃO, op. cit., p. 579.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Do local próximo ao do encalhe do batel, iniciaram os náufragos a caminhada no


sentido norte, rumo à baía de Lourenço Marques, e daqui até Inhambane. O extenso
território descrito por Reimão é ladeado de “prajas e mattos”, habitado “de cafres e de
gentes estranhas (…) terra de gentes barbaras e sem resão”.885 O texto destaca o reino de
Gamba, perto de Inhambane, onde o rei e seus filhos, de apelido Sá, haviam sido
baptizados no tempo do Padre Gonçalo da Silveira, sendo então já notório o esquecimento
dos princípios cristãos, por não se verificar uma continuidade no trabalho da
evangelização.886 A Cafraria é apresentada como “tão má terra”, que consome e aprisiona
o corpo e a alma, revelando-se em tudo oposta à “terra de Christãos”.887 O texto do sota-
piloto mostra-se denso em vocábulos que funcionam como verdadeiros descritores do
espaço:
“praia”, “medos de areia”, “pedaço de matto”, “serras”, “valle”, “muitto arvoredo”,
“certtão”, “campinas muito grandes”888; “terra chã”, “demtro dos serttão”889; “matos”890;
terra onde iam “padesemdo muita fome he çede, não comendo senão camgrejos mouros
e algumas fruitas do matto, muitas dellas mais pera mattar que pera darem vida”891; “o
caminho ser asperos”, “sertão”, “alagoa muito grande e fermosa e tam larga como toda a
bahia de Lixboa ou mais”892; “espessura dos mattos e serras”; “vereda”, “pela praja”. 893

Numa tão curta porção do relato, repetem-se os signos definidores do tópico das
paisagens selvagens e inóspitas. Adiante no texto, o autor menciona os ares doentios, as
águas impuras e os muitos animais ferozes, que agravavam o carácter antinómico da
terra.894
Porém, aponta também algumas semelhanças, positivas, entre a baía de Lourenço
Marques ou de Maputo e a baía de Lisboa, destacando a grandeza e beleza de ambas e
estabelecendo um elo conceptual e retórico com a unidade do mundo. Através da

885
IDEM, ibidem, p. 580.
886
IDEM, ibidem, p. 603.
887
IDEM, ibidem, ps. 580 e 616.
888
IDEM, ibidem, p. 581.
889
IDEM, ibidem, p. 582.
890
IDEM, ibidem, p. 583.
891
IDEM, ibidem, p. 584.
892
IDEM, ibidem, p. 585.
893
IDEM, ibidem, p. 586.
894
IDEM, ibidem, pp. 604-605.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

analogia, podemos falar num processo de apropriação simbólica de um espaço situado


naquilo que, para os portugueses da época, era considerado uma periferia do mundo.
Estamos no domínio da constatação dos sentidos, aquilo que Luís Filipe Barreto
designa de “realismo empírico”, com o qual a realidade se constrói a partir “um infinito
jogo de qualitativas semelhanças, jogo de redes de analogia e diferença em que tudo faz
apelo a tudo, de tal modo que a realidade do mundo funciona como todo orgânico e global
aberto à memória visual”.895
É com o tratado de Reimão (1590), que se afirma nos textos de naufrágios o
topónimo Cafraria, aplicado a um espaço geográfico muito vasto.896 Esta categoria
geográfica, fixada num macro-topónimo, corresponde a uma determinada forma de
percepcionar o espaço e ao modo como se foi construindo, em diferentes momentos, uma
concepção desse mesmo espaço. Mas o topónimo integra também uma semântica
enraizada nos imaginários que remontam aos primeiros contactos dos portugueses com a
costa oriental africana, quando o vocábulo “cafre” passou a ser usado por referência às
populações bantus não islamizadas. O processo linguístico, que acrescentou o sufixo
designativo de lugar <-aria> ao substantivo cafre, veio criar um novo vocábulo que
sintetiza e consolida a significação original de “terra de cafres”, substituindo-se-lhe
progressivamente na construção textual.
Desde a utilização singular do topónimo no relato do naufrágio do galeão S. João,
este não havia sido mais usado nos textos relatando naufrágios, até ao tratado de Gaspar
Ferreira Reimão. A partir deste texto, a designação de Cafraria, aplicada ao espaço
geográfico, também conhecido por Costa do Cabo de Boa Esperança ou terra de cafres,
iria transitar para os textos de naufrágios redigidos posteriormente. Aos poucos,
consolidava-se a categoria geográfica, com base na categoria antropológica de cafre.
O topónimo já tinha sido usado na correspondência missiológica jesuíta relativa à
África Oriental e terá sido a partir desse registo erudito que se alargou a outros circuitos
de escritas que versavam as viagens e os naufrágios. Desde a primeira missão jesuíta de
Inhambane, até à morte do Padre Gonçalo da Silveira, em 1560, a denominação de

895
Luís Filipe BARRETO, Descobrimentos e Renascimento. Formas de Ser e Pensar nos Séculos XV e
XVI, (…), p. 137.
896
IDEM, ibidem, p. 585 - “toda aquella cafraria”; p. 594 - “por toda a Cafraria”; p. 596 – “se pode atrauesar
toda hesta Cafraria”; p. 599 – “por toda aquella Cafraria”; p. 609 - “en toda aquella Cafraria”; p. 613 – “por
esta Cafraria”; ps. 617 e 619 – “por toda aquella Cafraria”; p. 620 – “naquela Cafraria”.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Cafraria é usada nas cartas dos missionários, para definir a extensa costa desde o Cabo
da Boa Esperança até Inhambane e aos Rios de Cuama. O Padre Gonçalo da Silveira
referia-se, em Novembro de 1559, ao contexto da missão de Inhambane:
“a missão he pera a cafraria gente toda negrissima a qual mora na costa do cabo que
chamão boa esperança e se estende muito como la podereis ver no mapa mundi”.897

Desconhece-se qual o mapa mundi a que se referiria Gonçalo da Silveira, mas a


cartografia portuguesa sua contemporânea ainda não transpunha para o contorno oriental
do desenho africano a legenda toponímica Cafraria. A título de exemplo, refira-se o
planisfério de Lopo Homem, de 1554, do qual está ausente o novo topónimo.898 O traço
recorrente na cartografia portuguesa da época é a grande legenda “Bonaspes”, no sul do
continente, assim como a intensa toponímia de natureza roteirística, acompanhando a
linha do litoral africano. Tal característica é também observável nos planisférios de Diogo
Ribeiro, sendo que o de 1529 integra elementos iconográficos, como elefantes, aves e
outros animais exóticos, imagens de construções e árvores, que preenchem os vazios do
mapa, assim como elementos toponímicos, que atestam uma resistência da matriz
ptolomaica, como são os Montes Lunae e Paludes Nili, destacando-se, no Índico, o Sinus
Barbaricus.899
A acção missionária de Gonçalo da Silveira, entre Inhambane e o Monomotapa, e
a sua morte neste reino, seria assumida entre os cristãos como verdadeira epopeia de um
mártir e funcionaria como referência para todas as epopeias, incluindo as que foram
experienciadas por náufragos em territórios da África do sudeste. Daí que, as escritas
sobre naufrágios ocorridos nesta costa venham a integrar o topónimo Cafraria,
consolidado naquela região a partir da oralidade e atestado na escrita, pelo menos desde
a década de 50 do século XVI.
No relato redigido por Diogo do Couto, o topónimo Cafraria corresponde
claramente a um espaço regional específico, integrado na “terra a que os geógrafos

897
“Carta (copia) do Padre D. Gonçalo para os Irmãos da Companhia de Jesus de Portugal”, in D.P.M.A.C.,
Vol. VII, (…), p. 420.
898
Portugaliae Monumenta Cartographica, Armando Zuzarte CORTESÃO e Avelino Teixeira da MOTA
(ed. de), Vol. I, Lisboa, Comissão para as Comemorações do V Centenário da Morte do Infante D.
Henrique, 1960, Estampa 27.
899
IDEM, ibidem, Vol. I, Estampas 37, 38, 39 e 40.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

chamam África”.900 Os textos das obras Vida de D. Paulo de Lima Pereira901, da qual faz
parte integrante o conteúdo da Relação do Naufrágio da Nao S. Thomé902, e das Décadas
IX903 e XI904, fixaram no topónimo Cafraria os significados e intersubjectividades já
presentes na expressão terra de cafres.
A designação referencia um espaço geográfico que, sendo muito amplo, é cada
vez mais definido e balizado, abrangendo toda a costa desde o Cabo da Boa Esperança
até ao Cabo das Correntes e estendendo-se até à Zambézia pois, segundo Diogo do Couto,
inclui as terras conquistadas por Francisco Barreto e Vasco Fernandes Homem - os
“reinos de Monomotapa e de todos os mais daquele sertão, e marítimos, desta Etiópia
interior”.905
As vastas descrições e informações veiculadas por Diogo do Couto, sobre a
Cafraria, as suas populações e formas de organização sociopolítica, são, em parte,
resultado de testemunhos orais e escritos que foi reunindo e papéis diversos a que teve
acesso, como cronista e guarda-mor do tombo de Goa. O relato do naufrágio da nau S.
Tomé e das desventuras dos sobreviventes em territórios do sudeste africano permite um
levantamento de descritores relativos, tanto ao espaço geográfico natural, como ao espaço
político, uma vez que nomeia as autoridades locais e respectivas áreas de implantação
territorial.

900
Diogo do COUTO, “Relação do Naufrágio da Nau S. Tomé na Terra dos Fumos, no ano de 1589 e dos
grandes trabalhos que passou D. Paulo de Lima nas Terras da Cafraria, até sua morte”, in H.T.M., Vol. II,
(…), p. 240.
901
IDEM, Vida de D. Paulo de Lima Pereira, Capitam Mór das Armadas do Estado da Índia, onde por seu
valor, e esforço nas batalhas de mar, e terra, de que sempre conseguio gloriosas vitórias, foi chamado o
Hercules Portuguez, (…). Ao título, o autor acrescenta: “Com huma descripção, que de novo deixou feita
o mesmo Author desde a Terra dos fumos até o Cabo das Correntes, para muitos útil, e para todos grata”.
902
IDEM, “Relação do Naufrágio da Nau S. Tomé na Terra dos Fumos, no ano de 1589 e dos grandes
trabalhos que passou D. Paulo de Lima nas Terras da Cafraria, até sua morte”, in H.T.M., Vol. II, (…), 217-
266.
903
A respeito da Década IX, é de destacar que, juntamente com a Década VIII, o texto manuscrito passou
por inúmeras peripécias, envolvendo roubo e perda da versão integral inicial, sendo depois reescrito a partir
das memórias, notas e versões resumidas de Diogo do Couto. A versão reescrita só conheceria os prelos a
partir da 2ª metade do século XVII. Sabe-se, no entanto, que em 1608, o historiador trabalhava na redacção
desta década. Veja-se Maria Augusta Lima da CRUZ, “Década 8ª da Ásia de Diogo do Couto – informação
sobre uma versão inédita”, in Arquipélago. Série Ciências Humanas, Nº. 6 (Jan. 1984), pp. 151-166;
António Coimbra MARTINS, “História de Diogo do Couto e dos seus livros”, in Sep. da Revista da
Universidade de Coimbra, Vol. XXXVI, 1991, pp. 73-118.
904
Diogo do COUTO, Década XI da Ásia, Cap. 3, Lisboa, Na Regia Officina Typografica, 1788.
905
IDEM, “Relação do Naufrágio da Nau S. Tomé na Terra dos Fumos, no ano de 1589 e dos grandes
trabalhos que passou D. Paulo de Lima nas Terras da Cafraria, até sua morte”, in H.T.M., Vol. II, (…), p.
239.

239
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Para Diogo do Couto, a Cafraria descrita neste relato de naufrágio tem como
ponto de referência central a baía de Lourenço Marques, e é a partir deste elemento
geográfico que organiza os reinos e poderes de “bárbaros costumes e leis”. 906 São
descritas as duas ilhas frente à grande baía: Choambone, povoada por sete aldeias, e
Setimuro, despovoada de autóctones e espaço de alojamento para os portugueses, que ali
se deslocavam ao trato do marfim. No lado meridional da baía, ficava o reino do Inhaca,
cujos domínios se estendiam para sul até ao nordeste do reino de Viragune. Este, era já
na “Terra dos Macomates”907, expressão apontada como sendo a das populações locais,
correspondendo à nomeação portuguesa de “Terra dos Fumos”, tal como era conhecida
aquela costa nas cartas de marear.
A designação de “Macomates” seria, muito provavelmente, a transposição, para o
texto, de informações provenientes da tradição oral africana sobre a auto-nomeação dos
grupos humanos, a partir dos elementos geográficos dominantes, como os rios.908 Os
territórios descritos eram habitados por populações de cultura Tsonga, e o seu nome
étnico teria derivado do rio Komati ou Incomati. Ao tempo do naufrágio da nau S. Tomé,
o rei Viragune seria a autoridade política desta “Terra dos Macomates” ou “Terra dos
Fumos” e o seu território estendia-se até 30 léguas pelo sertão.909
Diogo do Couto refere, ainda, um outro rio, onde encalhou o batel com os
sobreviventes desta perdição, localizado a 27 ½ º S, cinquenta léguas a sul de Lourenço
Marques. Tal rio andava sem nome nas cartas de marear, mas os práticos que ali se
deslocavam para o comércio do marfim, chamavam-lhe rio “de Simão Dote”, o nome de
um português que aí fora ter num pangaio, fazendo o seu reconhecimento.910 Estamos
perante registos que testemunham o progressivo avanço da geografia experiencial, através
da exploração daquele interface entre os trilhos terrestres e marítimos, traduzindo-se num
conhecimento ainda não transposto para a cartografia. As informações recolhidas têm
sobretudo importância roteirística e decorrem de uma tradição de oralidade entre
marinheiros e práticos que andavam ao comércio naqueles rios.

906
IDEM, ibidem, p. 243.
907
IDEM, ibidem, p. 239.
908
Elizabeth A. ELDREDGE, Kingdoms and Chiefdoms of Southeastern Africa: Oral Traditions and
History, 1400-1830, Rochester, University of Rochester Press, 2015, p. 70.
909
Diogo do COUTO, “Relação do Naufrágio da Nau S. Tomé na Terra dos Fumos, no ano de 1589 e dos
grandes trabalhos que passou D. Paulo de Lima nas Terras da Cafraria, até sua morte”, in H.T.M., Vol. II,
(…), p. 240.
910
IDEM, ibidem.

240
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

A sul do reino de Viragune, estendendo-se pelos sertões até à latitude do rio de


Santa Luzia, a 28 ¼ º S, é referido o reino de Mocalapapa.911 Para sul da lagoa de Santa
Luzia, na primeira Terra do Natal, localizava-se o reino do Vambe, onde alguns
portugueses também costumavam fazer comércio de marfim.912
Para sul do rio Umfolozi, que corre pelo “sertão do rio de Santa Luzia”, até ao
cabo da Boa Esperança, estendia-se um vasto território governado por inKosis, as
chefaturas, que correspondiam a estruturas socio-políticas de pequena escala, quando
comparadas com as designadas por “reinos”:
“E deste reino, que toma muita parte da terra que chamam do Natal, até o Cabo da Boa
Esperança não há Reis, e tudo é possuído de senhores que chamam Ancores, que são
cabeças e regedores de três, quatro e cinco aldeias”. 913

Para norte da baía de Lourenço Marques e do reino do Inhaca, são destacados os


seguintes reinos: Manhiça, Vumo, Anzete, reino de Angomanes, Inhapula e Manuça.
Prosseguindo no sentido norte, encontram-se as populações Caranga do litoral e, no
sertão, a seguir ao Manuça, os reinos de Inhabuze, Pande, Monhibene e Javara. Já no
Cabo das Correntes, são mencionados o reino de Gamba, no litoral, e o reino de
Mocumba, no interior.914
Tal como no texto de Reimão, Diogo do Couto reforça a concepção de uma terra
oponente, onde os caminhos são ásperos, intratáveis, dificultosos, as águas péssimas e os
ares doentios, provocando entre os náufragos “infinitas misérias e necessidades”.915
Em 1593, a nau Santo Alberto realizava a viagem de retorno da Índia e estaria
também destinada a um fim trágico no litoral da Cafraria.
O texto que historicamente mais divulgou a perdição da nau Santo Alberto foi
escrito por João Baptista Lavanha, Cosmógrafo-mor do rei, que editou em 1597 o
Naufragio da Nao Santo Alberto, E Itenerario da gente que delle se salvou. De João
Baptista Lavanha Cosmografo mòr de Sua Magestade. Dedicado ao Princepe Dom

911
IDEM, ibidem.
912
IDEM, ibidem.
913
IDEM, ibidem.
914
IDEM, ibidem, pp. 241-243.
915
IDEM, ibidem, p. 262.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Phillippe Nosso Senhor. Em Lisboa. Em Caza de Alexandre de Siqueira, anno


M.D.XCVII. 916
Esta edição do Cosmógrafo-mor, com privilégios do rei, poderá explicar o
esquecimento de outros textos, nomeadamente o relato de um sobrevivente anónimo, que
versa a mesma matéria textual, e que permaneceu manuscrito até aos nossos dias. 917 O
manuscrito anónimo da Biblioteca Nacional, com a cota Cod. 639, além de conter o
testemunho de um sobrevivente, uma descrição vívida e empírica do naufrágio e
salvamento colectivos, apresenta ainda um verdadeiro “roteiro da Cafraria”.
O relato de João Baptista Lavanha foi integrado na vasta compilação da História
Trágico-Marítima Em que se escrevem chronologicamente os Naufragios que tiveraõ as
Naos de Portugal, depois que se poz em exercicio a Navegação da India, feita no século
XVIII, por Bernardo Gomes de Brito, tendo o título inicial sofrido pequenas alterações:
Relação do Naufrágio da Nao S. Alberto, No Penedo das Fontes no anno de 1593. E
Itinerario da gente, que delle se salvou, athè chegarem a Moçambique. Escrita por João
Baptista Lavanha Cosmografo mòr de Sua Magestade No anno de 1597.918 A compilação
de Bernardo Gomes de Brito foi um empreendimento que deu à luz o mais completo
corpus dos relatos de naufrágios e permitiu a emergência de um monumento literário
estruturado a partir de uma unidade temática que tem o mar oceano como eixo central.
Textos avulsos e dispersos passaram a estar agrupados num género marcado não apenas
por uma unidade física, mas também por uma unidade significativa intrínseca.
O naufrágio da nau Santo Alberto é objecto de narrativas incluídas em três
conhecidas compilações: a História Trágico-Marítima, de Bernardo Gomes de Brito,
onde foi integrado o relato feito por João Baptista Lavanha; as Collecções de Naufrágios
das Bibliotecas de Lisboa e Porto, nas quais consta o mesmo texto de Lavanha; e o
manuscrito existente na Biblioteca Pública Municipal do Porto, cujo relato se intitula

916
Os três exemplares que existem na secção de Reservados da Biblioteca Nacional têm sido considerados
contrafacções do século XVIII. Um dos raríssimos exemplares da 1.ª edição de Lavanha encontra-se na
Biblioteca Ducal de Vila Viçosa com a cota Res. BDM 2.º/574. Cf. António Manuel de Andrade MONIZ,
A História Trágico-Marítima: Identidade e Condição Humana, Lisboa, Colibri, 2001, p. 44.
Sobre os raríssimos exemplares da editio princeps de Lavanha, veja-se também Leite FARIA,
“Bibliografia”, in Studia, Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, N.º 20-22, Abril-Dez. 1967,
pp. 295-302.
917
Glória de Santana PAULA, op. cit..
918
João Baptista LAVANHA, “Relação do Naufrágio da Nao S. Alberto, no Penedo das Fontes no anno de
1593. E Itinerario da gente, que delle se salvou, athè chegarem a Moçambique”, in H.T.M., Vol. III, (…),
pp. 9-76.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Navfragio do Capitão Iulião de Faria Cerveira.919 Esta versão da Biblioteca Pública


Municipal do Porto difere do referido manuscrito da Biblioteca Nacional no título, na
forma, no conteúdo e na própria extensão do texto.920
O códice da Biblioteca Nacional com o título Perdição da nao Santo Alberto, e
das couzas da Cafraria, custumes dos que a abitão até o Cabo das Correntes 921 contém
o discurso de um sobrevivente anónimo, na forma de diário-roteiro, no qual ficaram
registadas as vicissitudes da perdição da nau, desde que esta largou de Cochim, até que
se quebrou por entre os rochedos de uma praia próxima ao Penedo das Fontes, na praia
de Kwelera, a sul do rio Kei:
“[...] hera em huma ponta a que os mareantes çhamão Ponta das Fontes que esta em - 32
- graos e meio antre a Bahia Formoza e o Rjo do Ymfante, çhama-se esta ponta na limguoa
dos cafres, Tiombe”.922

Este texto, de autor anónimo, desenvolve um verdadeiro discurso sobre a terra e


as gentes da Cafraria, funcionando como um repertório rico de informações acerca dos
territórios por onde os náufragos caminharam durante três meses, no ano de 1593, entre
o local do naufrágio, na latitude fornecida pelos náufragos, de 32º ½ S, e o reino do
Inhaca, na baía de Maputo. As informações de natureza geográfica, antropológica e
linguística que o autor foi recolhendo nesta aventura colectiva de sobrevivência, são por
si partilhadas com um objectivo utilitário:
“[…] me pareçeo bem fazer este breue sumario tam necessario pera os que pertendem
paçar esta carrejra, lhes ficar em modo de roteiro e que todos os que com o mesmo
trabalho fossem uarar nela uerem ao olho como estes perdidos se souberão gouernar […],
caminhando por caminhos tão asperos e imtrataues per mejo de tanta multidão de cafres
brutos a quem a natureza nigou toda a domesticasom umana”. 923

As vicissitudes da tragédia marítima, os juízos críticos sobre as causas do


naufrágio e as razões da decadência do poderio português no Oriente, as aventuras e

919
“Naufragio do Capitão Iulião de Faria Cerveira”, in B.P.M.P., Reservados – Cod. 737, fólios 62-63.
920
Perdição da nao Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, custumes dos que a abitão até o Cabo das
Correntes, códice manuscrito com grafia do século XVI, Reservados da B.N.P., Cod. 639. Publicado em
Glória de Santana PAULA, op. cit., pp. 105-106.
921
IDEM, ibidem, pp. 111-163.
922
IDEM, ibidem, p. 125.
923
IDEM, ibidem, p. 118.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

desventuras da travessia terrestre, as questões existenciais que se colocam ao autor,


durante a jornada pela Cafraria, mas também o olhar que se fixa na alteridade geográfica
e antropológica, são relatados de forma expressiva por um “curioso” que se achava na
nau e vivenciou os acontecimentos.
Vejamos, então, quais as significações da terra da Cafraria, no relato anónimo do
naufrágio da nau Santo Alberto.
No capítulo introdutório, o autor menciona que os náufragos da Santo Alberto
foram os “omens que mais caminharão por esta parte da Cafraria que todos os que ate oye
sabemos”924 e apresenta genericamente o território da peregrinação: terras de “caminhos
tão asperos e imtrataues”, as “brutas areas de Cafraria”, onde tantos e tão bons fidalgos
sepultaram os seus corpos, nomeandamente Manuel de Sousa de Sepúlveda, com sua
mulher e filhos, e D. Paulo de Lima. Coloca ênfase no sentimento de desterro, nas
inseguranças, incertezas e perigos atribuídos àquele território estranho e distante:
“a aflisão que nossas almas sentirão assy por ser muito lomge nosso porto, como por o
não sabermos nem termos guias que nos leuassem, nem certeza do negro pera passarmos,
nem segurança d’amizade dos negros, passagens dos rjos que tudo com o mais que se nos
ofereçia nos causaua mil empossebelidades de poder ver o fim que dezeyauamos”. 925

Porém, esta terra apresentada como perigosa e adversa é simultaneamente


entendida como um espaço de salvação, na qual ocorre um renascimento simbólico:
“Deos […] nos quis amostrar a terra pera que sobreuindo o trabalho que uejo soubessemos
busqua-la como a busquamos, pera nos saluar”926; “como Deos sabia o vindouro quis que
a vissemos pera a busquarmos pera a nossa saluação como a busquamos quoando nos
uimos haflitos”. 927

À medida que se avança no texto, apesar dos perigos, incertezas e adversidades


continuarem presentes a cada passo, as largas descrições que o autor faz da natureza
africana dão-nos uma outra imagem da Cafraria, à qual chega a ser associado o milagre
da cura:

924
IDEM, ibidem.
925
IDEM, ibidem, pp. 133-134.
926
IDEM, ibidem, p. 120.
927
IDEM, ibidem, p. 128.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

“huma ribeira d’aguoa tam fria e tão emselemte que alguns companheiros hafirmarão que
sendo doente da pedra a semtirão botar com a beberem e em todo tempo que caminharão
a não sentirão”.928

“ouue neste arraial omem de ojtenta anos, e moso de doze, e manquos que da praia
comesaram a caminhar em muletas que (...) sararão ao cabo de oito dias de caminho, mais
ouue que auia omem que auia - vinte e tres anos, que trazia huma çhagua que nem no
esprital com o pao nem com muitas curas a pode sarar, e neste caminho sem lhe por nada
só com o caminhar e comer carne somente e aguoa se lhe sarou, destes milagres ouue
muitos, yuntos a outros que Deos fez aqui por todos”.929

É esta a dimensão da Cafraria, enquanto terra de purificação e catarse que, através


da dimensão trágica e sacrificial do naufrágio e da “peregrinação” por terra, propicia a
libertação dos males do corpo e da alma.930
Tornam-se frequentes as descrições de campinas cheias de feno, de extensos vales
cobertos de gado, de frescas ribeiras e caminhos de formoso arvoredo. A Cafraria revela-
se como uma terra de frescura, abundância e fertilidade:

“nem lenha nem aguoa nos faltou nunqua, que a cada piqueno espaço açhauamos rios,
ribeiras, regates fresquos e amenos pera corasoys mais liures de cuidados de que os nos
traziamos. As terras são as melhores que se podem pedir, e darão tudo que lhes samearem,
melhor e tambem como em Portugual”.931

“caminhamos por terra fresqua muito apraziuel a uista te cheguarmos a luguar acomodado
pera repouzarmos, açhamos por todo este caminho muitas adeñs, perdizes, cordonizes,
pombas, garsas, pardais, coruos, e muitas eruas da Europa, como agrjois, bredos, alecrim,
alorna, pregose, mentratro, amoras da silua, pitos, erva babosa, rabasas, e muitas boninas,

928
IDEM, ibidem, p. 135.
929
IDEM, ibidem, p. 136.
930
Rogério Paulo SILVA, A Catarse na Dimensão Purificadora do Ritual,
https://www.academia.edu/6967089/A_Catarse_na_Dimens%C3%A3o_Purificadora_do_Ritual
(Consultado em 12/07/2017)
931
Perdição da nao Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, custumes dos que a abitão até o Cabo das
Correntes, in Glória de Santana PAULA, op. cit., p. 136.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

e todo o gado vacum é mocho e há muito e muito gostozo, a terra em si é sutilissima e


muito aparalhada pera produzir tudo o que se lhe encomendar”. 932

Chegamos a encontrar percursos onde a sucessão de frescos ribeiros, rodeados de


uma vegetação agradável à vista, quase se aproximam de descrições do paraíso, sendo
frequente a adjectivação “formoso” / “formosa”:
“çheguamos ao longuo dum rjo d’agoa salguada que hia sair ao mar que deuia ser o Rio
do Ynfante ao quoal se metia outro rio que uinha correndo por antre serras fermosyssimas
e arvoredos grandes e uisozos, d’aguoa dose muito hemselente em o quoal andauão
muitos caualos marinhos e patos”.933

“caminhamos por terra chan e muito fermoza e uerde e de bons pastos”.934

“fomos marchando sempre ao nordeste sobindo muitas serras e desemdo muitos vales
muj frescos, e grasiozos e abundantes e prosperos de muitas ribeiras fermozas de agoas
mui christalinas e claras que das serras clissão”.935

“açhamos huma fomte nasida d’area da mais emxelente agoa que numqua uimos da quoal
nasia tres fermozos olhos que todos fazia hum regato que uinha desemdo por antre humas
eruazinhas verdes”.936

É, também, neste espaço sedutor, apelativo dos sentidos, que irrompe o fantástico,
na descrição de um boi com sete cornos:
“vimos demtro em hum curral com outro gado hum boi que lhe sahia da testa hum
tromquo de hum palmo domde se repartião tres cornos que hum lhe cahia em arco sobelos
olhos e outros dous em arco pelas jlharquas que lhe uinhão aos holhos, tinha mais os dous
cornos ordinarjos, e outros dous, que lhe cahião por detras das orelhas, de modo que erão
sete”.937

932
IDEM, ibidem, p. 138.
933
IDEM, ibidem, pp. 134-135. (sublinhado nosso)
934
IDEM, ibidem, p. 138. (sublinhado nosso)
935
IDEM, ibidem, p. 146. (sublinhado nosso)
936
IDEM, ibidem, p. 150. (sublinhado nosso)
937
IDEM, ibidem, p. 151.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

A imagem da terra africana, implícita no relato, constrói-se a partir de uma


interacção entre os referenciais da época, a visão do mundo do autor e o empirismo da
viagem. Nesta complexa síntese, entre as heranças de um imaginário desfavorável e a
experiência vivida, emergem subtilmente representações imagéticas, pois a natureza é,
para além de uma categoria física, uma “estrutura e um inventário de formas e de relações
simbólicas”.938
Aos estereótipos de uma terra hostil, que era palco dos destroços de tantos navios,
habitada por povos considerados “bárbaros”, foram acrescentadas imagens de harmonia
e beleza quase edénicas. O autor deste manuscrito reconhece mesmo a utilidade que
poderia ter a construção de uma fortaleza na Baía Formosa, para o recolhimento das naus
que não quisessem ou não pudessem ir invernar a Moçambique. Deste modo, retomava
ideias a favor da construção de uma base portuguesa, no sul do continente africano, entre
o Cabo da Boa Esperança e a Baía da Lagoa, que tinham sido debatidas nos reinados de
D. João III e D. Sebastião.
Segundo João Pereira Dantas (1556), a viagem da Carreira da Índia deveria ser
inteiramente modificada, não apenas na época do ano em que se realizava, como também
privilegiando a navegação no Índico, por fora da Ilha de S. Lourenço.939 A necessária
escala das naus desta carreira deveria ocorrer na costa meridional do continente africano,
pelo que a construção de uma fortaleza seria determinante no apoio à navegação.
O autor do manuscrito anónimo do naufrágio da nau Santo Alberto, que percorreu
a pé longas distâncias em terras da “Cafrarja que é tão gramde”940, partilha de opinião
favorável à implantação de uma base fortificada portuguesa naquela costa, para abrigo
das armadas:
“é muito bom saber-se pera quoando se tentar como já tentou El Rey Dom Sebastião a
fazer fortaleza na Baia Fermoza pera o recolhimento das naos que por ali passarem com
trabalhos […] fiquando-lhe dali a viagem mais a mão, o que sera fasyl de se fazer pela
domestiquezão daqueles cafres e fartura e prosperidade da terra se ouver quem a semee,

938
Pierre FRANCASTEL, Peinture et Societé. Naissance et destruction d’un espace plastique - de la
Renaissance au Cubisme, Paris, Denoel, 1977, Apud Helena Carvalhão BUESCU, Incidências do Olhar:
Percepção e Representação, Lisboa, Caminho, 1990, p. 59.
939
Maria Emília Madeira SANTOS, O carácter experimental da Carreira da Índia. Um plano de João
Pereira Dantas, com fortificação da África do Sul (1556), (…), pp. 6-7.
940
Perdição da nao Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, custumes dos que a abitão até o Cabo das
Correntes, in Glória de Santana PAULA, op. cit., p. 152.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

que toda em sy é fertilissjma de muitas ribeiras e guado e carnejros e o mais se lhe


encomendarem”.941

As contínuas referências à fertilidade da terra, abundância de cursos de água e


benignidade das populações, juntamente com a defesa da construção de uma fortaleza na
Baía Formosa, são um convite à fixação portuguesa na costa meridional africana, numa
perspectiva que vai muito além de um porto para aguadas e abrigo das naus em caso de
tempestade.
A cristianização dos gentios seria motivo suficiente para ser empreendida a
instalação dos portugueses naquelas terras, pois “a minguoa de não haver neles impressão
de padres ou de quem os emcaminhe se deixa de fazer nelas mui grande fruito com a
preguação avamgeliqua”.942 O autor considera mesmo que a peregrinação destes
náufragos pela Cafraria teria iniciado um processo de tomada de posse espiritual,
nomeadamente com a grande cruz oferecida por Nuno Velho ao ancose Gamabela, a qual
foi fixada como um altar diante de sua casa, para que fosse venerada por si e pelo povo
da sua aldeia.943
Este texto anónimo deve ter sido conhecido no seu tempo e considera-se muito
provável que tenha integrado as fontes que João Baptista Lavanha utilizou no seu relato
impresso, e também que tenha servido de base ao regimento para andar nas naus, feito
pelo vice-rei Matias de Albuquerque, que governou o Estado da Índia entre 1591 e 1597.
O autor anónimo afirma ter sido importunado por amigos para que partilhasse o texto
escrito durante a jornada pela Cafraria, pois, como afirmou, muitos “folgarião de o uer
como couza noua, mouido de suas ymportunamsõis detreminej tira-lo a lus comonicamdo
com todos os que só pera mim tinha escrito”.944
O Regimento que se fez por ordem do snor’ Visorrej Matias Dalbuquerque tirado
do Roteiro da viagem que fez por terra da cafraria a gente da Nao Santo alberto
governada por Nuno velho pereira945 expressa ter na sua base um “roteiro”, de onde

941
IDEM, ibidem, p. 137.
942
IDEM, ibidem, p. 139.
943
IDEM, ibidem, p. 156.
944
IDEM, ibidem, p. 116.
945
Documento existente na B.A., Cod.51-VI-54, n.º 27 e publicado por Maria Emília Madeira SANTOS,
O carácter experimental da Carreira da Índia. Um plano de João Pereira Dantas, com fortificação da
África do Sul (1556), (…), pp. 48-53.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

foram extraídas as informações e os avisos destinados ao conhecimento de todos os que


faziam a Carreira da Índia. Parece-nos muito plausível que esse “roteiro” seja o deste
autor anónimo, pois a sequência textual do Regimento segue muito de perto determinados
conteúdos do manuscrito, divergindo apenas na grafia de alguns topónimos e nomes de
chefes africanos. Encontramos no Regimento algumas passagens muito próximas e até
textualmente iguais às do manuscrito anónimo, como se pode confirmar no Quadro 1, que
consta dos Anexos.946
As informações contidas no “roteiro”, que constitui o manuscrito anónimo, ou os
apontamentos de um eventual borrão anterior, redigido ao longo da travessia dos
territórios da África do sudeste, a par de outras fontes directas hoje perdidas, terão sido
fundamentais para a promulgação do referido Regimento de Matias de Albuquerque e são,
seguramente, anteriores a 1597.947
Porque o conhecimento destes textos manuscritos circulava na época, parece-nos
muito provável que o relato anónimo fosse conhecido dos que serviram de fonte a
Lavanha ou, até mesmo, que o cronista-mor o tivesse lido sem que o mencionasse como
fonte directa. Não será por mera casualidade que encontramos no texto de Lavanha frases
quase iguais às que constam, tanto do manuscrito anónimo, como do Regimento de Matias
de Albuquerque, conforme pode ser verificado no Quadro 2, dos Anexos.948
O artigo de P. E. H. Hair949, “Portuguese contacts with the Bantu Languages of
the Transkei, Natal and Southern Mozambique 1497-1650”, ao debruçar-se sobre o
problema da comunicação entre os portugueses e os povos falando línguas Nguni,
examina os termos africanos fixados nos relatos de naufrágios. O autor fez o levantamento
dos termos africanos (Nguni, Ronga e Shona) incluídos no Regimento do Vice-Rei Matias
de Albuquerque, que refere terem sido recolhidos e fixados em suporte escrito durante a
jornada de 1593, mas que não constam do texto publicado por Lavanha em 1597, nem em
nenhum dos relatos escritos anteriormente, pelo que o autor considera este documento
“an abnormally independent source”.950 O estudo realizado em torno do manuscrito
anónimo leva-nos a considerar que este relato de sobrevivente constitui a fonte que está

946
Vide Anexos, Quadro 1.
947
Glória de Santana PAULA, op. cit., pp. 33-37.
948
Vide Anexos, Quadro 2.
949
Paul Edward Hedley HAIR, op. cit., pp. 3-46.
950
IDEM, ibidem, p. 18.

249
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

na base do regimento do vice-rei. Não só a sequência da viagem, assinalada pelo registo


de pormenores paisagísticos, mas também as indicações úteis como os modos de
saudação, os nomes dos chefes, os bens necessários às trocas e algum vocabulário
africano considerado de utilidade, são retirados do relato do sobrevivente, documento
donde terá sido extraída a matéria para o Regimento.951
A experiência do naufrágio da nau Santo Alberto e subsequente travessia da
Cafraria, sob a liderança de Nuno Velho Pereira, que estabeleceu encontros pacíficos
com as populações locais, honrando os chefes africanos e estabelecendo permutas
materiais de interesse mútuo, saldou-se na mais positiva experiência de sobrevivência dos
naufrágios portugueses na África do sudeste. A rota seguida na peregrinação por terra
fez-se pelo sertão, onde os náufragos encontraram abundância de comunidades pastoris e
agro-pastoris, com as quais estabeleceram permutas e de quem obtiveram guias, que lhes
permitiram avançar com segurança nos caminhos, até ao reino do Inhaca.
No âmbito da percepção macro espacial, o autor distingue claramente os territórios
desde as imediações do rio Kei (rio do Infante), até à Baía de Maputo, então designada
de Lourenço Marques (reino do Inhaca), e os que se localizam para norte desta baía,
estendendo-se até aos Rios de Cuama. Para norte, dizia o autor do manuscrito anónimo,
não só o clima, as águas e os ares eram mais doentios, como também os povos eram mais
hostis, “porque como são já comonicados de nós por nossos pequados logo
pesonhentamos tudo omde chegamos”.952 Esta visão crítica, sobre a acção dos
portugueses em territórios da África do sudeste, reflectia a perspectiva de muitos homens
práticos e integrava-se numa dimensão disfórica do expansionismo português.

Do século XVII, destacamos os naufrágios de navios portugueses sobre os quais


existem testemunhos directos, ou seja, redigidos ou transmitidos por sobreviventes.
São esses naufrágios, o da nau S. João Baptista, que se perdeu a sul do rio Great
Fish, próximo do actual rio dos Bushman, na latitude fornecida pelo autor, de 33º Sul, no
dia 30 de Setembro de 1622.953 Francisco Vaz de Almada redigiu o relato deste naufrágio,

951
Glória de Santana PAULA, op. cit., pp. 34-37.
952
Perdição da nao Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, custumes dos que a abitão até o Cabo das
Correntes, in Glória de Santana PAULA, op. cit., p. 162.
953
Segundo Gillian Vernon, o sítio do naufrágio da nau S. João Baptista localiza-se na praia hoje conhecida
por “Cannon Rocks”, cerca de 20 Km a ocidente do rio Bushman; cf. Gillian VERNON, Even the Cows
were Amazed. Shipwreck Survivors in South-East Africa (1552-1782), Cape Town, Jacana, 2013, p. 58.

250
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

publicado em Lisboa, por Pedro Craesbeck, em 1625.954 Destacam-se também como


fontes, o relato incluído no códice 737, da Biblioteca Pública Municipal do Porto955, e o
mapa de João Teixeira, de 1630, que assinala o local do naufrágio com a legenda “Rio do
Infante, donde se perdeo a nao São Ioão, no Ano de 1622”.956
Em meados de Junho de 1630, naufragava na Baía Formosa, hoje Plettenberg Bay,
a nau S. Gonçalo. O navio largara de Goa, a 4 de Março, o que já se considerava uma
partida tardia para que pudesse aproximar-se do cabo da Boa Esperança sem ventos fortes
e contrários. Entre os cerca de 100 sobreviventes, destaca-se Frei Francisco dos Santos,
da Província da Madre de Deus dos Capuchinhos da Índia, autor de um diário desta
viagem que terá sido, muito provavelmente, a fonte das informações que Manuel de Faria
y Sousa integrou, uma década depois, na sua Ásia Portuguesa.957 O manuscrito original
do frade capucho, Francisco dos Santos, perdeu-se, daí que o texto de Faria y Sousa se
constitua como o registo escrito conhecido mais próximo da fonte directa.
Referências factuais estão presentes numa relação de naus e armadas da Índia,
depositada na British Library, Códice Add. 20902958, mencionando os naufrágios e outros
sucessos, entre os quais, o da nau S. Gonçalo. O mesmo tipo de referências consta da obra
de Simão Ferreira Paes que, como funcionário da Casa da Índia, acedeu a diversas
informações que compilou.959 Patricia Storrar, na sua obra, Drama at Ponta Delgada.
Shipwreck in Plettenberg Bay, reconstituiu a história do naufrágio e das vivências de oito
meses dos sobreviventes naquela baía, a partir das informações compiladas por Simão
Ferreira Paes, às quais juntou o conhecimento provindo do trabalho de levantamento de

954
Francisco Vaz DALMADA, Tratado do sucesso que teve a Nao S. Joam Baptista, E jornada que fez a
gente que della escapou, desde trinta & tres graos no Cabo de Boa Esperança, onde fez Naufragio, atè
Sofala, vindo sempre marchando por terra, Em Lisboa, Por Pedro Craesbeck Impressor delRey, 1625.
955
“Naufragio Lastimozo de Pedro de Morais. 1626”, in Rellação de Varios Naufragios, (…), fls. 68-75 vº.
O autor desta compilação data, erroneamente, a perdição da nau S. João Baptista em 1626, sendo todos os
demais registos unânimes em datar a ocorrência em 1622.
956
Portugaliae Monumenta Cartographica, Armando Zuzarte CORTESÃO e Avelino Teixeira da MOTA
(ed. de), Vol. IV, (…), Estampa 469 B.
957
Manuel de Faria y SOUSA, Ásia Portuguesa, Tomo III, Parte IV, Cap. VIII, Lisboa, en la Officina de
Antonio Craesbeeck de Mello Impressor de Sua Alteza, 1675, pp. 459-462.
958
O Códice Add. 20902 foi transcrito, anotado e publicado por Maria Hermínia MALDONADO, op. cit.
959
Simão Ferreira PAIS, “Recopilação das famosas Armadas Portuguezas que pera a India foram, 1496-
1680”, in C. I. Alphonso da COSTA, As famosas armadas portuguesas 1496-1650, Rio de Janeiro,
Ministério da Marinha, 1937, pp. 123-125.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

vestígios materiais e respectivas datações, no âmbito das explorações arqueológicas


levadas a cabo em Plettenberg Bay.960
Em 1635 naufragava a nau Belém, próximo do rio Umzimvubu. Sobre esta
perdição destacam-se três textos: José Cabreira, Naufragio da Nao N. Senhora de Belem
Feyto na terra do Natal no cabo de Boa Esperança, & varios sucessos que teve o Capitão
Joseph de Cabreyra, que nella passou à India no anno de 1633. Fazendo o officio de
Almirante daquella frota atè chegar a este Reyno961; Padre Jerónimo Lobo, que incluíu
no seu Itinerário e outros escritos inéditos962 uma vívida narrativa de sobrevivente sobre
a perdição da nau e aventura dos náufragos por terras da Cafraria; o manuscrito avulso
da Biblioteca da Ajuda, Relação da Perdição da Nao Belem, da qual era Capitão Joseph
Cabreira, mestre Miguel Jorge Grego, e piloto Mathias Figueira, a mais mal afortunada
nao que nauegou no Mar.963
Como que a terminar um ciclo marcado por tantos episódios de acidentes
marítimos, salvamentos e errância de náufragos portugueses pelos territórios do sudeste
africano, estão os naufrágios de 1647, das naus Nossa Senhora da Atalaia do Pinheiro e
Santíssimo Sacramento, cujos relatos foram escritos por Bento Teixeira Feio.964
Sem fonte directa, são ainda de registar o naufrágio da nau Espirito Santo, que se
perdeu em 1608, próximo do rio Kei, e o naufrágio da naveta Santa Maria Madre de
Deus, em 1643, na praia de Bonza Bay, a norte de East London, em território da actual
República da África do Sul. Três marinheiros sobreviventes deste naufrágio voltaram a
naufragar quatro anos mais tarde, na nau Nossa Senhora da Atalaia do Pinheiro, tendo-
se mostrado familiarizados com a área do naufrágio, referência escrita que, associada a
diversos vestígios materiais encontrados naquela praia, podem constituir um indício
muito provável do sítio do naufrágio da Santa Maria Madre de Deus.965

960
Patricia STORRAR, Drama at Ponta Delgada. Shipwreck in Plettenberg Bay, Braamfontein, Lowry
Publishers, 1988.
961
Joseph de CABREYRA, Naufragio da Nao N. Senhora de Belem Feyto na terra do Natal no cabo de
Boa Esperança, & varios sucessos que teve o Capitão Joseph de Cabreyra, que nella passou à India no
anno de 1633. Fazendo o officio de Almirante daquella frota atè chegar a este Reyno, Em Lisboa, Por
Lourenço Craesbeeck Impressor d’ElRey, 1636.
962
Jerónimo LOBO, op. cit., pp. 542-634.
963
B.A., Ms Avulsos 54-X-13, nº 74, 30 fls.. Este manuscrito foi transcrito e publicado por Kioko KOISO,
op. cit., Vol. II, pp. 656-701.
964
Bento Teyxeyra FEYO, op. cit..
965
Carl Vernon destaca entre os vestígios materiais encontrados na praia de Bonza Bay: os fragmentos de
porcelana Ming azul e branca e contas de cornalina; uma larga porção da quilha de um navio, cuja madeira
foi identificada como Quercus alba e Tectona grandis, o que poderá corresponder a um navio construído

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Comum a estes naufrágios do século XVII é a sua ocorrência na costa mais


meridional do continente africano, entre o rio Kei, a leste, e a península Robberg, a oeste,
designada no mapa de Perestrelo, por Ponta Delgada, territórios habitados por
comunidades nómadas de pastores Khoisan.
Francisco Vaz de Almada aponta os mesmos limites para a Cafraria já
referenciados pelos autores anteriores. 966
Enquanto território de peregrinação, a Cafraria afigurava-se abundante em rios,
“boa agua” e lenha. No entanto, os seus caminhos eram difíceis, a terra “fragosa” e
escassa de frutas e mantimentos.967 Alguns espaços são mesmo referidos como
“desertos”, onde os náufragos sofreram grandes fomes, vendo-se forçados a comer
alforrecas,968 ervas e frutas que quase os “puzerão á morte”969 tendo ocorrido, no extremo,
a antropofagia, que espalhou a fama, entre as comunidades locais, de que os náufragos
comiam carne humana.970
A peregrinação dos sobreviventes fez-se no sentido nordeste, pelo interior de
territórios montanhosos – “caminhámos pelo meyo de serras muito altas (…) por
caminhos muyto ingremes & arriscados”,971 até à área do “rio da fome”972, um
“desaventurado rio” onde padeceram as maiores carências.973 Cumpre-se na escrita o
tópico das terras estéreis e da fome, que se fixara como estereótipo, desde o relato da
perdição do galeão S. João, em 1552.
Nestes textos, a dimensão estéril e ameaçadora da terra coexiste com a beleza das
paisagens, sendo frequentes as referências a ribeiras e bosques formosos 974, que
pressagiam a chegada “ás povoações da desejada fartura”975, “tão fermosas povoações,
que era huma fermosura de ver a muyta quantidade de gado, que delas sahia”.976

em Lisboa e reparado na Índia; uma grande quantidade de pedras de granito, exterior à geologia local, e
cuja análise microscópica indica coincidir com o granito de Goa, o que, segundo Vernon, poderá ser um
vestígio do lastro do navio. Cf. http://www.bonzabay.co.za/blog/post/ming (Consultado em 20/11/2014)
966
Bento Teyxeyra FEYO, p. 11.
967
IDEM, ibidem.
968
IDEM, ibidem, p. 20.
969
IDEM, ibidem, p. 19.
970
IDEM, ibidem, pp. 44-50.
971
IDEM, ibidem, p. 36.
972
IDEM, ibidem, p. 39.
973
IDEM, ibidem, p. 45.
974
IDEM, ibidem, pp. 48 e 54.
975
IDEM, ibidem, p. 54.
976
IDEM, ibidem, p. 55.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Após três meses de caminhada, os náufragos foram atacados por populações que
lhes “atirarão infinitas azagayas”977 com o intuito de os roubarem, sendo que alguns
sucumbiram e muitos ficaram feridos. O texto de Vaz de Almada apresenta uma natureza
hostil das populações autóctones, o que muito provavelmente seria uma resposta
defensiva face à fama destrasosa e agressiva que o grupo de náufragos foi deixando à sua
passagem.
Do combate entre os náufragos e as populações locais resultou uma visão da
Cafraria como uma terra de cura surpreendente. Foi, com espanto, que o autor descreveu
a situação em que foram atacados e feridos e em
“(…) que ninguem escapou que o não fosse, ou de azagaya, ou de pedradas, & fizerão-se
as maiores curas, que eu nunca vi, porque havia muytos atravessados pelos peytos de
banda a banda, & pelas coxas, & cabeças quebradas, & nenhu delles morreo, & só com
tutanos de vacas eraõ curados”. 978

Surpreendente, também, foi o dia seguinte ao ataque, em que os mesmos


guerreiros vieram ao resgate com os náufragos, trazendo-lhes galinhas, bolos e o pombe,
que era uma bebida fermentada, produzida a partir do milho local.979
A descrição da terra organiza-se de acordo com determinados “marcadores
territoriais” naturais, como os cursos de água doce, as montanhas ou as extensões
desertas, mas também são relevantes os marcadores construídos, como as aldeias.
Podemos dizer que os rios, eles próprios símbolos de identidade e posse territorial
entre as populações africanas, são o principal recurso dos escritores para definir as etapas
que marcam a progressão dos náufragos no território que se impunha atravessar, rumo a
um porto conhecido.980 Dada a importância da hidrografia, é notória a necessidade de
nomear os cursos de água, de acordo com sinais visíveis no momento da passagem.
Assim, neste relato, ao primeiro rio que atravessaram os náufragos puseram o nome de

977
IDEM, ibidem, p. 59.
978
IDEM, ibidem.
979
IDEM, ibidem.
980
Na reflexão e análise sobre os marcadores simbólicos dos territórios africanos, veja-se Isabel Castro
HENRIQUES, “A materialidade do simbólico: marcadores territoriais, marcadores identitários angolanos
(1880-1950)”, in Textos de História, Brasília, Universidade de Brasília, Vol. 12 - n.os 1/2, 2004, pp. 13-15.
https://periodicos.unb.br/index.php/textos/article/view/27862/23951 (Consultado em 06/01/2011)

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

“rio do Almíscar”,981 dois dias depois, passaram o rio dos camarões,982 mais adiante,
chegaram ao “rio da fome”,983 depois ao rio do lagarto, ao rio das ilhas, ao rio das
formigas,984 entre muitos outros que se afirmavam como elementos de uma nova
geografia.
O modo como os rios são nomeados e descritos destinava-se a funcionar como
conhecença, mas simbolizava também uma forma de apropriação escrita, retórica, de um
novo território, ainda que, na prática, no terreno, a posição dos náufragos fosse de
vulnerabilidade e dependência face à ajuda prestada pelas populações africanas.
Outro importante marcador territorial consiste nas comunidades sedentárias,
organizadas em “aldeias” ou “povoações”, que eram os espaços de socialização das
populações africanas, onde se teciam as relações múltiplas da vida de todos os dias, as
relações familiares e com os outros membros do grupo, as relações com a terra, com o
sagrado e com a ordem cósmica.
Uma povoação poderia ter “quinze casas de palha”, ou mais, e estava associada à
pastorícia e agricultura, o que permitia aos náufragos em trânsito a troca de pedaços de
metal por bovinos, carneiros, leite e frutos das sementeiras. Quando possível, era em
povoações, ao cuidado “dos cafres”, que ficavam muitos náufragos impossibilitados de
caminhar. Era, também, nestes espaços sociais organizados que surgia, em muitos
caminhantes, a oportunidade de escapar às duras condições do cativeiro e permanecerem
livres na Cafraria. Aconteceu com muitos escravos que iniciaram a viagem a bordo. 985
Aos doentes incapazes de caminhar, deixava-lhes o capitão “muytos pedaços de cobre, &
de latão, que he cousa, que aqui val mais que tudo, & dous caldeyrões”.986 A leitura dos
relatos de naufrágios, numa sequência cronológica, revela-nos que muitos náufragos que
ficaram pelo caminho, entregues aos cuidados dos chefes das aldeias, recuperaram a
condição de saúde e foram encontrados anos mais tarde, por outros náufragos, totalmente
integrados nas comunidades locais.
Para além de rios e povoações, os “desertos” funcionaram também como
indicadores territoriais. Esta designação corresponde a extensões de muitas serras e rios,

981
Francisco Vaz DALMADA, op cit., p. 17.
982
IDEM, ibidem.
983
IDEM, ibidem, p. 39.
984
IDEM, ibidem, p. 52.
985
IDEM, ibidem, p. 31.
986
IDEM, ibidem, pp. 28, 31, 49, 51.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

difíceis de atravessar, onde os náufragos não encontraram nem sementeiras, nem


povoações. “Deserto” assume o significado de “mato”, ou espaço não humanizado.
“Deserto” fora o espaço de abandono, em 21 de Dezembro de 1622, de uma donzela e
seu irmão, que ficaram entregues “aos tigres, & leões”987. Desertos eram também as serras
fragosas e “sadias”, mas sem alimentos.988
Ao segundo dia de caminho, ficaram os náufragos da nau S. João Baptista a saber
que, durante “vinte dias de caminho cafre (…) que vinhão a ser dous mezes do nosso
caminho”, haviam de caminhar por deserto. O relato atesta a carência de alimentos nos
territórios percorridos, entre o início de Novembro de 1622 e o início de Fevereiro de
1623. É neste contexto que se enquadra a descrição das “Terras de Fome”, onde muitos
náufragos sucumbiram de fraqueza e onde a antropofagia foi repetidamente praticada, a
par de muitos actos de crueldade excessiva, não só nas punições por enforcamento, mas
também no uso de armas de fogo, usadas para intimidar as populações locais. Tais actos
colocaram de sobreaviso muitos africanos que, com pedras e azagaias, tentavam afastar
os náufragos das suas terras e aldeias.989 Registou-se uma alternância entre zonas desertas
e outras povoadas e ricas em gado e sementeiras, onde ocorreram trocas favoráveis.
Devem ter sido tão marcantes estas oscilações na percepção da geografia dos recursos,
que o mapa de João Teixeira,990 registou as designações de “Terras da Fome” e de “Terra
Farta”.991
Para além dos desertos, das povoações e dos rios, que vão sendo nomeados,
destacam-se, ainda, outras marcas no território, associadas a experiências com
comunidades de agricultores, onde os náufragos receberam benefício devido à
abundância de alimentos e ao resgate estabelecido com os habitantes locais. É o caso do
“rio da Pescaria”, na Terra do Natal, do rio de Santa Luzia, das terras do Inhaca Sangane
e do Manhiça, alcançadas ao fim de cinco meses de peregrinação. Estas terras
simbolizavam não apenas a riqueza em marfim, mas também a segurança decorrente das
relações comerciais dos portugueses que aí enviavam as embarcações, a partir de

987
IDEM, ibidem, pp. 17-18.
988
IDEM, ibidem, p. 24.
989
IDEM, ibidem, p. 50.
990
João TEIXEIRA, [Sul da África, de Mozambique até Cabo da Boa Esperança], Atlas de trinta e uma
cartas, 1630, Library of Congress, in Portugaliae Monumenta Cartographica, Vol. IV, (…), Estampa 469
B.
991
Francisco Vaz DALMADA, op cit., p. 54.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Moçambique992, como ainda por ser um espaço onde muitos africanos “fallavão muyto
bem Portuguez”.993 Contudo, as relações diplomático-comerciais com este rei Inhaca
sofreram prejuízo depois que ali foram mortos, em 1620, um clérigo e três portugueses,
tendo este incidente conduzido à suspensão do envio de pangaios da Ilha de Moçambique
para o comércio do marfim e do âmbar.
Apesar do simbolismo positivo que representava alcançar o reino do Inhaca, em
termos climáticos, era considerada uma terra doentia, tal como toda a que seguia para
norte, até Inhambane, condição agravada por aí habitarem povos Mocarangas, descritos
como “dos mais máos que havia em toda a Cafraria”.994
De Inhambane, é descrito o “rio fermosissimo”, numa zona abundante de
mantimentos da terra e do mar. Apesar da presença portuguesa ser aí uma constante, os
náufragos consideravam este espaço ainda um “cativeyro”.995 Sofala era por excelência
terra de respeito pelos portugueses, “terra de Christãos”,996 por oposição a todas as outras,
consideradas de “bárbaros”, onde não só se arriscava o corpo, mas também a alma, por
influência dos maus costumes dos habitantes.997
Dos 279 sobreviventes do naufrágio da nau S. João Baptista, apenas 27 pessoas
chegaram a Moçambique e daí regressaram a Goa. Fácil será entender que, a projeção da
informação de tal saldo humano nos leitores, teria contribuído para consolidar os
estereótipos definidores de uma terra em negativo.
O texto sobre o mesmo naufrágio, contido no manuscrito 737 da Biblioteca
Pública Municipal do Porto, é uma recompilação que segue as etapas do texto de Vaz de
Dalmada998, mas que aprofunda e agrava os estereótipos sobre a terra e as populações do
sudeste africano. Segundo este relato, os náufragos atravessaram a Cafraria, “por
barrancos, e por brenhas”, “asperissimos desertos” e “serras fragozissimas”, “por
montanhas, profundos rios, e talvez por entre pobres povoaçoens”. Nestas terras, o perigo
ensinou-lhes “rigores tão bárbaros, como inhumanos”. A este propósito, é dado especial
enfoque ao episódio do abandono da jovem donzela, que pelo caminho foi deixada “ao

992
IDEM, ibidem, p. 71.
993
IDEM, ibidem.
994
IDEM, ibidem, pp. 81-82.
995
IDEM, ibidem, p. 94.
996
IDEM, ibidem, p. 93.
997
IDEM, ibidem, p. 30.
998
B.P.M.P., Códice 737, fl. 75 vº.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

apetite dos Cafres, ou ao alvedrio das feras” 999; “moça donzela, e Portuguesa (…), exposta
assim para sustento dos feros tigres, e leões, ou a torpeza dos cafres” 1000, parecendo-nos
ser significativo que “Cafres” e “feras” ocupam no texto o mesmo plano da natureza
selvagem e oponente.
Quanto à perdição da nau S. Gonçalo (1630), no registo que transitou do diário do
frade capucho, Francisco dos Santos1001, para a Ásia Portuguesa, de Manuel de Faria y
Sousa, percebe-se uma representação da terra que valoriza tanto a diversidade, como a
semelhança numa perspectiva positiva, deixando mesmo revelar-se as notas de um
admirável e idílico trecho do Orbe. Este frade, do movimento da Estreita Observância dos
Franciscanos na Ásia, dirige o seu olhar para a grandeza da natureza, que nos parece
desempenhar um papel central na representação deste naufrágio e experiência de
sobrevivência como um processo místico.
A Baía Formosa, que se anunciara aos navegantes como abrigo face ao mar
tormentoso, mostrava-se amparada dos ventos, com uma beleza natural intocada e de
grande dimensão, pois teria “de boca tres leguas y de circulo cinco”.1002
De acordo com o discurso que transitou para a obra de Manuel de Faria y Sousa, a
presença dos náufragos da nau S. Gonçalo na Baía Formosa, por um período de oito
meses, teria cristianizado temporariamente um espaço que, sendo selvagem, mostrava
revestir-se de enorme potencial:
“El terreno es bonissimo, sin piedra alguna, (…) los valles com muchas yervas y plantas
(…). La arboleda copiosa y grande. Rieganlo todo caudalosos rios; y abundantes e bellas
fuentes.”1003

A estadia nesta terra durante uma parte do ano permitiu descrever um solo africano
que frutificava e se mostrava generoso e semelhante. O inventário da flora indígena, rica
e de múltiplas fragâncias, os animais selvagens, “inumerables y de extraordinaria

999
IDEM ibidem, fl. 70 vº.
1000
IDEM ibidem, fl. 71 vº.
1001
De acordo com Manuel de Faria y Sousa, Frei Francisco dos Santos era custódio da Província da Madre
de Deus dos Capuchos da Índia. Veja-se Manuel de Faria y SOUSA, Ásia Portuguesa, Tomo III, (…), p.
461.
1002
IDEM, ibidem, p. 459.
1003
IDEM, ibidem.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

grandeza”, com destaque para a arte com que certas aves faziam seus ninhos, aproximam
esta extremidade meridional do continente africano de uma idealização do Éden. 1004
Quanto ao naufrágio da nau Nossa Senhora de Belém, em 1635, terá ocorrido na
sequência de tempestades muito violentas no espaço marítimo, considerado o troço mais
perigoso da viagem da Índia, o “cabo de boa Esperança tam tormentoso, & fatal para os
navegantes”.1005 A tormenta fora tal, que o texto de José Cabreira personifica nos mares
o intento de derrubar as naus, afirmando que vieram “os temporaes a ser tão rijos, &
continuos que parece que cada qual procurava de acabar com nosco de hua vez”.1006
A nau perdeu-se junto à foz do rio Umzimvubu, numa costa descrita como
“áspera”, onde mal se podia navegar.1007 O Padre Jerónimo Lobo, sobrevivente deste
naufrágio, que integrou no seu Itinerário um vasto relato da perdição da nau e dos cerca
de oito meses de vida “sedentária” na Cafraria, identifica o rio do naufrágio como o “Rio
das Formigas”, tal como era designado nas cartas de marear.1008 Os primeiros trilhos dos
sobreviventes na terra firme consumavam o milagre da salvação, enquanto as serras altas
e matos se ofereciam como cenário das maiores provações terrenas.
Existe um terceiro relato deste naufrágio, redigido por um anónimo, cujo
manuscrito se encontra depositado na Biblioteca da Ajuda, tendo sido editado por Kioko
Koiso, em 2004.1009 Este texto constitui, muito provavelmente, uma cópia de um relato
de sobrevivente e mostra-se, em algumas passagens, de maior detalhe descritivo quando
comparado com os relatos de Cabreira e Jerónimo Lobo.1010 De acordo com o texto
anónimo, a Cafraria era um espaço de “praias e matos”, “aonde não há senão alarues e
muitos bichos feros”.1011 O local do naufrágio revelava-se abundante de mantimentos,
não apenas grande variedade de peixes no rio junto do qual os náufragos se fixaram, como

1004
IDEM, ibidem, p. 461.
1005
Joseph de CABREYRA, op. cit., p. 13.
1006
IDEM, ibidem, pp. 9-10.
1007
IDEM, ibidem, p. 21.
1008
Jerónimo LOBO, op. cit., pp. 542-634. O “rio das Formigas” é referido na p. 569.
1009
Relação da Perdição da Nao Belem, da qual era Capitão Joseph Cabreira, Mestre Miguel Jorge grego,
e piloto Mathias Figueira, a mais mal afortunada Nao que nauegou no Mar, a qual partio da barra de
Lisboa pera a India por Capitanea no Ano de mil e seiscentos e trinta e hum em Companhia da não Rosario,
e arribou na altura de oito graos da banda do Sul. B.A., Avulsos 54-X-13, n.º 74. Editado por Kioko
KOISO, op. cit., Vol. II, (…), pp. 657-701.
1010
IDEM, ibidem, Vol. I, (…), pp. 114-117.
1011
IDEM, ibidem, Vol. II, (…), pp. 669 e 676.

259
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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

também de bovinos e frutos da terra, que as populações locais trocavam com os


portugueses por pregos e outros objectos de ferro e cobre.1012
Na descrição do espaço africano, José Cabreira retoma a tradição dos relatos de
naufrágios, reforçando uma imagem de dualidade, onde a terra saudável e de bons ares se
entrelaçava com a aspereza de desertos e brenhas, habitats de feras selvagens, caminhos
difíceis e barbárie humana. Aquela terra, que Cabreira referia nunca ter sido pisada por
“mais que alimarias bravas, ou aquelles Alarves naturaes, que tambem se distinguem
pouco das proprias feras”,1013 mostrava ser um lugar de cura e catarse, pois além dos seus
“ares excellentissimos”, “não adoeceo nunca ninguem, antes vindo a gente muy doente,
convaleceo a mayor parte della”.1014 Jerónimo Lobo confirma esta natureza curadora da
terra:
“Os ares são os mais brandos e sadios que eu vi, porque alem de gosaremos, 7 meses que
ali estivemos, de huma perpetua primavera, nenhum de nós adoeceo, convalecendo os
que chegarão à terra doentes”1015;

“As águas são muitas de rios e fontes frescas, delgadas, sadias e doces”. 1016

Este tópico, que concebe a Cafraria como uma terra de cura e catarse é recorrente,
pelo menos desde o naufrágio da nau Santo Alberto, para os territórios mais temperados,
a sul do rio Limpopo. Ao mesmo tempo que se construía conceptualmente este tópico,
aplicado aos territórios mais meridionais, consolidava-se também a concepção geográfica
que defendia que a norte do Limpopo os ares eram doentios, os matos mais perigosos, as
águas peçonhentas e os habitantes locais mais aguerridos.
Numa extensa praia, na embocadura do rio Umzimvubu, fixaram-se os náufragos
durante a temporada de cerca de meio ano, com o objectivo de construir duas embarcações
que lhes possibilitariam a saída das “terras de alarves” 1017, expressão utilizada por
Cabreira, em vez de terras de cafres. Segundo José Pedro Machado, a designação
“alarves”, tendo uma origem antiga, que significa “árabes”, especificando os que se

1012
IDEM, ibidem, (…), pp. 672-673 e ps. 686, 693 e 696.
1013
Joseph de CABREYRA, op. cit., p. 27.
1014
IDEM, ibidem, p. 26.
1015
Jerónimo LOBO, op. cit., p. 571.
1016
IDEM, ibidem, p. 572
1017
Joseph de CABREYRA, op. cit., ps. 21, 27, 31 e 43.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

dedicavam à pastorícia e tinham vida nómada, passa a ligar o seu sentido à “vida errante
dos campos”, oposta “à vida mais pulida das cidades, onde há hábitos de civilidade”. Ao
tornar-se um adjectivo, este vocábulo passou a ter a significação dominante de “bruto,
grosseiro, sem maneiras”.1018 O uso deste vocábulo para designar populações nómadas
está presente na “Carta da Europa e África”, de Bartolomeu Velho (1561), em que a
legenda “ALARVES” consta no sudoeste africano, a sul de outras designações que
representavam poderes e soberanias africanas, como “MANICONGO”, “ANGOLA” e
“BENGVELA”.1019 “Alarves” terá sido um dos termos disponíveis no léxico português
da época para designar as populações de caçadores-recolectores e pastores nómadas, que
viviam nos territórios do interior, a sul do cabo Negro e que José Cabreira utiliza
continuamente no seu relato para nomear as gentes do rio Umzimvubu, no sudeste
africano. Os significados de “bruto”, que levava “vida errante”, ou “rústico”, partilhavam
aspectos comuns do campo semântico do vocábulo cafre.
Assim, é no sudeste africano, tendo como referência o rio Umzimvubu, em terra
de alarves ou de cafres que, com a ajuda dos escravos, foi construída uma “estancia” de
palhotas, onde se destacava uma igreja “muyto bem feyta” 1020 e um verdadeiro estaleiro
de construção naval, que Cabreira designou de “ribeyra dos navios”, por ser tão
semelhante a “huma ribeyra como a das naos deste Reyno”.1021
Os matos forneciam a abundante madeira que, depois de benzida, seguia para a
“fabrica”. Segundo o capitão, o lugar escolhido para se fixarem, fora previamente morada
de cobras e, desde sempre, marcado por pegadas de hipopótamos, búfalos e “outras feras”;
porém, “com a continuação da gente veyo a estar tudo tão limpo como o terreyro do Paço
desta Cidade”.1022 Num discurso acentuadamente etnocêntrico, o texto de Cabreira
reclama uma tomada de posse de uma terra considerada selvagem, através de um processo
de domesticação e cristianização temporária do espaço.1023

1018
“Alarve”, in José Pedro MACHADO, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa com a mais antiga
documentação escrita e conhecida de muitos dos vocábulos estudados, Vol. I, Lisboa, Livros Horizonte,
1995, p. 171.
1019
Bartolomeu VELHO, “Carta da Europa e África” (1561), in Portugaliae Monumenta Cartographica,
Armando Zuzarte CORTESÃO e Avelino Teixeira da MOTA (ed. de), Vol. II, (…), Estampa 203.
1020
Joseph de CABREYRA, op. cit., p. 41.
1021
IDEM, ibidem, pp. 40-45.
1022
IDEM, ibidem, p. 43.
1023
IDEM, ibidem.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Já o Padre Jerónimo Lobo considera este espaço africano como o “melhor torrão
e clima de terra” que viu. Ao longo do seu texto percebe-se um convite à fixação dos
portugueses na Cafraria, essa terra onde “a erva crece da altura de hum homem, na mesma
forma crecera o mantimento se o semearão”;1024 “não vi terra mais temperada e milhor
clima do que esta (…) posso dizer he sempre huma alegre primavera”. Nos formosos
bosques abundavam madeiras, que bastariam para “armar muitas naus da India”, as águas
eram frescas e sadias e “a fermosura e dilicia das flores que Deus Nosso Senhor ali
plantara tão pouco estimada de gente tão barbara”.1025 Enquanto o domínio cristão não
alcancasse estas terras e estes povos, a Cafraria, apesar do seu potencial, continuaria a
ser percepcionada como um desterro.
Postos à água os navios construídos com madeiras dos bosques do Umzimvubu,
nomeados “Nossa Senhora da Natividade” e “Nossa Senhora da Boa Viagem”, 1026
voltaram a enfrentar-se as tormentas do cabo da Boa Esperança que, ao ser dobrado rumo
ao Atlântico, permitiu acrescentar à vida dos náufragos um outro “renascimento”
simbólico.1027 Este decorria não apenas do sucesso náutico da dobragem do Cabo, saindo
dos mares “empolados e cruzados” para mares atlânticos mais bonaçosos, mas também
da aproximação a terras cristianizadas, no reino de Angola.1028
O Cabo Negro era o referencial topográfico que assinalava, na costa sudoeste
africana, a transição entre as terras do desterro e as terras “de christãos”. Para o padre
Jerónimo Lobo, a verdadeira libertação coincidia com a chegada “a terra de christãos”,
no novo reino de Benguela.1029
Em 1647, naufragavam as naus Nossa Senhora da Atalaia do Pinheiro, a sul do
rio Kei, e Santíssimo Sacramento, na baía da Alagoa. Esta faixa da costa meridional
africana tinha sido trilhada recentemente por sobreviventes do naufrágio da nau S. João
Baptista (1622) e da nau Santa Maria Madre de Deus (1643). A peregrinação dos
náufragos no sentido nordeste seguia o mesmo rumo que haviam tomado os náufragos da
nau Santo Alberto (1593), muito embora os modos de atuação face às populações locais
fossem totalmente distintas.

1024
Jerónimo LOBO, op. cit., p. 571.
1025
IDEM, ibidem, pp. 571-573.
1026
Joseph de CABREYRA, op. cit., p. 48.
1027
IDEM, ibidem, p. 63.
1028
Jerónimo LOBO, op. cit., ps. 624 e 630.
1029
IDEM, ibidem, p. 632.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Bento Teixeira Feio confirma, no seu relato, os tópicos definidores da Cafraria,


de acordo com estereótipos que se foram definindo nas representações dos viajantes
forçados a percorrer aquele território. Na descrição do naufrágio, o autor menciona um
“peixe Orelhão”, que funcionou como presságio de tragédia, com “anuncios tudo de huma
noyte temerosa” e “medonha”1030. Foi a tormenta tão grande, que os Padres, a bordo,
revezaram-se durante horas benzendo as águas do mar. Este relato confirma a noção de
que as águas oceânicas envolventes da Cafraria estavam imbuídas de uma carga
intencional nociva, traduzida na força tormentosa que fracturava e abalroava as naus.
Mas, se os mares tormentosos e medonhos contribuiam para a nau abrir água, forçando
todos os tripulantes e passageiros a acodir às bombas de escoamento como forma de
impedir o afundamento no mar, o autor também aponta as responsabilidades humanas
desta tragédia, destacando a “pouca diligencia por causa da arrumação da artelharia que
se fez em Goa, não vir em forma”.1031
Entre os sobreviventes da nau Sacramento seguiam três marinheiros que haviam
naufragado quatro anos antes na naveta Santa Maria Madre de Deus, naquela mesma
costa. Dada a experiência recente, em que tiveram de “marchar pela Cafraria atè o Cabo
das Correntes”, foram nomeados “resgatadores do arrayal” e contribuiram para a
organização do grupo.
Após um acampamento de onze dias, na latitude fornecida pelos sobreviventes de
33º 1/3 S, próximo do rio do Infante, teve início a peregrinação dos náufragos no sentido
nordeste. No local do naufrágio ficaram, por incapacidade de caminhar, três escravos e,
pelos caminhos “asperos” e trabalhosos, foram deixados com vida homens e mulheres
escravos, senhores nobres, grumetes, marinheiros e outros oficiais da nau, além de
mestiços designados por “cabrinhas”, um “china”, um cirurgião indiano e um menino
malabar, alguns dos quais terão sobrevivido, como tantos outros de naufrágios anteriores.
O texto de Bento Teixeira Feyo destaca a morte, pelo caminho, de outros tantos
nobres e escravos, por doença, exaustão, afogamento ou pelas mãos dos cafres da terra.
O arraial em marcha pela Cafraria perdeu também muitos dos seus escravos e até negras
forras que, escapando à autoridade severa do comando, desertaram em busca da liberdade.

1030
Bento Teyxeyra FEYO, op. cit., pp. 8-9.
1031
IDEM, ibidem, p. 10.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

A Cafraria não se revelava apenas como uma geografia em negativo, também apontava
caminhos diversos para a libertação do sofrimento social ou da prisão do corpo.
O texto de Teixeira Feio é intensamente trespassado por referências ao território,
as quais permitem construir uma imagem quase bipolar da Cafraria, como terra de exílio
e salvação; terra de oponentes humanos, os cafres brutos, bárbaros, alarves, ladrões, mas
onde também se consuma o encontro com gente boa, generosa e acolhedora; espaço por
excelência de bosques e matos cerrados, rios caudalosos de difícil travessia, caminhos
ásperos e ruins, serras íngremes e medonhas, de penedos alcantilados e até terras doentias
onde muitos sucumbiram às febres. Todos os obstáculos físicos descritos faziam deste
percurso um verdadeiro acto de contrição que transmutava a travessia da Cafraria num
percurso espiritual redentor e purificador.1032 A “terra áspera”, que permitia a expiação
dos pecados humanos, revelava também as suas fontes de boas águas, os muitos rios
envoltos em fresco arvoredo e as terras abundantes de milho e de gado.
No âmbito da representação do espaço, verifica-se uma consolidação dos tópicos
que se tornaram estruturantes no corpus discursivo consagrado à antítese dos sucessos,
desde o relato do naufrágio do galeão S. João (1552). Este corpus reservava para a
Cafraria, enquanto terra estranha, o papel de um palco onde desfilaram as maiores
tragédias a que o teatro do mundo assistiu, nos séculos XVI e XVII .
Enquanto categoria espacial, a Cafraria faz parte de uma nova geografia afirmada
ao longo do século XVI e construida com dados do conhecimento empírico, permitindo
ampliar e renomear os espaços do mundo. Luis del Mármol Caruajal, na sua Descripcion
general de Africa, publicada em Málaga, no ano de 1599, afirma que a divisão antiga do
continente se fazia entre Baixa e Alta Etiópia, a que os Hebreus haviam chamado Cush e
que “el dia de oy se divide en tres grandes partes. La baxa Etiopia, la Quefreria, y la
Abaxia”.1033 Tal classificação decorre da informação geográfica proveniente da
experiência das viagens e dos naufrágios, que passou a ser incluída nos textos impressos
e se generalizou como representação de uma nova secção geográfica do continente
africano.

1032
IDEM, ibidem, p. 29.
1033
Luis del Mármol CARUAJAL, SEGUNDA PARTE Y LIBRO SEPTIMO DE LA DESCRIPCION
general de Africa, donde se contiene las Provincias de Numidia, Libia, la tierra de los Negros, la baxa y
alta Etiopia, y Egipto, cõ todas las cosas memorables Della, Málaga, Emprenta de Iuan Rene, 1599, fl.
XXI. Em Quefreria, sublinhado nosso.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

2.2.1.2. Limites da Cafraria do poente

A costa sudoeste é menos contemplada nos textos de naufrágios, mas o Cabo


Negro parece ter desempenhado um papel de referência na delimitação da Cafraria,
nomeadamente porque separava a costa desértica da actual Namíbia, das terras habitadas
por povos, em processo de evangelização, a norte do referido cabo. O Padre Jerónimo
Lobo definiu como o pior troço de terra e gente aquele que medeia entre o rio
Umzimvubu, no sudeste africano, e Angola, na costa ocidental.1034
Se o macro-topónimo Cafraria se aplicou sobretudo aos territórios da África do
sudeste, desde meados do século XVI, sabe-se que na primeira década do século XVII a
coroa ibérica desenvolveu esforços no sentido de mandar mapear e recolher informações
detalhadas da costa sudoeste, entre o cabo Negro e o cabo da Boa Esperança.
Em Janeiro de 1608 houve consultas no Conselho de Portugal e no Conselho da
Índia, após reunião de uma Junta em que participou João Baptista Lavanha, dando notícia
ao rei sobre o benefício que seria enviar Gaspar Jorge do Couto, cosmógrafo, a
acompanhar o vice-rei na viagem para a Índia, a fim de testar certo instrumento náutico
que permitiria determinar os baixios e outros sítios perigosos para a navegação. Refere o
texto desta consulta no Conselho de Portugal que, em simultâneo a esta experimentação,
o cosmógrafo levaria a missão de “fazer o descobrimento que V. Magestade tem
mandado, da Costa da Cafraria entre o Cabo Negro, e o da Boa Esperança”.1035 Para esse
efeito seria enviada uma embarcação pequena para o regresso ao reino com os resultados
das observações. Esta missão teve o parecer favorável de João Baptista Lavanha, que
considerou ser muito importante “ajustar o sitio de muitos baixos perigosos, e de ilhas,
que está por determinar; (…) e outras muitas cousas de que se não tem conhecimento
certo”.1036

1034
Jerónimo LOBO, op. cit., p. 569.
1035
“Consulta do Conselho de Portugal” (Janeiro 1608), in Monumenta Missionária Africana. África
Ocidental, colig. e anotada por BRÁSIO, António, 1.ª Série, Vol. XV, Suplemento (Sécs. XV, XVI, XVII),
1485-1665, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1988, pp. 406-407. “Consulta do Conselho da Índia”,
in Monumenta Missionária Africana. África Ocidental, colig. e anotada por BRÁSIO, António, 1.ª Série,
Vol. XV, Suplemento (Sécs. XV, XVI, XVII), 1485-1665, (…), pp. 419-420.
1036
“Consulta do Conselho de Portugal”, IDEM, ibidem, p. 406.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Não dispomos de documentação que confirme se esta expedição se concretizou,


mas uma anotação a este documento refere ser “velha a ideia da descoberta da
Cafraria”.1037 Esta anotação refere uma carta do rei para o bispo vice-rei, de 13 de
novembro de 1607, que ordenava “como as carauelas que tem mandado se enuiem a
descobrir a costa da Cafraria, entre o cabo Negro, e o de Boa Esperança, se aprestem
logo, para partirem com a breuidade que couem, fazendo que se proueja o dinheiro
neçessario pera isso, donde o ouver pronto”.1038 Tal nota, assinada por Christouão Soarez,
num documento de 1608, revela que a exploração da Cafraria ocidental constituía-se
como um objectivo estratégico importante e que, no ano de 1607, terá sido ordenado o
envio de caravelas a fazer a exploração desta costa.
Sabemos que o projeto de exploração da Cafraria ocidental teve andamento,
através do regimento para a missão de Belchior Roiz, no “descobrimento (…) da terra da
Cafraria, ãtre os cabos Negro e de Boa Esperança” (1613). Este regimento, do qual
existem duas versões muito próximas, datadas de 4 e 25 de janeiro, continha instruções
sobre as finalidades e os métodos a usar no levantamento da Cafraria ocidental. Neste
sentido, Belchior Roiz deveria proceder a um registo exaustivo da costa, desde o local
mais próximo de terra – aguada de Saldanha – para depois navegar até Angola, tomando
sempre o sol com recurso aos instrumentos de navegação astronómica e às tábuas de João
Baptista Lavanha. Mandava também que fossem indagadas as distâncias terrestres entre
esta Cafraria ocidental e a Cafraria oriental, na busca de informações sobre as
possibilidades da travessia do continente.
O documento ordenava a elaboração cuidada de uma representação cartográfica,
em que cada grau correspondesse a um palmo, de modo que todas as particularidades da
navegação, da costa e suas conhecenças fossem registadas em seis a oito “Taboas”. Num
Livro à parte, deveriam ser descritos todos os portos, cabos, angras, baías, bocas de rios,
ribeiros e baixios, integrando os dados importantes que constituem um roteiro, a que se
acrescentavam as eventuais potencialidades para o comércio, devendo as conhecenças ser
desenhadas “cõ as cores com que se representarem à vista”. O regimento mandava indagar
o conhecimento que os povoadores daquelas partes eventualmente teriam “do Mar da
Jndia da outra banda, que hé o de Çofala, Moçambique e Mombaça; e tendo delle

1037
“Consulta do Conselho da Índia”, IDEM, ibidem, p. 420.
1038
IDEM, ibidem.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

conhecimento da distancia (medida ao seu modo) que há de um ao outro; e se tem algum


do Reyno de Monomotapa e de suas minas”.1039
A par dos dados geográficos, a relação deveria conter todas as informações
possíveis “Das pouoaçoes d'aquelles Cafres, dos seus tratos, costumes, ritos, armas,
embarcações, dos seus mantimentos, dos animaes, das aues, e de todas as mais cousas
notaueis e estranhas da terra, e do mar, se façaõ muy particulares Relações”.1040
Segundo Armando Cortesão e Avelino Teixeira da Mota, a caravela ou pataxo
saiu de Lisboa em 28 de Janeiro e terá chegado a Goa a 4 de Junho, não havendo mais
notícias sobre esta expedição de levantamento da Cafraria, ignorando-se se teria sido
conretizada de acordo com as intenções do regimento.1041
Em 1629, Filipe IV enviou ao vice-rei de Portugal a cópia de um papel com “hum
Mapa sobre o descubrimento que se refere que os olandezes fizeraõ de certas terras na
altura do Cabo de Boa Esperança, a que derão o nome Endracht”.1042 O rei mandava
averiguar, com todo o resguardo possível, a terra de que se trataria, a sua importância, os
seus portos, entradas e ancoradouros, os seus habitantes, os frutos e metais e toda a mais
informação que pudesse ser alcançada. Face ao esforço financeiro que a coroa Ibérica
enfrentava, no contexto da Guerra dos Trinta Anos, este investimento, que se supunha ter
a ver com o “descobrimento da Cafraria”, apresentava-se como muito significativo. O
“resguardo” recomendado nesta averiguação corresponde ao silêncio documental que se
lhe seguiu.
Eendracht era o nome de um navio da Companhia das Índias Orientais holandesa,
capitaneado por Dirk Hartog, que viajou para o sudeste asiático em 1616, numa frota de
cinco navios.1043 Nesta viagem terá enfrentado mau tempo ao largo do cabo da Boa
Esperança, afastando-se da restante frota e tendo-se aí abrigando, entre 5 e 27 de Agosto,

1039
“Regimento da Descoberta da Costa da Cafraria” (25-01-1613), in Monumenta Missionária Africana.
África Ocidental, colig. e anotada por BRÁSIO, António, Vol. VI (1611-1621), Lisboa, Agência Geral do
Ultramar, 1955, p. 118.
1040
IDEM, ibidem, p. 119.
1041
Portugaliae Monumenta Cartographica, Armando Zuzarte CORTESÃO e Avelino Teixeira da MOTA
(ed. de), Vol. III, (…), p. 46.
1042
“Carta Régia ao Vice-Rei da India sobre a Descoberta da Cafraria” (27-3-1629), in Monumenta
Missionária Africana. África Ocidental, colig. e anotada por BRÁSIO, António, 1.ª Série, Vol. XV,
Suplemento (Sécs. XV, XVI, XVII), 1485-1665, (…), p. 562.
1043
Wendy Van DUIVENVOORDE, “DUTCH SEAMAN DIRK HARTOG (1583–1621) AND HIS
SHIP EENDRACHT.” The Great Circle, vol. 38, no. 1, 2016, p. 7. https://www.jstor.org/stable/26381208
(consutado em 28/08/2021).

267
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

antes de prosseguir viagem, rumo ao arquipélago indonésio.1044 O diário e as notas da


viagem de Hartog foram usadas para criar a primeira representação cartográfica da costa
ocidental da Austrália, tendo o cartógrafo Hessel Gerritszoon recolhido informações
sobre essas terras austrais, através de viagens de reconhecimento efectuadas durante uma
década. Foi a costa noroeste da Austrália que recebeu o nome de “Landt van
d’Eendracht”1045, sendo que a latitude das terras assinaladas na Carta holandesa, entre
aproximadamente 22º e 28º Sul. O acesso a uma cópia desta Carta, sem referências
longitudinais, poderia levar a considerar a hipótese de que se trataria da costa da cafraria
poente, que nessas latitudes corria o deserto da Namíbia, até às proximidades do rio
Orange-Gariep.
Tem-se conhecimento, também, que as instruções de navegação da Companhia
das Índias Orientais, de 1617, especificavam que todos os navios, depois de terem
estacionado para refresco no cabo da Boa Esperança ou Tafelbay, faziam a sua rota para
Oriente, na latitude 35, 36, 40 para 44 graus Sul, o que significa que a paragem técnica
no Cabo, tinha entrado nos regimentos de navegação holandeses.1046
Quando em 1629 o rei Filipe IV mandou averiguar sobre os territórios das
latitudes referidas e da acção aí desenvolvida pelos holandeses, será muito provável que
lhe tenham chegado informações sobre a presença frequente dos navios da Companhia
das Índias Orientais no cabo da Boa Esperança. Mas, se aqueles territórios mais
meridionais eram cada vez eram mais frequentados pelos navios holandeses em trânsito
para o sudeste asiático, continuavam a despertar interesse em determinados círculos de
homens práticos portugueses.
Numa “Consulta do Conselho Ultramarino”, foi dada notícia da descoberta, em
1647, de uma enseada no cabo de Boa Esperança, por Domingos de Magalhães Lima. O
piloto descreveu a enseada como muito limpa e abrigada dos ventos, havendo aí muito
gentio e mantimentos. Elogiou as condições de segurança para estabelecer uma povoação

1044
http://museum.wa.gov.au/explore/dirk-hartog
Eendracht era nome de navio e significava “união” ou “harmonia”, tendo a extremidade sul do continente
africano recebido esse nome, antes do navio prosseguir viagem rumo ao arquipélago indonésio. Conhece-
se uma carta de 1627, que representa uma terra com este nome, mas que se refere à costa explorada na
Autrália ocidental, no contexto desta mesma expedição. Veja-se Hessel GERRITSZ, Caert van't Landt van
d'Eendracht uyt de Iournalen ende afteykeningen der Stierluyden t'samengestelt, Ao. 1627 [cartographic
material] / Bij Hessel Gerritsz, 1627 http://nla.gov.au/nla.obj-231306061 (consutado em 28/08/2021)
1045
Wendy Van DUIVENVOORDE, op. cit., p. 17.
1046
IDEM, ibidem, p. 9

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

e para abrigo e conserto das naus da Índia, tendo entregue um planta deste seu primeiro
reconhecimento e solicitado apoio para empreender uma outra missão exploratória.1047 O
Conselho Ultramarino deu parecer favorável à realização dessa expedição, que foi
iniciada por Domingos de Magalhães em 1650. Entretanto, devido a mau tempo o piloto
teve que arribar a Benguela, falecendo pouco tempo depois.1048
Em 1652, outra “Consulta do Conselho Ultramarino” suscitou nova análise da
planta feita por Domingos Magalhães e, encontrando-se no reino o piloto Gaspar Pereira
dos Reis, foi convocada uma reunião de cosmógrafos para considerarem o que deveria
ser feito ou alterado face à informação entretanto recebida de António Raposo que, de
Amsterdão, avisava sobre o projeto da instalação holandesa no cabo da Boa Esperança.
A notícia de que os holandeses tinham enviado um navio com oitenta pessoas para
fazerem fortaleza e povoação no cabo da Boa Esperança parece assinalar o fim de um
ciclo de presenças intermitentes de portugueses no Cabo, cuja importância estratégica
chamou a atenção de alguns homens práticos que defenderam a fixação portuguesa na
extremidade meridional africana. A morosidade dos processos que levaram à aprovação
de expedições de “descobrimento” e as dificuldades técnicas das suas realizações
levaram, ainda assim, à recolha de informações importantes, que se mantiveram em
círculos confidenciais. O conde presidente deste conselho ultramarino de 1652,
conformando-se com o que fosse o voto dos conselheiros, acrescentou que “quando se
não resolua que daqui se vá fazer o dito descobrimento, ou que de Angolla se mande
apurar com breuidade o que isto hé, se ordene ao V. Rey da India envie a este
descobrimento, com promessa de mercês, alguma pessoa pratica, e com ella os dous
Cafres que Domingos de Magalhães leuou á India, da mesma sua terra, bem vestidos, e
contentes porque podem ser de muito effeito”.1049
Na referida reunião de cartógrafos, Gaspar Pereira dos Reis recolheu os dados
registados por Domingos de Magalhães, tendo estes sido incluídos no Atlas de dez cartas
manuscritas, elaboradas por André Pereira dos Reis, filho do piloto Gaspar, em 1654. A

1047
“Consulta do Conselho Ultramarino” (5-9-1648), in Monumenta Missionária Africana. África
Ocidental, colig. e anotada por BRÁSIO, António, Vol X (1647-1650), Lisboa, Agência Geral do Ultramar,
1965, pp. 223-226.
1048
Portugaliae Monumenta Cartographica, Armando Zuzarte CORTESÃO e Avelino Teixeira da MOTA
(ed. de), Vol. V, (…), p. 27.
1049
“Consulta do Conselho Ultramarino” (21-2-1652), in Monumenta Missionária Africana. África
Ocidental, colig. e anotada por BRÁSIO, António, Vol XI (1651-1655), Lisboa, Agência Geral do
Ultramar, 1971, p. 146.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Primeira carta deste Atlas intitula-se “Demonstração do Cabo de Boa Esperança”,


contendo uma legenda que refere “demonstração do cabo de boa esperança / Na forma
em que descobrio domingos de magalhães” e, de acordo com o que tinha sido a percepção
daquele piloto, o cabo é representado como uma ilha. Outra legenda menciona que a baía
“Hé Abundante de mantimentos e Agoa”.1050
Daqui por diante, qualquer promessa de projeto de exploração da costa oeste da
Cafraria havia de colidir com o ciclo holandês do Cabo.
Será para o “sertão da Cafraria” que se voltam os interesses exloratórios, em
tentativas de concretização da travessia terrestre do continente. Em 1663, o Padre Manuel
Godinho escrevia que “o caminho de Angola por terra á índia não he ainda descuberto;
mas não deixa de ser sabido” e acrescenta que o caminho se fará de Angola à “lagoa
Zachaf” que fica “não muito longe de Zimbaué”. Sai dessa lagoa “o rio Aruui, que por
cima do nosso forte de Tete se mete no rio Zambeze. E também o rio Chire, que cortando
por muitas terras, & vltimamente pellas do Rondo, se vai ajuntar com o rio de Cuama,
pera baixo de Sena.”1051
Segundo Maria Emília Madeira Santos, ter-se-ia verificado todo um conjunto de
explorações terrestres que não foram divulgadas na época, pois muitas das cartas e
relatórios resultantes de expedições foram “cuidadosamente guardadas para fins
oficiais”.1052 Acrescenta que, tanto uma carta de João Teixeira Albernaz II (do Atlas de
1665), como outras, foram copiadas por um diplomata e levadas para França, permitindo
a cartógrafos como Jaillot e Coronelli integrar as informações de origem portuguesa tanto
em novas cartas, como em globos. Maria Emília Santos não menciona o nome do
diplomata francês que terá recolhido informações cartográficas em Portugal, mas
avançamos a hipótese de poder ter sido Allain Manesson Mallet que publicou, em 1683,
a Description de l'univers, a qual contém uma representação da Cafraria, cujos contornos

1050
André Pereira dos REIS, “Demonstração do Cabo de Boa Esperança” (1654), in Portugaliae
Monumenta Cartographica, Armando Zuzarte CORTESÃO e Avelino Teixeira da MOTA (ed. de), Vol.
V, (…), Estampa 541 A.
1051
“Comunicação entre as duas costas africanas” (1663), in Monumenta Missionária Africana. África
Ocidental, colig. e anotada por BRÁSIO, António, Vol. XII (1656-1665), Lisboa, Agência Geral do
Ultramar, 1981, p. 474.
1052
Maria Emília Madeira SANTOS, Viagens de Exploração Terrestre dos Portugueses em África, 2ª ed.,
Lisboa, Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, 1988, p. 125.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

correspondem às informações recolhidas nas expedições exploratórias já


mencionadas.1053 (Mapa 2)
Um atlas de dezassete cartas, publicado em Amsterdão em 1700, com o título Suite
du Neptune françois, ou Atlas nouvelle des cartes marines. Levées par ordre expres des
Roys de Portugal, reproduz os mapas de 1665 de João Teixeira Albernaz II, indicando
que as descrições exactas foram feitas por ordens dos reis de Portugal.1054
A cartografia portuguesa era sobretudo manuscrita e as suas informações foram
usadas noutros espaços europeus onde predominavam as artes e técnicas de impressão,
que divulgaram para outras audiências as informações e representações de origem
portuguesa.1055 A este propósito parece-nos oportuno mencionar o globo terrestre de
Vincenzo Maria Coronelli (1688), que integra toda uma toponímia de origem portuguesa.
No contorno meridional do continente africano podemos destacar as três legendas
toponímicas que se seguem: na costa ocidental, aproximadamente a sul do Cabo Negro –
“COSTE PAESE DE CAFRI”; na costa oriental, até ao Cabo das Correntes –
“CAFRERIE”; no oceano que acompanha o limite meridional do continente, até ao Cabo
das Correntes – “IL MARE DELLI CAFRI”.1056
O macro-topónimo Cafraria popularizou-se ao longo do século XVII, em grande
parte devido às facilidades da imprensa e à popularidade dos textos de viagens e narrativas
de naufrágios. Em breve, o topónimo transitava para as representações cartográficas
europeias dos novos espaços do mundo, como ocorreu com a seguinte carta do
Monomotapa e Cafraria, da autoria de Allain Manesson Mallet.1057

1053
Antes de servir na corte do rei Luís XIV, Allain Manesson Mallet esteve ao serviço do rei de Portugal,
Afonso VI, desde 1663, até à assinatura do Tratado de Lisboa, em 1668, trabalhando como engenheiro de
fortificações e sistemas defensivos. Na sua estadia em Portugal recolheu textos e informações que lhe
permitiram compôr uma imagem geográfica, ainda que genérica, da Cafraria.
1054
Maria Fernanda ALEGRIA, Suzanne DAVEAU, João Carlos GARCIA, and Francesc RELAÑO,
“Portuguese Cartography in the Renaissance”, in The History of Cartography, David WOODWARD (ed.),
Volume 3, Parte I - Cartography in the European Renaissance, Chicago, University of Chicago Press, 2007,
p. 1021. https://press.uchicago.edu/books/HOC/HOC_V3_Pt1/HOC_VOLUME3_Part1_chapter38.pdf
(consultado em 20-08-2021)
1055
IDEM, ibidem, p. 1059.
1056
Vincenzo Maria CORONELLI, Globo Terrestre, Veneza, 1688, [ Ø 108 𝑐𝑚], 𝑖𝑛 Instituto e Museo di
Storia della Scienza - Museo Galileo, Firenze, Inv. 2363.
1057
Allain Manesson MALLET, Description de l'univers: contenant les différents systêmes du monde, les
cartes générales et particulières de la géographie ancienne et moderne, les plans et les profils des
principales villes et des autres lieux plus considérables de la terre, avec les portraits des souverains qui y
commandent, leurs blasons, titres et livrées, et les moeurs, religions, gouvernemens et divers habillemens
de chaque nation, Tomo 3 (Afrique ancienne et moderne), Paris, Chez Denys Thierry,1683, p. 115.
https://archive.org/details/descriptiondelun00mane_2/page/114/mode/2up (consultado em 2/02/2017)

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Mapa 3 – A Cafraria, por Allain Manesson Mallet

Representação cartográfica do Monomotapa e Cafraria, em


Allain Manesson Mallet, Description de L'Univers, 1683, Fig.
XLVI.

Se a produção escrita portuguesa é abundante em informações relativas à Cafraria


do Sudeste, revela-se mais lacónica face a Cafraria do poente. Quanto à cartografia
portuguesa, essencialmente manuscrita, verifica-se uma “resistência” à integração, nas
cartas, dos topónimos “Terra de Cafres” ou “Cafraria”, mantendo-se uma linha de

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

tradição que realça a extremidade sul do continente com a legenda “Bonaespei” e designa
os traços topográficos da costa com as informações e conhecenças de carácter roteirístico.
Destacam-se como excepção as seguintes cartas: o “Atlas de vinte e uma folhas”, de
Fernão Vaz Dourado (1575), que representa a carta da África a sul do Equador e cuja
moldura ostenta a legenda – “NESTA LAMINA . ESTA LAMCADO . TODA . A CAFRARIA
. DE COMGO . ATE . O CABO . DE . BOA . ESPERÃCA . E MOSAMBIQUE .”1058; o “Atlas
de Africa com vinte e nove cartas”, de João Teixeira Albernaz II (1665), que faz figurar
a legenda “Terra de Cafres” para identificar os territórios da África ocidental, entre o
Cabo Negro e o Cabo da Boa Esperança, prolongando para sul a sequência de legendas
“Reino de Congo” e “Reino de Angolla”1059. Preenchia-se, deste modo, um espaço vazio
do mapa que, durante a primeira metade do século XVII despertou o interesse da coroa
portuguesa na organização de expedições exploratórias do litoral da Cafraria, entre o
cabo Negro e o cabo da Boa Esperança.
O período posterior ao estabelecimento dos holandeses no Cabo, com a construção
de uma fortaleza para apoio à Companhia das Índias Orientais, tornava mais frequentes
as explorações nestes territórios meridionais. Em breve surgiriam as primeiras descrições
exaustivas da Cafraria e dos seus habitantes. Olfert Dapper (1686) tentava reunir todo o
conhecimento sobre esta parte do mundo numa obra que seria sucessivamente traduzida
em inglês, alemão e françês.1060 Os séculos XVII e XVIII assistiram a uma verdadeira
proliferação cartográfica onde as legendas “Cafraria”, “Costa de Caffres”, “País dos
Caffres” traduziam, por entre a sinaléctica gráfica, um conhecimento prático acumulado
pelas expedições de “descobrimento” e “reconhecimento” levadas a cabo por pilotos
portugueses. De acordo com esse conhecimento prático, os territórios inicialmente
marcados com estas legendas localizam-se a leste do cabo da Boa Esperança, e só numa
fase posterior passam a designar os territórios mais vastos, localizados entre o cabo Negro
e o cabo das Correntes. Alguns dos autores e cartógrafos estrangeiros que divulgaram
representações gráficas da Cafraria: Blaeu – 1635; Meran – 1649; Sanson – 1655 e 1690;

1058
Fernão Vaz DOURADO, “Atlas de vinte e uma folhas”, 1575, fl. 10, in Portugaliae Monumenta
Cartographica, Armando Zuzarte CORTESÃO e Avelino Teixeira da MOTA (ed. de), Vol. III, (…),
Estampa 303.
1059
João Teixeira ALBERNAZ II, “Atlas de África com vinte e nove cartas”, ibidem, Vol. V, 1665, fl. 15
v.-16r., Estampa 554 C.
1060
Olfert DAPPER, “La Description de l’Afrique”, (1686), in Dominique LANNI, Fureur et Barbarie.
Récits de Voyages chez les Cafres et les Hottentots – 1665-1721, Paris, Cosmopole, 2001, pp. 36-62.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Du Vaal - 1664 e 1682; Ogilby – 1670; De Wit – 1680; Mallet – 1683-88; Coronelli –
1689 e 1691; Allard – 1690; Mortier – 1700; Van Keulen – 1716.

2.2.2. Cafres, bárbaros, selvagens e gentios

Se o uso do vocábulo cafre está atestado para os primeiros anos do século XVI,
começando por ter uma circulação regional, a sua fixação em suporte impresso garantiria
a generalização de um sentido definidor dos habitantes da África oriental. Na segunda
metade do século XVI este sentido já estava suficientemente generalizado. A prová-lo
está a sua utilização pelo autor caboverdiano, André Álvares de Almada (1594), que ao
explicar as dinâmicas comerciais nos Rios de Guiné do Cabo Verde, com destaque para
o comércio do ouro em troca de manilhas, afirmava (equivocamente) que a origem desse
ouro, trazido pelos comerciantes mandingas do Rio Gâmbia e todo o ouro que chegava a
Tombuctu, estava nas “serras de Sofala” e era mediado pelos “Cafres”:
“(…) vem este ouro e o que vai a Tumbocutum, das serras de Sofala (14). Porque falando
com Anhadelen, capitão daquela cáfila, perguntando-lhe miudamente donde ia[m] e
donde levavam as manilhas, me disse que aos Cafres, nomeando-os por este próprio
nome.”1061

O informador de Álvares de Almada ter-lhe-ia transmitido, ainda, que os


mercadores iam muito longe fazer este comércio e “punham muitos dias no caminho e
passavam por muitas terras, com muito risco de suas pessoas”. 1062 De acordo com a
temática do presente trabalho, o que nos parece ser relevante nesta passagem é a
associação da designação de cafres à África oriental, a Sofala e seus sertões, sendo estes
identificados como terras do ouro. Esta acepção parece estar claramente consolidada na
segunda metade do século XVI, pois o autor refere-se a acontecimentos e informações
que recolheu em 1578.

1061
André Álvares de ALMADA, Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo Verde dês do Rio de Sanagá
até os baixos de Santa Ana de todas as nações de negros que há na dita costa e de seus costumes, armas,
trajos, juramentos, guerras. Feito pelo capitão André Álvares d' Almada natural da Ilha de Santiago de
Cabo Verde prático e versado nas ditas partes. Ano 1594., leitura, introdução e notas de António BRÁSIO,
Lisboa, Editorial L. I. A. M, 1964, p. 49.
1062
IDEM, ibidem, p. 50.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Nos diversos discursos relativos à África oriental temos verificado que, sob o
signo identificativo cafre, foi-se construindo uma categoria que não se limitava a
designar, mas que permitia classificar os habitantes do sudeste africano quanto à sua
natureza religiosa. Neste sentido, cafres eram descritos como gentios ou pagãos, a que se
acrescentavam atributos relativos a modos de vida, que confluiam para a barbárie e a
selvajaria.
No corpus concreto dos relatos que integram a literatura de naufrágios, os
discursos que materializam as concepções sobre os povos da África do sudeste
construiram-se com recurso à categoria de “bárbaro” que, na sua antiguidade de sentidos,
designava “os outros”, os habitantes da extremidade do mundo, que não partilhavam a
mesma matriz cultural e eram considerados rudes. Dentro da barbárie, emergiu com
frequência a categoria de “selvagem” que, associando terras e gentes a adjectivos como
brutos, bravios, ferozes, entra no campo semântico e simbólico da animalidade.
A descrição do corpo, das crenças e dos modos de viver das comunidades com
quem os náufragos portugueses interagiram, nos séculos XVI e XVII, ocupa extensões
consideráveis dos relatos de naufrágios, desde os registos referentes à perdição do galeão
S. João (1552), até aos relatos versando os naufrágios das naus Sacramento e Nossa
Senhora da Atalaia (1647). Estes agrupamentos temáticos das informações contidas nos
textos dos relatos funcionam como descritores ou, na definição de José Horta, como
“níveis de representação”, que nos permitem analisar as concepções sobre os africanos,
na perspectiva do observador português.1063
O discurso do relato anónimo do naufrágio do galeão S. João, tal como é
conhecido, tanto na versão de folheto de cordel, como na versão Britiana, foi concebido
e estruturado sob a forma de um lamento contínuo que deveria permitir a mobilização dos
mecanismos psíquicos para o trabalho do luto colectivo1064, mas também tinha um intento
pedagógico e moralizador, conducente a reflexões sobre as acções humanas. Dado que a
reflexão era sugerida pelo acontecimento trágico do naufrágio, muitas vezes motivado
pela ambição materialista que feria de morte os alicerces do império marítimo português,

1063
A propósito do conceito de “níveis de representação”, veja-se: José da Silva HORTA, “A representação
do Africano na Literatura de Viagens, do Senegal à Serra Leoa”, (…), p. 211; A “Guiné do Cabo Verde”:
Produção Textual e Representações (1578-1684), (…), p. 278.
1064
Alfredo MARGARIDO, “O trabalho do luto nos relatos dos naufrágios”, (…), pp. 76 -77.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

estes relatos constituem-se também como a antítese da epopeia, ou seja, como fontes
historiográficas de natureza disruptiva, nas quais o elemento humano “cafre” desempenha
um papel determinante1065.
Os códigos culturais do viajante e observador português, bem como do escritor,
compilador ou editor, que não viajou nem observou as realidades narradas nos textos,
funcionaram como referenciais em rede, de um sistema de pensamento assumido como
hegemónico. Ao plasmarem-se nos textos de leitura corrente, tais códigos culturais
contribuiram para moldar o conhecimento europeu sobre África do sudeste e seus
habitantes com base num inventário de diferenças que se transmutam em oposições.
Sendo os relatos de naufrágios construções retóricas que integram na sua
textualidade concepções emanadas do sistema de pensamento que se veio consolidando
na cultura europeia desde a Antiguidade, registam as “leituras” possíveis do encontro com
a diversidade antropológica. Assim, num primeiro nível de abordagem, os relatos de
naufrágios revelam-nos a percepção de um “outro” genérico e indiferenciado. Num
segundo nível de leitura, é-nos possível apreender o outro relacional, com o qual foram
estabelecidas ligações, diálogos, comunicação, permitindo em certos casos a revelação de
quadros mentais abertos à heterogeneidade humana.
As circunstâncias dramáticas que deram origem ao texto impresso sobre o
naufrágio do galeão S. João legitimaram, na época, a consolidação de estereótipos
desfavoráveis relativos aos africanos da costa leste. A afirmação de que o galeão varou
“em terra de cafres”, um remédio “tão perigoso” para aquelas quinhentas vidas, reflecte
uma percepção concreta dos africanos no processo de construção de uma categoria de
representação, que é tanto beneficiária de uma tradição cultural de longa duração, quanto
geradora de imagens mentais secundárias. Estas imagens secundárias construíam-se a
partir das leituras que, através dos sentidos atrbuídos pelo público, permitiam recriar
cenários de desintegração de referentes, que conectavam num imaginário os destroços da
nau perdida, os cafres e o perigo.
De seguida, analisaremos os estereótipos que integram a categoria de cafre,
enquanto imagem classificatória, pela qual foi apreendida esta humanidade africana nos
relatos de naufrágios.

1065
Josiah BLACKMORE, Manifest Perdition. Shipwreck Narrative and the Disruption of Empire, (…), p.
41.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Cafres: negros e bárbaros


Cafre assumia o mesmo sentido que “negro da terra” ou “gente da terra” e definia
os habitantes da costa leste e sul do continente africano, desde o Cabo da Boa Esperança
até às bocas do Zambeze.
A designação era intencionalmente usada por oposição ao viajante cristão,
português, náufrago, perdido e vulnerável.
No relato fundador da literatura portuguesa de naufrágios, “cafres” e “negros”
surgem no texto com valor sinonímico:

“(…) e estiveram ali doze dias, e em todos eles lhes não veio falar nenhum negro da terra;
sòmente aos três primeiros apareceram nove cafres em um outeiro, e ali estariam duas
horas, sem terem nenhuma fala connosco; (…) E dali a dois dias lhe pareceu bem
mandarem hum homem e um cafre do mesmo galeão, para ver se achavam alguns negros
que com eles quisessem falar. (…)
Dali a três dias, estando naquele lugar onde escaparam do galeão, lhes apareceram em um
outeiro sete ou oito cafres com uma vaca presa, e por acenos os fizeram os cristãos descer
abaixo, e o capitão com quatro homens foi falar com eles, e, despois de os ter seguros,
lhes disseram os negros por acenos que queriam ferro”. 1066

Neste excerto, como em muitas passagens dos textos dos diversos relatos, são
comuns as referência aos “cafres da terra” ou “negros da terra”, para se distinguirem dos
“cafres nossos”, neste caso “um cafre do mesmo galeão”, como frequentemente eram
nomeados os escravos africanos a bordo dos navios perdidos.
No manuscrito de Évora do naufrágio do galeão S. João, destaca-se uma referência
aos cafres, que seriam escravos, carregando às costas, num andor, Dona Leonor de Sá.1067
Na peregrinação terrestre rumo a um porto conhecido, estes cafres desempenharam a
função de carregadores de pessoas e mercadorias ou ainda de intérpretes ou mediadores
na comunicação verbal e, nesse sentido, surgem identificados como “cafres nossos”,

1066
“Relação da mui notável perda do Galeão Grande S. João em que se contam os grandes trabalhos e
lastimosas cousas que aconteceram ao Capitão Manuel de Sousa Sepúlveda e o lamentável fim que ele e
sua mulher e filhos, e toda a mais gente, houveram na Terra do Natal, onde se perderam a 24 de Junho de
1552”, in H.T.M., Vol. I, (…), p. 24; sublinhados nossos.
1067
“Relação da Perdição do Galeão São João vindo da India, na Costa da Cafraria. De que hera Cappitam
Manuel de Sousa de Sepúlveda”, B.P.E., Cod. CXV/2-8, fl. 50 vº.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

distinguindo-se dos “cafres da terra”. Esta designação de cafres, aplicada aos escravos,
funcionava simultaneamente como um rótulo genérico em sinonímia com “escravo”,
“cativo” ou “negro”, que especificava o espaço africano de origem dos mesmos,
remetendo para a costa sudeste africana.
Os “cafres da terra” eram as populações locais, que ora agasalhavam os náufragos,
ora saíam ao caminho para trocas e resgates ou, ainda, armados salteavam e afugentavam
os estranhos caminhantes que percorriam as suas terras.
Em termos da concepção antropológica vigente, é significativa a forma como os
textos exibem a contagem dos sobreviventes dos diversos naufrágios, em distintas
parcelas de uma soma: a parcela dos “escravos” e a dos “portugueses”. Do galeão S. João,
o texto impresso menciona terem morrido no embate e fractura da nau “mais de quarenta
portugueses e setenta escravos”1068, tendo chegado ao final da peregrinação por terra “oito
portugueses e catorze escravos, e três escravas”.1069 A mesma lógica descritiva, que
separa “portugueses” de “escravos” na contagem dos sobreviventes, ocorre nos relatos
dos naufrágios das naus S. Bento (1554) e Santo Alberto (1593). 1070
Nos casos das naus Santiago, naufragada no Baixo da Judia (1585), e S. Tomé
(1589), afundada próximo dos medãos do ouro, os sobreviventes que alcançaram terra
foram os que tiveram o privilégio de embarcar em batéis salva-vidas ou jangadas, o que
implicava desde logo uma dura selecção de acordo com a própria hierarquia social da
nau. Ainda assim, no relato do naufrágio da nau S. Tomé, são mencionadas as pessoas
que, tendo entrado no batel acabariam por ser alijadas ao mar, entre as quais se contavam
“alguns escravos”1071.
José Cabreira, ao narrar as desaventuras da nau Belém (1635) e a quebra do navio
pela tempestade e furacão, coloca em evidência o compromisso de “passageyros” e

1068
“Relação da mui notável perda do Galeão Grande S. João em que se contam os grandes trabalhos e
lastimosas cousas que aconteceram ao Capitão Manuel de Sousa Sepúlveda e o lamentável fim que ele e
sua mulher e filhos, e toda a mais gente, houveram na Terra do Natal, onde se perderam a 24 de Junho de
1552”, in H.T.M., Vol. I, (…).
1069
IDEM, ibidem, p. 36.
1070
IDEM, ibidem, p. 60. Veja-se, para a nau Santo Alberto: João Baptista LAVANHA, “Naufrágio da Nau
Santo Alberto no Penedo das Fontes, no ano de 1593 e Itinerário da gente que dele se salvou até chegarem
a Moçambique, escrito por João Baptista Lavanha Cosmógrafo-mor de Sua Majestade, no ano de 1597”, in
H.T.M., Vol. III, (…), p. 26.
1071
Diogo do COUTO, “Relação do naufrágio da Nau São Tomé na Terra dos Fumos, no ano de 1589 e
dos grandes trabalhos que passou D. Paulo de Lima nas Terras da Cafraria, até a sua morte”, in H.T.M.,
Vol. II, (…), p. 236.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

“negros”, bem como o envolvimento de “escravos” no concerto dos componentes da nau


e no escoamento das bombas.1072
Perante o exposto, verificamos que o universo antropológico do navio era
concebido de acordo com identidades e estatutos sociais distintos, que colocavam
“portugueses” ou “passageiros”, de um lado, e “escravos”, de outro.
O relato das naus Sacramento e Nossa Srª da Atalaia contempla as expressões
mais humanizadas de “gente” e “pessoas” para se referir aos que sofreram, pereceram e
sobreviveram com o naufrágio: “se lançou muita gente”; “se alagou com setenta pessoas”,
sendo que a distinção entre homens livres e escravos depreende-se da expessão “sahirão
alguns negros nossos a terra, dizendo, que ainda estava na Nào gente branca sem mais
reparo”.1073
Os escravos africanos, a bordo dos navios da Carreira da Índia, eram mercadoria
alienável, objecto de propriedade e, para todos os efeitos, consideravam-se humanos
inferiores à face da lei. A esta inferioridade legal, acrescia a cultural, pois de acordo com
a matriz aristotélica, que persistia na mentalidade europeia do século XVI como base do
pensamento taxonómico, os africanos eram categorizados como povos bárbaros.
De acordo com o modelo clássico herdado, o estado de desenvolvimento humano
correspondente à polis e ao estado de polícia, implicava a presença de um conjunto de
factores relativos à estruturação hierárquica do poder, organização social e memória
colectiva, manifestando-se numa comunidade de homens livres sob os signos da fundação
de cidades, estabelecimento e implementação de leis escritas e existência de uma história
escrita. Acresciam as regras para a instituição do casamento, para regulamentar as
heranças, as relações comerciais e o uso de vestuário, sendo este um indicador dos
diferentes estatutos sociais.1074 A presença ou a ausência de tais factores separava
conceptualmente os povos “polidos” dos que eram considerados bárbaros e selvagens.
A referência a escravos ou cativos africanos, a bordo das naus, implicava o a priori
constituído pelo selo classificatório da “barbárie” aplicado aos cafres. As experiências
repetidas de naufrágios de navios portugueses, no sudeste africano, e a consequente

1072
Joseph de CABREYRA, Naufragio da Nao N. Senhora de Belem Feyto na terra do Natal no cabo de
Boa Esperança, & varios sucessos que teve o Capitão Joseph de Cabreyra, que nella passou à India no
anno de 1633. Fazendo o officio de Almirante daquella frota atè chegar a este Reyno, (…), ps. 13 e17.
1073
Bento Teyxeyra FEYO, op. cit., pp 16-17. (sublinhado nosso)
1074
Kate LOWE, “Introduction: The black African presence in Renaissance Europe”, in Thomas Foster
EARLE e Kate J. P. LOWE, Black Africans in Renaissance Europe, (…), p. 8.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

interacção com os seus povos parecia revelar aspectos de similitude entre as gentes locais
e os escravos levados a bordo. Não foram raras as vezes em que os escravos
desempenharam o papel de intérpretes nos processos de comunicação com as populações
autóctones, das quais dependia o salvamento colectivo. Nestes casos, apesar do estatuto
“inferior” do escravo africano, este passava a ser reconhecido pela sua função utilitária,
como mediador de culturas que, então, o observador europeu supunha estruturalmente
indiferenciadas.
Aconteceu, também, que o estatuto do escravo africano sofresse uma mutação,
sendo dissipada a sua condição de “cativo”, consequência das circunstâncias extremas de
peregrinação pela Cafraria. Francisco Vaz Dalmada refere que, em 1622, mandou “hum
negro nosso apalpando com um pào na mão por onde era a passagem, & para o fazer com
melhor vontade, lhe dey huma cadeya de ouro, porque elles não erão alli nossos cativos,
& porque não fugissem para os da terra, era necessario trazermolos contentes”.1075
Se, por um lado, esta passagem nos testemunha a realidade constituída pela fuga
de muitos escravos, que buscaram abrigo nas comunidades locais, revela-nos também que
o naufrágio, como acontecimento fracturante, servia de pretexto para que se manifestasse,
nos planos da vida e da sua projecção retórica, a verdadeira condição humana. Neste
sentido, chegou mesmo a ocorrer a supressão de dicotomias classificatórias. Exemplo
disso é o de um escravo a bordo da nau Santiago (1585), perdida num recife de coral, no
canal de Moçambique, que, na eminência da morte, festejava a sua alforria face aos
grilhões que a vida lhe havia reservado:
“À vista destas calamidades, um moço, cativo de Manuel Rodrigues, passageiro, começou
a fazer muita festa, alegrando-se e comendo dos doces, que não faltavão; saltou com
muito contentamento na água dentro do tanque, que a nau em si recolheu, onde, nadando,
dava muitos mergulhos, zombando dos mais, e dizendo que já era forro, que não devia
nada a ninguém, tão seguro e sem medo como se nadara no rio de Lisboa. Donde se vê
que os mesmos efeitos obra às vezes nos bárbaros a bruteza que nos bem instruídos a
lição e a filosofia”.1076

1075
Francisco Vaz DALMADA, op. cit., (…), p. 78; sublinhado nosso.
1076
Manuel Godinho CARDOSO, “Naufrágio da Nau Santiago no ano de 1585 e Itinerário da gente que
dele se salvou”, in H.T.M., Vol. II, (…), p. 176.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

A última frase coloca o leitor perante um momento de reflexão que relativiza o


valor da instrução e da filosofia, enquanto categorias do sistema epistemológico
ocidental, face à “bruteza” do “bárbaro” africano, cuja “lição” tornava evidente a todos a
ideia de libertação dos cativos e da igualdade dos humanos nos derradeiros momentos da
vida e na própria morte.
Os cafres, entendidos na sua acepção de “negros da terra”, distinguiam-se dos
escravos africanos, não só pela sua liberdade e exterioridade face à lei portuguesa, mas
também por constituirem o elemento humano que habitava e senhoreava as vastas
extensões territoriais percorridas pelos náufragos.
Após acidentados salvamentos em terra ocorriam os primeiros encontros dos
náufragos com gentes das comunidades locais.
Pelos traços somáticos e culturais dos africanos, a que correspondiam formulações
valorativas há muito enraizadas no imaginário dos portugueses, pelas experiências do
encontro, nem sempre mutuamente compreensívas e pacíficas, pelas diferenças alegadas
face às manifestações materiais e espirituais das comunidades africanas encontradas ao
longo dos percursos dos náufragos, os relatos de naufrágios confluem para uma
construção que enfatiza as antinomias. Os africanos da costa leste eram percepcionados,
de forma assimétrica, por um sistema de pensamento vinculado aos valores cristãos da
Europa dos séculos XVI e XVII. Do conjunto de relatos de naufrágios é possível extrair
um inventário de traços físicos e ideossincráticos, bem como a leitura e avaliação que os
autores fizeram dos comportamentos e acções associados à imagem do cafre. 1077 Veja-
se, a este respeito, o Quadro 4, dos Anexos.
A nudez ou a cobertura de escassas partes do corpo com peles de animais, o facto
de muitas sociedades não praticarem a agricultura, não cozinharem os alimentos, não
disporem de uma organização urbana e usarem como armas azagaias e paus tostados,
eram indicadores que postulavam sociedades vivendo num estado oponente de barbárie.
Mas, ainda que as armas fossem consideradas primitivas, dizia-se que os cafres as usavam
com destreza e eficácia, o que os textos retorizavam sob o epíteto da “crueldade”,
convertendo os sujeitos de tais destrezas em selvagens e temíveis.

1077
Vide Anexos, Quadro 4.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Sendo muitas vezes considerados selvagens, os africanos eram representados num


estado de fusão na natureza agreste e não domesticada. Assim, é comum os autores
estabelecerem analogias entre os cafres e o mundo animal, tanto na descrição dos seus
habitats, em matos e brenhas, como dos constantes assaltos cometidos aos náufragos em
que, pela sua agilidade e rapidez, eram comparados a aves de rapina, galgos, corços ou
estorninhos. Jerónimo Lobo refere que o primeiro abrigo encontrado naquelas terras,
umas moitas que funcionavam como rústica casa, os defenderia “dos cafres e das
feras”1078, concebendo uma partilha de identidade entre os africanos e o mundo das feras.
Todos os textos são trespassados pela ideia geral de que muitos cafres são ladrões
e que, por “desavergonhamento” tudo farão para saquear os poucos pertences que os
náufragos levavam para o resgate, nomeadamente objectos de ferro, cobre e latão. 1079
Entre os que foram considerados os piores ladrões de toda a Cafraria estão as
comunidades a norte do reino do Manhiça, e os que grangearam pior fama foram os
Mocarangas.1080
No processo relacional que coloca frente a frente o europeu e o africano, o
estabelecimento de uma comunicação verbal, ou a sua impossibilidade, desempenham
um papel crucial nas representações.
Sobreviventes da perdição do galeão S. João (1552) confrontam-se com a
incompreensão linguística, logo no primeiro contacto em que a comunicação se fez “por
acenos” e os autóctones bradaram “por sua lingua”.1081
Manuel de Mesquita Perestrelo, no relato da perdição da nau S. Bento (1554),
refere terem aparecido certos cafres que foram ao encontro dos náufragos e lhe contaram
“muitas coisas por linguagem, não tão mal pronunciadas como sempre houve e naquela
costa se costumava, por faltar entre nós quem os entendesse não ficamos por derradeiro

1078
Jerónimo LOBO, op. cit., p. 561.
1079
Manuel de Mesquita PERESTRELO, “Relação Sumaria da Viagem que fez Fernão de Álvares Cabral
desde que partiu deste Reino por Capitão-mor da armada que foi no ano de 1553 às partes da Índia até que
se perdeu no Cabo de Boa Esperança no ano de 1554”, in H.T.M., Vol. I, (…), p. 85.
1080
Francisco Vaz DALMADA, op. cit., pp. 75-77 e 81-82.
1081
“Relação da mui notável perda do Galeão Grande S. João em que se contam os grandes trabalhos e
lastimosas cousas que aconteceram ao Capitão Manuel de Sousa Sepúlveda e o lamentável fim que ele e
sua mulher e filhos, e toda a mais gente, houveram na Terra do Natal, onde se perderam a 24 de Junho de
1552”, in H.T.M., Vol. I, p. 24.

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sabendo mais”.1082 Excepcionalmente, no âmbito dos relatos de naufrágios analisados,


Perestrelo reconhece o estatuto de “linguagem”, ou de idioma de uma nação, o que era
falado pelos povos vivendo nas imediações do rio Msikaba. Além de reconhecer uma
identidade linguística no “Outro”, Perestrelo atribui a incompreensão do discurso à falta
de um intérprete, ou seja, a uma lacuna do “Mesmo”, o que pressupõe um certo grau de
reciprocidade e simetria no entendimento entre diferentes grupos humanos.
Quanto ao naufrágio da nau S. Tomé, o texto do sota-piloto, Gaspar Ferreira
Reimão, revela que a comunicação verbal não se estabeleceu, ainda que fosse tentada a
mediação por um náufrago falante de uma das línguas da região do Zambeze:
“(...) mandou logo o capittão, tres ou coatro marinheiros que fossem a terra (…) leuando
comsigo hum homem que tinha andado nos Rios de Cuama pera que achando cafres visse
se lhe entendia a limgoa pera saberem em que terra estauão, (…) coando chegarão e
acharão alguns cafres em cassas palhassas, os quaes tanto que os virão fugirão delles por
verem gente branca que nunqua virão, e perdido o primeiro medo, se tornarão pera os
purtugesses muito domesticos, aos quaes nunca lhe puderão emtender palauras alguas por
ser a limgoa deste gemtte muito deferente da de Cuama”. 1083

As diversas fontes sobre este naufrágio atestam que, ainda que os portugueses
procurassem estratégias para comunicar com as populações da designada “Terra dos
Fumos”, utilizando para esse efeito um intérprete dos rios de Cuama, a comunicação
verbal não se concretizou devido às diferenças estruturais entre os grupos linguísticos
Caranga e Tonga. O fundamental da comunicação terá sido não verbal, deixando clara a
atitude de espanto das gentes locais perante a presença, em suas terras, de homens
brancos. A fuga inicial e o posterior acolhimento que os habitantes locais prestaram aos
náufragos, muito provavelmente teria resultado da leitura cosmológica local, a partir da
qual estes povos atribuiram um significado místico ao homem branco, patente na
expressão de que seriam “filhos do sol”. A expressão “filhos do Sol”, com que algumas
populações teriam interpretado os portugueses devido à sua cor branca, foi registada nos
relatos do naufrágio da nau Santo Alberto, tanto o manuscrito anónimo, como a versão de

1082
Manuel de Mesquita PERESTRELO, “Relação Sumaria da Viagem que fez Fernão de Álvares Cabral
desde que partiu deste Reino por Capitão-mor da armada que foi no ano de 1553 às partes da Índia até que
se perdeu no Cabo de Boa Esperança no ano de 1554”, in H.T.M., Vol. I, (…), p. 64.
1083
Gaspar Ferreira REIMÃO, op. cit., p. 578.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

João Baptista Lavanha.1084 A mesma expressão aparece de novo no texto de Frei João dos
Santos, referindo-se à percepção que as populações da “Terra dos Fumos” tiveram dos
náufragos portugueses da nau S. Tomé.1085 Tal percepção do homem branco, no âmbito
de um horizonte religioso, se em determinados casos gerou medo, provocando a fuga de
gentes locais, também suscitou o “agasalho”, a proteção e a ajuda a grupos de náufragos
que passavam próximo das aldeias.
Terá sido nos territórios mais meridionais do continente africano, onde os
náufragos encontraram populações Khoi, que a reacção perante as línguas locais se
mostrou mais negativa. A comunicação verbal nunca se efectivou, nem com as tentativas
de mediação dos escravos “línguas”, facto na maioria das vezes imputável aos
autócnones, e ao seu grau de “barbárie”, que não permitia a compreensão com os outros
povos. É como se subtilmente fosse mobilizado o mito da Torre de Babel, da punição
divina e da dispersão das línguas pelas diversas regiões do mundo, cuja memória
simbólica era encontrada nesta extremidade meridional, onde os falares exibiam ainda as
marcas desses tempos primordiais da dispersão, sob a forma de “cliques” e outros sons
não encontrados, nem nas línguas europeias, nem noutras línguas africanas já contactadas
pelos portugueses. A constatação da diversidade do mundo aflora nas palavras de Vaz
Dalmada, para quem os habitantes dos territórios a sul do rio Great Fish “se não pode
entender nunca a esta gente palavra algua, porque o seu fallar não he como de gente, (…)
de modo que se pòde dizer por estes: que nem a terra he toda huma, nem a gente quasi
quasi”.1086
Frei Francisco dos Santos, cujos registos terão sido a fonte de Manuel de Faria e
Sousa, confirma a impossibilidade do entendimento linguístico com os habitantes do local
do naufrágio da nau S. Gonçalo (1630): “hablã cõ ciertos estallidos de legua y boca”.1087
Apesar dos constrangimentos, impeditivos de uma comunicação verbal, os sobreviventes
do naufrágio da nau S. Gonçalo conviveram com as populações locais da “Baía Formosa”
(Plettenberg bay), por cerca de oito meses, o tempo necessário à construção de duas
embarcações, que os tornariam ao mar. Os náufragos instalaram nesta inesperada terra as

1084
Veja-se “Perdição da nau Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, costumes dos que a abitão ate o Cabo
das Correntes”, in Glória de Santana PAULA, op. cit., p. 131; João Baptista LAVANHA, op. cit., p. 30.
1085
Frei João dos SANTOS, op cit., p. 543.
1086
Francisco Vaz DALMADA, op. cit., p. 13.
1087
Manuel de Faria y SOUSA, op. cit., Tomo III, p. 460.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

estruturas básicas da sua existência: adoptaram o modelo de habitação africana,


construindo cabanas com os materiais da terra, e uma pequena igreja de madeira, onde
foi mantido o culto cristão; cultivaram legumes a partir de sementes que salvaram da nau
e estabeleceram com os pastores Khoikhoi um fluxo de permutas baseado na troca de
ovelhas e bovinos por objectos de metal. Ao contrário dos juízos genéricos e globalizantes
difundidos na época acerca da suposta “barbárie” de muitos grupos de pastores, o
testemunho do frade capucho pressupõe que tenha ocorrido uma aprovação tácita do
acampamento dos náufragos e uma convivência pacífica entre estes grupos. A
proximidade que se estabeleceu permitiu ao frade descrever o modo de vida destes
pastores que se organizavam em “cabildas”, como os árabes, deslocando-se num
determinado território com os seus gados, possuindo grandes tendas portáteis, feitas de
estacas e esteiras. Terá sido, no ambiente socio-familiar que os autóctones convidaram os
náufragos a partilhar um bolo que parecia ser feito de raízes amassadas com um esterco
de bois, cozinhado no fogo, sendo que a preferência dos Khoikhoi iria para o bolo quase
cru.1088 O detalhe com que terão sido descritas as preferências alimentares destes grupos
de pastores, assim como a referência a uma ausência material de sinais de adoração,
significa que a proximidade foi suficiente para que os grupos se observassem mutuamente
recolhendo informações e construindo imagens e representações.
Entre os povos que viviam para nordeste do rio Kei, com predomínio de chefaturas
Bantu, estabeleceu-se por vezes um entendimento verbal parcial, através da intervenção
de escravos “línguas” ou intérpretes. Nos territórios envolventes do rio Mzimvubu, onde
os náufragos da nau Nossa Senhora de Belém (1635) se fixaram por cerca de meio ano,
foi possível aos “línguas” de Moçambique entender algumas palavras.1089
Os obstáculos à comunicação verbal entre os viajantes e os habitantes locais
conduziu à constatação da diversidade humana. Esta diversidade obedecia a uma escala
concebida de acordo com gradações, desde o mais primitivo e selvagem, quase
indiferenciado dos animais, até ao civilizado, ao qual correspondiam marcadores culturais
e espirituais com que se identificavam os autores dos textos.
Ora, voltando a considerar a matriz aristotélica, que concebe a linguagem e o
discurso como emanações do intelecto, os falantes Khoi, a que se referiram Vaz Dalmada

1088
IDEM, ibidem.
1089
Joseph de CABREYRA, op cit., p. 44.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

ou Frei Francisco dos Santos, seriam considerados seres diminuídos pela ausência das
faculdades eternas da alma, como a discursiva e intelectual. 1090 Sendo a alma separável
em partes ou faculdades, tais povos possuiriam as faculdades da alma comuns a todos os
animais (nutritiva, perceptiva e do movimento), mas mostravam ser desprovidos das
faculdades superiores do raciocínio e pensamento discursivo.1091 Deste modo, as
manifestações da diferença convertiam-se em argumentos de um discurso que postulava
a existência, nestes territórios, de uma categoria humana inferior, primitiva e selvagem.
Quando os náufragos encontraram populações que os receberam pacificamente e
os ajudaram com alimentos e guias para mostrar os caminhos, esses foram considerados
“cafres bem inclinados” ou “domésticos”.
A marginalização moral e intelectual é evidente nos traços de carácter
apresentados: interesseiros, mesquinhos e sem razão. Acresciam, ainda, as características
físicas, tais como o corpo “negro” e o “cabelo revolto” que, no âmbito de uma longa
tradição, eram vistos como traços de uma fealdade congénita, a qual podia agravar-se
quando a cabeça era adornada de “cornos”, elementos simbólicos que evocavam no
observador, e ainda mais no leitor europeu, a imagem popular do próprio diabo.
A forma como se alimentavam as populações constitui um outro indicador que
permitia posicionar estes povos em diversos graus de inferioridade humana. As referidas
descrições das práticas alimentares dos pastores Khoi terão, certamente, contribuído para
a sua classificação como os mais “bárbaros” e “selvagens” dos povos.1092 O Padre
Jerónimo Lobo refere que as gentes “que habitão daqui para o Cabo de Boa Esperança e
toda a mais costa até Angola he a peor gente que povoa esta região”.1093
A referência a práticas alimentares, consideradas selvagens, está ausente dos
relatos versando populações Khoi, em processo de fusão com os migrantes Nguni. Sobre
as comunidades contactadas não encontramos referências à ingestão de alimentos crus,
ainda assim, o observador regista , a sul do rio Kei, comunidades de pastores que tinham
como base da sua dieta bovinos e carneiros, sendo que a ausência de agricultura e de

1090
ARISTÓTELES, Sobre a Alma, Ana Maria LÓIO (Trad.), António Pedro MESQUITA (Coord.),
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2010, 413b; 414a, 25; 414b.
1091
ARISTÓTELES, ibidem, 415a.
1092
Manuel de Faria y SOUSA, op. cit., Tomo III, p. 460.
1093
Jerónimo LOBO, op. cit., p. 569.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

técnicas para a transformação dos alimentos chamaram a atenção ao autor do manuscrito


anónimo do naufrágio da nau Santo Alberto:
“(…) a poem numa fogueira mal assada e vão comendo, são omens que não cozem nada
por não terem uazilhas nem não saberem fazer, quarecem de sal (…) o leite que recolhem
das uaquas é em huns cabacos grandes, (…) arroz nem outro nenhum lugume não no tem
nem cuidão aver mais no mundo que e uaqua e carneiro e leite e disto só se sostemtão”.
1094

Numa perspectiva global dos relatos de naufrágios ocorridos no sudeste africano,


considerando a rota dominante dos percursos por terra, no sentido nor-nordeste, rumo à
baía de Maputo, verifica-se que as referências à agricultura e alimentos derivados do
processamento de legumes e sementeiras tornam-se cada vez mais frequentes para norte
do rio Mngeni (Umgeni). Na terra do Natal, os náufragos da Santo Alberto resgataram
vacas, cabras, galinhas, leite, manteiga, mel, feijões e milhetes, com os quais as mulheres
africanas faziam pequenos bolos que se assemelhavam a broas.1095 Junto à lagoa de Santa
Luzia, a que os náufragos da S. Tomé puseram o nome de “Rio da Abundância”, e nas
terras do Inhaca foram destacados os mesmos bolinhos de cereais designados de “mocates
(que são huns bollos pardos de farinha de meixoeira) e massa cozida”. 1096 A descrição
das comunidades agro-pastoris permitia ao observador um exercício de aproximação
analógica aos modelos reconhecidos como familiares.
É importante ainda considerar um outro indicador, presente nos textos
portugueses, que traduz uma percepção dos povos africanos como vivendo num estado
de “barbárie”. Trata-se das referências à prática da poligamia pelos “reis”, sendo que ao
observador europeu escapavam todos os significados sociais e cosmológicos envolvidos
na família extensa e poligâmica. Vaz Dalmada menciona um “régulo importante”, dos
territórios de entre Inhambane e as Ilhas Bazaruto, a que chamavam “o Inhame, & tinha

1094
“Perdição da nau Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, costumes dos que a abitão ate o Cabo das
Correntes”, in Glória de Santana PAULA, op. cit., (…), p. 128.
1095
IDEM, ibidem, p. 148.
1096
Relaçam do Naufragio da Náo São Thomé de que era Cappitão Esteuão da Veiga, a qual se perdeo na
Terra dos Fumos no anno de 1589, e dos grandes trabalhos, que passou Dom Paulo de Lima e mais
Companheiros nas Terras da Cafraria, até sua morte, B.P.E., CXVI/1-22, fls. 33 vº-34 e 43. “Perdição da
nau Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, costumes dos que a abitão ate o Cabo das Correntes”, in Glória
de Santana PAULA, op. cit., p. 159.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

vinte molheres”1097; José Cabreira relata as práticas de casamentos poligâmicos e da


lobola:
“(…) tem quatro, sinco, & sete mulheres, (…) Nos casamentos não trazem as molheres
dotes, antes elles os dão a seus pays de vacas, & ellas são como suas cativas, & de seis,
ou sete que elegem cada lua metem hua em casa”. 1098

A lobola assim designada referia-se a um componente de uma prática social


complexa, que envolvia o “casamento” como processo de união entre duas famílias. Este
processo concretizava-se através de diversas etapas que envolviam rituais nos quais o
gado desempenhava um papel fundamental enquanto símbolo do sustento, fertilidade e
também como elemento central na comunicação com a dimensão espiritual dos
antepassados.1099 A transferência de cabeças de gado da família do noivo para a família
da mulher que se casava era entendido, pelo observador exterior, como um simples
inverso das práticas do dote nas sociedades ocidentais, não sendo apreendidos os aspectos
cosmológicos envolvidos num processo de união entre diferentes linhagens.
Para além da descrição da lobola como um dote que garantia uma espécie de
cativeiro familiar para as mulheres, esvaziando aquela prática de todos os significados
espirituais, o texto de Cabreira estabelece ainda uma ligação entre a poligamia e a
estrutura económica das sociedades observadas. Explica que são as diversas mulheres do
agregado familiar que lavram a terra, trabalham e semeiam e que é o sector feminino da
sociedade a fazer o resgate dos produtos da terra, enquanto os homens se ocupam do
resgate do gado. Esta representação de sociedades que se estruturavam com base em
casamentos poligâmicos remetia, ao nível do leitor cristão, para a imagem genérica do
pecado pelo deboxe e depravação sexual.

1097
Francisco Vaz DALMADA, op. cit., p. 91.
1098
Joseph de CABREYRA, op. cit., p. 28.
1099
Brigitte BAGNOL, “Lovolo e espíritos no Sul de Moçambique”, in Análise Social, Vol. XLIII (2.º),
2008, p. 253. O artigo de Bagnol, sobre a persistência das práticas contemporâneas Lovolo no Sul de
Moçambique, mostra a dimensão espiritual desta instituição, na qual se acredita que participam os
antepassados das linhagens. Sendo uma prática que se foi modificando e adaptando aos contextos históricos,
socioeconómicos e culturais, continua hoje a simbolizar a inserção do indivíduo numa rede de relações de
parentesco e o selar de alianças entre os vivos e os antepassados.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Cafres e gentios
A contagem dos sobreviventes de um navio naufragado é feita, nos relatos, de
acordo com determinadas categorias de humanos. Em primeiro lugar era feita a distinção
entre os “escravos” e os “portugueses” e, dentro dos “portugueses”, eram destacadas
algumas figuras da aristocracia e religiosos, identificados com valores de heroísmo nobre
e cristão. Só depois eram enunciadas as outras categorias sociais, como os oficiais das
naus, os marinheiros/”homens do mar”, grumetes e soldados, sendo frequente a referência
indistinta a “homens”.

“acharam-se menos cento e cinquenta pessoas; convém a saber: passante de cem escravos,
e quarenta e quatro portugueses, entre os quais foi D. Álvaro de Noronha”.1100

“(…) se mandou fazer resenha da gente que auia, e das armas, açhou-se sento e uinte e
sinquo portuguezes e 93 – escrapvos e – 8 escrapvas e duas molheres fidalguas”.1101

No caso da perdição da nau S. Tomé (1589), os marinheiros que procuravam


governar o batel de salvação, com mais de cem pessoas, e para garantir que chegariam a
terra lançaram ao mar um elevado número de homens, entre os quais um feitor, um
soldado e um mercador. Nas palavras de Diogo do Couto, “com estes homens lançaram
também no mar alguns escravos, que todos logo foram submergidos daquelas cruéis
ondas”.1102
Esta categorização traduzia uma visão consciente do universo social da época,
cuja grande cisão era concebida em função do critério da liberdade ou da escravidão. De
salientar que as naus em retorno da Índia traziam a bordo elevado número de escravos
asiáticos, pelo que o estatuto de escravo ou cativo não estava especificamente vinculado
aos africanos.

1100
Manuel de Mesquita PERESTRELO, “Relação Sumária da viagem que fez Fernão D’Álvares Cabral
desde que partiu deste Reino por Capitão-mor da armada que foi no anno de 1553 às partes da Índia até que
se perdeu no Cabo de Boa Esperança no ano de 1554”, in H.T.M., Vol. I, (…) p. 60. (sublinhado nosso)
1101
“Perdição da nau Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, costumes dos que a abitão ate o Cabo das
Correntes”, in Glória de Santana PAULA, op. cit., (…), p. 132. (sublinhado nosso)
1102
Diogo do COUTO, “Relação do Naufrágio da Nau S. Tomé na Terra dos Fumos, no ano de 1589 e dos
grandes trabalhos que passou D. Paulo de Lima nas Terras da Cafraria, até sua morte”, in H.T.M., Vol. II,
(…), pp. 235-236. (sublinhado nosso)

289
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

As designações de “portugueses” supunham a partilha de uma identidade cultural


e religiosa cristã, extensamente afirmada nos discursos, por oposição às populações dos
novos territórios, os quais, não sendo por regra nem cristãos, nem muçulmanos, nem
judeus, foram categorizados como gentios.
O naufrágio de uma nau conduzia os seus sobreviventes ao encontro com
territórios e gentes que solicitavam no observador a necessidade de uma imediata
ordenação ou classificação. O elemento humano, correspondente a uma categoria
adquirida por empréstimo, deu o nome à terra. O vocábulo cafre, adoptado dos
mercadores islâmicos, referindo-se ao indivíduo que não venerava o Deus “verdadeiro”,
sendo por isso considerado infiel e descrente, transitou com o seu significado religioso
primordial para os primeiros usos na língua portuguesa. A designação teria encontrado
equivalência na compreensão da natureza “gentílica” ou “pagã” destes povos africanos
aos quais, de acordo com a matriz cultural e religiosa bíblica, nunca teria sido revelada a
Verdade de Deus, vivendo por isso no desconhecimento.1103 A ignorância da lei de Deus
nestes povos significava um vazio de princípios espirituais considerados “verdadeiros” e
de práticas religiosas disciplinadas, sendo frequente interpretar e associar a religiosidade
destes povos à idolatria e intercessão do demónio.1104
O autor do relato anónimo do naufrágio da nau Santo Alberto ajuíza do seguinte
modo sobre a menoridade espiritual destes povos:
“Esta gente ata qui não adorão nada, são brutalissimos dizia-nos que lhe morrião pai, mai,
filhos e que não sabião quem lhos mataua, e a chuyua dezião que sempre lhes myjauão
de riba ora muito ou pouquo e que não sabião quem lhes mijaua e que por mais que
olhauão pera riba que não uião nimguem nem os via amdar, e ao trouão que tirauão
traques sem saberem quem, pelo que emtemdemos desta gente não aver nela maldade,
nem malisia. E o que empremissem neles tomarião bem, e a minguoa de não haver neles
impressão de padres ou de quem os emcaminhe se deixa de fazer nelas mui grande fruito
com a preguação avamgeliqua”.1105

1103
José da Silva HORTA, “A categoria do gentio em Diogo de Sá: funções e níveis de significação”, (…),
p. 145.
1104
IDEM, ibidem, p. 149.
1105
“Perdição da nau Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, costumes dos que a abitão ate o Cabo das
Correntes”, in Glória de Santana PAULA, op. cit., p. 139.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Ainda que este trecho possa decorrer de uma tentativa de “tradução” através da
acção de intérpretes que apenas alcançavam um entendimento parcial do discurso do
“outro”, a verdade é que a mensagem parece ser construída com base em concepções
prévias acerca da religiosidade das populações a que se refere, definindo atributos de
ignorância em simultâneo com a ausência de maldade e malícia, que sublinhavam uma
condição espiritual inferior. Esta era a condição dos povos da Cafraria, uma espécie de
“humanidade esquecida” que nenhuma Lei alcançara e cujo pecado resultava da
ignorância.1106 O total desconhecimento dos mistérios da fé cristã, se marcava uma
condição espiritual inferior, também permitia a construção de um pressuposto de
inocência, pois esta humanidade esquecida não tivera oportunidade de expressar
historicamente a sua livre adesão à fé.1107 Algo semelhante fora constatado na Carta de
Pero Vaz de Caminha (1500), aquando do primeiro encontro com as populações da terra
nomeada de Vera Cruz.1108
No que se refere à Cafraria, foi comum os autores aludirem à perda de muitas
almas naquelas terras, por falta de pregação evangélica, reclamando a responsabilidade
da Igreja na remissão dos pecados das gentes de tão extensa parte do mundo.
Quatro décadas depois da perdição da nau Santo Alberto, o missionário jesuíta
Jerónimo Lobo, náufrago da nau Nossa Senhora de Belém (1635), observou e inquiriu a
natureza espiritual das gentes da Cafraria, afirmando que a costa era povoada
“de barbaros gentios, porque ategora não inficionou a esta gente a seita mahometana que
tanto se dilatou por toda a Africa. O gentio he geralmente de bom natural. Não adorão
idolo algum nem tem templo ou casa de oração, conhecem porem aver huma cousa laa
no ceo que governa este mundo e de quem esperão os bens delle, que os da outra vida
nem curão nem sabem se os há”.1109

1106
De acordo com William Randles, estavam afectados por uma infidelidade negativa todos aqueles que,
por desconhecimento, não praticassem a doutrina cristã. Diferente natureza tinham os que recusavam
deliberadamente o Evangelho, pois esses estavam afectados por uma infidelidade positiva. Veja-se William
G. L. RANDLES, L’Image du Sud-est Africain dans la Littérature Européenne au XVI Siècle, (…), p. 116.
1107
Juvenal Saraiva FILHO, “Nota para estudos teórico-históricos do fenômeno da heresia”, in Antíteses,
Vol 11, Nº 21, Jan./Jun. 2018, p. 462. https://doi.org/10.5433/1984-3356.2018v11n21p461 (Consultado em
20/08/2021)
1108
Pero Vaz de CAMINHA, Carta a el-rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil, 1 de Maio de 1500.
https://purl.pt/162/1/brasil/obras/carta_pvcaminha/index.html (Consultado em 21/08/2021)
1109
Jerónimo LOBO, op. cit., p. 569. (sublinhado nosso)

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Jerónimo Lobo ratifica a já constatada bondade natural destes povos que


acreditavam na existência de uma entidade suprema governando o mundo, a quem
“pedem chuva para suas sementeiras”. Naturalmente, a ideia da crença num Ser Supremo
afigurava-se aos olhos dos missionários cristãos como uma predisposição destas
comunidades para a evangelização. Acrescentava o missionário que, embora
desconhecendo as religiões do Livro, estes povos mostravam não adorar “ídolos”, nem
estavam “aferrados” a nenhuma “superstição”, sendo uma espécie de “taboa raza na qual
se pode escrever e pintar a doutrina que primeiro se lhe ensinar”.1110 A suposta “ausência
de idolatria” colocava estes gentios num patamar favorável, pois se adorassem ídolos
erguia-se um obstáculo à “conversão”.1111 Do ponto de vista religioso-moral, tal como
Luís Filipe Barreto esquematizou no modelo de representação da antropologia
renascentista, estes gentios, apesar de todas as diferenças relativamente à matriz cultural
do observador, eram percepcionados num plano de neutralidade, que a expressão “tábua
rasa” sugere.1112
Os supostos desvios e impureza espiritual dos cafres eram atenuados pela
ignorância inocente e pela bondade natural, factores que desencadeavam um imperativo
de catequização entre os europeus cristãos, pois apesar desta “neutralidade” teórico-
conceptual inererente à categoria de gentio, os discursos enfatizavam sempre o risco das
almas se perderem para as práticas de “feitiçaria” e “tratos com o demónio”, afinal
pecados sujeitos a severas condenações nas sociedades europeias da época. De acordo
com o referencial bíblico, o pecado potencial subjacente à própria natureza gentílica dos
cafres determinava uma concomitante imagem de marginalização pois, como afirma
Rubiés, a questão do pecado funcionava como um dos axiomas-chave para os leitores
europeus1113, em função do qual eram geradas imagens mentais desfavoráveis. Um
“espelho invertido do mesmo” funcionava, assim, no dizer de Barreto, como uma

1110
IDEM, ibidem, p. 570.
1111
José da Silva HORTA, “A categoria de Gentio em Diogo de Sá: funções e níveis de significação”, op.
cit., pp. 135-136.
1112
Luís Filipe BARRETO, Os Descobrimentos e a Ordem do Saber. Uma análise sociocultural, (…), p.
38.
1113
Joan-Pau RUBIÉS, “Travel Writing and Ethnography”, in Peter HULME e Tim YOUNGS (eds.), The
Cambridge Companion to Travel Writing, Cambridge, Cambridge University Press, 2002, pp. 242-260.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

“barreira etnocêntrica” que condicionava o “olhar e o pensar” do observador cristão face


às diferenças.1114

Tantas naturezas de “cafres”, que é espanto


Apesar dos estereótipos presentes nos diversos relatos de naufrágios veicularem
imagens genéricas, simplificadoras e redutoras da realidade antropológica, é de destacar
que nestes textos também foi registada a percepção da diversidade humana e social
encontrada. Tal percepção é tanto mais profunda e consciente quanto se trate de
testemunhos presenciais, tornando-se menos vívida quando o autor do relato é apenas um
compilador das informações de outrém, seja na forma de texto impresso, seja na de
manuscrito.
Se o relato fundador do naufrágio do galeão S. João é, em muito, responsável pela
imagem estereotipada e indiferenciada dos cafres, permitindo que os aspectos somáticos
sejam associados a traços psicológicos colectivos desfavoráveis, a verdade é que mesmo
este texto reconhece a existência de cafres “bons”, em função do papel que
desempenharam no destino dos náufragos. Segundo o anónimo que relata a perdição do
galeão S. João (1552), os cafres podiam oscilar desde o extremo negativo dos “ladrões”,
até aos cafres de “boa condição”, porque “em todas as nações há maus e bons”.1115 “Bom”
fora considerado o “reizinho negro”, conhecido pelos portugueses como o rei Inhaca,
cujos domínios se localizavam no primeiro braço de rio da baía de Maputo, pois nele “não
havia malícia, mas antes os ajudava no que podia”.1116 “Mau” fora considerado o rei do
segundo rio daquela baía, que enganou Manuel de Sousa de Sepúlveda, conduziu ao
desarmamento, separação e consequente enfraquecimento do grupo de náufragos e morte
de Sepúlveda e sua família.
No relato de Diogo do Couto, sobre o naufrágio da nau S. Tomé (1589), a
referência dos povos africanos começa com os Macomates e outras formações políticas

1114
Luís Filipe BARRETO, Os Descobrimentos e a Ordem do Saber. Uma análise sociocultural, (…), p.
37.
1115
“Relação da mui notável perda do Galeão Grande S. João em que se contam os grandes trabalhos e
lastimosas cousas que aconteceram ao Capitão Manuel de Sousa Sepúlveda e o lamentável fim que ele e
sua mulher e filhos, e toda a mais gente, houveram na Terra do Natal, onde se perderam a 24 de Junho de
1552”, in H.T.M., Vol. I, (…), p. 28
1116
IDEM, ibidem, p. 30.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

designadas de “reinos”, entre a “Terra dos Fumos” e a “Terra do Natal”, a sul da qual
predominava uma organização sócio-política diversa, as chefaturas.
As populações Tsonga são descritas como sendo “todos comummente, assim
homens como mulheres, tamanhos de corpos que parecem gigantes”.1117 Além desta
característica física distinta, outras especificidades destes povos foram observadas. A
ocidente do rio do Espírito Santo, a dois dias de caminho pelo sertão, em terras de um rei
chamado Angomanes, os códigos de comunicação envolvidos no comércio chamaram a
atenção a uma testemunha presencial, um mercador português que transmitiu a
informação a Diogo do Couto:
“(…) e um português nos disse que, indo por este rio acima ao resgate em uma
embarcação, fora dar com as gentes destas povoações que andavam pescando em barcos
pequenos, os quais viu que quando queriam alguma cousa da terra chegavam com seus
barcos à parte que os podiam ouvir, e davam certos silvos e apitos, aos quais lhes acudiam
os da aldeia com tudo o que queriam, porque por aqueles assobios se entendem, mas não
deixam de ter língua própria, e muito diferente de todas as mais daqueles reinos”. 1118

Aqueles “reinos” Tsongas eram nitidamente distinguidos dos poderes


Mocarangas, considerados uma ameaça e referidos como “grandes ladrões” 1119 nos
diversos relatos de naufrágios.
Assim como os náufragos captaram diferenças somáticas e linguísticas e a
diversidade política, distinguindo “reinos” e chefaturas, também foram registadas
informações relativas ao poder e à diferenciação social. No manuscrito de Évora, Relaçam
do Naufragio da Nao São Thomé, o autor demonstra uma clara percepção das insígnias
do poder entre os chefes africanos, quando descreve um “uelho uenerando cuberto de
huma grande pelle de tigre, huma uara direita na mão, (…) acompanhado de muitos
cafres, com tanto respeito que por elle, e pellas insignias, julgaram os nossos ter supremo
poder naquelle destrito”.1120 Tratava-se de um chefe Nguni, das comunidades próximas à

1117
Diogo do COUTO, “Relação do naufrágio da Nau São Tomé na Terra dos Fumos, no ano de 1589 e
dos grandes trabalhos que passou D. Paulo de Lima nas Terras da Cafraria, até a sua morte”, in H.T.M, Vol.
II, (…), p. 242.
1118
IDEM, ibidem.
1119
IDEM, ibidem.
1120
Relaçam do Naufragio da Náo São Thomé de que era Cappitão Esteuão da Veiga, a qual se perdeo na
Terra dos Fumos no anno de 1589, e dos grandes trabalhos, que passou Dom Paulo de Lima e mais
Companheiros nas Terras da Cafraria, até sua morte, B.P.E., CXVI/1-22, fls. 32 e 33.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Lagoa de Santa Luzia, território nomeado “rio da Abundância”, que deixou um rasto
positivo na memória dos náufragos, convertendo-se em topónimo, registado em vários
relatos. Da visão positiva destas comunidades, o autor destacou “a familiaridade, e
singeleza da gente”.1121
Outra referência positiva do poder africano corresponde ao chefe Inhaca, cujo
prestígio se relacionava com a sua importância comercial no rio do Espírito Santo, em
territórios de predomínio Tsonga. As suas insígnias diferiam da do chefe do “rio da
Abundância” e os elementos têxteis, provenientes do comércio com os portugueses, são
vistos como uma marca desta interacção. Os outros rios da baía de Lourenço Marques,
como o rio do Fumo e Anzate, eram concebidos como território de comunidades
antagónicas - “de huma mesma ruim natureza”1122 - por estarem associados ao desastre
de Manuel de Sousa de Sepúlveda e Dona Leonor de Sá.
O manuscrito anónimo da perdição da nau Santo Alberto (1593) constata a
diversidade humana, logo no início do relato, afirmando que a Cafraria é habitada de
“tantas nasomis de barboras e siluestres gentes”1123, “tantas naturezas de quafres, que é
espanto”.1124 Referindo-se às primeiras comunidades contactadas a sul do rio Kei,
descreve-as em termos físicos como “pretos e compridos e muj bem apeçoados” 1125,
prosseguindo com dados sobre a sua organização socio-política. A este respeito, informa
sobre as características destes povos pastores, organizados em pequenas aldeias dispostas
em torno de um curral central ou kraal, chefiadas por um chefe ou inKosi.1126 Com cerca
de quarenta dias de caminhada pelo sertão, desde o sul do rio Kei no sentido nor-nordeste,
e já em terras do Natal, os náufragos chegaram a uma zona de abundância que designaram
por “Vale da Misericórdia”1127, cuja economia diferia substancialmente da praticada pelas
primeiras comunidades de pastores. Aqui, além dos bovinos, abundavam cabras, galinhas,
leite, mel, feijões e cereais como o nachenim.1128 O modo de saudação e os traços

1121
IDEM, ibidem, fl. 33.
1122
IDEM, ibidem, fls. 45 e 46.
1123
“Perdição da nau Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, costumes dos que a abitão ate o Cabo das
Correntes”, in Glória de Santana PAULA, op. cit., p. 116.
1124
IDEM, ibidem, p. 118
1125
IDEM, ibidem, p. 128.
1126
IDEM, ibidem.
1127
IDEM, ibidem, pp. 148-149.
1128
“Nachenim” era a designação dada nos territórips de Moçambique ao cereal africano, Eleusine
coracana. Cultivado durante milhares de anos, desde os planaltos do Uganda e Etiópia até ao sul do
continente africano, revelava-se resistente à seca, permitia longos períodos de armazenamento, destacando-

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

fisionómicos destas gentes eram diversos dos que caracterizaram os primeiros grupos –
“são todos como mulatos”.1129 Passado este vale auspicioso, os náufragos atravessaram
uma área “deserta” ou despovoada, anunciando-se a aproximação a populações distintas
no modo de saudar, “dizendo nhanha, nhanha”, e usando adornos de contas vermelhas
que lhes chegavam do rio de Lourenço Marques.1130 Junto à lagoa de Santa Luzia, ou “rio
da Abundância”, foi descrito um tipo de economia mista, praticada por comunidades que
conciliavam a pastorícia, com a agricultura e a pesca.1131 A nordeste desta lagoa, veio ao
encontro dos náufragos uma irmã do rei Inhaca, que aí estava casada com um chefe local.
Era já o território de comunidades Tsonga, que diferiam estruturalmente das Nguni, sendo
identificadas pelos portugueses com o símbolo político e económico do “rei” Inhaca. Não
só o título político de “rei” e até “El-Rei”, como o designou Diogo do Couto1132, é
significativo nesta representação do poder africano, como também a associação deste
chefe ao comércio de marfim, âmbar, cobre e escravos. A sua imagem é distinta da dos
outros chefes da Cafraria e, de acordo com o olhar da época, essa diferença era
determinada pelas relações mantidas com os portugueses:
“Este Rej do Inhaqua é muito nosso amigo e hum omem bem feito e muito alto de corpo
e jentil homem (…) que nos pareseo se fora branquo dom Constamtino irmão do Duque
de Bargamça”.1133

A semelhança do “Outro” com o “Mesmo”, através da comparação da figura do


rei Inhaca com vultos da nobreza portuguesa, já havia sido assinalada pelos náufragos do
galeão S. João (1552), os quais lhe “puseram o nome de Garcia de Sá, por ser velho, e ter
muito o parecer com ele”.1134 Estamos perante uma representação positiva de um poder

se também o seu paladar e o elevado valor nutritivo. Com este cereal, as populações africanas faziam papas,
pães, bolos a que chamavam “mocates” e uma bebida fermentada, o “pombe”. Veja-se Lost Crops of Africa:
Vol. I: Grains, (National Research Council), Washington DC, The National Academies Press, 1996, ps. 10
e 39-44. https://www.nap.edu/catalog/2305/lost-crops-of-africa-volume-i-grains (Consultado em
17/05/2020)
1129
“Perdição da nau Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, costumes dos que a abitão ate o Cabo das
Correntes”, in Glória de Santana PAULA, op. cit., p. 145.
1130
IDEM, ibidem, p. 155.
1131
IDEM, ibidem, p. 159.
1132
Diogo do COUTO, “Relação do naufrágio da Nau São Tomé na Terra dos Fumos, no ano de 1589 e
dos grandes trabalhos que passou D. Paulo de Lima nas Terras da Cafraria, até a sua morte”, in H.T.M, Vol.
II, (…), p. 251.
1133
Glória de Santana PAULA, op. cit., p. 159.
1134
“Relação da mui notável perda do Galeão Grande S. João em que se contam os grandes trabalhos e
lastimosas cousas que aconteceram ao Capitão Manuel de Sousa Sepúlveda e o lamentável fim que ele e

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

africano, que além de partilhar interesses comuns num comércio em expansão,


proporcionava ajuda aos náufragos portugueses que passavam pelos seus territórios. A
expressão “se fora branco” poderá conduzir-nos à inquirição dos valores mobilizados
pelas cores, ou os significados que lhe estão associados, que encontravam tradução num
conjunto de atributos antropológicos que, à época, definiam uma identidade cristã e
europeia. Na descrição física deste rei Inhaca é destacada a sua característica “não-
branca” e a este elemento cromático distintivo associava-se tanto um valor intrínseco,
como uma carga semântica que afectavam o sujeito representado. De acordo com as “leis
universais” herdadas da lógica aristotélico-tomista, a cor branca está ligada à santificação
e à verdade, ao passo que o negro era associado ao pecado, participando do espectro de
falsidade ou da “não-verdade”.1135 Ainda que, na visão tomista, as relações teóricas entre
o branco e o negro não tivessem consequências no domínio da antropologia, a verdade é
que, como expressa François de Medeiros, na natureza humana a cor negra não deixa de
ser um elemento de imperfeição em relação à cor branca.1136
O náufrago, Padre Jerónimo Lobo, percepcionou a diversidade antropológica da
Cafraria, de acordo com dois vectores geográficos distintos: o vector sertão - litoral; e o
vector norte - sul do rio Mzimvubu, designado pelos portugueses de “Rio das Formigas”:
“Vivem estes barbaros em dous modos: os que estão mais visinhos do mar em suma
pobreza e miseria mais como salvagens do que como racionais. […] Os do certão em
abundancia de gado, lavouras e criação de animais domesticos, tem suas povoações, as
casas de palha, paos e barro”1137

“a divisão da gente he o que faz na terra este rio onde estavamos, porque os que habitão
daqui para o Cabo de Boa Esperança e toda a mais costa até Angola he a peor gente que
povoa esta região; os que vivem deste rio para Moçambique he gente tratavel de bom
termo e condição”.1138

sua mulher e filhos, e toda a mais gente, houveram na Terra do Natal, onde se perderam a 24 de Junho de
1552”, in H.T.M., Vol. I, (…), p. 28.
1135
François de MEDEIROS, op. cit., pp. 224-226.
1136
IDEM, ibidem, p. 226. Segundo o autor, “si la nature humaine de l’Aethiops est un principe acquis, sa
coleur noire n’en est pas moins un élement d’imperfection par rapport à la couleur blanche”.
1137
Jerónimo LOBO, op. cit., p. 570.
1138
IDEM, ibidem, p. 569.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

De acordo com a sua visão, as populações da extremidade meridional e litoral do


continente africano são as mais agravadas pelos estigmas da selvajaria e barbárie, pois
considera-as mais distantes de uma organização racional da sociedade parecendo, por
isso, estar condenadas à pobreza e à miséria.
Por seu turno, a nordeste do rio Mzimvubu, as comunidades Nguni sedentarizadas
do interior, são percepcionadas como mais organizadas e abundantes, afigurando-se
também mais diplomáticas e “tratáveis”, designação que traduz a interacção
experienciada com as populações locais das quais esteve dependente a sobrevivência dos
náufragos.
Ainda que os relatos atestem a existência de uma diversidade humana na Cafraria,
o que prevalece, ao nível dos receptores dos textos, seja pela via dos exemplares
impressos, seja pela via da circulação de manuscritos, ou ainda pela tradicional leitura em
voz alta, é a imagem simplificadora, indiferenciada e reduzida ao estereótipo da
“bárbárie” em cujo extremo se encontra um modo de vida “selvagem”.
Os traços descritivos que tornam legível o cafre, no quadro da imaginação
portuguesa, são, em suma, o pagão, idólatra, o rústico desnudo e o selvagem, mais
próximo das feras do que dos seres racionais, variando entre a ferocidade e a
domesticação e, como tal, gerando tanto a compaixão como o temor.
Os códigos retóricos para narrar as acções dos habitantes da África do sudeste
estão imbuídos de juízos negativos, expressos por vezes de forma tão veemente, que
implicam a construção ideológica de poderosos estereótipos destinados a perdurar na
mentalidade europeia. A circulação das obras, tanto impressas como manuscritas,
disseminaram tais estereótipos, generalizando os preconceitos que lhe estavam
associados. Em breve, as traduções de relatos de naufrágios, para latim ou outras línguas
europeias, levariam tais imagens a povoar diversos círculos culturais. Exemplo disso é a
publicação, em Colónia, da obra em latim de Ioan Petri Maffeii, Historiarum Indicarum
Libri XVI (1589)1139, cuja narração do naufrágio de Sepúlveda e do seu desfecho trágico
foi traduzido para francês, tendo integrado a obra de Simon Goulard, Thresor d’histoires

1139
Ioan Petri MAFFEII, Historiarum indicarum libri XVI. Selectarum, item, ex India epistolarum, eodem
interprete, libri IV. Accessit Ignatii Loiolae vita. Omnia ab auctore recognita, & nunc primum in Germania
excusa. Item, in singula opera copiosus index, [Historiarum indicarum libri XVI], Coloni Agrippin, In
Officina Birckmannica, sumptibus Arnoldi Mylij, 1589.
https://archive.org/details/bub_gb_LWmEoVuYaokC/page/n315/mode/2up (Consultado em 21/07/2020).

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

admirables et memorables de nostre Temps recueillies de plusieurs Autheurs, Memoires,


& Auis de diuers endroits (1610).1140 As obras referidas, com várias edições e
reimpressões, incluíam a descrição da tragédia de Manuel de Sousa de Sepúlveda, por
entre caminhos perigosos e povos selvagens: “parmi des peuples sauvages (…) par
chemins perilleux, à caus des bestes sauvages & cruelles”, “barbares cruels”, “barbares
inconus et perfides”.1141 A representação dos povos do sudeste africano no geral, e da baía
de Lourenço Marques em particular, ficaria associada ao confronto humano que depojou
os náufragos das suas armas e bens e também das vestes e da vida, tendo-se cristalizado
a equivalência entre cafre e bárbaro. Este será apenas um dos exemplos de como a
tradução dos relatos, que consubstanciam imagens negativas e grotescas sobre os
africanos, permite desencadear um processo de replicação conceptual e imagética entre
leitores de outras nações europeias.

2.3. De náufragos a abeLungus: a integração entre os cafres

Entre 1500-1649 ocorreram cerca de sete dezenas de naufrágios entre o cabo da


Boa Esperança e as ilhas Quirimbas, na costa oriental africana, havendo ainda registos de
outras perdas mais a norte, na costa entre Quiloa e Melinde. Já foi referido que a partir da
segunda metade do século XVI se registou um agravamento do número de naufrágios na
costa oriental africana, os quais ocasionaram, na maioria das vezes, encontros entre os
náufragos e as populações autóctones. Estes encontros geraram a formulação de imagens
e representações sobre o “outro” de ambas as partes.
Num período e num espaço mais específicos, correspondente a de cerca de
noventa e cinco anos, entre 1552 e 1647, ocorreram dez naufrágios de navios portugueses
numa extensão da costa sul-africana, que medeia entre a baía Formosa, na costa
meridional, e a “Terra dos Fumos”, a norte da lagoa de Santa Luzia. Os sobreviventes
destes naufrágios percorreram grandes extensões territoriais no sentido nor-nordeste, com
o objectivo de alcançar um porto conhecido onde existisse a possibilidade de serem

1140
Simon GOULART, Thresor d’histoires admirables et memorables de nostre Temps recueillies de
plusieurs Autheurs, Memoires, & Auis de diuers endroits, [Genève], par Paul Marceau, 1610.
https://bit.ly/3hz4AS8 (Consultado em 22/07/2020)
1141
IDEM, ibidem, pp. 952-953 e 957.

299
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

resgatados por algum navio português, como os que periodicamente se deslocavam à baía
de Maputo, ou chegarem a um entreposto português, como Inhambane ou Sofala.
Estes naufrágios, em particular, vieram a originar um corpus de relatos escritos
que dedicam grande parte do seu discurso à representação do encontro com a diversidade
antropológica, fixando estereótipos e imagens genéricas, marcadas pelo sentimento de
tragédia e infortúnio. Ainda assim, todos os relatos registam os bons ares, a beleza das
colinas e dos vales, a abundância de rios e ribeiros, bem como o agasalho prestado por
muitas comunidades do sudeste africano ou sobreviventes de outros naufrágios ocorridos
anteriormente. Em todos os relatos repetem-se descrições de encontros com portugueses
ou antigos escravos, africanos e asiáticos, deixados na Cafraria por ocasião de naufrágios
anteriores, os quais prestaram ajuda como intérpretes ou guias temporários e não quiseram
deixar as comunidades nas quais foram acolhidos.
Na descrição do percurso por terra, o relato do naufrágio do galeão S. João refere
que não havia dia que não ficasse uma ou duas pessoas pelas praias e pelos matos, por
não conseguirem caminhar, tendo também muitos escravos desertado.1142 Acreditavam
os caminhantes que os companheiros deixados na Cafraria haviam de ser logo “comidos
dos tigres e serpentes”.1143 Dos cerca de quinhentos sobreviventes deste naufrágio, apenas
cerca de vinte e cinco chegaram à ilha de Moçambique. Dois anos mais tarde, os
sobreviventes do naufrágio da nau S. Bento, que percorreram os mesmos territórios,
descreveram o encontro com diversos sobreviventes do galeão S. João, que mostravam
estar integrados nas comunidades locais. Nas proximidades do rio Umkomazi, vieram ao
encontro dos náufragos da nau S. Bento gentes de diversas aldeias que, reagindo alegres
à novidade que passava pelas suas terras, cantavam, tangiam as palmas e traziam
alimentos para resgate. Entre os “cafres”, vinha “um moço de Bengala que ficara da outra
perdição” e, apesar dos pedidos e promessas para que fosse guia, este recusou, recolheu-
se com o grupo de “cafres” e não quis voltar a ver os náufragos.1144 Mais adiante
encontraram um moço chamado Gaspar que funcionou como intérprete e, na “Barra da

1142
“Relação da mui notável perda do Galeão Grande S. João em que se contam os grandes trabalhos e
lastimosas cousas que aconteceram ao Capitão Manuel de Sousa Sepúlveda e o lamentável fim que ele e
sua mulher e filhos, e toda a mais gente, houveram na Terra do Natal, onde se perderam a 24 de Junho de
1552”, in H.T.M., Vol. I, (…), pp. 27.
1143
IDEM, ibidem.
1144
“Relação Sumaria da Viagem que fez Fernão de Álvares Cabral desde que partiu deste Reino por
Capitão-mor da armada que foi no ano de 1553 às partes da Índia até que se perdeu no Cabo de Boa
Esperança no ano de 1554”, in H.T.M., Vol. I, (…), pp. 74-75.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Pescaria”, próximo do rio Tukela, encontraram dois escravos do naufrágio do galeão S.


João, que estavam integrados nas vivências locais e ali quiseram permanecer, não
acompanhando os náufragos.1145 Do outro lado da baía da “Ponta da Pescaria”
encontraram “um moço malavar”, que os encaminhou para uma povoação onde as gentes
locais vieram ajudar com muitos mantimentos.1146 Veio também ao encontro dos
náufragos um português de nome Rodrigo Tristão que, ao viver quase três anos entre os
autóctones, parecia mostrar pouca diferença dos naturais, pois andava nu, com um molho
de azagaias às costas, e só pela fala e pelo cabelo foi reconhecido como português.1147
Passado o rio de Santa Luzia apareceu um “moço guzarate, bem conhecido na Índia
por alguns da companhia”, que orientou os náufragos na travessia dos rios e os guiou por
dois dias.1148 Durante todo o percurso por terra, desde o rio Msikaba até à ilha do Inhaca,
voltou a acontecer que muitos náufragos feridos, fracos ou cansados não podiam
continuar a caminhada, ficando nas aldeias, a par de muitos escravos que, induzidos pelos
da terra não queriam continuar a caminhar.
Com o naufrágio da nau Santo Alberto, 285 sobreviventes iniciaram um percurso
terrestre sob a liderança de Nuno Velho Pereira. Os sobreviventes que não podiam
caminhar eram deixados nas aldeias, aos cuidados dos chefes e em troca de pagamentos
em cobre e ferro. A norte da lagoa de Santa Luzia, na terra dos Tongas, veio ao encontro
dos náufragos um “cafre criado entre portugueses” que tinha ficado naquela terra desde a
perdição do galeão S. João.1149 Estes cafres “criados entre portugueses” eram por vezes
designados de “cafres cristãos”, uma formulação compósita que associava a categoria de
cafre, como habitante não islamizado do sudeste africano, ao baptismo cristão e ao
conhecimento da língua portuguesa, razão pela qual muitos desempenhavam a função de
intérpretes.
Em 1623, os náufragos da nau S. João Baptista, na sua peregrinação junto ao
litoral, encontraram diversos sobreviventes da perdição da nau Santo Alberto. O primeiro
era um jau, de idade já avançada, que os informou que daí a quatro dias encontrariam um
“negro malavar”. Este malabar havia casado com uma irmã do chefe local, tinha duas

1145
IDEM, ibidem, pp. 74-77.
1146
IDEM, ibidem, p. 78.
1147
IDEM, ibidem, p. 77.
1148
IDEM, ibidem, p. 90.
1149
João Baptista LAVANHA, op. cit., p. 71.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

mulheres e vinte filhos.1150 A nove dias de caminho achariam um “Cafre por nome Jorge”
e, na mesma povoação, um português chamado Diogo, natural de S. Gonçalo de
Amarante, o qual vieram a saber que ali vivia “casado, & com filhos” e que se tinha
tornado um “fazedor de chuva”.1151
Em casa do referido jau e aos seus cuidados ficaram dois portugueses que já não
conseguiam caminhar. Eram eles Gregório de Vidanha e o marinheiro Francisco
Rodrigues Machado. Com o malabar ficaram duas “cafras” e uma “jaoa” e, mais adiante,
provavelmente entre os rios Msikaba e Mtavuna, ficaram mais quatro pessoas: o
marinheiro Motta, um italiano chamado Pedemassole, um passageiro coxo e o filho de
Dona Ursula, de nome Cristovão de Mello, de idade de onze anos.1152 O “cafre” Jorge
acompanhou os náufragos ao topo de uma serra, de onde se viam muitas aldeias, “entre
as quaes etava huma muyto grande”, que era a do português Diogo. Nessa povoação
destacava-se uma “casa de quatro aguas de palha”, coisa não vista por todo aquele
caminho, pois “as outras eraõ mais pequenas, & redondas”.1153 A casa funcionava como
um elemento distintivo de cultura material e, sendo a maior da povoação, revelava a
importância social que este homem assumiu naquele contexto africano, como “fazedor de
chuva”. Ao mesmo tempo, o estilo de construção, com uma cobertura em “quatro aguas”
associava-se a uma memória ligada à sua identidade portuguesa. Este exemplo de
habitação distinta de um português, que nos remete para a imagem de uma casa
rectângular “à portuguesa” é comparável ao que aconteceu noutras regiões africanas de
contacto, como os exemplos dados por Peter Mark para o tipo de construção dos luso-
africanos da Senegâmbia, na mesma época.1154
Bem mais a nordeste, na terra dos Tongas, a que os portugueses chamavam
“Medãos do ouro”, após o capitão matar um pássaro com espingarda, o espanto das gentes
locais foi tão grande que os tomaram por “feiticeiros”, pelo que veio ao encontro dos
náufragos um aleijado de uma perna a pedir para ser curado.1155
Pouco mais de uma década depois, no tempo em que os náufragos da nau Belém
se estabeleceram na foz do rio Umzimvubu, a notícia chegou a um sobrevivente da nau

1150
Francisco Vaz DALMADA, op cit., pp. 50-51.
1151
IDEM, ibidem, pp. 48-49 e 56.
1152
IDEM, ibidem, p. 53.
1153
IDEM, ibidem, p. 57.
1154
Peter MARK, op. cit., p. 17.
1155
Francisco Vaz DALMADA, op cit., p. 65.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Santo Alberto, que ali se deslocou acompanhado de um chefe local para fazer resgate de
gado com os portugueses, tendo sido facilitador desse encontro, pois falava algumas
palavras de português. José Cabreira refere-se a este homem como um “cabra”, expressão
que designava um mestiço, de nome António, que ficou por aqueles matos ainda criança,
havia mais de quarenta anos. As populações locais adoptaram-no, foi criado na terra,
estava casado com três mulheres, tinha muitos filhos e constou que se tinha tornado muito
rico.1156
O relato dos naufrágios das naus Sacramento e Nossa Senhora da Atalaia (1647)
continuou a registar um elevado número de náufragos que iam ficando pelos trilhos do
sudeste africano, alguns por impossibilidade de caminhar, outros porque optaram por
fugir e desertar.1157 Tanto as fugas dos escravos, como a decisão do padre Francisco
Pereira em permanecer naquelas terras, poderão ter sido motivadas por diversos encontros
com sobreviventes de naufrágios anteriores, os quais mostravam viver plenamente
integrados nas comunidades africanas. Destaca-se, a este respeito, o encontro dos
náufragos com um cafre chamado João, que ficara naquelas terras desde o naufrágio da
nau Belém (1635).1158 Foram surpreendidos por “hum Cafre de boa feyção”, que lhes
falou em português e devia ter ficado “alli pequeno, de alguma perdição”. 1159 No arraial
apareceu um grupo de africanos para fazer resgate, entre os quais se destacava um cafre
falando português, de nome Alexandre, que ali ficara pequeno, “da perdição da Náo São
João” (1622). Este homem, casado na terra e com cinco filhos, ao aproximar-se do arraial,
beijou o crucifixo e reverenciou os sacerdotes, gesto que emocionou o padre Francisco
Pereira e o motivou a permanecer numa das povoações da Cafraria, para a catequização
dos gentios, antes de ser abandonado pelo mesmo cafre, que o fez retornar, desiludido,
ao arraial.1160 Pouco depois, durante quatro dias, caminhou em companhia dos náufragos
um outro cafre, a quem os sobreviventes da perdição da nau Santa Maria Madre de Deus
reconheceram ser Tomé, um africano que quatro anos antes tinha sido de grande préstimo
e serviço aos caminhantes.1161

1156
Joseph de CABREYRA, op. cit., p. 45.
1157
Bento Teyxeyra FEYO, op. cit., pp. 22-24.
1158
IDEM, ibidem, pp. 27-28.
1159
IDEM, ibidem, p. 47.
1160
IDEM, ibidem, pp. 58-60.
1161
IDEM, ibidem, p. 61.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Este elencar de exemplos de náufragos, que em diferentes gerações ficaram pelos


caminhos da Cafraria, sendo encontrados mais tarde plenamente integrados e com vasta
descendência, muitos tendo riqueza em cabeças de gado e influência social, evidencia o
acolhimento pelas comunidades de entre o norte do rio Kei e o rio Umzimkulu,
correspondendo a identidades políticas que vieram a ser definidas como Xhosa, Tembu,
Mpondo e Mpondomise, em cujos izizwe (palavra xhosa para “clãs” ou “nacões”)
prevalecia a regra da exogamia.1162 Os exemplos testemunham também os fenómenos de
africanização de muitos náufragos oriundos de diversos espaços europeus e asiáticos e
também de espaços africanos diversos.
A permanência de náufragos na Cafraria bem como a sua sobrevivência e
integraração nas comunidades locais chamou a atenção de Gillian Vernon, que estudou
os naufrágios de navios portugueses na costa sul-africana e que, a partir dos relatos e seus
elementos roteirísticos, reconstituiu no terreno parte dos itinerários empreendidos. Gillian
considerou também que era necessário dar voz ao aparente silêncio africano nos textos
europeus, defendendo que através de uma análise atenta dos relatos podemos começar a
compreender as respostas e comportamentos das populações locais face à presença dos
náufragos.1163 A perspectiva desta historiadora sul-africana insere-se na mesma linha de
abordagem que Gai Roufe e Joseph Miller, os quais sugerem a definição de uma
ferramenta metodológica susceptível de dar voz às percepções e conceptualizações
africanas, a partir dos ecos registados nos textos europeus.1164 Para Roufe e Miller, na
senda de Gérard Chouin, o uso de ferramentas do discurso e análise textual poderão levar-
nos a recolher informações providenciadas por informadores indígenas, nas suas próprias
línguas e de acordo com as suas estruturas de pensamento e, nesse sentido, as fontes
europeias podem ser entendidas também como fontes “internas” africanas.1165
Ocorre-nos então questionar que tipo de imagens e representações as comunidades
da África do sudeste terão construído dos náufragos, em geral, e dos europeus, em
particular, dado que muitos vieram a integrar as suas linhagens?

1162
Jeff PEIRES, The House of Phalo. A History of the Xhosa People in the Days of their Independence,
(…), ps. 9 e 20.
1163
Gillian VERNON, Even the Cows were Amazed. Shipwreck survivors in South-East Africa 1552-1782,
Cape Town, Jacana, 2013, p. 157.
1164
Gai ROUFE e Joseph C. MILLER, “African Voices Echoing in European Texts: The Muffled Meanings
of the Madzimbabwe of the Mocaranga between the Sixteenth and the Nineteenth Centuries, in History in
Africa, Volume 47, 2020, pp. 5-36.
1165
IDEM, ibidem, pp. 8-9.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

José Horta apela à discussão metodológica em torno do tópico das representações


que os africanos terão construído sobre os europeus, alertando para o risco de se cair em
visões essencialistas da identidade. Considera que é necessário atender à diversidade de
leituras e percepções que terão ocorrido nas zonas de contacto, relacioná-las com as
especificidades das interacçãoes e proceder às interpretações de acordo com cada um dos
contextos socioculturais.1166 Na análise que desenvolve, relativa às percepções africanas
dos contactos com europeus no contexto da Senegâmbia, sublinha a utilidade da
comparação com outras sociedades, apontando caminhos metodológicos para pensar as
diferentes ópticas locais, e estabelece eixos de problematização sobre as experiências
históricas de relacionamento afro-europeu.1167
Olhemos então para o espaço sul-africano, entre a cadeia montanhosa do
uKhalamba-Drakensberg e o Oceno Índico.
Numa porção delimitada da costa, entre o rio Umtata e o rio Mtavuna,
naufragaram o galeão S. João (1552) e a nau S. Bento (1554), fazendo com que chegassem
a terra firme cerca de 822 sobreviventes, de origem europeia, asiática e africana de
territórios mais a norte. Quatro décadas depois, passavam naquelas terras os
sobreviventes da nau Santo Alberto, um arraial de mais de 280 pessoas, e outras quatro
décadas depois naufragava a nau Nossa Srª de Belém, cujos 279 sobreviventes se fixaram
temporariamente na foz do rio Umzimvubu.
Em cerca de quatro gerações, as comunidades de agricultores-pastores de entre os
rios Umtata e Mtavuna testemunharam aquilo que teriam sido acontecimentos
fracturantes, destinados a deixar marca na memória das sociedades, susceptível de ser
transmitida oralmente. Não se tratava apenas dos navios, como grandes objectos
estranhos vindos do mar, que se quebravam nas fronteiras de suas terras com o oceano;
tratava-se também das mais de 1300 criaturas que saíram dos grandes fragmentos de
madeira e metal, provocando agitação nas consciências dos habitantes locais e originando
interpretações e explicações em gerações sucessivas.
Segundo José Cabreira, as gentes locais que se acercavam da foz do Umzimvubu,
onde os náufragos da nau Belém acamparam, chamavam-lhe “na sua lingoa, “Canansys,

1166
Agradeço ao Professor José da Silva HORTA a partilha, para leitura, do seu texto em elaboração,
intitulado “Continuidades e descontinuidades nas primeiras décadas dos contactos afro-europeus na
Senegâmbia: modalidades e percepções”, 24 ps.
1167
IDEM, ibidem, pp. 5-6.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Molumgo, Muculo, Manimusa, que na nossa querem dizer grandes titulos”.1168 O


vocábulo “manimusa”, tal como foi registado na escrita portuguesa, é composto por duas
palavras das línguas locais que constam do mais antigo dicionário feito pelo missionário
alemão, J. L. Döhne (1857), que foi fluente nas línguas Xhosa e Zulu: a palavra “mani”
ou “mana”, que segundo Döhne expressa uma especificação, uma especial descendência
animal, sendo que na costa do Natal significa “filho”, designando qualquer filhote de um
animal;1169 e a palavra “musa”, que se refere a uma forma verbal imperativa que se liga a
“muka”, ir embora, trazer e levar.1170 “Manimusa” teria significações associadas à
imagem de pequenos animais que, de passagem, traziam e levavam bens ou objectos que
poderiam conjugar interesses comuns. Recordemos como as cabeças de gado das
comunidades locais eram trocadas por pedaços de metal que os náufragos transportavam
consigo, ou de como este item de valor assegurava guias para orientar a travessia dos
caminhos.
Entre os rios Umzimvubu e a foz do rio Xora, prevalece até hoje, entre os
Tshomane, a história de um clã que se afirma descendente de náufragos, de gente chegada
pelo mar. Autodenominam-se abeLungu, que significa “os brancos”. Döhne define
abelungu como um nome seu contemporâneo, usado pelos Xhosa, Zulu, Suaíli e Nika
(povo da Tanzânia) para designar os “brancos”, esclarecendo que esta acepção não deriva
da cor, pois para a dimensão cromática, tanto os Xhosa, como os Zulu têm a palavra
“mhlope”.1171 O termo para “pessoa branca” era “abantu abamhlope”.1172
Döhne explica que “mlungu” é o nome moderno e que a sua forma antiga é
“umlumbi” (singular da forma “abalumbi”), que na zona do Kwazulu-Natal veio a
significar artífice ou manufactor. O verbo “ukulumba”, com a mesma raiz, significa dar
a alguma coisa uma forma peculiar, manufacturar, produzir uma coisa engenhosa, sentido
este que parece estabelecer que muitas das “maravilhas” atribuídas aos “brancos” eram
bens manufacturados.

1168
Joseph de CABREYRA, op. cit., p. 29.
1169
Jacob Ludwig DÖHNE, A Zulu-Kafir Dictionary etymologically explained, with copious illustrations
and examples, preceded by an introduction to the Zulu-Kafir language, G.J. Pike's Machine Printing
Office, Cape Town, 1857, pp. 206-207.
1170
IDEM, ibidem, p. 214.
1171
Jacob Ludwig DÖHNE, op. cit., p. 202.
1172
IDEM, ibidem.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

“Abalumbi”, a forma plural de “umlumbi”, disseminou-se para designar os


“brancos”, não no sentido da cor da pele, mas no sentido da identificação de um povo
desconhecido e que faz coisas que os locais não têm o poder de fazer. Os abeLungu das
proximidades do rio Xora estabelecem uma ligação genealógico-identitária aos náufragos
que, saídos do mar, foram incorporados naquelas comunidades.1173
O acolhimento prestado aos náufragos dependeria das condições económicas das
comunidades para albergar mais pessoas, mas também devem ser consideradas as
possíveis reciprocidades de interesses1174 que podiam estar subjacentes à integração de
indivíduos de origem externa e, ainda, as interpretações atribuídas aos grupos de seres
estranhos, que tanto podiam provocar o temor, a fuga e algumas vezes o ataque, como
podiam suscitar a curiosidade, a aproximação e a convicção de que a sua presença poderia
ser terapêutica.

Num outro espaço mais a sul, o registo do primeiro contacto também nos concede
uma aproximação à reação dos africanos perante a chegada dos náufragos às suas terras.
O encontro dos sobreviventes da Santo Alberto (1593) com o inKosi de Tiombe, no
Penedo das Fontes, foi marcado pelo espanto e admiração:
“o amcose como pasmado esteue olhando pera todos e com grandes brados com os olhos
no mar disse, o agoa nosso amiguo quoantas couzas trazes as nossa terras, eu te gradeso
muito, e disse aos seus que folgaua de nos uer por nos pareçermos com heles tendo simquo
dedos, boqua, olhos, mãos, pes como heles tinhão, e que pela aluura deuiamos ser filhos
do sol”.1175

1173
É interessante verificar como noutros contextos africanos de contacto, há questões identitárias a
reclamar a genealogia como estratégia de afirmação. Francisco Freire estudou, para o contexto dos
primeiros contactos euro-saarianos, a transmissão intergeracional da noção de naçāra, associada à presença
europeia cristã na região da Mauritânia, estando esta fortemente ligada às estratégias locais de afirmação
genealógico-identitária. Veja-se José da Silva HORTA e Francisco FREIRE, “Os primeiros contactos luso-
saarianos: narrativas europeias quatrocentistas e tradições orais Bidān (Mauritânia)”, in As Lições de Jill
Dias. Antropologia, História, África, Academia / The Jill Dias Lessons. Anthropology, History, Africa,
Academia, Maria Cardeira da SILVA e Clara SARAIVA (coord), Lisboa, Centro em Rede de Investigação
em Antropologia, 2013, p. 39. pp. 37-53.
1174
José da Silva HORTA, “Continuidades e descontinuidades nas primeiras décadas dos contactos afro-
europeus na Senegâmbia: modalidades e percepções”, (…), p. 6.
1175
“Perdição da nau Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, costumes dos que a abitão ate o Cabo das
Correntes”, in Glória de Santana PAULA, op. cit., (…), p. 131.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Já referimos, neste trabalho, que todo este sentido pode ter sido inferido a partir
de gestos rituais e comunicação não-verbal. Sucedeu que o inKhosi entregou ao mar, de
forma ritual, as entranhas de um carneiro oferecido a Nuno Velho. A tradução das
palavras rituais e as simbologias complexas dos gestos podiam escapar ao observador
português, porém, foi percepcionado e registado um sentido cerimonial protagonizado
pelo chefe. Provavelmente, aquilo que foi percepcionado como uma oferta a Nuno Velho,
significou para o chefe africano um sacrifício de um animal, que era sempre um
transportador de informação entre os vivos e o mundo dos espíritos, a que o mar oceano
se associava.
A busca de semelhanças físicas que o inKosi estabelece entre o seu povo e os
náufragos, como ter boca, olhos, mãos e pés com cinco dedos, parecia descartar a hipótese
de serem animais ou outras criaturas não-humanas, emergindo uma explicação alternativa
ligada à cor “alva” de muitos náufragos, que os remetia para a categoria de “filhos do
sol”, sendo que essa interpretação implicava significados cosmológicos que o observador
europeu não teria alcançado.
Durante o longo percurso por terra, em diversas latitudes, os náufragos da Santo
Alberto atraíram muitas gentes, que vinham das povoações a vê-los “como pasmados”.1176
Em certas áreas provocavam a fuga, como aconteceu com caçadores e suas famílias que
“vivião naqueles matos”.1177 Noutros casos ainda, as gentes locais traziam muitas espigas
de milho para que os náufragos as tocassem com as mãos, mostrando “tanta venerasão
que auião que só com lhes tocarmos sarauão suas enfermidades”. Numa área de muitas
povoações, em territórios do Natal, gentes que estavam doentes acorriam aos náufragos
caminhantes e estes esfregavam-lhes as espigas de milho nos “pes, e mãos, e barriga,
fazendo-lhes o sinal da crus, (…) e eles muito satisfeitos estirauão as pernas, e brasejauão
com os brasos avemdo que estauão fortissimos”. Dizia um sobrevivente deste naufrágio
que “foj tanta a fe que estes negros tinhão em nós os tocarmos (…) e era tam geral a cura
que ate os moços, negros, meninos se punhão esfregar, cafarrõis bem gramdes”.1178
Muitos homens e mulheres de diversas aldeias acompanharam por cerca de dois dias os
náufragos, ajudando a carregar os alforges pesados. As mulheres rodeavam as machiras

1176
IDEM, ibidem, p. 145.
1177
IDEM, ibidem, p. 147.
1178
IDEM, ibidem, pp. 153-154.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

onde eram transportadas duas fidalgas portuguesas e, numa manifestação que parecia ser
ritual, tangiam as palmas, cantando muito alto e bailando, trazendo-lhes leite e
galinhas.1179
Quando o grupo de náufragos parou para descansar junto a uma ribeira, chegou-
lhes o “presente” de uma vaca enviado pela viúva de um inkosi, que não podia vir vê-los
e por isso lhes pedia que passassem pelas suas aldeias.1180 Na cultura local, não só as
mulheres estavam impedidas de cuidar e transportar o gado, como a observância da inzila,
um conjunto de preceitos ligados ao luto, impossibilitavam a viúva de deixar a sua área
residencial e deslocar-se pelos campos a fim de concretizar este encontro, eventualmente
percepcionado como “curador”.1181 Para os povos locais, depois da morte, e cumpridos
os rituais, o inkosi tornava-se isithundi, uma “sombra”, até que se juntaria aos
antepassados, para vir a desempenhar um papel especialmente importante como guardião
espiritual do kraal.1182 Era preciso honrar, respeitar e dar atenção ao isithundi, por
exemplo através de rituais sacrifíciais em que o gado desempenhava um papel crucial,
pois este era parte da identidade da própria comunidade, ligando-se simbolicamente aos
humanos e aos ancestrais.1183
Poderemos interpretar o envio da vaca pela viúva do inkosi como um ritual que
reforçava a união entre os vivos e os mortos? Em tempo de luto e da crise que implicava
a morte de um chefe, o envio de uma vaca a criaturas desconhecidas do seu povo poderia
assumir um sentido sacrificial, e portanto reconciliador e purificador no âmbito
comunitário? Se for esse o sentido, é muito provável que os náufragos fossem
percepcionados como criaturas actuando num horizonte ou num espectro do sagrado, pelo

1179
IDEM, ibidem, pp. 153.
1180
IDEM ibidem, p. 154.
1181
Cecilia Daphney NDLOVU, The Mourning Cultural Practices amongst the Zulu-Speaking Widows of
the Kwanyuswa Community: A Feminist Perspective, Dissertation submitted in partial fulfillment of the
requirements for the Degree of Master of Arts, University of Kwazulu-Natal, 2013, pp. 6-7.
http://hdl.handle.net/10413/11374 (consultado em 12/08/2021)
1182
Axel-Ivar BERGLUND, Zulu Ideas and Simbolism, Thesis submitted for PhD Degree at the University
of Cape Town, 1972, p. 125. No seu trabalho antropológico, Berglund procurou compreender os padrões
de comportamento, pensamento e expressão a partir da interpretação dos próprios Zulus sobre as suas ideias
e simbolismos. Assim, a “sombra” ou isithundi é definido como «the "shadow of man, the living principle
in man, spirit (while living), shade (after death= idlozi)».
1183
W. D. HAMMOND-TOOKE, “Cattle Symbolism in Zulu Culture”, in Benedict CARTON, John
LABAND and Jabulani SITHOLE (Editors), Zulu Identities. Being Zulu, Past and Present, London,
Hurst&Company, 2009, p. 64.

309
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

que as experiências destes encontros terão incorporado as memórias de diversas


comunidades.

Voltando aos abeLungu ou “brancos”, destacamos que estes reivindicam a sua


ascendência em náufragos de navios europeus, como uma forma de legitimidade de um
grupo face a outros, a partir da ideia de ancestralidade. Estes “brancos” foram
identificados na memória colectiva com sobreviventes de naufrágios de navios do séc.
XVIII, cujas tradições orais foram recolhidas no século XIX. Na transmissão da oralidade,
a densidade temporal não permitia recuar aos séculos XVI e XVII, pois as informações
guardadas na memória colectiva tornaram-se uma amálgama.1184 É nesta questão da
densidade temporal que os relatos de naufrágios podem constituir um corpo documental
tão importante e complementar dos registos da oralidade africana. As fontes escritas,
nomeadamente os relatos de naufrágios, testemunham a integração plena de náufragos de
navios portugueses em diversas comunidades de agricultores-pastores, desde o norte do
rio Kei até aos territórios Tsonga, entre a segunda metade do século XVI e a primeira
metade do século XVII.
Desde a percepção de que os náufragos seriam “filhos do sol”, ao exemplo do
indivíduo que casava com a irmã do “rei”, passando a integrar as linhagens, ao português
que se tornava “fazedor de chuva”, implicando essa “função”, ao nível local, que toda
uma comunidade acreditasse ser ele conhecedor do céu e da sua divindade, aos muitos
escravos africanos e asiáticos que desertaram e foram acolhidos nas estruturas sociais
locais, e considerando ainda os grupos de náufragos que, mesmo de passagem, eram
“venerados” como se fossem criaturas curadoras, parece-nos existir uma base documental
para colocar a hipótese de que os náufragos de navios portugueses dos séculos XVI e
XVII terão constituído os estratos mais antigos dos abeLungu.

1184
Em 1989, a jornalista Hazel Crampton, ao investigar um povo de entre os Tshomane, que se
autodesignava de abeLungu, fez o levantamento das diversas recolhas de oralidade empreendidas durante
o século XX. Quando, em 1950, o Reverendo Holt entrevistou um ancião, já então era notória uma grande
amálgama na consciência colectiva. A própria Hazel Crampton entrevistou gentes que lhe referiram: “We
are the abeLungu; our forefathers were White men”; “We are not lost, we know where we are coming from
– overseas”; “we are different, as we are abeLungu”. Se há uma identidade abeLungu definida, impossível
se torna precisar os naufrágios que poderão estar na sua origem, pois como afirmou Guaxaza kaLugaga,
um abeLungu entrevistado em Agosto de 1989, “it was not only one ship that was broken [it was] one after
another”. Veja-se Hazel CRAMPTON, op. cit., Appendix 1, pp. 296-298.

310
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

O aprofundamento desta questão e a busca de respostas mais sustentadas e


complexas implicariam uma abordagem das dimensões religiosas específicas, com
análise da sua historicidade, para cada uma das sociedades que se reivindicam de
descendência abelungu.
Através de uuma aproximação ao universo religioso destas populações poder-se-
á compreender e explicar de forma mais estruturada a dialéctica do encontro. Não sendo
possível no âmbito deste trabalho desenvolver essa linha de investigação, consideramos
que este poderá ser um caminho que se abre para trabalhos futuros.

311
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

3. A Cafraria na documentação missiológica, antes e depois da primeira missão


jesuítica: a acentuação das conotações negativas

No processo de construção das representações geográficas e antropológicas da


África do Sudeste, o discurso dos missionários católicos revela-se essencial, por um lado
porque a sua presença nestes territórios decorreu de projetos de acção evangelizadora que
os colocaram em interacção relacional com sociedades cujos sistemas religiosos
radicavam em epistemologias e linguagens cosmológicas muito diversas, que foram
interpretadas à luz do complexo ideológico e conceptual católico. Por outro lado, porque
a presença de missionários no terreno permitiu testemunhar acontecimentos da história
africana, que ficaram materializados nas escritas europeias, em versões que naturalmente
reflectem a natureza exógena dos observadores.

3.1.Marginalidade da África do Sudeste no âmbito da atividade


missionária portuguesa

No contexto do movimento expansionista português, a Santa Sé concedeu aos


monarcas portugueses o poder de promover a evangelização das populações dos “novos”
territórios, assim como construir igrejas, assegurar o culto cristão e as cerimónias
sagradas. Uma sequência de documentos pontifícios procuravam garantir uma expansão
da Igreja a par de uma agenda de expansão política e económica.
Os direitos e privilégios que constituíram o Padroado Português do Oriente eram
assegurados pela coroa portuguesa, que assumia uma política de expansão eclesiástica e
missionária no vasto e fragmentado espaço político-administrativo, económico e cultural
do “Estado da Índia”.1185
Desde a conquista de Goa, em 1510, por Afonso de Albuquerque, que esta cidade
se constituiu como o centro administrativo do Estado da Índia e também o do
“enraizamento da Igreja”.1186 A própria entidade “Estado da Índia” era uma estruturação
política, económica e administrativa complexa, que conjugava interesses da coroa e

1185
Maria de Deus Beites MANSO, “Contexto Histórico-cultural das missões na Índia: Séc. XVI-XVII”,
in História Unisinos, Vol. 15, nº 3, Setembro/Dezembro 2011, p. 408.
https://doi.org/10.4013/htu.2011.153.08 (Consultado em 20/09/2018)
1186
IDEM, ibidem.

312
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

eclesiásticos e que, teoricamente, aspirava a uma soberania e a um domínio espiritual que


era suposto exercer-se sobre os territórios desde o Cabo da Boa Esperança até à China.
A Bula “Aequum Reputamus”, de 3 de novembro de 1534, do Papa Paulo III,
reorganizava a jurisdição religiosa do Império Português do Oriente, estabelecendo em
Goa, erigida diocese no ano anterior, a sede da administração eclesiástica dos territórios
do “Estado da Índia”. Em 1538, D. João de Albuquerque foi nomeado o primeiro bispo
de Goa,1187 e, em 1542, chegavam os primeiros Jesuítas liderados por Francisco Xavier,
que traziam para os territórios asiáticos uma actuação diversa da seguida por franciscanos
e dominicanos.
Na sua viagem para a Índia, como superior das missões e núncio papal, Francisco
Xavier fez escala na ilha de Moçambique, entre agosto de 1541 e o fim de fevereiro de
1542.1188 Porém, na carta que escreveu para a sede da Companhia de Jesus, em Roma,
nada refere sobre a sua experiência nestas partes e as gentes aí encontradas.1189 Parece-
nos ser significativo este silêncio, pois na sua descrição da viagem fornece alguns detalhes
acerca de outras escalas, nomeadamente a cidade de Melinde e a ilha de Socotorá. Sobre
Melinde recorda o diálogo estabelecido com um mouro que se queixava do declínio da
piedade islâmica, visível nas sete mesquitas da cidade cada vez mais vazias. Ora, o vazio
de que se queixava o interlocutor de Francisco Xavier era uma consequência do
apoderamento daquele porto pelos portugueses como parte de um projecto mais vasto que
consistia em bloquear a costa do Índico ao comércio dos mercadores muçulmanos com
os poderes africanos, procurando assim garantir o abastecimento de Sofala e obstar à
decadência comercial da zona de influência da feitoria.1190
De Socotorá destaca uma população que se dizia cristã, mas que não tinha
escrituras, nem livros, nem compreensão das orações recitadas. Segundo o documento,
Francisco Xavier queria permanecer nesta ilha a baptizar as gentes, mas o governador não

1187
Júlio GONÇALVES, “Goa”, in Dicionário de História de Portugal, Joel SERRÃO (Dir.), Vol. III,
Porto, Livraria Figueirinhas, s.d., p. 120.
1188
Dauril ALDEN, The Making of an Enterprise: The Society of Jesus in Portugal, Its Empire and beyond,
1540-1750, Stanford, Stanford University Press, 1996, p. 43.
1189
“St. Francis Xavier: a visit to Malindi and Socotra in 1542” [carta assinada por Francisco Xavier, escrita
em Goa, 20 Setembro de 1542], in Greville S. P. FREEMAN-GRENVILLE (ed.), op. cit., p. 135.
1190
Eugénia RODRIGUES, Portugueses e Africanos nos Rios de Sena. Os Prazos da Coroa em
Moçambique nos séculos XVII e XVIII, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2013, p.72.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

o autorizou, não só devido ao perigo turco, mas também porque lhe estava destinada a
instrução de outros cristãos, alegadamente mais necessitados do serviço divino.1191
Antes da chegada dos primeiros missionários da Companhia de Jesus ao Oriente
fora construído em Goa o Seminário da Santa Fé. Esta instituição tinha a sua raiz na
Confraria da Santa Fé (1542), fundada por Miguel Vaz Coutinho, primeiro vigário geral
de Goa, e Diogo Barbosa, provavelmente um padre franciscano, com o propósito de
acolher estudantes de diversas partes de África e da Ásia que viriam a ser padres seculares
entre as populações indígenas.1192 O Seminário admitia estudantes com idades
compreendidas entre 13 e 15 anos, num sistema de quotas para Indianos, Kaffirs, Malaios
e Chineses.1193 Cerca de 1548, o Seminário alojava estudantes que falavam 13 línguas
nativas.1194
Vaz Coutinho e Diogo Barbosa faleceram em 1547. Em 1549 constituiu-se a
Província de Goa da Companhia de Jesus, que viria a tomar posse formal do Seminário
da Santa Fé, núcleo do Colégio de S. Paulo (1551). Em breve, Seminário e Colégio
separavam-se fisicamente, sendo que este passou a ser o centro estratégico do Padroado
do Oriente. Era missão do Colégio treinar padres e irmãos chegados da Europa antes
destes serem enviados para as diversas partes do Oriente, que se considerava ter o seu
começo no Cabo da Boa Esperança, prolongando-se para leste, até ao arquipélago
nipónico.
Desde a chegada de Francisco Xavier à Índia que o empreendimento jesuíta se
havia sediado em Goa, o principal centro gravitacional da Companhia de Jesus no Oriente.
A partir daí, irradiou para outros centros e áreas de missionação, com uma intensa
atividade de padres seculares e missionários que levavam o Cristianismo católico pós-
tridentino a comunidades hindus e muçulmanas. 1195
Em 1559, destacam-se como algumas das áreas de missionação jesuíta no Oriente:
Baçaim, Cochim, Costa da Pescaria, Taná e Costa de Travancore, na Índia. Fora da Índia,
destacava-se, a Este, o Japão, as Molucas e Malaca. Na parte ocidental do “Estado da

1191
“St. Francis Xavier: a visit to Malindi and Socotra in 1542” [carta assinada por Francisco Xavier, escrita
em Goa, 20 Setembro de 1542], in Greville S. P. FREEMAN-GRENVILLE, op. cit., p. 137.
1192
Dauril ALDEN, op. cit., p. 44
1193
IDEM, ibidem.
1194
IDEM, ibidem.
1195
IDEM, ibidem, pp. 48-49.

314
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Índia”, Dauril Alden salienta apenas Ormuz (desde 1549)1196 e a missão da Etiópia (desde
1557)1197.
Na África Oriental, os interesses dos Portugueses centraram-se na Abissínia, cuja
soberania era atribuída ao lendário “Preste João”, o rei cristão que controlava os altos
planaltos da Etiópia e que, durante séculos, alimentou no Ocidente o desejo profético de
estabelecer uma aliança espiritual e militar para combater os muçulmanos.
A primeira embaixada enviada à Etiópia (1520-1526), chefiada por Duarte
Galvão, levou por capelão o Padre Francisco Álvares, autor da narrativa “fundadora” do
conhecimento europeu sobre o reino cristão da Etiópia, que descreve os primeiros
contactos com o Ngusa e contextualiza o seu poder face aos dos povos circundantes, seus
costumes e religiões. A riqueza informativa da obra impressa em 1540, Verdadera
Informação das Terras do Preste João das Indias1198 foi ao encontro de uma intensa
curiosidade cristã europeia, o que é visível nas traduções para castelhano, francês, italiano
e alemão, durante o século XVI e para inglês, em 1615.1199
A partir de 1529, o Estado cristão da Etiópia viu-se ameaçado pelos exércitos
muçulmanos comandados pelo rei de Zeila, Ahmad ibn Ibraim, que integravam vários
clãs de pastores Somali, Harari e Afari. Face ao avanço militar muçulmano, e num
contexto de relações diplomáticas com os portugueses, o imperador Galawdewos pediu
auxílio aos Portugueses, o que resultou na força expedicionária comandada por D.
Cristovão da Gama, que actuou entre 1541 e 1543, no sentido de conter o avanço das
forças muçulmanas. Esta cooperação militar servia a um mesmo tempo os interesses
estratégicos portugueses, ligados ao controlo do comércio no Mar Vermelho e noroeste
do Índico, e também o objetivo de estabelecer uma missão jesuíta naquele reino. Ao
mesmo tempo, dissipava-se a imagem mítica que associava ao monarca etíope uma
poderosa força militar.1200

1196
IDEM, ibidem, p. 53.
1197
IDEM, ibidem, p. 54.
1198
Francisco ALVARES, Ho preste Ioam das Indias: verdadera informaçam das terras do Preste Ioam
segundo vio & escreueo ho padre Francisco Aluarez, capellã del rey nosso senhor. Agora novam[en]te
impresso por mandado do dito senhor, Lisboa, em casa de Luis Rodrigues, 1540.
http://175anosbpb.pt/bpbuminho/preste-joao/ (Consultado em 08/02/2020)
1199
http://175anosbpb.pt/bpbuminho/preste-joao/ (Consultado em 08/02/2020)
1200
Manuel João RAMOS, “O destino etíope do Preste João. A Etiópia nas representações cosmográficas
europeias”, in Condicionantes Culturais da Literatura de Viagens. Estudos e Bibliografias, Fernando
Cristovão (Coord. de), Coimbra, Almedina – CLEPUL, 2002, p. 247.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Depois da expedição militar de Cristóvão da Gama, o clérigo João Bermudes


apresentou-se na corte de Galawdewos como Patriarca da Etiópia, nomeado pelo Papa.1201
Entretanto, a conduta de Bermudes não agradou ao soberano, tendo sido afastado e
substituído por um Patriarca copta. D. João III, em articulação com a Companhia de Jesus,
não desistiu de tentar influenciar na designação de um Patriarca português para a Etiópia.
Em 1554, uma Bula Papal constituía a diocese da Etiópia e uma missão jesuíta
chegava à Etiópia em 1557. Dois anos depois, o imperador Minas, sucessor de
Galawdewos, interrompeu as tentativas de conversão ao Catolicismo e obrigou os Jesuítas
ao exílio em Tigré (1559), onde foi fundada a primeira residência da Companhia de Jesus
na Etiópia.1202
Ao mesmo tempo que o desalento se instalava no que respeita à conversão da
Etiópia, que havia, no passado alimentado o mito de uma aliança cristã, outros territórios
e povos do sul da África Índica despertavam o interesse e a predisposição da Companhia
de Jesus para uma missão evangelizadora, que ficaria conhecida como a missão da
Cafraria.
As “cartas missivas” dos padres jesuítas, redigidas no contexto da atividade
missionária, constituem um acervo documental importante para a compreensão e
explicação das representações que estes construíram sobre os territórios e as populações
onde e com quem desenvolveram a sua ação evangelizadora. A regular comunicação
escrita, produzida no âmbito das missões jesuítas era copiada, existindo diversos
exemplares manuscritos em diferentes bibliotecas, como o códice da secção de reservados
da Biblioteca Nacional de Portugal, que reúne um conjunto das cópias de muita da
correspondência trocada entre os padres das missões e os que se encontravam na
Europa.1203 Algumas destas cartas vieram a integrar extensas coletâneas documentais
impressas, como a Documenta Indica, que inclui as cartas que o padre Gonçalo da Silveira
e os seus companheiros da primeira missão da Cafraria escreveram no âmbito da

1201
André Ferrand de ALMEIDA, “Da Demanda do Preste João à Missão Jesuíta da Etiópia: a Cristandade
da Abissínia e os Portugueses nos Séculos XVI e XVII”, in Lusitania Sacra, 2ª Série, 11 (1999), p. 285.
1202
IDEM, ibidem, p. 283.
1203
Livro Io. Em o qval. Se trasladão. as cartas. que mandão os Padres. he Irmãos. da Companhia. de Iesu
qve andão. na India. das covsas. qve naqvelas. Partes. Deus. Nosso Senhor. por meyo deles. em serviço
sev. he lovvor. Obra. que comeca. do anno. do Nacimento. de Nosso. Senhor. Iesv. Christo. de. 1557. em
diante. Até. 64., B.N.P. – Reservados, Cod 14534.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

correspondência oficial da congregação;1204 a colectânea documental reunida por António


Pereira de Paiva e Pona, em 1892, que integra a correspondência jesuíta relevante para
este tema;1205 a colectânea documental intitulada Documentos sobre os Portugueses em
Moçambique e na África Central.1206
A comunicação epistolar entre os membros da Companhia de Jesus era uma
prática que mantinha a união da Ordem, num contexto de dispersão pelo mundo por via
da atividade missionária, garantia a circulação de informações e notícias entre súbditos e
superiores, Casas e Províncias e procurava estimular vocações e preparar novos
missionários para as diferentes missões. Veremos de que modo as informações em
circulação contribuíram para a construção de imagens genéricas, que se replicaram e
cristalizaram.

3.2. Início da missão da Cafraria em Inhambane

Em novembro de 1559, a partir de Goa, o padre Gonçalo da Silveira escrevia uma


carta aos Irmãos de Portugal, na qual referia que Frei António Pegado, da Ordem de S.
Domingos, estivera em Melinde a recolher informações favoráveis sobre as populações
do interior, que lhe pareceram ser de “bom juízo e boa inclinação”. Na mesma carta,
Silveira exaltava a nova missão que a Companhia de Jesus ia iniciar em Inhambane,
empreendimento impulsionado pelo Bispo Dom Jorge, que chegara a Cochim com
informações sobre a Cafraria, onde ele próprio fizera uma escala de quinze dias. Este
Bispo concedeu uma importância tal ao projeto de evangelização na África Oriental, que

1204
Josef WICKI e John GOMES (Editores), Documenta Indica, 18 vols, Roma, Apud “Monumenta
Historica Societatis Jesu”, 1948. Trata-se de um repositório de documentação relativa às missões jesuítas
no Índico, em 18 volumes, coligidos e editados por Josef Wicki e John Gomes, no ano de 1948. A
transcrição, impressão e divulgação da documentação integra-se no projeto mais vasto, designado
“Monumenta Historica Societatis Iesu”, tendo por missão a publicação de documentos sobre as origens da
Companhia de Jesus, que constam dos arquivos da Ordem, sob a responsabilidade maior do “Institutum
Historicum Societatis Iesu”. É do volume V desta colectânea que extraímos as fontes para análise neste
tópico da nossa dissertação.
1205
António Pereira de PAIVA E PONA, Dos primeiros trabalhos dos portuguezes no Monomotapa: o
padre D. Gonçalo de Silveira, 1560: memoria apresentada á 10.ª sessão do Congresso internacional dos
orientalistas, Lisboa, Imprensa Nacional, 1892.
1206
Sob a responsabilidade editorial do Centro de Estudos Históricos Ultramarinos e do National Archives
of Rhodesia and Nyasaland, nesta colectânea encontra-se também publicada a correspondência jesuíta
produzida no contexto da primeira missão da Cafraria, a partir de cópias depositadas nos fundos
documentais da Biblioteca da Ajuda, da Biblioteca Nacional de Portugal e da Academia das Ciências de
Lisboa (Ms. Azul). Veja-se D.P.M.A.C., Vol. VIII (1561-1588), (…), 1975.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

o colocou em consulta ao Patriarca da Etiópia, João Nunes Barreto, e ao Padre Provincial,


António Quadros, os quais, em resposta, determinaram “ser a cousa muy importante pera
o devino serviço”.1207
Entre 1559 e 1562, três missionários portugueses assumiam o primeiro
empreendimento missionário católico na África Sul-Oriental: o Padre Gonçalo da
Silveira, anterior Provincial da Companhia de Jesus na Índia; o Padre André Fernandes;
e o Irmão André da Costa. A missão jesuíta da Cafraria surgia assim como uma pequena
parcela dentro da vasta Província do Oriente que, nas palavras do missiólogo António da
Silva, facilmente poderia perder-se de vista face à “extensíssima actividade geral das
outras regiões”.1208
Esta missão teve a sua base de evangelização inicial no Tonge (Otongue), a
residência do chefe Gamba, um povoado na margem esquerda do rio Inharrime, cerca de
trinta léguas para sudoeste do porto de Inhambane.1209 A missão era referenciada como
não muito longe do Cabo da Boa Esperança e implantada entre “gente preta”, 1210
expressão desde há muito definida como categoria que tornava inteligível a realidade
antropológica africana, identificando a cor da pele como o mais comum dos seus traços
somáticos e estando também associado um conjunto de atributos relativos ao modo de
viver.1211
Antes do embarque dos missionários rumo à missão da Cafraria, Gonçalo da
Silveira escrevia motivado para os seus Irmãos de Portugal, transmitindo uma
representação idealizada das populações da região de Inhambane, que considerava
predispostas para a Fé. No Tonge, “ho emgano da idolatria” teria “poucas raízes” e os
portugueses que andavam nessas terras na senda do comércio do marfim e do âmbar

1207
“Copia de huma do Padre Don Gonçalo que escreueo aos Irmãos de Portugal em Nouembro de 1559,
de Goa”, in Livro Io. Em o qval. Se trasladão. as cartas. que mandão os Padres. he Irmãos. da Companhia.
de Iesu …, fl. 127 vº.
1208
António da SILVA, Mentalidade Missiológica dos Jesuítas em Moçambique antes de 1759. Esboço
ideológico a partir do núcleo documental, Vol. I, Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, 1967, p. 22.
O Padre António da Silva foi Professor de Missiologia na Universidade Gregoriana em Roma, no ISESE
em Évora e na Faculdade de Filosofia em Braga.
1209
“Treslado de huma carta que escreueo o padre dom Gonçalo de Moçambique aos padres e irmãos do
collegio da companhia de Goa. de sua tornada de Inhambane. E ida para o Rejno de Monomotapa. A 9
dagosto de 1560”, in Livro Io. Em o qval. Se trasladão. as cartas. que mandão os Padres. he Irmãos. da
Companhia. de Iesu …, fl. 212 vo. Versão impressa em PAIVA E PONA, op. cit., p. 47.
1210
“De uma do padre António Fernandes da Cafraria de 3 de Junho 1561 para o irmão Mario em Portugal”,
in PAIVA E PONA, op. cit., p. 52.
1211
José da Silva HORTA, “A Representação do Africano na Literatura de Viagens, do Senegal à Serra
Leoa”, (…), p. 236.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

diziam que “os cafres os tem por deoses e lhes pedem agoa e sol”, a gente era tão subtil
que dava “ouro por vidro e por pano de estopa”, o território era pacífico e toda a terra
sadia e fresquíssima, além de que a organização sociopolítica em aldeias se afigurava um
fator facilitador para a doutrinação.1212

Mapa 4 - Sudeste Africano com localização do Tonge, Inhambane


(adaptado de Eugénia RODRIGUES, 2013, p. 997)1213

Inhambane C. Correntes
Tonge

Próximo ao porto de Inhambane, no Tonge, localizava-se o reino de Gamba,


onde decorreu o primeiro projecto missionário da Cafraria

1212
“Carta (copia) do Padre D. Gonçalo para os Irmãos da Companhia de Jesus de Portugal”, in D.P.M.A.C.,
Vol. VII, (…), p. 422.
1213
Mapa adaptado de Eugénia RODRIGUES, op. cit., p. 997.

319
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

A importância de que se revestia esta missão decorria da proximidade dos portos


com populações islamizadas, permanecendo ainda assim aquele reino como “a mais
limpa” nação pagã. Afirmavam os padres que, nem a “seita de Mafamede”, nem o
Judaísmo haviam corrompido aquelas gentes, pelo que eram percepcionadas como de
pura e branda gentilidade, dispostas para receber a Santa Fé Católica.1214 Acrescia ainda
a informação enviada por Bastião de Sá, capitão de Sofala, de que o filho do chefe local
ou mf’umu fora baptizado:
“mancebo de boa maneira e muy firme na fee e tão contente nela que vay e vem ao reyno
de seu pay com os portugueses e dizem que zomba la delles porque não são christãos e
nem por isso he mal recebido de seu pay e dos outros seus irmãos antes hum criado do
mesmo capitão que estava la nos afirmou que todos os filhos do rey quando elle se tornava
acabado desse trato se vinhão embarcar com elle e a fazer se christãos e que o mesmo rey
lhe mandara rogar a nao que não levase seus filhos mas que os fossem bautizar la que
certos estavão e creo que não somente isto sera em seus filhos mas aimda nelle e em toda
sua casa e assi o reyno todo”.1215

Com esta notícia e o convite do mf’umu para que se fizessem os baptismos nas
suas terras, partiram os padres de Goa, pelo Índico, rumo ao porto de Inhambane, no
sudeste africano, rezando a bordo Padres Nossos, Avé Marias e os Credos “pela
Cafraria”.1216
Em Chaul, André Fernandes escrevia aos Irmãos de Goa. Iniciava-se o ano de
1560 e o grupo de missionários determinava marcar o início de uma nova Era com esta
missão na África Oriental, simbolizada por uma nova marcação do tempo – “começar de
nouo com feruor a seruir ao Senhor e daqui por diante contar o tempo”.1217 Nesta carta,
André Fernandes solicitava a oração coletiva favorável à futura conversão da “rainha de
Inhambane” sobre quem recaíam grandes expectativas, pela influência que se esperava
que exercesse no chefe da linhagem, nas elites locais, na comunidade mais vasta, mas
também pelo exemplo que constituía para as chefaturas vizinhas.

1214
“Carta (copia) do Padre D. Gonçalo para os Irmãos da Companhia de Jesus de Portugal”, in D.P.M.A.C.,
Vol. VII, (…), pp. 422-424.
1215
IDEM, ibidem.
1216
“Carta (copia) do Padre D. Gonçalo para o Padre Provincial da Companhia de Jesus de Goa” (12 de
Fevereiro de 1560), in D.P.M.A.C., Vol. VII, (…), p. 440.
1217
“Carta (copia) do Padre André Fernandes para os Irmãos do Colégio de Goa”, (Chaul, 2 de Janeiro de
1560), in D.P.M.A.C., Vol. VII, (…), pp. 434-437.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Chegados à ilha de Moçambique, a 5 de Janeiro de 1560, após severa calmaria e


tempestade, depararam os religiosos com uma “pouoação entalhada de gente e muj
desauiada de aposentos e serviços de casa e muito doentia”, morrendo ali muitas
pessoas.1218 Na capela de Senhora do Baluarte fez D. Gonçalo muitas confissões, pregou
com grande solenidade, organizou uma procissão e cerimónia musical, voltando os
religiosos a embarcar com as “milhores esperanças”, rumo a Sofala e ao Cabo das
Correntes. Foram conduzidos por dois portugueses e um “homem da terra muj de bem e
inteligente”.1219 Um dos criados do capitão, com conhecimento prático “daquela terra”,
fez de guia e língua e foi neste troço da viagem que o Padre Gonçalo da Silveira recolheu
informações decisivas para o seu percurso no contexto da missão da Cafraria.
A difícil adaptação ao clima fez-se sentir logo nesta viagem em que os padres
chegaram doentes a Inhambane. André Fernandes chegou uns sete dias antes de Gonçalo
da Silveira e, estando “mal de febres”, o chefe local mandou os filhos visitá-lo e
acompanhá-lo e terão sido estes os primeiros a quem pregou a doutrina cristã, explicando-
lhes “que tinhamos alma e hum Deus que nos fizera e assi todas as cousas”, pelo que,
como afirmou, “logo se me conuidarão para serem christãos e outros muitos”.1220
André Fernandes foi auxiliado pelo língua João Raposo, um mestiço nascido em
Sofala, de quem obteve informações sobre este “reino” de Tonge, nomeadamente que
teria cerca de “dez ou doze mil almas” e que o poder se exercia por “Senhores de lugares
como hum seu irmão e genro e sobrinho”.1221 Refere-se a expressão “Senhores de lugares”
a uma estrutura patrilinear baseada nas relações de parentesco que permitiam construir
um complexo sociopolítico com determinada implantação territorial, à escala de diversas
aldeias. A entidade política designada nas cartas por “reino” refere-se, certamente, a uma
organização cuja chefia, o madzimambo, exercia autoridade e poder sobre os mf’umu ou
chefes das aldeias, sendo este poder definido em função das ligações de parentesco 1222
por consanguinidade e afinidade.

1218
IDEM, ibidem.
1219
IDEM, ibidem.
1220
“Carta (copia) do Padre Andre Fernandes para o Irmão Luis Fróis” (Tonge, 25 de Junho de 1560), in
D.P.M.A.C., Vol. VII, (…), p. 480.
1221
“Carta (copia) do Padre Andre Fernandes para o Padre Provincial da Companhia de Jesus da Índia”
(Tonge, 24 de Junho de 1560), in D.P.M.A.C., Vol. VII, (…), p. 466.
1222
S.I.G. MUDENGE, op. cit., pp. 17-18.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Baptizado o madzimambo, ou chefe da linhagem do Tonge, o qual adoptou o nome


cristão de D. Constantino e a “rainha”, D. Catarina, seguiu-se o baptismo de quatrocentas
pessoas, entre as quais alguns senhores do reino. Escrevia o padre André Fernandes aos
Irmãos do Colégio de Goa, em 26 de junho de 1560, que logo após a chegada dos padres
“se baptisaram muitos, e dahi a poucos dias, elle [rei Gamba], seus filhos primeiro, e assi
de mano em mano a casa toda e povo, e os mais do reino está esperando por nos. (…) E
não somente os deeste reino querem ser christãos, mas ainda os vizinhos delle”. 1223

Após o baptismo do madzimambo e de diversos mf’umu da região do Tonge, foi


escrita uma carta em nome do madzimambo dirigida ao vice-rei da Índia, datada de 20 de
maio de 1560. A redacção desta carta obedece ao estilo e aos objetivos da Companhia de
Jesus e simboliza uma desejada sujeição espiritual face à Coroa portuguesa e às
autoridades do Estado da Índia, oferecendo-se o “reino” africano como penhor desse
vínculo.1224
Esta etapa inicial da chegada ao Tonge, com o ritual do baptismo das
comunidades, correspondia à expectativa optimista dos jesuítas, resultante de todos os
pareceres que foram reunidos em Goa e alimentada pelas preces durante a viagem.
Segundo o relato missionário, o entusiasmo dos padres parecia ter correspondência nas
comunidades africanas, para as quais a celebração do batismo encontrava também
significados sagrados. Um português que andava naquelas terras transmitiu ao padre
André Fernandes que numa das aldeias lhe haviam perguntado “E o velho de Deus que
faz os christãos não vira ca bautizar nos”?1225 A expressão “velho de Deus”, aplicada ao
Padre André Fernandes, encerra em si uma estreita ligação da figura do sacerdote cristão
às forças divinas, sendo por seu intermédio que os baptizados recebiam novos poderes.
Se antes da chegada dos padres a Inhambane os portugueses que por aquelas terras
comerciavam eram tidos por deuses e as gentes “lhes pediam água e sol”, com a chegada
dos missionários ao Tonge, as cerimónias do baptismo foram entendidas localmente como

1223
“Carta (copia) do Padre Andre Fernandes para os Irmãos do Colégio da Companhia de Jesus de Goa”
(Tonge, 26 de Junho de 1560), in D.P.M.A.C., Vol. VII, (…), pp. 496-499.
1224
“Carta que el-rei de Inhambane, que o padre D. Gonçalo fez christão, escreveu ao viso-rei D.
Constantino (em maio de 1560) á India”, in António Pereira de PAIVA E PONA, op. cit., pp. 50-52.
1225
“Carta (copia) do Padre André Fernandes para o Irmão Luis Fróis” (Tonge, 25 de Junho de 1560), in
D.P.M.A.C., Vol. VII, (…), p. 486.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

iniciação que permitia aceder a poderes novos, daí que diversas comunidades pedissem
para receber o baptismo e participar num novo culto.
Anne Hilton refere semelhante interesse pelo baptismo, no Kongo, em que depois
do rei ser baptizado, alguns “principais” pediam o mesmo ritual, que simbolizava a
iniciação no culto mbumba, relacionado com os espíritos da água ou da terra e com o
“outro mundo”.1226 Segundo Carlos Almeida, depois que muitos baptismos aconteceram
no Kongo, verificaram-se processos de redefinição de sentidos e os missionários
procuravam impedir a apropriação africana dos sacramentos cristãos para lhes atribuírem
sentidos novos.1227
Na Cafraria, diziam os padres que eram tantos os que os procuravam para receber
a novidade do batismo, que se faziam as cerimónias coletivas, como se uma transposição
simbólica e metafísica do rio Jordão ocorresse então nos muitos cursos de água de
Inhambane. Na verdade, para as comunidades africanas as águas dos rios, os lagos
profundos e o mar estavam impregnados não só da força vital dos ancestrais, mas também
de outros espíritos poderosos ligados à Criação, pelo que muitos dos espaços aquáticos
onde ocorreram os batismos poderiam já ser, previamente, lugares de comunicação e
ritual. Ao mesmo tempo, a cor “branca” dos padres, que estava associada à cor dos
espíritos, a sua proveniência do mar, que era concebido em muitas cosmologias bantus
como um espaço de fronteira com o “outro mundo”, consolidavam no novo ritual uma
dimensão que permitia canalizar poderes divinos.
A missionação cristã envolvia as comunidades africanas em novos rituais e, nesse
sentido, mobilizava símbolos e interpretações que encontravam coerências nas visões do
mundo dessas mesmas comunidades.1228 A visão missionária cristã compartimentava a
existência acima da esfera humana, como sendo sobrenatural e espiritual, o que implicava
distinção e distância relativamente ao mundo natural, dos homens e da vida “prática” de
todos os dias. Como explica Kwasi Wiredu, existem profundas disparidades entre a
cosmovisão cristã e as cosmovisões africanas em relação a questões ontológicas

1226
Anne HILTON, op. cit., pp. 51-52.
1227
Carlos ALMEIDA, «“Ajustar à Forma do Viver Cristão”. Missão Católica e Resistências em Terras
Africanas», Cadernos de Estudos Africanos [Online], 33, 2017, pp. 74 e 76.
http://journals.openedition.org/cea/2194 ; DOI : 10.4000/cea.2194 (Consultado em 20/06/2018)
1228
Kwasi WIREDU, “African Religions from a Philosophical Point of View”, in Charles TALIAFERRO,
Paul DRAPER, Philip L. QUINN, (eds.), A Companion to Philosophy of Religion, 2ª ed., Malden-Oxford,
Wiley-Blackwell Publishers, 2010, p. 37.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

específicas e o que os discursos missionários nos transmitem são, antes de mais, projeções
dos seus próprios esquemas de pensamento dual.1229
A propósito de uma visão dual veja-se o entendimento do padre André Fernandes
acerca do impacto do batismo na comunidade do Tonge. Sendo a cerimónia do batismo
das chefias das aldeias uma forma de iniciação ritual, esta poderia reflectir-se num reforço
simbólico do estatuto social de que o mf’umu estava naturalmente investido, enquanto
autoridade sociopolítica à escala local. O discurso missionário tende a extravasar esta
possibilidade de reforço dos estatutos do mf’umu e atribui ao baptismo cristão das elites
africanas a capacidade de vir a segmentar as gentes das aldeias, entre os que permaneciam
na distante “gentilidade” e os que se aproximavam e familiarizavam com o propósito
daquela missão cristã. A descrição feita pelo padre André Fernandes relativamente a um
mf’umu, sobrinho do madzimambo, refere que, sendo aquele já baptizado, sentou-se num
tronco com outros cristãos e, chegando um “gentio” para se sentar junto a eles “nunca o
consentio que cafre não se avia de assentar com christãos”.1230 Parece estarmos perante a
formulação descritiva de uma oposição social entre os africanos com recurso às categorias
de cafre/gentio versus cristão, oposição essa que reflecte, antes de mais, o quadro mental
dos missionários. Este tipo de oposição binária está presente em todos os momentos em
que o missionário analisa ou descreve as comunidades africanas e também na forma como
concebe a transformação do africano mediante a “conversão” ao Catolicismo através do
baptismo.
A ideia de que todos os reinos e círculos de poder “de gentios” estariam tão
predispostos para o Cristianismo como estivera o chefe Gamba precipitara a partida de
Gonçalo da Silveira, que deixava a missão de Inhambane entregue aos seus companheiros
e ao chefe local, na sua perspectiva, convertido. A 9 de Agosto de 1560, já se dirigia para
a Ilha de Moçambique, para depois seguir até ao planalto do Monomotapa. Procurava
concretizar o projecto de evangelização do Mutapa que, com entusiasmo já havia referido
numa carta que escreveu aos Irmãos de Portugal dizia:
“(…) ymaginay irmãos quantoos outros se oferecem por todas aquellas prouincias do
Cabo de Boa Esperança e espicialmente entra nesta impressa o emperador de

1229
IDEM, ibidem, ps. 37 e 40.
“Carta (copia) do Padre Andre Fernandes para o Irmão Luis Fróis” (Tonge, 25 de Junho de 1560), in
1230

D.P.M.A.C., Vol. VII, (…), p. 486.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Manamotapa em cujo poder dizem que ha minas e serras d’ouro e tem seu asento perto
de sofala. Tãobem temos emformação que não esta longe de receber a fee”. 1231

Entretanto, no Tonge, registavam-se as primeiras dificuldades. A 16 de Novembro


de 1560, o Padre Baltasar da Costa referia-se aos contrastes ambientais, entre o litoral de
Inhambane, “de bons ares e frescas Ribeiras”, e um interior com bolsas pantanosas e
húmidas, sendo estes os locais que as populações escolhiam para habitar. Para além das
dificuldades de adaptação ao meio decorrentes do clima, o Padre salientava a “rudeza dos
manjares”1232 dos cafres, que consistiam num pouco de milho zaburro, feijões e carne de
elefante e, a propósito da ingestão desta carne, explana as informações que recolheu de
André Fernandes, sobre as práticas locais de caça:
“Ajuntam-se logo duzentos com umas ferramentas como machadinhas e vam-se aos
logares aonde sabem que os elephantes vem pascer e ali os esperam e, como os elephantes
venham muitos em companhia, dam-lhe os cafres uma grita, com a qual espantados os
elephantes se espalham pelo matto, e os cafres após elles, e como o matto seja muito
expesso, e os elephantes grandes, embaraçam-se n’elle de maneira que se não podem virar
pera onde querem.
Então chegam a eles os cafres e vam apoz elles e com as machadinhas lhe dam nas pernas
traseiras, as quais teêm muito tenras, e assi lhe chegão com o golpe ao osso, o qual como
fiqua desacompanhado da carne não pode ter tam grande machina e quebra e o elephante
cae no chão.
Salta logo o cafre em cima d’elle e corta lhe a tromba, depois de o ter morto, que é a
porção que da caça cabe ao rei; e o mais fica para os caçadores. Dizem ser carne rija e
que tem um certo fartum.”1233

Se a mencionada estratégia de caça tinha por principal destino a rentável extracção


do marfim, do qual beneficiava o comércio português naquelas paragens, também
sustentava um hábito alimentar entre os africanos, implicitamente adverso aos valores da
cultura cristã, herdeira da civilização mediterrânica dos cereais de pão, das vinhas e dos

1231
“Carta (copia) do Padre D. Gonçalo para os Irmãos da Companhia de Jesus de Portugal” (Goa,
Novembro de 1559), in D.P.M.A.C., Vol. VII, (…), p. 424.
1232
“De uma do irmão Balthasar da Costa da India que escreveu a um padre da Companhia de Jesus em
Portugal a 16 de novembro de 1560”, in António Pereira de PAIVA E PONA, op. cit., pp. 49.
1233
IDEM, ibidem, p. 50.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

animais domesticados. Perante a constatação do consumo local da carne de elefante, a


narração da caçada mobilizava no leitor um conjunto de arquétipos culturais,
nomeadamente os ensinamentos bíblicos dos animais impuros: “não comereis a carne de
um animal despedaçado nos campos” (Ex 22: 31); “Comereis todos os quadrúpedes que
tenham córnea no pé, e este dividido em duas unhas distintas uma da outra, entre os
ruminantes” (Dt 14: 6-8). Neste sentido, o elefante não tinha a unha fendida, nem o casco
dividido, nem ruminava, além de que chegava ao consumo humano depois de ser
despedaçado no mato num processo que mais se assemelhava a uma cilada. O elefante
fabuloso e de grande porte - “tam grande machina” - preenchia desde a Antiguidade um
lugar no imaginário ocidental relativo à grande fauna do mundo. O seu enquadramento
na categoria bíblica dos quadrúpedes impróprios para a dieta humana, a sua utilização em
acções bélicas no passado distante, o destaque que teve nos tratados e bestiários
medievais, o espanto que sempre suscitaram a magnitude do seu corpo, a inteligência e
memória, a longevidade e outras virtudes, seriam suficientes para que o consumo da sua
carne pudesse causar reprovação entre os leitores mais eruditos e sensíveis.1234
Segundo dizia o Padre André Fernandes, as populações locais comiam a carne de
elefante “não como homens, mas como lobos esfaimados”.1235 Esta expressão não apenas
mobilizava a regra jesuíta da sobriedade no comer e beber, tornando evidente um
profundo contraste cultural, como remetia para uma leitura daquele acto alimentar como
uma manifestação de selvajaria. Ora, sendo a dieta um atributo de identidade e
diferenciação quanto ao modo de viver das sociedades humanas, a analogia animal que o
missionário estabelece perante a forma como os africanos ingerem os elefantes, mais do
que remeter para um fosso civilizacional, sugere a reflexão sobre os elementos
fundamentais da natureza humana.
Neste sentido, parece pertinente mobilizar a moldura doutrinária tomista que, ao
estabelecer uma visão universal de todos os seres, organiza-os em função do maior ou
menor equilíbrio entre as forças naturais e sensitivas, da parte inferior do ser, e as

1234
Helena BARBAS, “Monstros: o Rinoceronte e o Elefante – Da ficção dos Bestiários à Realidade
Testemunhal”, in Actas do V Encontro Luso-Alemão / Akten der V Deutsch Portuguiesischen
Arbeitgesprache, Koln-Lisboa, Universidade de Colónia, 2000, pp. 103-122.
https://www.researchgate.net/publication/272566481_MONSTROS_O_RINOCERONTE_E_O_ELEFA
NTE_-_Da_Ficcao_dos_Bestiarios_a_Realidade_Testemunhal (consultado em 01/08/2017)
1235
“Carta (copia) do Padre André Fernandes para o Irmão Luis Fróis” (Tonge, 25 de Junho de 1560), in
D.P.M.A.C., Vol. VII, (…), p. 484.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

faculdades superiores, da razão e da vontade.1236 A imagem dos homens que devoravam


carne de elefante “como lobos esfaimados” sublinha um apetite voraz e um predomínio
das forças de natureza inferior. O apetite sensitivo, predominante em animais não
racionais, correspondia a uma potência distinta do apetite intelectivo, o qual buscava os
bens imateriais como a virtude, ligando-se às faculdades superiores da alma. Ao enfatizar
a voracidade do consumo desta carne pelos africanos, o discurso missionário acaba por
reflectir, de forma tácita, a convicção de que poderia estar perante uma dificuldade ou
obstáculo à evangelização, pois presumia-se que nos grupos humanos onde
predominavam as forças de natureza inferior haveria uma desvantagem moral e
intelectual e, por conseguinte, uma diminuição da capacidade para a fruição de Deus.
Afirmava o padre Baltasar que lhe restava o consolo do elevado número de
baptismos que em tão curto espaço de tempo realizara na comunidade do Tonge: “em tam
pouco tempo sabem sentir a pena do tempo passado em suas tam antigas ignorâncias e
ser tão gratos aos que forão meio de sua Salvação”.1237 A comunicação epistolar destacava
o trabalho missionário que se saldava num elevado número de baptismos, o que contribuía
para a estruturação de uma ideologia assente em oposições binárias como a das “antigas
ignorâncias”, associadas à suposta gentilidade autóctone, e a “Salvação”, associada à
acção evangelizadora dos padres da Companhia de Jesus.
A estratégia missionária começava por procurar conhecer nestas comunidades os
eixos de aparente similitude religiosa que pudessem facilitar os processos pedagógicos e
comunicacionais envolvidos na evangelização. Tratava-se do estabelecimento de
homologias que operavam a transferência de conceitos ontológicos africanos para formas
baseadas no modelo judaico-cristão.1238
É neste sentido que Gonçalo da Silveira refere que entre os povos de Inhambane
havia a concepção de uma alma que vive depois da morte, que pena ou recebe prémio
segundo a malícia ou bondade.1239 As concepções africanas, supostamente
correspondentes às de alma, de pecado e bondade, ou a ideia de Ser Supremo, sobre o

1236
Santo Tomás de AQUINO, Suma de Teología, Damián Byrne OP (Apresentação por), 4ª ed., Madrid,
Biblioteca de Autores Cristianos, 2001, Parte I, questões 75 a 102.
1237
“De uma do irmão Balthasar da Costa da India que escreveu a um padre da Companhia de Jesus em
Portugal a 16 de novembro de 1560”, in António Pereira de PAIVA E PONA, op. cit., p. 50.
1238
Rosalind SHAW, “The Invention of ‘African Traditional Religion’”, in Religion (1990), 20, p. 343.
1239
“Carta (cópia) do Padre D. Gonçalo para os Padres e Irmãos do Colégio da Companhia de Jesus de
Goa”, (Moçambique, 9 de Agosto de 1560), in D.P.M.A.C., Vol. VII, (…), p. 502.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

qual poderia ser edificado o conceito monoteísta do Deus cristão, eram assumidas nas
escritas missionárias como supostamente equivalentes.1240 No Tonge foi recolhida a ideia
africana da existência de um Criador, designado localmente por Umbe1241, significando
aquele que cria ou que molda. O conceito africano da existência de Muzimos ou Vadzimu
fora traduzida como equivalente à ideia de uma alma que vive depois da morte. A partir
de correspondências conceptuais como estas desenvolvia-se a acção catequética.
O entusiasmo colectivo que a chegada dos padres da Companhia de Jesus possa
ter suscitado nas chefaturas próximas a Inhambane, traduzindo-se num elevado número
de baptismos, não significa que tenha ocorrido uma aculturação das populações ou
qualquer tipo de mudança substancial na cosmovisão dos povos locais. O ritual do
baptismo não significava a adesão em exclusivo ao culto do Deus cristão, que os
missionários apresentavam como o criador de todas as coisas, e a Nossa Senhora, cujas
imagens suscitavam apreço na comunidade.
Com base numa percepção simplificadora do substrato espiritual africano
pensavam os padres imprimir a fé católica na base do monoteísmo e da doutrina da
Salvação, mas a verdade é que a presença dos padres jesuítas nestas terras em nada abalou
as concepções epistemológicas e ontológicas africanas. Através do ritual do baptismo, o
culto cristão fora aceite pelas populações, não em oposição ou por afastamento
relativamente às práticas religiosas tradicionais, mas antes pela integração dos novos
símbolos na cosmovisão africana. A este respeito consideremos que o entendimento
cristão da água purificadora do baptismo teria outros significados e entendimentos no
mundo africano, podendo mesmo participar de uma ontologia do sagrado, sem qualquer
correspondência com as categorias tipológicas da religião cristã, pois cursos de água,
lagos, mares e chuva estavam impregnados da força da vida.
Quanto à importância da imagem para as comunidades africanas, parece estar
patente no apreço que as mulheres do Tonge tinham pelas representações de Nossa

1240
Rosalind SHAW, op. cit., p. 344.
1241
Na língua Tsonga “Mumbi” significa o criador, aquele que molda, que tanto pode ser o barro, como
pode ser o acto criador divino. http://www.xitsonga.org/dictionary/xitsonga?_=mumbi (Consultado em
15/06/2027)
“Umbe”, a palavra grafada pelos padres nesta missão, tem origem neste vocábulo Tsonga, mostrando que
no âmbito religioso prevalecia a linguagem ancestral, prévia ao estabelecimento de chefaturas Caranga na
região de Inhambane.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Senhora, pois iam contemplá-las à igreja com frequência.1242 Percebendo o poder da


imagem, os padres integraram-na nos processos pedagógicos de ação catequética na
missão. Neste sentido, o padre André Fernandes, em carta dirigida a Luís Frois, insistia
com o pedido para que fosse enviado de Goa um retábulo do Juízo Final, com a
especificação de que contivesse imagens de “diabos com cornos”, de modo que a
imagética pudesse induzir mudanças de comportamento nas populações. Visava esta
instrução dirigir-se aos autóctones e ao modo como apresentavam o corpo,
nomeadamente a ornamentação da cabeça em que “fazem mil galanterias” e “os mais
galantes trazem dois cornos”, pelo que ficavam com “semelhança de diabos pintados”. 1243
O objectivo jesuíta era a transformação do corpo cultural africano, mediante a tentativa
de desconstrução de um traço de identidade, para subsequente introdução de outros
significados. A imagética era então utilizada como uma linguagem e um suporte de
narrativas ao serviço da devoção e da persuasão das gentes face ao ideal cristão
codificado.1244
Para além da imagem, os objectos relacionados com a oração e o culto
desempenhavam um papel importante no processo comunicacional, que era o da
evangelização. De entre os objectos relacionados com o culto estavam os livros católicos
produzidos para contextos de missão fora da Europa. Muitos dos livros impressos pela
Companhia de Jesus eram genericamente designados de breviários, que podiam ser
traduções de catecismos e manuais litúrgicos ou livros de orações e textos através dos
quais era transmitida a mensagem cristã para os outros povos.1245 É pouco provável que
os livros levados para esta primeira missão da Cafraria fossem traduções, pois só a
experiência no terreno e a contínua comunicação com os povos permitiria esse trabalho
de natureza linguística. Podemos colocar a hipótese de serem livros de orações e de
conterem imagens que permitiriam desenvolver narrativas sobre os ensinamentos
evangélicos. O padre André Fernandes mencionou que, chegado a Inhambane, enquanto

1242
“Carta (copia) do Padre Andre Fernandes para o Padre Provincial da Companhia de Jesus da Índia”
(Tonge, 24 de junho de 1560), in D.P.M.A.C., Vol. VII, (…), p. 470. “Carta (copia) do Padre Andre
Fernandes para o Irmão Luis Fróis” (Tonge, 25 de Junho de 1560), ibidem, p. 482.
1243
IDEM, ibidem.
1244
Vítor SERRÃO, “Poder de convencimento e narração imagética na pintura portuguesa da contra-
reforma”, in Cultura. Revista de História e Teoria das Ideias, Vol. 21, 2005.
http://journals.openedition.org/cultura/2951 (Consultado a 26/03/2020)
1245
Ronnie Po-Chia HSIA, The World of Catholic Renewal 1540-1770, New York - Cambridge, Cambridge
University Press, 2005, p. 182.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

descansava tirou da manga do seu hábito um breviário, gesto que atraiu muita gente à sua
volta que “embibidos e maravilhados olhavão para elle” e, ao folhear o pequeno livro, o
espanto das gentes locais aumentou, como se o tivessem por “cousa viva”.1246
A captação discursiva deste momento direcciona-nos a atenção para o breviário
na óptica africana. Era tal a convicção das gentes de que o livro de orações estava imbuído
de força mística, que um nganga local, referido pelos missionários como “feiticeiro”, lhe
“dava pelo breviário um escravo”.1247 Os missionários cristãos aplicavam a categoria de
“feiticeiro” à pessoa da comunidade africana que tinha por missão uma variedade de
atividades, incluindo a preparação e administração de ervas medicinais, a adivinhação ou
diagnóstico, os rituais de cura, a detecção de actos de bruxaria com o objectivo da sua
erradicação, acrescentando-se ainda acções de manipulação das forças da natureza, como
fazer a chuva ou buscar apoio mágico para a agricultura, a caça, a pesca e o comércio. 1248
Não se encontrando na sociedade de origem dos missionários qualquer tipo de
correspondência com as funções diagnósticas, terapêuticas e profiláticas, de natureza
mística do nganga, estes foram percepcionados e enquadrados no âmbito da categoria
marginal da “feitiçaria”, como prática associada à manipulação de forças sobrenaturais.
Curiosa foi a atracção do nganga pelo pequeno livro, mostrando existir a possibilidade
de sentidos justapostos no mesmo objeto, envolvendo ritos, orações, palavras e
invocações.
O padre, que protagonizava rituais como o baptismo e usava a palavra, era visto
como investido de poderes místicos. André Fernandes escreveu, aquando do seu regresso
a Goa, que no tempo em que “era tido por mais sabedor feiticeiro e mór que entre eles
havia” obrigou o rei africano a dizer que não era ele quem dava a chuva, pensando o
próprio rei que o padre sabia de tudo através dos seus poderes de grande feiticeiro 1249,
pois como refere, ao “vêr-me a mim tam branco julgavam ser eu de muitos anos e viver

1246
“Carta (cópia) do padre André Fernandes para os Irmãos do Colégio da Companhia de Jesus de Goa”
(Tonge, 26 de Junho de 1560), in D.P.M.A.C., Vol. VII, (…), p. 492.
1247
“Carta de André Fernandes a 5 de dezembro de Goa de 1562 para os charissimos em Christo irmãos e
padres da Companhia de Jesus em Portugal”, in António Pereira de PAIVA E PONA, op. cit., p. 88.
1248
Matthew SCHOFFELEERS, “Christ in African Folk Theology: the Nganga Paradigm”, in Thomas D.
BLAKELY, Walter E. A. Van BEEK, Dennis L. THOMSON (Editors), Religion in Africa: experience &
expression, London, New Hempshire, James Currey, Heinemann, 1994, p. 75.
1249
“Carta de André Fernandes a 5 de dezembro de Goa de 1562 para os charissimos em Christo irmãos e
padres da Companhia de Jesus em Portugal”, in António Pereira de PAIVA E PONA, op. cit., p. 87.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

por feitiços e conservar as forças de os poder aturar ainda aos mais mancebos caminhando
todo o dia quando eram assaz grandes calmas”.1250
O Padre André Fernandes revela-nos que as comunidades de Inhambane o
reconheceram e respeitaram como detentor de poderes espirituais, como um líder
religioso ou nganga. Além de líder religioso, o padre era um ancião com “muitos anos”,
estando próximo dos ancestrais, venerados pela sabedoria e moral, era “branco”, da cor
dos espíritos, tendo chegado àquelas terras vindo do mar, espaço que para muitas
sociedades era associado a uma grande morada dos mortos.1251 A descrição do padre
André Fernandes leva-nos a considerar que este terá sido interpretado na comunidade de
Inhambane a partir do “paradigma do nganga”, pois surgia como um intermediário entre
o mundo dos humanos e o mundo do Criador, além de se afirmar como um tradutor da
mensagem da “Salvação” que seria recepcionada localmente, não na perspectiva bíblica,
mas na dimensão da “cura”. Muito provavelmente, ao pregar a doutrina da “Salvação”, o
padre, ou o intérprete que o assistiu, terá usado o vocabulário do nganga, de forma a se
tornar perceptível às populações locais. Ainda que não tenhamos dados sobre o
vocabulário africano usado na pregação (e sobre essa questão as cartas não nos dão
respostas), a declaração do Padre André Fernandes mostra que a percepção local da
mensagem veiculada pelo sacerdote também passava por processos de “tradução” e, nesse
sentido, iria ao encontro do “paradigma nganga”, tão tangível e presente nas práticas
religiosas locais.1252 Para o contexto do Kongo, Carlos Almeida refere o exemplo do
Padre Pedro Tavares, que era interpretado localmente como um nganga com “poderes
particularmente eficazes de intermediação com o mundo dos espíritos”. Esta dimensão
dos padres como ngangas foi reforçada aquando da investidura de um Mwene Kongo, que
se fez conduzir ao trono acompanhado por um padre, à sua direita, e pelo kitome de
Mbanza Kongo, à sua esquerda, desempenhando os padres a função de ngangas do novo
culto que participava de uma dupla dimensão.1253
Sobre a problemática da comunicação da mensagem evangélica para as línguas
africanas e da possibilidade dos significados não encontrarem coerência nos diferentes

1250
IDEM, ibidem, p. 88.
1251
William G. L. RANDLES, L’Empire du Monomotapa du XVe au XIXe Siècle, (…), p. 103.
1252
Matthew SCHOFFELEERS, op. cit., p. 86.
1253
Carlos ALMEIDA, Uma infelicidade feliz. A imagem de África e dos Africanos na Literatura
Missionária sobre o Kongo e a região mbundu (meados do séc. XVI ao primeiro quartel do séc. XVIII),
(…), p. 680 e pp. 142-143.

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universos linguísticos, existe, para o contexto missionário de Moçambique um


manuscrito, que se encontra depositado na Biblioteca da Ajuda, intitulado “Arte da
Língua de Cafre”.1254 Segundo o historiador da linguística missionária, Gonçalo
Fernandes, este manuscrito corresponde a uma cópia do século XVIII de uma outra versão
anterior, muito provavelmente de 1680, e reporta-se a uma das línguas mais faladas na
parte central de Moçambique.1255
Sobre a questão da transmissão e recepção da mensagem religiosa traduzida,
existem campos semânticos do vocabulário utilizado que podem não ser os da língua
africana, pelo que a tradução envolve grande complexidade, que não é só linguística,
sendo também cosmológica.
A título de exemplo, podemos referir o verbo “Amar”, que tem um grande relevo
no contexto cristão de “Amar a Deus”. De tal maneira parece ser importante a conjugação
do verbo “amar”, que este ocupa desde o fólio 208 até ao 213, ocupando quase um terço
das matérias de tradução e gramática.
Sobre o verbo “Amar” ou “Cufuna”, diz este manuscrito:
“Verbo Cufuna”
“a própria significação de Cufu- / na, he buscar ou querer mas porque huma pessoa bus-
/ ca, ou quer alguma cousa parece que a ama; ou uice uersa,”1256

Este manuscrito merece que, posteriormente a esta tese, nos detenhamos em


estudo e reflexão sobre os significados das palavras e as problemáticas da comunicação
nos contextos da religião.

1254
B. A. – Cod. 49-V-18, “Arte da Língua de Cafre”, fls 201-223.
1255
Segundo Gonçalo Fernandes, este manuscrito pertence à coleção “Jesuítas na Ásia” da série “Província
da China”, integrando uma colecção constituída por 61 volumes que foram copiados entre 1744 e 1746, por
João Alvares, por ordem do Provincial de Japão Domingos de Britto, a partir de documentos existentes no
arquivo dos Jesuítas do Colégio da Madre de Deus, em Macau. Veja-se sobre este assunto: Gonçalo
FERNANDES, “Primeiras descrições das línguas africanas em língua portuguesa”, in Confluência, Rio de
Janeiro, Nº 49, 2.º semestre de 2015, p. 53. Veja-se ainda: Gonçalo FERNANDES, “Missionary and
Subsequent Traditions in Africa”, in Cambridge World History of Lexicography, ed. by John CONSIDINE,
Cambridge, 2019, Cambridge University Press, pp. 658-681.
1256
B. A. – Cod. 49-V-18, “Arte da Língua de Cafre”, fl. 213.

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3.3.Missão da Cafraria no Monomotapa

André Fernandes continuava a missionação no Tonge e nas aldeias vizinhas,


enquanto Gonçalo da Silveira partia para a ilha de Moçambique, para começar daí a sua
demanda do Monomotapa (18 de setembro de 1560), que desejava trazer para a
Cristandade. Nas terras do planalto esperava ampliar significativamente a missão da
Cafraria com a conversão do Mutapa e seu povo, supostamente gentios não contaminados
pela “seita de Mafamede”. Em 22 de Setembro de 1561, frei João Fernandes sintetizava,
numa carta, as razões que haviam presidido a este projecto jesuíta: havia a ideia de serem
gente dada a polícia1257 ou seja, havia a ideia de que seriam sociedades cujos costumes,
hábitos e estruturação política se inclinavam para o que os europeus consideravam ser os
indicadores das sociedades polidas; por terem “conversa” ou comunicação, através do
comércio, com os portugueses; por se julgar terem poucas idolatrias e serem fáceis no
trato, o que os posicionava no plano da inocência, que facilitaria “esculpir-se” neles a
mensagem evangélica;1258 pela suposição de que os domínios do Mutapa constituíam um
vasto império, desde o Cabo da Boa Esperança até próximo do “Preste João”,
considerando-se que a conversão daquele “imperador” podia assinalar o princípio da
conversão de toda a Etiópia.1259 Predominava um imaginário geográfico e antropológico
que considerava uma mítica possibilidade de comunicação entre espaços e populações
que se percepcionavam como próximos.

1257
A expressão “polícia”, enraíza no grego politeia, que significa, “qualidade e direitos de cidadão, género
de vida de cidadão” e, mais directamente, no sentido latino politia, para significar “organização política,
governo”. Veja-se José Pedro MACHADO, op. cit., Vol. IV, (…), p. 392. Com este sentido etimológico,
“sociedades polidas” eram as que correspondiam ao paradigma europeu cristão da época renascentista.
Perante cenários de diferenciação cultural, os missionários classificavam as sociedades de acordo com uma
escala de referência na qual a “gente de polícia” / “sociedades polidas” correspondiam à própria identidade
europeia e cristã, associada a um conjunto de virtudes morais, religião, estruturação política e hábitos de
civilidade social e urbana. Num plano divergente eram considerados os povos “bárbaros” e os “gentios”
que, nas palavras de Carlos Almeida, se regiam por “hábitos e regras de vida social impróprios”,
participando toda esta categorização de um “sistema epistemológico construído na base da similitude e
analogia”. Veja-se Carlos ALMEIDA, Uma infelicidade feliz. A imagem de África e dos Africanos na
Literatura Missionária sobre o Kongo e a região mbundu (meados do séc. XVI ao primeiro quartel do séc.
XVIII), (…), ps. 42-43, 82,407 e 710.
1258
Vitorino Magalhães GODINHO, “Entre Mito e Utopia: os Descobrimentos, construção do espaço e
invenção da Humanidade nos séculos XV e XVI”, in Revista de História Económica e Social, Nº 12,
Julho-Dezembro 1983, p. 17.
1259
Fr. Ioannes Fernandes S. I. Ex Comm. P. Jacobo Lainez, Praep. Gen. S. I., Romam, (Lisboa 22 Setembro
1561), in Josef WICKI e John GOMES, Documenta Indica, Vol. V, (…), pp. 189-190.

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Acompanhado de cinco ou seis portugueses, Silveira navegou da Ilha de


Moçambique até Quelimane e à barra de Cuama, por onde seguiu numa fusta até Sena.
Nesta povoação, que nas palavras do Padre Luís Fróis era “muy grande, aonde estavão
10 ou 15 portugueses d’asento, com alguns christãos”, ficou Gonçalo da Silveira alojado
numa choupana durante dois meses, aguardando o recado do Monomotapa para ir ao seu
encontro.1260 Aqui, ocupou-se a rezar missa todos os dias, batizou e visitou chefes locais,
como o designado “el-rey de Inhameor”, que ficava a uma légua de Sena, batizou ainda
escravos dos portugueses e suas famílias e casou os cristãos que por ali viviam com
mulheres da terra.1261 Enquanto ministrava os sacramentos àquela comunidade,
considerava desenvolver um labor em prol da Salvação e, ao mesmo tempo, aprendia a
comunicar na língua local.1262 De Sena enviou recados ao Mutapa, a solicitar licença para
entrar nas suas terras, e a um mercador de Tete, de nome Gomes Coelho, para vir ao seu
encontro, o qual ali chegou na qualidade de embaixador, com a missão de acompanhar o
padre até Tete. Nesta povoação, o português António Caiado, “muito amigo e familiar”
do Mutapa, também desempenhou as funções de embaixador, visitando o padre, trazendo-
lhe o presente do rei e a licença para entrar nos seus domínios. 1263
A recepção de Gonçalo da Silveira na Corte do Mutapa Ngomo Mpunzagutu foi
mediada e interpretada por António Caiado, que estava incumbido de informar o soberano
sobre a chegada de qualquer estrangeiro, não permitindo o seu ingresso nas terras mais
próximas à residência real, sem superior autorização. Estas funções correspondem ao
cargo designado de “capitão das portas”, que na língua local se chamava “Mocomorgo,
ou Zono”, conforme registou Bernardo de Cienfuegos, em 1614.1264
De acordo com Gai Roufe, o cargo exercido por Caiado era identificado como
mazarira, ou seja, “grande esposa” do rei, o que interpretado à luz das conceptualizações
e ideologias locais não significava um casamento na perspectiva da instituição ocidental,
correspondendo antes a um conceito local baseado em estruturas de parentesco. O

1260
P. L. Frois S. I. Ex Comm. Sociis Europaeis, (Goa 15 Dezembro 1561), in Josef WICKI e John GOMES,
Documenta Indica, Vol. V, (…), p. 338.
1261
IDEM, ibidem, p. 339.
1262
IDEM, ibidem.
1263
IDEM, ibidem, p. 340.
1264
Bernardo de CIENFUEGOS, Vida del Bienaventurado Padre Gonzalo de Sylveira, Sacerdote de la
Companhia de Iesus, martirizado en Monomotapa, Ciudad en la Cafraria. Traducida de Latine n
Castellano por Bernardo de Cienfuegos, Madrid, por Luíz Sanchez impressor del Rey, 1614, ps. 59 vo e
63.

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posicionamento social de António Caiado era o de alguém que integrava as relações de


parentesco do Mutapa frequentando a sua residência e consolidando trocas de favores e
obrigações, além de que era também o representante do capitão de Moçambique naquele
Estado do planalto.1265
António Caiado terá apresentado Gonçalo da Silveira ao Mutapa como um
importante líder religioso, “hum homem sancto e de grande virtude, que era tãobem muito
nobre e das principais pessoas da India”.1266 Tal descrição poderia bem corresponder ao
conceito local de “muzungu mhondoro/n’anga”, proposto por Mudenge, ou seja, de
acordo com as estruturas conceptuais locais, o padre seria entendido como um espírito
médium branco e um adivinho, enviado ao soberano pelos poderes portugueses do vice-
rei da Índia e capitão de Moçambique.1267
No Natal de 1560 iniciou o Padre a catequese do jovem rei Ngomo e sua mãe e,
neste processo, podemos mais uma vez verificar a utilização da imagem para a
missionação nas sociedades africanas. Gonçalo da Silveira levara para o Monomotapa um
retábulo com uma imagem de Nossa Senhora da Graça, que se destinava a instruir os
gentios no culto mariano. Por ter suscitado a curiosidade do Ngomo, o padre ofereceu-
lhe o retábulo que compôs ricamente num oratório e constou que, tal oferta de grande
simbolismo para o missionário, terá também impactado o jovem rei e a sua mãe. O padre
Luís Fróis registou mais tarde que portugueses residentes naquelas terras haviam
testemunhado que essa imagem de Nossa Senhora, rodeada de luz divina, falara ao rei
durante a noite, numa linguagem que este não entendia. Perante o espanto do Ngomo,
Gonçalo da Silveira terá explicado que só se tornando cristão poderia o rei descodificar
tal linguagem e consta que esta terá sido uma das motivações para o ritual de iniciação
constituído pelo baptismo católico.1268
Baptizados o rei e sua mãe, receberam os nomes cristãos de D. Sebastião e D.
Maria respectivamente. Relatam as cartas dos jesuítas que, neste período, terão sido

1265
Gai ROUFE, “Local Perceptions of Political Entities along the Southern Bank of the Zambesi in the
16th and Early 17th Centuries”, in International Journal of African Historical Studies, Vol. 49, No. 1
(2016), p. 71.
1266
P. L. Frois S. I. Ex Comm. Sociis Europaeis, (Goa 15 Dezembro 1561), in Josef WICKI e John GOMES,
Documenta Indica, Vol. V, (…), p. 340.
1267
S. I. G. MUDENGE, op. cit., p.63.
1268
P. L. Frois S. I. Ex Comm. Sociis Europaeis, (Goa 15 Dezembro 1561), in Josef WICKI e John GOMES,
Documenta Indica, Vol. V, (…), pp. 341-342.

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baptizados mais alguns trezentos “dos principaes senhores e cabeças do reino”. 1269
Durante algum tempo, o padre Gonçalo da Silveira gozou de proeminência espiritual na
Corte do Mutapa que, como refere a carta de Luís Fróis, a “gente nobre e plebeia toda se
queria fazer cristãa”.1270 Porém, em meados de março, António Caiado recebia a notícia
de que o soberano decretara a sentença de morte a Gonçalo da Silveira. Dada a sua posição
influente na Corte, Caiado intercedeu no sentido de se fazer revogar a sentença, porém
sem sucesso pois, como afirma, “não aproveitou pelas cousas que os mouros já tinham
metidas em cabeça ao rei”.1271
Na noite de 15 para 16 de março de 15611272 o Padre foi morto por
estrangulamento às ordens do soberano, tendo a execução observado alguns preceitos
rituais descritos por Luís Frois, com base nas informações que lhe chegaram de António
Caiado, cujos criados assistiram a tudo, escondidos no mato.1273
O documento escrito mais próximo do acontecimento foi uma carta de António
Caiado para Gaspar Gonçalves, um mercador português que também vivia nas
imediações.1274 Nesta carta, escrita no Monomotapa, em 22 de Março de 1561, ficaram
registadas as acusações de que o Padre foi alvo na Corte do Mutapa, bem como as
percepções e informações que Caiado recolheu localmente sobre a morte do missionário.
Em Goa, o padre Provincial António Quadros mandou coligir todas as informações
daqueles que acompanharam Gonçalo da Silveira e que com ele estiveram nas terras do
Planalto. Tal colacção de dados ficou patente numa carta do Padre Luís Fróis, datada de
15 de Dezembro de 1561, sobre o “felice transito e bem-aventurado fim do nosso

1269
IDEM, ibidem, p. 342.
1270
IDEM, ibidem.
1271
“Carta de António Caiado ao amigo Gaspar Gonçalves”, (Monomotapa, 22 Março 1561), in Josef
WICKI e John GOMES, Documenta Indica, Vol. V, (…), p. 126.
1272
António Caiado menciona que o padre foi morto “sábado antes da dominga de Suzana”, referindo-se
ao Sábado depois do terceiro Domingo da Quaresma, em que na missa se lia a Epístola que narrava o
episódio de Susana, acusada falsamente pelos dois velhos, e não à festa de Santa Susana, virgem e mártir,
que era assinalado a 11 de Agosto. Francisco CORREIA S.J., O Venerável Padre Gonçalo da Silveira.
Proto-mártir da África Austral (1521-1561), Braga, Editorial Apostolado da Oração, 2006, p. 59.
1273
P. L. FROIS S. I. Ex Comm. Sociis Europaeis, (Goa 15 Dezembro 1561), in Josef WICKI e John
GOMES, Documenta Indica, Vol. V, (…), p. 335.
1274
“Antonius Caiado [Gaspari Gonçalves] Amico”, in Josef WICKI e John GOMES, Documenta Indica,
Vol. V, (…), pp. 125-129. “Carta (cópia) de António Caiado pra um Amigo”, in D.P.M.A.C., Vol. VIII,
(…), pp. 2-9. “Carta que um portuguez por nome Antonio Caiado escreveu de Manamotapa a outro seu
amigo que estava em outro logar da mesma terra sobre a morte de D. Gonçalo”, in IDEM, ibidem, pp. 70-
73.

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charissimo Padre Dom Gonçalo”.1275 Este documento constitui-se como uma recriação
do percurso do missionário, desde que saiu de Inhambane até aos domínios do Mutapa,
realçando a sua obra espiritual, que culminara com a conversão do soberano e sua mãe, e
o ponto de viragem neste percurso, assinalado pela suposta conjura dos “emgangas
mouros”, que “com toda sua perversa sagacidade” e “veneno diabólico” semearam a
discórdia no coração do rei, ao ponto deste rei determinar a sua execução.1276
A designação de “emgangas mouros”, usada logo na primeira carta de António
Caiado, conjuga a imagem do mouro, enquanto adversário religioso de longa duração,
com a do emganga, traduzido como feiticeiro, o que resulta na representação de um
oposto absoluto e inconciliável.
Neste plano discursivo, que enfatiza o fervor místico e missionário católico por
oposição à heresia e às superstições, os “emgangas mouros” são erigidos em actores
sociais ligados ao “diabo”, à feitiçaria e à oposição ideológica, convocando estereótipos
de longa duração enraizados no imaginário cristão. Por um lado, o termo “mouros” remete
para um lastro histórico de oposição religiosa, militar e comercial, com raízes medievais
peninsulares, vindo a revelar uma intensa plasticidade no que se refere ao seu uso para
categorizar os habitantes do espaço africano, fossem estes praticantes do Islamismo, ou
não.1277 Por outro lado, a percepção do emganga como feiticeiro remetia para uma
categoria de inimigos da fé, perseguidos e condenados no mundo católico por se
considerarem pactuar com o diabo, operando todo o tipo de manipulações com entidades
ocultas.
As narrativas patentes nas primeiras cartas jesuítas, posteriores à morte do Padre
Gonçalo da Silveira, e as interpretações a que deram lugar, criaram as bases para uma
mitificação do acontecimento, entendido como acto sacrificial de um raro “semeador do
Evangelho”1278, em paralelo com a demonização dos responsáveis pela sua execução.
A missão de Inhambane ressentiu-se com a morte de Gonçalo da Silveira, pois
como diria o padre Baltasar da Costa, em carta para os irmãos da Companhia na Europa,

1275
P. L. FROIS S. I. Ex Comm. Sociis Europaeis (Goa 15 Dezembro 1561), in Josef WICKI e John
GOMES, Documenta Indica, Vol. V, (…), pp. 333-349.
1276
IDEM, ibidem, p. 343.
1277
Josiah BLACKMORE, Moorings. Portuguese Expansion and the Writing of Africa, (…), p. 31.
1278
Bartolomeu GUERREIRO, Gloriosa Coroa d’ Esforçados Religiosos da Companhia de Iesu Mortos
Polla Fe Catholica nas Conquistas dos Reynos da Coroa de Portugal, Lisboa, Por Antonio Alvarez, 1642,
p. 214.

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“embrulhou o Demonio esta coussa de maneira que não ouve efeito donde os padres se
tornarão com tanto desguosto quanto charissimos podeis entender por ver impedir o fruito
que se sperava”.1279 Em 1562, André Fernandes regressava a Goa e terminava a missão
de Inhambane. O que no início eram esperanças e possibilidades de evangelização de uma
“pura gentilidade”, com o tempo transformava-se em dificuldade, impedimento e
desilusão. O Padre André Fernandes atribuía à solidão em que laborava a falência de uma
obra tão vasta como a Missão da África Oriental a partir de Inhambane:
“Estou aqui entre estes cafres. Doutrino-os e bautizo aos que me parece poderei ajudar,
ou não averão mester ajuda, como as crianças, etc. E mais bautizaria se quisesse, mas não
posso acudir a tantos, porque a messe hé grande e os obreirios poucos”. 1280

A questão do número limitado de missionários para a obra gigantesca da


evangelização fora recorrente, acentuando-se a convicção de que se houvesse gente
suficiente poderia fazer-se ali uma “republica excelente”.1281
Mas as razões de fundo para a falência desta missão residem muito além da
exiguidade dos recursos humanos ou mesmo das dificuldades de adequação a um clima
referido como doentio. Em 13 de junho de 1561, numa carta para o Irmão Gaspar Italo,
que estava em Portugal, o Padre André Fernandes expressava a sua desilusão face à
persistência das manifestações religiosas dos africanos:
“Estou cá nesta Cafraria, scilicet, na Ethiopia, não muito longe do Cabo da Boa
Esperança, ecc. Tem esta gente infinitas superstições que dizer-vo-las não poderia senão
em muito tempo e deixam-nas muito dificultosamente, e muitos abusos péssimos: e
acabais agora de os convencer e confessão ser verdade o que lhe dizeis e mintira o que
elles fazem, e logo o tornão a fazer, de sorte que hé gente muito trabalhosa e com que se
á-de ter muita paciencia”. 1282

1279
“Excertos (copia) da Carta do Padre Baltasar para os Padres e Irmãos da Companhia de Jesus na Europa”
(4 Dezembro 1562), in D.P.M.A.C., Vol. VIII, (…), p. 114.
1280
“Doutras do mesmo Padre [André Fernandes] pera alguns Irmãos de Portugal, do mesmo tempo”
[Tonge, 3 Junho de 1561], in Documenta Indica, Vol. V, (…), pp. 149-150.
1281
“Carta (copia) do Padre Andre Fernandes para o Padre Provincial da Companhia de Jesus da Índia”
(Tonge, 24 de junho de 1560), in D.P.M.A.C., Vol. VII, (…), p. 470.
1282
“Doutra sua [André Fernandes] pera o Irmão Gaspar italo, em Portugal” [Tonge, 3 de Junho. 1561]”,
in Joseph WICKI e John GOMES, in Documenta Indica, Vol. V, (…), pp. 148-149.

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Estamos perante um discurso produzido a partir do confronto de significados, no


contexto do que pode ser definido como religião. Do ponto de vista africano, a religião
constitui-se como um sistema de explicações e crenças sobre a realidade e a metafísica,
que permeia todos os aspectos da vida, sendo a própria vida uma relação incessante e
complexa de forças visíveis e invisíveis em movimento.1283 Ao abordarmos a religião
africana é necessário considerar que, para o africano, não existe distinção entre o secular
e o sagrado e que o conteúdo religioso abarca todas as áreas da vida. Sendo assim, quando
olhamos para a religião temos que considerar as fronteiras fluidas estabelecidas com
outros aspetos das culturas e das sociedades como são a política e a economia, o
casamento e as relações de parentesco, a sexualidade e a circuncisão, a doença e a cura, a
tecnologia, os objetos e a arte, os provérbios, enigmas e fórmulas verbais, a música e a
dança.1284 Sendo este um tópico difícil de abordar, é importante que se definam os
contornos daquilo que está envolvido quando nos referimos à religião de determinada
cultura, sem que esta seja contaminada por concepções que lhe são alheias1285
Pela relativa utilidade no contexto desta análise, consideramos a definição de
religião como o plano das interacções humanas com uma realidade não falsificável,
postulada culturalmente.1286 Quer isto dizer que o complexo de ideias e práticas
envolvidas na experiência do sagrado concretiza-se de acordo com os contextos
ecológicos e socio-históricos. Nesta formulação, uma religião é vivenciada e expressa-se
nas formas e modos facultados pela cultura e deve ser analisada apenas no seu contexto
empírico. Acresce que a própria palavra “religião”, sendo de origem latina, dificilmente
terá tradução em todas as línguas africanas, o que não significa que o fenómeno não seja
intensamente vivido pelos povos. Como afirma Kwasi Wiredu, a religiosidade africana é
muito mais pessoal do que institucional, relacionando-se com uma atitude sobre a ordem
do mundo e o destino humano bem como todas as reverências e manifestações aí
implicadas:
“to be religious is to entertain certain ontological and/or cosmological beliefs about the
nature of the world and about human destiny and to have an attitude of trust, dependency,

1283
Mogobe RAMOSE, “The earth «mother» metaphor: an African perspective”, in Fons ELDERS
(Editor), Visions of Nature: Studies on the Theory of Gaia and Culture in Ancient and Modern Times,
Brussels, VUB Brussels University Press, 2004, p. 205.
1284
Thomas D. BLAKELY, Walter E. A. VAN BEEK e Dennis L. THOMSON (Editors), op. cit., p. 1
1285
IDEM, ibidem, p. 1.
1286
IDEM, ibidem, p. 2.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

or unconditional reverence toward that which is taken to be the determiner of that destiny,
whether it be an intelligent being or an aspect of reality.”1287

Tudo o que é fonte abundante de vida é reverenciado e é nesta dimensão de


profunda reverência dos africanos face à realidade natural e ao destino humano, numa
perspetiva imanente, que radica uma divergência crucial face à cosmovisão bíblica e à
ética cristã dos missionários católicos, a qual colocava em primeiro plano a categoria da
divindade, na perspectiva sobrenatural e transcendente.
Como já foi referido, numa tentativa de compreender as relações das comunidades
africanas com o sagrado, os missionários estabeleceram homologias ou prováveis
correspondências, entre aspectos dos sistemas religiosos africano e católico, e, neste
sentido, procederam a traduções e comparações entre entidades de culto, fundamentos
ontológicos, raciocínios e também preconceitos e papéis sociais que, com o tempo,
revelaram ser profundamente divergentes e sem tradução possível. O observador exterior
não podia aceder à experiência original do sagrado e aos significados e categorias
ontológicas que se geravam internamente, na comunidade cultural, e que se transmitiam
de geração em geração através da tradição oral e das práticas rituais. Deste modo, as
supostas correspondências estabelecidas pelos religiosos católicos esbarravam com as
impossibilidades da “transculturação” de conceitos e linguagens, pois a inexistência de
uma metalinguagem, para a descrição da religião e da cultura, fazia com que as categorias
do discurso gerassem equívocos e interpretações radicados nos paradigmas de origem de
cada um dos envolvidos.
A constatação das divergências entre as cosmovisões está patente no elencar de
“erros” que os dois principais sacerdotes desta primeira missão da Cafraria deixaram
registados. Os enunciados epistolares, que de acordo com regras e estatutos circulavam
entre os padres das missões e os centros administrativos da Companhia de Jesus, deixam-
nos entrever fragmentos soltos de uma cosmovisão das sociedades africanas envolvidas
neste projecto de missão.
Desses fragmentos, as cartas chamam a atenção para a estrutura familiar
poligâmica, que prevalecia nas relações de parentesco e em função das quais se

1287
Kwasi WIREDU, op. cit., p. 35.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

organizavam os poderes políticos e se distribuía a riqueza. Como referiu Gonçalo da


Silveira, o poder e a honra eram tanto maiores, quanto mais mulheres e escravos
integrassem as relações de parentesco. De facto, para além de associado ao poder e à
honra, o parentesco ligava-se à distribuição e manutenção de recursos, constituía-se como
uma rede de relações ligadas à sustentabilidade da vida no clã e também se ligava à
fecundidade e aos mortos, que viviam como forças invisíveis e referenciais de ética.
Em associação com a fecundidade, a sexualidade e o casamento estariam os rituais
de passagem, nos quais se incluía a circuncisão que, praticada “entre os botongas”,
chamou a atenção dos missionários.1288 Tratando-se de cerimónias que, pela sua natureza
iniciática, estavam envolvidas em secretismo, qualquer fragmento de informação que
chegasse ao conhecimento dos missionários era interpretado de acordo com as suas lentes
culturais, que associavam tal prática a outras tradições, como a judaica e muçulmana. A
verdade é que se tratava de um ritual de passagem através do qual a cultura dos Tongas
assinalava a entrada dos jovens na vida adulta. A circuncisão era o momento mais
importante de um conjunto de cerimónias, que decorriam num período de isolamento no
mato, onde os jovens rapazes adquiriam competências e eram investidos das
responsabilidades dos adultos.
Também a passagem do plano da vida para o plano dos antepassados implicava
uma diversidade de ritos. O culto ao espírito dos antepassados (vadzimu) mostrava ser
omnipresente nas vidas das gentes e o traço mais marcante da relação das comunidades
com o sagrado. Entre os Carangas e os Tongas havia o conceito universal de que todos os
seres vivos e a natureza visível estavam essencialmente ligados ao mundo invisível dos
espíritos. A morte de um ser humano implicava o contínuo envolvimento dos seus
familiares em cerimónias que asseguravam o apaziguamento do falecido e a reconciliação
com os vivos, numa perspectiva de comunidade.1289 O sucesso do encaminhamento do
familiar morto para o mundo dos ancestrais e o seu sustento na vida imortal dependia, em
grande parte, dos membros vivos, que os honravam e alimentavam ritualmente. O Padre
André Fernandes corroborou a intensidade destas práticas nas comunidades de

1288
“Carta (cópia) do Padre D. Gonçalo de Moçambique aos Padres e irmãos do Colégio da Companhia de
Jesus de Goa”, (9 de Agosto de 1560), in D.P.M.A.C., Vol. VII, (…), p. 504.
1289
Canisius MWANDAYI, “Death and After-life Rituals in the eyes of the Shona. Dialogue with Shona
Customs in the Quest for Authentic Inculturation”, in Bible in African Studies, Joachim KUGLËR,
Lovemore TOGARASEI, Masiiwa Ragies GUNDA e Eric Souga ONOMO (Editors), Vol. 6, Bamberg,
University of Bamberg Press, 2011, p. 218.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Inhambane e referiu a existência de uma crença absoluta de que as almas dos antepassados
faziam as suas justiças nos vivos, levando-os muitas vezes a morrer.1290 Estamos perante
uma percepção do princípio africano de que a morte era sempre provocada por algum
feitiço, por desaprovação espiritual dos antepassados ou por um espírito vingativo. 1291
Daí que a morte fosse considerada uma transição envolvendo muitos perigos, o que
justificava contínuos rituais, desde o enterro, aos rituais de limpeza e purificação, de
trazer o espírito de volta, da herança, da honra e do apaziguamento, vistos pelo
missionário como de difícil compatibilidade com o Cristianismo.
Quanto a algumas práticas mortuárias, o Padre Gonçalo da Silveira havia
expressado não entender o hábito de deixarem a casa do morto ou mudarem de aldeia
quando um chefe morria e espanta-se com certas leis baseadas no costume, como a que
estipulava que, morrendo algum homem sem filho, o irmão do defunto tomava a mulher
por sua.1292
De facto, se de acordo com as conceções locais havia a probabilidade da morte ser
provocada por feitiços ou medicinas nefastas, isso fazia com que os familiares movessem
os seus doentes para um lugar isolado fora de sua casa (kusengudza), de modo que o seu
espírito não pudesse ser localizado pelos poderes maléficos. Quando a morte ocorria na
casa da pessoa doente, os perigos associados aos supostos feitiços tinham o poder de
infectar a família, daí o costume destes se mudarem para outra casa ou para outra aldeia,
caso se tratasse da morte de um chefe.1293
Quanto ao referido costume pos mortem em que o irmão do defunto tomava a
viúva por sua esposa, poderá relacionar-se com a lobola, ou seja, a entrega de um presente
em bens, pela família do noivo à família da noiva, na altura em que era negociado o
casamento.1294 Esses bens eram normalmente em gado, mas nas zonas costeiras mais

1290
“P. Andreas Fernandes S. I. Ex Comm. Sociis Lusitanis”, in Josef WICKI e John GOMES, Documenta
Indica, Vol. V, (…), pp. 642-643. “Carta de André Fernandes a 5 de dezembro de Goa de 1562 para os
charissimos em Christo irmãos e padres da Companhia de Jesus em Portugal”, in António Pereira de PAIVA
E PONA, op. cit., pp. 76-91.
1291
Canisius MWANDAYI, op. cit., p. 200.
1292
“Carta (cópia) do Padre D. Gonçalo para os Padres e Irmãos do Colégios da Companhia de Jesus de
Goa” (Moçambique, 9 de Agosto de 1560), in D.P.M.A.C., Vol. VII, (…), pp. 502-504.
1293
Canisius MWANDAYI, op. cit., p. 200.
1294
Wiliam David HAMMOND-TOOKE, The Nature and Significance of Bride Wealth Among the South
African Bantu, Thesis submitted in partial fulfilment of the requirements for the Degree of Master of Arts
(Anthropology), University of Cape Town, 1948.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

infestadas pela mosca tsé-tsé, seriam enxadas, esteiras e objetos de cestaria.1295 Dado que
o investimento no lobola era feito com a colaboração dos outros homens da família,
traduzindo-se num vínculo entre as linhagens, poderá o testemunho do Padre André
Fernandes referir-se ao costume que alocava à linhagem do noivo o valor oferecido, o
que, em caso de seu falecimento, poderia colocar um irmão ou outro familiar masculino
em posição de assegurar a continuidade da união.1296 O estudo feito por Hammond-Tooke
sobre a instituição lobola identifica a referida prática entre os Tsonga. Sobre a persistência
do vínculo entre as linhagens, refere o antropólogo: “The man’s group has paid for the
person of the female who becomes part of the group. Death of a husband does not end the
membership of the husband’s group”.1297
Aos costumes que envolviam a lobola acrescia a ética instituída entre as
populações locais de um homem cuidar de uma mulher viúva e dos filhos de um irmão
falecido, princípio este ainda hoje considerado entre comunidades Shona.1298
Os padres da primeira missão da Cafraria constatavam que o baptismo das
comunidades de Inhambane não tinha conduzido a modificações de comportamento
colectivo, nomeadamente na questão da poligamia, vista como de difícil conciliação com
as normas da moral católica, que desejavam implementar nas comunidades cristianizadas.
Além dos sistemas de parentesco não terem sofrido alterações, também muitas
manifestações da religião africana, integrantes de um sistema cosmológico holístico e
complexo, continuaram a dar sentido à vida das comunidades, mesmo com a introdução
de símbolos e rituais cristãos que passaram a coexistir em justaposição com as
simbologias autóctones.
Tanto a referida carta de Gonçalo da Silveira, como os testemunhos escritos do
Padre André Fernandes consideravam as vivências africanas demasiado divergentes do
ponto de vista social e espiritual, encaixando-as numa escala de classificação cristã
ocidental com raízes muito profundas no tempo e remetendo-as para as categorias
menores e marginais da idolatria e da superstição.

1295
IDEM, ibidem, p. 67.
1296
IDEM, ibidem, p. 70.
1297
IDEM, ibidem, p. 74
1298
Paradzayi David MUBVUMBI, Christianity and Traditional Religions of Zimbabwe: Contrasts and
Similarities, 2nd edition, Bloomington, WestBow Press, 2016, Location 471.
https://read.amazon.com/ref=kcr_app_surl_cloudreader (Consultado em 02/06/2020).

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Os padres denunciavam as muitas “superstições de sortes e feitiços” e o uso de


amuletos “com que fazem mezinha”, referindo-se a diversas práticas de adivinhação e a
rituais de cura protagonizados pelo nganga. A este indivíduo recorriam os membros da
comunidade, em situações de dificuldade na doença, nos assuntos legais, nas questões
religiosas, estando também presente nos rituais de passagem, pelo que era um garante da
segurança coletiva. Segundo Schoffeleers, “the nganga is not only a social analyst, but
also a creator of meaning and a potencial prophet”.1299 A forma como os missionários
criticaram as práticas de adivinhação, vidências e rituais de cura dos africanos dificulta a
compreensão dos diferentes indivíduos e papéis sociais exercidos pelo nganga e pelos
adivinhos ou songos. Enquanto o primeiro está associado a rituais de cura e à protecção
da comunidade como um todo, o que poderia ocorrer através de actos proféticos, a acção
adivinhadora dos songos, a partir de manipulações ritualizadas do mundo sensível e
material, podia propiciar tensões, hostilidades e animosidades sociais. Se é um facto que
existiria alguma ambiguidade nas atribuições do nganga, uma vez que este também usava
a adivinhação para detectar actos de feitiçaria, muitas vezes causadores de mortes e outros
infortúnios, ao observador exterior tais práticas acabavam por ser percepcionadas de
forma abrangente, indistinta e sob o mesmo rótulo da feitiçaria.1300
De entre as práticas de adivinhação mais censuradas pelos missionários estão as
que o nganga usava para encontrar os culpados de furto ou de morte, sendo que estas
cerimónias se ligavam a certos tipos de prova judicial ou ordálio que, mediante a reacção
de um acusado à ingestão de veneno, assim seria determinada a sua culpa ou inocência. 1301
Os mecanismos locais para lidar com acusações graves de feitiçaria, roubo e morte fariam
parte de uma instituição muito antiga cujo objetivo seria manter o equilíbrio entre as
forças do bem e da vida, que ocupavam a esfera da ética e da moralidade, dissuadindo as
práticas consideradas ameaçadoras, que implicavam transgressão, causavam desarmonia,
eram profundamente antissociais e revestidas da dimensão do mal.
As notícias acerca dos referidos mecanismos de prova terão impressionado de tal
modo os missionários, que as respostas a um inquérito etnográfico de finais do século
XVIII, conhecido como “perguntas sobre os cafres”, incidiu, entre diversos aspetos, sobre

1299
Matthew SCHOFFELEERS, op. cit., p. 79.
1300
IDEM, ibidem, pp. 78-79.
1301
“Carta de André Fernandes a 5 de dezembro de Goa de 1562 para os charissimos em Christo irmãos e
padres da Companhia de Jesus em Portugal”, in António Pereira de PAIVA E PONA, op. cit., pp. 84-85.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

esta tradição e outras leis afins que, segundo o documento, “antigamente erão praticadas
à risca”.1302 O registo de informações acerca de tradições judiciais, tão opostas à noção
de prova factual e racional e ao princípio herdado do Direito Romano “quod non est in
actis non est in mundo”,1303 terá contribuído para uma imagem de justiça exercida por
forças divinatórias e para a consolidação de estereótipos desfavoráveis, de acordo com os
quais a regulação da sociedade estava dependente de crenças mágico-religiosas e
superstições.
André Fernandes condena ainda os juramentos tradicionais, que se faziam
assoprando nos rostos uns dos outros e não por Deus e a prática de beberem demais, entre
outras manifestações locais da cultura e religião que o missionário solitário naquele vasto
espaço de pregação via como adversas e intransponíveis.
Fraco e doente, André Fernandes regressa a Goa na nau Rainha, a 6 de agosto de
15621304, tendo chegado “tão magro e desfeito das muitas fomes e trabalhos que passou
que quassi de todos os sentidos carecia”.1305 Finda a missão no Tonge, André Fernandes
expressava a sua contradição face ao que outrora o tinha animado para esta obra de
evangelização na Cafraria:
“(…) entre elles todo o impossível se crê e o arrezoado se arrenega”.
“(…) quasi nenhuma coisa fazem sem superstição e as mais d’ellas pestiferas que não se
podem trazer à memoria sem muitro grande fastio”.
Falam, ora por “si, ora pelo demonio que se acommoda a suas compreições e rudezas”.
“(…) crerem as impossibilidades e mentiras (…), e fazerem tão pouco caso das que sam
conformes a toda a razão.”
“(…) dizem que não ha Deus nem paraizo nem inferno nem obras más nem boas, mas
que tudo é indiferente, nem teem alma somente a vida que depois que não fica nada
d’elles”.
São “totalmente indómitos e indisciplinados”.1306

1302
Gerhard LIESEGANG (introd. E notas), “Reposta das Questoens sobre os Cafres” ou Notícias
Etnográficas sobre Sofala do fim do Século XVIII, Lisboa, Centro de Estudos de Antropologia Cultural -
Junta de Investigações do Ultramar, 1966, pp. 19-21.
1303
“O que não está nos autos não está no mundo”.
1304
“Copia de huma do Irmão Antonio Fernãodez pera os padres e irmãos da Companhia de Jesus de
Coimbra. De Goa 15 de Setembro 1562”, in D.P.M.A.C., Vol. VIII, (…), p. 94.
1305
“Excertos (copia) da Carta do Padre Baltasar para os Padres e Irmãos da Companhia de Jesus na Europa”
(4 Dezembro 1562), in D.P.M.A.C., Vol. VIII, (…), p. 116.
1306
“Carta de André Fernandes a 5 de dezembro de Goa de 1562 para os charissimos em Christo irmãos e
padres da Companhia de Jesus em Portugal”, in António Pereira de PAIVA E PONA, op. cit., pp. 84-87.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

A alteridade era pensada a partir de um aparelho conceptual e simbólico que


avaliava os atributos sociais e o quotidiano material, por um lado, e os atributos morais e
espirituais, por outro. Esta “leitura do outro” partia de estruturas de pensamento que não
encontravam correspondência nos contextos africanos. A distinção entre natural e
sobrenatural, entre a vida empírica do dia a dia e a dimensão “espiritual” ou transcendente
não se colocava em grande parte das sociedades africanas. Ora, sendo os relatos dos
missionários construções ideológicas de longa duração, marcadas por epistemologias
dualistas, impedem a percepção e a compreensão de uma visão africana do mundo, como
ordem unificada em que homens, espíritos, antepassados e mundo físico participam e
interagem num mesmo plano metafísico e ontológico.

3.4. Das representações do “martírio” do Padre Gonçalo da Silveira à


“guerra justa” contra os cafres

3.4.1. Representações do “martírio” do Padre Gonçalo da


Silveira

As informações compiladas por Luís Frois, na carta de 15 de dezembro de 1561,


foram a base de uma versão do martírio que perdurou na literatura por séculos e que
atribuiu a este missionário jesuíta uma aura mítica de santo e de mártir. Na construção de
uma versão de martírio está patente uma dualidade que é tanto terminológica como
conceptual e que ao mesmo tempo que alega santidade do padre, também postula
ideologicamente o seu oposto, traduzido na demonização dos poderes africanos e das
redes de influência islâmica no Estado do Mutapa. A designação de “mouros”, associada
aos “engangas” como os principais incitadores da morte do padre, correspondia à imagem
do adversário religioso, mobilizando estereótipos familiares que permitiam tornar
inteligíveis elementos sociais tão diversos quanto eram os ngangas das sociedades
Caranga. A impossível equivalência entre as categorias linguísticas e a realidade social a
que se referiam, era resultado da radical diversidade cultural e ideológica em confronto.
A culpabilização dos “mouros engangas” reflectia a existência de elementos islamizados
na elite Caranga e, acima de tudo, suscitava nos leitores um sentimento de oposição

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

religiosa o que, dado o contexto da acção missionária, terá contribuído para reforçar o
ideário de martírio.
Uma das fontes do padre Luís Fróis foi a carta de António Caiado para Gaspar
Gonçalves, ambos portugueses residentes nas terras do Mutapa. 1307 Essa carta menciona
terem sido os “engangas mouros” que aconselharam o soberano e sua mãe a aniquilar o
padre. Os ngangas eram os consultores espirituais que, entre outras incumbências, tinham
a responsabilidade de promover a prosperidade de uma comunidade, detectar quaisquer
tipos de infortúnio, bem como erradicar as ameaças e denunciar a feitiçaria.1308 Chegaram
informações a António Caiado de que os ngangas, através dos seus poderes de
adivinhação, haviam identificado Gonçalo da Silveira como um feiticeiro traidor (moró)
e um espião enviado pelos portugueses para preparar a tomada do poder naquele estado
africano, colocando em perigo o Mutapa e fragilizando toda a comunidade com ameaças
de fome e de sede. É provável que os ngangas a que se refere António Caiado tenham
consultado, através do espírito do mhondoro real, os riscos que poderiam estar envolvidos
na recepção do Padre Gonçalo da Silveira, como líder espiritual estrangeiro. Quando o
médium e consultor espiritual do rei entrava em transe mediúnico, através do qual se
considerava receber inspiração sobrenatural, respondia a todo o tipo de questões relativas
a paz e guerra, chuva e fome, disputas de sucessão, entre outras questões de poder e de
religião.1309 As respostas chegadas através do espírito mhondoro foram desfavoráveis ao
padre cristão, pois foi considerado que “trazia o sol e a fome, e hum osso de finado e
outras muitas mezinhas pera tomar esta terra e matar a el-rei”.1310 De acordo com as
revelações dos ngangas, a água que o padre vertera sobre as cabeças durante as
cerimónias baptismais, juntamente com as palavras pronunciadas, incompreensíveis aos
conversos, eram os elementos centrais de uma manipulação mágica, de destino trágico
para o Mutapa, pois que a sua terra seria tomada, como fora Sofala. Ora, o apuramento,
pelo nganga, deste tipo de ameaça implicava a sua necessária erradicação, o que se fez
prestes mediante a ordem do rei e morte consumada do padre.

1307
“Carta de António Caiado ao amigo Gaspar Gonçalves”, (Monomotapa, 22 Março 1561), in Documenta
Indica, Vol. V, (…), pp. 125-129.
1308
Matthew SCHOFFELEERS, op. cit., pp. 75-76.
1309
S.I.G. MUDENGE, op. cit., pp. 121-125.
1310
“Carta de António Caiado ao amigo Gaspar Gonçalves”, in Documenta Indica, Vol. V, (…), p. 127.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

A execução terá observado preceitos rituais, desde o modo como se processou o


estrangulamento do padre, até à recomendação para que, depois de morto, “não estivesse
ao sol (pellos não empeçonhentar)”, de forma que “tanto que o matarão, o levarão logo e
botarão no rio que se chama Mosengeze de noite”.1311 Lançado no rio ou numa “lagoa
grande”1312, como expressam fontes posteriores, o elemento aquático desempenharia
neste processo uma poderosa função mística, pois lagos e rios eram as moradas dos
espíritos das águas, fazedores de chuva e guardiões da fertilidade da terra.1313 A morte do
padre e o seu arrasto para um rio ou lago teria uma função transformadora, num sentido
de conciliação ritual entre as forças do mundo dos mortos e as forças do Criador, Mwari,
ou de um dos seus nomes de louvor, Dzivaguru, o grande lago ou poça.1314
Gai Roufe explora intensamente a documentação portuguesa produzida na época
da morte do Padre Gonçalo da Silveira e posteriormente. Neste sentido, cruza as
informações escritas em diversos momentos históricos, muitas das quais integrando
elementos da oralidade africana, com tradições orais e material etnográfico mais recente
e, deste modo, procede a uma reanálise dos discursos. 1315 De acordo com a sua
interpretação, que permite reconstruir conceptualizações e ideologias locais, o padre teria
sido percepcionado como um ser dotado de poderes sobrenaturais e um usurpador, que
estaria possuído pelo espírito de Dzivaguru-Karuva e Chicara.1316 Dzivaguru,
significando literalmente “grande lago”, era o mais popular nome de louvor de Mwari, o
Criador de todas as coisas e garante da fertilidade da terra.1317 Karuva seria, segundo a
tradição, o sacerdote do culto de Dzigavuru.1318 Chicara era, de acordo com diversas
tradições, bisneta de Dzivaguru, podendo também configurar-se como um antigo chefe

1311
IDEM, ibidem, p. 129.
1312
Balthazar TELLES, Chronica da Companhia de Iesu, na provincia de Portugal: e do que fizeram, nas
conquistas d'este reyno, os religiosos, que na mesma provincia entràram, nos annos em que viveo S. Ignacio
de Loyola, nosso fundador, parte 2, Liv. 4, capítulo 38, Lisboa, por Paulo Craesbeeck, 1645, p. 165.
Francisco de SOUSA, Oriente conquistado a Jesu Christo pelos padres da Companhia de Jesus da
Provincia de Goa: primeyra parte, na qual se contèm os primeyros vinte, [e] dous annos desta provincia,
Volume I, Lisboa, Na Officina de Valentim da Costa Deslandes, 1710, p. 865.
1313
Collis Garikai MACHOKO, “Water Spirits and the Conservation of the Natural Environment: a case
study from Zimbabwe”, in International Journal of Sociology and Anthropology, Vol. 5, Nº 8 (Nov. 2013),
p. 288. http://www.academicjournals.org/IJSA (Consultado em 02/06/2020)
1314
Canisius MWANDAYI, op. cit., p. 63.
1315
Gai ROUFE, “The Reasons for a Murder. Local Cultural Conceptualizations of the Martyrdom of
Gonçalo da Silveira in 1561”, in Cahiers d'études africaines, 2015/3 (N° 219), pp. 467-488.
1316
IDEM, ibidem, pp. 472-473 e p. 482.
1317
Marthinus Louis DANEEL, The God of the Matopo Hills. An Essay of the Mwari Cult in Rhodesia,
Leiden, Afrika Studiecentrum, 1970, p. 16.
1318
S.I.G. MUDENGE, op. cit., p. 41

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

que fingia ser imperador e que, ao falhar nos seus propósitos, se sacrificou afogando-se
num lago.1319 Uma outra versão sobre a morte ritual por afogamento relaciona-se com a
oposição que as forças militares ao serviço da princesa Chicara fez às forças do fundador
do império, Matope. Estando o exército de Chicara em vantagem, Matope mandou
capturar um dos indivíduos locais de nome Chikuma, que revelou o segredo mágico das
forças de Chicara. Traída e derrotada, teria fugido na direcção do lago Nyamakate, o
santuário de Dzivaguru, onde se fez afogar com os seus filhos.1320
O ritual da morte do Padre Gonçalo da Silveira relaciona-se com a história de
Chicara, nomeadamente a morte por afogamento, consumada de acordo com o ritual de
estrangulamento de um traidor, como o que era imposto a um imperador derrotado na
guerra, e o seu lançamento num grande lago.1321 Segundo Gai Roufe, depois da morte do
Padre Gonçalo da Silveira não terão existido repercussões para os portugueses nas terras
do Mutapa, sugerindo que, na percepção local, o acto não estava associado aos
portugueses enquanto grupo.1322
Se a reconstrução operada recentemente por este historiador permite lançar uma
nova luz sobre as complexas razões que naquela sociedade africana suscitaram a morte
do Padre Gonçalo da Silveira, a verdade é que nos meios missionários portugueses e
europeus tal acontecimento abria caminho à construção da imagem do herói mártir cristão
na Cafraria.
Após a morte de Gonçalo da Silveira é quase imediata a generalização da ideia de
martírio e santidade do padre: “Cá na comum voz do povo é chamado e tido por santo e
martyr glorioso e em Moçambique lhe quizerão fazer os fidalgos uma solemne procissão
e vestirem-se de festa por seu bemaventurado fim”.1323 Luís Frois considerava que a obra
de evangelização da Cafraria tinha sido consolidada “sobre sangue derramado puramente
pela honra e gloria de Jesu Christo” e, tanto o provincial da Companhia de Jesus em Goa,

1319
Gai ROUFE, “The Reasons for a Murder. Local Cultural Conceptualizations of the Martyrdom of
Gonçalo da Silveira in 1561”, in op. cit., p. 482.
1320
S.I.G. MUDENGE, op. cit., pp. 41-42.
1321
Gai ROUFE, “The Reasons for a Murder. Local Cultural Conceptualizations of the Martyrdom of
Gonçalo da Silveira in 1561”, in op. cit., p. 482.
1322
IDEM, ibidem.
1323
“Carta do irmão Luiz Froes do Collegio de Goa de 15 de dezembro de 1561 para o irmão Bento Toscano
em Portugal recebida em agosto de 1562”, in António Pereira de PAIVA E PONA, op. cit., p. 54.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

como o vice-rei da Índia mostravam “grande vontade e alvoroço esperando a monção para
mandar alguns padres e irmãos aquelle imperio e monarchia tam grande”.1324
A aura de santidade que envolvia Gonçalo da Silveira construiu-se em Portugal e
outras Províncias da Companhia de Jesus na Europa, no âmbito da tendência teológica
para a santificação da acção missionária através da busca de uma semelhança com Cristo,
nomeadamente pelo ideário do sacrifício e do sangue derramado.1325
Em 1612, o jesuíta Nicolau Godinho publicava em Lion a obra Vita Patris Gonzali
Sylveriae, Societatis Jesu sacerdotis…, biografia em latim de Gonçalo da Silveira e a
primeira representação impressa do seu martírio.1326 Em 1614 saía em Madrid a tradução
castelhana desta obra, pelo jesuíta Bernardo de Cienfuegos; no mesmo ano, em Augsburg,
era publicada uma tradução alemã, pelo padre João Volckio Bavaro e, em 1615, era
impressa em Roma uma versão italiana, feita pelo padre Francisco Maria de Amatis.1327
Através da tradução castelhana, sabemos que Nicolau Godinho havia consultado
vasta documentação do arquivo do Colégio da Companhia de Jesus, em Coimbra, tendo
reunido testemunhos de portugueses, contemporâneos do sacerdote nas terras do Mutapa
que, regressados à Índia, aí partilharam as suas perceções dos acontecimentos.1328
Esta obra refere algumas lendas, que persistiram entre as populações do Zambeze,
como a que falava do apaziguamento dos crocodilos do rio Musengeze, depois que o
corpo do padre aí foi lançado.1329 Mathias Tanner, jesuíta da região da Boémia, que fora
reitor da Universidade de Praga, integrou no seu martirológio em latim a história de que
após a morte de Gonçalo da Silveira se ouvia falar de uma luz maravilhosa que brilhava
no local onde o corpo do padre foi afundado e que os crocodilos das águas do rio
Musengeze haviam perdido a sua selvajaria e ferocidade, não voltando a atacar mais

1324
“Carta que um portuguez por nome Antonio Caiado escreveu de Manamotapa a outro seu amigo que
estava em outro logar da mesma terra sobre a morte de D. Gonçalo”, in António Pereira de PAIVA E
PONA, op. cit., p. 70.
1325
Bartolomeu GUERREIRO, op. cit., Capítulo III.
1326
Nicolau GODINHO, Vita Patris Gonzali Sylveriae societatis Iesu sacerdotis in urbe Monomotapa
martyrium passi, Lion, par Horace Cardon, 1612. A obra é prefaciada por Claudio Acquaviva, Superior
Geral da Companhia de Jesus.
1327
Diogo Barbosa MACHADO, Bibliotheca Lusitana Historica, Critica, e Cronologica. Na qual se
comprehende a Noticia dos Authores Portuguezes, e das Obras, que compuseraõ desde o tempo da
promulgaçaõ da ley da Graça até o tempo prezente, Tomo III, Lisboa, Na Officina de Ignacio Rodrigues,
1752, p. 493-494.
1328
Bernardo de CIENFUEGOS, op. cit., pp. 45 e 64 vº.
1329
IDEM, ibidem, p. 69 vo.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

nenhum homem.1330 Com estas obras, a aura de santidade de Gonçalo da Silveira vai
sendo nutrida pela convicção de que a memória do padre teria permanecido nas próprias
“terras da Mocaranga” e integrado lendas e tradições locais.
De entre as narrativas que se contavam, a mais prodigiosa foi a lenda recolhida pelo
Padre Afonso Leão de Barbudas, da Companhia de Jesus. Este padre foi enviado às terras
do Mutapa em 1625, na qualidade de secretário do vice-rei D. Luís de Ataíde, com a
incumbência de se certificar da recente descoberta das minas de prata de Chicova. 1331
Nesta expedição, redigiu um diário das coisas que considerou notáveis nas terras do
Mutapa onde, além do que levava por missão, registou tudo o que observou e inquiriu
sobre o padre Gonçalo da Silveira. Regressado a Portugal em 1627, Barbudas escreveu
uma carta ao Provincial Francisco de Gouveia na qual transcreve as suas anotações e
regista as suas lembranças. Baltazar Telles copiou “fielmente” 1332 para a sua Cronica da
Companhia de Iesu o conteúdo dessa carta:
“Relaçam, que o Lecenciado Affonfo Leàm de Barbuda deo ao Padre Francisco de
Gouvea da Companhia de IESV, do que achâra, & soubera da morte do Padre Gonçalo
da Sylveyra em Monomotapa”.1333

O padre Leão Barbudas fez referência a reinos designados de Opangua e Nubugàna,


onde teria encontrado “novas, e tradição do Padre Gonçalo da Sylveyra, que nas ditas
partes andou, e fez grande Christandade, a qual está já muy inculta, bravîa, e agreste”. 1334
Não nos sendo possível precisar a localização destes reinos, podemos, no entanto,
considerar tratar-se de chefaturas tributárias do Mutapa que se situavam entre os vales
dos rios Manzovo (Mazoe) e Musengeze, áreas onde, para além de Sena, o padre baptizou
gentes locais, rezou missas e ministrou os sacramentos. O que mais terá impressionado o

1330
Mathias TANNER, Societas Jesu usque ad sanguinis et vitae profusionem militans, in Europa, Africa,
Asia, et America, contra gentiles, Mahometanos, Judaeos, Haereticos, impios, pro Deo, fide, ecclesia,
pietate, Sive Vita, et mors eorum, qui ex Societate Jesu in causa fidei, & virtutis propugnatae, violenta
morte toto orbe sublati sunt, Praga, Typis Universitatis Carolo-Ferdinandeae, in collegio Societatis Jesu ad
S. Clementem, per Joannem Nicolaum Hampel Factorem, 1675, p. 162.
https://archive.org/details/societasjesuusqu00tann/page/162/mode/2up (consultado em 20/07/2020)
1331
Diogo Barbosa MACHADO, Bibliotheca Lusitana Historica, Critica, e Cronologica. Na qual se
comprehende a Noticia dos Authores Portuguezes, e das Obras, que compuseraõ desde o tempo da
promulgaçaõ da ley da Graça até o tempo prezente, Tomo I, Lisboa, Na Officina de Antonio Isidoro da
Fonseca, 1741, p. 38.
1332
Balthazar TELLES, op. cit., Parte 2, Liv. 4, Capítulo 38, p. 164.
1333
IDEM, ibidem, pp. 164-166.
1334
IDEM, ibidem, pp. 165-166.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

padre Barbudas foi uma lenda transmitida por pescadores locais sobre um corpo
milagrosamente conservado:

“(…) chegando a hua paragem onde entestam dous rios, que apartam pera diversos
lugares opostos muyto hum do outro. No remanso que fazem a modo de enseada (como
he a do Alfeyte da banda de Almada) achey grande quantidade de Aves, e pássaros muyto
mayores que Perús, e Batardas, muy alvos das penas, (…) Muytas destas áves estavam
postas num pao muyto grosso de mais de doze varas de comprido, o qual era tam pesado,
e forte, que parecia de ferro. Este pao estava junto a hum grande, e espesso arvoredo, e
brenha muy alta. Quis saber mais especificadamente do pao, e das aves, e tentando sahir
em terra pera a parte da brenha, os moradores de humas povoaçoens vizinhas, que estam
da outra banda do rio, avisaram aos três negros, que hiam comigo, filhos de Reys, que
por nenhum caso sahissem em terra, porque aquele pao estava ally havia muytos anos, o
qual do fundo do rio o lançara ally a cheya com hum corpo de hum homem branco vestido
de negro, atado. O qual homem branco certos tigres e outros animaes levaram nas bocas
lá dentro daquela brenha, e que nella o tinham guardado, e enteyro, e que os mesmos
animaes, como de guarda postos, o defendiam, e tinham encerrado. (…) e que também os
animaes defendem o pao, e que so consentiam aos ditos pássaros, e aves porem-se nelle,
(…) E nelle faziam huma tam suave armonía de diversas vozes, que muyta gente dos
lugares comarcãos que andavam pescando, de propósito se chegavam pera aquella parte,
assim pera ouvirem a musica, como pera tomarem por ally mais peyxe”. (…) E dos negros
mais antíguos, e velhos daqueles lugares, achey (o que todos afirmam) que o corpo que
está naquela brenha deve de ser de algum grande sancto ou de algum Deos”. 1335

Perante tal relato, o Padre Barbudas ficou convencido de que o corpo a que se referia
a lenda africana deveria ser o de Gonçalo da Silveira, cuja memória teria permanecido
nas mentes das populações locais. A convicção de que o corpo incorrupto da lenda seria
o do “mártir” jesuíta, guardado e defendido por animais terrestres e do céu em lugar
escondido, parecia confluir para a justaposição de uma construção narrativa católica sobre
outras narrativas e fenómenos da religião autóctone.

1335
“Relaçam que o Lecenciado Leàm de Barbuda deo ao Padre Francisco de Gouvea da Companhia de
Iesu, do que achara, & soubera da morte do Padre Gonçalo da Sylveyra em Monomotapa”, in Balthazar
TELLES, op. cit., pp. 163-165.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

A lenda foi recolhida entre pescadores ou seja, entre comunidades ribeirinhas cuja
vida dependia de uma relação de proximidade com o rio, conhecendo bem o seu percurso
e os seus santuários e lugares de poder, que podiam estar ligados a sepulturas e a espíritos
de antepassados. A menção a “pássaros muyto mayores que Perús, e Batardas, muy alvos
das penas” como os guardiões daquela parte do rio, parece invocar a imagem das aves
njerere, que anunciavam a chegada das chuvas, representando simbolicamente Mwari, o
grande espírito Criador do mundo natural e vigilante do seu equilíbrio, ou um dos seus
nomes de louvor, Dzigavuru, o espírito das águas dos lagos ou rios.1336
Poderia esta lenda ser um reflexo de que aquele recanto do rio seria, para as
populações ribeirinhas, um espaço de culto apenas acessível aos médiuns espirituais? É
possível que essa lenda se refira a um destes espaços santuários, o que parece ser
reforçado pelos avisos dos moradores das povoações vizinhas, para que de modo algum
se desse um desembarque naquela margem. JoAnn McGregor, num estudo sobre
paisagem e memória, que indaga as ideias africanas sobre o ambiente, focando-se nas
interações do passado com o rio Zambeze, refere a existência de diversos lugares sagrados
ao longo do rio e seus afluentes. Tais espaços associam-se a antigas comunidades
inespecíficas de antepassados, alguns guardavam sepulturas de chefes fundadores e
contava-se que ocorriam fenómenos sobrenaturais que podiam ser vistos ou escutados. 1337
Acrescenta ainda que, segundo algumas tradições, em certos lagos nas margens do
Zambeze os espíritos médiuns se fizeram imergir, tendo permanecido no fundo das águas
por diversos anos e, quando emergiam, traziam consigo abundância de sementes e
prosperidade para a terra.1338 Ainda que as tradições recolhidas na atualidade não possam
ser vistas como preservando formas passadas de ver a paisagem, sem contaminação com
influências mais recentes, neste caso concreto parece-nos ser possível estabelecer uma
ligação a registos profundos da cosmologia africana, que integram espectros mitológicos
associados ao antigo espírito de Dzivaguru.
Relativamente à lenda recolhida pelo padre Barbudas no século XVII, questionamo-
nos se incluiria algum eco de memórias do padre Gonçalo da Silveira por entre as

1336
Marthinus Louis DANEEL, op. cit., p. 25. Collis Garikai MACHOKO, op. cit., p. 288.
1337
JoAnn McGREGOR (Ed.), “Living with the River. Landscape and Memory in the Zambezi Valley
Northwest Zimbabwe”, in William BEINART e JoAnn McGREGOR, Social History & African
Environments, Oxford, James Currey, 2003, pp. 95-96.
1338
IDEM, ibidem, p. 96.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

comunidades dos rios? Se, tal como sugeriu Gai Roufe, o padre foi interpretado
localmente como munido de diversos poderes mágicos e possuído pelo espírito de
Dzigavuru-Kuruva e Chicara, tendo o poder de trazer a chuva e a seca ou a força para
destronar o Mutapa; se por recomendação dos ngangas o padre foi morto; se a sua morte
por estrangulamento e o posterior lançamento do seu corpo num rio ou num lago pode ter
correspondido a preceitos rituais associados aos antigos cultos de Dzigavuru, então
devemos considerar também que tais acontecimentos terão produzido impacto nas
comunidades locais, com reflexo nas narrativas orais.
A publicação desta lenda em obra impressa havia de alimentar em Portugal e na
Europa, nos meios jesuítas, o mito de uma sublimação miraculosa e santificação ocorrida
nas próprias “brenhas da Cafraria”. Mas se, como verificamos, determinada literatura
parece refletir a existência de uma corrente ideológica que constrói a narrativa da jornada
heroica de evangelização e martírio, a verdade é que Gonçalo da Silveira não chegou a
integrar o catálogo dos santos mártires canonizados no período da Contrarreforma. 1339
Segundo Ronnie Po-Chia Hsia, duas ordens de razões justificariam que um número
elevado de missionários que perderam as suas vidas em terras distantes da Europa não
tivessem sido oficialmente proclamados como santos. A primeira das razões estaria na
própria ideologia contrarreformista de uma Igreja apostólica, militante e triunfante cuja
identidade não se coadunava com a imagem do martírio dos seus membros às mãos de
poderes pagãos. Uma segunda ordem de razões prende-se com a própria natureza
centralizada da política e da administração papal, cujos poderes e influências eram
decisivos nas escolhas dos santos.1340 Ainda que o papado restringisse a escala de
beatificações, a já mencionada compilação do jesuíta Mathias Tanner procurava glorificar
a vida e a missão de 304 padres jesuítas que, na Europa, África, Ásia e América, foram
martirizados devido à sua fé.1341 Entre os missionários de África figura o “P. Gonsalvus
Sylveria” que ao ter iniciado a missão no Tonge (Regnum Tongense), baptizou centenas
de almas no Monomotapa, antes da sua execução. O texto, que narra em nove fólios a
ação deste padre, além de integrar a lenda recolhida pelo padre Barbudas, acrescenta que
a memória de Gonçalo da Silveira era reverenciada entre aqueles povos:

1339
Ronnie Po-Chia HSIA, op. cit., p. 130.
1340
IDEM, ibidem, pp. 130-133.
1341
Mathias TANNER, op. cit..

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

“Eas se volucres belluasque Barbuda vidisse narrabat, credique cadáver esse


Gonsali Sylveriae, cujus inter eas gentes veneratio magna fit, & benefactorum
recens memoria, & videri in ea tempora tam prodigiosè servari à Deo”.1342

Tradução: «[Afonso] Barbuda contava que tinha visto essas aves e essas feras e que
se cria que o cadáver era de Gonçalo da Silveira, do qual, entre esses povos, é grande a
veneração e viva a memória dos seus benefícios, e que parecia que foi conservado por
Deus milagrosamente até esses tempos.1343
A obra de Mathias Tanner é ilustrada pelo dramatismo das gravuras de Küsell, que
contribuem para consolidar uma ideologia de martírio, transversal às missões jesuítas nos
diversos palcos do mundo. A gravura dedicada a Gonçalo da Silveira ilustra o momento
em que os seus carrascos se preparam para lançar o corpo do padre ao rio Musengeze.
Toda a imagética da gravura (Figura 4) pretende vincar estereótipos, nomeadamente
a simbologia binária que opõe os dois mouros africanos, no ato de puxar com uma corda
a sua vítima pelo pescoço, e o padre que jaz morto por estrangulamento. Os mouros são
identificados pelos turbantes e pelo corpo negro, apenas coberto com um saiote têxtil, por
oposição ao padre, que veste os seus paramentos cristãos e deixa para trás, em solo
africano, um crucifixo num pedestal, ladeado por duas velas acesas sobre uma esteira,
como que simbolizando a luz da fé que ele próprio revelara aos gentios, ou o próprio
Cristo ressuscitado. Nesta obra em latim, destaca-se o seu valor propagandístico que terá
contribuído para a difusão do tema do martírio subjacente à ação evangelizadora e para a
formação de opiniões generalizadas relativamente a outros povos do mundo,
recentemente convertidos ou em projeto de conversão.
Acima de tudo, a busca de informações sobre a ação missionária do Padre Gonçalo
da Silveira nas terras Caranga e as interpretações sobre as razões que levaram à sua morte
contribuiriam para a amplificação de uma representação desfavorável das populações e
territórios do sudeste africano.

1342
IDEM, ibidem, p. 164.
1343
Tradução da frase do Latim para Português, generosamente realizada pelo Professor Doutor Arnaldo
Espírito Santo, a quem muito agradecemos.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Figura 4

Gravura de Melchior Küsell, integrada na obra de Mathias Tanner, com a legenda:


"P. Gonsalvus Sylveria Comitum prosapiâ natus in Lusitania Soc: IESV, iussu Regis
Monomotapae pro Christo strangulatus. A. 1561. 15 Martij."1344
Tradução: «P[adre] Gonçalo da Silveira, da Companhia de Jesus, nascido em Portugal de
uma família de Condes, estrangulado por Cristo por ordem do Rei de Monomotapa. Ano
1561. 15 de Março».1345

1344
IDEM, ibidem, p. 156. Banco de imagens da Coleção da Biblioteca Digital da Saint Louis University,
http://digitalcollections.slu.edu/digital/collection/imagebank/id/89 (consultado em 20/07/2020)
1345
Tradução da frase do Latim para Português, generosamente realizada pelo Professor Doutor Arnaldo
Espírito Santo, a quem, mais uma vez muito agradecemos.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

3.4.2. A questão da “guerra justa”

Para além da literatura religiosa, produzida sobretudo no seio da Companhia de


Jesus, a morte de Gonçalo da Silveira teve repercussões nas juntas de letrados e também
na epopeia camoniana:

“Vê o Benomotapa o grande império,


De selvática gente, negra e nua,
Onde Gonçalo morte e vitupério
Padecerá, pola Fé santa sua.”1346

No reino, o vitupério ou injúria, a que se referia a estrofe camoniana, transfigurava-


se num sentimento alargado, que alimentava os argumentos de uma elite de letrados em
favor da “guerra justa” contra os cafres. O eco das discussões doutrinárias da Escola de
Salamanca em torno do direito das gentes (ius gentium), da guerra justa (bellum iutum) e
da legitimidade, ou não, da conquista dos povos não europeus, está presente no pedido
feito por D. Sebastião à Mesa da Consciência e Ordens para se pronunciar sobre a validade
de uma investida militar contra o Monomotapa. Esse pedido conduziu à análise de todas
as provas e testemunhos, acerca da relação do governo do Monomotapa com os vassalos
da coroa portuguesa, e resultou na elaboração do parecer que ficou conhecido como a
Determinação dos letrados, assinada em Almeirim, a 23 de Janeiro de 1569.1347
Tal documento enquadrava-se numa das diretrizes do reinado de D. Sebastião para
o governo do Estado da Índia, que consistia em aumentar a Cristandade através de uma
aliança entre a missionação e as conquistas. 1348 Para fundamentar esta aliança, o
documento invoca as bulas apostólicas concedidas aos reis de Portugal, atribuindo-lhes o
direito de desenvolver o comércio de todos os reinos, ilhas e províncias, desde o Cabo
Não até à Índia, com a condição de que nesses territórios a coroa portuguesa construísse

1346
Luís de CAMÕES, Os Lusíadas, (…), Canto X, 93.
1347
“Determinação dos letrados, scilicet, com que condiçoens se podia fazer guerra aos reys da conquista
de Portugal. Fala em especial do Monomotapa”, in Josef WICKI e John GOMES, Documenta Indica, Vol.
VIII, (…), pp. 675-679.
1348
Nuno VILA-SANTA, “A Coroa e o Estado da Índia nos reinados de D. Sebastião e D. Henrique: política
ou políticas”, in Lusitania Sacra, 29 (Jan.-Junho 2014), p. 55.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

igrejas e templos e fizesse promulgar o Evangelho por ministros idóneos. 1349 Ora,
segundo a argumentação da Mesa da Consciência e Ordens, nos reinos e senhorios do
Monomotapa a pregação do Evangelho fora impedida com grande violência e prejuízo,
nomeadamente com a morte do Padre Gonçalo da Silveira, além de que teria sido
obstruída a “hospitalidade e comercio” com graves danos e ofensas a vassalos da coroa
portuguesa e favorecimento dos “mouros imigos”.1350
A “hospitalidade e comercio” constituía o cerne do ius communicandi ou direito
da comunicação e partilha inter-humana, desenvolvido e fundamentado pelo dominicano
Francisco de Vitória, da Escola de Salamanca.1351 Segundo os princípios da razão natural
que presidiam à concepção da communitas orbis, tanto os poderes dos povos cristãos,
como os dos “infiéis e pagãos” tinham equivalente legitimidade quanto à jurisdição e
posse ou dominium dos seus territórios.1352 Contudo, no contexto específico sobre o qual
reflete, o da presença espanhola nas Índias ocidentais, Vitória considera que, se os nativos
impedissem os cristãos espanhóis de viver nas suas terras, aí comerciar e espalhar o
Evangelho, originavam uma justa causa de intervenção bélica, que poderia legitimar o
domínio espanhol através da guerra. A violação do ius communicandi mostrava ser o mais
controverso dos títulos de conquista baseado na violação do ius gentium, uma vez que
legitimava a guerra e a apropriação dos territórios indígenas através do dominium, ou seja,
do direito de propriedade.1353 Segundo Francisco de Vitória, para determinar se uma
guerra é justa, torna-se essencial examinar com muito cuidado a justiça e a causa da
guerra, sendo necessário “consultar os homens prudentes e sábios”.1354 Entre vários
argumentos que podiam ser alegados, a injúria recebida era considerada a causa justa de
guerra por excelência.1355 Em caso de guerra justa, era lícito fazer tudo o que fosse
necessário ao bem público e para defesa do bem público, recuperar todas as coisas

1349
“Determinação dos letrados, scilicet, com que condiçoens se podia fazer guerra aos reys da conquista
de Portugal. Fala em especial do Monomotapa”, (…), p. 676.
1350
IDEM, ibidem, p. 677.
1351
Paolo AMOROSA, Rewriting the History of the Law of Nations: How James Brown Scott made
Francisco de Vitoria the Founder of International Law, New York, Oxford University Press, 2019, p. 175.
1352
Pedro Ricardo da Silva SANTOS, Sobre o Direito de Guerra. Estudo introdutório e tradução
comentada da ‘Relectio de iuri belli’ de Francisco de Vitória, Dissertação de Mestrado em Estudos
Clássicos – Ramo de Estudos Medievais e Renascentistas, Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra, 2016, p. 16.
1353
Martii KOSKENNIEM, “Empire and International Law: the Real Spanish Contribution”, in University
of Toronto Law Journal, (2011), 61, p. 14.
1354
Pedro Ricardo da Silva SANTOS, op. cit., p. 47.
1355
IDEM, ibidem, ps. 25 e 34.

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perdidas ou o valor delas, ressarcir as despesas de guerra e todos os danos com os bens
dos inimigos e castigar a injúria deles recebida.1356
Verificamos que o direito comum das gentes, refletido e reelaborado, entre outros,
por Fr. Francisco de Vitória, permeia conceptualmente os argumentos sustentados no
documento português, Determinação dos letrados, de 1569.
Podemos considerar estar perante um contexto marcado por uma certa unidade
ideológica de dimensão ibérica, cujas raízes se encontram na estrutura teológica e
filosófica da Universidade de Paris, onde Francisco de Vitória se doutorou, tendo esse
clima mental influenciado o movimento doutrinal que constituiu a Escola de
Salamanca.1357 Neste sentido, à base ética, teológica e filosófica de Paris veio acrescentar-
se a circulação de clérigos e doutores entre Salamanca e a Universidade de Coimbra, no
contexto da Segunda Escolástica Peninsular, que desenvolveu uma acção reflexiva
importante sobre as condições éticas e político-jurídicas da ocupação de territórios e
domínio de povos extra-europeus.1358
Os seis letrados portugueses que assinaram a Determinação de 1569 têm à cabeça
Martim Gonçalves da Câmara, jesuíta, Doutor em Teologia, presidente da Mesa da
Consciência e do Desembargo do Paço, escrivão da puridade de D. Sebastião e irmão do
influente Luís Gonçalves da Câmara, jesuíta, reitor do Colégio das Artes de Coimbra e
confessor do rei.1359 Uma elite de letrados, que constitui o alicerce eclesiástico do Estado
durante o reinado de D. Sebastião, utiliza argumentos jurídico-políticos e conceitos
morais que Francisco de Vitória expôs quanto ao relacionamento da coroa de Leão e
Castela com as comunidades e poderes nativos do Novo Mundo, nomeadamente a
necessidade de justificar a guerra com uma causa justa, como defender o bem público e
castigar a injúria recebida.1360 Este argumento doutrinário está subjacente às três causas

1356
IDEM, ibidem, pp. 44-45.
1357
Paula Oliveira e SILVA, “Causa dos índios e direitos dos povos. Significado do contributo de Francisco
Vitória para a Filosofia do Direito”, in Mediaevalia. Textos e estudos, 30 (2011), pp. 140-141.
1358
Fábio Fidelis de OLIVEIRA, “História da Segunda Escolástica Peninsular no Ambiente Universitário
Lusitano: uma reflexão sobre as Concepções Jurídico-Políticas do Doutor Martín de Azpicuelta Navarro”,
in Revista Brasileira de História do Direito, Minas Gerais, Vol. 1, nº 2, Julho/Dezembro 2015, p. 51.
1359
“Martim Gonçalves CÂMARA (1539-1613)”, in Dicionário de História de Portugal, dir. Joel
SERRÃO, Vol. I, (…), pp. 440-441.
1360
Frei Francisco de Vitória não deixou uma obra escrita estruturada, sendo as “relectiones” um conjunto
de escritos que foram compilados postumamente por Jaques Boyer. As “relectiones” conhecidas como De
Indis (Dos índios) consistem nas reflexões, análises e comentários das questões jurídico-morais
relacionadas com a presença espanhola nas Índias ocidentais, em particular, e a defesa de uma ordem de
justiça que regulamentasse as relações entre todas as comunidades, em geral. As “relectiones” constituíram

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

fundamentais com que a Determinação dos letrados justifica a guerra justa e sem pecado
movida pela coroa portuguesa contra o Monomotapa, a saber: 1) a existência de ofensas
e lesões feitas a portugueses, desde o roubo e prisão de dois enviados pelo capitão de
Sofala até à morte do Padre Gonçalo da Silveira; 2) a autoridade do rei português para,
no plano internacional, defender os seus vassalos de todas as injúrias que lhes tivessem
sido infligidas; 3) a intenção de promulgar o Evangelho ou seja, promover a “conversão
e salvação das almas”, enviando para esse efeito número “competente de missionários
idóneos”.1361
De acordo com as declarações expressas em Almeirim, antes de fazer a guerra ao
Monomotapa, devia ser requerido, em nome do rei de Portugal a expulsão de todos os
mouros naquelas terras e senhorios, a decorrer num espaço de tempo limitado; ainda
assim, depois de expulsos os mouros, podia ser feita “guerra justa” contra o Monomotapa
devido às “injurias e lesões feitas aos portugueses”, a não ser que fosse pago um elevado
tributo, tanto em ouro, como em “legoas de terra que a juizo de bons varoens seja igual
recompensa de todas as ditas injurias e lesões, e das despesas da armada e das que se
fizerem” e “sendo caso que o dito rey negue a dita satisfação pode-se-lhe fazer justamente
guerra seguindo se todos os direitos, que se nella executão”.1362
A acusação feita ao soberano africano era a de não respeitar “o comum direito das
gentes”, que era um conceito derivado do direito romano e cuja “universalidade” só fazia
sentido no âmbito político-jurídico europeu que, com os teólogos de Salamanca, iniciava
o estabelecimento de preceitos do direito internacional. Tornado categoria do pensamento
ocidental, a ius gentium enquanto direito natural assentava na premissa da universalidade
e imutabilidade e, deste modo, entrava em confronto com uma incomensurabilidade de
instituições de diferentes sociedades e culturas não europeias e não cristãs, como eram
consideradas as das sociedades Caranga dos planaltos de entre os rios Zambeze e
Limpopo.
Neste sentido, por uma alegada violação do ius gentium, estabeleciam os letrados
que o rei de Portugal podia mandar fazer guerra ao “rey de Monomotapa” e, tendo por

as lições proferidas enquanto professor de “Prima Theologia”, na Universidade de Salamanca. A análise da


“relectio de iuri belli” constitui um suplemento de uma outra “relectio” designada “De Indis recenter
inventis”. Veja-se Pedro Ricardo da Silva SANTOS, op. cit., pp. 3-5.
1361
“Determinação dos letrados, scilicet, com que condiçoens se podia fazer guerra aos reys da conquista
de Portugal. Fala em especial do Monomotapa”, in op. cit., p. 678.
1362
IDEM, ibidem, pp. 678-679.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

base este “código de conduta”1363, a Mesa da Consciência e Ordens aprovou a realização


de uma expedição contra aquele estado africano, questão que já havia andado em
discussão no tempo da rainha D. Catarina e do cardeal D. Henrique, conforme refere o
padre Francisco Monclaro.1364
Entre 1569 e 1572 concretizou-se a expedição que, comandada por Francisco
Barreto, pretendia ser ao mesmo tempo um acto de punição por injúrias e uma conquista
territorial. As vicissitudes deste empreendimento foram relatadas pelo Padre Francisco
Monclaro que, juntamente com Estevão Lopes, protagonizou a segunda expedição
missionária jesuíta aos territórios da Cafraria.1365
Segundo o relato de Monclaro, a expedição comandada por Francisco Barreto
chegou à ilha de Moçambique, no início de 1570, e dirigiu-se para a costa de Melinde,
exterior à Cafraria, atacando as ilhas de Monfia e Zanzibar, assim como Mombaça, Lamu
e Pate, o que resultou no enfraquecimento e perda de um terço das tropas portuguesas. 1366
O percurso entre Moçambique e Quíloa considerou-o Monclaro de beleza tão
extraordinária devido à sua “feição montuosa”, que poderia imaginar-se o “parayso
terreal” sobre aqueles montes, não fosse a terra e clima serem “dos piores do mundo, e só
dignos de tais habitadores e tão bárbaros, como são cafres”.1367 Para o autor, a paisagem
de beleza edénica era vista como corrompida pelo pecado de seus habitantes, os únicos
capazes de viver no clima doentio daquela parte extrema do mundo.
Terminada a etapa bélica inicial desta expedição, Barreto dirigiu-se a Quelimane,
para depois entrar pelas bocas do Zambeze e subir o rio até Sena. Monclaro descreve a
grandeza do rio e as suas margens, a navegação tradicional, os portos e o comércio aí
desenvolvido, as subsistências, a dimensão das aldeias e as fisionomias humanas que mais
o impressionaram.

1363
José CAPELA, Moçambique pela sua História, Porto, Centro de Estudos Africanos da Universidade
do Porto, 2010, p. 19. http://www.africanos.eu/images/publicacoes/livros_electronicos/EB020.pdf
(Consultado 2/09/2020)
1364
“Relação da viagem que fizeram os Padres da Companhia de Jesus com Francisco Barreto na conquista
do Monomotapa no Anno de 1569, feita pelo P.e Monclaro da mesma Companhia”, in Josef WICKI e John
GOMES, Documenta Indica, Vol. VIII, (…), p. 684.
1365
IDEM, ibidem, pp. 683-739.
1366
IDEM, ibidem, pp. 693-699.
1367
IDEM, ibidem, p. 693.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

No litoral e nas ilhas de Angoxe atestou formas de convivência social, patente na


expressão de que ali viviam “mouros e cafres mesturados”.1368 Na perceção de Monclaro,
a Cafraria, designação que aplica ao vale do Zambeze, era habitada sobretudo por
populações política e socialmente distintas: os Macuas, predominantes na margem norte
do baixo Zambeze, e os Tongas, no médio Zambeze. Sobre os Tongas diz que “Arriba de
Sena, da banda do leste, que hé da outra parte do rio”, desenvolvia-se o comércio de
machiras de algodão da terra do Bororo, em troca de contas de Chaúl. Monclaro afirma
que estas contas eram “vendidas aos negros da outra banda da do oeste do rio, que se
chama[m] Botongas”.1369
O Zambeze agregava povos nas duas margens que se relacionavam na base dos
interesses comerciais do ouro e do marfim, do sal e dos panos. O autor testemunha, tanto
a convivência dos cafres com gentes islamizadas, no litoral e nas ilhas de Angoche, como
o estabelecimento de relações comerciais dos povos da margem sul com outros da
margem norte do Zambeze, revelando a fluidez de fronteiras económicas, sociais e
identitárias ao longo da rota fluvial.
Do ponto de vista político refere os “fumos” (mf’umus), que traduz como
“regedores”, correspondentes à dignidade de chefes que governavam a “mayor parte desta
Cafraria”. Ainda que as comunidades tivessem reis poderosos, a autoridade do mf’umu
era honrada e obedecida por todos.1370 Porém, a entidade maior que os senhoreava era
atribuída ao “Monomotapa, que hé como rey assi na odediencia que lhe têm como no
modo da sucessão, porque herda o filho mais velho.”1371 Esta observação sobre a sucessão
da realeza traduz a perspectiva etnocêntrica de Monclaro, que transfere para a entidade
política do Monomotapa o conceito de um modelo sucessório que lhe era familiar. Gai
Roufe, num artigo que nos convida a repensar as concepções sobre as entidades políticas
dominantes na margem sul do Zambeze, explicou que estas assentavam na ideologia local
do parentesco e que, tanto as relações entre os Estados, como a herança do título de

1368
IDEM, ibidem, p. 700.
1369
IDEM, ibidem, pp. 719-720.
1370
IDEM, ibidem, pp. 111-112.
1371
IDEM, ibidem, p. 712.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Mutapa se fazia de acordo com uma lógica local de sucessão ou herança posicional,
conceptualmente muito diversa de qualquer modelo europeu ocidental.1372
O Mutapa, enquanto titular de um poder real, era o soberano de um sistema
político que integrava várias entidades percepcionadas pelos europeus como “vassalos”,
sendo uns mais poderosos do que outros. A entidade política da Mocaranga assentava em
concepções de descendência comum e parentesco, no âmbito das quais se definiam
soberanias e subordinações, ritualmente consagradas e simbolizadas.1373
Seguindo a geografia da expedição, do litoral índico para o interior, através do
vale do Zambeze, Monclaro destacou as populações “macuas” da margem norte do rio. 1374
Descreve estes povos como “negros”, com as cabeças cheias de “barro almagrado”, “os
beiços todos furados com pedaços de calaim, cobre e estanho, metidos pellos buracos, e
com o grande peso sempre lhe caem os beiços e sempre se andão babando. Os dentes
trazem limados”.1375 Os pescadores macuas eram classificados como “muy bárbaros”, por
não terem culto, serem grandes feiticeiros, traidores e ladrões1376, vivendo em “casinhas
de palha muy pequenas”,1377 estabelecendo comércio com os portugueses, principalmente
marfim e âmbar e não tendo “nenhum modo nem forma de justiça”, nem reis, governando-
se por mf’umus.1378
Dos Tongas do médio Zambeze, descreve os “cornos nos cabelos por galantaria”,
uma “invenção estranha” que considera geral em toda a Cafraria.1379 Este traço físico-
cultural já os padres da primeira missão jesuíta haviam tentado eliminar entre as gentes
locais, pela sugestão de semelhança com os diabos, e veremos que também o missionário
dominicano Frei João dos Santos se intrigou com tal apresentação do corpo, que interpreta
de acordo com padrões simbólicos e imaginários da matriz cultural cristã.

1372
Gai ROUFE, “Local Perceptions of Political Entities along the Southern Bank of the Zambesi in the
16th and Early 17th Centuries”, in The International Journal of African Historical Studies, Vol. 49, No. 1,
2016, p. 63 e pp. 66-70. http://www.jstor.org/stable/44715442 (consultado em 28/08/ 2021)
1373
“Relação da viagem que fizeram os Padres da Companhia de Jesus com Francisco Barreto na
conquista do Monomotapa no Anno de 1569, feita pelo P.e Monclaro da mesma Companhia”, in Josef
WICKI e John GOMES, Documenta Indica, Vol. VIII, (…), p. 712.
1374
IDEM, ibidem, p. 704.
1375
IDEM, ibidem, p. 701.
1376
IDEM, ibidem.
1377
IDEM, ibidem, p. 702.
1378
IDEM, ibidem.
1379
IDEM, ibidem, p. 713.

363
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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Foram ainda registados costumes sociais, alguns observados e outros cujas


informações lhe chegaram através da oralidade, com destaque para aquilo que já se havia
consolidado como estereótipo, nomeadamente os casamentos e a poligamia dos reis. No
que se refere às tradições do casamento, recolhe a informação de que o costume da lobola
teria como bens de compensação, entregues pela família do noivo à família da noiva, não
o gado, devido à infestação do vale pela mosca tsé-tsé, mas os panos, que constituíam um
importante bem de troca ao longo do eixo mercantil do Zambeze.1380 Salientou a
dimensão de poder e riqueza social associada ao casamento poligâmico, referindo que o
Mutapa, enquanto soberano, teria mais de três mil mulheres, incluídas as da corte e as de
uma “granja”, que cultivavam a terra.1381
O poder do Mutapa é medido em territórios, reis e chefes que lhe pagam tributo.
Monclaro refere os “vassalos” do Mutapa que considera mais poderosos: o mf’umu
Pango, o rei de Butua, o rei de Manica e os Mongazes 1382, entre os quais alguns eram
descritos como “belicosos” e “rebeldes”.
Os povos referidos como Mongazes correspondiam a formações políticas e sociais
com características não centralizadas, organizando-se em aldeias chefiadas por “fumos”
(mf’umu), mas algumas entidades políticas teriam uma dimensão maior que justificava a
designação portuguesa de “reinos”. Habitavam territórios entre Sena e Tete, em ambas as
margens do rio, e são descritos como muito “temidos e cruéis”.1383 A insistência no
carácter temível destes povos resulta, não apenas da caracterização do contexto de guerra
a que este religioso assistiu, mas também das informações prestadas por alguns africanos
“da banda do Bororo defronte das terras do Mongaz”, que lhes serviram de guias e que
percepcionavam os Mongazes como perigosos e ameaçadores:1384
“(…) os negros do Chombé, que vinhão em nossa companhia, quando virão tantos
mongazes juntos, como estavão acostumados em suas terras aver medo de hum só, muitos
deles se puseram em parte donde podessem fugir quando vissem os nossos ficarem
vencidos”.1385

1380
IDEM, ibidem, pp. 714-715.
1381
IDEM, ibidem, p. 714.
1382
IDEM, ibidem, p. 712.
1383
IDEM, ibidem, pp. 723-724.
1384
Monclaro refere que o chefe Chombee, vizinho das terras do Mongaz, veio ao encontro de Francisco
Barreto, cedendo-lhe “200 cafres pera levarem o fatto e guiarem pella terra dentro”. IDEM, ibidem, p. 725.
1385
IDEM, ibidem, pp. 726-727.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

A caracterização coletiva destes povos parece traduzir a ideologia local acerca de


grupos intrusos, representados como predadores que ameaçavam vidas, ocupavam e
pilhavam territórios e interferiam com o trato.
Considerando a reinterpretação que Mallin Newitt fez da tese de Alpers acerca
dos povos Maraves e sua migração para sul do Zambeze, é possível que os grupos
designados de Mongazes correspondessem a formações Maraves, cujos processos
migratórios para o vale do Zambeze ocorreram durante o século XVI. 1386 Newitt
considera que os Mongazes seriam o povo seguidor do chefe Mongazi, que alcançou a
Zambézia cerca de 1550 e se fixou na área das montanhas de Lupata.1387 A perceção local
sobre a violência destes povos decorre da sua exogenia e do impacto que a recente
chegada da primeira vaga de migrantes Maraves provocou localmente.1388
Dos chefes Mongazes, o padre Monclaro diz serem “homens de guerra”, sem
justiça e carentes do conhecimento de Deus, quase sempre inquietos entre si, a quem
Francisco Barreto mandou assaltar e queimar algumas aldeias como vingança dos
prejuízos e mortes causados a portugueses que ali se dedicavam ao comércio. 1389 A visão
tenebrosa acerca dos Mongazes é reforçada por convicções dos próprios africanos que
acompanhavam o exército português segundo os quais, o “exercito da Cafraria” (Mongaz)
trazia
“hum feiticeiro que pellos feitiços que trazia em hum cabaço, que eu despois vi, lhes tinha
metido em cabeça que nos havia de entregar a todos, e que os nossos nafutes, que são os
arcabuzes, não avião de aproveitar nada.” 1390

A conceção de que a vitória ou a derrota, a vida ou a morte eram determinadas por


manipulações e feitiços chegou a Monclaro através de africanos, que desta forma

1386
Malyn NEWITT, “The Early History of the Maravi”, in The Journal of African History, Vol. 23, No. 2
(1982), pp. 148-149 e 156-157.
1387
IDEM, ibidem, p. 157.
1388
Sendo os Maraves povos que chegaram ao vale do Zambeze a partir do norte da fronteira fluvial, não
dispomos de documentação direta que nos permita avançar na especificidade tanto do espaço, quanto das
razões impulsionadoras das diversas vagas migratórias. Alpers considerou que estes povos seriam oriundos
da Bacia do Congo e que se haviam fixado a sul do Zambeze desde o século XIV, asserção que Newitt
procura relativizar baseando-se na ausência de confirmação documental. Veja-se Malyn NEWITT, “The
Early History of the Maravi”, (…), p. 145.
1389
“Relação da viagem que fizeram os Padres da Companhia de Jesus com Francisco Barreto na conquista
do Monomotapa no Anno de 1569, feita pelo P.e Monclaro da mesma Companhia”, op. cit., ps. 712 e 724.
1390
IDEM, ibidem, pp. 728-729.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

entendiam e interpretavam os “outros”. E os “outros” aqui são tanto aos Mongazes, como
o próprio exército português que, com o fogo e o fumo dos arcabuzes transformara o dia
em noite, tendo derrotado tão temível “exército da Cafraria”.1391
O registo das observações e do testemunho vivencial do Padre Monclaro, a que se
acrescentam as informações aduzidas pelos informantes africanos, vão contribuindo para
uma redução da imagem mítica do império africano do Monomotapa. Ao destacar os
Mongazes como povos guerreiros, muito temidos nas duas bandas do rio Zambeze, o
autor mostra que o Monomotapa não correspondia a um Império ou a um estado unitário
à maneira europeia, ocupando a maior parte do sudeste africano, como alguns mapas
conjecturavam. Emergia a imagem do Monomotapa como uma confederação de Estados,
sendo que nas margens do Zambeze, povos e poderes vindos de fora aspiravam à
conquista territorial e ameaçavam os próprios Estados Carangas, criando instabilidade no
comércio fluvial dos panos, dos metais preciosos e do marfim.
A descrição do confronto entre o exército português, simbolizado pelo crucifixo
arvorado, e o exército Mongaz, do chefe Capote, contabilizado em dez ou doze mil
guerreiros de arcos e flechas, deslocando-se em formação de meia lua, constrói uma
imagem quase gráfica de triunfo de um exército europeu cristão contra um exército
africano.1392 Ainda que as forças africanas tenham coberto o ar com flechas, os arcabuzes
portugueses varejaram e mataram grande número de homens, como se fossem
“cardumes”.1393 O léxico empregue por Monclaro para descrever o opositor militar
africano, ao recorrer a metáforas zoomórficas, reforça as dicotomias cristão versus cafre,
no âmbito de um quadro mental e conceptual em que cada uma das categorias ocupava
distintas posições numa suposta escala dos povos humanos.
A investida militar de Francisco Barreto saldava-se na queima de muitas aldeias
dos Mongazes1394, deixando uma marca de “terror e espanto à gente da terra” e
funcionando até como um bloqueio à expansão de chefaturas Maraves, no sentido do
planalto Caranga.1395 O embaixador que Francisco Barreto enviou para o Monomotapa,
com presentes e a proposta de paz, amizade e negócios, tardou com a resposta, pelo que

1391
IDEM, ibidem, p. 729.
1392
IDEM, ibidem, p. 727.
1393
IDEM, ibidem, p. 726.
1394
IDEM, ibidem, p. 733.
1395
IDEM, ibidem, p. 722.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

a companhia militar de Barreto avançou ao longo do rio, até chegar aos domínios dos
Mongazes.1396 Face à derrota militar do exército mongaz, o Monomotapa respondeu com
o envio da sua embaixada “para ser amigo d’El-Rey de Portugal”.1397
Para Monclaro, a resposta do Monomotapa, que colocava Barreto na posição de
aliado e um dos seus homens, resultava da fama que se espalhou devido à “destruição dos
mongazes” e, na perspetiva portuguesa, mostra congregar interesses comuns,
nomeadamente o de limpar estes “espinhos” e desimpedir “o caminho” para o trato e para
as minas.1398
Francisco Barreto respondeu com o envio de outra embaixada portuguesa que
levou ao Mutapa “hum bom presente de roupa”, tendo recebido “do cafre oito manilhas
de ouro de fio e muy delgado (…), honra que ele não faz a ninguém e que reserva somente
para si. Isto segundo alguns dezião”.1399
Para selar o acordo diplomático com o Mutapa, através da embaixada que lhe foi
enviada, Francisco Barreto apresenta as três condições que levava por regimento:
expulsão dos mouros daquelas terras; o necessário acolhimento dos Padres para a
expansão da fé católica; a entrega aos portugueses de minas de ouro.1400
Entretanto, Francisco Barreto retorna a Moçambique para se abastecer de fato e
outros bens essenciais para o arraial e pagamento dos soldados. Designa Vasco Fernandes
Homem como mestre de campo, responsável pelos 450 homens da companhia, que
permaneceram perto de Sena. No regresso, soube Monclaro que grande parte dos homens
do arraial tinham morrido ou estavam doentes com febres. Centenas de homens morriam
de paludismo e privação de mantimentos, “por estar a terra muy inficionada e os ares
corruptos”1401, não tendo faltado a acusação de que muitas mortes eram causadas por
peçonha lançada pelos mouros nos pastos e nas águas. 1402 O próprio Francisco Barreto
fora vítima mortal de uma febre que Monclaro designa de “mordexim” e que, segundo
Dalgado, seria provavelmente colera morbus.1403 A verdade é que, como afirma
Mudenge, a entrada do exército português no Zambeze durante a estação seca constituiu

1396
IDEM, ibidem, pp. 722-723.
1397
IDEM, ibidem, p. 732.
1398
IDEM, ibidem, pp. 732-733.
1399
IDEM, ibidem, p. 733.
1400
IDEM, ibidem, p. 732.
1401
IDEM, ibidem, p. 735.
1402
IDEM, ibidem, pp. 707-708.
1403
IDEM, ibidem, p. 736. Atente-se na nota 176 do documento.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

um erro militar, pois conduziu à falta de água e provisões, além de que a malária
contribuiu para dizimar elevado número de homens e cavalos. 1404
Dos 700 arcabuzeiros e muitos outros militares portugueses que desembarcaram
em Sena, no início desta expedição, no final apenas restavam 180 homens vivos e esses
estavam doentes.
Desta expedição resultou um saldo negativo em termos humanos, mas uma
segunda embaixada enviada pelo Mutapa respondia às condições anteriormente
solicitadas pelos portugueses: os mercadores mouros seriam expulsos; as questões da fé
e da instalação de padres católicos seriam combinadas com os portugueses; e uma grande
quantidade de minas seria entregue aos portugueses, incluindo minas de prata. 1405 Estas
eram as condições para “ter paz e amizade com suas molheres (que assi nos chamão, não
por desprezo, mas por honra e mostras de amor)”.1406 Segundo Eugénia Rodrigues, a
denominação “mulheres” tinha para os Caranga um significado político associado à
dependência, não traduzindo necessariamente um género ou um laço matrimonial. A
denominação “aplicava-se também a chefes que administravam territórios, com os quais
o mutapa estabelecia pactos, assim como aos seus aliados estrangeiros, como era o caso
dos portugueses”.1407 Gai Roufe, que analisou nos textos portugueses os ecos das
conceptualizações locais sobre o poder político, explica que o conceito de “casamento”
corresponde, na linguagem vernacular, a uma posição ou categoria política honrosa.1408
O estabelecimento de uma aliança entre o Mutapa Ngomo Mpunzagutu e os
portugueses, na sequência da derrota que estes infligiram aos Mongazes, marcou uma
viragem quanto à presença portuguesa no vale do Zambeze. Foram instituídas as
capitanias-mores de Sena e Tete, que ficaram na dependência administrativa do capitão

1404
S.I.G. MUDENGE, op. cit., ps. 208 e 216.
1405
“Relação da viagem que fizeram os Padres da Companhia de Jesus com Francisco Barreto na conquista
do Monomotapa no Anno de 1569, feita pelo P.e Monclaro da mesma Companhia”, op. cit., p. 738.
1406
IDEM, ibidem.
1407
Eugénia RODRIGUES, “Rainhas, princesas e donas. Formas de poder político das mulheres na África
Oriental nos séculos XVI e XVIII”, in Cadernos Pagu, Dossiê História das Mulheres, Gênero e Identidades
Femininas na África Meridional, (UNICAMP, Campinas), vol. 49, 2017, p. 8.
http://dx.doi.org/10.1590/18094449201700490002
1408
Gai ROUFE e Joseph C. MILLER, “African Voices Echoing in European Texts: The Muffled Meanings
of the Madzimbabwe of the Mocaranga between the Sixteenth and the Nineteenth Centuries, (…), pp. 24-
26.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

de Moçambique e Sofala. Estas novas capitanias tinham como referência material os


fortes com igreja e recebiam tributos de alguns chefes africanos locais.1409
Outra das consequências da expedição militar de Barreto e Homem e da
embaixada enviada ao Monomotapa consistiu na eliminação dos mercadores muçulmanos
de Sena como forma de corresponder aos pedidos feitos em nome do rei de Portugal ao
Ngomo, compromisso que Monclaro atesta ter sido cumprido – “lançar os mouros fora,
como fez”.1410 Deste modo, segundo Eugénia Rodrigues, o comércio dinamizado em
Angoche ficava privado dos seus principais agentes no sertão, causando o “progressivo
declínio deste porto” e aumentando, em simultâneo, a importância dos portugueses como
intermediários entre os mercados do Índico e os Estados do Planalto, pela via do
Zambeze.1411 O pagamento trienal pelo capitão de Moçambique ao Senhor de Mutapa dos
“costumes” chamados “kuruva” assegurava aos mercadores portugueses o direito de
circular livremente naqueles territórios. Os portugueses passavam a ser um grupo
integrante da Mocaranga, na base da ideologia do parentesco.1412 Em breve, um número
crescente de portugueses dirigia-se às feiras do Planalto e muitos fixavam-se próximo dos
fortes em povoados que estiveram na origem de comunidades luso-africanas.
A Determinação dos letrados (1569) e o relato do jesuíta Francisco de Monclaro
(1575), sobre a expedição de Barreto-Homem, constituem documentos de referência no
processo de construção de uma determinada imagem da África do Sudeste. O primeiro
documento justifica e legitima doutrinariamente a investida militar e conquista territorial
do Monomotapa; o segundo relata as vicissitudes da expedição militar (1569-1573),
integrando no seu discurso informações recolhidas localmente acerca dos povos nativos
e dos migrantes e respetivos poderes. Na justificação dos letrados pesa uma intenção
justiceira, advogada pela Companhia de Jesus: o direito do rei de Portugal mandar punir
as injúrias causadas a vassalos da coroa portuguesa, com destaque para a morte do padre
Gonçalo da Silveira, que era atribuída aos “mouros” residentes no Monomotapa. Para
além das justificações apontadas, a determinação dos letrados constituía-se também como
uma armadura jurídica para a tentativa de controle do comércio do ouro. Essa ambição

1409
Eugénia RODRIGUES, op. cit., pp. 99-100.
1410
“Relação da viagem que fizeram os Padres da Companhia de Jesus com Francisco Barreto na conquista
do Monomotapa no Anno de 1569, feita pelo P.e Monclaro da mesma Companhia”, op. cit., p. 738.
1411
Eugénia RODRIGUES, op. cit., p. 100.
1412
Gai ROUFE, “Local Perceptions of Political Entities along the Southern Bank of the Zambesi in the
16th and Early 17th Centuries”, (…), p. 73.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

tornava necessária a legitimação do uso da força. Note-se que na armada embarcaram


“muitos criados d’El-Rey” e, para além dos soldados “muy exercitados”, vinha a”milhor
gente e mais luzida que sahio pella barra de Lixboa fora”, “muitos mancebos fidalgos de
muita qualidade”, investidos do sentimento de conquista e verificação das condições da
aplicação dos princípios da “guerra justa”.1413
O confronto ideológico motivado pela presença de comunidades muçulmanas está
patente em cada momento desta expedição e nos juízos do seu cronista. Ainda que o
número de mercadores muçulmanos tenha vindo a diminuir no estado do Mutapa, afirma
Monclaro que continuavam a assombrar os litorais, misturando-se com as gentes locais.
As gentes locais eram categorizadas como cafres, independentemente da diversidade das
suas raízes e movimentações históricas, das formas de organização política e traços
linguístico-culturais.
Cafres e Cafraria figuram no discurso como categorias generalizadoras,
integrando em si uma variedade de estereótipos que, forjados ao longo de múltiplas
experiências dialógicas e discursivas, transformavam as realidades descritas em
realidades antropológicas e geográficas elaboradas e recriadas.
Entre a primeira e a segunda missão jesuíta na Cafraria, cristaliza-se nas
estruturas de pensamento, como um sistema de referências e categorias de representação
do mundo, uma concepção dos cafres como povos gentios, governados pelas superstições
e em risco de se perderem pela proximidade e mistura com populações muçulmanas.
Quanto ao modo de viver, a designação de cafre remete para os estereótipos da “barbárie”,
expressos na organização dos espaços, nas instituições sociais e na guerra, mas que
também se transfiguram nas evidências corporais que, à negritude congénita, acrescentam
dados culturais e rituais incompreensíveis aos missionários. Das terras habitadas pelos
cafres, afirmou-se a imagem de que seriam paradoxalmente belas e doentias, ricas e
mortíferas e insuficientemente aproveitadas na óptica dos missionários.
As textualidades subsequentes, nomeadamente as produzidas no âmbito da
Companhia de Jesus, serão responsáveis por transmitir e multiplicar esta representação
categorizada dos povos e territórios do sudeste africano.

“Relação da viagem que fizeram os Padres da Companhia de Jesus com Francisco Barreto na conquista
1413

do Monomotapa no Anno de 1569, feita pelo P.e Monclaro da mesma Companhia”, op. cit., pp. 686-687.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Em 1614, com a publicação da tradução castelhana da obra latina de Nicolau


Godinho, feita pelo jesuíta Bernardo de Cienfuegos, divulga-se a imagem de Gonçalo da
Silveira como um santo e proto-mártir cristão na África Austral, consolidando os
estereótipos negativos associados às categorias de cafre, tais como: o oponente negro;
bárbaro; boçal; rude; descrente e supersticioso; com costumes semelhantes a “brutos
animales”.1414 No entanto, o autor deixa a ressalva de que muitos portugueses que andam
“en aquellas partes de la Cafraria”, homens experientes e prudentes “no tenen a los Cafres
por tan bárbaros, y incultos”, considerando que se fossem instruídos em bons costumes,
se tornariam mais brandos e dóceis.1415
Os perigos e a aspereza destas terras dos confins coexistiam com a abundância de
ouro e outras riquezas, associadas ao poder do Mutapa, entendido como cidade, “cabeça
y Corte” de um grande império, cuja localização a oriente do continente africano não
havia sido revelada aos Antigos.1416 No coração do Império estariam as míticas minas de
ouro da rainha de Sabá, sendo que o metal precioso não apenas botava da terra, mas
também dos troncos das árvores, dizendo “que se criavan del humor que les cae de los
ramos y hojas”.1417
Entre os escritores que não percorreram a Cafraria, que traduziram obras ou
coligiram e sintetizaram informações de segunda mão contendo juízos de valor, os
estereótipos amplificaram-se em discursos mitificados, como é o caso deste texto de
Nicolau Godinho, traduzido por Cienfuegos. Por seu turno, os percursos vividos nas terras
de entre o Índico, o Vale do Zambeze e o Planalto conduziriam a escritas mais sustentadas
na observação e na recolha de informação histórica complexa.
Se a campanha militar de Barreto-Homem conduziu os jesuítas a perderem a
esperança nos frutos espirituais da evangelização, considerando, que além da rudeza das
gentes, a terra era muito doentia, verificamos que outras congregações religiosas, como a
Ordem dos Pregadores, haviam de aí prosseguir projectos de missionação.
Os Jesuítas, porém, haviam de voltar à Cafraria em 1610, com D. Estêvão de
Ataíde, para uma “terceira missão”.

1414
Bernardo de CIENFUEGOS, op. cit., pp. 42 vo-43.
1415
IDEM, ibidem, p. 43.
1416
IDEM, ibidem, pp. 58 vo-59 e p. 61 vo.
1417
IDEM, ibidem, p. 61 vo.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

4. No dealbar do século XVII: Frei João dos Santos e a dimensão lata da Cafraria

Em 1577, por determinação do vice-rei e governador da Índia D. Luís de Ataíde,


dois religiosos dominicanos, Jerónimo do Couto e Pedro Usus Maris, que desejavam
passar à ilha de Madagáscar para evangelizar, foram aconselhados a suspender essa
jornada a fim de instituírem a primeira Casa-convento na ilha de Moçambique.1418
Segundo Frei Luís de Sousa, o objetivo desta Casa seria a de proporcionar remédio e cura
a muitos religiosos em viagem rumo à Índia, mas também “alumiar aquelles pobres cafres,
tão escuros nas Almas, como nas carnes”, sendo esta expressão a evidência de um
entendimento dos missionários sobre os africanos, que concebia uma articulação
indissociável entre o corpo e as crenças.1419
A nova Casa-convento, que tinha como padroeira Nossa Senhora do Rosário,
representava a “fronteira com a Cafraria”, firmando-se aí a base de onde partiam os
religiosos Pregadores a missionar na terra firme.1420 De acordo com Philippe Denis, pouco
se sabe sobre os primeiros anos da missão dominicana no sudeste africano, mas uma carta
do vigário-geral para o rei de Portugal, do ano 1698, refere que a missão do Zambeze
começou em 1578, ou seja, quase imediatamente após a instalação na Ilha de
Moçambique.1421

4.1. Frei João dos Santos na África do Sudeste

Filho de Bartolomeu Fernandes e de Beatriz Ferreira, o missionário dominicano


Frei João dos Santos nasceu em Évora, em data que se desconhece, tendo professado na
Ordem de S. Domingos em 5 de novembro de 1584.1422 Dois anos depois, chegou à Ilha
de Moçambique, para uma missão na África Oriental que durou onze anos.

1418
Frei Luis de SOUSA, Parte III. Da Historia de S. Domingos, particular do Reyno, e conquistas de
Portugal, Lisboa, na Officina de Antonio Rodriogues Galhardo, 1767, pp. 363-364.
1419
IDEM, ibidem, p. 363.
1420
IDEM, ibidem, p. 364.
1421
Philippe DENIS, The Dominican Friars in Southern Africa. A Social History (1577-1990), Leiden,
Brill, 1998, p. 7. https://books.google.pt/books?id=M3UV2oZFZcIC&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false (Consultado em 12/01/2019)
1422
Frei António do ROSÁRIO, Dominicanos em Portugal. Repertório do Século XVI, Porto, Arquivo
Histórico Dominicano Português, 1991, p. 45.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Em 22 de Agosto de 1597 deixou Moçambique e cruzou o Índico até Goa, para


regressar a Portugal em 1600. Nove anos depois saía da tipografia do Convento de S.
Domingos, em Évora, a sua narrativa compósita sobre a ação dos Pregadores no sudeste
africano, com o título Ethiopia Oriental, e varia historia de cousas notáveis do Oriente,
obra composta por 526 páginas e dividida em duas partes.1423
Em 1610 regressaria a Moçambique, tendo permanecido nos rios de Cuama até
1616. Nos locais das feiras da Mocaranga onde os portugueses erigiram fortes, os
religiosos de S. Domingos construíram igrejas, como a de Santa Catarina de Sena e
Santiago de Tete, administrando também outras igrejas em Luanze, Massapa e
Manica.1424
Frei João dos Santos encontrava-se em Sena quando lhe chegou uma carta de Diogo
Simões Madeira com o pedido de socorro espiritual, a soldados e mais gente que se
encontrava no forte de S. Miguel da Chicova. Refere António Bocarro que o missionário
atendeu a este pedido e chegou ao forte no final de janeiro de 1616.1425
Diogo Barbosa Machado menciona duas outras obras da autoria do frade
dominicano, intituladas Commentarios dos Rios de Cuama e Relaçaõ do descubrimento
das Minas de Chicova, integrando matérias que teriam resultado das suas vivências e
testemunhos desta segunda estadia no sudeste africano.1426 Tais obras, hoje perdidas,
devem ter sido utilizadas por António Bocarro na Década XIII da História da Índia,1427
onde o cronista afirma textualmente ter tomado de Frei João dos Santos a informação
sobre o pedido que lhe foi feito para atender às gentes da guarnição de Chicova, em

1423
Publicação online da edição de 1609: https://openlibrary.org/books/OL15104369M/Ethiopia_oriental
Houve mais três edições portuguesas desta obra de Frei João dos SANTOS: Ethiopia Oriental, 2 vols.,
Bibliotheca dos Clássicos Portuguezes, Lisboa, Mello d'Azevedo editor, 1891. http://purl.pt/26732
(Consultado em 6/01/2019). Etiópia Oriental, Luís de ALBUQUERQUE (Dir.), 2 vols., Lisboa, Edições
Alfa, 1989. Etiópia Oriental e vária História de cousas notáveis do Oriente, com introdução de Manuel
LOBATO, notas de Manuel LOBATO e Eduardo MEDEIROS e fixação do texto por Maria do Carmo
Guerreiro VIEIRA, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses,
1999. É esta a edição que citaremos nas páginas que se seguem.
1424
Frei Luis de SOUSA, op. cit., pp. 366-367.
1425
António BOCARRO, Decada 13 da Historia da India, Tomo II, Lisboa, Academia Real das Sciencias
de Lisboa, 1876, pp. 603-604. http://purl.pt/26126/4/ (Consultado em 15/06/2028)
1426
Diogo Barbosa MACHADO, Bibliotheca Lusitana, Histórica, Critica, e Chronologica, na qual se
comprehende a Noticia dos Authores Portuguezes, e das Obras, que compozeraõ desde o tempo da
promulgação da Ley da Graça até o tempo prezente, Tomo IV, Lisboa, Na Officina Patriarcal de Francisco
Luiz Ameno, 1759, p. 659. https: //archive.org/details/bibliothecalusit04barbuoft/page/659 (Consultado
em 12/12/2019)
1427
António BOCARRO, op. cit., Capítulo CXLVI.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

1616.1428 A posição de Bocarro, como Guarda-mor da Torre do Tombo do Estado da


Índia, ter-lhe ia dado acesso aos referidos documentos, pois o detalhe narrativo das
vicissitudes da conquista das minas de prata da Chicova e das relações dos portugueses
com as autoridades africanas, implica a utilização de registos e testemunhos de quem
esteve no terreno, como foi o caso do frade dominicano.

Mapa 5 - Alguns espaços de circulação de Frei João dos Santos na África do Sudeste
(mapa extraído de Eugénia RODRIGUES, 2013, p. 999)

Sofala, Quelimane, Sena, Tete e Moçambique, alguns dos espaços de


circulação e evangelização de Frei João dos Santos.

1428
IDEM, ibidem, p. 603.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

O percurso missionário de Frei João dos Santos, no sudeste africano, começou e


terminou na ilha de Moçambique, onde os religiosos Dominicanos tinham uma Casa-
convento desde 1577. Daqui rumou para Sofala, onde permaneceu quatro anos (1586-
1590), com o Padre João Madeira.
Da sua ação em Sofala, refere ter baptizado seiscentas e noventa e quatro almas e
o padre João Madeira, mais de mil, além de ter reparado as igrejas que lhe pareceram
mais “misquitas de mouros mal consertadas que igrejas de cristãos” e ter construído duas
novas ermidas.1429 A sua posição como padre, em Sofala, possibilitou-lhe descrever o
reino de Teve, nas terras sertanejas de Sofala, que designou de Quiteve por referência ao
soberano Sachiteve.1430
Em 1590, por determinação do Vigário-geral dos Dominicanos na Índia, os Padres
João dos Santos e João Madeira regressaram à Ilha de Moçambique para, a partir daí,
serem guiados até ao Zambeze, através de territórios associados ao poder exercido por
dinastias Mutapas, que os portugueses designavam de Império de Monomotapa.1431
Durante um ano, os religiosos evangelizam nos “Rios de Cuama”, ficando o Padre
João Madeira, em Sena, e João dos Santos, no forte de Santiago de Tete, batizando nas
igrejas dos fortes e nos lugares vizinhos, tanto os “filhos dos cristãos, como dos gentios
da terra” seus escravos e também muitos chefes de aldeias. 1432 Frei João dos Santos
fornece quantitativos dos baptismos. Nos rios de Cuama, que considerou ser “o coração
da Cafraria”, consultou os “livros velhos” e “novos” de registos e contabilizou mais de
20.000 almas baptizadas, entre gentios e mouros, desde que os primeiros missionários
dominicanos entraram naqueles rios até ao ano de 1591.1433
Depois de um ano nos fortes da Zambézia, regressou à Ilha de Moçambique, para
então se dirigir para o norte, através dos litorais associados a povos conhecidos por
Macuas, até chegar às ilhas Quirimbas, frente ao Cabo Delgado. Refere que nestas ilhas
os Dominicanos tinham já batizado mais de 16.000 “mouros baços e gentios cafres”, até
ao ano 1593.1434

1429
Frei João dos SANTOS, op. cit., p. 556.
1430
IDEM, ibidem, pp. 87-88 e ps.175 e 557.
1431
IDEM, ibidem, pp. 557-558.
1432
IDEM, ibidem, p. 568.
1433
IDEM, ibidem, p. 568.
1434
IDEM, ibidem, pp. 335-336 e p. 580.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Podemos supor existir algum exagero nos números de batizados que apresenta, o
que decorre da natureza apologética da sua obra.1435 No entanto, podemos supor que estes
baptismos tenham ocorrido sob a forma de rituais coletivos, que as populações locais
aceitavam, integrando os novos símbolos cristãos nas suas cosmologias.
A itinerância que marcou a missão de Frei João dos Santos na África do Sudeste
resultava da necessidade de padres e irmãos para administrarem os sacramentos aos civis
e militares portugueses, em serviço nas fortalezas de Sofala e Moçambique e nos postos
fortificados de Sena, Tete e Quelimane, bem como nas comunidades luso-africanas
dispersas por aqueles Rios de Cuama, onde o número de escravos baptizados seria
significativo. Colocava-se também o grande desafio da evangelização dos gentios da
terra, pois era considerado elevado o risco de contágio com o Islão, tão presente na costa,
como nos sertões.

4.2. Imagens e representações da Cafraria na “Etiópia Oriental”

Ethiopia Oriental é título de obra escrita, mas também se constitui como categoria
geográfica de abrangência quase continental, tendo início no Cabo da Boa Esperança,
prolongando-se pelos litorais do Índico e seus sertões, até terminar nas fronteiras da
Abissínia. Nesta categoria extensa, mobilizadora da definição clássica de Aethiopia,
ficava a Cafraria.
No texto de Frei João dos Santos, como em outros da mesma época versando
sociedades extra-europeias e não cristãs, a construção do discurso fazia-se recorrendo a
categorias de base religiosa que estruturavam o pensamento. As categorias de cristão,
gentio, idólatra e mouro permitiam uma leitura imediata das comunidades e indivíduos
no plano espiritual. Enquanto os gentios eram vistos como pecadores por desconhecerem
a Lei de Deus, estando abertos à conversão, a condição espiritual dos mouros e dos
adoradores de ídolos era afectada pela recusa deliberada do Evangelho e pelos desvios
diabólicos que concediam a criaturas a honra devida ao Criador.1436

1435
IDEM, ibidem, p. 568.
1436
Joan-Pau RUBIÉS, “Theology, Ethnography, and the Historicization of Idolatry”, in Journal of the
History of Ideas, Volume 67, Number 4, October 2006, p. 582.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

A designação de cafre enquadrava-se na categoria de gentio, pois na sua acepção


inicial, o cafre era aquele que vivia na ignorância, tanto do Islão, como da Fé Cristã.
O discurso que este missionário desenvolve sobre a Cafraria é um repositório de
perspectivas e modos de ver o mundo, que têm, na sua centralidade, o paradigma católico
acerca do encontro com povos não cristãos. A constatação da diferença e da
descontinuidade humana conduziu historicamente a uma construção cultural do “outro”
como o radicalmente distinto, não existindo na época outros termos classificatórios senão
os de “bárbaro”, “bestial” e “selvagem”. A categoria de cafre partilhava os mesmos
atributos e campos semânticos de tais termos classificatórios, os quais definiam a
dissemelhança antropológica e cultural, numa perspectiva de inferioridade. Apesar de ser
esta a tónica dominante, encontramos também muitos paralelismos entre as práticas locais
e as de outras partes do mundo e até de Portugal.
Mas o discurso da Etiópia Oriental contém em si também um repositório de
ideologias africanas, pois o frade viveu nas comunidades onde evangelizou.
Na área de Sofala, no vale do Zambeze ou nas Ilhas Quirimbas, viviam
portugueses, muitos deles mercadores, casados com mulheres da terra, em comunidades
que eram povoados afro-portugueses, sendo que os seus moradores praticavam tanto o
catolicismo, como seguiam as práticas religiosas locais. Nestas comunidades
multiculturais e mestiças, João dos Santos dizia missa, ouvia as confissões, administrava
os sacramentos e baptizava. Estabeleceu contactos regulares com muitos africanos de
numerosas comunidades e é provável que tenha adquirido algum conhecimento básico
das línguas locais, pois além de vocábulos específicos,1437 refere a propósito dos povos
do planalto, que falavam “a linguagem mocaranga, a qual é a melhor, e a mais polida de
todas as línguas de cafres que tenho visto nesta Etiópia”, sendo que na corte do Mutapa
“se fala o mocaranga mais polidamente”. 1438 O hipotético conhecimento básico das
línguas locais para poder concretizar a obra da evangelização, não descartava a

1437
Refira-se, a título de exemplo, alguns vocábulos registados pelo missionário: encosse ou fumo (capitão
de lugar), empófias (administração da justiça na circunscrição da aldeia) cacizes (padres), chuni (óleo de
gergelim), mungodao e matuvi (paus moído para efeitos medicinais), mocate (bolinhos de arroz e milho),
pombe (vinho feito de milho), lucasse, (tipo de juramentos e morte ritual por ingestão de peçonha), xoca
(juramento com ferro em brasa), calão (juramento da panela de água quente) pemberar (correr como quem
peleja numa batalha), lupangas (espadas de ferro), muzungos (senhores), Molungo (Deus), Musuca (Diabo).
1438
Frei João dos SANTOS, op. cit., p. 222.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

necessidade de recorrer aos línguas ou intérpretes.1439 Além do mais, João dos Santos era
movido por uma intensa curiosidade histórica e naturalista que o levou a recolher junto
de informadores africanos notícias, histórias e tradições que cruzou com as suas
observações empíricas. Por esta razão, o discurso de Frei João dos Santos constituiu-se
como uma representação geográfica, naturalista, antropológico-política e religiosa, de um
vasto território no sudeste africano.
Acresce, ainda, um olhar que procura sistematizar as informações sobre os bens
de valor económico, que circulavam nos territórios teoricamente sob a jurisdição do
capitão de Moçambique. Assim, enumera as mercadorias que, ao ritmo das monções,
chegavam à capitania. Da Ilha do Inhaca e do rio de Lourenço Marques, do Cabo das
Correntes e rio de Inhambane, de Sofala, dos Rios de Cuama, das ilhas de Angoche e das
Quirimbas, do Cabo Delgado e, ainda, da ilha de S. Lourenço chegavam, de seis em seis
meses, pangaios repletos das mais variadas riquezas: ouro, marfim, escravos, dentes e
unhas de rinoceronte, aljôfar, pérolas, âmbar, mel, manteiga, arroz, panos e esteiras e, de
cada um daqueles portos, embarcavam sempre “grande cópia de escravos”.1440
Na sua representação da Cafraria, destacamos alguns níveis de observação directa
e indirecta, que passamos a considerar.

4.2.1. Natureza e paisagem

Tal como na generalidade dos discursos produzidos por religiosos, viajantes ou


sobreviventes de naufrágios, em cartas, descrições ou relatórios, o olhar sobre a paisagem,
a fauna, a flora, as características do clima e os aromas da terra, são tópicos obrigatórios
que enquadram as descrições etnográficas.
Na Cafraria, descrita por Frei João dos Santos, predominava uma natureza
selvagem, um espaço povoado mais por bichos e feras1441 do que por humanos. Nos
caminhos entre Sofala e o Zambeze, o autor destaca os “caminhos ásperos, e trabalhosos”,
as terras despovoadas de gente e os matos cobertos de arvoredos silvestres onde

1439
Eric ALLINA, “The Zimba, The Portuguese, and Other Cannibals in Late Sixteenth-century Southeast
Africa”, in The Journal of Southern African Studies, Vol. 37, No. 2, June 2011, p. 221.
https://doi.org/10.1080/03057070.2011.579433 (Consultado em 5/09/2018)
1440
Frei João dos SANTOS, op. cit., p. 299.
1441
IDEM, ibidem, p. 557.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

abundavam elefantes, tigres, onças, leões, búfalos e muitos outros animais temidos. 1442
Em todas estas terras da Cafraria criavam-se muitos cágados que as gentes locais comiam
assados e cozidos, como se fosse galinha.1443
Nos matos selvagens surgiam, de quando em quando, caminhos que conduziam a
clareiras de organização sociopolítica, os povoados, onde os animais domésticos e o
cultivo de legumes, inhames e cereais emprestavam laivos de humanização àquele mundo
bravio.
Sofala chega a surpreender pela sua similitude com o mundo rural de Portugal,
havendo aí muitas hortas com variadas hortaliças, árvores de fruto, com destaque para os
citrinos, ervas aromáticas que lhe eram familiares, como manjericão e jasmim, além de
muitas galinhas que ali se criavam e eram vendidas aos portugueses. A este nicho de
elementos similares, somava-se depois a grandeza exótica dos palmares de coqueiros,
canaviais de canas-de-açúcar, milho, arroz, inhame, batatas, feijões e abundância de
gergelim, o qual era moído para produção de um óleo a que as gentes locais chamavam
chuni.1444
O rio de Quelimane é descrito como “fermoso, e aprazível”, com um porto
abrigado, onde estão umas casas, um palmar e uma horta do português Francisco
Brochado, que fora capitão daqueles rios, e onde se refugiavam os portugueses e
cristãos.1445 O rio de Loranga também é considerado muito aprazível, com uma barra
muito boa e abundância de peixes e junto às povoações crescem os palmares e cultivam-
se os legumes.1446
Frente ao Cabo Delgado, que é assinalado a dez graus Sul da linha equinocial,
ficavam as ilhas Quirimbas, onde abundavam os palmares e as searas de milho.1447
Em diversas passagens textuais, o autor transfere para a natureza imagens do
inferno, as quais encontravam coerência, no âmbito de uma mentalidade que entendia o
sul da África, como um distante espaço do mundo ou uma parte da Criação onde
profundos desvios sociais e morais solicitavam a obra evangélica.

1442
IDEM, ibidem, p. 557.
1443
IDEM, ibidem, pp. 154-155.
1444
IDEM, ibidem, pp. 83-86.
1445
IDEM, ibidem, p. 240
1446
IDEM, ibidem, pp. 240-242.
1447
IDEM, ibidem, p. 335.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Os medos e as sombras que povoavam o pensamento cristão irrompiam em


situações de desarmonia limite, como nos casos de tempestades marítimas. Quando os
padres fizeram a viagem de Sofala para a Ilha de Moçambique foram surpreendidos por
uma tormenta que lhes causou fome e sede quase até à morte. Refere Frei João dos Santos
que se abrigaram no rio de Quizungo e não ousaram sair do pangaio com medo dos
invasores Zimbas. Ao fim de trinta e dois dias, quando soprou vento próspero, largaram
deste rio, que ficou simbolicamente recordado como “nosso purgatório”.1448 Na viagem
de retorno ao reino, outra grande tormenta acometeu a nau em que viajava, perto do Cabo
da Boa Esperança. Aí, os “mares andavam tão bravos que muitos julgaram andar neles
envoltas as fúrias infernais”.1449 No meio de uma tormenta que durou oito dias, muitos
marinheiros afirmaram que, entre as violentas ondas, andavam envoltos peixes muito
grandes e medonhos, certamente as baleias da costa do Cabo, tendo os homens do mar
concluído que “aquilo não eram peixes, senão Diabos, porque nunca tais peixes, nem de
tais figuras se viram no mar”.1450
Na natureza oceânica que envolvia a terra da Cafraria afrouxavam-se fronteiras e
encetavam-se caminhos para as profundezas do mundo inferior. O Cabo da Boa
Esperança simbolizava, há muito, um espaço de transição onde a força das correntes e
tempestades proporcionava aos viajantes europeus rumo à Ásia verdadeiras experiências
iniciáticas.

4.2.2. Das significações dos cafres

Ainda que no texto de Frei João dos Santos encontremos frequentemente a


designação de cafre como substantivo, o que no contexto do discurso pode significar
“nativo” ou “habitante local”, o autor esclarece, também com frequência, o perfil
somático e moral das populações.
A descrição de cada uma das populações da Cafraria começa com os seus traços
somáticos, com destaque para a cor da pele e o tipo de cabelo. Nas terras do Quiteve, os

1448
IDEM, ibidem, pp. 584-586.
1449
IDEM, ibidem, p. 657.
1450
IDEM, ibidem, p. 657.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

moradores são descritos como “gentios cafres, não muito pretos”1451; outros são “pretos
como azeviche, de cabelo crespo”.1452 Os homens faziam na cabeça uns penteados com o
cabelo torcido e uns paus delgados pelo meio, de modo que, segundo o frade, tal
“bizarria” se assemelhava a cornos.1453 Tal traço, que era tanto físico como cultural,
permitia o estabelecimento de analogias com os animais silvestres e teria mesmo afligido,
no passado, os jesuítas, que associaram o aspecto das cabeças masculinas às criaturas dos
infernos. 1454
Nas longas descrições acerca dos povos da Cafraria, o olhar detém-se na forma
como os corpos são cobertos, ou não. Se são cobertos, quais os materiais usados? Sendo
a cobertura com têxteis, importava saber se eram de produção local, como os panos de
machira, ou se seriam finas sedas que lhes chegavam através do comércio de longa
distância? Na ausência dos têxteis, cobriam-se com peles de animais ou com fibras
vegetais?1455 As respostas a estas questões permitiam estabelecer algumas diferenciações,
no que se convencionava entre a cristandade europeia serem os povos bárbaros do mundo.
Aqueles que andavam nus, ou se cobriam escassamente com peles de animais, eram
considerados silvestres e mais próximos da restante fauna, ao passo que as comunidades
em que existia o labor transformador da tecelagem de fibras ou a presença de sedas
provindas do comércio a longa distância, eram consideradas socialmente mais
“domésticas”.
Para Frei João dos Santos,
“(…) a nação dos cafres é a mais bárbara, e bruta que há no mundo, porque nem adoram
a Deus, nem têm ídolos a que adorem, nem imagens, nem templos, nem usam sacrifícios,
nem menos têm ministros dedicados ao culto divino, cousa que toda a nação de gente tem,
polo instinto natural que os move à religião, e culto sagrado.”1456

1451
IDEM, ibidem, p. 175.
1452
IDEM, ibidem, p. 111.
1453
IDEM, ibidem, pp. 111-112.
1454
Pela correspondência da missão Jesuíta de Inhambane (1560-1562), sabe-se que os padres pediram aos
superiores em Goa, que lhes fosse enviado um retábulo, contendo imagens de diabos com “muitos cornos”,
para uso pedagógico, que esperavam pudesse induzir modificações nos hábitos dos africanos baptizados,
cujos penteados evocavam a imagem do diabo.
1455
Frei João dos SANTOS, op. cit., pp. 111-112.
1456
IDEM, ibidem, p. 100.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Do ponto de vista espiritual, parece-nos que a categoria de cafre intersecta os


mesmos significados da categoria de gentio, a qual se construiu no plano teológico a partir
do referencial bíblico. De acordo com este referencial integrador, os gentios ou pagãos
desconheciam a Lei divina, vivendo no pecado da idolatria.1457 No âmbito de uma leitura
teológica do mundo, a gentilidade estava no âmago da natureza dos cafres que, apesar da
subjacente marca discriminatória, deixava um campo aberto às possibilidades de
conversão. Conceptualmente, a natureza gentílica dos povos denominados cafres
condicionava o seu estado moral, sendo globalmente considerados “priguiçosos, e amigos
do ócio, e dados a folgar, cantar, e bailar”.1458
A denominação dos povos da África do Sudeste complexifica-se com a expressão
combinada “cafres gentios”, que remete para uma relação incerta de significados que
ligam o paganismo, enquanto conceito de origem religiosa, à negritude, como
característica física. Giuseppe Marcocci, num artigo sobre negritude e paganismo no
mundo português, entre 1450 e 1600, analisa até que ponto o encontro das duas categorias
conduziu a processos de exclusão e subjugação e considera estarmos perante uma
taxonomia embrionária, assente nas distinções dos traços culturais e físicos das
populações nativas.1459
A “gentilidade cafre” suscitava problemas decorrentes do convívio muito próximo
com os inimigos da Fé cristã, os mouros, de quem muitas vezes se tornava difícil a
distinção, por andarem “misturados com eles, e vivem nas suas terras, e são quasi como
cafres, assi na cor negra, como nos costumes, e conversação”.1460 Na margem do rio
Quelimane, o frade regista uma pequena povoação habitada “de cafres gentios, e mouros
pobres”1461 e, ao longo do litoral índico, os marinheiros de navetas, pangaios e almadias
eram referenciados como sendo todos “mouros, os mais deles pretos, bárbaros”1462.

1457
José da Silva HORTA, “A categoria de Gentio em Diogo de Sá: funções e nível de significação”, (…),
pp. 148-149.
1458
Frei João dos SANTOS, op. cit., p. 113.
1459
Giuseppe MARCOCCI, “Blackness and Heathenism. Color, Theology, and Race in the Portuguese
World, c. 1450-1600”, in Anuario Colombiano de Historia Social y de la Cultura, 43.2, pp. 33-57.
https://www.researchgate.net/publication/309581841_Blackness_and_Heathenism_Color_Theology_and
_Race_in_the_Portuguese_World_c_1450-1600#fullTextFileContent (Consultado em 10/01/2019)
1460
Frei João dos SANTOS, op. cit., p. 100.
1461
IDEM, ibidem, p. 240.
1462
IDEM, ibidem, p. 298.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Outro dos problemas que se colocava ao empreendimento missionário era a


suposta prática de “feitiçaria” entre aquela gentilidade. Frei João dos Santos refere um
caso de que teve conhecimento em Tete, de duas “cafras gentias, que fingiam ser
feiticeiras” e a quem tanto cristãos, como gentios, se dirigiam de noite para leituras de
oráculos e outros actos psíquicos, que o padre considerava diabólicos.1463 O entendimento
cristão de práticas espirituais africanas fazia-se de acordo com uma transferência de
visões herdadas da teologia medieval, de acordo com as quais o espírito do mundo se
separava em bom e mau, sendo que elevado número de práticas mágicas eram de natureza
demoníaca. Uma visão mágica do mundo dominava toda a sociedade e os poderes
eclesiásticos da Europa assumiam a missão de vigiar, perseguir e erradicar a heresia e a
superstição, que esses poderes consideravam existir nas crenças populares.1464 O padre
actuou em Tete, em conformidade com o que eram as práticas eclesiásticas católicas
vigentes, pois perante as evidências de tais pecados pressionou o capitão do forte a
prender, castigar e desterrar as referidas cafras “feiticeiras”, de modo que “não
inficionarem com suas artes diabólicas os moradores da terra. (…) O capitão as mandou
açoutar publicamente, e as degredou pera sempre fora das terras de Tete ”. 1465 As
mulheres cafras foram ainda objeto de desprezo por serem “tão agrestes como as feras”,
quando dão à luz nos matos1466 ou porque, pela sua própria natureza, têm místicas
conversações sobre agoiros e superstições “mui arreigadas no coração”.1467
Quanto à organização das populações do sudeste africano em espaços sociais, a
dimensão dos povoados constituía-se, de acordo com a visão do missionário, como outro
dos indicadores civilizacionais. Neste sentido, o autor descreve as aldeias em que viviam
as gentes da Cafraria como um conjunto de choupanas, redondas e de madeira tosca,
embrenhadas pelos matos. O único móvel dentro da choupana era uma esteira de junco
onde dormiam, a que se juntavam duas enxadas, um arco, flechas e uma panela. Algumas
povoações eram muito pequenas, outras grandes, chegando a ter dois ou três mil vizinhos,
mas geralmente a estrutura correspondia, de acordo com o padrão ocidental, a um estatuto

1463
IDEM, ibidem, pp. 564-566.
1464
Sobre a temática das práticas mágicas e da sua representação no Portugal quinhentista veja-se Francisco
BETHENCOURT, O imaginário da magia. Feiticeiros, saludadores e nigromantes no século XVI, Lisboa,
Projecto Universidade Aberta, 1987.
1465
Frei João dos SANTOS, op. cit., p. 566.
1466
IDEM, ibidem, pp. 121-122.
1467
IDEM, ibidem, p. 138.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

de pobreza e “vida miserável”, que o autor considerava ser comum a toda a Cafraria.1468
Frei João dos Santos valoriza os lugares onde se regista a presença de portugueses, ao
passo que a sua descrição diminui o valor dos aglomerados de cafres gentios, por
considerá-los pequenos e pobres.
O missionário destaca diversos costumes que considera bárbaros, nomeadamente
os juramentos dos quais lhe parecia depender o sistema de justiça (lucasse, xoca e calão);
a poligamia como base das estruturas sociais e redes de poder; a renovação anual de
cerimónias fúnebres dedicadas aos reis defuntos; a feitiçaria; e a atribuição de um culto à
lua nova; entre muitas outras manifestações que conduziam à conceptualização do cafre
no âmbito de uma dicotomia essencialista.
Ora, tanto nas ilhas, como em terra firme, em Sofala, pelos Rios de Cuama e nas
terras do Mutapa, viviam espalhados muitos portugueses que, movidos pelo comércio, se
radicavam em aldeias, constituíam família e geravam descendência mestiça. Frei João dos
Santos baptizou centenas de filhos dos cristãos, que por estas terras viviam, e, em
cerimónias colectivas, teria alcançado milhares de cafres gentios que viviam “à sombra
dos cristãos”.1469 Depois do baptismo, era necessário catequizar para instruir as gentes da
terra e os portugueses que, segundo Frei Luís de Sousa, “quasi que tinhaõ perdido o
conhecimento de que eraõ Christaõs, devassos nos costumes, cegos nas obrigaçoens da
Fé, e mandamentos de Deos, e de sua Igreja”.1470 Das práticas catequéticas que de
contínuo eram ministradas, Frei João dos Santos destaca a celebração da missa, as
“práticas espirituais” entre as quais eram dados “os dias de guarda e de jejum”, 1471 a
confissão e os sacramentos. As cerimónias cristãs a que assistiam os portugueses atraíam
as gentes da terra, que acreditavam no grande Criador “que está no céu” e na imortalidade
da alma, sendo que quando a diversidade conceptual se manifestava em acções, os
missionários consideravam-nos pecadores e blasfemos, devido à ignorância da Fé Cristã
e das Escrituras.

1468
IDEM, ibidem, p. 114.
1469
IDEM, ibidem, p. 588.
1470
Frei Luís de SOUSA, op. cit., p. 365.
1471
Frei João dos SANTOS, op. cit., p. 588.

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4.2.3. Povos e poderes africanos

Frei João dos Santos destaca duas grandes entidades políticas no sudeste africano:
os Estados do Quiteve e do Mutapa.
Estes Estados correspondem a poderes africanos, ligados por uma relação
genealógica pois, de acordo com as tradições que Mudenge sintetiza, Nyamunda
Mukombero, um dos filhos de Matope, fundador da dinastia dos Mutapas, teria iniciado
a conquista das terras do Uteve – Quiteve, de forma a poder exercer controlo sobre as
redes do comércio muçulmano, que ligavam o complexo comercial Sofala-Quíloa ao
planalto zimbabuéano.1472 Diversas versões de tradições locais referem que um filho ou
um irmão do Mutapa Mukombero teria fundado o novo reino que os portugueses
designaram por Quiteve.1473 O importante é considerar o Sachiteve como um soberano
pertencente à dinastia real Mutapa, incorporando um sistema político do qual faziam parte
estados como Barue, Manica e Danda que, de acordo com Gai Roufe, constituem a
Mocaranga, um sistema político assente em conceptualizações locais do parentesco.1474
Do reino do Quiteve - Uteve, com uma extensão territorial entre o rio de Sofala e
um vasto sertão, que se mostrava incerto ao observador exterior, Frei João dos Santos
constrói a imagem de uma unidade política autonomizada face ao Monomutapa. Neste
sentido, o autor critica João Botero, Luís de Guzman, Osório e Felippo Pigafetta, por
escreverem “informações pouco certas” e sem conhecimento directo e actualizado do
Estado do planalto e dos reinos que lhe pagavam tributo.1475 Ao tempo em que Frei João
dos Santos missionou na Cafraria, a configuração política, envolvendo uma relação de
suserania dos Mutapas sobre outras dinastias e Estados não era verificável e, com base
nas informações recolhidas no terreno afirma que os Estados do Quiteve, Quissanga e
Sedanda “nenhum destes (…) paga tributo, nem vassalagem ao Manamotapa, antes são
todos livres, e supremos, e alguns deles têm guerra com o mesmo Manamotapa”. 1476
Depois de algumas décadas, em finais do século XV, em que os Mutapas dominaram por

1472
S.I.G. MUDENGE, op. cit., p. 46.
1473
IDEM, ibidem.
1474
Gai ROUFE, “Local Perceptions of Political Entities along the Southern Bank of the Zambesi in the
16th and Early 17th Centuries”, (…), p. 55.
1475
Frei João dos SANTOS, op. cit., pp. 218-220.
1476
IDEM, ibidem.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

conquistas e alianças as terras do planalto até ao mar, esse domínio do nordeste e da


planície costeira esboroou em consequência dos contactos com o portugueses,
principalmente a partir do reinado do Mutapa Neshangwe Munembire, que subiu ao trono
c. 1530.1477 A presença de portugueses ter-se-ia sentido cada vez mais, ao longo da rota
do Zambeze, até que se estabeleceram fortes em Sena e Tete, como postos avançados que
permitiam aceder às feiras do interior.
Na representação do senhor do Quiteve, o Sashiteve, este reunia na sua pessoa os
atributos divinos, desempenhando funções mágico-religiosas, para além das governativas
e militares. Todos os anos, pela lua nova de setembro, o Sashiteve subia a uma montanha
onde se encontravam os túmulos dos antepassados, a fim de homenagear os fundadores
da comunidade e liderar as cerimónias que conectavam o mundo dos humanos com o
mundo dos espíritos.
Ora, com uma vivência cultural e espiritual exterior aos significados profundos de
tais cerimónias, toda a leitura de João dos Santos conduz a uma demonização do processo
de comunicação do Sachiteve com os antepassados através de um médium da
comunidade:
“O cafre endemoninhado (…), como quem tem o Diabo no corpo, estirado no chão, feio,
mal-assombrado, e fora de seu juízo, e desta maneira fala o Diabo pola sua boca todas as
línguas estrangeiras d’outras nações de cafres (…) fica o rei só com o endemoninhado,
falando amigavelmente como quem fala com o seu pai, que é defunto, (…). Deste modo
que o Diabo tem em falar a estes bárbaros, usa com os mais gentios, como eu soube de
algumas partes onde se fazia o mesmo nesta costa, e ainda na Índia.” 1478

De acordo com a mundivisão do missionário cristão, tais manifestações rituais


revelavam-se marcadores culturais de oposição religiosa e espiritual. O antagonismo
consolidava-se relativamente às estruturas de parentesco poligâmicas, as quais permitiam
às sociedades africanas construir um complexo sociopolítico com implantação territorial
à escala de diversas aldeias sendo que, no caso dos reis e chefes, significava o reforço dos
laços que uniam várias famílias.

1477
S.I.G. MUDENGE, op. cit., p. 55.
1478
Frei João dos SANTOS, op. cit., pp. 96-98.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

O relato de que o Sachiteve teria mais de cem mulheres, e que, dessas, uma ou
duas seriam “grandes, como rainhas”, suscitava um enquadramento marginal, no âmbito
da ética do poder.1479 Essa marginalidade agravava-se com as informações acerca de
costumes que envolviam a morte do rei, nomeadamente a ideia de que as esposas reais
eram sacrificadas para o acompanharem no túmulo e o costume do lucasse, que consistia
no juramento envolvendo ritual de envenenamento dos diversos suspeitos dessa morte,
na origem da qual se supunha existir sempre algum acto de feitiçaria.1480
Relativamente às “mulheres” ou “esposas” do Sachiteve, mais uma vez
mobilizamos a interpreração de Gai Roufe, de que “as esposas” não seriam
necessariamente mulheres biológicas.1481 Roufe e Miller apelam à necessidade de se
atender aos múltiplos significados que uma palavra pode assumir nas língua e dialectos
falados na região do baixo Zambeze.1482 Muito provavelmente a informação chegou a
João dos Santos na forma uma palavra traduzida literalmente, perdendo-se o significado
indígena de “esposa” no contexto das concepções políticas locais, que designava pessoa
dependente ou subordinada de qualquer género.1483 O ritual do sacrifício de tais
subordinados, mulheres ou homens, significa que estes tinham a incumbência de guardar
o túmulo do rei defunto e venerá-lo para o resto das suas vidas, mobilizando a percepção
local da criação das entidades políticas que compunham a Mocaranga. 1484 A guarda dos
túmulos dos chefes das entidades políticas pelas populações significava manter o legado
político na “casa” do espírito ou Zimbabwe.1485 A guarda deste legado implicava “casar”
com o sucessor, significando isso que toda uma população aceitava a subordinação ao
novo rei e ratificava os laços de afinidade.1486
Um discurso que decorre de uma tradução literal e sem o enquadramento
conceptual local conduz a leituras distorcidas de práticas sociais e políticas diversas, que
foram integradas pelo missionário no tópico das sociedades “bárbaras”.

1479
Frei João dos SANTOS, op. cit., pp. 87-88.
1480
IDEM, ibidem, p. 88.
1481
Gai ROUFE, “Local Perceptions of Political Entities along the Southern Bank of the Zambesi in the
16th and Early 17th Centuries”, (…), p. 63.
1482
Gai ROUFE e Joseph C. MILLER, “African Voices Echoing in European Texts: The Muffled Meanings
of the Madzimbabwe of the Mocaranga between the Sixteenth and the Nineteenth Centuries, (…), p. 10.
1483
IDEM, ibidem, p. 11.
1484
IDEM, ibidem, p. 22.
1485
IDEM, ibidem, p. 31.
1486
IDEM, “Local Perceptions of Political Entities along the Southern Bank of the Zambesi in the 16th and
Early 17th Centuries”, (…), pp. 66-67.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

O estado do Mutapa foi considerado pelo missionário como o mais poderoso de


toda a Cafraria, sendo que uma das suas grandezas era guardar nos sertões as ruínas da
mítica feitoria da Rainha de Sabá. Acerca de umas ruínas existentes próximo da feira de
Massapa, corrobora a hipótese avançada por alguns “naturais desta terras” e “mouros
antigos” de que se trataria de vestígios da mítica feitoria, de onde o ouro era escoado pelo
Zambeze até ao Índico, ou seja, considerava a hipótese de ter sido ali o coração da Ophir
bíblica.1487 Se o mito de Ophir havia conduzido a uma especulação, na literatura europeia,
sobre a localização das minas, mesmo antes das viagens marítimas europeias prevalecia
a ideia de que seria na extremidade do continente africano, tendo vindo a oscilar entre
Sofala e as terras do Monomotapa.1488
Sobre as Amazonas, que Duarte Lopes afirmava existirem nos territórios
Carangas, Frei João dos Santos autorizou-se a negar a existência de tais mulheres
guerreiras e varonis, pois certificou-se presencialmente e com informadores por si
considerados idóneos.1489 Noutras partes da Etiópia Oriental onde não lhe foi possível
certificar-se junto de autoridades do saber local, admite a possibilidade de existirem
Amazonas, referindo como seu território o distante reino de Dalmute, nas cercanias da
Abissínia.1490 Será possível que a ideia da existência de grandes exércitos de Amazonas
no Monomotapa possa também estar relacionado com o conceito de “mulheres”, não no
sentido literal dos indivíduos do género feminino, mas no sentido local de pessoas
dependentes do grande soberano? Vimos já como as traduções literais podiam conduzir a
interpretações eurocêntricas redutoras e, neste caso, mitificadas.
Dos povos da Cafraria, os que designa como Macuas ou Bororos, são os que
classifica como “a mais bárbara, e a mais mal inclinada de todas as nações de cafres”. 1491
Refere-se o autor a um espaço cultural, social e político que está em construção,
ao longo dos séculos, através de processos de hibridização e mestiçagem entre grupos
humanos de diferentes proveniências, ocorrendo em territórios que abrangiam os vastos
sertões e litorais, entre a margem norte do Zambeze e o rio Rovuma. Este espaço era

1487
Frei João dos SANTOS, op. cit., p. 207.
1488
G. L. RANDLES, L’Image du Sud-est Africain dans la Littérature Européenne au XVI Siècle, (…), p.
47 e pp. 79-80.
1489
Frei João dos SANTOS, op. cit., p. 220.
1490
IDEM, ibidem, pp. 312-313.
1491
IDEM, ibidem, p. 247.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

constituído por uma multiplicidade de territorialidades sociais não existindo, no séc. XVI,
uma identidade étnica que apontasse para o que veio a ser a construção do “mundo
macua”.1492
Os Macuas organizavam-se em pequenas aldeias e as unidades políticas que Frei
João dos Santos designava de reinos eram pequenas chefaturas, como a de “um cafre
chamado Galo, que tem nome de rei, mas seu reino é pequeno, de poucos vassalos, e
menos sustância”.1493 Apesar de predominarem as unidades políticas de pequena escala,
pelo interior viviam alguns “reis grandes, e poderosos” 1494, como o reino de Mongalo,
“senhor de muitos vassalos”, que dominava terras férteis e ricas em mantimentos. 1495
Entre as comunidades Macuas viviam muitos mouros e alguns chefes africanos
convertiam-se ao Islão, como foi o caso do Sapata, próximo de Quelimane, que por se ter
“feito mouro (…) era malquisto, e odioso a todos os cafres”.1496
O vocábulo macua corresponde a um etnónimo identificativo exterior,
muçulmano, aplicado a uma diversidade de populações não islamizadas. Enquanto a
palavra cafre, deriva do árabe e significa infiel, renegado e bárbaro Macua deriva,
segundo António Pires Prata, do termo local nikhuwa (plural makhuwa), com o
significado de “grande extensão de terra”, “sertão”, “selva”, “deserto”, tendo-se
acrescentado também o sentido pejorativo de “rude”, “selvagem”, “povo gritador e
barulhento”.1497 A este indicador negativo parecem corresponder as palavras de Frei João
dos Santos, quando refere que o modo de falar dos Macuas é “muito áspero, como quem
peleja”, posicionando-os na antítese dos Mocarangas, que considerava falarem a mais
polida das línguas da Cafraria.1498
Frei João dos Santos descreve as populações que, ao longo do séc. XVI, vão
ocupando a margem norte do Zambeze, desde os sertões até à terra firme frente à Ilha de
Moçambique. A chegada de chefaturas Macuas, aos litorais do Índico, resultava de
mudanças no panorama geopolítico da região, provocadas pela já mencionada expansão

1492
Eduardo MEDEIROS, “O Islão e a construção do «Espaço Cultural e Social Macua»”, in José Damião
RODRIGUES e Casimiro RODRIGUES (Ed.), Representações da África e dos Africanos na História e
Cultura – séculos XV a XXI, (…), p. 209.
1493
Frei João dos SANTOS, op. cit., p. 240.
1494
IDEM, ibidem, p. 247.
1495
IDEM, ibidem, p. 265.
1496
IDEM, ibidem, p. 240.
1497
Eduardo MEDEIROS, op. cit., p. 199, nota 13.
1498
Frei João dos SANTOS, op. cit., p. 222.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

de povos Maraves, a partir do norte do Zambeze. Eugénia Rodrigues explica que este
grupo de povos, oriundos da região Luba-Lunda, exerceu pressão sobre outros povos que
viviam na margem sul do Zambeze.1499 É neste sentido que se enquadra a referência de
que algumas nações, sujeitas ao rei Mauruça, haviam chegado como estrangeiros à terra
firme da Ilha de Moçambique, que ocuparam e usurparam, tendo ficado com a fama, entre
as populações locais, de que matavam e comiam todos quantos achavam.1500
Os traços de identidade física de alguns destes grupos mereceram um descritivo
muito vívido por parte do frade, que se espanta com os corpos furados e pintados. De
entre as particularidades que mais lhe chamaram a atenção, os Macuas limavam os dentes
de cima e de baixo, de modo que pareciam agulhas, escarificavam a pele, furavam as
queixadas, desde a orelha até quase à boca, e, nesses buracos, metiam uma rolha de pau
ou de chumbo. Traziam as orelhas todas furadas e nos buracos metiam paus delgados. O
autor reúne no seu descritivo um conjunto de manifestações corporais, cujos significados
sociais e culturais lhe eram ininteligíveis. Somente o conceito de “barbárie” permitia
enquadrar tantos atributos desviantes, face ao padrão que conhecia. A natureza,
supostamente gentílica ou a propensão destas populações para apreender a Lei Natural,
poderia fazer prever um sucesso missionário. Porém, Frei João dos Santos sublinha a
dificuldade continuamente sentida em “converter, e trazer ao conhecimento de seus
erros”, o que considerava dever-se à natureza muito bárbara daquela gente.1501 Tanto a
missão jesuíta de Inhambane, como a missão dominicana em que participou Frei João dos
Santos, constatam os muitos erros e desvios dos cafres no que se refere às práticas da sua
vida social e comunitária, bem como a ausência de uma verdadeira conversão pelo ritual
do baptismo. Sobre este aspecto, Monclaro havia já referido que os povos da Cafraria
não têm nenhum entendimento do que “hé ser christão, porque andão tão metidos em seus
costumes e contentamentos da carne, que da alma, como a não vêm, não sabem nada e
cuidão que ser christão não hé cousa de outra vida, senão ser como amigos dos
portugueses”.1502

1499
Eugénia RODRIGUES, op. cit., pp. 104-105.
1500
Frei João dos SANTOS, op. cit., p. 249.
1501
IDEM, ibidem, p. 556.
1502

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4.2.4. Invasores e antropófagos

O texto de Frei João dos Santos funciona, ainda, como testemunho escrito de
tempos conturbados nos territórios ao sul do Zambeze, assolados por guerras, fomes e
doenças. O autor refere quatro pragas que se abateram sobre a Cafraria, que terão sido as
agressivas investidas dos exércitos Zimbas, sendo o ano 1589 particularmente dramático,
a grande praga de gafanhotos que consumiu todas as searas, hortas e palmares, a fome
que dizimou muita população e levou ao aumento da venda de pessoas a troco de
alimento, e a grave epidemia de varíola, conhecida como “doença de bexigas”.1503
A primeira praga da Cafraria, referente à invasão dos povos Zimbas, remete-nos
para o processo de desintegração das linhagens dirigentes Maraves que, a partir da África
Central, se impunham sobre outros povos, levando à afirmação de novos poderes, com
implicações na margem sul do Zambeze. 1504 As informações africanas, acerca desta
expansão, que chegavam a João dos Santos referiam um ambicioso “cafre muzimba”, que
querendo expandir o seu poder partira à conquista das terras localizadas para leste, num
movimento militar que destruía e progressivamente integrava os povos conquistados. 1505
“(…) saieram de suas terras, e começaram logo exercitar sua fúria em seus vizinhos, e
foram por todos os lugares, e reinos da Cafraria, caminhando sempre pera o levante; polas
quais terras iam destruindo, e roubando quanto achavam, matando, e comendo toda a
cousa viva, assi homens, mulheres, e mininos, como gado, cães, gatos, ratos, cobras, e
lagartos, sem perdoarem a ninguém, salvo aos cafres que se vinham pera eles, e os
queriam acompanhar nesta empresa, os quais admitiam a seu exército. E desta maneira
ajuntaram mais de quinze mil homens de guerra, com que foram assolando todas as terras
por onde passavam, que parecia um cruel açoute, e castigo que Deus quis dar a esta
Cafraria.”1506
São diversas as passagens textuais da Ethiopia Oriental que fixam o estereótipo
dos povos Maraves, como selvagens antropófagos: “Têm de costume comer a gente que
matam em guerra, e beber polas caveiras, mostrando-se nisso fonfarrões, e ferozes”1507,
havendo até um chefe, o Quizura, a cuja casa se acedia através de uma calçada de caveiras

1503
IDEM, ibidem, p. 278.
1504
S.I.G. MUDENGE, op. cit., pp. 224-225.
1505
Frei João dos SANTOS, op. cit., pp. 234-235.
1506
IDEM, ibidem, pp. 234-235.
1507
IDEM, ibidem, p. 229.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

humanas.1508 Este chefe, que se tinha apoderado das terras de Chicarongo, a dez léguas
de Tete, era retratado como um ladrão muito cruel que comia as gentes vencidas na guerra,
mas também os seus cativos, vendendo a carne humana no açougue.1509 Mas, a selvajaria
atribuída a estes povos e seus soberanos revestiu-se também de alguma ambiguidade,
nomeadamente no caso da punição de que foi alvo o rei de Quíloa, pois na visão de João
dos Santos, a punição de um traidor era considerada “sentença certo não de bárbaro, como
este era, senão de homem prudente”.1510 Frei João dos Santos não só testemunhou o rasto
de destruição deixado pelos Zimbas, no norte do Zambeze, registando a notícia do
“horrendo, e lastimoso espectáculo” da morte do capitão de Tete e de Frei Nicolau da
Rosário, no ano de 1592, mas também fixou a representação que os povos do Planalto e
do vale do Zambeze construíam sobre os invasores vindos da margem norte do rio e cuja
ação militar se fez sentir até Quíloa.1511
Eric Allina, debruçou-se sobre o significado das extensas descrições do frade
dominicano acerca destes povos, supostamente antropófagos. Questionou até que ponto
alguns detalhes de “barbárie” que o missionário registou seriam construções de retórica
que iam ao encontro de uma “cultura de curiosidade” dos europeus? Ou até que ponto o
assunto do canibalismo se posicionaria num plano retórico e metafórico africano? 1512
Analisando vasta documentação e estudos relativos à África Central, Allina verificou que
o tópico do canibalismo correspondia, numa das suas acepções, a uma expressão
idiomática associada a manifestações de abuso e à iniquidade política e social.
Também John Thornton analisou documentos e testemunhos recolhidos de
escravos que, perante a situação social em que haviam caído, temiam ser mortos e
devorados.1513 Na ideologia local, considerava-se que um abusador devorava as gentes
vulneráveis. Traficantes de escravos, chefes ou reis tiranos e também exércitos agressivos
eram considerados canibais; atividades de bruxaria, avareza e todos os tipos de abuso
social eram formas de “comer” ou “devorar” as pessoas.1514 No caso concreto dos Zimbas,

1508
IDEM, ibidem, pp. 225-226.
1509
IDEM, ibidem.
1510
IDEM, ibidem, p. 236.
1511
IDEM, ibidem, p. 236.
1512
Eric ALLINA, op. cit., pp. 211-227.
1513
John THORNTON, “Cannibals, Witches, and Slave Traders in the Atlantic World”, The William and
Mary Quarterly, Vol. 60, No. 2, Apr. 2003, pp. 273-294.
1514
IDEM, ibidem, p. 225.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

essa agressividade era acompanhada da própria pressão demográfica do exército, que


passava a depender da capacidade da região para alimentar os milhares que chegavam.
Frei João dos Santos fala de um exército Zimba de 15000 homens, em movimento, que
saqueavam as comunidades e que, numa conjuntura ecológica desfavorável, colocavam a
região ocupada em situação de agravado défice alimentar.1515 Neste sentido, os Zimbas
constituíam um exército devorador, e portanto, canibal.
Frei João dos Santos não revela ter sido testemunha ocular de um único caso de
canibalismo, tendo sido um transmissor de expressões vernaculares que traduzem
“ameaça”, “perigo” e “violência”, sob a forma de um consumo excessivo e cruel.
Acontecimentos dramáticos como a guerra, a seca, a fome e as deslocações de
povos estavam na memória coletiva africana recente e os processos da transmissão oral,
no âmbito dos quais João dos Santos recebeu informações, integravam vernáculos e
expressões idiomáticas africanas sobre autoridade e moralidade do poder, bem como os
seus excessos e opostos. A incompreensão dessas expressões e dos seus significados pelo
receptor João dos Santos terá moldado a sua narrativa e a circulação da obra impressa
contribuiu para a persistência da ideia de que, nestes territórios, os africanos comiam os
seus cativos de guerra. De tal modo assim foi que, em finais do século XVIII, no âmbito
de uma recolha de dados etnográficos e da história natural, foi enviado um inquérito pelo
Governador e Capitão-General de Moçambique ao Governador de Sofala, procurando
reunir informações específicas sobre a “moral dos povos”. Neste Inquérito, uma das
questões incidia especificamente sobre se existiria localmente a prática de ingestão dos
cativos de guerra, pois que é registada na resposta 54 “Não ha negros, que comão cativos
apanhados em guerra”.1516
A questão dos Zimbas e da sua suposta antropofagia enquadra-se nas
representações que o mundo ocidental construía de povos que enquadrados na categoria
“bárbaros”, e “selvagens”.

1515
Eric ALLINA, op. cit., p. 216.
1516
Gehrard LIESEGANG, op. cit., p. 24.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

4.2.5. Ecos de encontros entre náufragos e cafres

Frei João dos Santos foi ainda contemporâneo de diversos naufrágios de navios
portugueses na costa da Cafraria, detendo-se na descrição de alguns destes
acontecimentos e da natureza dos confrontos entre os náufragos e os cafres.
Notoriamente, a partir das experiências dos naufrágios e das informações que a esse
respeito recolheu, o autor concebeu duas vastas zonas distintas na Cafraria: uma, a sul da
ilha do Inhaca e do rio Limpopo, por onde sobreviveram os náufragos das naus S. Tomé
e Santo Alberto; outra, correspondendo à restante Ethiopia Oriental, terminando a
nordeste, no Cabo Guardafui, onde ocorreram os naufrágios das naus Nossa Senhora do
Castelo, S. Luís, Santiago e Madre de Deus.
Da Cafraria a sul do Inhaca destaca os “cafres bem inclinados” da Terra dos
Fumos, “mui diferentes de outros que por esta terra moram”.1517 Sobre aqueles povos,
que outras fontes designaram de Macomates, relata um episódio de grande impacte sobre
as representações africanas acerca do encontro com os náufragos, nomeadamente o
espanto perante o homem branco:
“cousa que eles até então não tinham visto, chamaram-lhes filhos do sol, e como a tais
lhes fizeram muito gasalhado, e lhes deram de comer, e beber”. 1518

O acolhimento prestado por comunidades, vivendo na terra do Natal, bem como


o agasalho que os náufragos da Santo Alberto receberam das “diversas nações de
cafres”,1519 desde o Penedo das Fontes até às terras do Inhaca, na baía de Maputo,
contrasta com a hostilidade de que foram alvo por parte de comunidades mais a norte.
Do registo de 1582, sobre os naufrágios da nau Nossa Senhora do Castelo e da
nau S. Luís, na Barra de Quelimane, salienta que os sobreviventes chegados a terra “foram
roubados polos cafres”.1520
Em 1585, do naufrágio da nau Santiago nos Baixos da Índia, testemunha a
chegada à fortaleza da ilha de Moçambique de um grupo de sobreviventes embarcados
num esquife que deram à costa “em terra de cafres”, entre o rio de Quelimane e o rio de

1517
Frei João dos SANTOS, op. cit., pp. 543-544.
1518
IDEM, ibidem, p. 543.
1519
IDEM, ibidem, pp. 577-578.
1520
IDEM, ibidem, p. 536.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Linde, “onde foram logo despidos, roubados, e espancados pelos cafres da terra”. Um
segundo grupo que se salvou deste naufrágio incluía o piloto da nau, o padre dominicano
Frei Tomás Pinto, que levava por missão vir a ser Inquisidor da Índia, o padre Frei Adrião
de S. Jerónimo e o jesuíta Pero Martins. Também estes, ao chegarem à costa entre o rio
de Loranga e o de Quizungo “foram salteados polos cafres, despidos, e roubados, e alguns
deles feridos”, ficando depois cativos dos cafres. Um terceiro grupo que se salvou numa
jangada, arribou a uma praia entre o rio Linde e o rio de Cuama-a-Velha, onde também
foram “roubados polos cafres”, tendo padecido grandes fomes porque os cafres lhes
negavam alimento.1521
Em 1595, a nau Madre de Deus perdia-se na costa deserta, a nordeste de
Mogadíscio, território tão abrasado e estéril pelo grande calor, desabitado e sem
mantimentos nem água, que os poucos náufragos sobreviventes chegaram ao cabo
Guardafui “todos esfolados do sol, e negros como cafres (…) que mais representavam a
figura da morte que a de homens vivos”.1522 Reafirmavam-se estereótipos já correntes na
época sobre a Cafraria como território perigoso e dos cafres, como elementos humanos
associados a um conjunto de significados em negativo, ao mesmo tempo que tomava
forma uma conceção de duas zonas distintas na Cafraria.

Em suma, a Etiópia Oriental foi composta a partir da experiência vivida e a


observação de onze anos nos territórios de Moçambique, Sofala, Vale do Zambeze e Ilhas
Quirimbas, a que o missionário acrescentou um espírito curioso e uma forte erudição. A
obra é muito mais do que um testemunho pessoal ou um relato da atividade missionária
dos Pregadores na África Oriental. Frei João dos Santos dissertou extensamente sobre as
ocorrências históricas naquela Cafraria, tanto as que envolviam os poderes e as
instituições africanas, como os costumes locais, as movimentações de povos, os
naufrágios de navios portugueses, e muitas outras “cousas notáveis”.
Na sua representação da Cafraria destacam-se diversos níveis de observação
directa e indirecta: a geografia, a fauna, a vegetação, a variedade de mantimentos das
terras percorridas bem como as descrições somáticas das gentes, das suas comunidades,
da organização social e das suas atividades económicas. Dos ofícios, costumes e

1521
IDEM, ibidem, pp. 525-527.
1522
IDEM, ibidem, pp. 380-381.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

superstições das gentes de Sofala e dos remédios contra a malária, que aplicavam nas
ilhas Quirimbas, teve conhecimento directo. Acerca dos poderes do Quiteve e do
Monomotapa e suas concepções religiosas, informou-se junto de “cafres honrados, e bem
entendidos”.1523 O mesmo sistema de informação levou-o ao conhecimento dos
“juramentos espantosos”, como o lucasse, a xoca e o calão, que consta terem sido vistos
por “pessoas de crédito” de Sofala.1524 O recurso aos informadores locais, considerados
credíveis, permitiu integrar no seu discurso muitas tradições orais e representações
africanas. Sobre os tempos de mudança violenta que se viviam no sudeste africano,
marcados sobretudo pelas migrações dos povos Maraves para sul do rio Zambeze,
vivenciou toda a conjuntura de insegurança e movimentação militar e teve acesso
imediato a informadores africanos. Na sua perspectiva de missionário católico, por
referência à matriz cultural bíblica, interpretou ser este o tempo das quatro pragas da
Cafraria.
A sua dimensão da Cafraria é lata, pois corresponde a vastos territórios onde
vivem os “cafres” ou gente “negra” na acepção unitária do Outro.1525 Por vezes
especializa o sentido para “cafres cristãos”, referindo-se aos que aceitaram o baptismo,
outras vezes, para “cafres mouros”, que identifica a gente da terra que professava o Islão
ou que vivia em aldeias com “mouros”, aliando-se a estes através dos laços familiares ou
do comércio.
Mas Frei João dos Santos designa também por “cafres” os habitantes de Angola.
Ao referir-se ao reino de “Abatua” (Butua), um dos reinos que fazia fronteira com
o Monomotapa, o qual seria tão extenso que:
“dizem que chega pelo meio da terra firme até os confins do Reino de Angola, com cujos
cafres tem comercio”. 1526

Esta passagem de Frei João dos Santos é particularmente interessante, não só


porque designa de “cafres” os habitantes de Angola que têm comércio com os de Butua,

1523
IDEM, ibidem, p. 102.
1524
IDEM, ibidem, pp. 108-110.
1525
Jeremy PRESTHOLDT, “Portuguese Conceptual Categories and the “Other” Encounter on the Swahili
Coast”, in Journal of Asian and African studies, Vol. 36, Nº 4, February 2001, pp. 383-384.
1526
Frei João dos SANTOS, op. cit., p. 205.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

como também indica ter recebido este dado geo-político de relevo para os portugueses,
através da oralidade.

A informação densa que esta obra contém, acerca de territórios e povos onde
actuavam os missionários dominicanos, transformam-na numa grande síntese que, nestes
primórdios da globalização, a imprensa permitiu disseminar.
Para além da riqueza descritiva incluída na obra, a mesma comportava em si um
conjunto de estereótipos e categorias de análise geográfica e antropológica, que teria a
sua primeira divulgação europeia com a versão latina da obra do jesuíta, Alonso de
Sandoval, De instauranda Aethiopia salute, publicada em Sevilha, em 1627.1527 De
acordo com Teresa Nobre de Carvalho, através da obra em latim de Sandoval, os
conteúdos da Etiópia Oriental entravam “nos círculos cultos europeus”.1528
Em 1625, o compilador inglês Samuel Purchas publicou alguns excertos da obra
do dominicano na sua coleção de relatos de viajantes, Collections out of the Voyage and
Historie of Friar J. dos Santos his Aethiopia Orientalis.1529
As mencionadas versões da obra, em latim e inglês, a que se seguiu a tradução
francesa abreviada, do padre Gaëtan Charpy, nas edições de 1684 e 16881530, que serve
de base para a segunda edição em língua inglesa, em 1814, por John Pinkerton, numa
coleção monumental de relatos de viagens, permitiram alcançar vastos círculos de leitores

1527
O jesuíta Sandoval, reitor do Colégio de Cartagena de Índias, destacou-se pela evangelização de
escravos africanos e terá redigido a obra De Instauranda Aetiopum Salute numa viagem a Lima, entre 1517-
1519. Segundo a estudiosa Andrea Guerrero Mosquera, a 1ª edição terá sido publicada em Sevilha, em
1627, pelo impressor Francisco de Lira. O tomo I tem a sua 2ª edição em Madrid, em 1647. Veja-se Andrea
Guerrero MOSQUERA, “Alonso de Sandoval: un tratadista en Cartagena de Indias”, in Cuaderno de
Bitácora. El Caribe: Epicentro de la América Bicentenaria III, Fundación Carolina Colombia, Edición E-
book, diciembre 2012, p. 19. Sobre as edições da obra, veja-se Eduardo RESTREPO, “De instauranda
æthiopum salute: sobre las ediciones y características de la obra de Alonso de Sandoval”, in Tabula Rasa,
3, 2005, pp. 13-26. https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=396/39600302 (Consultado em 27/09/2020)
1528
Teresa Nobre de CARVALHO, “Registos da biodiversidade africana anotados por Frei João dos Santos
em «Etiópia Oriental» (Évora, 1609)”, in Atas do Congresso Internacional Saber Tropical em
Moçambique: História, Memória e Ciência, Lisboa, Instituto de Investigação Científica Tropical, 2013, pp.
4-5. https://2012congressomz.files.wordpress.com/2013/08/t05c02.pdf (Consultado em 27/12/2018)
1529
Samuel PURCHAS, “Collections out of the Voyage and Historie of Friar J. dos Santos his
Æthiopia Orientalis and Varia Historia, and out of other Portugals,
for the better knowledge of Africa and the Christianitie therein”, in Hakluytus posthumus or Purchas his
Pilgries, Vol. 2, London, W. Stansby for H. Fetherstone, 1625, pp. 1525-1556. Veja-se também New
Edition Glasgow, Vol. 9, James Mc Leosh & Sons, 1905, pp. 197-255.
1530
Gaëtan CHARPY, Histoire de l’Ethiopie Orientale composée en Portugais par le R. Pere Jean dos
Santos, Religieux de l’Ordre de S. Dominique, A Paris, Chez André Cramoisy, 1684.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

na Europa. Deste modo, a Etiópia Oriental afirmava-se como uma relevante síntese
geográfica e antropológica versando a África do Sudeste e fonte autorizada para
cartógrafos, geógrafos e enciclopedistas, até ao século XIX. 1531 A par das informações de
natureza supostamente objetiva, a Etiópia Oriental veiculou também o seu universo de
imaginários e representações sobre os cafres como bárbaros e antropófagos, tendo
certamente contribuído para a persistência desta imagem nas escritas europeias até ao
advento dos sistemas coloniais.

1531
Teresa Nobre de CARVALHO, op. cit., p. 5.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Conclusão

Através deste percurso, materializado num conjunto representativo de fontes


históricas de diferentes tipologias, procurámos compreender e explicar os processos de
construção das representações sobre os espaços africanos historicamente categorizados
como Cafraria e as populações como cafres, durante os séculos XVI e XVII.
Realizámos o percurso possível, com uma amostragem documental que reúne
sobretudo textos escritos coevos, de natureza diversa, mas também integrando registos
iconográficos e cartográficos pontuais e complementares. Conferimos particular ênfase
aos documentos portugueses, que reunimos num corpus onde constam textos
administrativos, de viagens, notícias de naufrágios, descrições geográfico-antropológicas,
escritas produzidas no âmbito da acção missionária, mas também convocámos outros
textos mais antigos, que estabelecem uma relação genealógica com a própria formulação
das categorias de representação em estudo.
Procurámos, deste modo, contribuir para a construção da história africana
explicando os modos como uma grande diversidade de populações da África do Sudeste,
genericamente designadas de cafres, foi (ou não) apropriada pelos viajantes europeus em
geral e portugueses em concreto.
Ora, as representações, como salientámos no início, são elas mesmas
materializações de concepções culturais, constituindo-se através de linguagens que
podem ser descodificadas. Esse exercício de descodificação convida-nos a indagar as
tradições e os discursos provenientes de diferentes temporalidades, que concorrem para
as imagens dominantes sobre África porque, como afirmou Mudimbe, foram estruturantes
de uma ordem epistemológica ocidental. Tal ordem epistemológica ditou, historicamente,
os esquemas de compreensão e classificação que marginalizaram seres, sociedades e
espaços não-europeus. Foi com esse propósito que remontámos às categorias herdadas da
Antiguidade, como Ethiopia, bárbaro, gentio, constantemente retomadas pelos autores
que escreveram sobre o “espaço novo” a que foi aplicado o macro-topónimo Cafraria,
derivado da categoria antropológica de cafre, por sua vez também herdeira de uma longa
tradição de significados no mundo semita. Também com esse propósito, procurámos na
herança cartográfica medieval abordagens discursivas sobre o mundo austral, espaço que

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

suscitou ampla especulação acerca da sua existência, das diversas hipóteses relativas à
sua habitabilidade, o que envolvia questionar se, sendo aquela finisterra habitada, o seria
por criaturas humanas ou por raças monstruosas. Estes esquemas especulativos deixaram
um lastro teórico e imagético na ordem discursiva sobre aquela parte do mundo e seus
habitantes, que emerge subtilmente aquando dos contactos.
Da cosmografia medieval, que concebia a África como a terceira parte do mundo,
habitada pelos filhos de Cam, a modernidade europeia cristã recebeu um dos componentes
da sua complexa matriz epistemológica por referência à qual os mundos novos foram
percepcionados e descritos. Foi a partir dos referenciais culturais que postulavam um
centro do Orbe, cristão, que se analisaram as periferias, durante muito tempo incógnitas
e inventadas. As viagens marítimas empreendidas pela coroa portuguesa para estabelecer
uma ligação à Ásia permitiram a revelação gradual de grandes extensões litorais da África
meridional e do sudeste, onde se estabeleceram zonas de contacto com as sociedades
africanas sobre as quais se desenvolveram discursos.
As escritas produzidas no âmbito dos contactos directos com a diversidade
geográfica e antropológica, ou decorrentes da recolha de informações orais, de leituras,
transcrições e compilações, vieram a construir sentidos e imagens mentais que, por sua
vez circularam, foram apropriados, geraram outras imagens e estereótipos que se
replicaram e cristalizaram naquilo que se considera um amplo “arquivo” europeu de
representações sobre determinada extensão do continente africano.
É na zona de contacto, estabelecida entre os litorais de Sofala e a ilha de
Moçambique, que se dá a adopção, por empréstimo, do vocábulo kaffir para designar as
populações africanas não islamizadas. Proveniente do mundo árabe-suaíli, o termo que a
partir de 1505 teve grafia variável, mas que havia de se estabilizar na forma “cafre”, tinha
já uma longa história na categorização de povos que, do ponto de vista religioso,
significavam um oposto: o infiel, o descrente, o ignorante e renegado. Em termos
linguísticos, quando o vocábulo “cafre” entra nos falares portugueses, em inícios do
século XVI, já comportava em si uma forte carga pejorativa, associada ao pecado, à
descrença e à infidelidade dos africanos não islamizados da costa oriental africana.
As informações acumuladas durante os contactos empreendidos ao longo do
século XV, com sociedades da África ocidental, e também a herança de um ideário
medieval relativo aos africanos, condicionaram as percepções e os discursos produzidos

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

sobre a África do Sudeste. Ainda que a experiência da viagem e do contacto directo opere
correcções ao nível da geografia positiva e das descrições antropológicas, alargando o
leque das novidades acerca de uma extensa parte do mundo que se revela diversa, rica e
heterogénea, verifica-se a persistência de estereótipos e categorizações que são
convocados a preencher determinados níveis de representação nomeadamente no que se
refere aos códigos de descrição do corpo, das crenças e modos de viver.
A partir do corpus documental, a sequência de análise deve ser vista como um
todo, não tendo sido a tipologia dos documentos que organizou a análise e a reflexão, mas
antes aquilo que os textos revelam sobre o objecto em estudo. Neste sentido, procuramos
reunir uma amostragem significativa e diversa de fontes para o estudo das categorias de
representação cafre e Cafraria, definindo a sua historicidade e os seus contornos.
O corpus documental permitiu identificar três fases na construção das categorias
de representação da terra e das populações da África do Sudeste, a saber:
1ª fase – 1497-1510 - cronologicamente marcada pelos primeiros contactos
estabelecidos com as populações khoisan e com sociedades bantófonas da costa leste
africana. As representações formuladas nesta fase são um reflexo do encontro com a
humanidade do mundo austral e da costa do Índico, que se revelava progressivamente ao
conhecimento do ocidente através das informações portuguesas. Na vasta costa navegada
entre o cabo da Boa Esperança e a ilha de Moçambique, é Sofala que desperta o interesse
da coroa portuguesa, que aí projecta a construção de um forte e que, na sequência de
diversas armadas enviadas de Lisboa, se estabelecem os contactos com os poderes
africanos locais. Neste período, o vocábulo cafre entra nos falares portugueses da região
para designar as populações africanas não islamizadas, ao qual se acrescentava, com
frequência, e quase em sinonímia o qualificativo “negro”.
É também nesta fase que, através da carta do rei D. Manuel aos reis Católicos se
faz a primeira difusão internacional do termo cafre, não por referência aos povos do
sudeste africano, mas para se referir aos “idólatras” de Calicute, o que pressupõe uma
associação entre a “cafritude” e a “idolatria”. De Sofala, o documento diplomático
divulga a ideia de uma terra de “ouro infinito” que aí afluía de sertões habitados por povos
monstruosos e antropófagos. Esta carta, referindo-se a populações dos sertões de Sofala,
e o Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira, referindo-se aos povos de
Anzica, a nordeste do reino do Kongo, lançavam o mito da antropofagia na África central

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

e definiam o estereótipo da selvajaria aplicado às populações dos territórios mais


inacessíveis aos viajantes.
Várias armadas portuguesas dobram o cabo da Boa Esperança e estacionam
temporariamente nas enseadas da costa meridional, de que resultaram registos de
encontros com as populações locais. Destaca-se a este respeito a primeira representação
gráfica das populações Khoikhoi, que Burgkmair imprimiu em Augsburg, em 1508, com
base nas descrições do alemão Baltasar Springer. A distância antropológica e cultural dos
Khoi nestas gravuras era manifestada através de códigos de representação do corpo, como
a nudez ou cobertura com peles de animais, o cabelo crespo e os estranhos adornos. Ainda
que a apresentação das figuras de acordo com os cânones artísticos e as possibilidades
técnicas do Renascimento neutralizasse muitas das diferenças que caracterizavam os
Khoi, mesmo assim ficaram disponíveis, a partir de importantes centros europeus de
difusão de informação impressa, imagens que permitiram, pelos códigos de representação
dominantes, associar aqueles humanos a um estado próximo da animalidade.
2ª fase – de 1510 até meados do século XVI. Em 1510, a morte de D. Francisco
de Almeida no cabo da Boa Esperança, numa batalha com os Khoikhoi, constitui-se como
um acontecimento fracturante na construção de uma imagem sobre as populações dos
espaços mais meridionais de África. Os primeiros textos que se referem ao acontecimento
histórico representam-no como um “massacre”, em que os pastores figuram como
“negros” cruéis e, a partir de meados do século, com a cristalização de imagens na
cronística portuguesa, figuram mesmo como “algozes do demónio”. Nesta fase assiste-
se, por um lado, à definição de uma classificação das populações da África meridional
como selvagens, bárbaras e perigosas, por outro lado, surgem as primeiras notícias sobre
o Império do Monomotapa e outros Estados do Planalto, bem como a designação dos seus
habitantes como cafres, dando conta da natureza espiritual gentílica destes povos. É ainda
nesta fase que Duarte Barbosa escreve a primeira grande síntese sobre o que viu e ouviu
no Oriente, região do mundo na qual integra a costa leste africana, habitada de gente
“preta” e “gentia”, que convive e trata com os mouros “baços”, mas que deles se
distingue. Duarte Barbosa salienta a dinâmica mercantil dos “mouros” e o grande poder
africano de “Benamatapa”, a quem outros reinos lhe trazem muito ouro. A primeira
divulgação desta síntese seria feita em Veneza, em 1563, na obra de Ramúsio, que
conheceu sucessivas edições.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

3ª fase – iniciada na segunda metade do século XVI consolida-se até meados do


século XVII.
Neste período longo, assiste-se à fixação do paradigma da Cafraria como terra de
tragédia e perdição, associada ao aparecimento dos primeiros textos impressos sobre a
morte de D. Francisco de Almeida e à emergência da literatura de naufrágios, que atribui
aos cafres e à Cafraria um papel central nas narrativas disfóricas. Nos relatos de
naufrágios, que circularam amplamente na época sob forma manuscrita e impressa, os
discursos são vívidos e matizados e revelam uma apropriação da diversidade geográfica,
antropológica, linguística e cultural por parte de quem atravessou a terra dos cafres.
No conjunto do corpus, o núcleo documental constituído pelos relatos de
naufrágios de navios portugueses afirmou-se como proeminente. O elevado número de
naufrágios de navios da Carreira da Índia e as experiências de sobrevivência de muitas
centenas de náufragos que trilharam longos percursos em terras estranhas, na dependência
das interacções estabelecidas com os africanos, conferem a este contexto histórico-
discursivo uma notabilidade que lhe foi reconhecida na época e perdurou durante séculos.
De destacar que o discurso dominante neste conjunto documental contribuiu para a
cristalização de estereótipos definidores dos cafres e da Cafraria.
Os estereótipos dominantes e os seus campos semânticos definiram a
representação dos cafres, como bárbaros, gentios, selvagens e ladrões, e a Cafraria, como
uma terra estranha, selvagem e perigosa. Porém, estes chavões genéricos, de dimensão
pejorativa, não anularam a emergência de imagens positivas.
Numa visão paradoxal, resultante da própria condição dos náufragos, que
vivenciavam uma experiência fracturante e potencialmente desconstrutiva, o elemento
humano cafre era o bárbaro, rústico e selvagem, que simultaneamente acolhia e
agasalhava e de quem dependia o salvamento; cafre como habitante da extremidade do
mundo e, nesse sentido, herdeiro de um conjunto de estereótipos negativos era,
simultaneamente, o agente humano que senhoreava vastos territórios. Daí o interesse em
registar as designações e formas de organização socio-política para compreender e
“ordenar” o conhecimento sobre as autoridades africanas: reis, amaKosi, modos de
saudação locais, palavras e expressões indígenas, costumes observados e outros cujas
informações foram recolhidas localmente.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Da Cafraria destaca-se o paradoxo da terra de perdição, simultaneamente áspera


e idílica; terra de fomes e de abundância e também de rudes caminhos nos quais se
processa a purificação e a catarse dos caminhantes. No seio de discursos ambivalentes,
procuram fixar-se as formas de organização dos povoados, as características e
potencialidades da terra, com destaque para a fertilidade, clima, relevo e hidrografia e,
ainda, os espaços percepcionados como áreas de fronteira.
Numa ampla discursividade que estigmatiza e elogia é possível encontrar formas
de dominação simbólica, patentes na nomeação dos espaços da alteridade, na descrição
das relações diplomáticas empreendidas com alguns inKosis, pela recolha de informações
de natureza geográfico-antropológica consideradas úteis e pelos símbolos cristãos por
vezes erigidos e deixados no espaço da “gentilidade”, como selo que convidava a uma
acção estruturada da Igreja e da coroa.
Sendo a religião um marcador identitário, as escritas missionárias revestem-se
também de particular relevância para o conhecimento das categorias de representação dos
povos da África do Sudeste. A concepção de uma Cafraria correspondente a uma
gentilidade suscitou dois tipos de intervenção patentes na documentação portuguesa,
distintos em termos de procedimento, mas complementares quanto à finalidade:
1) A missionação dos gentios, que conduzira à missão jesuíta no reino do Tonge, próximo
de Inhambane, e à subsequente intervenção e morte do Padre Gonçalo da Silveira no
Monomotapa. Se a primeira experiência alimentou a esperança da edificação de uma
Cristandade na África do Sudeste, os acontecimentos no Monomotapa desencadearam
todos os mecanismos de representação negativa, fazendo intervir “mouros”, “feitiços” e
acções diabólicas para explicar a morte do padre, cuja representação portuguesa foi
assumida como um “martírio”.
2) A justificação da guerra como “justa”, procurando aplicar ao Monomotapa e aos
“cafres”, as teorias da Escola de Salamanca do ius gentium, que resultavam na conquista,
no domínio e na sujeição de populações e territórios. Se há um quadro teórico-jurídico
marcadamente etnocêntrico que preside à expedição de Barreto-Homem na Cafraria, as
operações militares no vale do Zambeze revelaram uma miríade de obstáculos e
fragilidades que dizimaram grande parte do exército português. Ainda assim, tal
expedição, da qual resultou a instituição das capitanias-mores de Sena e Tete, que
exerciam autoridade sobre os chefes circunvizinhos, bem como um maior acesso dos

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

portugueses às dinâmicas comerciais das feiras do Planalto e do escoamento de


mercadorias via Zambeze, foi representada nos escritos portugueses como uma
“conquista”. Na perspectiva africana, o que aconteceu foi uma incorporação dos agentes
portugueses nas redes de parentesco locais, que asseguravam o funcionamento das
estruturas administrativas da entidade política da Mocaranga.
É importante considerarmos que no âmbito da dimensão dialógica amplificam-se
e adaptam-se as categorias de representação, de forma a traduzirem uma realidade social
multifacetada, podendo a categoria “cafre” assumir formas compósitas, como “cafre
cristão” ou “cafre mouro”. A mesma dimensão dialógica permite-nos indagar a percepção
dos africanos à luz das suas próprias perspectivas, abordagem que sendo desejável, nem
sempre é possível dadas as limitações inerentes às fontes portuguesas, exógenas às
realidades descritas, às mediações envolvidas na recolha de informações, que podem
passar pelo recurso à acção de intérpretes e tradutores, e toda a complexidade diversa das
visões do mundo e interpretações cosmológicas que não são susceptíveis de passar por
processos de “transculturação”. Daí que, as tentativas de reconstrução das visões
africanas a partir das fontes ocidentais se revistam de fragilidades e limitações.
Mesmo assim, tentamos, em determinados momentos, construir uma
representação da Cafraria e dos cafres a partir de informações ou dados recolhidos
localmente e integrados nos discursos.
A este respeito destacamos as reações das comunidades de pastores Khoikhoi da
costa meridional face à intrusão dos estranhos vindos do mar, que ao desembarcarem nos
seus litorais se apropriavam dos cursos de água, importantes marcadores territoriais,
desvalorizavam o gado nas trocas e usavam armas de fogo, provocando grande temor e
suscitando fugas para o interior ou desencadeando outros modos mais guerreiros de
afugentar as criaturas ameaçadoras. Atitudes análogas, caracterizadas por uma suposta
violência das populações autóctones que, por diversas vezes, mataram tripulantes das
frotas portuguesas, são noticiadas em documentação avulsa e passam para a cronística
portuguesa, que não silenciou certos casos de abuso dos homens do mar face às gentes
locais, que defendiam, acima de tudo, suas gentes e seus gados.
Outro dos aspectos que se prende com informações recolhidas entre africanos é o
dos rumores sobre a existência de antropófagos nos sertões, para além das zonas de
contacto. Através de informadores africanos, os portugueses tiveram acesso a expressões

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

idiomáticas que se referiam a rapinas, razias, intervenções militares, devastação


económica, abuso social e todo o tipo de transgressões cometidas por povos exteriores
em tempos conturbados. A ideia de que os africanos comiam os seus prisioneiros de
guerra ou os mortos alimentava mitos há muito enraizados no imaginário ocidental, que
projectavam a existência de populações selvagens e monstruosas nas extremidades do
mundo. A verdade, porém, é que se tratava de expressões vernaculares africanas sobre os
seus “outros” e que a tradução literal subsumiu ao canibalismo, como acto sub-humano e
de selvajaria extrema.
Através do universo religioso, que levou a Companhia de Jesus e, depois, os
Dominicanos e outras ordens religiosas a desenvolverem projectos de missionação na
África do Sudeste, foram empreendidos esforços no sentido de conhecer os africanos a
converter. Por um lado, a experiência desfavorável provocada pela morte do Padre
Gonçalo da Silveira conduziu ao reforço de visões dicotomizantes sobre as experiências
religiosas dos cafres. Por outro lado, a acção missionária no terreno implicou um esforço
de aproximação no sentido de se estabelecerem equivalências conceptuais e
cosmológicas. Este aspecto traduziu-se em formas de conhecimento das línguas locais e
na elaboração de trabalhos que hoje consideramos da área da linguística, como são os
dicionários e gramáticas, de que destacamos a Arte da Língua de Cafre, do século XVII,
que descreve a morfologia de uma língua falada em Sofala, Manica e Vale do Zambeze.
Finalmente, devemos considerar as interacções empreendidas pelos náufragos de
muitos navios da Carreira da Índia, perdidos nos litorais da África do Sudeste, que fizeram
desta costa uma zona de contacto. Estando os náufragos em desvantagem na terra
estranha, dependentes das comunidades locais, descrevem-nas com a acuidade possível a
um observador exterior. Uma das dimensões descritivas aponta para a reação de grande
espanto e acolhimento de muitas comunidades locais aos grupos de náufragos que
percorreram as suas terras, registando também inúmeros casos de plena integração destes
nas comunidades africanas do Transkei e do Natal. Entre os Mpondo existe ainda a
comunidade que se autodenomina de abeLungu (brancos), reclamando uma ligação
genealógica aos náufragos e definindo a sua identidade a partir desses ancestrais que,
vindos do mar, nos processos de sobrevivência se africanizaram ou, como foi usual
referir-se mais tarde no contexto da Zambézia, “cafrealizaram-se”.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Pela análise e cruzamento de todas estas fontes é possível aferir que nos séculos
XVI e XVII se construiu uma representação portuguesa dos cafres e da Cafraria com
larga projeção na Europa culta e prolongando uma herança histórica de longa duração.
Mesmo os contactos no terreno não apagaram a imagem pejorativa, marginal e
assimétrica ligada à África meridional e do sudeste a que se aplicou o macro-topónimo
Cafraria. Não deixaram, porém, de se registar algumas vozes dissonantes, especialmente
de homens práticos que andavam no trato dos Rios de Cuama, que olharam as populações
africanas sem o peso das categorizações apriorísticas que já se haviam instalado nos
círculos eruditos. Note-se, ainda, que mesmo nos discursos mais marcados por uma
imagem depreciativa não deixam por vezes de ser reconhecidos alguns aspectos positivos
e surpreendentes decorrentes dos contactos e interacções culturais no terreno.
As fontes que constituem este corpus permitem-nos acompanhar a construção das
categorias de representação e classificação cafre e Cafraria, as quais passaram a designar,
a partir do século XVI, novas realidades antropológicas e geográficas através de um
processo simbiótico que cruza as heranças culturais com os novos dados do
conhecimento.
Terra de cafres foi a designação que primeiro se aplicou às extensões da costa
africana entre o cabo da Boa Esperança e o cabo das Correntes, identificando os territórios
que foram palco de naufrágios de navios e travessias pedestres dos sobreviventes. A
definição do topónimo Cafraria correspondeu a uma maior especificação e apropriação
do espaço, que ocorreu nos textos e resistiu a figurar na cartografia portuguesa,
maioritariamente manuscrita. Desde a primeira década do século XVII que se fixaram os
contornos da Cafraria como categoria geográfica, que tinha o seu começo no cabo Negro,
no sudoeste africano, e terminava no sudeste do continente, oscilando o seu limite entre
o cabo das Correntes e os rios de Cuama, ou ainda mais a norte, dependendo dos autores.
O vocábulo cafre foi adoptado como um adjectivo, que qualificava populações
quanto à sua natureza espiritual e religiosa, ao qual se associou sempre um conjunto de
atributos negativos. Por vezes o seu uso foi o de um substantivo que identificava
determinado tipo humano, sem a carga religiosa herdada da cultura islâmica e, por vezes,
em sinonímia com “negro ou “preto”. Foi frequente as descrições aludirem às muitas
“nações de cafres”, aplicando-se a uma diversidade de sociedades não islamizadas da
África oriental.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

O vocábulo entra também no léxico colonial português relativo às “possessões”


em África, nomeadamente na identificação das populações autóctones de Moçambique,
e na classificação de costumes, línguas, objectos e manifestações “cafreais”, no sentido
de “indígenas” ou “não civilizados”. Explorar os discursos envolvendo o verbo
“cafrealizar” e as dimensões da “cafrealização” como processo de africanização poderia
ser o objecto de uma outra investigação.
O verbo “cafrealizar” migrou, depois, para outros espaços do Índico, conectados
por uma rede mercantil da qual os escravos foram, historicamente, um componente
importante. A designação de cafre e outras palavras derivadas transformaram-se em
categorias identitárias, que remetem para uma origem africana específica. No Sri Lanka
e na Ilha de Reunião existem, até hoje, movimentos que assumem a “cafritude” como
forma de identidade, posicionando-se na diáspora africana no Oceano Índico e estreitando
os laços com o continente africano e outras sociedades com suas raízes históricas em
África.
Na África do Sul colonial e do apartheid os desenvolvimentos das categorias
Kaffraria e caffer foram dramáticos, como rótulos classificatórios comportando uma
dimensão fortemente ofensiva..
O termo cafre entrou ainda nas taxonomias da botânica e zoologia para definir
espécies nativas como o Búfalo africano (“Búfalo cafre”), considerado o mais poderoso
e selvagem de todos os bovinos africanos, a águia africana, aquila verreauxii (“Águia
cafre”), bem como certos moluscos como o Unio caffer e a Clionella subventricosa
Kaffraria. No campo da botânica, o biólogo Carl Vernon identificou em 25 famílias de
plantas locais, pelo menos 31 pertencentes às espécies caffra, caffrum e caffrorum.1532
Resta-nos questionar se nesta amplitude temporal, relativa à dispersão do conceito
“cafre”, terá havido algum uso africano do termo e qual sua significação. Dos colonos
holandeses e ingleses o termo passou para o Xhosa sob a forma de “Kafulcr”, tendo sido
sempre uma designação à qual as comunidades reagiram por não encontrarem qualquer
tipo de identidade e por ser um rótulo externo, pejorativo e ligado a uma história de
dominação e exclusão.

1532
Agradeço ao Dr. Carl Vernon, biólogo do East London Museum, na África do Sul, que comigo
partilhou estas informações sobre taxonomia das plantas nativas do Cabo Oriental.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

O percurso constituído por este trabalho em torno das categorias classificatórias


de territórios e sociedades da África do Sudeste, a partir de um conjunto de fontes
portuguesas, abriu-nos uma via possível de reflexão futura que, conforme foi referido,
procura indagar a interpretação africana dos homens brancos com quem foram
estabelecidas dinâmicas relacionais, a partir de uma aproximação ao universo
cosmológico das sociedades em análise. Certamente que a reflexão sustentada sobre os
universos cosmológicos africanos nos colocará perante novas constelações temáticas
ligadas ao estudo das inter-relações históricas entre portugueses e populações do sudeste
africano, nas quais a questão das representações nunca deixará de estar presente.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

ANEXOS

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1. DOCUMENTOS …………………………..….…. p. 411

1.1. Nota prévia ……………………………………. p. 412


1.2. Índice de Documentos ..………………………. p. 413
1.3. Documentos …………………………………… p. 414

2. QUADROS ……………………………………….. p. 443

2.1. Nota prévia ……………………..…………….. p. 443


2.2. Índice dos Quadros …………………………… p. 444
2.3. Quadros ……….….………………………….... p. 445

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

1. DOCUMENTOS

1.1. Nota prévia

Os dois documentos que integram este anexo são manuscritos inéditos que são
interpretados ao longo do trabalho. São, pois, precisamente apresentados pela ordem de
remissão do texto para facilitar a sua consulta e leitura integral. Apesar de se conhecerem,
dos dois primeiros documentos, outras versões publicadas, estes textos registam
diferenças consideráveis relativamente às edições existentes. Além disso, estes
manuscritos consideram-se fundamentais porque versam as categorias de cafre e de
cafraria em análise no trabalho.

A transcrição dos textos baseou-se numa atitude de fidelidade à ortografia e ao sistema


de pontuação utilizados nos documentos manuscritos editados. Na transcrição dos
documentos foram seguidas as regras preconizadas por Eduardo Borges Nunes. 1533
Assim, procedeu-se à separação e reunião de palavras e partes de palavra de acordo com
o uso moderno. Desenvolveram-se as abreviaturas. Mantiveram-se as maiúsculas e
minúsculas dos originais, à excepção dos nomes próprios, onde foram restituídas
maiúsculas quando estes as não apresentavam. A pontuação foi deixada sem alteração e
assinalou-se no corpo do texto, entre barras, a mudança de fólios. Em situação de erros
cometidos na língua portuguesa, de forma à legibilidade dos documentos não ficar
comprometida, procedeu-se à correcção das palavras no corpo do próprio texto,
remetendo-se para a respectiva nota, a forma utilizada pelo autor. A disposição dos
documentos apenas foi respeitada nos títulos.

1533
Cf. Eduardo Borges NUNES, Álbum de Paleografia Portuguesa, Lisboa, Instituto de Alta Cultura-
Centro de Estudos Históricos anexo à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1969 e “Varia
Paleographica, Maiora ac Minora”, in Portugaliae Historica, 1973, pp. 223-243 e 405-410.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

1.2. Índice de Documentos

Documento 1

Relato da morte de D. Francisco de Almeida, de autoria anónima, intitulado


“DO FIM MIZERAVEL QUE TEVE | D. Francisco de Almeyda em o an-|no
de 1510” (transcrição nossa).

s.l., s.d. [séc. XVII ?]

B.P.M.P., Cód. 737, fls. 1-4.

Documento 2

“Relaçam do Naufragio da Náo São Thomé de que era Cappitão Esteuão da


Veiga, a qual se perdeo na Terra dos Fumos no anno de 1589, e dos grandes
trabalhos, que passou Dom Paulo de Lima e mais Companheiros nas Terras
da Cafraria, até sua morte” (transcrição nossa).

s.l., s.d. [séc. XVII ?]

B.P.E., Cód. CXVI/1-22, fls. 1-100.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

1.3. DOCUMENTOS

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Documento 1

Relato da morte de D. Francisco de Almeida, de autoria anónima, intitulado “DO FIM


MIZERAVEL QUE TEVE | D. Francisco de Almeyda em o an-|no de 1510” (transcrição
nossa).

s.l., s.d.

B.P.M.P., Cód. 737, fls. 1-4.

“/fl. 1/ DO FIM MIZERAVEL QUE TEVE


D. Francisco de Almeyda em o an-
no de 1510.

Deixando o Viso Rey D. Francisco de Almeyda compostas as cousas com o Governador


Afonso de Albuquerque se partio para o Reyno de Portugal em companhia de outras naos
que vinhão com carrega ; e com muytos fidalgos, e cavaleiros que vinhão a requerer seus
seruiços que servirão em seu tempo, e chegando a Moçambique se deteve alli 24 dias
emquanto vedavão a agua que fazia pella borda, a não Bethlem de que era capitão Iorge
de Melo ; e fazendo seu caminho passou com bom tempo o Cabo de Boa Esperança ; e
como quem se avia já por navegado, disse : Ia as feiticeiras de Cochim, ficarão
mentirozas ; e isto era porque em a India andava em a boca de alguns, que elle o não avia
de passar, o qual pronostico dezião proceder das feiticeiras da terra. E como vinha
necessitado de agua, e por detraz do Cabo a avia a que chamão a aguada de Saldanha,
mandou aos pilotos que a fossem tomar : & por se recrearem os homens da tristeza do
mar, deu licença, que quando os bateis fossem em terra, sahissem alguns soldados a fazer
resgate com os negros, que logo acudirão a praya, como virão as naos surtas ; com a qual
licença pelos negros andarem com os nossos Portugueses muy familiares de darem gado
a troco de pedaços de ferro, e pannos que elles muyto estimão ; tomarão alguns outra
licença de /fl. 1 v./ yrem com elles a suas aldeas, que erão de alli pouco mais de huma
legua, em as quais jornadas lhe ficarão por la alguns punhais que levavão por lhos
tomarem os Cafres.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Por se vingarem daquella afronta, hum Gonçalo Homem, criado do Viso Rey,
trouxe dous delles enganados, carregados de certas cousas que elle lhes comprara & como
os Cafres de ma vontade querião chegar a praya, sospeitosos da malicia delles, & elle
hum pouco por força os quizesse obrigar, deixarão o que trazião, e tratarão tão mal ao
Portuguez que se veyo aprezentar ante o Viso Rey com o rosto cheyo de sangue, e alguns
dentes quebrados ; e foy isto em tempo que estavão com o Viso Rey algumas pessoas,
cujos criados tinhão recebido dos negros outra tal companhia ; principalmente hum
Fernão Carrafeo criado do capitão Iorge de Melo : & tanto se indignarão contra todos os
Cafres que moverão ao Viso Rey a sahir ate a povoação, e dar lhe hum castigo, mais por
comprazer aquelles fidalgos, que o incitarão, do que elle tinha vontade de o fazer ; com
tudo isto alguns delles forão de parecer contrario, como forão os capitães Lourenço de
Brito, Iorge de Melo, e Martim Coelho.

E porque a povoação estava hum pouco assima se foi em os bateis com I50.
soldados dos melhores de toda a gente, e desembarcou mais junto das aldeas ; deixando
dito a Diogo de Vnhos mestre da sua nao que em os bateis ficava, que não se apartasse
daquelle lugar, e não parece senão que seu coração lhe dezia quanta necessidade avia de
ter delles : & em o aspecto que /fl. 2/ levava naquella jornada lhe pronosticava sua ultima
hora : porque despois que concedeo aquella ida aos fidalgos que o persuadião a isso,
sempre disse, e fez cousas como que annunciava a morte ; e assim sahindo do batel disse :
Adonde levão 60 annos ! Despois caminhando pella praya, acertou de se meter huma
pouca de area pellos çapatos, e mandando a hum Ioão Gonsalvez que lhe servia de
Camareiro que lhos descalçasse, começou este Ioão Gonsalvez a bater hum no outro para
lançar a area fora. Ao que ele disse : Quão fora estava D. Ioão de Meneses, se aqui fora,
e ouvira esse seu bater de çapatos dar hum passo mais adiante, ajnda que fora para dar
huma batalha muyto de sua honra : mas como eu creyo mais em Deos, que em abusos,
não deixarei de seguir meu caminho.

E o caso que o Viso Rey alegava com D. Ioão, era por ser cousa muy sabida em o
Reyno de Portugal, que tinha o agouro em duas cousas ; em o bater dos çapatos, & em o
dia de terça feira ; pello que lhe socedeo em o tempo que lhe morreo o Principe D. Afonso
ao tempo que em Sanctarem cahio do cavalo ; & em outras ocasiões : porem em o Viso
Rey foi o contrario, porque fez zombaria do bater, que aconteceo a cazo, o qual não tardou

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

meya hora que o não notasse em a aldea dos Negros. Porque entrada ella dos nossos,
matarão a Fernão Pereyra ; e chegando a nova ao Viso Rey, mandou logo com toda a
pressa recolher a gente ; e vindo já por caminho, e andado meya legua, trazendo os
soldados algumas vacas, e crianças que acharão pellas cazas ; começarão de descer do
lugar / fl. 2 v./ ate 80. delles, como gente que se vinha offrecer a morte por salvar seus
filhos ; e vendo a resolução delles, mandou o capitão Brito deixar as crianças : porem
elles vinhão furiosos, que passando por tudo, derão em o corpo dos nossos, tomando por
industria carear, e asubiar ao seu gado, que como o tem acostumado para aquelle
ministerio da peleja, começarão de lhe fazer os sinais, e outras cousas : de maneira que
lançados entre elle, como em esquadrão de seu amparo arremessarão aos Portugueses seus
paos tostados, com que comessarão logo de cahir alguns dos nossos feridos, fazendo-lhes
dano tambem o gado ; e como os mais delles não trazião armas offensivas, e as que trazião
era huma pica, & espada, e naquelle modo de peleja não podião fazer muyto dano aos
Cafres, & elles de dentro do gado atiravão com seus arremessos que derribavão logo hum
Portuguez.

Em este modo de peleja vindo os nossos bem cançados, e para tomarem algum
alivio se forão retirando ate os bateis, donde mandou o Viso Rey ficar o mestre da nao
Diogo de Vnhos, mas não os acharão, por fazer alli grandes ondas o mar, com o tempo
que lhes sobreveyo, que causou levarem os bateis para junto das naos, de maneira que
adonde esperavão algum refugio, acharão a morte ; porque estando em a area da praya,
ficarão de todo decepados, sem poder dar mais hum passo, e os Cafres andavão tão soltos,
e ligeiros que parecião aves, movendo se para toda a parte com /fl. 3/ notavel ligeireza,
derribando em os fidalgos, e cavaleiros, que por respeito do Viso Rey o vinhão
acompanhando com grande trabalho sem se poderem deslindar delles. O mais piedoso de
tudo isto foi que alguns Portugueses vinhão já muy feridos, e de não poderem pella area
solta dar hum passo se metião pella1534 agua por acharem o chão mais tezo, tengindo o
mar com o seu proprio sangue, não podendo ajudar huns aos outros em aquelle trabalho ;
e assim veyo o capitão Iorge de Melo a encontrar se com o Viso Rey, e vendo que vinha
algum tanto desemparado da gente, por cada hum ter bem que fazer em si, lhe disse o
capitão Melo (por vir hum pouco descontente delle sobre as cousas de Afonso de

1534
Repetido no Ms.: «pella».

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Albuquerque) Aqui quisera eu ver junto a vos aquelles, a quem fizestes tanta honra,
porque este he o tempo em que se pagão as boas obras. Ao que lhe respodeo : Senhor
Iorge de Melo, os que me devião alguma cousa, já ficão atras de mim, e não he tempo já
para isso, senão para vos lembrar vossa fidalguia ; e vos pido em esta vltima hora (pois
Deos he servido que acabe a vida entre estes Cafres) que acompanheis, e liberteis aquella
bandeira del Rey nosso Senhor, porque vay muy mal tratada. Em este tempo erão já
derribados os capitães Pedro Barreto de Magalhães, Lourenço de Brito, Manoel Tellez,
Manoel Coelho, Antonio do Campo, Francisco Coutinho, Pedro Teixeira, Gaspar de
Almeyda, e outros, somente com humas varas tostadas sem ferro, ajnda que /fl. 3 v./ elles
se defenderão maravilhosamente, mas nada lhes aproveitou, porque os Negros não fazião
senão arrojar suas varas, e picar os pes.

Iorge de Melo em este dia bem mostrou seu grande valor, pois nunca dezemparou
assim a bandeira, como a pessoa do Viso Rey acompanhando-o sempre, ate que
atravessando lhe a garganta em aquelle areal que tinha mohido, com huma vara tostada
sem ferro ; e sentindo se ferido de morte, o valeroso Viso Rey, cravou logo os joelhos em
terra, e os olhos em o Ceo : & encomendando sua alma a Deos, espirou logo com grande
dor dos seus, que perderão nelle pay, irmão, e companheiro juntamente, porque o foi elle
sempre, de todos os quatro annos que governou em aquellas partes da India. E ouvindo
Diogo Pirez ayo que fora de D. Lourenço, que o Viso Rey ficava derribado, arremeteo
contra os Cafres dizendo : Nunca Deos queira que eu fique vivo, deixando qua o filho, e
o pay, e tornando sobre elles ficou tambem morto para sempre. Morrerão com o Viso Rey
muytos soldados velhos dos melhores que vinhão em as embarcações ; & entre elles doze
principais capitães, que he vergonha dize lo : os quais pelejando com os Barbaros, e não
se sabendo menear em a muyta area que avia, vierão a morrer mais de 80. E os que
escaparão vinhão os mais delles feridos. Iorge de Melo a quem ficou o cuidado das
reliquias que ficarão das mãos dos Cafres, despois que elles se recolherão a sua aldea,
trouxe para as naos os feridos, e tornou a buscar / fl. 4/ os mortos a praya, para lhes dar
nella algum modo de sepultura ; e quando chegou adonde estava o corpo do Viso Rey o
vio já despojado em carnes (cousa lastimosa) em a dura area, não so sem a honra que lhe
merecia, porem ajnda o que mais lastima faz, privado de huma pobre sepultura, e feito
manjar das aves, e bestas do campo. Sentio se notavelmente em Portugal aquella disgraça,
porque foi huma das memoraveis que sucederão em muytos annos, morrendo alli tanta

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

nobreza, e os mais valerosos capitães que teve a India. Este lastimoso caso sucedeo em o
primeiro de Março de I5I0. cuja morte de D. Francisco de Almeyda foi sentida del Rey
D. Manoel, pella falta de tão grande pessoa ; e dos Reys Catholicos de Castella, a quem
tinha servido com grande valor em as guerras de Granada.”

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Documento 2

“Relaçam do Naufragio da Náo São Thomé de que era Cappitão Esteuão da Veiga, a qual
se perdeo na Terra dos Fumos no anno de 1589, e dos grandes trabalhos, que passou Dom
Paulo de Lima e mais Companheiros nas Terras da Cafraria, até sua morte” (transcrição
nossa).

s.l., s.d.

B.P.E., Cód. CXVI/1-22, fls. 1-100.1535

“Relaçam do Naufragio da Náo São Thomé de que era Cappitão Esteuão da Veiga, a
qual se perdeo na Terra dos Fumos no anno de 1589, e dos grandes trabalhos, que
passou Dom Paulo de Lima e mais Companheiros nas Terras da Cafraria, até sua morte

/fl. 1/ Naufragio da Náo São Thome na Terra dos Fumos


no anno de 1589

Partio de Côchim o Capitão Esteuão da Veyga em a Náo São Thomé, a 16 de


Janeiro de 1589: dezembarcou por entre as Ilhas de Maldivas, e Ponta de Galé, na Ilha de
Ceilão, Viagem que o piloto Gaspar Goncalues primeiro tinha feito com a Náo Conceição,
e agora a quis tornar a seguir; por esta derrota forão passando ao sul de todas as Ilhas, e
baxos da Carreira ordinaria; achou tempos bonaçozos, outros Piloutos acharão /fl. 2/
depois tormentas; mas são tanto mayores os perigos que se euitão com a segurança desta

1535
Códice sem menção de autoria, composto por 407 fólios, sendo a primeira folha a que contém o título.
Na numeração, ao fólio 386 segue-se o 388. Códice cosido à lombada (não original), formato 8º, composto
por cadernos de duas folhas A4 dobradas; filigrana do papel distinta da do códice CXVI/1-24, com o qual
partilha afinidades de conteúdo, mas se revela distinto, tanto na extensão como na organização do texto. A
letra deste códice é diferente, a tinta quase preta; bom estado de conservação. Divide-se em duas partes: 1ª)
Relação do naufrágio da nau S. Tomé, fls 1-103; 2ª) Genealogia de D. Paulo de Lima, fls. 104-407. Este
manuscrito foi durante muito tempo confundido com o de cota próxima – CXVI/1-24, de autoria de António
de Ataíde, publicado por por Luís SILVEIRA, A Derradeira Aventura de D. Paulo de Lima, Colecção « As
Grandes Aventuras e os Grandes Aventureiros», Lisboa, Typographia Portugal-Brasil – Livraria Bertrand,
1947.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Carreira, que não sey como a não continuão antes, que á ordinaria por entre as Ilhas razas,
e baixos sobre auguados, perigos irreparaueis.
Em altura de 28 graos da banda do sul, vindo demandar a Ilha de Diogo Rodrigues,
entrou sueste ventante, e rrijo, que naquella paragem e derrota, he vento escasso, e não se
pode navegar, senão por bolina esternida; o mar grosso, o vento grande, a Náo com
esçesso sobrecarregada, abrio agua pella /fl. 3/ proa, vão buscala achão as custuras sem
calefeto. Não se pode cuidar sem dor, que enforca a justiça hum homem por furtar sinco
tostois, e não se castigão os que tem estas tanto mayores culpas; que huns por furtar a
fazenda del Rey, outros por não gastar da fazenda del Rey (que destes há poucos) perdem
tantas vidas, tantas fazendas, como vem em huma Náo da India. Tomou se a agoa o
melhor que foy possivel, e para mayor segurança alijarão de proa 70. barris de gengibre,
e conserua; abonançou, e milhorou o tempo, a Náo mais leve foi fazendo viagem;
facilmente se vençião as bombas. Não durou /fl. 4/ muito este repouzo, dahi a poucos
dias, como sem leguas da cabeça da Ilha de São Lourenço, em 26. graos, abrio outra agoa
por popa, em parte onde o rremedio hé quaze impossiuel; (...)

/fl. 18/ (...) surgirão na manhaã de 21. de Março, despedem quatro marinheiros a explorar
a terra, com ordem que descobriçem dos outeiros se uião algumas pouoaçoens; tornão
elles dizendo que virão perto hum fogo; junta lhe Dom Paulo hum homem, que sabia a
lingoa dos cafres de Cuama, para ver se podia entender se com os que encontrassem. Em
hum valle forão dar com huas cazas cubertas de palha; os negros, que nunca tinhão visto
homens de outra cor, fugirão como de monstruos, por /fl. 19/ assenos se introduzio a
familiaridade, e sem se lhes emtender palavra alguma se vierão com os portuguezes a
praya; mas como o uento susudueste era já fresco, e seruia em popa, por costa; leuou se
o batel para hir tomar os companheiros em huma enseada, que se uia perto. Os Cafres se
despidirão, tendo conuidado aos Portuguezes com um pedaço de merú, animal semelhante
á vaca. Cresceo o vento com tanta furia, que sem duvida se perderião todos, senão
emcalharão, e já o fizerão com munto risco das vidas. Dezembarcarão municoens, e
mantimentos; poem fogo ao batel para se valerem da pregadura, e ferros, mercaduria de
proveito naquella Cafraria. A noite, /fl. 20/ e a chuva passarão entre huns penedos, ou
medos de areia, que por haver muitos naquella paragem lhe chamão os Medos do Ouro.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Ao outro dia tomou o Piloto o sol, achouçe em 27 graos entre a terra do Natal, e a
dos Fumos, toda a costa limpa e sem recifes; e feita resenha, acharam-se nouenta, e ouito
pessoas, sinco arcabuzes, quatro espadas, hum barril de poluora, murroens, e pelouros, e
sinco rodellas. Dos rremos fazem astzas (?), que ferrarão com pregos, e uerrumas; de
couros crus uazilhas para agua da uella alforges para recolher o mantimento, que fossem
achando pello caminho; e aquelle pouco biscouto com que se acharão /fl. 21/ de que coube
a cada hum dous punhados. Entrão em conselho sobre o caminho que hauião de leuar, e
assentão, que ao longo da praya, uão buscando o Rio de Lourenço Marques, muyto
conhecido na carta de marear, mas não hauia entre elles quem tiuesse outra notiçia. O
successo mostrou ser o conselho errado; e depois esta experiencia faz cauto a Nuno Velho
Pereira, que na sua perdição se meteo pello sertão, em que achou mantimentos, e depois
de estar tanto dentro, que já podesse atrauessar os rios a uao, seguio sua uiagem com bom
successo.
Com esta esquadra assim armada, e assim prouida comessou Dom Paulo de Lima
a /fl. 22/ marchar a 22 de Março, e primeiro que partissem fez aos companheiros hua
pratica deste modo: quem pode, senhores, comprehender os altos juizos de Deos, saberá
dar a rrazão porque foy seruido escolher os que aqui estamos, para nos liuar (?) daquelle
espectaculo que uimos há tres dias, e que não pode esquecer, emquanto uiuermos:
pudéramos chegar a Portugal com essa fazenda, que leuauamos que não era bastante para
nos leuantar muito da fortuna em que nascemos, nem ainda para nos sustentar nella com
abundançia: se Deos tem liurado nestes trabalhos a salvação de nossas almas,
bemauenturado infortunio, prospero naufragio, riquissima perdição: a fama, de que
sempre os Portuguezes fizerão o /fl. 23/ mayor cabedal, mais se eterniza por aduersidades
uençidas, que em prosperidades logradas: se o Capitão Manoel de Souza de Sepulueda, e
seus companheiros chegarão a Portugal a saluamento, tambem hoje forão mortos, e
esquecidos; nesta mesma paragem perpetuarão os nomes, e as famas. Ainda por conta de
intereçe he de crer, que se Deos nos leuar ao Reyno com as merçes del Rey, auantejemos
de fazenda, como sempre aconteceo aos que se saluarão de semilhantes naufragios; que
aos princepes generozos, soem ser mais agradaveis os monstros da fortuna, que os da
natureza; na uossa união consiste a nossa saluação; não haja quem se emgane cuidando,
que apartandoçe pode adiantarçe, por que além de prouocar a ira de Deos, com /fl. 24/ a
impiedade de deixar os companheiros nestes dezertos, não poderão defender se dos

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Cafres, que todavia hão de respeitar este numero unido; no mesmo Manoel de Souza
temos o exemplo, que pela dezunião de alguns se perderão tantos; seja nosso Alferes o
Padre Frey Antonio da Magdalena, que seguindo aquelle gloriozo Estandarte, que tem
nas mãos, quem pode perder as esperanças de sua salvação. Mas primeiro o adoremos, e
inuoquemos o esquadrão celeste em nosso fauor. Ajoelharão-se todos, canta o Padre Frey
Nicolao do Rozario da ordem dos Pregadores as ladainhas, a que respondem todos muito
deuotamente. E acabadas se fes justa repartição entre os dous Religiozos: o /fl. 25/de São
Domingos com offiçio de Mestre, e o de São Françisco na occupação de Parroco.

1536
Forão os dous religiozos, emquanto uiuerão o rremedio, o aliuio, e a consolação
Espiritual daquella companhia. Toma Dom Paulo de Lima a uanguarda, e o Capitão
Esteuão da Veyga a rretaguarda para leuarem assim recolhida a gente, que não se
dezordene. Este dia e o seguinte se alojarão naquelles montes de area, e para descubrir
gente deixarão a praya, e sobirão as primeiras serras. A agua tinhaçe derramado pellas
costuras das uelas, digo uazilhas, e não acharão outra. Já não comião senão os cangrejos
da praya, poucos, e ruins; para os que sacraficarão a Deos este trabalho, e o rreceberão
com santa con- /fl. 26/ formidade, pouco melhor mantimento era, que o de gafanhotos e
mel silvestre. Já rendidos da calma, e da sede baxarão dous homens a um ualle buscar
agua, e dezesperados della, derão no chão com enxós de carpinteiro que leuauão, e a
poucos golpes achão agua muito boa. Não se alegrou mais o pouo de Israel com o toque
da uara de Moyzes na pedra, mas este agradeçeo melhor o benefiçio. Refizerão-se aquella
noite do trabalho, mas não puderão prouersse de agua para o caminho, por falta de
uazilhas. Descem ao outro dia da serra a huma terra mais chaã caminhando pello sertão
ao rrumo, que a costa corre; do caminho ouuem gritos de Cafres, e logo uem hum torpel
delles /fl. 27/ com zagayas nas maos, párão a uista dos Portuguezes, respeitando o
numero, e modo com que os esperauão; e de hum outeiro conuocão a gritos mais gente.
Dom Paulo de Lima despede logo da uanguarda aquelle homem, que tinha notiçia da
lingoa dos Cafres de Sofala, com outro companheiro, e com huma bandeirinha branca, se
chegassem, e uissem se podião entender alguma palaura. Sahe a rreçebelos hum Cafre
dizendo a gritos: Molungos, Molungos. Palavra que entre elles signefica senhores, e com
ella nomeão tambem os Portuguezes. Recebe em premio hum barrete uermelho; em

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Ms. : Riscado por engano do autor: «ligiozos». Na mesma linha continua o texto.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

agradeçimento, e festa começa a correr pello canpo de huma parte para a outra ao longo
das nossas filleiras. A esta demonstração descemos /fl. 28/os companheiros nenhuma
outra palaura se lhe pode emtender; por assenos lhe pedem os nossos agua, guião elles,
seguem os nossos por sementeiras de feijoens, em nada tocam por não haver offença;
mostram os Cafres cabaços de agua, não querem dalla sem preço; impede Dom Paulo a
compra, porque seria de grande damno passar aquella noua e exemplo adiante, de que
uendião agua. A tal estado chega a cobiça que atè elementos liures, e comuns á gente,
dificulta, uende, e encareçe se pode; e por isso jà o outro senador bebendo com grande
sede hum pucaro de agua da fonte fria do seu cazal, leuantando mãos, e olhos ao Ceo,
disse: Bemdito seja deos que não uens para consulta! Não quizerão os Cafres dar agua,
nem uen- /fl. 29/ der outro mantimento, manda o capitão a hum soldado, que diante delles
a tire com huma espingarda a hum passaro. Não tinhão elles ouuido disparar arcabus,
atordidos cahem os mais delles no chão, largão as zagayas, e fogem gritando.

De nenhuma outra couza hão de fazer mayor prouimento, os que se perderem


nestas paragens, que de armas, pregos, pedaços de ferros, e qualquer metal baixo, por que
o ouro, e prata não se estima. Parão os Cafres de longe, tornão os Portuguezes a significar
lhes amizade, e comercio, batendo as mãos sinal de pas, e amizade entre elles, mas nem
assim quizerão dar, nem mostrar o lugar da agua. Tornão os nossos chegando á pouoaç-
/fl. 30/ am das suas choupanas, temem-se disso os Cafres com grandes alaridos; achão os
nossos as mulheres, dão-lhes da agua que tinhão, e nem ellas querem mostrar a fonte; por
assenos lhes significão, que estaua longe, e adiante. Seguem seu caminho para onde lhe
demarcarão, atrauessando sementeiras de feijoens; tomauão alguns, que comião assim
uerdes, e com cascas, de que os Cafres se resentirão tanto, que se puzerão em ordem de o
defender por armas, mas não se rezoluerão, porque tambem os nossos hião sahindo dos
campos. Por huma senda estreita forão dar em hum charco de agua, aonde alojarão aquella
noite, e os Cafres num outeiro, os quaes tinhão huma só cabra, que não quizerão uender.
/fl. 31/ Continuarão seu caminho, e os negros cada dia recreçião; pareçeo, que conuinha
tornar á praya, porque com as costas seguras no mar, poderão melhor rezistir. Trazião-lhe
os Cafres espigas de milho cozido, que uendião por pedaços de panos, e pregos. Nesta
praya entre humas matas ficou o primeiro companheiro ainda uiuo, mas já espirando,
cego, e com a cabeça toda inchada com notauel grandeza; tudo se deuia ao trabalho, e
tratamento que padeçião.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Bem sei, que muitas das couzas, que tenho escrito, e hei de referir, parecerão
indignas de memoria, e por uentura mais affectuozas, que importantes, mas trato-as com
particularidade, para que siruão de auizo, e como hum Itene- /fl. 32/ rario daquellas
Prouincias em cazos dezestrados. Tambem Cornelio Tacito se desculpa do mesmo nos
Annaes de Tiberio, dizendo, que se lhe ofereçeo materia curta, e trabalho sem gloria, em
tempo que estaua a cidade triste. Como os negros se uirão mais de duzentos, intentarão
Batalha, e as primeiras arcabuzadas, que os nossos derão, uoltarão fugindo mais do
estrondo, que do damno. Continuarão os nossos seu caminho, e tendo caminhado meya
legua, sahio de hum ualle á praya hum uelho uenerando cuberto de huma grande pelle de
tigre, huma uara direita na mão, a mulher a sua ilharga, cuberta de pano azul, que pareçia
bertangil, acompanhado de muitos Cafres, com tanto respeito que /fl. 33/ por elle, e pellas
insignias, julgarão os nossos ter supremo poder naquelle destrito; por asenos segnificou
domistiqueza, a qual tão bem se enxergaua em todos os da sua companhia: guião para o
sertão, seguem os nossos, parão em huma pouoação situada junto de huma lagoa igual ou
mayor, que toda a bahia de Lisboa; entra nella a maré por huma boca do Rio, muito
piquena, e estreita, que de baixa mar se uadea pella praya. Esta lagoa he saloubra, mas as
muitas poucas, que há ao longo della, são todas de agua doçe. Por pedaços de panos e
alguns pregos uenderão os Cafres muito peixe saborozo, e gordo, galinhas, massa cozida,
cabras; o que mais se estimou foy a familiaridade, e singeleza da gente; derão a enten- /fl.
34/ der, que forão conuocados para o assalto passado, e não quizerão acharçe nelle. Toda
a noite rodearão as suas mulheres o nosso alojamento com bailes, e cantares a seu modo.
Lembrado ficou sempre entre os nossos o Rio da Abundancia, que assim o nomearão
pello bom acolhemento que alli tiuerão.

Em Domingo 26. de Março o Piloto achou, que estaua em 26. graos e meyo.
Segunda feira passarão pella praya grande sede, entrarão por huma uereda dos animaes
do campo, que os leuou a hum brejo, aonde fizerão alto, e alojarão aquella noite. De
comum pareçer detriminarão o dia seguinte entrar pello sertão, por que já uião, que na
praya nem ha- /fl. 35/ uia agua, nem mantimento, nem pouoaçõens. Duas atalayas
descubrirão huma lagoa tão grande como a da Abundançia, e da outra banda alguns fogos,
caminharão e alojarão na praya. Aos 30. de Março chegarão a boca da lagoa, e por hum
rio estreito, que da terra se uinha meter no lago, passarão á outra parte; tomarão o sol em
26. graos, e hum quarto.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Era Quinta feira de Endoenças, celebraua aquelle pequeno pouo christão as


sagradas memorias daquelle dia, no meyo da gentilidade, e montanhas da Cafraria, com
mais aceitação, que nas populozas Cortes na nossa Europa, aonde alguma ues hé mayor a
pompa, que a deuoção, e aonde para aquelles sagrados dias rezeruão /fl. 36/ muitos a
execução de suas abominaçõens. Esta pobre manada pastorada por aquelles dous
Reuerendos Padres Frey Antonio, e Frey Nicoláo, ali naquelle mato pastorados diante de
hum cruxifixo agradeçem quanto podem o grande benefiçio da Redempção, juntão seus
trabalhos com os de Christo, e todos offereçem ao Padre Eterno em satisfação de seos
pecados, com entranhauel sentimento de terem offendido a hum Deos, que tanto mereçe
ser amado, resignão suas uontades na Diuina, expostos a todo o tromento. Oh grande
Miziricordia de Deos. Eis que as Atalayas encontrão hum Cafre, que com sua mulher
vinha descendo à praya, trazia na mão huma pelle de ve- /fl. 37/ ado com a cabeça, e
alguns ossos, que aquella manhãa tinha tirado, a hum Tigre, por asenos lhe rrogaõ, que
os guie por huma camiza que lhe uestirão, uolta o Cafre guiando por hum ualle comprido,
e apaulado, delle sahirão a milhor terra; os da dianteira topão outro Cafre, com o qual
esperão a companhia. Não se espantou este de uer Portuguezes, antes disse Capitão,
galinha, biscouto, nenhuma outra palaura lhe entenderão, mas com estas se alegrarão
grandemente, como testemunhas do Comerçio Portugues; este despedio o primeiro com
recado, que nos alli não entendemos. Tendo descansado a gente, leuantouçe o negro, e
com grande alegria os uay guiando, breuemente encontrarão huma esquadra com dous
Prinçipaes que /fl. 38/ os uinha reconheçer, e reçeber da parte do Rey, pello recado que
teue; trazião consigo hum que falaua bem a lingoa Portugueza, por elle se informou Dom
Paulo de Lima, que estauão na terra do Rey Inhaca comerciando com os Portugezes por
huma Ilha sua, que estaua adiante na boca de hum Rio aonde algumas uezes (posto que
raras) uinhão Portuguezes comprar marfim, e que este Inhaca era filho herdeiro do que
recolheo a Manoel de Souza de Sepulueda com bom tratamento.

Nestas praticas forão até a pouoação do Rey; no meyo de hum grande terreiro se
assentarão à sombra de huma aruore rodeados daquelle pouo, reçebidos com amor, e
singileza, prinçi- /fl. 39/ palmente das mulheres, que muito se comdohião dos trabalhos,
e do estado lastimozo em que uião as nossas Portuguezas, e as conuidauão com
agazalhado das suas cazas. Pouco tardou o Rey, uinha nú, mas honesto, e cuberto com
hum farragoulo uerde já uzado, a cabeça descuberta, sinco zagaias na mão, chegarão os

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nossos a fazerlhe cortezia, a cada hum abraçaua o Rey com grande alegria, e logo fes
differença com Dom Paulo de Lima, que naturalmente se fazia respeitar; assenta-se ao pé
da aruore em lugar mais eminente, Dom Paulo de huma banda, e o Capitão Esteuão da
Ueyga da outra, o Cafre lingoa junto a elles; e todos os mais se sentarão em companhia
dos naturaes. Pergunta Inhaca pela cauza, modo, e lugar do Naufragio; refere Dom /fl.
40/ Paulo como a Náo abrio com grande carga, e não podendo chegar a terra os que nella
uinhão, ordenarão como se pudeçem saluar, que aquella companhia ueyo junta em huma
embarcação, e tomara aquella paragem com esperança de bom acolhimento dos naturaes;
que como já tinhão conhecimento dos Portuguezes, e da sua boa comrrespondençia, era
certo, que lhes não faltarião com o necessario para sua uiagem. Nem Dom Paulo se
acomodara a rreprezentar mais mizerias, nem a ocazião o pedia, que entre brabaros antes
grangeão desprezo, que piedade. Confiadamente pedio ao Rey, que os mandaçe prouer; e
em prencipio de bom reconheçimento, o cubrio com hum panno de ouro e seda, que D.
Marianna tirou de /fl. 41/ sy para este prezente; deo lhe mais huma bacia de cobre, e huma
uerruma grossa, pessas que Inhaca estimou muyto, e tanto, que sendo por natureza muito
authorizado, se descompos com alegria do prezente. Responde o Rey com grandes
agradeçimentos, e offertas de secorro, e amparo: manda em retorno duas alcofas de
ameixoeira, e huma cabra; ordena, que logo tragão seus uassallos a uender mantimentos
da terra, sinala-lhes alojamento em huma Aldea, que os nossos agradeçem, mas não
aseitão, por iuitar inconuinientes. Entende Inhaca que desconfião os Portuguezes da sua
fée, recenteçe de não lhe aseitarem agazalhado, e que nisto deferião muito dos outros
Portuguezes, que uinhão a suas terras, e nellas reze- /fl. 42/diam segura, e confiadamente
o tempo que lhes era neçessario para a suas mercançias, e poucos dias hauia que de huma
Ilha sua, que distaua dalli duas jornadas, sahira huma Náo de Portuguezes, e que os
auizaua, que conçiderassem bem como querião continuar a uiagem, por que sendo por
terra hauião de passar pella Prouinçia de Mocangras, gente sem piedade, e sem trato
humano, brutos, temerarios, e crueis; que milhor era esperarem, que uiesse outra Náo de
trato, ou que se foçem para aquella Ilha, na qual, e nas barracas, que os Portuguezes alli
deixarão feitas poderião esperar seguros, e tão bem ficara alli huma embarcação do
seruiço dos mesmos Portuguezes, que por uentura lhes seria de proueito.

/fl. 43/ Muito estimão os nossos tudo o que Inhaca lhes dezia, e já se prometião prospero
successo na embarcação da Ilha; e assim pedirão guias para o caminho. Afirmão, que

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porque erão muitos, e poderia hauer dezordens com seus uassallos, querem aquella noite
alojar no canpo. Conformouçe o Rey com esta razão. Despedido delle, uão-se os nossos
ao canpo, aonde ja hauia praça de galinhas, e mocates (que são huns bollos pardos de
farinha de meixoeira) e massa cozida, jugas, feijoes, cabras, e tudo o mais que na terra
hauia; pagão os nossos com tiras de panno, que rompião das suas camizas, e com pregos.
Era o dia seguinte sesta feira de Paxão, leuão-se os nossos para se partirem, recenteçe
Inhaca da pressa atribuindo-o a desconfiança de sua uerda- /fl. 44/ de. Uem-se aos nossos,
dis lhes que não he bem que partão das suas terras como fugitiuos, ou temerozos, que
descansem hum dia para se refazerem do grande trabalho passado, e que quando outra
rezão não houuesse, só por respeito das mulheres deuião de dar mais repouzo. Assim se
fes, e ao sabbado Santo partirão com aprazimento do Rey, e com tres Cafres, que
seruissem de guias, e saluaguarda; dous delles fallauão bem a lingoa Portugueza: hum
disse que se chamaua Pedro; nenhum dá razão de como alli uiera ter; conjecturarão os
nossos, que deuião ser fugidos de Portuguezes das Naos do trato: outro, que os não pode
acompanhar, e se chamaua Antonio, já muito uelho, contou co- /fl. 45/ mo se perdera em
companhia de Manoel de Souza de Supulueda, referio com particularidade a perdição da
Náo, e os trabalhos, que passarão atè chegarem áquelle Rey, em cuju seruiço elle ficara,
e que Manoel de Souza se perdera por não seguir o concelho do Inhaca uelho: semelhante
ao que lhes daua seu filho, que senão podessem passar a Bahia de Lourenço Marques, que
esperassem occazião e não cometesse rodealla pello sertão, pois não leuauão armas, com
que resestir, nem mantimentos para passar aquellas terras, nas quaes o não acharião, se
não conquistado; e que entendessem, que todos os habitadores, desta Bahia, Rio do Fumo,
e Anzata, erão de huma mesma ruim na-/fl. 46/tureza; que se o não cressem o successo o
acreditaria.

Caminharão os nossos com muita chuua, forão bem reçebidos nas Aldeas por onde
passarão, e aos 4 de Abril houuerão uista da Bahia, e Rio, que uinhão buscando, que nas
cartas de marear se intitulla de Lourenço Marques, porque elle o descobrio, e lhe pos o
nome do Espirito Santo; e logo uirão a Ilha do Inhaca separada da terra firme por duzentos
passos. Està à boca da Bahia em altura de 26 graos escaços, terà de terra a terra seis leguas;
há dentro bom fundo de quinze, uinte braças, entra muito pella terra dentro fazendo
braços, e reçebendo os Rios Melengane, e Anzete, e Fumo, no qu-/fl. 47/al acabou Manoel
de Souza, e sua Mulher, e companheiros o Rio de Manhica está na boca da Bahia.

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He o Manhica o regalo daquella Prouincia, a que os Portuguezes comprão algum


marfim dos medos de ouro atè aqui corre a costa Nordeste, Sudueste, e tomada Quarta do
Norte Sul, toda limpa e sem recifes, a partes tem algumas pedras junto da 1537 quebraçia
do mar. Dous dias gastarão em passar à Ilha, com duas pequenas almadias. He fresca,
com muito aruoredo, e pastos, creação de uacas, e cabras, seguras dos tigres, e leoens,
que hauendo muitos em toda aquella terra firme, está a Ilha sem elles. Forão sobindo, e
atraueçando atè huma Aldea, /fl. 48/ donde uirão da outra banda a terra firme; e junto da
Ilha, outra Ilheta, que em baixa mar se uadea com esta, na qual habitam os Portuguezes,
que alli uem á tratar. Aqui pararão, acodindo logo os naturaes com os mantimentos da
terra, e contão, que hauia pouco mais de uinte dias, que dalli partira hum Nauio de
Mocambique, tendo rezedido os Portuguezes delle anno e meyo naquella Ilha no trato de
suas mercadorias.

Ao outro dia forão officiaes uer se a embarcação que os Portuguezes deixarão


estaua capas de passar a gente a outra banda. Achão duas, huma mayor que se chama
Luzio, julgão que hè de porte de sessenta pe-/fl. 49/ssoas; a outra Almadia mais piquena,
de uinte, e que com pouca obra poderão ser de seruiço. Ainda que Inhaca proçedeo com
os nossos como tenho referido, sempre forão acautellados de alguma inconstançia natural
daquelles Cafres; pello que ordena Dom Paulo de Lima que uà hum homem ao Inhaca
pedir lhe licença para repararem o Luzio, e que lhes mande dous Embaxadores, que com
dous Portuguezes uão da sua parte ao Manhica pedir lhe gente, que os guie, e guarde atè
Inhambane, donde facilmente poderião communicarçe com Mocambique, a que elles
chamão a Manga. Responde Inhaca, que a embarcação era dos Portuguezes, e que elle
não tinha duuida em e-/fl. 50/lles disporem della como lhes pareçesse; manda os dous
Embaxadores, passarão se logo todos à Ilha, e com grande diligençia tratarão de reparar
as embarcaçoens. Os Embaxadores como uirão tanta dilação e tanto aperçibimento,
entenderão, que a gente queria passar toda; tornarão a dar conta disso ao Inhaca sem o
dizerem aos nossos. Dom Paulo despacha logo outro homem a dizer a Inhaca, que elles
pereçião à falta de mantimentos, e lhes começaua a morrer gente, que fosse seruido de os
mandar sostentar atè uir alguma embarcação, ou lhos desse licença para se hirem; e entre
tanto deu pressa ao apresto, de modo que já a rresposta os achaçe embarcados. Respon-

1537
Repetido no Ms.: «da».

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/fl. 51/ de Inhaca, que elle lhes tinha dito o que emtendia amiga, e singelamente, que sobre
isso fizeçem o que lhes pareçesse.

Já entre os nossos hauia diferentes pareçeres, huns dizião, que no Luzio poderião
nauegar atè Inhambane; outros requerião, que primeiro passassem todos a Manhica, terra
abastada, e gente conhecida, e que alli escolherião o que mais conuiesse. Para isto se
embarcarão a 18 de Abril, o Mestre com 16 pessoas na Almadia, os mais no Luzio, que
estaua aperçebido de amarras de raizes, ancora de pedra, uella de hum cobertor, e de
pedaços de camizas. Não pode o Luzio com a carga, e era já tanta a agua que recolhia,
que com difficuldade, e pi- /fl. 52/ rigo se dezembarcarão todos. Eis a confuzão, a
dezesperação os portestos: huns pedião o Luzio, que elles com pouca gente se obrigauão
a hir a Inhambane, e a Sofala, e trarião embarcação aos companheiros: outros, que na
Almadia, e no Luzio passassem á outra banda com pouca carga, e por muitas uezes. Todos
se timião da fidelidade dos primeiros, que como se uiçem embarcados se esqueçerião dos
que ficauão. Dom Paulo não quis ser dos que primeiro se saluassem, e como anteuia o
successo da separação, como Julio Cezar se cobrio com a capa, rendido à liga dos
senadores, assim ellese meteo na ssua choupana com sua mulher, rendido já à conjuração
da fortuna. Manda dizer ao capitão que na- /fl. 53/ quella Ilha se ficaua purgando seus
pecados, por que entenia, que elles forão a cauza da perdição da Nao, e erão o
impedimento da Saluação daquella Companhia, que tinha dito o que conuinha, que não
podia encaminhar as dezordens. Era o mayor tarbalho que temia aquella gente faltar lhes
Dom Paulo de Lima, Uão-se todos a elle encampar lhe as suas uidas, que as não querião
deixando-o, e que se elle ficaua, todos querião morrer antes na sua obediençia, e
companhia, que seguir a esperança de chegar a Moçambique, que uisse como pendia sò
delle a sua uida, senão a todos elles, que lhe fazião preito homenagem de o não deixar, e
de o acompanharem atè /fl. 54/ morrerem, ou chegarem juntos aonde se dezejauão.

Assim como a Lus, que se uay acabando, esforça os ultimos resplandores, assim
a fortuna de Dom Paulo deuesta ultima labareda de se uer aclamado, e inuocado daquelles
companheiros para seu remedio. Responde lhes, que os quer acompanhar emquanto uiuer.
Ordem, que o Capitão se embarque no Luzio com quarenta e cinco companheiros, e o
Mestre na Almadia com dezaçeis, que postos da outra banda, tornem a passar mais gente,
que elle queria ser dos ultimos. Todos sabião quanto lhes conuinha passar, e por que Dom

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Paulo de ficaua, foy neçe- /fl. 55/ ssario rogos, e ainda uiolençia para os primeiros. Não
sou affeiçoado a digreçoens na historia, quando não são neçessarias para mayor notiçia
das couzas que pertençem ao argumento della, e assim pudera deixar, esta gente, que
partio, e se apartou nas embarcaçoens e continuar com D. Paulo de Lima; mas pareçe me,
que sera faltar a obrigação que me corre de dar conta destes companheyros, que tão bem
póde seruir aduertimentos a futuros successos, será mais abreuiado, que for possiuel.

Ambas as embarcaçoens surgirão da outra banda já sol posto, onde uirão dous
Cafres, que dizendo: Manhica, apontauão o Rio, que atras / fl. 56/ ficaua. O Luzio fazia
muita agua, o uento calma, caminho comprido, pareçeo-lhes esperar a manhãa, que entrou
uentante do sudueste, contrario para hirem a Manhica; pareçe a todos, que uelejassem até
o Rio do ouro distante doze legoas, onde poderião abrigarçe do tempo, e esperar leuantes,
com que tornaçem por Dom Paulo. Esta Costa do Rio de Lourenço Marques atè o Cabo
das Correntes, corres a lesnordeste, toda limpa, e sem reçifes. O uento foy escasseando,
e de noite saltou ao sudueste, traueçia daquella costa. Dão fundo, quebra a amarra, uirão
noutra uolta, tralos o mar a praya, uarão em terra, eis outro naufragio. Amanheçem
apartados /fl. 57/ da Almadia, sem poderem comprir a promessa feita a D. Paulo;
entregues a noua perigrinação, e a nouos perigos, caminhão ao longo da praya, esperando,
que no Rio do ouro acharião a Almadia, em que passassem a outra banda. A poucos passos
encontrarão duas negras, não se entendem com ellas, nem por asenos; manda Capitão
hum Marinheiro que as siga atè à pouoação. Chegão as negras, passão palaura, baixão à
praya trezentos Cafres differentes dos passados no traje, na communicação, e em tudo;
nas cabeças muitos cornos, que, ou fossem armas, ou ornato, os fazia inormes; trazião
arcos, e flechas nas maos. Estes erão os /fl. 58/ Mocrangas de cuja inhumanidade Inhaca
os auizaua. Receberão os nossos muito mao tratamento desta gente, porque nenhuma
outra couza querião, senão roubalos dessa pobreza com que se cobrião; na reuolta
chegarão dous, a que os outros guardauão algum respeito, os quaes com duas camizas
senão ouuerão por obrigados; deu o Capitão a hum delles hum Astrolabio de metal, com
que o negro ficou seu protector, mas com tão pouca eficaçia, que ainda a turba os não
deixauão. Já não podião os nossos caminhar, uira-se o Capitão para os inimigos, com
huma espada faz hum risco na praya, significando-lhes, que era aquella arraya da
paçiençia. /fl. 59/ A rrezolução dos nossos fes deter os negros, e sem duuida que com
pouca gente (como fora armada e principalmente de arcabuzes) se pode seguramente

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atrauessar todas aquellas Prouinçias. Este conflito se quietou com a chegada de hum
Cafre, que falaua alguas palauras Portuguezas: apartou, e dispidio os outros, e disse ao
Capitão, que elle os guiaria para o Rey de Ampulo, em cuja companhia estauão
Portuguezes de huma Naueta de trato, que ali se perdera.

A pouco mais de legoa chegarão ao Rio do ouro, uirão da outra banda o casco do
Nauio perdido. Pello Rio arriba os foy guiando o Cafre para o sertão, por entre ma- /fl.
60/ tos espessos, e brejos de agua, que as uezes daua pelo çinto, com que os nossos
entrarão em sospeita de trayção. Inhate Ambexeque daquelle territorio, e muito priuado
do Rey Ampulo, ueio reçecer os Portuguezes ao caminho fallaua algumas palauras
Portuguezas, e nomeaua pessoas com quem trataua hauia annos em Moçambique; e por
alentar os nossos, lhes dezia, que alguns dos que se perderão com a Naueta estauão com
seu Rey. Chegados a pouoação, não quis el Rey uellos aquella noite, ou por authoridade,
ou por suprestição; manda que se recolhão em huma grande caza cuberta de palha, e nella
os prouerão de feijoes cozidos, massa, e ruim agua. Logo /fl. 61/ Uierão dous Cafres, e
huma Cafra ladinos, que forão catiuos de Jeronimo Leitão, e contarão como o Alferes mor
Dom Jorge de Menezes Capitão de Sofala, e Moçambique, mandara o seu senhor por
Capitão da Naueta com seis Portuguezes, e outros Marinheiros Mouros à Bahia de
Lourenço Marques comprar marfim, ambar, e outras mercadorias, que hà naquella
Cafraria, e que anno e meyo estiuerão na Bahia, temerozos de tornar na mesma Naueta,
que a neçessidade os animara; embarcados arribarão com o tempo a Ilha do Inhaca, donde
comunicarão muito com o Manhica, que tornando a fazer uiagem abrio a Naueta, e /fl.
62/ com muito trabalho encalharão no Rio do ouro, que saluarão as uidas, e perderão a
fazenda, que Ampulo os recolhera, que Manhica como soube da perdição os mandara
buscar, lembrado1538 da boa correspondençia, que com elle tiuerão, que não quizerão
cometer o caminho por terra á Inhambane pella ruim informação que acharão das gentes
por onde hauião de passar, mas que despidirão dous Marinheiros com recado à
Inhambane; que se ali estiuesse Pangayo de resgate (que he o mesmo que Nauio de trato)
os uiesse buscar, ou paçasse com o mesmo recado a Sofala; que os outros Marinheiros
Mouros ficarão com Ampulo alguns dias, mas /fl. 63/ que jà todos erão hidos por terra, e
de nenhuns tornara ainda resposta.

1538
No Ms. : «lembrardo».

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Seruio este Cafre de lingua para no dia seguinte o Capitão referir ao Rey Ampulo
a perdiçam da Não, trabalhos do caminho, apartamento dos companheiros, e necessidade
prezentes. Responde condoendo se, e oferecendo todo o fauor, e ajuda possiuel para
remedio, e saluação de todos, que elles considerassem, e escolhessem se querião esperar
alli resposta dos Marinheiros, que tinhão hido a Inhambane, se tornar para Manhica
juntarçe com os outros Portuguezes, se cometer a passagem por terra. Todos aquelles
Reys, e superiores não sofrem passar estrangeiro /fl. 64/ por suas terras, por pobres, e
perdidos que sejão, sem os reconheçerem com algum prezente conforme as suas
possibilidades, satisfazendo assim a cobiça, e a uaydade. Significou o Rey, que o
paganaçem com algum chapeo pardo, o qual lhe derão e elle estimou muito.

No mesmo dia adoeçerão quaze todos de grandes febres e tão repentinas, que
duuidarão se lhes teria feito damno, ou a rruim calidade de algum dos mantimentos
incognitos, ou a cantidade demaziada dos conheçidos com que naquelle dia quizerão
repararçe, contra a moderação que se deue ter em estomagos debilitados. Tres dias se
ditiuerão, e assim doentes consul- /fl. 65/ tarão sobre o que hauião de fazer: alguns
disserão, que a doença de todos deçedia a questão, que os menos grauados não estauão
para caminhar, e quando se atreuessem, era impiedade digna de castigo de Deos deixar
em dezesperação os impossibilitados; que emquanto a saude uniuersal tomaua termo,
haueria tempo de saber, ou dezesperar do recado, que os Marinheiros da Naueta leuarão
a Inhabane; que Ampulo os trataua bem, e que entretanto procurassem saber dos
Portuguezes que estauão na Bahia, cujo conçelho deuião ouuir, para todos se
acompanharem no que asentaçem, que não se dezia chegar mais depreça, o que se
preçipita, que /fl. 66/ neste cazo poderia a temeridade frustar o intento de abreuiar a uinda
de Dom Paulo de Lima e sseus companheiros, o que elles muito dezejauão, e deuião
acodir: outros emtenderão, que toda a detença era negligençia e fraqueza; que os
Marinheiros quando chegaçem a Inhambane, dauão nouas de seis Portuguezes ordinarios,
a que se acoderia tambem por uia ordinaria, quando uiesse Nauio de trato, que a Dom
Paulo de Lima, e àquellas Senhoras, e mais companheyros se deuia pronto soccorro; que
se os Marinheiros não chegarem a Inhambane, atè quando hauião de esperar, pois que
Nauio de resgate àquellas costas uinha poucas uezes; que o que então /fl. 67/ hauião de
fazer mais impossibilitados, fizessem agora; que o tempo não daria mais uidas, nem mais
saude, antes cada dia hauião de ser menos, e mais fracos; que os doentes ficassem em

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Ampulo na protecção daquelle Rey; que todos hião expostos à mesma uentura, e a ficarem
pellos matos mais dezemparados; que se lembraçem da obrigação, e promessa que tinhão,
e fizerão a D. Paulo de Lima, e que a esta não faltauão, emquanto forcejauão pella
comprir, que cerrar com os perigos, hir apos a obrigação atè morrer não hauia mister
desculpas nem razoens; que escreuessem aos Portuguezes de Manhica, para que elles
esperacem, ou Nauio, ou resposta /fl. 68/ dos Marinheiros da Naueta e auizaçem D. Paulo,
e que elles passassem a Inhambane; que qualquer delles que tornasse desculpaua, e
honrraua todos; que os outros discurssos de parar, e esperar, erão sospeitozos em gente,
que tendo pormetido de uoluer a passar Dom Paulo, da Ilha à terra firme, correra com o
Luzio, que se bem fora sem desculpa, fortificaria este acto a ruim prezumção.

Este parecer aprouou o Capitão Esteuão da Ueyga, deu conta ao Rey da sua
determinação, e pede lhe que mandasse amparar seis companheiros que ficauão alli, que
não podião caminhar, e que desse liçenssa a Inhantembe para os acompanhar atè
Inhambane, com o qual se /fl. 69/ concertarão sobre o premio. Partirão o terçeiro dia da
chegada. Crem aquelles Cafres que não hé a morte termo natural, e assim todos à tribuem
a uiolençia, se a não conheçem extrior, dizem que hè peçonha. A este erro segue a
deshumanidade não tocarem nos doentes, temerozos do contagio; os que já estão muito
mal, tirão ainda uiuos das cazas, e dos lugares, e os deixão morrer nos matos.

Dos Portuguezes dizem, que são filhos do Sol, e cuidão que no lugar, em que
algum fica morto, hão de pereçer as sementeiras o anno seguinte, por falta de chuua. No
mesmo dia, que os nossos partirão, morreo hum dos doentes, que deixarão, despacha /fl.
70/ logo Ampulo recado a Inhatabane, que faça tornar os Portuguezes a buscar os seus
doentes , e morto, e que sem isso não passem adiante. Manda o capitão huma esquadra,
tomão o morto, e a rrastos o leuarão a enterrar longe da pouoação; e os doentes, alguns ás
costas, outros como puderão, leuàrão onde o Capitão os esperaua. Contarão, que os Cafres
para aueriguarem se estauão ainda uiuos (por quanto com a força da febre não fallauão)
lhes punhão fogo nos pes com palhas acezas por não tocarem nelles. Forão caminhando
para o Rio do ouro, antes de o passarem deixão no mato dous doentes (que jjánão podião
leuar nem elles andar) ainda uiuos.

/fl. 71/ Está a fos do Rio do ouro em 25 graos, a barra he de pouco fundo, quebra
o mar muito nella, não podem entrar senão embarcaçoens pequenas; em Almadias o

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passarão, e caminharão de noite com receyo dos naturaes que erão ladrões crueis.
Inhatembe guiou para o sertão, dizendo, que os queria leuar ao Xeque Mamuça, genro de
Ampulo. No caminho encontrarão dous Mouros da Naueta perdida com tres Cafres;
contão os Mouros, que o Rey Panda, e Gamba mais uizinhos do Rio de Inhambane, com
os quaes fizerão os Portuguezes resgate de marfim, tanto que souberão a perdição da
Naueta, mandarão seus filhos, que erão aquelles tres Cafres, para que /fl. 72/
franqueassem o caminho aos Portuguezes, que ficarão com Ampulo, até onde elle rezidia,
e que achando os Marinheiros com Manuça souberão, que já erão tornados para Manhica;
mas porque corria fama da perdição da Não, e que os Portugezes hião marchando por
aquellas terras, repartirão gente pellos matos, e pella praya para os emcontrarem, que se
tinhão por ditozos em elles serem os primeiros. O Capitão lhes agradeçeo o beneficio,
que o tempo depois mostrou ser grande.

Estes Cafres forão sempre fieis, e sem elles mal puderão sahir dos pirigos da
jornada. Manuça os reçebeo com bom acolhimento; não hauia fonte no lugar, a agua era
/fl. 73/ de brejo uerde, e grossa, e saloubra, foy grande parte de adoecer mais gente, e de
morrerem seis pessoas, que os Cafres fizerão logo leuar pellos mesmos Portuguezes, pella
superstição referida. Deo lhes o Manuça duas guias para o caminho. Inhamtembe fugio a
noite dantes da partida, inferirão os nossos, que trazia intenção de alciuozia, e uendo que
o não podia executar na companhia dos filhos do Panda, e Gamba, quizera antes perder o
premio, que continuar o acompanhamento; da gente por onde agora hião passando
leuauão ruim informação, quis hum dos guias metellos pello sertão, dizendo que para os
apartar dos inimigos. Entende hum dos filhos do /fl. 74/ Gamba a trayção, auiza ao
Capitão, que prenda a guia, e que o leuaçem comsigo, e andassem depressa. Importou o
auizo a uida de todos, porque a pouca distançia encontrarão uinte cafres, que se adiantarão
a reconheçer os nossos, com dous arcabuzeiros afastarão; e a bom passo, deixando alguns
doentes morrendo nos matos, chegarão à pouoação do Xeque Inhambuzi aonde os bons
filhos do Gamba, e Panda os leuauão.

Já sahidos dos confins da gente, que temião, acharão bom gazalhado, e Rio de
agua clara, que falta della era o mayor tormento que padeçião. Seguirão seu caminho, e
ao outro dia ainda os acometerão, huma boa manga de Cafres tambem / fl. 75/ armados,
e tão rezolutos, que os caminheiros Mouros da Naueta fugirão. Os Portuguezes se

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determinarão a morrer defendendoçe por interuenção de hum dos filhos do Gamba se


compuzerão e contentarão com huma camiza, e hum barrete, sobre que hauião de fazer
suas partilhas, ou sortes. Como entrarão na terra do Panda sahirão dos pirigos, e tiuerão
mantimentos, e gazalhado. O Rey os recebeo na sua pouoação com muito amor, forão
prouidos de galinhas, milho, e feijoes, com abondancia. Panda lhes offereçeo alojamento,
e bastimentos, o tempo que quizeçem. He artigo principal da sua politica deterem-se os
hospedes amigos alguns dias. Ao terceiro partirão, e a onze de Mayo /fl. 76/ chegarão a
hum Rio que parte os dominios enter Gamba, e Panda; he braço do Rio do ouro, esta em
24 graos e meyo, e passarão em Almadias. O Capitão despacha hum Marinheiro com
recado da sua uinda ao Gamba, cuja cidade distaua daquelle Rio legua e meya; sahem a
rreçeber os Portuguezes com muita festa, cantando, e dançando ao som de seus
instromentos: chamão-se Ambiras, todos se rreçebem como conheçidos, de tanta
importançia hé a boa fama, que deixão naquellas partes os Portuguezes, que a ellas uem
a rresgatar marfim. As naçoes que em terras estranhas escandelizão, e offendem ainda
que se saluem, ficão depois homiçidas /fl. 77/ de seus naturaes.

Nas terras do Gamba forão os primeiros ministros da publicação do Euangelho o


Padre Gonçalo da Silueira, filho de D. Luis da Silueira 2º Conde da Sortelha, com seus
companheiroso Padre Andre Fernandes, e o Irmao Andre da Costa, todos Religiozos da
Companhia, quando no anno de 1560 entràrão a rrequerimento del Rey de Tangam mayor
dos Reys daquelles contornos, a bautizallo a elle e a sua familia. Foi o Padre Silueira
uarão uerdadeiramente apostolico, dotado de todas as uertudes, insigne em humildade,
pobreza, e constancia proçeguio o zello atè chegar a /fl. 78/ Corte do Emperador do
Monomotapa, ao qual conuerteo, e bautizou, com esperanças de grandes promessas;
dezemparou Deos aquella sementeira por seus justos juizos. Forão instromentos da
Apostazia, intereçe e rrazão de estado, offerecida, e rreprezentada pellos Mouros, os
quaes não aguentarão atè alcançar do Rey, que mandaçe matar ao Padre. Uiueo
santamente, e foy morto em odio da fè: ao Sumo Pontifeçe toca dar o titulo, e declarar
nos a ueneração que hauemos de fazer, assim a este Padre, como a outros muitos desta
Santa Religião, que por honrra de Deos e conuersão das almas tem padeçido às mãos de
In-/fl. 79/fieis. Impedirão-se muitos annos aquellas Missões por diuersas cauzas; he
materia larga, que nos não serue. Foi o demonio sobre semeando joyo, e ficou a Doutrina
uiciada de rritos, e ignorançias, conseruão alguns os nomes dos Santos da Igreja, com

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sobrenomes da Nobreza de Portugal, da Doutrina sabem todos muito pouco, da oração do


Padre nosso algumas palauras, outras da Confissão, contão como o Padre dizia Missa, e
que tangia huma campainha; prezaçe o rey de christão, e como tal trata os Portuguezes.

Aluaro de Sá e Duarte de Sá, Cafres corretores entre os Portuguezes, e na-/fl.


80/turaes, e que se deixauão entender por algumas palauras, que sabião, e entendião da
nossa lingoa, uierão ao Capitão, prezentão-lhe hum carneiro, e affirmão que não uiera a
Inhambane aquelle anno Nauio de resgate, mas que alli acharião Simão Lopes Portugues.
Tristes forão as nouas, por que jà não hauia esperança de passarem a Sofala, ou
Moçambique no mesmo anno. Hauia liçenssa do Gamba, acompanhados de dous Cafres
Francisco e Manoel, que o Gamba lhe deu para os apozentarem por suas terras caminharão
a lesnordeste para o rio do Inhambane; as terras do Gamba tão fertiles de pastos /fl. 81/
em que pascentão muito gado uacum: uzão cornos nas cabeças feitos dos seus mesmos
cabellos como massarocas, os que tem mayores, se estimão por mais galhardos; arcos, e
flecas são as suas armas; há muitos elefantes, leões, tigres, onças.

Uespera do Espirito Santo 21 de Mayo chegarão a Inhabane, aonde acharão Simão


Lopes natural, e fugido de Moçambique por crimes. Tratou logo o Capitão de passar
adiante, reprezenta-lhe Simão Lopes grandes perigos pella maliçia da gente, que hauia no
caminho, falta de mantimentos, e agua, fraqueza, e doença, com que todos uinhão;
offereçesse a seruillos /fl. 82/ com o que tiueçe e pudesse, e que em Nouembro uiria Nauio
de resgate, no qual poderão passar mais seguros, e accommodados. Despacha o Capitão
tres homes, o Guardião, o Feitor, e hum Mouro da Naueta, que sabia a lingoa, com cartas
a Sofala de auizo de tudo o que passaua.

O Capitão Esteuão da Ueiga adoeçeo grauemente, e mais ainda o apertaua a


neçessidade de Dom Paulo de Lima, e a sua palaura, toda a detença lhe pareçia que o
acuzaua; não respeita doença, perigos, nesseçidades, rezolue-se em caminhar por terra.
Quatenta e sinco se tinhão embarcado no Luzio na Ilha de Inhaca, a In-/fl. 83/hambane,
chegou com menos quinze, que ficarão, ou mortos, ou morrendo pellos matos: seis
morrerão em Inhambane nos dous dias primeiros que alli chegarão: quinze estauão tão
doentes que não se atreuerão à companhalo. Contratase com alguns dos Mouros da
Naueta, que o leuem em hum andor as setenta legoas que hà até Sofala; que por sua doença
não podia dar hum passo. Com oito companheiros, e hum Mouro uelho por guia, que

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

hauia mais de trinta annos, que tinha feito a mesma jornada; passa o Rio do Mel a 9 de
Junho. Não bastou a peruenção de caminharem de noite para escaparem de asaltos de
Cafres, com que tiuerão /fl. 84/ alguns recontros, em que as duas escopetas forão de muita
importançia; já não querião cobre, nem pregos, pedião marrot, que assim chamão ao
estanho que elles muito prezão.

Na pouoação de Sene, que está na ponta da terra do Cabo de São Sebastião, forão
bem recebidos do Xeque, o qual já tinha comerçio com os Portuguezes e com Mouros das
Ilhas de Bacaruto. Todo o mais caminho tinhão passado com muitos recontros de Cafres;
sem comer, nem beber agua, senão alguma de brejo, e atè esta lhes faltaua, despidos,
doentes, aqui acharão nouas, que os tres companheiros tinhão passado adiante. /fl. 85/
Continuando o seu caminho, acharão huns Cafres na praya, dos muitos que por ella andão
buscando ambar, que lhe disserão, que alli perto andaua hum Portugues fazendo resgate
de marfim, e aljofar, que se pesca nas Ilhas de Bacaruto. A tarde chegarão a Fumbaze,
aonde uirão surta huma embarcação, sahe della o Portugues, chamauaçe Bras Pires, e o
Gordião, que o Capitão tinha despedido de Inhambane, saudão-se com grande
contentamento, dis o Gordião, que o Feitor, era morto, que elle parara alli por sua grande
doença que o Marinheiro passara a Monemone buscar embarcação para Sofala. Pede o
Capitão a Bras Pires a embarcação atè Menemone, o /fl. 86/ offereçea de boa uontade,
mas que conuinha hirem primeiro à Ilha de Bacaruto, aonde estaua Antonio Rodrigues
natural de Sofala, que tão bem uiuia em hum Rio de Monemone por homizios, sem o qual
não acharião embarcação nem guia.

No mesmo dia forão a Bacaruto: a Ilha he muito pouoada de Mouros, fertil de


criaçoes de gado mayor, e menor e de galinhas. Antonio Rodriges os agazalhou, e
acompanhou atè Monemone, aonde chegarão ao outro dia. Em sua caza os deteue huma
semana, reparandoçe do trabalho, e doença prouidos com abundançia, e boa uontade.
Aprestou Antonio Rodrigues um Nauio, em que se embarc-/fl. 87/arão. Em quatro dias,
recolhendoce cada noite nos Rios, caminharão trinta leguas, e a 3 de Julho chegarão a
Sofala, nauegando sempre ao longo da Costa, a qual toda he chea de restingas e baixias.
O Capitão e moradores da terra os uierão buscar competindo sobre o seu agazalhado,
querendo cada hum ter parte na hospedaje; ainda que forão inimigos mouera a lastima a
desformidade a que os trabalhos os tinhão reduzidos. O Capitão da Fortaleza comprou

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

logo hum Pangayo pequeno, que só hauia na terra, embarcação que não podia chegar
mais, que a Inhambane buscar os que alli ficarão. Ho Capitão Esteuão da Ueyga com seus
companheiros se embarcarão em hum Nauio para /fl. 88/ Moçambique, duas uezes
arribarão a Soffala, perdida a monção daquelle anno.

O Pangayo tornou, e troche a gente de Inhambane, com carta de Simão Lopes, que
logo partia por terra para Manhica buscar D. Paulo de Lima, e trazelo a Inhambane. Em
Outubro chegou a Sofala hum Pangayo de Moçambique com fazendas, deu nouas, que
em sua companhia partira huma Naueta para a Bahia de Lourenço Marques, a fazer
resgate, mas que perzumião ser perdida, ou aribada, porque não tinha entrado em nenhum
dos Rios de Cuana, aonde primeiro hauia de fazer escalla; por esta incerteza comprou o
Capitão da Fortaleza o /fl. 89/ mesmo Pangayo, para nelle mandar buscar Dom Paulo de
Lima. Embarca-se o Capitão Esteuão da Ueyga, que com ualerozo e honrrado punha a
sua saluação na de Dom Paulo. Chegado às Ilhas de Bacaruto, sahirão Marinheiros em
terra, trocherão nouas, que a Naueta tinha passado a saluamento; depois se uio, que de
medo inuentarão os Mouros a noua. Chegou a Inhambane achou des companheiros de
Manhica, que lhe contarão o que tinha passado na Ilha da Inhaca, depois que elle se
apartou no Luzio, de trabalhos, doenças, e mortes. Com esta gente arribou a Sofala donde
foy a Moçambique soliçitar segunda embarcação para hir buscar a gente /fl. 90/ que ficaua
em Manhica.

Dom Paulo de Lima com toda a companhia, que ficou na Ilha do Inhaca esperauão,
que tornaçem as embarcaçoes a buscalos; quanto mais tardauão, mais creçia a
dezesperação, e o escandalo em alguns, atribuindo a tardança a quebrantamento das
palauras do Capitão, do Mestre, e dos companheiros, que tinhão passado no Luzio, e na
Almadia. Dom Paulo os aquietaua quanto podia, dizendo: que de innumeraueis cauzas,
que podia hauer para tardarem, ou não uirem, não era razão que se atribuiçe sò a maliçia
de todos; que num momento se uiraua a fortuna, como tinhão uisto /fl. 91/ nelle, e naquella
Nao, que emquanto não parasse esta carreira com que os hia atropellando, não tinhão para
que aplicar as culpas a seus companheiros; que elle estaua certo, em que, se erão uiuos,
não sentião menos a tardança os que forão, que os que esterauão. Ora com estas, e outras
razoes, era cometer em partica rodearem a Bahia por terra, padeçendo todos as
descomodidades, e mizerias, que pode dar o mayor dezemparo, passou aquella companhia

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

atè chegar a Almadia. A qual apartandoçe, como uimos, do Luzio, em que hia o Capitão,
ueyo surgir no Rio de Manhica, e emquanto esperou tempo para tornar à Ilha, lhe adoeçeo
a gente de modo, que não /fl. 92/ hauia quem paçasse.
Reçebe Dom Paulo carta de Jeronimo Leitão, em que lhe aconcelha, que se uanha
(?), e que alli poderião, ou esperar com menos descomodidade, ou consultar com mais
notiçia: juntos em Manhica tratou Dom Paulo de Lima de continuar o caminho por terra
para Inhambane. Jeronimo Leitão humas uezes reprezentaua as grandes difficuldades que
para isso hauia, que se acrecentauão com a companhia daquellas senhoras, que não podia
deixar de uir Nauio de Mocambique, ou com a carreira ordinaria, ou com as nouas, que
já terião por algum dos muitos que cometerão a pa-/fl. 93/ssagem. Outros se despunhão a
caminhar; e como elle era pessoa inteligente, muito conhecido daquelle Rey, e dos
Naturaes, e com pratica da terra.
Dezejaua Dom Paulo de Lima que todos se comformassem, e de comua
aprouaçam cometeçem a jornada: atè que a natureza, carregada com idade, com os
trabalhos, com as afliçoes corporaes, e do espirito, não pode já com o pezo. Adoeçeo Dom
Paulo de huma febre malina, sem cama, sem remedios, sede ardente, agua ruim, e de
mantimentos o que temos referido, rodeado daquelles companheiros, que a fortuna lhe
deixou por testemunhas da sua constançia, lhes disse estas palauras. Espero, senhores,
que nos impenetraueis ju-/fl. 94/izos de Deos haueria eternas conuiniençias para ser esta
morte, e modo della, o milhor caminho da minha saluação; também Deos renoua a tempos
cazos portentozos em alguns para exemplo, e freyo de outros: saberão os Portuguezes,
que me conheçerão, e uirão as uictorias, e triunfos, que as uaidades por que tanto fazemos,
podem uir a parar no que uedes; grande triaga(?) serà contra ellas esta memoria emquanto
durar; sobretudo entendo, que em muitos dias circunstançias hà mais horror, que damno;
o lugar em que acabo não he considerauel para sentirsse que o sono, e a morte tambem
semelhão, em que o mesmo são na terra propria, que na estranha; e se ao uarão forte,
ainda para uiuer, todo o lugar /fl. 95/ he Patria, quanto mais ao morto. Facil he a perda do
sepulcro, cuja ostentação não importa gloria aos defuntos, toda redunda nos successos
uiuos quando estes Cafres me impidão sepultura, como costumão, tolherão que me cubra
a terra, mas mais nobre abobeda hé a do ceo, que me não podem tirar; se me comerem
feras, e aues, tão inteiro hey de appareçer no Ualle de Josafat como os embalçemados; so
para uos acompanhar nos trabalhos estimara a uida, Deos que assim o ordena, saberá, que

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

por meus pecados, uos era antes impedimento, que soccorro: as neçessidades de cada hum
se uos estão emcomendando a todos; já uedes o que perdemos na seperação, se os poucos
que aqui estais uos não dezunirdes, e acompanhardes estas senho-/fl. 96/ras, fareis o que
deueis a uos mesmos, e às obrigaçoes comuas, e ao que uos mereço. Despede-se de todos
com animo socegado, sereno rosto, seguro nas palauras, reprime as lagrimas dos
circunstantes, reparte as demonstraçoes segundo a calidade e meriçimento de cada hum;
chama o confessor, com o qual repetindo reconçiliaçoes, e fazendo generozos actos de
contrição, sem temor, nem descontentamento da morte, sem perturbação, nem ainda
aquella que se deue à humanidade, com valeroza esperança na Misericordia de Deos,
passou aquella alma à eternidade a 18 de Agosto de 1589.
Tanto que o rey Manhica soube, que era morto o Homem grande (fatal apelido,
que /fl. 97/ ate os Cafres o reconheçião, e nomeauão por elle) teueo por infausto portento
de ruina sua, e de seus vassallos, e pareçeo-lhe que com o corpo hiria o castigo que
ameaçaua; manda logo que o tirem de sua terra. Foy leuado a borda do Rio, e sepultado
ào pe de humas aruores, para o que ainda se comprou liçença aos Cafres executores desta
comissão. Os nossos amontuarão a terra sobre a sepultura, leuantão em sima huma crus,
crauão ao pè della este epitafio.
Abrazada Mangalor, destroçadas, e rrendidas Armadas do Camorim, Hidalxa,
Niza Maluco; descercadas Acarim, e Malaca, tomadas Onor, e Barcelor, defendida Goa,
conquistada Ior, uencidos quatro Reys de Viantana, /fl. 98/ Tugal, Andragil, Campar;
triinta e hum annos na guerra da Azia, desde Capitão mòr, sempre victoriozo Dom Paulo
de Lima Exemplo raro das fortunas, fica sepultado neste dezerto.
Poucos dias despois morreo D. Pedro de Lima. Não quis o Manhica deixar partir
a companhia, interessado no resgate que esperaua para quando uiesse o Nauio de
Moçambique. Passarão nesse tempo innumeraueis mizerias, e alguns que se auenturarão,
correrão quazi os mesmos trabalhos, que os primeiros, e não tem nouidade digna de
referir, nem tão bem he razão, que alarguemos a historia funesta, e dezabrida. Chegou o
Nauio no mês de Julho de 1591. Recebe /fl. 99/ Inhaca os agradecimentos, e premio dos
benefiçios, e Manhica o estipendio, em que a sua cobiça aualiou a mizarauel despeza que
tinha feito, a cuja conta deteue em refens os que lhe pareçeo. Dezenterrão o corpo de D.
Paulo, embarcão-se com elle, forão a Moçambique e a Goa; o pouo todo renouando o
sentimento da sua morte, como se naquella hora o perdera, huns publicando elogios de

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

sua vida, outros queixas de sua ultima fortuna, acompanharão o corpo com solene pompa
funeral, atè o Conuento de São Francisco, aonde está sepultado em capella propria, com
este letreiro: Aqui jás Dom Paulo de Lima, que os trabalhos acabarão na Cafraria no anno
de 1589.
Muito fes D. Brites /fl. 100/ por D. Paulo seu marido nesta perigrinação, muito se
deuia nestes escritos à sua memoria, pella honrra, e animo com que procedeo; mas como
depois quis antes ser cazada, que uiuua de tal homem, pareçeo que conuinha reportar nos
louuores, e história de mulher alheya: isto basta para não faltarmos à obrigação de
agradeçimento.”

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

2. QUADROS

2.1. Nota prévia

Os quadros que a seguir se apresentam, têm como objectivo fornecer elementos


adicionais sobre os textos analisados bem como as imagens, constitutivas de estereótipos,
que compõem o topos Cafraria presente nos relatos de naufrágios.

Os dois primeiros quadros facilitam a comparação entre passagens textuais do


“Manuscrito anónimo”, do Regimento de Matias de Albuquerque e do texto impresso de
João Baptista Lavanha.

Os dois últimos quadros sistematizam todas as imagens presentes nos textos e os


estereótipos a elas associados. Atendendo à dimensão destes quadros e à riqueza das
informações neles contida, optou-se pela sua inclusão em anexo. Muitos destes dados são
explorados no texto, mas não se esgotam nessa dimensão, pelo que são disponibilizados
nestes quadros-síntese.

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

2.2. Índice de Quadros

Quadro 1 – Proximidade de excertos textuais Ms Anónimo /Regimento de


Matias de Albuquerque

Quadro 2 – Proximidade de excertos textuais Ms Anónimo /Regimento de


Matias de Albuquerque/J. B. Lavanha

Quadro 3 – Imagens e estereótipos da terra africana nos relatos de naufrágios


(sécs. XVI e XVII)

Quadro 4 - Percepções dos Africanos nos relatos de naufrágios (sécs. XVI e


XVII)

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

2.3. QUADROS

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Quadro 1
Proximidade de excertos textuais
Ms Anónimo /Regimento de Matias de Albuquerque

Manuscrito anónimo Regimento de Matias de Albuquerque1543

“(...) açhamos por todo este caminho “(...) por todo este caminho, acharão perdizes,
muitas adeñs, perdizes, cordonizes, codornises, pombas, garças, pardais, corvos, e
pombas, garsas, pardais, corvos, e muitas ervas da nossa terra, agrioes, bredos, alecrim,
eruas da Europa, como agrjois, bredos, losna, fedeguosa, mentrastos, amoras de silva,
alecrim, alosna, fedegose, mentratro, fetos, erua babosa.” (p. 50)
amoras da silva, fetos, erva baboza,
rabasas, e muitas boninas”. (fl. 28)

“(...) auendo coatro dias que caminhamos “(...) aos quatro dias deste despovoado,
pelo dezerto achou-se o piloto em trinta tomaram o sol, acharão trinta graos menos sete
graos menos sete menutos (...) e aos dous minutos, a outro dia foi guinando o piloto a
de maio foj o piloto guinamdo mais a les lesnordeste, porque assim lhe dixe a gemte da
nordestes porque lhe disserão os negros que terra, que fosse para o sol que iriam dar em
fosse por omde nasia o sol e achariamos povoado, aqui pola estimativa, se fez o piloto
pouoado, (...) aqui se fes o piloto por sua vinte sinquo legoas, afastados da praia”. (p. 50)
estimatiua uinte e simco legoas pelo
sartão”. (fls. 37 vº-38 vº)

“Lulubala (...) que amdaua desterrado por o “(...) se chamava cucubala, que andava
Inhaqua lhe tomar o seu Reino”. (fl. 42) desterado, por lhe tomar o Inhaqua seu Reino.”
(p. 51)

“(...) sobimos huma serra muito alta e em “(...) subindo, desendo, algus outeiros, por onde
sima fomos por huma cham que hia te acharão hua serra muj alta que ensima tinhão
huma ribeira que da outra banda tinha hua chãa que hia dar nua ribeira que da outra
montes altos e chãos e nas chãns tinha banda tinha montes altos, e chãos e nas chãs
dezassete pouoaçomis, esta ribeira tinha dezasete povoações. E esta ribeira, se
passamos com agua pela simta, (...) e

1543
As citações do Regimento de Matias de Albuquerque são retiradas da edição de Maria Emília Madeira
SANTOS, op. cit..

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

fomos caminhando sempre por antre pasou a agoa pela sinta o amquose destas
pouoado de humas aldeias de hum ancose povoações se chamava panjana”.
por nome, pamjana”. (fl. 45 vº)
(p. 51)

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Quadro 2
Proximidade de excertos textuais
Ms Anónimo /Regimento de Matias de Albuquerque/J. B. Lavanha

Manuscrito anónimo Regimento de Matias Texto de João Baptista


d’Albuquerque Lavanha

“achamos por todo este “por todo este caminho, “acharam, pela terra que
caminho muitas adens, acharão perdizes, codornises, tinham andado, adens,
perdizes, codornizes, pombas, garças, pardais, perdizes, codornizes,
pombas, garsas, pardais, corvos, e ervas da nossa terra, pombas, garças, pardais e
coruos, e muitas eruas da agriões, bredos, alecrim, corvos”.
Europa, como agriois, losna, fedeguosa, mentrastos,
bredos, alecrim, alosna, amoras de silva, fetos,
fedegose, e mentratro, eruababosa.”
amoras da silua, fetos, erva
baboza”.

Regimento de Matias João Baptista


Perdição da nao Santo
d’Albuquerque, in M.ª Emília LAVANHA, H.T.M., p.
Alberto, (...), fl. 28.
Madeira SANTOS, op. cit., p. 37.
50.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Quadro 3

Imagens e estereótipos da terra africana nos relatos de


naufrágios (sécs. XVI e XVII)

Nos diversos textos de naufrágios são de destacar as seguintes imagens, constitutivas de


estereótipos, que vão compôr o topos Cafraria:

Naufrágio Texto Imagens da terra Estereótipos


Galeão H.T.M., I -“Terra de cafres”, p. 22
São João -“naquela praia”, p. 24 Praia,
1552 -Terra habitada de “cafres”, p. 24 território
-caminharam “ao longo dessas praias”, p. 25 limite
-“tão grande esterilidade”, p. 26
-Terra de “tigres e leões”, que comiam os homems, p. 27 Terra estéril,
-Terra de “tigres e serpentes”, p. 27 de fome
-“desertos”, p. 27 Terra de
-terra de “feras alimárias”, p. 27 animais
-serras de “grandissimo perigo”, p. 28 selvagens,
-“passavam grandes fomes”, p. 28 devoradores
-“ásperos caminhos tão trabalhosos”, p. 31 de humanos
-“falta de antimentos na terra”, p. 32 Terra de
-“terra da traição”, p. 34 perigos
-“matos”, p. 35
Terras
selvagens e
incultas
Galeão Cod. -“terra do Cabo de boa sperança, em 32 graos […] foy Praia,
São João CXV/2-8 correndo athe o cabo das agulhas”, fl. 47 território
1552 limite

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Manuscri -“fremosa praya […] tudo o mais herão rochas asperissimas


to da em que não havia esperança de saluação”, fl. 48 Terra ápera
B.P.E. -“de não poderem andar ficauão pellos matos dez, e doze
1544
pessoas.”, fl 49 vº Matos, terras
-“medo dos animais brauos que por todo aquelle caminho selvagens e
achauão”, fl. 49 vº incultas
-“daqui por diante lhe ficauão duas, e tres pessoas, de não
poderem comsigo, os quaes loguo herão comidos dos Terra de
animaes”, fl. 50 animais
-“Passados tres mezes cheguarão a terra de hum Rey selvagens,
chamado Inhaça, que vivia por todo o Ryo do espirito Santo devoradores
que hera hum bem honrrado homem”, fl. 50 vº de humanos
-“se passaua daly avia de ser roubado, e maltratado de hum
Rey que chamauão o fumo, que hera muito mao homem.” fl.
50 vº
-“detreminação de rodearem a barra de Lourenço Marques e
passarem os ryos por sima, o que foi sua perdição. Aquelle
dia cheguarão a hum ryo que se chama Beligane que entra Matos, terras
na Barra de Lourenço Marques, onde entrão outros tres que selvagens e
chamão Anzate, Ofume e Manhiça”, fl. 51 incultas
-“se forão metendo pelos matos tomando desvayrados
caminhos comendo frutas brabas, e raizes de ervas, fazendo Terra estéril,
conta com Deos, e com suas Almas, como homens que hyão de fome
em estado que cada dia ficauão por esses matos mortos de
fome.”, fl. 52 vº
-“Bem vedes Piloto como estamos, e que já não podemos Terra de
passar daqui, onde pareçe tem Deos ordenado que eu, e meus sofrimento,
filhos acabemos por meus pecados”, fl. 53 de expiação
-“ Se meteo nos matos a buscar alguma fruita, e tornando, dos pecados
achou já hum dos meninos morto […] tornou ao mato buscar

B.P.E., Cód. CXV/2-8, “Relação da Perdição do Galeão São João vindo da India, na Costa da Cafraria.
1544

De que hera Cappitam Manuel de Sousa de Sepúlveda”, fls. 46-54 v.. Letra do século XVII.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

mais fruita […] e quando tornou achou anbos faleçidos; e Terra de


sinco escrauas suas sobre os corpos com grandes gritos, e animais
prantos”, fl. 53 vº selvagens,
-“se meteo pello mato, onde desapareçeo, sem mais se saber devoradores
delle; e sempre se prezumio que os tigres o comerão.” fl. 53 de humanos

-“se forão metendo pelo certão, por onde morrerão de fome,
com tantos trabalhos, que só oito Portuguezes escaparão”, fl.
54
-“dos cafres que vinhão do Certão, com resgate souberão
como pella terra dentro andauão Portuguezes perdidos”, fl.
54

Nau H.T.M., I -“íngremes serras e bravas penedias daquela tão estranha e Terra bárbara
São Bento bárbara terra”, p. 57 e estranha
1554 -“praia grande”, p. 60
-“penedos […] ásperos e pontiagudos”, p. 60 Praia,
-caminharam por “uma vereda de elefantes”, p. 67 território
-“comprido, incerto, e perigoso caminho”, p. 67 limite
-“vales tão baixos e serras tão altas, que estas confinavam
com as estrelas e aqueles com os abismos”, p. 67 Terra de
-“penedos, ervas e mato”, p. 68 perigosos
-“impossibilidades do caminho tão terríveis”, p. 68 caminhos
-“sem caminho nem carreira, pelos altos e baixos daqueles
matos”, p. 69 Matos, terras
-“mato íngreme e espesso”, p. 71 selvagens e
-“topámos um rio que não está posto nas cartas”, p. 74 incultas
-“Barra da Pescaria”, p. 77
-“desertos de África”, p. 80 Terra deserta
-“praia erma”, p. 80
-costa “toda escalvada, sem árvores nem abrigo”, p. 87

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

-terra “despovoada e em extremo estéril de árvores e ervas”, Terra de


p. 90 peçonhas
-“má terra”, p. 91
- “frutos e raízes peçonhentos”, p. 97 Terra deserta
-“concavidades daquelas desabitadas serras”, p. 98
-“desertos”, p. 98 Terra estéril,
-“caminhando com esta esterilidade”, p. 100 de fome
-“aperezas dos penedos, que eram todos feitos em bicos
agudíssimos”, p. 103 Matos, terras
-“esterilidade da terra” [do Inhaca], p. 112 selvagens e
-“mata antiga e grande, onde havia muitos tigres, leões e incultas
todo o outro género de alimárias nocivas”, p. 112
-“aquela má terra”, p. 122 Terra de
-“estranha, estéril e quase não conhecida costa da Etiópia” animais
[…] de “serras, vales e barrancos”, 123 selvagens,
-“tudo aquilo que se pode imaginar contrário, medonho, devoradores
pesado, triste, perigoso, grande, mau, desditoso, imagem da de humanos
morte e cruel”, p. 123
Nau H.T.M., -“Terra do Natal […] quem escapa das grandes tormentas Terra de
Santiago II que nela sempre há pode com razão dizer que nasce”, p. 164 “renasciment
1585 -“terra dos cafres”, p. 166 o” e salvação
-[baixo ou recife do naufrágio] “não haver tal baixo nas Terra ignota,
cartas, diferente do da Judia […] nem todos os baixos estão nova (ainda
descobertos”, p. 173 não mapeada)
-“em uma praia de bárbaros”, p. 186 Praia,
-“lastimoso teatro […] de uma parte o mar, de cujas furiosas território
ondas ainda estavam assombrados, da outra, terra de limite
inimigos tão cruéis como estes cafres são.”, p. 186
-“quão errados vão os que dizem «na Zona tórrida não há Terra de
frio»”, p. 188 muitos rios
-“encalhara a jangada duas léguas de Linde, entre Calimané
e Cuama-a-Velha”, p. 202 Etiópia

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

-Rio de “Cuama é um dos famosos da Etiópia”, p. 210


-“as terras que são regadas deste rio são férteis e mui Terra fértil e
abundantes”, p. 212 abundante
-“Metem-se neste rio outros muitos caudais. […] rios em
que se acha muito ouro”, p. 213 Terra de ouro
-“reino de Chicová, onde estão as minas de prata tão
desejadas dos nossos”, p. 213 Terra doentia
-“A terra é mui abastada”, ps. 213-214
-“é mui doentia”, p. 214

Nau H.T.M., -“aqueles matos”, p. 236 Matos, terras


São Tomé II -“medãos de areia”, ps. 237, 238 selvagens e
1589 -“por esta Cafraria […] este lugar onde o batel encalhou até incultas
o Cabo das Correntes”, p. 239 Praia,
-“ Etiópia interior”, p. 239 território
-“Terra dos Fumos […] Terra dos Macomates”, p. 239 limite
-“um rio que nas nossas cartas anda sem nome”, p. 239 Etiópia
-“Baía de Lourenço Marques […] das principais de toda a
terra a que os geógrafos chamam África”, p. 240
-“reino a que chamam Anzete […] com umas grandes
serranias de mais de vinte léguas, tão ásperas, intratáveis e Terra áspera
fortes por natureza”, p. 241
-“ […] toda a Cafraria”, p. 243 Terra de
-“sobre a dura areia”, p. 243 perigosos
-“caminho tão vagaroso e tão falto de tudo”, p. 244 caminhos
-“caminho […] um pouco áspero”, p. 245
-“Rio da Abundância”, p. 245 Terra fértil e
-“aquelas praias”, p. 256 abundante
-“solidão daquelas bárbaras areias”, p. 256
“incerta peregrinação […] tantos riscos e perigos”, p. 256 Matos, terras
-“péssima água […]toda era limos e sujidade”, p. 256 selvagens e
-“nos matos”, p. 257 incultas

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

-“a terra era doentia, por estar debaixo do Trópico […] Terra doentia
febres malignas”, p. 261
-“na Cafraria”, p. 262

Nau Manuscri - “pregadura, e ferros, mercaduria de proveito naquella Cafraria


to da
São Tomé Cafraria”, fl. 19 (território
B.P.Évor
1589 a, - “huns penedos, ou medos de areia, que por haver muitos com divisões:
CXVI/1-
naquella paragem lhe chamão os Medos do Ouro.”, fl. 20 Terra do
22
1545
- “tomou o Piloto o sol, achouçe em 27 graos entre a terra do Natal, Medos
Natal, e a dos Fumos, toda a costa limpa e sem recifes;”, fl. do Ouro,
20 Terra dos
- “ao longo da praya, uão buscando o Rio de Lourenço Fumos)
Marques, muyto conhecido na carta de marear,”, fl. 21
- “nestes dezertos”, fl. 24
- “naquelles montes de area”, fl. 25
- “deixarão a praya, e sobirão as primeiras serras”, fl. 25 Terra deserta
- “não comião senão os cangrejos da praya, poucos, e ruins;
[…] pouco melhor mantimento era, que o de gafanhotos e Terra estéril,
mel silvestre”, fls. 25-26 de fome
- “Descem ao outro dia da serra a huma terra mais chaã
caminhando pello sertão ao rrumo, que a costa corre;”, fl. 26
- “Itenerario daquellas Prouincias”, fl. 31 vº-32 Províncias
- “parão em huma pouoação situada junto de huma lagoa (Cafraria)
igual ou mayor, que toda a bahia de Lisboa; entra nella a
maré por huma boca do Rio, muito piquena, e estreita, que

1545
B.P.E., Ms. CXVI/1-22, “Relaçam do Naufragio da Náo São Thomé de que era Cappitão Esteuão da
Veiga, a qual se perdeo na Terra dos Fumos no anno de 1589, e dos grandes trabalhos, que passou Dom
Paulo de Lima e mais Companheiros nas Terras da Cafraria, até sua morte”. Uma parte do texto desta obra
é comum ao texto do códice com uma cota próxima (Cod.CXVI/1-24), da autoria de António de Ataíde.
Entre os dois textos verificam-se algumas diferenças de pormenor e a estrutura e organização do texto
também é diversa. No que se refere ao manuscrito CXVI/1-22, o conteúdo textual divide-se em duas partes:
1ª - Naufrágio da Nao São Tomé na Terra dos Fumos no anno de 1589 (fl. 1- 103); 2ª - Genealogia de Dom
Paulo de Lima (fl. 104-407).

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

de baixa mar se uadea pella praya. Esta lagoa he saloubra, Elementos de


mas as muitas poucas, que há ao longo della, são todas de semelhança
agua doçe.”, fl. 33 com o
- “Lembrado ficou sempre entre os nossos o Rio da mesmo
Abundancia, que assim o nomearão pello bom acolhemento
que alli tiuerão.”, fl. 34 Rio da
- “entrarão por huma uereda dos animaes do campo, que os Abundância
leuou a hum brejo, aonde fizerão alto, e alojarão aquella (espaço
noite. De comum pareçer detriminarão o dia seguinte entrar positivo)
pello sertão, por que já uião, que na praya nem hauia agua,
nem mantimento, nem pouoaçõens.”, fls. 34-35 Caminhos:
- “no meyo da gentilidade, e montanhas da Cafraria”, fl. 35 veredas de
- “hum ualle comprido, e apaulado, delle sahirão a milhor animais
terra;”, fl. 37
- “houuerão uista da Bahia, e Rio, que uinhão buscando, que Baía e Rio de
nas cartas de marear se intitulla de Lourenço Marques, Lourenço
porque elle o descobrio, e lhe pos o nome do Espirito Santo; Marques
[…] Està à boca da Bahia em altura de 26 graos escaços, terà (espaço
de terra a terra seis leguas; há dentro bom fundo de quinze, conhecido)
uinte braças, entra muito pella terra dentro fazendo braços,
e reçebendo os Rios Melengane, e Anzete, e Fumo”, fl. 46
- “He o Manhica o regalo daquella Prouincia, a que os
Portuguezes comprão algum marfim dos medos de ouro atè
aqui corre a costa Nordeste, Sudueste, e tomada Quarta do
Norte Sul, toda limpa e sem recifes”, fl. 47
- “entregues a noua perigrinação, e a nouos perigos, Praia
caminhão ao longo da praya, esperando, que no Rio do ouro
acharião a Almadia”, fl. 57
- “Pello Rio arriba os foy guiando o Cafre para o sertão, por
entre matos espessos, e brejos de agua, que as uezes daua
pelo çinto, com que os nossos entrarão em sospeita de
trayção.”, fl 59-60

455
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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

- “[…] marfim, ambar, e outras mercadorias, que hà naquella


Cafraria”, fl. 61
- “[…] não quizerão cometer o caminho por terra á
Inhambane pella ruim informação que acharão das gentes”,
fl. 62
- “Está a fos do Rio do ouro em 25 graos, a barra he de pouco
fundo, quebra o mar muito nella, não podem entrar senão
embarcaçoens pequenas”, fl. 71
- “[…] chegarão a hum Rio que parte os dominios entre
Gamba, e Panda; he braço do Rio do ouro, esta em 24 graos
e meyo, e passarão em Almadias”, fl. 76
- “Nas terras do Gamba forão os primeiros ministros da
publicação do Euangelho o Padre Gonçalo da Silueira, filho
de D. Luis da Silueira 2º Conde da Sortelha, com seus
companheiroso Padre Andre Fernandes, e o Irmao Andre da
Costa, todos Religiozos da Companhia”, fl. 77
- “[…]chegarão a Inhabane […]adiante, reprezenta-lhe
Simão Lopes grandes perigos pella maliçia da gente, que
hauia no caminho, falta de mantimentos, e agua, fraqueza, e
doença, com que todos uinhão”, fl. 81

Nau Manuscri -“caminhos tão asperos e imtrataues”, fl. 4 vº Terra áspera


Santo to -“ esta parte da Cafraria”, fl. 4 vº Terra de
Alberto anónimo -“Deos […] nos quis amostrar a terra pera que sobreuindo o “renasciment
1593 1546
trabalho que uejo soubessemos busqua-la como a o” e salvação
B.N.P., busquamos, pera nos saluar”, fl. 7
COD 639 -“[…] 21 - de Março ouuemos vista da terra em - 32 – graos
(...) como Deos sabia o vindouro quis que a vissemos pera a
busquarmos pera a nossa saluação como a busquamos

1546
Manuscrito da B.N.P., COD. 639, com o título “Perdição da não Santo Alberto, e das couzas da Cafraria,
costumes dos que a abitão ate o Cabo das Correntes”, transcrição integral em Glória de Santana PAULA,
O Naufrágio da Nau Santo Alberto. Discurso de um manuscrito anónimo, Lisboa, Caleidoscópio, 2007, pp.
111-163.

456
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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

quoando nos uimos haflitos o qual entendeo ser a Bahia


Fremoza”, fl. 8
- “huma ponta a que os mareantes çhamão Ponta das Fontes
que esta em - 32 - graos e meio antre a Bahia Formoza e o Terra de
Rjo do Ymfante, çhama-se esta ponta na limguoa dos cafres, perigosos
Tiombe”, fl 12 vº caminhos
- “é tam fria a terra”, fl. 17
- “yornada tão perigoza”, fl. 22 vº Natureza
-“ afastando-nos da praia subindo alguns oitejros çheos formosa e
d’aruoredo e desendo alguns vales muito fresquos”, fl. 24 abundante
-“rjo d’agoa salguada que hia sair ao mar que deuia ser o Rio
do Ynfante ao quoal se metia outro rio que uinha correndo
por antre serras fermosyssimas e arvoredos grandes e
uisozos, d’aguoa dose muito hemselente em o quoal Terra de
andauão muitos caualos marinhos e patos”, fl. 24 milagres e
-“ fermoso monte”, fl. 24 vº curas
-“ribeira d’aguoa tam fria e tão emselemte que alguns
companheiros hafirmarão que sendo doente da pedra a
semtirão botar com a beberem e em todo tempo que
caminharão a não sentirão”, fl. 25
- “ouue neste arraial omem de ojtenta anos, e moso de doze,
e manquos que da praia comesarão a caminhar em muletas Terra de
[…] neste caminho sem lhe por nada só com o caminhar e beleza e
comer carne somente e aguoa se lhe sarou, destes milagres frescura
ouue muitos, yuntos a outros que Deos fes aqui por todos.”
fl. 25 vº
- “lenha nem aguoa nos faltou nunqua, que a cada piqueno Terra fértil e
espaço açhauamos rios, ribeiras, regates fresquos e amenos abundante
pera corasoys mais liures de cuidados de que os nos
trazíamos”, fl 26

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

-“As terras são as melhores que se podem pedir, e darão


tudo que lhes samearem, melhor e tambem como em
Portugual” fl. 26
-“quoando se tentar como ja tentou El Rey Dom Sebastião a Terra de
fazer fortaleza na Baia Fermoza pera o recolhimento das esperança, de
naos”, fl. 26 vº expansão da
-“fartura e prosperidade da terra […]toda em sy é evangelizaçã
fertilissjma de muitas ribeiras e guado e carnejros”, fl. 26 vº o
-“ terra chan e muito fermoza e uerde e de boms pastos”, fl.
27 vº
-“ terra fresqua muito apraziuel a uista”, fl. 27 vº
-“a terra em si é sutilissima e muito aparalhada pera produzir
tudo o que se lhe emcomendar”, fl. 28
-“ caminhamos por huma fermoza campina, quanto se
alcamsaua com os olhos toda cheia de feno, e de aruoredo,
ralo”, fl. 29 vº
-“o padre frej Pedro da Crus pos hum crusofixo sobre huma
aruore com duas uelas da sera asezas e disse as ladainhas
com muita deuasão […] premitira Deus que este piqueno
altar seja selo e posse desta terra […]a palaura do auangelho Terra de
que se aqui comesou a pregar se estemda por antre aquela beleza e
brutalidade, comprindo-se a do avamgelho que em toda a frescura
terra se ouuira o seu som, e no fim da terra sua palaura,
porque esta foj a primeira tombeta que se aqui comesou a Terra de
soar.” fl. 30 vº e 31 muitos rios
-“ribeira muito fermoza, larga e fumda a qual corria por sima
de huma fermoza penodia”, fl. 32
-“ uale muito fermozo e cheio de pouoado e de muito gado”,
fl. 35 vº
-“ caminhamos pelo dezerto”, fl. 37
-“ serrarjas carregadas e modonhas”, fl. 38
-“matos”, fl. 38 vº

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

-“ huma ribeira que paresia de ser o inferno”, fl. 39


-“ campinas fermozissimas”, fl. 39 Terra de
-“ nas emtranhas da Cafrarja”, fl. 39 vº beleza e
-“ pela muita fartura que açhamos lhe puzemos nome o Vale frescura
da mizericordia e a abundamcia”, fl. 39 vº
-“ açhamos huma fomte nasida d’area da mais emxelente
agoa que numqua uimos da quoal nasia tres fermozos olhos
que todos fazia hum regato que uinha desemdo por antre
humas eruazinhas verdes”, fl. 41 Variedade da
-“ toda esta Cafrarja”, fl. 41 vida
-“fomos caminhamdo por despouoado subimdo, e desemdo selvagem
alguns altos […]e fomos dormir a outra ribeira muito fresqua
que da outra banda tinha alguns outeiros e huma fermoza
roçha talhada çheia d’aruoredo”, fls 42-42 vº
-“ terra çham e pouoada por baixo d’aruoredos espinhosos”, Terra de
fl. 43 beleza e
-“toda a Cafrarja que é tão gramde”, fl. 43 vº frescura
-“huma ribeira muito fermoza”, f. 49
-“ muitas vaquas brauas, veados, bufras, gazelas, meirus,
alifamtes e outros muitos animais”, fl. 49
-“ vimos muitos alifamtes, bufras, vaquas brauas, porquos
espinhos, bogios, patos grandes, perdizes, tordos e fomos a
passar a noite em parte omde a ribeira fazia preza em que
andauão muitos caualos marjnhos”, fl. 49 Terra doentia
-“ hum fermozo e apraziuel rio porque de mare chea fas hum
largo pego e huma ribeira fermoza e de vazia espraja de
maneira que fiqua todo em fermozo areal”, fl. 51 vº
-“ huma campina cheia d’aruoredos, açhamos emfenitos
jasmins e eruas çherozas e ao diante fomos dar com huma
fermoza lagoa de huma legoa de comprido”, fl. 52
-“esta terra e sitio [ilha do Inhaca] ser muito doentio, a
alguns dos nossos lhe toquou a febre”, fl. 54 vº

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

-“ o caminho pera Sofala e os Rios de Cuama […]o caminho


hahi é majs defilcutozo e de piores ares, agoas”, fl. 55

Nau João -“Terra do Natal”, p. 20


Santo Baptista -“Penedo das Fontes (…) Tizombe”, p. 26
Alberto Lavanha, -“toda a Cafraria”, p. 31
1593 H.T.M., -“grandes e espessos bosques, nos quais nunca se
III encontraram leões, tigres, nem animais desta qualidade”, p. Terra de
32 beleza e
-“… costeando a Cafraria”, p. 34 frescura
-“… partiram daquela praia […] do destroço passado”, p. 34
-“fresca várzea cheia de feno”, p. 35
-“fermosa ribeira”, p. 35
-“Ao longo da ribeira e de espessas matas de diversas cores”,
p. 35 Terra de
-“ao longo do rio (que e o do Infante)”, p. 35 muitos rios
-“espesso bosque […] aprazível campina […] outeiros
cheios de arvoredo […] ribeira de muito boa água”, p. 35
-“mui boa terra chã […] abundantes de pastos e água”, p.36
-“terra chã e mui viçosa de grossos pastos”, p. 36 Caminhos
-“aquelas terras nunca deles, nem de outros nenhuns bons e
portugueses, vistas e tratadas”, p. 40 povoados
-“um bom caminho, e mui povoado”, p. 40
-“caminharam por desabitado”, p. 41
-“a terra muito mais fértil e grossa […] chamam-lhe os Terra fértil e
negros Ospidainhama, e em seus matos há mui cheirosos abundante
cravos rosados e vermelhos”, p. 45
-“[…] caminhar para a serra […] Chamam-lhe os negros
Moxangala; é muj viçosa e fresca”, p. 46
-“grandes e altas serras cobertas de neve”, p. 48
-“o mais caudaloso rio que até ali tinham encontrado”, p. 49

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

-“vale mui fundo e de espinhosos mato coberto […] não Matos, terras
parecendo que poderia ser o lugar habitado senão de feras selvagens e
[…] entre altos e ásperos rochedos”, p. 49 incultas
-“fresquidão desta ribeira […] por sua beleza lhe puseram
nome das Flores Fermosas. E os negros lhe chamam
Mutangalo”, p. 53 Terra de
-“se recolheram em um fresco vale que entre grandes rochas beleza e
se estendia, povoado de algumas quinze aldeias”, p. 54 frescura
-“uma viçosa serra”, p. 55 Caminhos
-“caminhar por boa estrada e mui seguida”, p. 55 bons e
- uma Cruz “foi por este honrado e virtuoso fidalgo [Nuno povoados
Velho] levantada e arvorada no meio da Cafraria, centro da
gentilidade […] a árvore da Santa Cruz na Cafraria”, p. 66
-“por uma mui estendida várzea os nossos caminharam,
povoada de bons pastos e arvoredo”, p. 66 Terra fértil e
-“terra alagadiça, […] de muitos brejos […] Dele se via ao abundante
Sudoeste a foz de um rio, que é o que nas cartas de marear
se chama de Santa Luzia”, p. 69
-“povoações, cujas casas eram como as nossas choupanas de
vinha”, p. 70
-“Terras do Inhaca […] uma grande baía de quinze ou vinte
léguas de comprido”, p. 73
-“…….
Nau Melchior
Santo Estácio - Naufrágio da nau Santo Alberto, cuja gente “foi ter a Terra de
Alberto do Moçambique por entre aquela bruta cafraria, 300 léguas por perigosos
1593 Amaral, terra […] tão largo e oculto caminho”, p. 207 caminhos
H.T.M.,
III1547

1547
Melchior Estácio do Amaral, “Batalhas e Sucessos do Galeão Santiago e da Nau Chagas”, HTM, Vol.
III, p. 207.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Nau Santo Botelho


de
Espiritu
Sousa1548
1608 [informaçõ
es]

Nau Francisc -“fomos amanhecer duas legoas da terra em trinta & tres
o Vaz
S. João graos, & hum terço, & foy tamanha a alegria em todos como
Dalmada
1549
Baptista se fora a barra de Lisboa, não imaginando o muyto caminho,
1622 que tinhamos para andar, & os trabalhos, que nos
aguardavam ao diante.”, p. 10
-“E porque nos pareceo hua praya de area, & bom
desembarcadouro (o que depois conhecemos não ser assim)
surgimos em sete braças com duas ancoras. Mandou logo o
Capitão a Rodrigo Affonso de Mello com quinze homes
arcabuzeyros reconhecer a terra […] & nos mandou agua Terra de
doce, & hervas cheyrosas, com que nos causou notavel perigosos
alegria.”, p. 11 caminhos
-“havemos de atravessar esta Cafraria atè o cabo das
Correntes”, p. 11 Terra de
-“terras tão fragosas, & caminhos tão longe”, p. 11 muitos rios
-“costa brava”, p. 12
-“esta terra he toda cortada de rios de muy boa agua,& tem
lenha, mas falta de fruita, e de mantimentos, sendo assim,
que parece tal, que dará tudo o que nella se semear
abundantemente”, p. 15
-“vinte dias de caminho de Cafre […] que vinhão a ser dous
mezes do nosso caminho”, p. 16

1548
A. Botelho de Sousa, Subsídios para a História Militar Marítima da Índia (1585-1669), Lisboa, 1930-
56, II.
1549
Francisco Vaz Dalmada, Tratado do sucesso que teve a nao S. Joam Baptista, e jornada que fez a gente
que della escapou, desde trinta, & tres graos no Cabo de Boa Esperança, onde fez naufragio, até Sofala,
vindo sempre marchando por Terra, Lisboa, por Pedro Craesbeck (?), 1625(?), 96 ps. (Reservado da
Biblioteca Nacional de Lisboa com a cota RES. 336 6).

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

-“decendo ua serra altissima, chegamos a hum rio, que


passamos em espaço de dous dias, & foy o primeyro que
passamos com jangadas, ao qual puzemos nome do Terra de
Almiscre”, p. 17 animais
-“caminhando dous dias por serras altissimas de pedra, selvagens,
dèmos em huma praya toda chea de pedra solta, & em hum devoradores
rio, que passamos com huma jangada, que fizemos […] & a de humanos
este rio puzemos nome, o dos Camarões por nelle nos
venderem muytos”, p. 17 Terra de
- Disse uma donzela que foi deixada pelo caminho: “[…] me peçonhas
deyxem em hum deserto aos tigres, & leões sem haver quem
disso tenha compayxaõ, há de permitir, que seja tudo para
minha salvação […] Ah Portuguezes crueis, que vos não
compadeceis de hua moça donzella Portugueza como vòs, &
a deyxais para ser mantimento de animaes;”, p. 18 Terra deserta
-“puzerão-se a comer todos huas favas, que pela borda do Variedade da
rio se achavão, as quaes nos puzerão á morte, […] cada hora vida
nos punha neste mesmo perigo a grande fome, para remedio selvagem
da qual se comia todo genero de herva, & fruta” […] foy de
grande proveyto muyta quantidade de figueyras bravas que Terra sadia
nesta terra achamos, com os talos das quaes, & com muyta
ortiga fomos passando muytos dias”, p. 19 Terra de
- “esta terra ser muy deserta de aves, & animaes”, p. 20 infiéis
- “Fomos fazendo nosso caminho por estes desertos,
subindo, & decendo cerras muyto fragosas, passando
muytos rios todos cheyos de cavallos marinhos, & notaveis Terra de
animaes.” P. 23 beleza e
- “E vinhamos muy tristes por nos ir faltando muyta gente, frescura
& nenhua de doença por ser a terra sadia.” P. 24
- “ terra de infieis” – “não só arriscava o corpo, mas que
também arriscava a alma por ficar em terra de infieis, aonde

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

lhe podiam entrar os seus máos costumes, & ceremonias”,


p. 30 Terra de
-“a mais fermosa cousa, que a vista então podia desejar, muitos rios
porque se descobrião dali muytos valles todos cortados de
rios, & serras mais pequenas, pelas quais se vião infinitas Terra estéril,
povoaçoens todas cheas de vacas, & sementeyras, com a de fome
qual vista decemos á serra muy contentes”, p. 32
- “ hum rio o mayor que atè então tinhamos visto, […]
caminhámos pelo meyo de serras muyto altas” […]
caminhámos por cima de hua serra por caminhos muyto
ingremes, & arriscados por ficarem caindo em cima do rio,
p. 36
- “fomos á borda do rio, & nos puzemos junto a elle encima
de hua serra, lugar forte, que escolhemos para esperar atè
que vazasse com menos furia, o que não fez por espaço de Terras
vinte sinco dias […] A este rio puzemos o nome da fome, remotas
porque nelle padecemos as mayores que tivemos em toda a
viagem”, p. 39
- “em toda a Cafraria atè o rio de Lourenço Marquez”, p. 41 Terra estéril,
- “este desaventurado rio”, p. 45 de fome
- “Passado o rio, em que puzemos dous dias, fomos
caminhando por huma serra acima muyto ingreme”, p. 46
- “continuando nossa viagem por serras menos montuosas
afastadas da praya tres, ou quatro legoas, chegámos a hua
ribeyra muyto fermosa […] Aqui achámos hum Jáo da
perdição de Nuno Velho Pereyra, o qual era já muyto velho, Terra fértil e
& fallava mal”, p. 48 abundante
- “terras tão remotas” , p. 48
- “algum mato, & deserto”, p. 49
- “viemos caminhando por terras muyto faltas de Terra de curas
mantimentos”, p. 50 e milagres

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

- “nos veyo acompanhando o Malavar hum grande pedaço,


& com muytos abraços, & mostras de sentimento nos disse,
que tinhamos muyto caminho para andar cheyo de serras Riqueza
altissimas, & se foy embora” p. 51 agrícola
- “povoações tinhão suas sementeyras de milho, & abobaras (Zona dos
as quaes nos venderão, & nos souberão muyto bem”, p. 52 Xhosa)
- “fermoso bosque, ao qual atravessava hum rego de agua”,
p. 54
- “chegàmos ás povoaçoens da desejada fartura”, p. 54
- “chegàmos a hum rio grande”, p. 58
- “ninguem escapou que o não fosse, ou de azagaya, ou de
pedradas, & fizerão-se as maiores curas, que eu nunca vi,
porque havia muytos atravessados pelos peytos de banda a
banda, & pelas coxas, & cabeças quebradas, & nenhu delles
morreo, & só com tutanos de vacas eraõ curados”, p. 59
- “hum rio grande […] & daqui fomos pela praya dous dias Categoria de
atè chegarmos a outro rio […] este rio ao qual puzemos o Cafraria
nome do lagarto, por vermos andar hum nele, fomos nosso como espaço
caminho por dentro afastados da praya huma legoa, & alargado
caminhando sinco dias por entre boa gente, viemos sair na
boca de hum rio […] nesta paragem há infinitos elefantes
[…] A este rio puzemos nome, o das Ilhas por ter algumas
por dentro.” P. 62 Terra de ouro
- “vimos muytos cavallos marinhos […] marchàmos por
huns campos desertos […] Daquim marchámos por terra
chaã povoada de gente miseravel” ps. 63-64
- “sinco mezes por terras alheas”, p. 64
- “demos com o rio da pescaria”, p. 64
- “Caminhámos dous dias sempre pela praya das mèdas do
ouro”, p. 65
- “chegámos […] ao rio de Santa Luzia, aonde se estimavão Terra doentia
já panos, […] nos morrerão nove pessoas de frio. […] Aqui

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

endoudeceo hum marinheyro velho […] fizemos grandes


fogueyras, em que nos aquentamos, & o marinheyro tornou
em si depois de quente”, ps. 66-67.
- “Fomos daqui caminhando sempre pela praya das mèdas
do ouro […], sendo de huma terra de cor de ouro”, p. 67
- “vinte seis gràos largos […] soube-se por esta altura
estarmos do rio de Lourenço Marquez vinte seis legoas […],
& nos disserão, que em quatro dias podiamos chegar ao
Inhaca.” P. 67
- “demos no rio de Lourenço Marquez de nòs tão desejado”,
p. 70
- “Tornou-lhe a dizer o Cafre, que lhe requeria não fizesse
tal viagem porque o havião de matar os Mocrangas assim Terra de
como fizeraõ à gente de Nuno Velho Pereyra, que não coube ladrões
na embarcação, & que erão terras muyto doentias […] por
se dizer havia ladrões adiante” , p. 73
- “adoecemos todos por ser a terra má, & tambem porque
nos metemos em muyto comer cru”, p. 74
- “Chegou a outra gente, da qual vinha também doente a Terra de
mayor parte, […]. Nesta Ilha deyxámos por estarem muyto perigosos
doentes, & nos não poderem acompanhar”, p. 75 caminhos
- “ Rey que chamão Ommanhisa, […], na sua terra tem a
mayor feytoria. […] nos avisou, que pelo caminho que
levavamos nos haviaõ de roubar, & matar a todos.” P. 75
- “Havia já dous dias que alli estavamos, onde nos ficárão
tres companheyros, […], & os Cafres nos não traziaõ a
vender cousa alguma, antes nos fazião todo o mal que
podiaõ, não nos querendo mostrar por onde o rio se Terra fértil e
passava”, p. 78 abundante
- “tinhamos entrado na terra dos ladroens […], indo
continuamente brigando com elles, o que jà a gente fazia
com muyto trabalho por virmos doentes, & com poucas

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

forças pelos mantimentos serem poucos, & os Cafres no los Diz respeito à
não quererem vender.” P. 78 viagem por
- “ … fomos atè o rio do ouro”, p. 78 terras para
- “ … indo marchando pela praya nos sahiraõ do mato mais norte de
de mil Cafres, & dando-nos hum assalto na retaguarda”, p. Lourenço
84 Marques
- “ … jà Inhambane devia estar perto”, p. 85
- “E caminhando quatro dias pela praya fomos passar hum
rio com água pelo pescoço fria como neve, a qual me tratou
bem mal.” P. 86 Terra de bom
- “E assim fomos caminhando pelas terras do Zavala hum agasalhado
cheque, ou regulo nosso amigo”, p. 86
- “Inhambane, […] là chegàmos, que foy dezanove de
Junho, aonde fomos bem recebidos, & aquella noyte nos não
faltou de comer”, p. 87 Bazaruto
- “ … banda do Chamba, que fica da parte do Cabo das
Correntes, […]. He este rio fermosissimo, tem de largo meya
legoa, & da banda do Camba bom surgidouro para
embarcações de atè trezentas toneladas, […] há muyto Sofala
marisco, […] a terra em si he muyto sádia, & a mais farta,
& barata, que já se vio, abundantisima de mantimentos,
como he milho, ameychueyra, jugos, que são como grãos,
mungo, gergelim, mel, manteyga, muyto fermosos boys,
[…] muytas cabras, & carneyros, o peyxe he o melhor que Inhambane
comi em toda a India, & tão barato, que he espanto […]. Os Terra de
matos todos são cheyos de laranjas, & limões, tem muyta mercadorias
madeyra, de que se podem fazer embarcaçoens.” p. 88 para o
- “E tendo andado aquelle dia todo fomos passar hum rio, & comércio
dormindo da outra banda, se vierão ajuntar mais Cafres à (ambar e
companhia carregados com marfim, & ambre para venderem marfim)
em Zofala”, p. 90

467
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

- “Por todo este caminho fuy muy bem agasalhado, & o que
mais pena me dava nesta jornada, era a detença, que me
fazião ter os regulos, que por aqui hà, que ainda que esta
gente esteja mais perto de nòs, que a do Cabo de boa
Esperança, fazem mais espanto quando vem hum Portuguez.
E depois de ter andado quinze dias, fuy ter à povoação de
outro regulo mayor”, ps 90-91
- “daqui a alguns dias fuy ter com outro regulo, que está
defronte das Ilhas Bazanito, […] cheguey a Molomono que
são jà terras de hum mulato por nome Luis Pereyra, o qual
vive em Zofala, & he a mais venerada pessoa, que nestas
partes hà.” P. 91
- “ … vinte oyto de Julho fomos a Zofala […] aonde os
Cafres com muytos grandes gritos disserão: Muzungos,
muzungos”, p. 92
- [Sofala] “em terra de Christãos”, p. 93
- “me parti para Inhambane a quinze de Agosto, e pla
detença, que fiz em Quelvame cheguey com muytas
tormentas milagrosamente por cima de Inhambane dez
legoas”, p. 93
- “chegàmos à tarde a Inhambane, onde me vieraõ todos
receber com muytas lagrimas, dizendo, que a mim se me
devia tudo, & que eu os vinha tirar do cativeyro do Faraò, &
que os Cafres já lhes não queriaõ dar de comer”, p. 94
- “as mercadoryas da terra […] eraõ ambre, & marfim”, p.
95
- “E fazendo-me dar à vella, tornàmos a arribar por ser fóra
de monção, & aquella costa ser muyto tormentosa”, p. 95
- “Desembarcando em terra fomos todos em procissão a
nossa Senhora do Baluarte, levando hua Cruz de páo diante,
[…] graças a Deos pelas muytas mercès, que nos tinha feyto
de nos trazer a terra de Christãos”, p. 96.

468
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Nau Códice - “ […] começou a seis de Novembro a caminhar em


737,
S. João demanda de Çofala, com hum exercito formado de mais de
B.P.M.P.
1550
Baptista 270. Portugueses, marchando sempre ou pella praya ou praia
1622 desviandose de passar rios, & esteiros caudalosos, de que he
cortada aquella terra.”, fl. 70
- “[…] a margem de hum fermoso rio”, fl. 70 ásperos
- “Assim adornados de paciencia forão marchando, desertos
atravessando asperissimos desertos”, fl. 70 vº
- “A 21. Deste mez, e ao descer de huma montanha, acharão
outro rio profundo, que com jangadas o passarão, e lhe
chamarão do almiscre”, fl. 70 vº
- “[…] serras fragozissimas […] se encaminharão pella serras
praya; e aqui o perigo, e dano proprio lhes começou a bárbaras
ensinar rigores tão barbaros, como inhumanos”, f. 70 vº
- “dezemparada huma donzela ao apetite dos Cafres, ou ao
alvedrio das feras” , fl. 71 Terra de feras
- “[…] exposta assim para sustento dos feros tigres, e eleões,
ou a torpeza dos Cafres”, fl. 71 vº
- “[…] as hortigas escabrosas, as immundicias da terra, e os
limos do mar apetecerão por comida”, fl. 72 Terra de fome
- “Serião os 15. de Dezembro quando passado aquelle
deserto se descubrirão povoações”, fl. 72
- “por barrancos, e por brenhas”, fl. 72 vº
- Na Cafraria, “risco a que seu corpo se expunha, mas sobre
tudo o perigo que corria sua alma, a quem metia Terra de
espontaneamente em o confuso barbarismo de aquella perdição da
grande gentilidade”, fl. 73 alma
- “foy proseguindo por montanhas, profundos rios, e […]
pobres povoaçoes adiantando pouca terra, & em humas
partes aliviado com o resgate das rezes, & em outras muytas

1550
Biblioteca Pública Municipal do Porto, Códice 737, “Rellação de Varios Naufragios”, fls. 68-75 v..
Data desconhecida, parecendo tratar-se de uma recompilação do século XVII.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

com suas lagrimas, e com as ervas do campo, que como Terra de


bestas arrancavaõ, e já não lhes sendo horrivel (treme a mão conversão à
o escreve lo) comer os membros dos corpos, que prevendo bestialidade
estes trabalhos, os recambeavaõ com a morte. Deziaõ (inversão,
aquelles. Que se bem, hum tal sustento condenavaõ todas as negativo)
leys de rezão, o certo risco da vida se lho fazia licito, e
livrava de qualquer nota de bestiais”, fl. 73 vº
- “inclemencia das aguas, com as doenças, e fome, e com o Doenças,
trabalho do caminho”, fl. 74 fome e
caminho
trabalhoso
S. Manuel - “los navegantes […], vinierõ a surgir en la Baia que llaman
de Faria
Gonçalo Fermosa: nombre proporcionado com la hermosura de su Terra
y Sousa,
1630 Ásia capacidad, porque tendrà de boca tres leguas y de circulo Formosa
Portugue
cinco. Tan essenta de los vientos, que solámente la visitan el
sa, Tomo
III, Parte Leste, Nordeste, y Sueste. Es de los terminos del Cabo de
IV, Cap.
Buenasperança.”, p. 459 Terra de
VIII1551
- “empeçaronlos ciento a componer una póblacion de abrigo
choças; porque ya vian como les seria necessario largo (temporário)
tiempo para consiguir el modo de bolver al mar; que era
aprovecharse de los residuos de la nave, y de los arboles de
aquel monte para hazer dos navios.”, p. 460
- “Sembravan algunas semillas, para lograrse de su fruto […] Semelhanças
como eran calabaças, melones, pepinos, cebollas, culantros; (potencial
que crecian, mientras se labravam los dos navichuelos. agrícola da
Manteniam se del arroz que avian puesto en salvo, y otras terra)
cosas; y de pezes que cogian, y de vacas, y de ovejas que a
trueque de hierro compravan a los Barbaros.”, p. 460 Terra de
- “El Terreno es bonissimo, sin piedra alguna, aun que com Bárbaros
diferentes elevaciones. Ellas, y los valles com muchas

1551
Manuel de Faria y SOUSA, Ásia Portuguesa, Tomo III, Parte IV, Cap. VIII, Partes 12-19, Lisboa,
Officina de Antonio Craesbeeck, 1671.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

yervas y plantas; como junco, espadaña tabua, albahaca Terra


maçanilha, romero, mastranço, cantueso, y otras varias, com abundante de
olorissimas flores. La arboleda copiosa y grande. Rieganlo plantas e água
todo caudalosos rios; y abundantes e bellas fuentes”, p. 461
- “ […] la discripcion de essa tierra. Son inumerables, y de
extraordinaria grandeza las fieras; como venados, lobos,
cavallos marinos, bufaros, javalies, monos: ay tambien Animais
tigres, y elefantes: conejos a manera de hurones: de aves, selvagens
pavos (todo silvestre) gansos, palomas, tortolas, perdizes: de
las pequeñas (como las nuestras algunas) en admirable
numero: com diferencia de que no hazen sus nidos en el
suelo, o matorrales, si no en los arboles, pendientes de sus
ramas com vistoso artificio”, p. 461
- “Alli vivian como de assiento los naufragos Portugueses.
Levantaron un modo de Iglesia adonde frequentavan el Cristianizaçã
Santissimo Sacramento del Altar: ni avia falta de Sermones o do lugar
que los podian abstener de vicios y alentar de animos:
porque se allavan alli estos Religiosos y Sacerdotes”, p. 461
- “Hallandose ya de partida, plantaron una Cruz en la cumbre
de un monte, com inscripcion que manifestava su fortuna”,
p. 462

Nossa José - “[…] em Abril, & Mayo […] he melhor ir ver terra do cabo
Cabreira
Senhora em altura de trinta & hum para trinta & dous graos, & não
de Belém desgarrar tanto ao mar a buscar tormentas: de mais que para
1635 os infortunios desta navegação sempre na terra se offerece
mais prompto acolhimento. Pelo que nesta volta viemos
ambas as Náos mais de oyto dias atè ver a primeyra terra
daquella costa, […] donde contra o curso ordinario desta
monção começárão os temporaes a ser tão rijos, & continuos
que parece que cada qual procurava de acabar com nosco de
hua vez”, ps. 9-10

471
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

- Costa do Cabo da Boa Esperança: “[…] lançavamos as


Rascas ao mar para colher algum peyxe (que he o desta
paragem com grande excesso o melhor que deve de haver
em nenhua do mundo)”, p. 10
- “cabo de boa Esperança tam tormentoso, & fatal para os
navegantes”, p. 13
- “[…] fiz outro assento com os officiaes, & gente do mar,
sobre o que se devia fazer, para salvarmos as vidas, & o mais
que pudesse escapar, & assentou-se por commum voto de
todos, já que as miserias nos chegavão a tanto aperto, que
fossemos em demanda da terra para encalhar com a Náo, &
salvar a vida, o que a tivesse destinada por Deos.
E tomada este misérrima resolução no livro delRey, fomos
a buscar a terra, que ao outro dia vimos ser o principio da
terra do Natal de trinta & dous graos, e não foy menos
festejada, que se descobriaramos a deste Reyno”, p.19
- “[…] indo assim correndo a terra por ver se descubriamos
alguma praya, ou enseada, onde com menos risco, & mais
comodidade pudessemos encalhar, vimos huas serras muy
altas, & cortadas como de algum Rio, & hus fumos em
partes, como que havia povoações de gente”, p. 20
- “na aspereza daquella costa mal se podia navegar”, p. 21
- “[…] a terra, aonde dando a Náo à costa, era força, que a
mayor parte da gente se salvasse em jangadas, em paos, &
taboas; e que indo assim algum meyo morto, ou de frio, que
era grandissimo, ou ferido dos prègos, & rachas, &
atropelado do rolo do mar, que arrebentava furiosissimo
muyto antes de chegar à costa, não visse algum Alarve de
entre aquelles matos, & pelos roubarem acabassem de os
matar”, p. 21
- “[…] julgando este por hum dos mayores milagres que
Deos nosso Senhor nos fez, nos abraçamos uns aos outros,

472
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

dando-lhe muytas graças; & como pessoas que de novo


naciamos para esta vida, havendonos visto quasi na outra.”,
p. 24
- “Recolhemo-nos logo a hum pequeno mato que nos
pareceo mais acommodado, assim para nos defendermos dos
Alarves da terra, como para nos enxugarmos, fazendo cada
hum fogo onde melhor lhe pareceo, o que bem permitia a
muyta lenha de que esta terra abunda.”, p. 24
- “veyo o Sol saindo, & de entre os matos ajuntar-se poucos,
& poucos tantos alarves, que vierão a ser mais de trezentos,
o que nos poz em grande cuydado”, p. 26
- “He esta terra de ares excellentissimos, & de grandes
matos, madeyros muy altos, y grossos, & de suaves cheyros,
supposto que os frios tão excessivos, há muyta lenha, &
como o Sol levanta aquenta bastantemente a terra; […] nos
não adoeceo nunca ninguem, antes vindo a gente muy
doente, convaleceo a mayor parte della”, p. 26
- “ […] pondo-lhe hua Cruz sobre a sepultura, o que nos
movia a grande magoa, & acrecentava mayores saudades,
por ver nossos companheyros enterrados donde nunca
puzerão pès mais que alimarias bravas, ou aquelles Alarves
naturaes, que tambem se distinguem pouco das proprias
feras.”, p. 27
- “mato […] perto deste estavão emboscados muytos
alarves, dando-nos sempre grandissimas coqueadas”, p. 31
- “todos julgavamos, que por aquellas brenhas, & praias
desertas, não poderiamos sustentar a vida oyto dias mais ou
menos, pois os perigos erão tão continuos, & a falta de tudo
tão grande.”, p. 33
- “a praya era em partes de area solta, & em outras coalhada
de muytos seixos, não podiamos marchar bem”, p. 33

473
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

- “rio abrigado dos temporaes, tão ordinarios nesta costa”, p.


35
- “os negros de meterão no mato”, p. 35
- “grandes difficuldades que havia em caminhar por terra”,
p. 37
- “nos fomos todos a hua praya de area, & nella fizemos a
fórma dos navios, a modo de barcos Sevilhanos de sessenta
palmos de quilha, […] fomos a hum mato, & em nome de
nossa Senhora da Natividade benzemos as arvores”, p. 40
- “Tratey logo de me mudar donde estava para onde se fazião
os navios, onde mandey fazer casa para ferraria, & tomey
bastante lugar para as madeyras que cortavamos nos matos,
fazendo huma ribeyra como a das naos deste Reyno”, p. 40
- “elegi lugar para minha morada em hu pequeno monte, de
que todos fugirão por haverem visto nelle alguas cobras,
ficando a ribeyra defronte”, p. 41
- “o Padre Jeronymo Lobo tomou à sua conta o fazer da
Igreja, para o que escolhemos o melhor lugar que a elle lhe
pareceo, […] tendo cortados paos bastantes fabricou huma
Igreja muyto bem feyta.”, p. 41
- “mandey tambem fazer hua casa, a que chamavamos
Bengaçal, que he nome da India, aonde se recolhe o
mantimento, […] no meyo do arrayal, […] forão em ranchos
fazendon cada hum sua palhota”, p. 41
- “ribeyra dos navios”, p. 42
- “hia buscar agua a hua fonte que descobrimos no meyo do
rio ao pè da serra da banda do mar, sem a qual nos não
podiamos sustentar, porque a agua que havia de hua lagoa
era muy peçonhenta, por beberem nella todo o genero de
feras, que havia naquelles matos”, p. 42
- “Quando escolhi este lugar para esta fabrica todos o
achamos seguido de pisadas de cavallos marinhos, de

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

bufaros, & de outras feras, mas com a continuação da gente


veyo a estar tudo tão limpo como o terreyro do Paço desta
Cidade.”, p. 43
- “frialdade do clima, & […] aspereza da terra”, p. 43
- “grandes miserias de caminhar por terras de alarves”, p. 43
- “indo quasi tres legoas pelo rio acima, que todo he muy
limpo, & muy aprazivel, vimos que já alli corria agoa doce,
muytas povoações, & ao longo delle varias sementes de
milho, abobaras, & feyjões, & fomos tambem vendo muyta
quantidade de gado vacum, dividido pelos montes”, p. 44
- “porque a noyte era já serrada os deyxey no mesmo lugar
alèm do rio, & me recolhi para a nossa estancia”, p. 45
- “lhe mostrey [ao Rei negro] miudamente a nossa estancia,
& a casa dos mantimentos”, p. 46
- “naquellas terras tam barbaras”, p. 49
- “[…] para virem resgatando pelo certão”, p. 57
- “E tornando aos nossos Navios, & a toda nossa esperança,
pois nelles só estribavamos remediar as vidas tão arriscadas
por aquellas prayas”, p. 58
- “[…] ninguem julgou nunca chegar ao que então viamos,
que era estar em navio á vela, ou traves em demanda do
Cabo de Boa Esperança, do que todos me davão grandes
louvores, & particulares agradecimentos, por eu ser só o que
havia instado no fazer dos navios”, p. 60
- “[…] tornamos a cometer para o Cabo de Boa Esperança,
mas a experimentar outra vez novas tormentas”, p. 61
- “Nestes transes andando sempre à vista da terra gastey
vinte & dous dias, não sendo mais distancia do rio da praya,
donde havia sahido a dobrar o Cabo de Boa Esperança, que
cento & setenta legoas, […] viemos surgir dentro da bahia
da lagoa, & para nos sairmos della numa volta, & noutra,
ouve imaginarse que a não poderiamos fazer nem faltando o

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

vento a Leste, & a Lesnordeste hua legoa ao mar desta


Bahia, aonde a carta sinala hum bayxo, o qual he de area, &
tinha em si mais lobos marinhos do que há passaros na Ilha
de Fernão de Noronha […] fomos correndo de longo, com
notavel perigo, por ser todo pela banda do mar cheyo de
arrecifes”, p. 62
- “ nestes vinte & dous dias passamos grandissimos
trabalhos, pois não só erão os das tormentas, mas os de não
comerem muytos cousa alguma de fogo, & a gente sobre mal
vestida andar toda molhada, por não ter outro abrigo mais
que o Ceo”, p. 62
- “[…] me dterminey a dobrar o Cabo, ou acabar na demanda
[…] havendo-o passado em hua noyte, demos infinitas
graças a sua muyta Misericordia, […] julgavamos todos, que
começavamos a renascer, no que não terey duvida em toda
a vida.”, p. 63
- “Antes que passassemos o Cabo determinavamos de tomar
a aguada do Saldanha, para ver se podiamos resgatar alguns
carneyros, & fazer agoa, porque fica no rosto do Cabo da
banda de fóra, donde os temporaes não tem tanta força; mas
como este posto he muy frequentado de Olandezes, & nos
pareceo que dalli a Angola tinhamos jornada breve, quis
antes passar por novas necesidades, que não arriscarme a ser
cativo de inimigos”, p. 63
- “[…] fazendo-me ao mar viemos ver outra vez terra antes
do Cabo negro, que ficamos dezassete gràos do Sol”, p. 63

Nossa Jerónimo - “[…] saymos todos já verdadeiros naufragantes […] em


Lobo
Senhora huma praya deserta de huma terra e gente a mais barbara que
de Belém conhecemos, tão remontada da em que nacemos mais de tres
1635 mill legoas”, p. 558

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

- “assim beijamos aquellas incognitas areas, assim nos


agradou aquelles montes, arvoredos e terra como se fosse a
naossa natural”, p. 558
- “nosso albergue […] à borda da praya debaxo de huma
grande mouta […] abrigada posto que rustica cassa morada
e abrigo ao que parece dos cafres e das feras”, p. 561
- “Fizemos este lastimoso naofragio na ponta e primeira
terra que chamão do Natal que estaa em 32 graos escassos
no lugar en que as cartas modernas, feitas depois do
naofragio da Não São João chamão Rio das Formigas”, ps.
568-569. Clima ameno
- “he terra aspera, esteril mais e menos montuosa e mais
agreste; a que jas porem até Sofala em espasso de 170
legoas, he fertil, branda e abastada de mantimentos.”, p. 569
- “No meio desta barbaria gozão do melhor torrão e clima de Arvoredo –
terra que eu vi, porque a massa della he negra e de metal recurso
fertil, a erva crece da altura de hum homem, na mesma forma (madeira)
crecera o mantimento se o semearão.”, p. 571
- “O arvoredo […]. Cobrem montes, vales, rochedos e
campinas tão fresco e viçoso quanto pode a vista desejar,
tam alto, basto e bem crecido que junto donde fizemos nossa Terra sadia
abitação podiamos armar muitas naos da India escolhendo
madeira à vontade […], p. 571

- “Os ares são os mais brandos e sadios que eu vi, porque


alem de gosaremos, 7 meses que ali estivemos, de huma
perpetua primavera, nenhum de nós adoeceo, convalecendo Terra inculta
os que chegarão à terra doentes
[…] “O que mais nos espantava era ver a fermosura e dilicia
das flores que Deus Nosso Senhor ali plantara tão pouco
etimadas de gente tão barbara”, p. 571 Terra sadia

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

- “Fruitas não nas cria a terra por falta de cultivo, que não no Terra de feras
ha entre os cafres”, p. 572
- “As agoas são muitas de rios e fontes frescas, delgadas,
sadias e doces”, p. 572
- “não vi terra mais temperada e milhor clima do que esta, e
muito poucas tão boas, porque posso dizer he sempre huma
alegre primavera”, p. 573
- “he certo aver multidão e variedade de feras. As de que
pudemos ter noticia são as seguintes: elefantes, bufaras
bravas e o são muito, leões, tygres, onças, porcos monteses”,
p. 573
- “considerando a calidade desta terra en toda a que se Terra fresca,
estende desd’o dito cabo até Sofalla, foy esta a mais de arvoredos
acomodada para remedio de nosso infortunio e misseravel
naofragio que podiamos encontrar”, p. 573
- “descubrimos huma fresca fonte de agoa muito boa ao pee Scralização
de huma rocha […] logo descubrimos muitas outras em da terra –
diversas partes”, p. 575 Igreja
- “fermozos bosques, apraziveis prados”, p. 579 Animais
- “terra tão remontada”, p. 581 peçonhentos
- “naquelles matos”, p. 586
- “descubrimos huma fermosa vargea cercada de montes, à Terra remota
roda alto e espeso arvoredo, aberta somente ao mar. […] E – sinalizada
como o lugar era tão fresco e de bom sitio, ouvemos de ter pela campa
requestas com grande copia de cavalos marinhos dos quais cristã
avia grande numero naquelle rio”, p. 590
- “A igreja tomei a minha conta, fazendo-a capás de mais de
200 pesoas”, p. 593
- “muitas cobras de que aquelle lugar era muito inficionado Praia de
[…] todas erão roins, as peores erão humas que chamão de perdição
asopro”, p. 599
- “sairemos daquelle desterro”, p. 603

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

- “Demos-lhe sepultura em lugar tão remontado de seu Desterro


natural, bastante porem para recolher hum corpo morto
porque para esse effeito toda a terra he natural, nem deixará
de ouvir ali a ultima tronbeta do juizo donde se alevantará e
aonde o deixaremos até então cuberto de area, pedras e huma
crus à cabecera; e pode ser que seja a primeira campa cristãa
e com tal sinal que aquellas prayas virão”, p. 604
- “A praya por onde caminhavamos estava toda semeada das
riquezas do Oriente, drogas, roupas, dourados e caixaria,
causando notavel lastima […] que aqui se perdeo tudo”, p.
604
- “viviamos neste desterro”, p. 605
- “Fazia-se-nos o tempo já muito largo naquelle desterro”, p.
611
- “naquellas esteriles e desertas prayas”, p. 615
- “areceavamos contrastes de ventos e tempestades no Cabo
de Boa Esperança”, p. 616
- “tanta gente em huma casca de nós, o mais pequeno baxel
que crusou os mares daquelle tromentoso promontorio”, p.
621
- “o Cabo de Boa Esperança comesou a nos ameaçar com
seu furor, irado pode ser de nosa ousadia, pois nos
atreviamos com tão pequena força contrastar sua braveza”,
p. 622
- “metidos em mares tam empolados e cruzados que parecião
serras que de todas as partes se conjuravão a nos sosobrar”,
p. 624
- “desesperados já de poderemos vencer as dificuldades da
passagem do Cabo, querendo tomar alguma terra não
podiamos”, p. 629

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Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

- “No abrigo da Baya da Alagoa descansamos dia e meio não


saltando en terra mas sobre ferro; estivemos este tempo
pescando muito e bom peixe que ali há”, p. 630
- “cegamos ao sol-posto a ter vista de huns rochedos que
parecião o Cabo. E como nos faziamos já serrada a noite tel-
lo passado em trinta e quatro graos e meyo, cuidando nos
ficava já nas costas a restinga debaxo das Agulhas que está
em 35 […]. Não acabavamos de ver o bem em que nos
viamos, deixando já todos os perigos nas costas e pondo a
proa em mares bonançosos na derrota de Angola com ventos
gerais que sempre alli cursavão, sem aver tormenta alguma
[…] 900 legoas por passar para chegar a terra de christãos
de nós tão desejada.”, p. 630
- “passamos de largo perdendo a terra de vista que tornamos
a ver em 22 graos antes do Cabo Negro”, p. 631
- “alevantamos com esperança de hir matar a fome no novo
reynoo de Benguella”, p. 632
- “a terra seja muito doentia”, p. 632
- “mao clima da terra”, p. 633
Santa Bento - “Neste naufragio [sacramento & N. S. da Atalaya] se
Teixeira
Maria achàrão tres marinheyros, que havia quatro annos se
Feio
Madre de (fonte perdèrão nesta paragem na Naveta, de que foy Capitão D.
indirecta)
Deus Luis de Castelbarnco, & tinhão marchado pela Cafraria até
1643 o Cabo das Correntes, & se chamavão Antonio Carvalho da
(Naveta) Costa, Paulo de Barros, & Mattheus Martins”, p. 18
- “[…] Antonio Carvalho marinheyro da Náo [Sacramento
& N. S. da Atalaya] casado em Belem, mancebo respeytado
de todos, por ter os marinheyros por si, & que, como
dissemos foy eleyto por resgatador por se ter perdido na
naveta, & ter passado esta Cafraria”, p. 63
Santíssimo Bento - “ […] se vio hum peyxe Orelhão, cousa grande, anuncios
Sacramento Teixeira
tudo de huma noyte temerosa. Entrou o vento assoprando,
Feio

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

e ferraraõ-se as gaveas, & cevadeyra […] ao por da Lua,


Nossa
empolou o mar, & creceu o vento de modo, que deu a Náo
Senhora da
hum balanço tão grande, que meteo muyto mar dentro, […]
Atalaia do
Pinheiro
sendo já mortos de doença oyto marinheyros , sinco
1647 atrilheyros, quatro grumetes, & outros passageyros, se
acodio com grande cuydado […].
Neste estado passamos o restante da noyte atormentando-se
a Náo com as pancadas das vergas, puxando por todos os
ossos abio dez palmos de agua”, p. 8
- “aparelhandonos para a seguinte noyte, que nos anmeaçava
tão medonha, como a passada, & muytos trovões, & rayos.”,
p. 9
- “alvorotou a Náo por se ver em hu bayxo que está ao mar
da Bahia da Lagoa em oyto braças de fundo”, p. 11
- “sendo o mar tão grande, & os grandes balanços, que a Nào
dava que cada hora esperavamos se abrisse pelo meyo, […]
que foy necessario revezarem-se os Padres por horas na popa
benzendo os mares”, p. 12
- “ Assentou-se em conselho, visto o estado da Náo, se fosse
buscar a terra, que se via, lançando ao mar artilharia, que
sempre veyo abocada”, p. 13
- “[…] todo o cobre, & bronze, que ouvesse para sustento do
arrayal, por ser este o dinheyro que corre nesta Cafraria”, p.
14
- “os Cafres já em terra com grandes fogos”, p. 14
- “Chegárão a terra, & sem impedimento dos Cafres, que não
parecerão, botárão em terra o que levavão”, p. 15
- “O Almirante fez alardo dos que ficamos, que repartio em
tres esquadras, […] nomeou alguns homes, que para este
effeyto corressem a praya, prohibindo aos mais sahir do
arrayal, que mudamos para dentro do mato, porque na praya,
em que sahimos nos cobriamos de area.”, ps . 17-18

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

- “preparandonos para a jornada, que esperavamos de


marchar pela Cafraria atè o Cabo das Correntes”, p. 18
- “Em onze dias que aqui estivemos, se passárão grandes
necessidades de fome, & sede, por falta de mantimentos, &
a agua se ir buscar ao Rio do Infante perto de hua legoa, &
tão roim, que nos adoeceo della muyta gente”, p. 18
- “Neste naufragio se achàrão tres marinheyros, que havia
quatro annos se perdèrão nesta paragem na Naveta, de que
foy Capitão D. Luis de Castelbranco, & tinhão marchado
pela Cafraria até o Cabo das Correntes”, p. 18
- “Nesta praya em que sahimos “, p. 18
- “A oyto de Julho foy D. Duarte Lobo […], com outras
pessoas mais ao Rio do Infante tomar o Sol, & achárão trinta
& tres graos, & hum terço, botando hua ponta de Recife ao
Noroeste com muyto arvoredo, a praya de mais de duas
legoas de comprido, & a costa com comaros de area branca
com arvoredo por cima, & a serra toda escalvada”,p. 19
- “a falta de mantimento, & a malignidade do sitio, nos
apresou a partir”, p. 20
- “chegamos a asentar o arrayal em hum recife junto ao mar
aonde achamos hua fonte de muyto boa agua”, p. 21
- “segundo affirmavão os que havião passado já aquelle
caminho, se não podia achar resgate em menos de hum
mez”, p. 22
- “marchamos ao longo do mar por recifes”, p. 22
- “por o caminho ser roim, & o comer pouco, ou nada se
resolvèrão os grumetesa deyxar D. Sebastião Lobo”, p. 22
- “Fomos marchando hum dia por caminhos asperos, &
estreytos junto ao mar, por onde não cabia mais que hua
pessoa apoz outra fazendo hum alcantilado, & barrocas pela
banda da praya, chegamos a hum passo muy arriscado, do
qual passamos a hum rio muyto caudaloso”, ps 22-23

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

- “Ao outro dia chegamos a outro rio de muy fresco arvoredo


cerrado na boca, em que se achou hum baleato dado á costa
na praya, de que cada qual chegamos a cortar seu pedaço
para comer, & aquela tarde passamos por muytos lamares,
& passos trabalhosos”, p. 23
- “achamos o rio de S. Christovão, & para o passar
ordenamos duas jangadas por o rio ser caudaloso, de muyto
fundo, & grande corrente, & arrebatada”, p. 23
- “fomos marchando pela praya, por caminhos estreytos”, p.
24
- “Neste caminho achamos boas aguas, alguas palmeyras
bravas, & pequenas, os palmitos das quaes tirados com
trabalho erão alívio, sendo a fome já geral.”, p. 25
- “os barbaros desta Cafraria”, p. 25
- “sahirão dous barbaros do mato”, p. 25
- “dahi por diante parecia a terra mais fresca com alguas
boninas, ortigas, & sarralhas, a que muytos obrigados da
fome se lançarão de boa vontade assim cruas, como as
achavão.”, p. 26
- “entramos em hum bosque, em que se achou hum ribeyro”,
p. 26
- “marchando pela praya, no metemos por hum bosque, á
causa de muytos recifes, que não podemos vencer, de matos
espessos, em que achamos armadilhas, & covas para
elefantes”, p. 27
- “marchamos por hum bosque”, p. 27
- “caminho aspero, & trabalhoso […] viemos a hum rio
grande, aonde se passou bem roim noyte á causa de grande
frio, & falta de agua, & ao outro dia […] seguindo novo
caminho por recifes tão agudos, que aos que iam calçados
molestava muyto, & aos outros rasgava os pès […]. Sahindo

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

deste trabalho entramos em outro igual de serras ingremes,


que parecião ir ao Ceo”, p. 28
- “Daqui marchamos caminhos pela praya por recifes, em
que se mariscou para comer, crù assim como se achava”, p.
29
- “a este rio chamámos de São Domingos, por se achar em
sua vespora. […] passamos este caminho, atè dar em hum
monte de terra movediça, tão apique, que por nos valermos
das raizes de figueyras bravas, q a natureza alli criou nos
servião mais as mãos, que os pès, & para poder passar hua
barroca grande, & alcantillada para o mar fizemos todos o
Auto de contrição, porque se se escapava delle abayxo se
dava em recifes, & leges, muy agudas”, p. 29
- “Este dia sobindo, & decendo serras se marchou pouco […]
por causa do caminho aspero”, p. 32
- “ […] deu na praya com hum Cafre de que se alcançou
estarmos perto do rio da Náo Belem, & de que não faltava
resgate de milho, & vacas”, p. 33
- “[…] o Rio da Náo Belem […], & achamos alguas reliquias
da Nào Belem, & algus mortinhos.”, p. 34
- “O dia seguinte dezaseis de Agosto acabou de passar o
arrayal, assentando entre duas serras á vista do mar, aonde
chegárão os Cafres com vacas, que se lhe resgatárão, &
repartirão pelos ranchos, matando hus, outros assando, &
cozendo, & todos comendo com tão boa vontade, que senão
lançava fóra mais que as pontas, & unhas das vacas”, p. 36
- “marchamos por hua serra muy ingrime”, p. 43
- “por ser o caminho roim, & comprido”, p. 44
- “marchamos deste lugar por grandes campinas, com muyta
nevoa, & sem poder romper as nuvens de gafanhotos”, p. 44
- “Dia de São Nicolao de Tolentino, marchando pela praya,
achamos hum farol, & muyta madeyra, que julgamos ser

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

fabrica de algua Náo, que devia dar á cost, & antes do meyo
dia chegamos a hum rio caudaloso”, p. 45
- “[…] deyxamos o nome de Rio da Cruz, por hua de pao
que alli levantamos, & outra que se esculpio em hua pedra”,
p. 45
- “o caminho ápero, & comprido”, p. 47
- “hum mato cerrado […] hum rio de muyto arvoredo
fresco”, p. 50
- “tornárão a marchar por hum monte de muytos espinhos,
& grande praga de gafanhotos pegados nas arvores, a que
sobreveyo grande nevoa com chuva meuda”, ps. 51-52
- “[…] andando todos os dias seis, & sete legoas, por
queymadas, & roins caminhos, […] se forão meter na ponta
de huma serra fragosa, & medonha”, p. 52
- “hum sitio de alto capim, que servia de sombra aos
Elefantes”, p. 52
- “[…] passando o rio com bem roim vao, não se lembrárão
mais, que de ir por diante por se ver livre, de tão má terra, &
peyor gente”, p. 52
- “[…] passando por elles o arrayal nos recebèrão com festa,
cantigas, & bayles a seu modo, assentamos á sua vista, & de
muytas povoações em hua campina junto a hum rio acodindo
tanto resgate, que passarão de mil mocates de milho, o
melhor pão de toda a Cafraria”, p. 58
- “vadeamos o rio com agua pelos peytos dando-lhe por
nome dos figos, por serem aquelles os primeyros, que
achamos nesta Cafraria”, p. 61
- “demos fé em altura de vinte sete para vinte oyto graos, da
mais fermosa varzea, que nossos olhos virão, povoada de
muytas povoaçõens, & regada de rios de agua doce, com
muyto gado, aonde nos sahirão tantos Cafres, & Cafras, que
todos aquelles campos negrejavão”, p. 62

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

- “Marchamos este dia com grande orvalho, & frio, & muyto
trabalho”, p. 64
- “avistamos sobre a tarde hum rio caudaloso, que vinha
enchendo a marè nos hia cobrindo o caminho,
apressadamente, que passamos com grande ancia, caindo em
muytas covas de Elefantes, & cavallos marinhos, que
achamos abertas & alagadas com agua, que dava pelo
pescoço.”, p. 64
- “marchàmos logo por caminho bem roim, & em parte
perigoso por causa de Elefantes com suas armadilhas”, p. 65
- “Passado este rio, que chamaõ das Pescarias, tornamos a
marchar com Cafres em nosso seguimento com suas armas”,
p. 65
- “assentamos junto a hua ribeyra de boa agua doce, com
arvoredo aprasivel, à vista de hua pevoação grande, a quem
os praticos chamavaõ o lugar do Sorcor, pelo haver sido para
elles, quando pasarão do naufragio da naveta.”, p. 66
- “nos sahirão de hum mato muytos Cafres armados”, p. 67
- “tornamos a marchar pela praya atè chegar a hum ribeyro
de boa agua, sinco legoas do rio de Santa Luzia […]. Tendo
marchado quatro legoas, atravessando por dentro de hum
areal com serras de area, que se hião ás nuvens, & sem mato.
Chegamos ao rio de Santa Luzia assentando o arrsyal na sua
praya entre muytos espinheyros verdes”, p. 68
- “ […] chegamos a hu braço do rio de Santa Luzia, que
passamos com muytos atoleyros, & alagadiços”, p. 70
- “marchamos pela terra dentro com vista de alegres campos,
povoados de Elefantes, sem conto, passando outro braço do
rio de Santa Luzia, com grandes alagadiços”, p. 70
- “buscando sitio, para descançar, por nos não atrever a mais,
o tomamos defronte de huas palhotas destroçadas”, p. 71

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

- “ […] por toda a Cafraria he mais estimado o cobre, &


latão, que toda a roupa”. p. 72
- “em terra de Barbaros, tão longe do natural […] hum
caminho tão comprido com tantos Barbaros”, p. 74
- “em toda a Cafraria avia sinco annos, que não chovia,
causando grandes fomes, & praga de gafanhotos”, p. 78
- “Passando-se seis mezes nesta Ilha deserta, sem outra saida
mais, que a das feytorias […]. Nesta Ilha tinhamos, os que
ficamos nella todos os dias a consolação de sinco, & seis
Missas, alivio grande, para a peste, que se padeceo nas
feytorias, & na Ilha, em que morreo meya gente, lá pela
abundancia de muyto comer, & falta de sangrador, & aqui
de febres agudas, que não davão lugar á medecina, de que
não escapou pessoa, que as não sentisse, & muytas sarnas”,
ps 84-85.
- “E não sey certo de qual me maravilhe mais, se da certeza,
com que os males no mar são sempre certos, se da confiança,
com que os que por elle navegão tem para si não ter algum.
Digão os Autores estrangeiros, o que lhe parecer, que os
segredos do mar, & terra só a nação Portugueza naceo no
mundo para os saber descobrir”, p. 87.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Quadro 4
Percepções dos Africanos nos relatos de naufrágios (sécs. XVI e XVII)

Galeão S. João “risquo que corria quem la fose dos tigres e lyães, por que como
fiquaua homem ou se desmandaua hum pouco da companhia, ho
(1552)
comião logo ou erra morto dos cafres.”1552

“(…) em aquella terra de Barbaros (…). Tirou manoel de Souza as


mais armas que pode, e polvora para as espingardas, para ter com que
se poder defender com os Cafres, que era cousa certa, que os avião
de por em muyto perigo pellos roubarem.1553
“praya povoada de tão barbara gente”. 1554

“(…) os cafres são homens que não semeiam senão muito pouco, nem
comem senão do gado bravo que matam.”1555

Nau S. Bento “(…) eles, havendo medo, fugiram, sem quererem vir com os nossos;
(1554) de modo que nenhuma outra informação pudemos ter, mais que serem
cafres de cor bem negra e cabelo revolto, que andavam nus, com mais
aparência de selvagens que de homens racionais.”1556
“bárbaro e criado nas concavidades daquelas desabitadas serras”.1557

“Não avião bem tomado algum alivio como melhor puderão, quando
aparecerão por aquellas serras alguns Cafres com suas varas tostadas

1552
(ed. Por Afonso da Costa, Rio de Janeiro, 19371552 “Perdimento do gualeão São João que
vinha da Imdia pera Portugall Manoell de Sousa de Sepulluada por capitão”, B.A., Cod 50-V-22, in Kioko
KOISO, op. cit., Vol. II, p.534.
1553
“Naufragio Lastimozo de Manoel de Sousa Sepulveda”, in Rellação de Varios Naufragios, B.P.M.P.,
Códice 737, fl. 9.
1554
IDEM, ibidem, fl. 10.
1555
“Relação da mui notável perda do Galeão Grande S. João em que se contam os grandes trabalhos e
lastimosas cousas que aconteceram ao Capitão Manuel de Sousa Sepúlveda e o lamentável fim que ele e
sua mulher e filhos, e toda a mais gente, houveram na Terra do Natal, onde se perderam a 24 de Junho de
1552”, in H.T.M., Vol. I, (…), p. 28.
1556
Manuel de Mesquita PERESTRELO, “Relação Sumaria da Viagem que fez Fernão de Álvares Cabral
desde que partiu deste Reino por Capitão-mor da armada que foi no ano de 1553 às partes da Índia até que
se perdeu no Cabo de Boa Esperança no ano de 1554”, in H.T.M., Vol. I, (…) p. 63.
1557
IDEM, ibidem, p. 98.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

(arma comua de Barbaros Africanos) sem que por mais que fizerão
os pudessem entender1558
“(…) os Barbaros mais conhecidos de Africa”1559

Nau Santiago “em uma praia de bárbaros (…) terra de inimigos tão cruéis como
(1585) estes cafres são.”1560

“os negros (…) ao outro dia despois deles idos vieram com muita
cólera gritando, meteram a todos os que ficaram em um curral, como
gado, dentro em uma pequena choupana, (…) ouvirem gritar um
marinheiro, que ficou fora, que o afogavam, isto com vozes muito
lastimosas; e o caso era que dois moços cafres lançaram uma corda
ao pescoço do pobre homem; e, pretendendo mais espantá-lo que
matarem-no, o arrastavam puxando por ele; (…) e como a tenção dos
cafrinhos era de zombar, acabou-se o jogo em lhe darem muitas
pescoçadas”.1561

Nau S. Tomé “(…) lançaram alguns marinheiros fora para irem ver se havia
(1589) algumas povoações, os quais de cima de uns medãos de areia
enxergaram fogos; e, indo-os demandar, deram em umas palhoças em
que moravam alguns cafres, que em vendo aqueles homens lançaram
a fugir; mas tornando a conhecer serem portugueses, (…) tornaram
logo a eles mui domésticos”.1562

“(…) bárbaros costumes e leis destes cafres”.1563

“(…) tantos brutos ymigos”.1564

1558
“Naufragio Espantozo de Fernando Alvarez Cabral. Ano de 1554”, in Rellação de Varios Naufragios,
B.P.M.P., Códice 737, fl. 22.
1559
IDEM, ibidem, fl. 24 vº.
1560
Manuel Godinho CARDOSO, “Naufrágio da Nau Santiago no ano de 1585 e Itinerário da gente que
dele se salvou”, in H.T.M., Vol. II, (…), p. 186.
1561
IDEM, ibidem, p. 189.
1562
Diogo do COUTO, “Relação do naufrágio da Nau São Tomé na Terra dos Fumos, no ano de 1589 e
dos grandes trabalhos que passou D. Paulo de Lima nas Terras da Cafraria, até a sua morte”, in H.T.M, Vol.
II, (…), p. 237.
1563
IDEM, ibidem, p. 243.
1564
Gaspar Ferreira REIMÃO, “Trattado dos grandes trabalhos que passarão os portugueses, que se
saluarão do espantosos naufragio que fez a nnaao São Thome que vinha pera o Reino no Anno 1589, a qual
abrindo muita agoa, querendo se hir ao fundo perto da terra do Natal se meterão no batel e nelle nauegarão

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

“(…) emfimdos cafres muito deferemtes nas armas e na fealldade,


porque fasião as cabeças cheas de muitos cornos (…) gemtte tam
estranha com emvemção nas cabeças dos diabos e com armas que
elles vinhão arreseando acharem, e tanto que estes cafres os virão na
praia comessarão de dar grandes asovios, grittos e alaudos, que
pareçia que se vinha o ceo abaixo, e fasendo grandes algasares
ponberauão saltando e correndo com tanta ligeiresa que parecião
corssos”1565 (…) “erão tantos, se se querião vegiar de huns, vinhão da
outra parte outros que, como aues de repina, lhes leuauão os alforges,
chapeos e barretes e tudo o que podião”.1566

“(…) entre barbaros antes grangeão desprezo, que piedade.1567 (…)


hauião de passar pella Prouinçia de Mocangras, gente sem piedade, e
sem trato humano, brutos, temerarios, e crueis;”1568

Nau Santo “tantas nasoims de barboras e siluestres gentes”1569


Alberto (1593)
“tantas multidões de cafres brutos a quem a natureza nigou toda a
domesticasom umana”1570
“gente que não uzão roupa, nem couza alguma”1571
“é gente toda a da Cafraria muito mizerauel e ymterisseyra”1572
“são brutalissimos”1573

ate hirem dar em terra de caferes, pela qual caminharão duzentas legoas passando muitos trabalhos, fomes,
perigos, necessidades, ate nosso senhor ser seruido de traser alguns deles a terras de christãos, e os mais
acabarão as vidas por teras de cafres, com muito desemparo, como neste tratado se vera. Feito por Gaspar
Ferreira sotapiloto da mesma Naao Anno de 1590”, in Kioko KOISO, op cit, Vol. II, (…), p. 584.
1565
IDEM, ibidem, p. 594.
1566
IDEM, ibidem, p. 595.
1567
Relaçam do Naufragio da Náo São Thomé de que era Cappitão Esteuão da Veiga, a qual se perdeo na
Terra dos Fumos no anno de 1589, e dos grandes trabalhos, que passou Dom Paulo de Lima e mais
Companheiros nas Terras da Cafraria, até sua morte, B.P.E., Cod. CXVI/1-22, fl. 40.
1568
IDEM, ibidem, fl. 42.
1569
“Perdição da nau Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, costumes dos que a abitão ate o Cabo das
Correntes”, in Glória de Santana PAULA, op. cit., p. 116.
1570
IDEM, ibidem, p. 118.
1571
IDEM, ibidem, p. 125.
1572
IDEM, ibidem, p. 133.
1573
IDEM, ibidem, p. 139.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

“tão bárbara gente”1574

Nau S. João “A gente que nella habita não se sustenta mais que de marisco, & de
Baptista humas raizes como tubaras da terra, & da caça. Não conhecem
(1622) sementeyra alguma, nem outro modo de mantimento”.1575
“Cafres barbaros”1576
“sendo barbaros sem conhecimento da verdade”1577
“todos os Cafres desta povoação juntos nos vierão com grandes gritas
perseguindo a retaguarda com muytas pedradas, & azagayadas”1578
“mais valia a palavra de hum Portuguez, que todas as riquezas dos
Cafres”.1579

“(…) em mais de hum mez que tratarão com elles, não foy possivel o
entender se, tão barbara era a sua linguagem, que parecia mais
semelhar a os bramidos das feras, que não a voz dos humanos”1580
“(…) confuso barbarismo de aquella grande gentilidade”1581
“(…) vinhão pelejando, se não com cafilas de Cafres, por cuja imensa
multidão se abria o passo com as armas”1582

Nau “(…) los Barbaros. Estos hablavan de modo que no eran


entendidos”1583
S. Gonçalo
(1630)

1574
João Baptista LAVANHA, “Naufrágio da Nau Santo Alberto no Penedo das Fontes, no ano de 1593 e
Itinerário da gente que dele se salvou até chegarem a Moçambique, escrito por João Baptista Lavanha
Cosmógrafo-mor de Sua Majestade, no ano de 1597”, in H.T.M., Vol. III, (…), p. 32.
1575
Francisco Vaz DALMADA, op. cit., p. 15.
1576
IDEM, ibidem, p. 30.
1577
IDEM, ibidem, p. 35
1578
IDEM, ibidem, p. 50
1579
IDEM, ibidem, p. 88.
1580
“Naufragio Lastimozo de Pedro de Morais. 1622.”, in Rellação de Varios Naufragios, B.P.M.P., Códice
737, fl. 70.
1581
IDEM, ibidem, fl. 73.
1582
IDEM, ibidem, fl. 74.
1583
Manuel de Faria y SOUSA, op. cit., Tomo III, (…), p. 460.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

Nau Nª Srª de “(…) donde nunca puzerão pès mais que alimarias bravas, ou aqueles
Belém (1635) Alarves naturaes, que tambem se distinguem pouco das proprias
féras”.1584
“(…) estava acachado hum alarve que de subito se ergueo, & saltou
mais ligeyro que hum galgo, (…) & quando levamos as espingardas
ao rosto jà o negro, como hum passaro, hia por cima de humas
serras”1585

“gente a mais barbara que conhecemos” 1586 (…) os cafres mais


visinhos à praya, gente pobre e mesquinha”1587
“abrigada posto que rustica cassa morada e abrigo ao que parece dos
cafres e das feras, como se fosse feita muito de preposito”1588
“esta gente mesquinha, barbara e agreste em todo o estremo”1589
“barbaria e rusticidade de gente tão salvatica”1590

Naus Nª Srª da “os barbaros desta Cafraria (…), sahirão dous barbaros do mato”1591
Atalaia e
“(…) sendo estes barbaros já mais domesticos, por ventura pela
Sacramento
communicação, que tiverão com os nossos da Náo Belem”1592
(1647)
“hum Cafre do mato lançou mão, & correo tão ligeyro, que se lhe não
pode valer. E saindo nos achamos em hum campo cercado de tantos
Cafres, como estorninhos, em ala, & som de guerra brandindo
azagaias”1593
“quando este barbaros vem muytos juntos sem resgate, vem
furtar”1594
“descobrindo tanta copia de Cafres, que negrejavão os campos”1595
“marchar com todos estes brutos em nossa companhia”1596

1584
Joseph de CABREYRA, op. cit., p. 27.
1585
IDEM, ibidem, p. 30.
1586
Jerónimo LOBO, op. cit., p. 558.
1587
IDEM, ibidem, p. 559.
1588
IDEM, ibidem, p. 561.
1589
IDEM, ibidem, p. 568.
1590
IDEM, ibidem, p. 583.
1591
Bento Teixeira FEYO, op. cit., p. 25.
1592
IDEM, ibidem, p. 38.
1593
IDEM, ibidem, pp. 43-44.
1594
IDEM, ibidem, p. 45.
1595
IDEM, ibidem, p. 50.
1596
IDEM, ibidem, p. 62.

492
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

“caminho tão comprido com tantos Barbaros”1597

1597
IDEM, ibidem, p. 74.

493
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Paulo de Lima Pereira do dia que entrou na India ate sua perdisaõ e Morte. Dirigido
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filho do 2.º Conde de Castanheira. Por Diogo do Couto Chronista e Guarda mor da
Torre do Tombo da India, 1611.”
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- Reservados, Cod. 4534. “Cartas dos Primeiros Missionários Jesuítas em


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- Reservados, Cod. 7360, 57 fls.. Gaspar Ferreira REIMÃO, “Trattado dos grandes
trabalhos que passarão os portugueses, que se salvaram do espantoso naufragio que
fez a naao São Thomé que vinha pera o Reino no ano de 1589, a qual abrindo muita

495
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

agoa querendo-se hir ao fundo perto da terra do Natal se meterão no batel e nelle
navegarão até hirem dar em terra de cafres, pella qual caminharão 200 legoas (...)
Feito por Gaspar Ferreira sota piloto da mesma Naao Ano de 1590.”

- Reservados, Cod. 14534, Livro. Iº. em o qval. se tresladão. as cartas. qve mandão. os
Padres. he Irmãos. da Companhia. de Iesu. qve andão. na India. das covsas. qve
naqvelas. partes. Deus. Nosso Senhor. por meyo deles. em servico sev. he lovvor.
obra. qve comeca. do anno. do Nacimento. de Nosso. Senhor. Iesv. Christo. de. 1557.
em diante. até. 64.

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- Cod. CXI/2-24. “Compendio de alguns Vocabulos Arabicos, que se uzão no Idioma


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- Cod. CXV/1-23, fl. 3-16. “Roteiro dos portos, derrotas, alturas, cabos, conhecenças,
resguardos e sondas, que á per toda a costa desdo cabo de boa esperança ate o das
correntes.”

- Cod. CXV/2-8, fls. 47-54 v.. “Relação da perdição do Galeão São João vindo da India
na Costa da Cafraria de que hera Cappitam Manuel de Sousa Sepulueda.”

- Cod. CXVI/1-22. “Relaçam do Naufragio da Náo São Thomé de que era Cappitão
Esteuão da Veiga, a qual se perdeo na Terra dos Fumos no anno de 1589, e dos
grandes trabalhos, que passou Dom Paulo de Lima e mais Companheiros nas Terras
da Cafraria, até sua morte.”

- Cod. CXVI/1-24. “Historia de Dom Paulo de Lima escripta por Dom António de
Ataíde.”

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Biblioteca Pública Municipal do Porto, Porto

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da Índia” (Tonge, 24 de Junho de 1560), in Documentos sobre os Portugueses em
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Pereira de, Dos primeiros trabalhos dos portugueses no Monomotapa. o padre D.

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

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Silveira, 1560: memoria apresentada á 10.ª sessão do Congresso internacional dos
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amigo que estava em outro logar da mesma terra sobre a morte de D. Gonçalo”, in PAIVA
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o padre D. Gonçalo da Silveira, 1560: memoria apresentada á 10.ª sessão do Congresso
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“Carta que um portuguez por nome Antonio Caiado escreveu de Manamotapa a outro seu
amigo que estava em outro logar da mesma terra sobre a morte de D. Gonçalo”, in
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PURCHAS, Samuel, “Collections out of the Voyage and Historie of Friar J. dos Santos
his Æthiopia Orientalis and Varia Historia, and out of other Portugals, for the better
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RAMUSIO, Giovanni Battista, Primo volume della Navigationi et Viaggi nel quale si
contiene la Descrittione dell'Africa, & del paese del Prete Janni, con viaggi dal mar
Rosso à Calicut, & insin'all'isole Molucche, doue nascono le spetierie, et la nauigatione
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RAMUSIO, Giovanni Battista, Primo volume, & quarta editione delle Navigationi et
viaggi raccolto da M. Gio. Batt. Ramusio & com molti vaghi discorsi da lui in molti
luoghi dichiarato, & illustrato, In Venetia, nella Stamperia de Giunti, 1588.

REAL, Jerónimo Corte, Naufragio e lastimoso successo da perdição de Manuel de Sousa


Sepulveda, e D. Lianor de Sá, sua mulher e filhos vindo da India pera este Reyno na náo

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Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)

chamada o Galião S. João, que se perdeo no Cabo da Boa Esperança, na Terra do Natal,
composto em verso heroico e octava rima, Lisboa, Typ. Rollandiana, 1783.

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“Regimento de Gonçalo de Sequeira, Capitão-mor de uma armada da Índia”, [14 Junho


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“Regimento que se fez por ordem do snor’ Visorrej Matias Dalbuquerque tirado do
Roteiro da viagem que fez por terra da cafraria a gente da Não Santo Alberto governada
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experimental da Carreira da Índia. Um plano de João Pereira Dantas, com fortificação
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“Regimento da Descoberta da Costa da Cafraria” (25-01-1613), in Monumenta


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“Regimento de que há de vsar Belchior Roiz que V. Magestade hora manda ao


descobrimento de cafraria, para V. Magestade ver”, in Monumenta Missionária Africana.
África Ocidental, colig. e anotada por BRÁSIO, António, 1.ª Série, Vol. XV, Suplemento
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Governo, N.º 259 de 15 de novembro de 1899, pp. 646-647.

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caminhos & derrotas, sinaes, & aguageis, & differenças da agulha: tirado do que
escreveo Vicente Rodrigues, & Diogo Afonso pilotos antiguos. Agora novamente
acrescentado a viagem de Goa por dentro de São Lourenço, & Moçambique, & outras
muitas cousas, & advertencias, por Guaspar Ferreira Reimão, Lisboa, por Pedro
Craesbeck, 1612.

“Relação da mui notável perda do Galeão Grande S. João em que se contam os grandes
trabalhos e lastimosas cousas que aconteceram ao capitão Manuel de Sousa Sepúlveda e
o lamentável fim que ele e sua mulher e filhos, e toda a mais gente, houveram na Terra
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“Rol do pagamento do mantimento de Maio de 1506 na Fortaleza de Quiloa”, in


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Rhodesia and Nyasaland, 1962, pp. 490-503.

“Rol do pagamento do mantimento de Junho de 1510 na Fortaleza de Sofala”, in


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causa fidei, & virtutis propugnatae, violenta morte toto orbe sublati sunt, Praga, Typis
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