Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Faculdade de Letras
Orientadores: Prof. Doutora Isabel Carmona Barreto Ramos Dias de Castro Henriques
Prof. Doutor José Augusto Nunes da Silva Horta
2022
0
UNIVERSIDADE DE LISBOA
Faculdade de Letras
Orientadores: Prof. Doutora Isabel Carmona Barreto Ramos Dias de Castro Henriques
Prof. Doutor José Augusto Nunes da Silva Horta
Júri:
Presidente: Doutor Hermenegildo Nuno Goinhas Fernandes, Professor Associado e Director da Área de
História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Vogais:
Doutora Marília Pereira Lúcio dos Santos Lopes Hanenberg, Professora Associada com Agregação da
Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa (1.ª Arguente);
Doutor Carlos José Duarte Almeida, Investigador Integrado do Centro de História da Universidade de
Lisboa (2.º Arguente);
Doutor Manuel João Ramos, Professor Associado com Agregação do ISCTE-Instituto Universitário de
Lisboa (Vogal);
Doutor Rui Manuel Taveira de Sousa Loureiro, Professor Associado com Agregação do ISCTE-Instituto
Universitário de Lisboa (Vogal);
Doutora Maria Eugénia Alves Rodrigues, Investigadora Auxiliar do Centro de História da Universidade
de Lisboa (Vogal);
Doutora Isabel Carmona Barreto Ramos Dias de Castro Henriques, Professora Associada com
Agregação Aposentada da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (Orientadora).
SFRH/BD/70006/2010
i
2022
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
i
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
ii
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
ÍNDICE
Pág.
Dedicatória ii
Resumo / Abstract v
Agradecimentos viii
Siglas e abreviaturas xi
Introdução 1
i
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
ii
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
4. No dealbar do século XVII: Frei João dos Santos e a dimensão lata da Cafraria 372
399
Conclusões
410
Anexos
1. Documentos 411
2. Quadros 443
iii
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Bibliografia 494
494
- Fontes
494
Manuscritas
498
Impressas
525
Cartográficas
527
Iconográficas
- Estudos 529
- Catálogos, Dicionários, Enciclopédias e Fórum de discussão 576
iv
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Resumo:
Ao intitularmos esta tese de doutoramento Cafres e Cafraria. A construção de categorias
classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (Séculos XVI e XVII),
procuramos analisar os modos como determinada extensão da terra africana foi
percepcionada, representada e classificada do ponto de vista geográfico e antropológico,
a partir de concepções e olhares exteriores.
Com esta dissertação desejamos contribuir para o conhecimento dos conceitos “cafre” e
“Cafraria”, desde o momento em que se fez a transferência do vocábulo árabe kāfir (início
v
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
do séc. XVI), até que se consumou a sua generalização nos discursos portugueses, e outros
povos europeus se apropriam dos seus sentidos (1652), reinventando-os noutros contextos
históricos de interacção cultural.
Abstract:
This Ph.D. thesis is titled "Cafres" and "Cafraria". The construction of categories of
classification of Africans in Portuguese documentation (16th and 17th centuries). With
this research project we seek to analyze the ways in which a certain extent of African land
was perceived, represented and classified from a geographical and anthropological point
of view, on the basis of external conceptions and perspectives. We have assembled a
documentary corpus composed of a significant sample of sources of different types,
which materializes the conceptions of a time that has seen the expansion of the knowledge
of the world. The writings produced in the context of direct contacts with geographical
and human diversity, or those resulting from the collection of oral information, readings,
transcripts and compilations, in a context of indirect relations with the object described,
came to construct meanings and mental images based on stereotypes, categories and
concepts inherited from different temporalities. These images have circulated, been
appropriated and generated other images and stereotypes, which replicated and
crystallized in what constitutes a vast Western archive of representations on African
peoples and territories. The representations are images that present absent objects or
memories, involving discursive mechanisms that make sense of what seems to be
external, strange and diverse. Our goal is to highlight the modes of transmission of
stereotypes that underline differences or seek similarities in the contexts of the subjects
who produce the discourses. We also sought to understand some moments of the
dialectics of the meeting between Portuguese and Southeast African communities, taking
into account the levels of evidence about the local perceptions of white men. With this
thesis, we want to contribute to the knowledge of the concepts of "cafre" and "Cafraria",
vi
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
from the moment when the Arabic word kāfir was transferred (beginning of the sixteenth
century), until its generalization in Portuguese discourses, and other European peoples
appropriate their meaning (1652), reinventing them in other historical contexts of cultural
interaction.
vii
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Agradecimentos
viii
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
eu desfrutasse do labor da investigação nos seus espaços mais clássicos. Destaco também
as possibilidades de reprodução digital de documentos e as plataformas de acesso livre a
bibliografia especializada, que me possibilitou a extensão do labor investigativo em casa
e a distância.
No contexto das pesquisas que desenvolvi na África do Sul, agradeço à Dra. Ana
Van Eck, enquanto leitora de Português na Universidade de Witwatersrand, e ao Professor
Thomas Huffman, do departamento de arqueologia da mesma Universidade. No Cabo
Oriental, agradeço ao Professor Jeff Peires, da Universidade de Fort Hare, pela abertura
com que me recebeu e pela generosidade em esclarecer questões específicas. A Gavin
Whitelaw, do KwaZulu-Natal Museum, agradeço a partilha de material de estudo sobre
importantes contributos da arqueologia para o enquadramento deste tema de trabalho. No
East London Museum, fico eternamente grata a Gillian Vernon e Carl Vernon, pelas
conversas em torno do nosso interesse comum sobre naufrágios e por me terem conduzido
à praia do naufrágio da nau Santo Alberto, em Kwelera. As minhas estadias de estudo na
África do Sul não teriam sido tão incríveis sem o apoio da Isabel Barros, da Khareen Pech
e da Loren Bronkhorst. A elas o meu reconhecimento, pleno de amizade.
A Ana Cristina Gomes e a Inês Gomes deram-me uma ajuda na revisão do texto,
como só as famílias de coração o fazem. A Ana Cristina tem sido uma amiga e
companheira ao longo de todo este percurso académico e das pessoas que mais me
incentivaram a terminar a tese. O seu entusiasmo pelos documentos antigos, pelas
bibliotecas e pela escrita foram contagiantes e factores de motivação. Expresso-lhe a
minha maior gratidão.
E que seria deste percurso sem o meu marido, Rui Costa, e a minha filha, Laura,
suportes afectivos na perseverança necessária à concretização deste projecto. A eles tudo
devo. Grata também aos meus queridos irmãos, Célia Paula e Eduardo Paula, sempre
presentes e encorajadores. Aos meus amigos Rosamund Amartefio e Patrick Bennett, José
Eduardo Franco, Rosa Cruz e Silva, Sílvia Ropio, Claude Pereira, Paula Alexandra
Morgado e Conceição Rio, a minha gratidão por terem alimentado sempre o meu
entusiasmo com palavras de optimismo.
Institucionalmente, expresso também o meu agradecimento à Fundação para a
Ciência e Tecnologia que me concedeu uma bolsa de investigação, e ao Ministério da
Educação, que me dispensou das atividades lectivas através do estatuto de equiparação a
ix
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
bolseira, permitindo-me dedicação a tempo inteiro durante uma fase muito importante
deste projecto. No Agrupamento de Escolas Júlio Dantas, onde lecciono, sou grata à
antiga directora, Maria da Graça Cabrita, ao actual director, José Augusto Lopes, e à
directora do Centro de Formação Dr. Rui Grácio, Ana Cristina Madeira, pelo apoio que
me prestaram em tudo o que foi necessário e possível para facilitar a conciliação entre a
investigação e a minha actividade de professora do ensino básico e secundário. Aos
colegas e alunos a minha gratidão pela alegria que recolho todos os dias na vida escolar.
Ao painel de académicos que constituiu o júri desta tese, o meu agradecimento
pela leitura crítica que alimentou a discussão nas provas públicas, bem como pelos
comentários e sugestões construtivas que contribuem para a prossecução deste trabalho,
sempre numa perspectiva de aprofundamento e melhoria.
x
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Siglas e abreviaturas
Central
fls – folios
Ms – manuscrito
xi
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Introdução
1
Malvern Van Wyk SMITH, The First Ethiopians. The Image of Africa and Africans in the Early
Mediterranean World, Johannesburg, Wits University Press, 2009, p. 55.
2
Isabel Castro HENRIQUES, De Escravos a Indígenas. O longo processo de instrumentalização dos
africanos (séculos XV-XX), Lisboa, Caleidoscópio, 2019, p. 342.
3
A replicação de ideias remete-nos para o conceito de Mimetismo, como sugerido por Dawkins, de acordo
com o qual “meme” pode definir-se como um “gene análogo” e um elemento auto-replicador de cultura,
que se transmite através da imitação. Partindo do princípio de que a transmissão cultural é análoga à
transmissão genética, assim como os genes, também os “memes” ou pacotes de ideias têm um poder auto-
replicador na mente humana, contribuindo para moldar grandes estruturas culturais e ideológicas. Cf.
Richard DAWKINS, A Devil’s Chaplain: Selected Essays, London, Weidenfeld and Nicolson, 2003, p.
120, Apud Malvern Van Wyk SMITH, ibidem, pp. 52-53.
1
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Objecto de estudo
A presente dissertação visa contribuir para a reflexão em torno dos signos e das
imagens que se foram construindo de África e dos africanos como resultado de múltiplas
4
Roger CHARTIER, “The Meaning of Representation”, in Books & Ideas, August 25th, 2014. Translated
from the French by Michael Behrent, with the support of the Institut Français.
https://booksandideas.net/The-Meaning-of-Representation.html (Consultado em 1/07/2021)
5
IDEM, A História Cultural. Entre Práticas e Representações, Lisboa, Difel, 1988, p. 17.
6
IDEM, “Le monde comme representation”, in Annales. Economies, sociétés, civilisations 44ᵉ année, Nº
6, 1989. pp. 1513-1514. https://doi.org/10.3406/ahess.1989.283667 (Consultado em 27/08/2021)
7
IDEM, ibidem, p. 1514.
2
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
8
IDEM, “The Meaning of Representation”, (…), p. 4.
9
IDEM, ibidem, p. 5.
10
Para alguns espaços da África Ocidental e da África Central Ocidental foram realizadas investigações
históricas profundas que esclarecem os mecanismos históricos e culturais inerentes à construção das
representações de sociedades africanas. Destacamos o caso da África Atlântica, entre o rio Senegal e a
chamada “Serra Leoa”, que foi estudada na perspectiva das representações por José da Silva Horta, nas suas
dissertações de mestrado e doutoramento apresentadas à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e
as dissertações de mestrado e doutoramento de Carlos Almeida, sobre as representações missionárias do
Reino do Congo e da região Mbundu. Veja-se: José da Silva HORTA, A “Guiné do Cabo Verde”: produção
textual e representações (1578-1684), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian / Fundação para a Ciência e
Tecnologia, 2011; José da Silva HORTA, “A Representação do Africano na Literatura de Viagens, do
3
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Senegal à Serra Leoa (1453-1508)”, in Mare Liberum, Nº 2, 1991, pp. 209-339; Carlos ALMEIDA, A
Representação do Africano na Literatura Missionária sobre o Reino do Kongo e Angola – meados do séc.
XVI a meados do século XVII, Universidade Nova de Lisboa - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas,
1997; Carlos ALMEIDA, Uma infelicidade feliz. A imagem de África e dos Africanos na Literatura
Missionária sobre o Kongo e a região mbundu (meados do séc. XVI ao primeiro quartel do séc. XVIII),
Dissertação de Doutoramento em Antropologia apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa, 2010. De destacar ainda o trabalho de Vanessa THOMAS, Représentations
européennes des corps africains au cours des premiers contacts sur les rives atlantiques. (1341-1508). Le
passage du mythe à la construction du réel par l’expérience vécue, Dissertação Mestrado em História
especialidade de História de África apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2013
[texto policopiado].
11
José da Silva HORTA, “A Representação do Africano na Literatura de Viagens, do Senegal à Serra
Leoa”, (…), p. 233.
12
Alfredo MARGARIDO, “La vision de l’autre (Africain et Indian d’Amérique) dans la Renaissance
portugaise”, in L’Humanisme Portugais et L’Europe. Actes du XXIe Colloque International d’Études
Humanistes, Paris, Fondation Calouste Gulbenkian, 1984, p. 508.
4
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
13
IDEM, ibidem, p. 509.
14
Pedro Manuel dos Santos ALVES, “Levinas crítico de Husserl e de Sartre. Sobre a teoria da
Intersubjectividade e da Alteridade”, in Cristina BECKERT, Lévinas entre nós, Lisboa, Centro de Filosofia
da Universidade de Lisboa, 2006, p. 145.
15
Emmanuel LEVINAS, Totalidade e Infinito, 3ª ed., Lisboa, Edições 70, 2008, p. 30.
16
IDEM, ibidem, pp. 30-31.
17
IDEM, ibidem, p. 33.
5
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
18
Tal temática foi trabalhada no Seminário de História de África, no âmbito do Mestrado em História
Moderna. A edição crítica do manuscrito foi publicada alguns anos depois. Cf. Glória de Santana PAULA,
O Naufrágio da Nau Santo Alberto. Discurso de um manuscrito anónimo, Lisboa, Caleidoscópio, 2007.
6
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
19
Intercâmbio Pedagógico e Cultural entre a Escola Básica 2, 3 Nº 1 de Lagos e as Escolas Sul africanas
Pietersburg English Medium Primary School e Capricorn High School, de Polokwane, Limpopo Province,
República da África do Sul, Anos lectivos 2000/2001 e 2001/2002.
20
Botho MOLOSANKWE, “Ex-pupil in race attack still not compensated”, The Star, Johannesburg,
12/04/2005.
7
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Acto 28, de 1898, secções 1, 2 e 5, de acordo com a qual um “kafir” era um “nativo”.
Ora, tentando contornar o texto legal, que definia um “nativo” como um “kafir”, o arguido
em sua defesa descreveu-se como sendo um “Tembu”, expressão de identidade étnica
ausente da lei vigente e que suscitou, da parte do tribunal, a clarificação das categorias
classificatórias através de jurisprudência. O tribunal viria a declarar que, “pelos traços e
aparência”, o indivíduo em causa era um “nativo”, um “kafir”, inferindo que “um Tembu
é um kafir” e que este se define pelos seus traços somáticos.21
Anos mais tarde, a 6 de Junho de 1927, na divisão da Província do Natal do
Supremo Tribunal foi julgado um “homem nativo” (zulu) acusado de vadiagem a horas
proibidas.22 Duas questões centrais foram definidas na audiência: a primeira, que o
acusado, sendo um homem zulu, estava incluído na categoria de povos chamados
“kaffirs”, que eram todas as tribos originalmente na Colónia. Ora, segundo o magistrado,
era um facto indubitável que as pessoas de qualquer “raça Bantu” na África do Sul tinham
sido comummente chamadas “Kaffirs”, principalmente desde 1869. A segunda questão
relacionava-se com a acusação de vadiagem porque o “homem nativo” passava numa rua
fora do seu bairro a horas proibidas, ou seja, entre as 9 da noite e as 5 da manhã, sem
possuir um passe ou dar uma justificação.
Independentemente da decisão do juíz, o que estava em causa era a própria
doutrina explanada em tribunal sobre a natureza do kaffir, definida na lei 15 de 1869 e
sobre o estatuto legal subjacente à categorização da população “nativa”, condicionada nos
horários e locais a que podia deslocar-se nas áreas não classificadas de “sistema tribal”.
Um kaffir era, então, um homem “nativo”, que fora colonizado e que, de acordo com as
referências supracitadas, era considerado primitivo e inferior, mantendo-se subordinado
às limitações que a lei e a sociedade dominantes lhe impunham.
A partir da institucionalização do apartheid, as populações autóctones eram
educadas de acordo com a lei da Educação Bantu, em conformidade com os princípios
“tribais”, de modo a se prepararem para futuramente trabalhar com o seu próprio povo
nas tarefas que lhe estavam destinadas, prosseguindo o objectivo das vidas separadas.
21
Supreme Court of South Africa, Reports of Cases Decided in Eastern Districts’ Local Division, 1911,
Johannesburg, Digma Publications, 1973, pp. 101-104.
22
Natal Law Reports. Reports of Cases Decided in the Natal Provincial Division of the Supreme Court of
South Africa, Vol. XLVIII, Johannesburg, Digma Publications, 1973, pp. 156-163.
8
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Estava em vigor uma ordem social, política, económica e legal, estruturada com
base na segregação e na desigualdade racial, que determinava a inferioridade dos sectores
maioritários da população. Neste contexto, kaffir era o termo usado para designar
qualquer africano, anteriormente chamado de “nativo” que, de acordo com a arquitectura
social do regime, confinava o nível mais baixo na escala dos excluídos. Os kaffirs, a
esmagadora maioria da população, eram considerados cidadãos de quarta categoria,
confinados aos ghettos urbanos ou aos Bantustões controlados pelo governo de Pretória.
Apesar da legislação de suporte de tal sistema ter sido abolida após a instauração
da democracia constitucional, em 1994, as suas consequências sociais prevalecem ainda
e assiste-se a uma regulamentação legal que visa impedir a continuação do uso de um
discurso de ódio racial que certos vocábulos sugerem perpetuar. Daí que se assista
actualmente a uma política de restrição de qualquer discurso do qual se possa inferir que
uma pessoa, ou grupo de pessoas, é desigual simplesmente devido à sua “raça”.23
A definição da amplitude do “discurso do ódio” conduziu a uma reflexão global
na qual se integram as formas de tratamento e, neste sentido, a palavra kaffir é classificada
como a mais ofensiva aplicada à população africana, dado o seu significado degradante e
humilhante durante o regime do apartheid.
Actualmente, nos jornais ou revistas, quando é noticiada qualquer situação de
violação de direitos, que envolva este modo de tratamento, o vocábulo surge entre aspas
e a maior parte das letras substituídas por asteriscos: “k*****”. Nos discursos orais
institucionais não se pronuncia a palavra e, ainda que esta esteja em análise, fala-se da “K
word”. A palavra tornou-se um tabu, não é pronunciada, não é escrita e, quando usada
relativamente a alguém, suscita de imediato mecanismos jurídicos de protecção do
ofendido e de punição do agressor.
Uma longa história deste termo faz com que o seu uso na actualidade vitimize as
pessoas a quem se aplica porque sugere que são inferiores, ou pior, porque classifica uma
parte da população em virtude dos traços físicos e da diversidade cultural associados a
uma suposta raça ou grupo étnico.24
23
Jane Elizabeth MARSTON, Racial Hate Speech in a Changing Society: from Racial Oppression to
Democracy, Johannesburg, LLD – UP, 1997, pp. 2-4.
24
IDEM, ibidem, p. 9.
9
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
25
Boaventura de Sousa SANTOS, “Para além do Pensamento Abissal: das linhas globais a uma ecologia
dos saberes”, in Construindo as Epistemologias do Sul: Antologia Essencial, Vol. I, Buenos Aires,
CLASCO, 2018, pp. 639-675.
26
Isabel Castro HENRIQUES, “A (falsa) passagem do escravo a indígena”, in Os Pilares da Diferença.
Relações Portugal-África. Séculos XV-XX, Lisboa, Caleidoscópio-Centro de História da Universidade de
Lisboa, 2004, pp. 285-297.
27
IDEM, ibidem, pp. 285-286. Veja-se também Fernanda Nascimento THOMAZ, “Disciplinar o
“indígena” com pena de trabalho: políticas coloniais portuguesas em Moçambique”, in Estudos Históricos,
Rio de Janeiro, Vol. 25, N.º 50, pp. 313-330, julho-dezembro de 2012. https://doi.org/10.1590/S0103-
21862012000200003 (Consultado em 24/07/2021)
10
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
28
Maria Paula MENESES, “O ‘indígena’ africano e o colono ‘europeu’: a construção da diferença por
processos legais”, in e-cadernos CES [Online], 07/2010, p. 71. http://journals.openedition.org/eces/403
(Consultado em 20/12/2020)
29
“Regulamento do Trabalho dos Indígenas”, 9 de novembro de 1899, In Diário do Governo, N.º 259 de
15 de novembro de 1899, pp. 646-647.
30
Francisco Gavicho de LACERDA, Os Cafres. Seus usos e costumes, Lisboa, Livraria Rodrigues, 1944.
31
IDEM, ibidem, p. 23.
32
IDEM, ibidem, pp. 25-26.
11
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
da construção das imagens que vamos centrar a nossa análise, afastando-nos de qualquer
tipo de olhar retrospectivo.
Teremos de remontar aos inícios da centúria de Quinhentos e às viagens da
expansão marítima portuguesa para tentarmos compreender um dos momentos
determinantes da evolução deste termo, enquanto categoria classificatória de grupos de
população. Há quase um século que os portugueses estabeleciam contactos com os litorais
do ocidente africano, designando as populações pelos vocábulos de etíopes, negros,
guinéus ou homens pretos. Esta mesma diversidade lexical identificava as gentes
africanas, trazidas para a Europa no âmbito do comércio de escravos. Cada um destes
vocábulos encerrava códigos e simbolismos estereotipados que os converteram em
categorias. Como esclareceu José da Silva Horta, na senda de François de Medeiros, a cor
negra, na paleta de cores do Ocidente, marcava tanto a imagem do “etíope”, como do “negro”,
que estavam associadas, desde os tempos medievais, à morte, ao sofrimento, à metáfora
do pecado e ao próprio diabo, ainda que pudesse ter um registo alternativo de carácter positivo
ligado às potencialidades de conversão da Gentilidade.33 A cor negra era ainda entendida
como uma consequência das características climáticas da zona tórrida, que produzia
efeitos sobre a moral dos “etíopes” e todas as criaturas habitantes da “África etiópica”. 34
Terá sido nos primeiros anos do século XVI, já em paragens do Índico, que os
portugueses tiveram contacto com o termo que evoluiria em português para cafre. Após
a primeira viagem de Vasco da Gama, o rei D. Manuel ordenou a construção de um forte
em Sofala, de modo a poder beneficiar do comércio do ouro que aí afluía. Os mercadores
muçulmanos, que dominavam o comércio na costa oriental africana, usavam a palavra
kaffir ( )كافرpara designar as populações não convertidas ao Islão, vistas como infiéis do
ponto de vista religioso, e os portugueses adoptaram essa designação aplicada às
populações autóctones. Que significados terão sido transferidos do árabe ou do suaíli para
o uso português da palavra? Que imagens e que conceitos do “stock cultural” 35 dos
viajantes foram mobilizados quando se fez essa adopção? Quais as acepções do vocábulo
33
José da Silva HORTA, “A imagem do Africano pelos portugueses antes dos contactos”, in António Luís
FERRONHA (coord.), O Confronto do Olhar. O encontro dos povos na época das Navegações
portuguesas. Séculos XV e XVI. Portugal, África, Ásia, América, Lisboa, Caminho, 1991, pp. 46-47.
34
François de MEDEIROS, L’Occident et l’Afrique (XIIIe-XVe siècle). Images et representations, Paris,
Éditions Karthala, 1985, p. 224.
35
Edgar MORIN, “De la culturanalyse à la politique culturelle”, in Communications, 14, Paris, 1969, p. 7.
https://www.persee.fr/doc/comm_0588-8018_1969_num_14_1_1192 (Consultado em 20/09/2018)
12
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
36
Fernando CRISTÓVÃO, “Introdução. Para uma Teoria da Literatura de Viagens”, in Fernando
CRISTÓVÃO, (coord.), Condicionantes Culturais da Literatura de Viagens. Estudos e Bibliografias,
Coimbra, Almedina - Centro de Literaturas de Expressão Portuguesa da Universidade de Lisboa, 2002, pp.
29-30.
37
IDEM, ibidem, p. 35.
13
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
assente no critério da recepção dos textos pelo público leitor e nos cânones que este acaba
por ditar às casas de edição e impressão, obsta à operacionalidade do conceito no âmbito
deste trabalho. De facto, um número significativo de textos de viagens, resultantes dos
contactos e interações dos viajantes portugueses com uma diversidade de povos,
constituindo aquilo que se considera ser um discurso antropológico fundador, foram
integrados em colectâneas impressas e divulgadas na Europa. De acordo com Luís Filipe
Barreto, Portugal funcionava como um amplo “banco de dados” sobre as novas geografias
e humanidades.38 José Horta acrescenta que as informações e os textos produzidos sobre
matéria ultramarina eram difundidas nos grandes centros impressores, não existindo
mecanismos para controlar a recepção dos textos fora de Portugal.39
Mas se é verdade que integramos no corpus um conjunto de textos que obedecem
ao critério literário, muitos outros ficariam excluídos, devido à sua permanência em
suporte manuscrito ou à própria natureza administrativa ou prática, sendo que também
estes textos circularam, tiveram leitores e veicularam percepções, revelando-se
importantes para a compreensão dos processos de construção das representações dos
africanos da costa sul e leste do continente.
Com base num corpus documental que integra textos administrativos, roteiros,
relatos de viagens, correspondência missiológica, notícias de naufrágios e descrições
geográficas, pretendemos desenvolver três eixos estruturais de análise, que constituem o
objetivo fundamental desta tese.
O primeiro desses eixos refere-se às imagens e representações que se formularam
sobre a terra e as gentes da Cafraria. Que categorias e que esquemas de percepção
estruturaram os discursos? Que sentidos poderão ter sido construídos pelos leitores?
Neste âmbito, sempre que possível, procuramos analisar as condições de produção dos
textos40 e avaliar até que ponto as notícias das terras e povos distantes foram divulgadas
38
Luís Filipe BARRETO, Os Descobrimentos e a Ordem do Saber. Uma análise sociocultural, Lisboa,
Gradiva, 1989, ps. 15 e 36-37.
39
José da Silva HORTA, A “Guiné do Cabo Verde”. Produção textual e Representações (1578-1684),
(…), pp. 30-31. “O Africano: produção textual e representações (séculos XV-XVIII)”, in Fernando
CRISTÓVÃO (coord.), Condicionantes Culturais da Literatura de Viagens. Estudos e Bibliografias,
Coimbra, Almedina, 2002, pp. 267-268.
40
A problemática das relações entre o mundo do texto e o mundo do sujeito, das significações e das
apropriações de sentido encontra-se no cerne das representações, ou melhor, do “mundo como
representação”. Nas últimas décadas, os estudos de Roger Chartier têm sido determinantes para a
conceptualização da “representação” e afirmação da sua pertinência operatória para compreender os
processos de construção das identidades, hierarquias e classificações, com projecções nas práticas sociais
14
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
do Antigo Regime. De salientar os trabalhos de referência de CHARTIER para esta questão: A História
Cultural. Entre práticas e representações, (…); “The Meaning of Representation”, (…). Veja-se ainda José
da Silva HORTA, A “Guiné do Cabo Verde”. Produção textual e Representações (1578-1684), (…), p. 24.
41
Quando os colonos britânicos se fixaram em Algoa Bay, em 1820, trouxeram consigo vários clérigos.
Um deles, William Shaw, a partir de 1823 ficou encarregado de pregar o Evangelho às “tribos” vizinhas e
fundou seis missões, entre o rio Chalumna e o rio Umzimvubu. Na quarta destas missões, estabelecida entre
o povo Tshomane e seus vizinhos, os missionários receberam informações de que, a um dia de marcha,
encontrariam uma numerosa família de compleição clara, descendente de uma sobrevivente do naufrágio
de um navio inglês que teria casado com um chefe africano. Foi empreendida uma expedição de
reconhecimento ao kraal do chefe Dapa, filho dessa senhora inglesa e, segundo o relato da expedição, o
chefe já idoso, que embora negro tinha feições europeias, não soube informar sobre o nome do navio.
Porém, a calcular pelos seus 70 anos não descendia de nenhuma das mulheres do Grosvenor (naufragado
em 1782), mas de um outro naufrágio anterior. Cf. Report of the Wesleyan Methodist Missionary Society
for the Year ending December, 1827, p. 119 “Letter from Shrewsbury of the 9th October”, 1827, Apud
Percival Robson KIRBY, “Gquma, Mdepa and the Amatshomane Clan: a by-way of miscegenation in South
Africa”, in African Studies, Vol. 13, N.º 1, 1954, pp. 6-7.
42
Segundo Kirby, o naufrágio de um navio inglês na terra dos Tshomane, do qual foi salva uma menina
inglesa (Bessie) a quem seria dado o nome de Gquma, teria ocorrido em 1740. Cf. Percival R. KIRBY,
ibidem, p. 23.
15
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
tradições relativas aos abeLungu se enraízam seguramente num período mais antigo em
que náufragos portugueses caminharam pelas terras da Cafraria interagindo e
estabelecendo a comunicação com diferentes populações locais.
Os parâmetros cronológicos para este estudo das representações portuguesas das
populações e territórios designados de cafres e Cafraria tem como limite a quo a primeira
viagem de Gama (1497-98), na qual se produziram descrições pioneiras relativas às
populações da extremidade africana e às primeiras interacções culturais, vistas segundo
o prisma dos viajantes portugueses.43
O limite ad quem é assinalado pela instalação dos holandeses no Cabo, sob o
comando de Jan Van Riebeck, em 1652. A construção de um forte e a instalação de uma
guarnição militar no Cabo da Boa Esperança, destinados a dar apoio à Companhia das
Índias Orientais, fazia emergir um corpus discursivo não português, com as suas
especificidades e impacto nas categorias classificatórias.
De finais da década de 40 do século XVII são também os relatos dos naufrágios das
naus Nossa Senhora da Atalaia do Pinheiro e Santíssimo Sacramento (1647), escritos por
Bento Teixeira Feio.44 São estes os últimos testemunhos de náufragos portugueses que
atravessaram a extensa terra da Cafraria, desde os territórios a sul do rio Great Fish,
habitados por pastores Khoikhoi, passando depois pelos territórios habitados pelas
comunidades de pastores-agricultores, das quais descendem os actuais Xhosa, Mpondo,
Zulu, até à foz do rio então conhecido como de Lourenço Marques, área de comunidades
Tsonga.
A obra de Frei João dos Santos, publicada em Évora, em 1609, considera-se uma
importante síntese que compila memórias e informações recolhidas pelo missionário nos
territórios entre Sofala, Ilhas Quirimbas e Vale do Zambeze. Assumimos esta obra no
43
“Relato Directo da Viagem de Descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia, segundo o Manuscrito
Anónimo existente na Biblioteca Municipal do Porto”, in José Pedro MACHADO e Viriato CAMPOS,
Vasco da Gama e a sua Viagem de Descobrimento, Lisboa, Edição da Câmara Municipal de Lisboa, 1969,
pp. 111-225.
44
Bento Teyxeyra FEYO, Relaçam do naufragio que fizeram as naos Sacramento, & Nossa Senhora da
Atalaya, vindo da India para o Reyno, no Cabo de Boa Esperança; de que era Capitaõ mòr Luis de Miranda
Henriques, no anno de 1647, Lisboa, Impressa na officina de Paulo Craesbeck (?), 1650 (?), [contrafacção
do século XVIII]. Desta edição existe a dúvida se terá ocorrido na data referida e se a impressão terá sido
realizada na tipografia de Paulo Craesbeck.
Bento Teixeira Feio, sobrevivente do naufrágio da nau Atalaia, narrou a tragédia marítima e a subsequente
marcha pela costa até à baía de Maputo; no mesmo relato escreveu sobre o naufrágio da nau Santíssimo
Sacramento, também ocorrido em 1647.
16
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
corpus como um ponto de chegada, pois os seus conteúdos foram traduzidos e publicados
tendo ampla divulgação nos centros cultos da Europa. A sequência cronológica deste
corpus tem continuidade até meados do século XVII com os relatos de naufrágios, os
quais sustentam uma dimensão de análise fundamental nesta dissertação. Portanto, a
sequência cumpre-se com fontes de tipologia diversa, numa abordagem global dos
discursos sobre as representações.
Problemática e objectivos
De que modo se construiu o conhecimento português dos espaços culturais e das
sociedades da África do Sudeste nos séculos XVI e XVII? Que paradigmas moldaram
essa construção? Que concepções cosmológicas e éticas aí interferiram ao ponto de
prevalecerem as ideologias marginalizadoras daquele espaço geográfico e antropológico?
Eis as questões gerais que orientam a presente dissertação.
Tendo em consideração que a Cafraria correspondia a vastos territórios de
contorno obrigatório pelas naus da Carreira da Índia, durante os séculos XVI e XVII, que
razões poderão explicar a sua marginalidade do ponto de vista dos juízos valorativos?
Qual o verdadeiro peso dos estereótipos, que oscilam entre os mitos do Paraíso
terrestre em África45, os mitos Camíticos, justificativos da escravatura, e os mitos da
antropofagia africana, nos quais se enraízam caricaturas grosseiras de povos monstruosos
e selvagens? Terão essas imagens contribuído para a exclusão de tais vastidões territoriais
dos objectivos da coroa portuguesa?
E a dimensão dialógica? Entre os problemas técnicos relacionados com a
navegação a Este do Cabo da Boa Esperança, as dificuldades de comunicação com as
populações autóctones, a ausência de estímulo económico nos territórios mais
meridionais, terão as experiências históricas desfavoráveis, como a morte de D. Francisco
de Almeida na baía de Saldanha, em 1510, potenciado velhos paradigmas que
45
Francesc RELAÑO, “Paradise in Africa. The History of a Geographical Myth from its Origins in
Medieval Thought to its Gradual Demise in Early Modern Europe”, in Terrae Incognitae. The Journal for
the History of Discoverie, Society for the History of Discoveries, Vol. 36, 2004.
https://doi.org/10.1179/tin.2004.36.1.1 (Consultado em 6/07/2018)
17
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
46
O conceito de “geografia de imaginação” é-nos dado por Luís de ALBUQUERQUE em “Realidades e
mitos de Geografia Medieval”, in Estudos de História, Vol. V, Coimbra, Por Ordem da Universidade, 1977,
p. 30.
47
Esta noção da aceitação do outro como “manifesto diferencialista” é, no dizer de Luís Filipe Barreto,
uma conquista do segundo andamento do Renascimento quando, a partir de meados do século XVI, certos
discursos permitem-nos aceder a visões que expressam atitudes mentais de aceitação horizontal das
diferenças humanas. Cf. Luís Filipe BARRETO, Descobrimentos e Renascimento: formas de ser e pensar
nos séculos XV e XVI, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1983, pp. 60-61.
18
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Estado da questão
Destaquemos as investigações que, até aos nossos dias, escolheram como objecto
as representações portuguesas das sociedades da região, dos séculos XVI e XVII.
Entre 1898-1902, George MacCall Theal procedeu a traduções parciais dos relatos de
naufrágios, tanto os que constam da História Trágico-Marítima, como alguns avulsos,
que incluiu na sua vasta colectânea documental intitulada Records of South-Eastern
Africa.49 H. P. Junod50, missionário suíço que se destacou como autoridade em Língua e
48
Destaca-se a este respeito o estudo de Marília dos Santos LOPES, Da Descoberta ao Saber. Os
conhecimentos sobre África na Europa dos séculos XVI e XVII, Viseu, Passagem Editores, 2002.
49
George McCall THEAL, Records of South-Eastern Africa, 9 Vols., Cape Town, Struik, 1964.
50
Henri Alexandre JUNOD, Usos e Costumes dos Bantos: a vida de uma tribo sul-africana, 2 Vols., 2.ª
ed., Lourenço Marques, Imprensa Nacional, 1944-1946.
19
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
51
Alfred Thomas BRYANT, Olden Times in Zululand and Natal: Containing Earlier Political History of
the Eastern-Nguni Clans, London, Longmans, Green, 1929.
52
Mónica WILSON, “The Early History of the Transkei and Ciskei”, African Studies, Vol. 18, N.º 4, 1959,
pp. 167-179.
53
IDEM, ibidem, p. 178.
54
Shula MARKS and Anthony ATMORE, “The Problem of the Nguni: An Examination of the Ethnic and
Linguistic Situation in South Africa before the Mfecane”, in Language and History in Africa. A Volume of
Collected Papers Presented to the London Seminar on Language and History in Africa (Held at the School
of Oriental and African Studies, 1967-69), New York, Africana Publishing Corporation, 1970, pp. 120-
132.
55
Charles Ralph BOXER, Further Selections from the Tragic History of the Sea, 1559-1565. Narratives of
the shipwrecks of the Portuguese East Indiamen Aguia and Garça (1559) São Paulo (1561) and the
misadventures of the Brazil-ship Santo António (1565), Trans. and ed. Charles Ralph BOXER, Cambridge,
Hakluyt Society, Second Series, Vol. CXXXII, 1968. Eric AXELSON,
Recent identifications of portuguese wrecks on the south african coast, especially of the São Gonçalo
(1630), and the Sacramento and Atalaia (1647), Lisboa, Inst. Investigação Científica Tropical, Centro de
Estudos de História e Cartografia Antiga, 1985, pp. 43-61. Eric AXELSON, Portuguese in South Africa,
1488-1600, Cape Town, C. Struik (Pty), 1973.
20
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Ultramarinos e do National Archives of Rhodesia and Nyasaland que, entre 1962 e 1989,
disponibilizou à investigação sobre esta região africana milhares de documentos que
estavam dispersos em bibliotecas e arquivos do mundo.
Paul Hair examinou o vocabulário comum de origem Bantu presente nos relatos
de naufrágios ocorridos no período entre 1550-1650, nas costas do Transkei, Natal e sul
de Moçambique (entre a Baía da Alagoa e o Rio de Lourenço Marques).56
Já nos anos 90 do século passado, Giulia Lanciani explorou a literatura de
naufrágios atendendo à matriz literária dos relatos e aos modelos narrativos. O seu estudo
sobre os naufrágios, muitos deles ocorridos na costa oriental africana, contribui para as
reflexões em torno deste corpus literário.57
Malyn Newitt editou, em 2002, a obra East Africa,58 uma compilação de
documentos portugueses, alguns já anteriormente traduzidos para inglês por académicos
como George Theal, E. G. Ravenstein e Charles Boxer. Para os séculos XVI e XVII e
para os contextos relacionados com a história de Moçambique, referimos a existência de
um amplo escol de historiadores que trabalharam a documentação portuguesa.
Destacamos a importância de António Rita-Ferreira59 e Alexandre Lobato60, entre muitos
outros investigadores que trabalharam problemáticas da história de Moçambique de
forma muito competente
No que se refere à questão específica das representações da África do Sudeste,
consideramos que o estudo de W. G. L. Randles61, contando já mais de meio século, foi
pioneiro na abordagem temática sobre a construção de imagens através da literatura e
cartografia europeias.
Josiah Blackmore, em Manifest Perdition, explora a temática da narrativa de
naufrágios na perspectiva de um discurso que abre brechas na mentalidade expansionista
56
Paul Edward Hedley HAIR, “Portuguese Contacts with the Bantu Languages of the Transkei, Natal and
Southern Mozambique 1497-1650”, in African Studies, Vol. 39, N.º 1, 1980, pp. 3-46.
57
Giulia LANCIANI, Sucessos e Naufrágios das Naus Portuguesas, Lisboa, Caminho, 1997.
58
Malyn NEWITT (Editor), East Africa. Portuguese Encounters with the World in the Age of Discoveries,
John VILLIERS (General Editor), Hampshire, Ashgate Publishing, 2002.
59
António RITA-FERREIRA, Povos de Moçambique – História e Cultura, Porto, Afrontamento, 1975.
IDEM, Fixação Portuguesa e História Pré-Colonial de Moçambique, Lisboa, Instituto de Investigação
Científica Tropical, 1982.
60
Alexandre LOBATO, A expansão portuguesa em Moçambique de 1498 a 1530, Lisboa, Agência-Geral
do Ultramar, 1954, 3 vols.
61
William G. L. RANDLES, L’Image du Sud-Est Africain dans la Littérature Européenne au XVI Siècle,
Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1959.
21
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
62
Josiah BLACKMORE, Manifest Perdition: Shipwreck Narrative and the Disruption and the Empire,
Minneapolis, Minnesota University Press, 2002.
63
Fançois-Xavier FAUVELLE-AYMAR, L’Invention du Hottentot. Histoire du regard occidental sur les
Khoisan (XVe-XIX Siècle), Paris, Publications de la Sorbonne, 2002.
64
Malvern Van Wyk SMITH, op. cit.. Segundo o autor desta obra, as evidências discursivas dos diversos
momentos do encontro da Europa com a África sugerem preconceitos anteriormente firmados, que são
invocados de forma estereotipada. O Imperialismo do Séc. XIX, o Iluminismo, o Renascimento e a Idade
Média Cristã evidenciaram, repetidamente, percepções pouco compreensivas de África e dos africanos. Até
mesmo Gregos e Romanos parecem ter invocado ideias sobre os africanos negros que, segundo o autor,
encontram raízes mais além, no Egipto faraónico. Terá sido das concepções egípcias sobre um hinterland
africano que se instituiu o paradigma para quase todas as compreensões da África, que irradiaram a partir
do mundo Euro-Mediterrânico.
65
Utilizamos aqui a categoria relativa de Ocidente / ocidental com a mesma acepção do autor, de
abrangência euro-mediterrânica.
66
Malvern Van Wyk SMITH, op. cit., pp. 236-237.
22
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
67
IDEM, ibidem, pp. 2-3.
68
José Rivair MACEDO, “Intelectuais africanos e estudos pós-coloniais: considerações sobre Paulin
Hountondji, Valentin Mudimbe e Achille Mbembe”, OPSIS (On-line), Catalão-GO, Vol. 16, Nº 2 (Jul./Dez.
2016), pp. 280-298. Trata-se do Dossiê intitulado Descolonizar as Ciências Humanas: campos de
pesquisas, desafios analíticos e resistências - Parte 2.
69
Edward W. SAID, Orientalismo. Representações ocidentais do Oriente, 2ª Edição, Lisboa, Livros
Cotovia, 2004.
70
Valentin-Yves MUDIMBE, The Invention of Africa. Gnosis, Philosophy, and the Order of Knowledge,
Oxford – Bloomington, James Currey Ltd – Indiana University Press, 1988. IDEM, The Idea of Africa,
Bloomington e Indianapolis, Indiana University Press, London, James Currey, 1994.
23
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Horta, a análise das representações funciona como um objeto de charneira entre a história
europeia e a história africana.71
Em Portugal, a obra O Confronto do Olhar, editada por Luís Albuquerque,
António Luís Ferronha, Rui Loureiro e José da Silva Horta, introduziu uma nova
abordagem para a documentação portuguesa a partir da temática das representações sobre
o “Outro”, destacando-se o olhar sobre África e o africano, tendo a obra marcado entre
nós o início deste debate.72
Em Portugal, um momento muito importante de síntese sobre a temática das
representações africanas ocorreu num colóquio organizado pelo CHAM, no ano 2009, em
Ponta Delgada, reunindo em reflexão os olhares sobre África e da África para o mundo,
de que resultou a publicação Representações de África e dos Africanos.73
No âmbito das investigações mais recentes relativas à África Sul Oriental, com
base em fontes portuguesas, destacam-se os trabalhos de Ana Cristina Roque, cuja
dissertação de Mestrado envolveu uma leitura crítica da costa oriental africana, segundo
as fontes portuguesas.74 Além da grande obra de referência sobre as “Terras de Sofala”
entre os séculos XVI e XVIII, 75 os seus trabalhos incidem nas imagens da biodiversidade
nos territórios da África do Sudeste,76 analisam as interrelações entre portugueses e
africanos e reflectem sobre a forma como estas influenciaram as conceptualizações sobre
71
José da Silva HORTA, “Entre história europeia e história africana, um objecto de charneira: as
representações”, in Actas do Colóquio ‘Construção e Ensino da História de África, Lisboa, Grupo de
Trabalho do Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1995, pp.
189-200.
72
Luís de ALBUQURQUE, António Luís FERRONHA, José da Silva HORTA, Rui LOUREIRO, O
Confronto do Olhar. O encontro dos povos na época das Navegações portuguesas. Séculos XV e XVI.
Portugal, África, Ásia, América, Lisboa, Caminho, 1990.
73
José Damião RODRIGUES e Casimiro RODRIGUES (Editores), Representações de África e dos
Africanos na História e Cultura – Séculos XV a XXI, Ponta Delgada, Centro de História de Além Mar,
2011.
74
Ana Cristina Ribeiro Marques ROQUE, A Costa oriental de África na 1.ª metade do séc. XVI segundo
as fontes portuguesas da época, Dissertação de Mestrado em História dos Descobrimentos e da Expansão
Portuguesa, 3 Vols., Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa,
1994, (texto policopiado).
75
IDEM, Terras de Sofala: persistências e mudança. Contribuições para a História da costa Sul-Oriental
da África nos séculos XVI-XVII, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2012.
76
IDEM, “A costa sul oriental de África e o conhecimento da natureza no século XVI: saberes, experiência
e ciência”, in Atas do I Encontro Internacional de História Ambiental Lusófona, Inês AMORIM e Stefania
BARCA (org.), Debates, Nº 1, Março/2013, pp. 145-173. IDEM, “Portugueses e africanos na África Austral
no século XVI: da imagem da diferença ao reforço da proximidade”, in José Damião RODRIGUES e
Casimiro RODRIGUES (Editores), op. cit., pp. 89-105.
24
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
77
Ana Cristina Ribeiro Marques ROQUE, “Portugueses e Africanos na África Austral no século XVI: da
imagem da diferença ao reforço da proximidade”, in Representações da África e dos Africanos na História
e Cultura – séculos XV a XXI, pp. 89-105. Da mesma autora, veja-se ainda, de 2003, “Para uma outra leitura
da Carreira da Índia: A importância dos Diários de Navegação, Roteiros e Relatos de Naufrágios para o
conhecimento da Costa Sul-Oriental de África no séc. XVI”, in A Carreira da Índia – Atas do V Simpósio
de História Marítima, Lisboa, Academia de Marinha, pp. 205-212.
78
Eugénia RODRIGUES, Portugueses e Africanos nos Rios de Sena. Os Prazos da Coroa em Moçambique,
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2013.
79
Luís Frederico Dias ANTUNES, “Os mercadores baneanes guzuerates no comércio e a navegação da
costa oriental africana - Século XVIII, in Actas do Seminário Moçambique: navegaçöes, comércio e
técnicas, (org. Faculdade de Letras da Universidade Eduardo Mondlane de Maputo e Comissäo Nacional
para as Comemoraçöes dos Descobrimentos Portugueses), Lisboa, Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998, pp. 67-93.
80
Frei João dos SANTOS, Etiópia Oriental e vária História de cousas notáveis do Oriente, Introdução de
Manuel LOBATO, notas de Manuel LOBATO e Eduardo MEDEIROS, coordenação da fixação do texto
por Maria do Carmo Guerreiro VIEIRA, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 1999. De Manuel Lobato, veja-se também: “Entre cafres e muzungos.
Missionação, islamização e mudança de paradigma religioso no Norte de Moçambique nos séculos XV a
XIX ”, in Actas do Congresso Internacional Saber Tropical em Moçambique: História, Memória e Ciência,
Lisboa, IICT 2013, pp. 1-14.
81
Gabeba BADEROON, The Provenance of the term ‘Kafir’ in South Africa and the notion of Beginning,
[2004]. http://www.cilt.uct.ac.za/usr/cci/publications/aria/download_issues/2004/2004_MS4.pdf
(Consultado em 3/12/2012).
25
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Discoveries of The English Nation,82 cujo primeiro volume foi publicado em 1589. Ao
reflectir sobre as implicações deste termo na África do Sul considera que, antes do
vocábulo se associar às relações políticas de holandeses e britânicos com os povos Nguni
do Cabo Oriental, já carregava consigo uma história de relações com a África Oriental e
o Oceano Índico, com os suaíli e comerciantes falando língua árabe e também com os
portugueses.83 De facto, tal como expressa esta autora, a história da palavra kaffir, com
um primordial sentido religioso, remete-nos para a história do encontro da África com o
Islão na longa duração e para as questões relacionadas com a extensão do tráfico pré-
colonial em bens, escravos e a circulação de ideias em torno do Oceano Índico.
Consideramos, porém, que o termo cafre, aplicado a populações dos territórios
correspondentes à atual República da África do Sul, é bastante anterior à data apontada
por Baderoon. Parece-nos também, que as evidências da antiguidade da presença islâmica
na África Oriental e do processo de aculturação que esteve na base da cultura suaíli, não
são por si só suficientes para que se compreenda o enraizamento dos sentidos pejorativos
associados à palavra kaffir. A nossa hipótese de trabalho assenta na ideia de que, desde
os primeiros anos do século XVI, os portugueses desempenharam um papel crucial na
transmissão do vocábulo árabe designando as populações não islamizadas da África Sul-
Oriental. Para além do processo de apropriação e transmissão do termo, os novos
utilizadores reinventaram-no como conceito que se densificou em significados e que,
através de interpretações extensivas se transformou numa categoria classificatória,
disponível e em aberto para vir a ser utilizada por outros povos europeus.
As imagens estereotipadas dos cafres, fixadas nos escritos de Quinhentos, seriam
ulteriormente replicadas e reinventadas no âmbito das políticas de fixação na África
meridional, levadas a cabo por holandeses e britânicos. Tentaremos contribuir, deste
modo, para a temática que reflecte sobre o sentido e a importância dos rótulos
classificatórios europeus aplicados aos africanos, tendo em consideração a variedade de
palavras que os designavam e os significados subjacentes, seja no contexto sociocultural
e geográfico africano, seja no contexto europeu.84
82
Richard HAKLUYT, The Principal Navigations, Voyages, Traffiques and Discoveries of The English
Nation, London, Imprinted by George Bishop and Ralph Newberie, 1589.
83
Gabeba BADEROON, op. cit.
84
Thomas Foster EARLE and Kate J. P. LOWE (Editors), Black Africans in Renaissance Europe, New
York, Cambridge University Press, 2010.
26
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Metodologia
A presente dissertação estrutura-se em três partes principais, nas quais são
abordados os seguintes temas: a categoria de “cafre” na construção de uma imagem da
África meridional e do sudeste, os primeiros encontros luso-africanos, através da
documentação portuguesa e, finalmente, a fixação do paradigma de tragédia e perdição,
que se inicia na segunda metade do século XVI e se prolonga até aos meados do século
XVII. No final do texto surgem os Anexos constituídos pela transcrição de dois
documentos inéditos e quatro quadros-síntese. Os dois primeiros quadros referem-se a
aspectos comparativos de alguns documentos, o terceiro e o quarto registam as imagens
e estereótipos da Cafraria e dos cafres nos relatos de naufrágios dos séculos XVI e XVII.
Tanto os documentos, como os quadros são antecedidos por notas explicativas nas quais
se justifica a sua integração no âmbito deste trabalho. Relativamente aos documentos, são
apresentadas as regras de transcrição adoptadas e um índice com os seus sumários.
Relativamente aos mapas e às imagens, decidiu-se incluí-los directamente no
corpo do trabalho, de forma a facilitar a compreensão dos conteúdos aí explanados.
Por fim, consta a bibliografia dividida em fontes e estudos.
Em termos da metodologia seguida, definimos um objecto de estudo, as categorias
classificatórias cafre e Cafraria, e um corpus documental, que materializa as concepções
antropológicas e geográficas no período definido. É a partir da análise das fontes
históricas, atendendo à sua linguagem, aos conceitos e seus fundamentos teóricos e
ideológicos e às simbioses com o registo empírico do novo, que procuramos explicar a
construção das categorias de representação.
Previamente à abordagem das representações, entendidas como constructos
discursivos exteriores às próprias sociedades africanas, sentimos a necessidade de
proceder a uma contextualização dessas sociedades atendendo aos diversos complexos
geográficos constituídos pela África meridional, pela costa do sudeste africano e pelos
planaltos do Zimbabué. Definimos também um conjunto de heranças cosmográficas,
linguísticas e conceptuais que estruturaram as visões do mundo ocidental dominantes no
período das viagens marítimas e condicionaram a formulação das imagens mentais, no
âmbito dos contactos com a alteridade.
Nesta contextualização das sociedades africanas confrontamo-nos com algumas
limitações decorrentes da própria natureza exógena das fontes históricas que analisamos
27
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
85
Jean-Loup AMSELLE, Logiques métisses. Anthropologie de l’identité en Afrique et ailleurs, Paris,
Éditions Payot, 1990, p. 55.
28
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
86
Marc AUGÉ, Le Sens des Autres. Actualité de l’Anthropologie, Paris, Fayard, 1994, p. 154.
87
Noël MOSTERT, Frontiers. The Epics of South Africa’s Creation and the Tragedy of the Xhosa People,
New York, Alfred A. Knopf, 1992, p. xv.
88
Adopta-se a designação e a extensão da África Meridional tal como foi definida pelo grupo de
historiadores africanos reunido em Gabarone, sob os auspícios da UNESCO, em 1977.
29
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Índico, entre o rio Limpopo e o Cabo das Correntes, correspondendo a vastos territórios
a sul e este do deserto do Kalahari.
O segundo complexo geográfico abrange os territórios e as sociedades de entre o
Limpopo e o Zambeze, que David Beach designou de “Grande Crescente”. Este complexo
espacial comporta as terras altas do planalto do Zimbabwe e as regiões adjacentes e é
marcado por três vales de grandes rios: o médio Zambeze, o baixo Zambeze e o Save-
Limpopo.89
As evidências de que o planalto assistiu a uma fixação da população, que
aumentou ao longo da história, levaram Beach a designar de “Grande Crescente” as terras
de alta e média altitude, que se alimentam das águas do Zambeze e das bacias do Save-
Limpopo. A ocidente deste “crescente”, as terras revelavam-se mais planas, mas também
mais secas, arenosas ou sódicas. Para leste, o “Grande Crescente” era limitado por vales
profundos que dividiam o território montanhoso, marcado por grandes afloramentos
graníticos.90
Mapa 1 – Contexto espacial e populacional
89
David BEACH, The Shona and their Neighbours, Oxford, Blackwell, 1994, pp. 16-19.
90
O complexo do “Grande Crescente”, tal como explicado por David Beach, corresponde a um macro-
espaço que Elikia M’Bokolo designa de “Savanas Meridionais”, a sul da grande floresta equatorial. Cf.
Elikia M’BOKOLO, África Negra. História e Civilizações, até ao Século XVIII, Tomo I, Lisboa, Editora
Vulgata, 2003, p. 162.
30
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
91
Noël MOSTERT, op. cit., p. xxi (tradução nossa).
92
Manuel de Mesquita PERESTRELO, Roteiro dos portos, derrotas, alturas, cabos, conhecenças,
resguardos e sondas, que á per toda a costa desdo cabo de boa esperança ate o das correntes, B.P.E., Ms.
Cod. CXV / 1-23, fl. 11 vº. Citamos directamente a partir do manuscrito de Évora que, juntamente com os
manuscritos do British Museum (Add. 16:932), da B.P.M.P. (Cod. Nº 149) e o da B.A. (51-VI-54, nº 26,
fls. 103-116) constituem as cópias conhecidas do original de Manuel de Mesquita Perestrelo. Este roteiro
resultou de um reconhecimento realizado entre 1575-76, por ordem do rei D. Sebastião e foi publicado por
Abel Fontoura da COSTA (ed.), Roteiro da África do Sul e Sueste desde o Cabo da Boa Esperança até ao
das correntes (1576), Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1939, p. 34. O manuscrito da B.A. foi publicado
na colectânea Documentos sobre os Portugueses em Moçambique e na África Central, Vol. VIII (1561-
1588), Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, National Archives of Rhodesia and Nyasaland,
1975, pp. 464-515.
31
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
93
Noël MOSTERT, op. cit., p. 36.
94
François-Xavier FAUVELLE-AYMAR, L’Invention du Hottentot. Histoire du regard occidental sur les
Khoisan (XVe-XIX Siècle), (…), p. 13.
32
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
vizinhos não Khoikhoi respectivamente.95 São termos que nos conduzem à questão da
“polarização étnica” e sócio-económica tornada evidente nos processos de construção das
identidades.96 O termo Khoikhoi traduz-se por “homens dos homens”, no sentido de “o
povo verdadeiro”, e é a variante moderna Namaqua de um termo identitário usado pelos
pastores do Cabo para se referirem a eles mesmos. 97 Em contraste, San é a adaptação de
uma palavra que os Khoikhoi usaram para se referirem aos outros, as comunidades que
viviam da caça e lhes roubavam muitas vezes o gado, tendo o significado de “ladrões” ou
“bandidos”.98
Trata-se de uma etiqueta vaga, de sentido pejorativo, tal como a de
Bosjesman/Bushman, usada pelos colonos holandeses e ingleses a partir do século XVII,
que se referia a um modo de vida, pois que tais termos designam literalmente “aquele que
vive no mato” (bush) e que, por definição, é um não assimilado ou um resistente.99
Hottentot foi a designação aplicada pelos primeiros colonos holandeses, fixados
no Cabo a partir de 1652, aos pastores Khoikhoi, tendo-se generalizado como etnónimo,
associado a relatos e descrições que apresentavam as populações locais como selvagens,
cruéis, disformes e vagabundos.100
A origem desta designação suscitou muito debate, sendo o académico sul-africano
J. Du Plessis a trazer à luz, em 1932, uma passagem do relato da viagem do francês
Augustin de Beaulieu, como comandante de uma expedição às Índias Orientais (1619-
1622), no qual é descrito o provável contexto em que a palavra surgiu.101 Beaulieu
descreveu que ao passar no Cabo, os seus habitantes saudavam os europeus com uma
95
François Xavier FAUVELLE-AYMAR, “Against the ‘Khoisan paradigm’ in the interpretation of
Khoekhoe origins and history: a re-evaluation of Khoekhoe pastoral traditions”, in South African
Humanities (S.A.H.), Vol. 20, 2008, p. 78.
96
François-Xavier FAUVELLE-AYMAR, “Histoire d’un point d’eau PELLA: (XVIIIe-XXe Siècle).
Reconfigurations Spatiales et Identitaires dans l’Ouest de l’Afrique du Sud”, in Clio en Afrique, Nº 10,
Verão de 2003. https://docplayer.fr/176702801-C-l-i-o-e-f-r-i-q-u-e.html (Consultado em 10/03/2019).
97
Susan NEWTON-KING, Masters and Servants on the Cape eastern frontier, 1760-1803, Cambridge,
Cambridge University Press, 1999, p. 25.
98
François-Xavier FAUVELLE-AYMAR, “Histoire d’un point d’eau PELLA: (XVIIIe-XXe Siècle).
Reconfigurations Spatiales et Identitaires dans l’Ouest de l’Afrique du Sud”, (…).
99
Shula MARKS, “Khoisan resistance to the Dutch in the Seventheenth and Eighteenth Centuries”, in
Journal of African History, Vol. XIII, Nº 1 (1972), p. 58.
100
Jean-Jaques de MELET, “La description des sauvages Hottentots par Mellet”, in Dominique LANNI,
Fureur et Barbarie. Récits de Voyages chez les Cafres et les Hottentos - 1665-1721, Paris, Cosmopole,
2001, pp. 24-35.
101
G. S. NIENABER, “The origin of the name “Hottentot”, African Studies, Vol. 22, Nº 2 (1963), pp. 65-
90. https://doi.org/10.1080/02561751.1935.9676356 (Consultado em 17/07/2021)
33
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
canção em que no começo, nas partes e no fim se ouvia a palavra “hautitou”.102 Em 1623,
o dinamarquês Olafsson teria testemunhado das populações da baía da Mesa uma dança
acompanhada de palavras, que se aproxima do relato de Beaulieu.103
Segundo Fauvelle-Aymar, é muito provável que o vocábulo tivesse nascido neste
contexto de viagem marítima e contacto nos litorais, sendo forjada em Batavia a partir
dos relatos sobre as canções Khoikhoi, vindo posteriormente a generalizar-se o seu uso
no Cabo, com o estabelecimento de Jan Van Riebeck.104 A palavra com grafia “Ottentoo”,
“Ottentots” e “Hottentot” afirma-se nos documentos oficiais e no registo diário das
ocorrências da colónia, a partir de 7 de abril de 1652, como um termo genérico que se
aplicou a uma variedade de populações Khoikhoi.105 Na linguagem comum da colónia
dava-se uma transição entre o termo cafre / cafres, anteriormente usado para designar
genericamente os povos do sul e sudeste de África, e o termo hotentot, que passava a
aplicar-se às comunidades de pastores, como uma categoria que os diferenciava das
populações bantófonas, tanto as da costa ocidental, como as da costa oriental africana,
que eram percepcionados como partilhando línguas e culturas similares. Em 1668, Olfert
Dapper regista o sentido de “gago” ou “aquele que gageja” para a palavra hottentot, em
uso nos Países-Baixos, passando esta a revestir-se de uma natureza pejorativa e
zombateira, associada a uma imagem do Outro cuja língua era definida, acima de tudo,
como estranha e incompreensível.106
Hottentot e Bushman foram termos usados pelos primeiros colonos europeus que
procuravam diferenciar, não só o modo de vida, mas também etnicamente, os pastores
dos caçadores-recolectores. O significado do vocábulo San, oscilou historicamente entre
o valor de um etnónimo, que perdurou na literatura antropológica até aos nossos dias, e
102
J. Du PLESSIS, “The name Hottentot in the records of early travellers”, in South African Journal of
Science, XXIX (1932), p. 663, Apud François-Xavier FAUVELLE-AYMAR, L’Invention du Hottentot.
Histoire du regard occidental sur les Khoisan (XVe-XIX Siècle), (…), pp. 130-131.
103
François-Xavier FAUVELLE-AYMAR, L’Invention du Hottentot. Histoire du regard occidental sur
les Khoisan (XVe-XIX Siècle), (…), p. 130.
104
IDEM, ibidem, pp. 132-133.
105
Jan van RIEBEECK, Dagverhaal, ed. Historisch Genootschap, Vol I (1652 - 1655), Utrecht, Kemink &
Zoon, Utrecht / Martinus Nijhoff, Den Haag, 1884. Cópia do exemplar da Biblioteca da Universidade de
Leiden, online (2008): http://www.dbnl.org/tekst/rieb001dagv02_01/colofon.php (consultado em
17/07/2021)
106
François-Xavier FAUVELLE-AYMAR, L’Invention du Hottentot. Histoire du regard occidental sur les
Khoisan (XVe-XIX Siècle), (…), p. 134.
34
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
uma designação social, que se aplicou tanto a pastores proletarizados ou exilados das
linhagens dominantes, como a brancos ou negros considerados predadores.107
A ausência de um termo genérico, favorável à identidade dos caçadores-
recolectores, e a actual ignorância das designações assumidas pelas populações
individuais de caçadores nómadas para períodos recuados, como os dos séculos XVI e
XVII, conduzem à preferência do uso do termo San na literatura antropológica,
arqueológica e histórica, em abordagens científicas relativas aos grupos humanos de
caçadores-recolectores da África austral.108
O termo compósito Khoisan, formulado nos anos 20 do século passado, foi
utilizado no campo da antropologia física, num esforço de organização das evidências
biológicas e linguísticas destas duas entidades humanas num mesmo conjunto, que se
supunha resultar de processos históricos de hibridização.109 O termo adquiriu validade
etnológica a partir dos anos 30, com a obra de Isaac Shapera, The Khoisan Peoples of
South Africa: Bushman and Hottentots, na qual o autor se entregava a um estudo
comparativo destas populações.110 Tal obra resultou numa visão dos grupos de caçadores
e de pastores como dois segmentos de um mesmo conjunto, conduzindo a investigações
posteriores, tanto no campo da antropologia, como da linguística, da genética e da
arqueologia que resultaram na constatação da inadequação dos esquemas dicotómicos 111
percepcionados pelos primeiros europeus fixados no Cabo.
Segundo Richard Elphick, a designação étnica de Khoikhoi reportava-se a
qualquer pessoa aceite como membro pleno de uma comunidade Khoikhoi, comunidade
na qual se falava um dialecto de uma língua Khoikhoi e onde a pastorícia era a actividade
económica predominante. Segundo o autor, a designação aplica-se a um grupo
relativamente homogéneo de populações com origens comuns, linguagem comum
(dividida em dialectos), cultura comum e aspirações económicas comuns.112 Esta
definição, que assenta nos critérios clássicos da antropologia para classificar as
107
Shula MARKS, op cit., p. 58.
108
Susan NEWTON-KING, op cit., p. 25.
109
François-Xavier FAUVELLE-AYMAR, “Against the ‘Khoisan paradigm’ in the interpretation of
Khoekhoe origins and history: a re-evaluation of Khoekhoe pastoral traditions”, (…), p. 78.
110
François-Xavier FAUVELLE-AYMAR, L’Invention du Hottentot, Histoire du regard occidental sur les
Khoisan (XVe-XIXe siècle), (…), p. 11.
111
IDEM, ibidem.
112
Richard ELPHICK, Khoikhoi and the Founding of White South Africa, Johannesburg, Ravan Press,
1985, p. xxi.
35
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
113
François-Xavier FAUVELLE-AYMAR, “Against the ‘Khoisan paradigm’ in the interpretation of
Khoekhoe origins and history: a re-evaluation of Khoekhoe pastoral traditions”, (…), pp. 77-92.
114
Alan Barnard considera útil pensar nos actuais Naron e G |wi como caçadores-recolectores com cabras.
De acordo com a sua perspectiva antropológica, e num exercício especulativo, admite que os Khoikhoi do
Cabo pudessem ter sido simplesmente San com cabras. Cf. Alan BARNARD, “Ethnographic analogy and
the reconstruction of early Khoekhoe society”, in S.A.H., Vol. 20, 2008, p. 73.
115
François-Xavier FAUVELLE-AYMAR, “Against the ‘Khoisan paradigm’ in the interpretation of
Khoekhoe origins and history: a re-evaluation of Khoekhoe pastoral traditions”, (…), p. 85.
116
Richard ELPHICK, op. cit., pp. 4-10.
117
IDEM, ibidem, pp. 6-7.
36
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
118
Karim SADR, “Invisible herders? The archaeology of Khoekhoe pastoralists”, in S.A.H., Vol. 20, 2008,
pp. 179-203. Ao rever as evidências arqueológicas, Sadr defende a “invisibilidade” dos pastores durante o
primeiro milénio, justificando que os Khoikhoi seriam uma construção social específica do segundo
milénio. Apesar da probabilidade dos Khoikhoi não terem existido como entidade cultural coerente, durante
o primeiro milénio, já existiriam então os elementos separados que mais tarde vieram a constituir a sua
identidade (língua, economia, sistema de parentesco, mentalidade e práticas de criação de gado). Veja-se
Karim SADR, op cit, p. 180.
119
IDEM, ibidem, p. 212.
120
IDEM, ibidem, p. 214.
37
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
121
Anders SPARRMAN, A Voyage to the Cape of Good Hope Towards the Antarctic Polar Circle Round
the World and the Country of the Hottentots and the Caffres from the Year 1772-1776, Edited by V. S.
FORBES, Vol. II, Cape Town, Van Riebeck Society, 1977, pp. 18-19.
Se Sparrman observou, no século XVIII, o cultivo de cereais de Verão entre os Khoikhoi, tal prática deverá
ter sido adquirida por empréstimo dos vizinhos Nguni, mas certamente instalou-se como um modo de
subsistência suplementar porque o clima o permitiu. Cf. Christopher EHRET, “The Early livestock-raisers
of Southern Africa”, in S.A.H., Vol. 20, 2008, p. 22.
122
IDEM, ibidem, pp. 13-14.
123
Andy CHEBANNE, “Where Are the 'Skeletons' of Dead Khoisan Languages?”, in Botswana Notes and
Records, Vol. 44 (2012), pp. 85-86. https://www.jstor.org/stable/43855562 (consultado em 17/07/2021)
124
Hilde GUNNINK, “Language contact between Khoisan and Bantu languages: The case of Setswana”,
in Southern African Linguistics and Applied Language Studies, Volume 38 (2020), pp. 27-45.
https://doi.org/10.2989/16073614.2020.1737158
38
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
125
Christopher EHRET, op. cit., p. 34.
126
IDEM, ibidem, pp. 7-35.
127
IDEM, ibidem, p. 8. Ehret baseia-se num estudo de Güldemann (2004) que afirma que o Kwadi não
apenas permanece fora do Khoe Kalahari Oriental, mas também que o Khoe e o Kwadi deveriam ser
considerados sub-ramos irmãos de um nível profundo do grupo Kwadi-Khoe. As suas conclusões tiveram
a virtude de acrescentar algumas evidências lexicais ao Kwadi, previamente inexplicadas. Acrescenta que
duas palavras centrais do Kwadi (mulher e lua) têm padrões de ocorrência que excluem esta língua como
membro do Khoe Kalahari Oriental e do Kalahari Khoe como um todo.
128
IDEM, ibidem, p. 18.
39
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
129
Andy CHEBANNE, op. cit., p. 86.
130
François-Xavier FAUVELLE-AYMAR, “Against the ‘Khoisan paradigm’ in the interpretation of
Khoekhoe origins and history: a re-evaluation of Khoekhoe pastoral traditions”, (…), pp. 87-88.
131
Andrew SMITH, “Origins and spread of pastoralism in Africa”, in Nomadic Peoples, 32, 1993, p. 99.
132
Estudos sobre as sequências do genoma completo dos caçadores-recolectores parecem também
confirmar que a dispersão destas comunidades se processou num tempo tão recuado, que a especificidade
do modo de vida se traduziu numa enorme diversidade da estrutura genética. O estudo dos genomas dos
Khoisan e dos Bantu da África Austral (2009), baseado em marcadores mitocondriais e pequenos
marcadores nucleares fixos, mostram que a estrutura genética dos caçadores-recolectores que hoje vivem
no Kalahari é divergente da dos outros humanos. Este estudo, feito com base em cinco indivíduos
pertencentes a cinco grupos diversos que habitam actualmente o Kalahari, mostra que estes caçadores-
recolectores se caracterizam, em média, por uma significativa diversidade uns em relação aos outros, o que
levanta questões que se relacionam com as adaptações genéticas a um estilo de vida agrícola, mas também
revela a antiguidade destes grupos humanos e da sua dispersão na África Austral. Veja-se Stephan C.
SCHUSTER et al., “Complete Khoisan and Bantu genomes from Southern Africa”, in Nature, Vol. 463/18
Fev. 2010, pp. 943-947.
40
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
133
Alan BARNARD, op cit., pp. 66-74.
134
Segundo a tese de Elphick, as comunidades de pastores Khoikhoi terão derivado o seu modo de vida a
partir de grupos de caçadores. Um dos bandos do “Bush central”, do norte do Botswana, terá adquirido
caprinos e bovinos, provavelmente através do contacto com comunidades de agricultores e pastores,
ocorrendo uma “revolução pastorícia” antes da dispersão para a Namíbia e para o Cabo Ocidental,
condicionada pela necessidade de explorar novas pastagens. Restos de caprinos e cerâmica em sítios
arqueológicos da Namíbia e do Cabo foram datados dos primeiros séculos da EC. Elphick considera que, a
ser o mesmo povo a introduzir tanto os caprinos como a cerâmica, as deslocações migratórias deverão ter
ocorrido de forma suficientemente rápida para chegar quase em simultâneo a regiões tão afastadas. Neste
sentido, a “revolução pastoríl” deve ter ocorrido pelo menos um ou dois séculos antes, ou seja, algures no
início do primeiro milénio. Ver Richard ELPHICK, op. cit., pp. 10-13.
135
IDEM, ibidem, p. 32.
41
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
da insegurança entre aqueles que eram absorvidos nas comunidades de pastores. 136 A
concorrência pelos mesmos territórios de pastagem, os mesmos pontos de água e os
mesmos recursos terão empurrado grupos de caçadores não assimilados para as zonas
mais áridas, que os colonos vieram a designar de Bushmanland. Por seu turno, também
se terá verificado a absorção de indivíduos marginalizados das comunidades Khoikhoi,
que foram constrangidos a viver nos espaços mais áridos onde foram assimilados pelos
grupos de caçadores através de processos de “bushmanização” social.137
4) Casamentos de caçadores em posição de clientela dentro das sociedades
Khoikhoi, prática integrada nas redes de trocas entre unidades sociais, nas quais se insere
a circulação de mulheres.138 Segundo Elphick, este aspecto deve ter ocorrido de acordo
com o padrão do homem Khoikhoi casando com mulheres das comunidades clientelares
de caçadores e não o contrário, pois existiria entre os Khoikhoi um sentimento
generalizado de desdém relativamente aos grupos San. De acordo com o costume dos
caçadores de dar ou “vender” as suas crianças para evitar os difíceis tempos de fome, as
mulheres ficariam disponíveis para vir a integrar famílias poligâmicas, que resultavam do
enriquecimento de alguns indivíduos, numa sociedade pastoril em expansão, como seria
a sociedade Khoikhoi.139
Estas modalidades de contacto em algumas regiões específicas terão resultado
numa assimilação entre Khoikhoi e caçadores, dando origem, em termos somáticos, a
uma população mestiça e de maior estatura 140. Aliás, o fenómeno de assimilação ocorreu
tanto entre os Khoikhoi e as comunidades de caçadores, como também com as
comunidades proto-Bantu do Sudeste.
Mas, se a interacção entre grupos ocorreu historicamente, também é certo que os
traços de diferenciação económica, social e de estruturação política se tornaram evidentes
aos observadores exteriores, nomeadamente os que se referem a caçadores não
assimilados, cada vez mais empurrados para as montanhas inóspitas, e aos pastores
136
IDEM, ibidem, pp. 34-35.
137
François-Xavier FAUVELLE-AYMAR, “Histoire d’un point d’eau PELLA: (XVIIIe-XXe Siècle).
Reconfigurations Spatiales et Identitaires dans l’Ouest de l’Afrique du Sud”, (…).
138
Jean-Loup AMSELLE, “Ethnies et espaces: pour une anthropologie topologique”, in Jean-Loup
AMSELLE et Elikia M’BOKOLO, Au Coeur de l’Ethnie. Ethnies, tribalisme et état en Afrique, Paris,
Editions La Découverte, 1985, 24. O autor considera a troca de mulheres um dos elementos estruturantes
das redes de relações que caracterizaram os espaços pré-coloniais.
139
Richard ELPHICK, op. cit., p. 36.
140
IDEM, ibidem, p. 37.
42
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Khoikhoi, em expansão para todas as áreas que pudessem suportar gado, num processo
de mobilidade que foi facilitado pela vantagem de uma maior produtividade, decorrente
da posse de animais domésticos.
Em termos político-sociais, as comunidades Khoikhoi agrupavam-se em
linhagens hierárquicas e ligavam-se entre si através de relações de vassalidade e
aliança.141 Segundo Elphick, as comunidades estavam agrupadas por laços de parentesco
e existiria uma linhagem principal. Era nos “clãs” que emergiam as chefias de forma
hereditária e a sua autoridade baseava-se na capacidade mediadora de conflitos, que a
acumulação de riquezas e a expansão territorial envolveram.
Estas comunidades realizavam a sua existência vivendo no que se veio a designar
de kraals ou aldeamentos compostos por algumas centenas de cabanas dispersas em torno
de um curral de gado, onde os seus animais (bovinos e caprinos) eram recolhidos à noite.
Os animais domésticos estavam no centro do sistema de valores e eram também a base
da riqueza, factor que criou clivagens sociais, sustentou o prestígio das autoridades
políticas e justificou a conflitualidade entre grupos, nomeadamente através de incursões
territoriais.
Entre os grupos de caçadores-recolectores assistimos a padrões de mobilidade
diversos, pois os duros condicionalismos do seu modo de vida levavam a que cada
geração abandonasse os territórios dos seus ancestrais. Elphick considera que ao tempo
dos primeiros contactos com os europeus, estes grupos de caçadores teriam uma espécie
de chefia, tal como existe actualmente entre os !Kung do Botswana e foi observado entre
os Naron e alguns bandos de caçadores do rio Orange (Gariep). Apesar da possível
existência de algum tipo de chefia entre os bandos de caçadores, o igualitarismo e a
ausência de propriedade, bem como o valor do trabalho direccionado para o consumo
imediato, levam a considerar que a organização e as decisões dos grupos seriam tomadas
por consenso.142
141
François-Xavier FAUVELLE-AYMAR, “Histoire d’un point d’eau PELLA: (XVIIIe-XXe Siècle).
Reconfigurations Spatiales et Identitaires dans l’Ouest de l’Afrique du Sud”, (…).
142
Alan BARNARD, op. cit., p. 66.
43
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
“Vjuem estes negros em aldeas piquenas feitas a modo de currays de gado da nossa terra
e dentro no mesmo corral tem suas cazas que são humas uaras arcadas com a pomta ambas
no çhão que serião - 15 - ou / uinte, que todas postas com as pontas no chão e cubertas
com alguma palha mal postas que não defendem a çhuiua, fiqua parecendo a modo de
hum forno em que cozem os padeiros o pão (…) aquy se metem marido e molher filhos
grandes e piquenos e todos quoanto são, de modo que neste curral d’espinhos há duas ou
três choupanas destas que é o tribo ou família de cada hum, e se algum aserta de morrer
loguo tem agouro e se mudão a outro curral nouo que fazem a pouoação de 4 - 5 currais
e em cada hum curral há 3 - 4 - 5 - choupanas também dentro e chama-se ysto huma aldea.
(…) São estes cafres todos desta paragem pretos e compridos e muj bem apeçoados,
trazem os bigodes compridos as barbas tozadas, e a sua mor cortezia na saudação é correr
as mãos por elas huns aos outros, vestem huns mantoims a modo de frades menores de
coiro de bezerro hou de cabra os coais andão tão emgraxados com gurdura de uaqua hou
carnejro que os trazem muito brandos, na cabesa carapusa aguda do mesmo, nos pés huns
44
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
couros duros como couro de doba redomdos (…) tomão muita casa de ueados e outras
alimárias a coso, nas mãos trazem huns paos de tamanho de hum couado deliquado, na
ponta amarrado hum rabo de hum bicho como de rapoza ou rabo de mungus que se auanão
das moscas, trazem na cinta hum sinto do mesmo couro e defronte das naturas
dependurado hum pedaço de couro de largura de quatro dedos o qual lhe não cobrem
nada, desta mesma maneira andão as molheres, não lauão as mãos nem pés nem couza
alguma que ayão de comer que é uaqua e carneiro (…)”.143
143
Perdição da nao Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, costumes dos que a abitão ate o Cabo das
Correntes, in Glória de Santana PAULA, op. cit., p. 128.
144
Christopher SAUNDERS and Robin DERRICOURT (ed.), Beyond the Cape frontier: studies in the
history of the Transkei and Ciskei, London, Longman, 1974, p. 73.
145
IDEM, ibidem.
146
Susan NEWTON-KING, op. cit., p. 32.
45
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Inqua, os Kubuquaas correspondiam aos povos de pele negra, os Xhosa, que possuíam
muito gado e viviam em casas feitas de barro. Estando a uma distância de cinco dias de
caminho, vinham muitas vezes fazer trocas e por vezes tinham grandes inimizades com
os Inquas.147 Os Damaquas também viviam em casas feitas de barro, tinham muita riqueza
em pessoas e gado e dispunham de contas de ferro e cobre que sabiam como obter.
Segundo o informador, para lá dos territórios dos Kubuquaas e Damaquas viviam os
Gonaqua, um povo rico em gado, de quem os Inqua adquiriam “dagha”.148
Devido à sua mistura peculiar com os Xhosa, os clãs Gonaqua atraíram a atenção
dos europeus que viajaram até aos territórios mais extremos, a leste da colónia do Cabo,
e foram referidos noutras fontes do século XVIII. Entre essas outras fontes destacamos o
diário de Carel Albregt Haupt, escrivão ao serviço de uma expedição enviada ao Cabo
oriental, em 1752, sob o comando de August Fredrik Beutler149, e o diário do naturalista
sueco Anders Sparrman, que viajou até à fronteira oriental da colónia do Cabo, nos anos
de 1775 e 1776.150 O conteúdo informativo de tais fontes permite constatar que terá
existido um longo e complexo processo de interacção e mestiçagem entre Gonaqua e
Xhosa.
O único registo escrito que se conhece, anterior à fixação dos holandeses no Cabo,
produzido por uma testemunha presencial e versando as comunidades Khoikhoi da zona
de fronteira e contacto com comunidades bantus, é o já mencionado relato anónimo do
naufrágio da nau Santo Alberto, da última década do século XVI. O texto descreve
fisicamente as populações e as suas pequenas aldeias familiares, nas quais os currais de
gado ocupavam um lugar central, menciona a natureza nómada destas gentes, que não
praticavam o cultivo das terras e que retiravam o seu sustento do pastoreio de vacas e
147
IDEM, ibidem.
148
IDEM, ibidem. A “dagha” / “dagga”, juntamente com o gado, o ferro e o cobre, estava entre os bens que
integravam um comércio de longa distância entre comunidades Khoikhoi e entre estas e comunidades
Bantu. Consistia numa planta da família Cannabaceae (cannabis sativa) cultivada tanto pelas suas fibras,
como pelas sementes e folhas, de efeito intoxicante, muito apreciadas entre os Khoikhoi. Elphick refere o
cultivo de “dagga” entre os Khoikhoi do Cabo Oriental, que a designavam por “Hamcunqua”. Os relatos
de viajantes, oficiais e missionários, posteriores à instalação dos holandeses no Cabo, mencionam o cultivo
em diversos territórios, a sua importância no sistema de trocas e o hábito de fumar as suas folhas, à
semelhança de tabaco. Veja-se Richard ELPHICK, op. cit., pp. 62-63.
149
IDEM, ibidem.
150
Anders SPARRMAN, op. cit.
46
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
151
Perdição da nao Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, costumes dos que a abitão ate o Cabo das
Correntes, in Glória de Santana PAULA, op. cit., p. 128.
152
John ILIFFE, Os Africanos - história dum continente, Lisboa, Terramar, 1999, p. 146.
153
Perdição da nao Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, costumes dos que a abitão ate o Cabo das
Correntes, in Glória de Santana PAULA, op. cit., pp. 131-132.
154
Christopher EHRET, “The Early livestock-raisers of Southern Africa”, op. cit., p. 12.
155
IDEM, ibidem.
156
Perdição da nao Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, costumes dos que a abitão ate o Cabo das
Correntes, in Glória de Santana PAULA, op. cit., pp. 127-128; João Baptista LAVANHA, “Naufrágio da
Nau Santo Alberto no Penedo das Fontes, no ano de 1593 e Itinerário da gente que dele se salvou até
chegarem a Moçambique. Escrito por João Baptista Lavanha Cosmógrafo-mor de Sua Magestade no ano
de 1597”, in Bernardo Gomes de BRITO, História Trágico-Marítima, (anotações, comentários e estudo por
António SÉRGIO), Vol. III, Lisboa, Editorial Sul, 1956, pp. 29-30.
47
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
explica que o momento em que o chefe da comunidade de pastores foi recebido por Nuno
Velho, na praia do naufrágio (Tiombe), a comunicação tenha sido mediada por dois
escravos africanos, sendo um pertença “de Manuel Fernandes Girão, que entendia a
língua destes cafres e falava a de [ilha de] Moçambique, e outro de Antonio Godinho, que
sabia esta, e falava a nossa”.157 Hair já havia chamado a atenção para a questão linguística
num artigo sobre os contactos portugueses com as línguas Bantu no Transkei, Natal e sul
de Moçambique, referindo acerca desta primeira comunicação histórica entre grupos que,
através da acção dos dois intérpretes, o Nguni terá sido traduzido para o Suaíli e o Suaíli
terá sido traduzido para o Português, numa sequência susceptível de estabelecer uma
comunicação verbal, ainda que eventualmente parcial.158
Se admitirmos que a comunicação verbal se efectivou, então temos que considerar
também que estas comunidades de pastores, cujas descrições parecem corresponder aos
traços dos Khoikhoi, estariam em pleno processo de interacção com os povos Nguni,
sendo que a mestiçagem cultural então envolvida se tornava notória pela integração de
traços linguísticos Nguni. Só assim seria possível estabelecer uma comunicação verbal
através de intérpretes falantes de outras línguas Bantu. Um século mais tarde, as fontes
europeias produzidas no contexto da colónia holandesa do Cabo referem-se ao fenómeno
da mestiçagem, que se tornava evidente aos europeus não só pela semelhança dos traços
físicos, mas também pelo modo de vida idêntico, que resultava das trocas comerciais e
dos casamentos.159
Porém, na interpretação do momento do encontro dos náufragos portugueses com
os pastores, podemos colocar a hipótese de um cenário completamente diferente e, neste
sentido, aquilo que João Baptista Lavanha fixou no seu texto podia resultar de uma
construção de carácter literário, própria de um cronista, sem correspondência com a
vivência histórica. Assim, vamos supor que a tradução não se concretizou e a
compreensão verbal não se estabeleceu. O manuscrito anónimo relatando o mesmo
naufrágio não contém informações suficientes que nos permitam inferir que se
estabeleceu uma comunicação verbal mutuamente compreensível. Parece evidente neste
documento, resultante de um testemunho presencial, que grande parte da comunicação
157
João Baptista LAVANHA, op. cit., p. 29.
158
Paul Edward Hedley HAIR, op. cit., pp. 3-46.
159
Susan NEWTON-KING, op. cit., p. 33.
48
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
estabelecida entre os dois grupos seria de natureza não-verbal: o chefe foi recebido numa
alcatifa e quando os portugueses lhe falavam era de joelhos para lhe mostrar reverência
“o qual o negro mal entendia”.160 Diz ainda o texto que o chefe “como pasmado esteue
olhamdo para todos” e que com grandes brados agradeceu ao mar ter trazido às suas terras
gentes tão semelhantes, por terem cinco dedos, olhos, mãos e pés, e ao mesmo tempo tão
diferentes que, pela alvura, deviam ser filhos do Sol. 161 Todo este sentido pode ter sido
inferido a partir de gestos rituais e comunicação não-verbal. Se o texto do náufrago
sobrevivente menciona que Nuno Velho “mandou dizer” pelos intérpretes e que havia
“cafres nossos que os entendião”162, isso não significa que a comunicação verbal se tenha
efectivado através da sequência de traduções entre diferentes línguas Bantu e o Suaíli e,
finalmente, entre o Suaíli e o Português, e que tenham ocorrido respostas ao ponto de se
desenvolver um diálogo.
Parece-nos importante, ainda, destacar que todos os testemunhos históricos
relativos aos primeiros contactos com comunidades Khoikhoi aludem expressamente às
características linguísticas destes povos, sublinhando as particularidades vocálicas dos
cliques; neste caso, estamos perante a inexistência de qualquer referência a estes aspectos
particulares das línguas Khoikhoi.
Se esta primeira comunidade de Tiombe/Tizombe fosse de pastores Khoikhoi, a
comunicação verbal seria dificultada por falta de intérpretes. Coloca-se então a hipótese
destes pastores estarem historicamente em processo de miscigenação com os Nguni, neste
caso, com clãs Xhosa em expansão. A verificar-se esta hipótese, estariam em curso
processos de assimilação, evidentes ao nível linguístico, permitindo o estabelecimento de
algum entendimento com falantes de outras línguas Bantu. Nesta conformidade, parece-
nos essencial atender aos dados cronológicos relativos às listas de reis Xhosa, recolhidas
no século XIX, e que Christopher Saunders e Robin Derricourt apresentam:
Ngcwangu, 1550-1580;
Sikomo, 1580-1610 e, em algumas listas, 1520-1550;
160
Perdição da nao Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, costumes dos que a abitão ate o Cabo das
Correntes, in Glória de Santana PAULA, op.cit, p. 131.
161
IDEM, ibidem.
162
IDEM, ibidem.
49
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
163
Christopher SAUNDERS and Robin DERRICOURT (ed.), op. cit., p. 57.
164
Jeff PEIRES, The House of Phalo. A History of the Xhosa People in the Days of their Independence,
Johannesburg, Jonathan Ball Publishers, 2003, pp. 21-22.
165
IDEM, ibidem.
166
Isabel Castro HENRIQUES, Território e Identidade. A construção da Angola colonial (c. 1872-c. 1926),
Lisboa, Centro de História da Universidade de Lisboa, 2004, p. 22.
50
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
O termo Nguni designa povos que falavam línguas aparentadas (marcadas pela
presença de cliques) e partilhavam alguns aspectos de uma cultura comum. No sentido
restrito, Nguni é um termo linguístico cuja utilização para a história pré-Mfecane167 não
deixa de ser complexa168, pois as alterações climáticas, as fomes e as migrações bem
como as convulsões políticas e militares postas em acção por Dingiswayo e Shaka, no
século XIX, acabaram por obliterar as divisões linguísticas e sócio-políticas anteriores.
Por conseguinte, apenas por referência aos padrões culturais e à linguística podem fazer-
se inferências sobre as possíveis origens dos diversos povos que se fixaram a sul do rio
Limpopo, entre a cadeia montanhosa do uKhalamba-Drakensberg e o Oceano Índico.
Alfred Bryant169 e John Henderson Soga170 parecem ter sido os primeiros
colectores de tradições orais a fazer uso na língua inglesa do termo Nguni, pois até aí a
designação aplicada aos africanos em questão provinha dos observadores europeus, que
os designavam de cafres e kaffirs.
Em 1861, na primeira edição do Zulu English Dictionary, o bispo John William
Colenso sugeria que Nguni era uma outra designação para AmaXhosa. Porém, na quarta
edição de 1905, revista por sua filha Harriette, Nguni adquiriu um sentido mais amplo e
167
A expressão zulu Mfecane, que significa “O Esmagamento”, refere-se a um período de ruptura na
estrutura das sociedades Bantu da África meridional, a partir da década de 20 do século XIX. A
historiografia europeia de finais do século XIX, inícios do século XX, viu no Mfecane um movimento de
construção agressiva das nações Zulu e Ndebele, sob os governos respectivamente de Shaka e Mzilikazi.
Hoje, a visão do Mfecane, como uma catástrofe causada pela agressividade militar do estado Zulu, é
questionada pelas evidências arqueológicas e pelos estudos de dendroclimatologia (Martin Hall) que
mostram que, após um período excepcionalmente húmido (1787-1789), que assistiu a um aumento da
população e das cabeças de gado, seguiu-se um período de seca, causadora de uma grave crise que afectou
o norte do Natal nos inícios do século XIX, conhecida como “Mdalatule Famine”. O anterior crescimento
da população, o esgotamento dos recursos naturais, a devastação pela fome e pela guerra conduziram não
só a extensas migrações de agricultores e criadores de gado, como também ao surgimento do estado Zulu
no seio de uma sociedade Bantu, tipicamente pastoril e descentralizada. A “Mdalatule Famine”
desempenhou um papel decisivo nas mudanças político-sociais marcadas pela centralização e militarização
do estado e pela expansão militar de Shaka. Os chefes Nguni do Norte submeteram-se a Shaka e foram
absorvidos na sua máquina administrativa e o movimento de perturbação militar ao ponto de, aquando da
morte de Shaka, em 1828, nenhum grupo de população da África meridional viver nas suas terras de origem.
Veja-se: Jeff PEIRES, Before and After Shaka. Papers in Nguni History, Grahamstown, Institute of Social
and Economic Research, 1981, p. 9. Philip BONNER, Kings, Commoners and Concessionaires. The
Evolution and Dissolution of the Nineteenth-Century Swazi State, Cambridge, Cambridge University Press,
1982, pp. 21-24.
http://www.britannica.com/EBchecked/topic/379568/Mfecane
168
Shula MARKS and Anthony ATMORE, op. cit., p. 121.
169
Alfred Thomas BRYANT, op. cit..
170
John Henderson SOGA, The South-Eastern Bantu (Abe-Nguni, Aba-Mbo, Ama-Lala), Johannesburg,
Witwatersrand University Press, 1930.
51
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
abrangente, uma vez que designava os amaXhosa, Qwabe e Zulu, bem como outras
formações político-sociais e identitárias.171
John Henderson Soga, descendente de Xhosas e Escoceses, considerava que o
termo Nguni tinha origem num nome próprio, o do pai putativo dos Xhosa.172
Tanto os Xhosa como os Thembu foram considerados por Bryant como Nguni.173
Este autor, juntamente com Soga, referindo-se às migrações Bantu para o sudeste africano
consideraram três ramos principais, sendo um destes ramos o dos Nguni, justificando que
era esse o modo como o povo genericamente se distinguia a ele próprio dos outros ramos,
os Sotho e os Tongas.174
Segundo Clement Martyn Doke, a designação de Nguni refere-se a um dos grupos
linguísticos dos Bantu do Sudeste no qual se englobam línguas que possuem traços
fonéticos e gramaticais comuns, demonstrando entre si um elevado grau de compreensão
mútua, de tal modo que membros de diferentes comunidades podem, sem dificuldades,
comunicar entre si.175 Neste âmbito, parece ser possível estabelecer-se uma conexão entre
as semelhanças linguísticas e a proximidade ou familiaridade cultural. O Nguni integra-
se num conjunto linguístico mais amplo, marcado por uma relativa homogeneidade dentro
da categoria Bantu, que Doke designou de “Southern Bantu” e que Malcolm Guthrie
classificou como integrando o “Grupo - S”176 da África Austral.
Apesar de existirem traços culturais que conferem uma determinada unidade aos
povos Nguni, apenas pode estabelecer-se a sua área de implementação em termos
linguísticos, dado o fenómeno dos “empréstimos” ao nível dos costumes, fruto da
interacção histórica com os outros grupos.177 Carolan Postma Ownby reforça a definição
de Nguni como um grupo linguístico distinto, dentro da família dos Bantus do Sudeste,
compreendendo falantes que podem ser encontrados no Transvaal (Ndebele do
Transvaal), Lesotho, Swazilandia e, a este do Drakensberg, estendendo-se, a norte, até à
171
Shula MARKS and Anthony ATMORE, op. cit., p. 122
172
IDEM, ibidem, p. 123.
173
IDEM, ibidem.
174
IDEM, ibidem.
175
Clement Martyn DOKE, The Southern Bantu Languages, London – New York – Cape Town,
International African Institute by the Oxford University Press, 1954, p. 20.
176
Paul Stuart LANDAU, Popular Politics in the History of South Africa, 1400-1948, New York,
Cambridge University Press, 2010, 49.
177
Monica WILSON e Leonard THOMPSON, The Oxford History of South Africa - (South Africa to 1870),
Vol. 1, Oxford, Clarendon Press, 1969, p. 76.
52
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
178
Carolan Postma OWNBY, Early Nguni History the Linguistic Evidence and its correlation with
Archaeology and Oral Tradition, Dissertation for the degree of Doctor of Philosophy in History, Los
Angeles, University of California, 1985, (texto policopiado), p. 6.
179
IDEM, ibidem, p. 7.
180
Perdição da nao Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, costumes dos que a abitão ate o Cabo das
Correntes, in Glória de Santana PAULA, op.cit, p. 116.
181
Anaïs LEBLON, “Le Pulaaku. Bilan critique des etudes de identité peule en Afrique de l’Ouest”, in
RAHIA (Recherches en Anthropologie & en Histoire de l’Afrique), N.º 20, Aix-en-Provence, Éditions du
Centre d’Étude des Mondes Africains, 2006, pp. 5-6.
182
Jeff Peires adopta o conceito de izizwe no sentido de clã ou nação, a partir de H. Lichetenstein (1812-
1815), que estaria bem informado pelas conversações com Johannes Van der Kemp (1804) e Ludwig
Alberti (1810). Cf. Jeff PEIRES, The House of Phalo. A History of the Xhosa People in the Days of their
Independence, (…), ps. 20 e 220.
53
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
183
IDEM, ibidem, p. 23.
184
Jeff PEIRES, Before and After Shaka. Papers in Nguni History, (…), p. 125.
185
Jeff PEIRES, The House of Phalo. A History of the Xhosa People in the Days of their Independence,
(…), pp. 18-21.
186
Jeff PEIRES, Before and After Shaka. Papers in Nguni History, (…), p. 125.
187
De acordo com Paul Landau, “a Casa” designa um componente da herança política dos povos Bantu do
grupo-S. “A Casa” indica uma antiga tradição de associação, herança e unidade na raiz das políticas de
todos os povos agricultores, aceitando e integrando todos os seus estabelecimentos. Envolvia direitos
recíprocos das gentes e abria as possibilidades de fixação de imigrantes, que desejassem subordinar-se ao
chefe reinante, ou de aliança de agricultores e as respectivas mudanças de identidade comunitária. A Casa
era, entre outras coisas, o segmento maternal constituído pela “cabana”, habitação, aldeia que estava longe
de corresponder a um grupo de parentesco homogéneo. Cf. Paul Stuart LANDAU, op. cit., pp. 49-50.
188
Jeff PEIRES, The House of Phalo. A History of the Xhosa People in the Days of their Independence,
(…), p. 21.
189
Jeff PEIRES, Before and After Shaka. Papers in Nguni History, (…), p. 126.
54
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
variaram ao longo dos tempos, fazendo-se a sua expansão não só através de conquistas,
mas também pela incorporação voluntária de indivíduos ou grupos de origem exterior.190
Os limites dos Xhosa não eram étnicos, nem geográficos, mas sim políticos: todas as
pessoas ou grupos que aceitavam o governo da Casa de Tshawe tornavam-se Xhosas.191
As comunidades Xhosa foram-se instalando entre o rio Great Fish e o rio
Mzimkulu, beneficiando das características da zona temperada, livre da mosca portadora
da tripanosomíase e do mosquito da malária, o que permitiu a prática simultânea das
actividades da criação de gado e da agricultura.192
Os náufragos de navios portugueses que percorreram estes territórios mencionam
as grandes extensões sem ocupação humana que se sucediam a áreas densamente
povoadas.193 Trata-se provavelmente dos territórios entre chefaturas, que se estendiam
para além das áreas das aldeias em todas as direcções. Nestas terras de fronteira, as
comunidades praticavam a caça e a recolecção que complementavam a pastorícia e a
agricultura e, em tempos de crise, serviam até como reserva para pastagens.194
Os aldeamentos, que se dispersavam de acordo com as áreas de influência fluvial,
localizavam-se preferencialmente nas encostas das serras, sendo a disposição das
habitações organizada de forma semi-circular, em volta de um curral de gado feito de
ramagens de árvores. À semelhança das comunidades Khoikhoi, o curral funcionava
como o centro das actividades sociais. O espaço entre as habitações e o curral (inkundla)
revestia-se da maior importância, pois era aí que se dava o encontro simbólico com os
ancestrais.195 Entre o aldeamento e o ponto de água que assinalava o seu território,
190
Jeff PEIRES, The House of Phalo. A History of the Xhosa People in the Days of their Independence,
(…), p. 20. Sobre a integração de indivíduos não aparentados, Peires refere para um período mais recente
o caso documentado de Hermanus Matroos, herói da 8ª Guerra de Fronteira que atravessou a fronteira da
colónia como escravo fugitivo, tendo sido admitido entre o clã de Jwara. A documentação portuguesa
também testemunha diversos casos de indivíduos sobreviventes de naufrágios que, impossibilitados de
caminhar ficaram entregues aos cuidados dos chefes das aldeias, sendo posteriormente integrados na
composição social dos clãs. Estes exemplos de integração mostram que os clãs, enquanto sociedades sócio-
políticas, não eram entidades constantes e imutáveis, mas sim corpos sociais dinâmicos e abertos.
191
Paul Stuart LANDAU, op. cit., p. 85.
192
Jeff PEIRES, Before and After Shaka. Papers in Nguni History, (…), p. 4.
193
Perdição da nao Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, costumes dos que a abitão ate o Cabo das
Correntes, in Glória de Santana PAULA, op.cit, pp. 140-142, 146-147 e p. 151.
194
Jeff PEIRES, Before and After Shaka. Papers in Nguni History, (…), p. 4; Christopher SAUNDERS
and Robin DERRICOURT (ed.), op. cit., pp. 56-57.
195
Jeff PEIRES, The House of Phalo. A History of the Xhosa People in the Days of their Independence,
(…), p. 8.
55
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
ficavam as terras cultivadas. Vários clãs estavam sujeitos à autoridade de um chefe, cuja
morada estaria situada no meio dos territórios das aldeias. 196
A posição do curral, como centro em torno do qual se organizavam as habitações
familiares, mostra bem a importância do gado para estas sociedades Bantu. Era pelo
número de cabeças de gado que se demarcavam os estatutos sociais, que se diferenciavam
as posses dos homens comuns da riqueza dos chefes e que se sustentava o poder político,
bem como as obrigações, as fidelidades e as alianças que se lhe associavam. Mas, o valor
do gado era também central no estabelecimento de relações entre diferentes linhagens,
pois constituía um elemento central na troca de presentes entre noivos, que em zulu se
designa lobola197 e em xhosa ikhazi. No processo de construção de uma associação entre
duas famílias, com novas relações de sangue, a aliança era consagrada em rituais em que
os abapantsi (membros do clã já partidos e que operavam a partir do mundo espiritual)
eram convidados e que participavam numa comunhão espiritual através do sacrifício de
um animal. Neste sentido, o gado era um pilar da estruturação social, da construção
identitária e da relação dos homens com o mundo dos espíritos, tendo significados
cosmológicos com profunda influência na vida de todos os dias.198
À excepção do leite extraído, o gado não constituía uma fonte de alimento
principal. Apenas como oferta cerimonial ou quando morria um animal era comido. A
base alimentar provinha do cultivo dos campos, do labor das mulheres, a quem os
cuidados do gado eram vedados. Tanto a actividade masculina da pastorícia, como os
produtos da terra decorrentes da actividade feminina, eram centrais na troca social do
casamento, mas também em outras trocas hierárquicas: entre os ancestrais e os seus
196
Christopher SAUNDERS and Robin DERRICOURT (ed.), op. cit., p.56.
197
Nas sociedades Bantu do Sudeste, existia (e persiste ainda) o costume de transferir para a família da
noiva um valor em cabeças de gado (lobola) como forma de ratificar a união entre duas famílias, ou isintu.
A mulher passava da sua família natal para a fundação de uma nova família, através de uma recompensa
em gado. Este último não tinha apenas um valor económico, mas tinha um poderoso valor simbólico,
estando associado à fertilidade, nas dimensões humana e cósmica. Esta troca assume uma variedade de
formas ideológicas, rituais e organizacionais, no âmbito da vida cultural da África do Sudeste. Para Adam
Kuper, lobola é um dos complexos institucionais que imprimem carácter a um conjunto de culturas
relacionadas. Segundo Huffman, a partir de escavações levadas a efeito em Broederstroom, a tradição
provavelmente já existiria na Primeira Idade do Ferro (Early Iron Age). A presença deste padrão hoje e no
passado arqueológico revela a existência de povos com os mesmos atributos culturais e indica também o
valor deste costume estruturante na visão do mundo destas sociedades. Cf. Thomas HUFFMAN, “The
Antiquity of lobola”, in Southern African Archaeological Bulletin, 53, 1998, pp. 57-62; Adam KUPER,
Wives for cattle: bridewelth and marriage in Southern Africa, London, Routledge & Kegan Paul, 1982.
198
Nicola ANSELL, “‘Because it’s Our Culture!’ (Re)negotiating the Meaning of Lobola in Southern
African Secondary Schools”, in Journal of Southern African Studies, Vol. 27, Nº 4, Dezembro, 2001, pp.
698-704.
56
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
199
Adam KUPER, op. cit., p. 10.
200
Monica HUNTER, Reaction to Conquest. Effects of Contact with Europeans on the Pondo of South
Africa, London, International African Institute of Oxford University Press, 1961, p. 134.
201
Carolan Postma OWNBY, op. cit., p. 158.
202
Thomas HUFFMAN, “The Central Cattle Pattern and interpreting the Past”, in S.A.H., Vol. 13, 2001, p.
23.
57
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
De acordo com este modelo são enfatizados os princípios fundamentais que dão
ordem a uma sociedade, que estabelecem as relações entre os componentes físicos da
aldeia e os conceitos ligados ao parentesco e às forças da vida. Segundo Tom Huffman,
o “Central Cattle Pattern” original deriva da visão do mundo de dois grandes grupos
Bantus do Sudeste da África meridional, os Nguni e os Sotho-Tswana, que partilham uma
ideologia patrilinear, a preferência pelo gado na lobola, a hereditariedade da chefia por
via masculina e certas crenças sobre o papel dos ancestrais na vida diária.203
Huffman demonstrou a aplicação deste modelo em escavações da 1ª Idade do
Ferro (Early Iron Age) e aponta como exemplos KwaGandaganda, no vale do rio Umgeni,
província de KwaZulu-Natal, e Broederstroom, entre Johannesgurg e Pretória.204 Os
dados recolhidos nestes dois sítios arqueológicos apoiam de tal forma o modelo do
“Central Cattle Pattern”, durante a 1ª Idade do Ferro, que, segundo Huffman, se torma
inconcebível que noutros aldeamentos contemporâneos com idêntica assinatura cultural-
material e, por conseguinte, idêntica linguagem e visão do mundo, pudesse haver
organizações sociais e espaciais do aldeamento marcadamente diferentes. 205 O “Central
Cattle Pattern” demonstrara uma organização culturalmente específica de acordo com a
qual a cerca de gado se localiza no centro da aldeia, sendo este rodeado por habitações
que se organizam de forma circular ou semi-circular. O curral central é associado às
actividades masculinas, enquanto a área residencial ou doméstica é predominantemente
feminina. Se os textos do século XVI descrevem estabelecimentos sedentários que podem
corresponder ao padrão descrito, são insuficientes quanto a outros elementos
fundamentais que estruturam de forma mais completa a compreensão do passado. A
arqueologia fornece-nos outros dados materiais, como o dos sepultamentos e das áreas de
fundição, que tanto podem ocorrer fora da área da aldeia, como nas próprias áreas
domésticas.206 Sítios arqueológicos como Ndondondwane, na bacia do baixo Tukela,
suscitaram um debate aberto entre os arqueólogos da Idade do Ferro na África do Sudeste,
203
IDEM, ibidem, p. 21.
204
Em Broederstroom está atestada a prática da mineração em associação com uma área residencial em
torno de uma cerca de gado contendo, pelo menos, um enterramento de prestígio, uma cova de
armazenamento de estrume e restos de dois outros enterramentos, duas áreas de forja com grande
quantidade de escórias associadas e o chão de duas cabanas próximas. Um nível de ocupação mais elevado
continha chãos de três cabanas e quatro contentores de cereais. Cf. IDEM, ibidem, p. 30.
205
IDEM, ibidem.
206
Duncan MILLER & Gavin WHITLAW, “Early Iron Age metal Working from the site of
Kwagandaganda, Natal, South Africa”, in South African Archaeological Bulletin, 49, 1994, pp. 79-89.
58
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
207
Haskel Joseph GREENFIELD, Duncan MILLER, “Spatial patterning of Early Iron Age metal
production at Ndondondwane, South Africa: the question of cultural continuity between the Early and Late
Iron Ages”, in Journal of Archaeological Science, 31, 2004, pp. 1511-1532; Haskel Joseph GREENFIELD,
“On the Nature of daga houses, kraals, metallurgy and intra-settlement spatial organization of EIA
settlements in Southern Africa: a response to Whitelaw”, in Azania, XLI, 2006, pp. 165-178. Greenfield
sugere uma revisão do modelo “Central Cattle Pattern” na compreensão da natureza da sociedade no EIA.
Cf. ibidem, p. 175.
208
Tracy LUEDKE, “Gendered states. Gender and agency in economic models of Great Zimbabwe”, in
Karen Anne PYBURN (Editor), Ungendering Civilization, New York-London, Routledge, 2004, pp. 47-
70. Tracy Luedke critica o modelo “Central Cattle Pattern” devido à análise se expressar espacialmente
através de dicotomias, tais como: estatuto elevado/estatuto baixo; direita/esquerda; dentro/fora; e
masculino/feminino. Cf ibidem, p. 56.
209
Deve sublinhar-se que, neste nível de profundidade cultural, a semelhança entre o presente e o passado
não nega a historicidade destas sociedades, antes pelo contrário, permite conhecer o contexto no qual têm
desenvolvido a sua história.
210
Tim MAGGS, “Patterns and perceptions of Stone-built settlements from the Thukela Valley, Late Iron
Age”, in Annals of the Natal Museum, Vol. 29(2), Outubro 1988, pp. 417-432. Sobre as gravuras em rocha,
pp. 425-431.
59
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
211
Jeff PEIRES, Before and After Shaka. Papers in Nguni History, (…), p. 6.
212
IDEM, ibidem, p. 132.
213
IDEM, ibidem, p. 133.
214
IDEM, ibidem, pp. 135-136.
215
Charles Pacalt Brownlee era o filho mais velho do reverendo John Brownlee, nascido na Escócia, em
1791, e enviado para o Cabo Oriental como missionário, ao serviço da London Missionary Society, tendo
sido o fundador da cidade de King William’s Town, onde faleceu, a 21 de Dezembro de 1871. Seu filho
mais velho, Charles, nasceu no Cabo Oriental, em 1821. Cedo saiu de casa dos seus pais para acompanhar,
como intérprete, os missionários americanos no Natal, pois dominava as diversas línguas dos Nguni do Sul.
60
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
“Ten or twelve generations back, the Pondos under their chief Tahle were settled near the
coast on both banks of the Umzivumbu, and about this time, judjing genealogically, the
Xesibes under Di, the ancestor of Jojo, migrating from the Impafane, a tributary of the
Tugela, settled on the Umtavuna which now forms the boundary between the Colony of
Natal and Pondoland”.216
Mais tarde, fixou-se como fazendeiro na zona que assistiu às sangrentas “Guerras Xhosa” ou “Guerras de
Fronteira”, tendo mediado a paz assinada no final da sétima destas guerras (1846-1847), ocorrida nas
margens do rio Keiskamma, entre as tropas do poder colonial e os guerreiros do chefe Sandile (Gaika). Pelo
profundo conhecimento das línguas e costumes locais, Brownlee ocupou a posição de Secretário dos
Assuntos Nativos e Comissário da Administração da Justiça para os Gaika. As suas Reminiscências sobre
a vida e a história Kaffir são, acima de tudo, um testemunho contemporâneo da vida dos povos forçados a
integrar a British Kaffraria.
216
Brownlee esteve na Terra dos Pondo em 1836, como Secretário dos Assuntos Nativos. Cf. Charles
BROWNLEE, Reminiscences of Kaffir Life and History, and Other Papers, Lovedale, Lovedale Mission
Press, 1896, ps. 82 e 195.
217
Jan VANSINA, “Once upon a Time: Oral Traditions as History in Africa, Daedalus, vol. 100, Nº. 2,
The MIT Press, 1971, p. 447. http://www.jstor.org/stable/20024011 (consultado em 20/08/2021)
218
Hazel CRAMPTON, The Sunburnt Queen, Johannesburg, Jacana, 2005 (reimpressão da edição de 2004),
p. 47. As listas apresentadas pela autora baseiam-se sobretudo nos levantamentos da tradição oral presentes
na obra de John Henderson SOGA, op. cit..
219
William David HAMMOND-TOOKE, “Segmentation and Fission in Cape Nguni Political Units”, in
Africa: Journal of the International African Institute, Vol. 35, No. 2 (Apr., 1965), pp. 143-167. Jeff
PEIRES, “The rise of the «Right-Hand House» in the History and Historiography of the Xhosa”, in History
in Africa, vol. 2, 1975, pp. 113-125. Entre os Nguni, as unidades sócio-políticas genealogicamente
aparentadas formavam um grupo e reconheciam por soberano o chefe da formação mais antiga. Através da
segmentação e da cisão na linha de sucessão estebeleciam-se novas unidades políticas. O processo de
fragmentação foi facilitado pela existência da “Grande Casa” e da “Casa da Mão Direita”, à qual o costume
reconhecia a possibilidade de se separar e fundar a sua própria autoridade.
61
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Os Mpondo, tal como os Xhosa, fixavam as suas aldeias ao longo das colinas,
virados para leste, e tinham nos currais de gado a sua maior riqueza material, social,
económica e espiritual.
220
As comunidades que formaram o povo Hlubi viviam, antes do século XVIII, a norte do rio Mzinyathi
(rio Buffalo). Durante o século XVIII fixaram-se numa área entre as montanhas doDrakensberg e os
afluentes do rio Thukela: os rios Mpofana (Mooi), Mtshezi (Bushmans), Msuluzi, Njesuthi e Mnambithi
(Klip). Este povo tinha na metalurgia uma importante actividade e era intermediário no comércio do minério
de ferro, que importava, transformava e exportava para outras comunidades muitas centenas de quilómetros
a sul, entre as quais os Mpondo. Veja-se John WRIGHT e Andrew MASON, The Hlubi Chiefdom In
Zululand-Natal, a History, Ladysmith, Ladysmith Historical Society, 1983, p. 8.
221
Jeff PEIRES, The House of Phalo. A History of the Xhosa People in the Days of their Independence,
(…), p. 109.
222
Perdição da nao Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, costumes dos que a abitão ate o Cabo das
Correntes, in Glória de Santana PAULA, op.cit, p. 147.
62
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Foi nestas terras, correspondentes à região do Natal, que os náufragos da nau Santo
Alberto (1593) destacaram uma zona de abundância a que puseram o nome de “Vale da
Misericórdia”.224 Aqui resgataram vacas, cabras, galinhas, leite, manteiga, mel, grãos,
feijão e milho em troca de pregos, pedaços de cobre, caldeirões, bem como contas de
vidro e de coral, que ofereciam aos chefes que lhes providenciavam guias. São descritos
os prados cobertos de gado que se estendiam para além das aldeias povoadas de muita
gente. A abundância destas comunidades provinha, não apenas do pastoreio, mas também
do amanho da terra. Cada família cultivava o suficiente para se alimentar e os excedentes
destinavam-se às trocas. A recolecção de frutos e raízes e a caça certamente
complementariam a dieta destas comunidades.
223
Andrew DUMINY e Bill GUEST, Natal and Zululand, from Earliest Times to 1910. A New History,
Pietermaritzburg, University of Natal Press, 1989, p. 36.
224
Perdição da nao Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, costumes dos que a abitão ate o Cabo das
Correntes, in Glória de Santana PAULA, op.cit, p. 149.
225
IDEM, ibidem, p. 145.
226
Monica WILSON and Leonard THOMPSON, op. cit., p. 85.
227
Perdição da nao Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, costumes dos que a abitão ate o Cabo das
Correntes, in Glória de Santana PAULA, op.cit, p. 155.
228
IDEM, ibidem, p. 158.
63
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
229
IDEM, ibidem, p. 159.
230
IDEM, ibidem.
231
Carolan Postma OWNBY, op. cit., pp. 91-93.
232
William David HAMMOND-TOOKE, The Bantu-speaking Peoples of Southern Africa, (…), p. 61.
233
Foi provavelmente a esta lagoa (actual Richard’s Bay) que os sobreviventes do naufrágio da nau S. Bento
(1554) chamaram de “Ponta da Pescaria”. Cf. Andrew DUMINY e Bill GUEST, op. cit., p. 40.
234
Carolan Postma OWNBY, op. cit., p. 85.
64
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
de gado em maior escala, viviam em grandes aldeias, teriam uma maior coesão política e
praticavam o comércio a longa distância. Para norte, tinham como vizinhos, os povos
pertencentes ao grupo linguístico Nos textos do século XVI encontramos também
referências a pequenos grupos de caçadores, populações não absorvidas por estas grandes
formações culturais, nem em termos da estrutura sócio-económica, nem em termos
linguísticos e culturais.
“Limpopo mobile belt” foi a designação atribuída pelos geólogos ao vale do rio
Limpopo e alguns dos seus afluentes, devido às variações fluviais aí ocorridas ao longo
dos tempos. Este factor, conjugado com os processos de erosão de milhões de anos, fez
com que no curso médio do rio se formassem grandes afloramentos de arenito e terraços
fluviais, ao lado de outros afloramentos basálticos e diques de dolerite.235 A vegetação
alternou entre a floresta de palmeiras ilala (Hyphaene natalensis), nos períodos mais
húmidos, e uma maior escassez na cobertura vegetal, que caracterizou os períodos mais
áridos, destacando-se as árvores de mopane (Colophospermum mopane), os imbondeiros
(Adansonia digitata) e outras espécies como Salvadora angustifolia236, ainda hoje
predominantes na paisagem.
O vale deste rio, a que os historiadores atribuem um papel de marcador fronteiriço
na África meridional, forneceu desde sempre recursos aos grupos de caçadores-
recolectores. Atraídos pelas águas e também por outros recursos como os minérios e as
manadas de elefantes, comunidades pertencentes à cultura Zhizo e, posteriormente, outro
povo pertencente à cultura Leopard’s Kopje, fixaram-se na bacia média do Limpopo e
fundaram entre cerca do ano 900 e o século XIII poderosos reinos, cujos vestígios
materiais foram exumados em sítios arqueológicos da margem sul, como Schroda, K-2 e
Mapungubwe.237 Entre a assinalável diversidade de vestígios, encontrados na bacia do
235
Thomas HUFFMAN, Mapungubwe. Ancient African Civilisation on the Limpopo, Johannesburg, Wits
University Press, 2001, p. 8.
236
IDEM, ibidem.
237
Andrie MEYER, The Archaeological Sites of Greefswald: Stratigraphy and Chronology of the Sites and
a History of Investigations, Pretoria, University of Pretoria, 1998. Do mesmo autor, “K2 and
65
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Mapungubwe”, Goodwin Series, vol. 8, South African Archaeological Society, 2000, pp. 4–13.
https://doi.org/10.2307/3858042 (consultado em 22/08/2021)
238
David BEACH, The Shona &Zimbabwe (900-1850). An Outline of Shona History, London, Heinemann,
1977, p. 3.
239
Malyn NEWITT, História de Moçambique, Lisboa, Publicações Europa-América, 1997, p. 46.
240
IDEM, ibidem, p. 47.
66
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
considerado o autor colectivo que desenvolveu o estado do Zimbabwe, mas que não se
pode provar que existitiria como tal em 1400.241 O arqueólogo e historiador de arte, Peter
Garlake, exprime também as suas reservas quanto à designação de Shona para os séculos
XV e XVI, considerando que a influência do Grande Zimbabwe tem sido exagerada e que
vários outros centros partilharam a paisagem à sua volta.242
Nas terras planálticas a sul do Zambeze distinguem-se duas áreas predominantes:
a região do Dande, correspondente às terras do norte, aptas para a agricultura, e a região
de Guruuswa, uma espécie de “Crescente” entre o Save e o Limpopo, nas terras altas do
sul, mais secas e apropriadas à criação de gado.
As comunidades humanas aqui existentes praticavam a agricultura, a mineração
do ouro e tinham no gado a sua principal riqueza. A análise das tradições cerâmicas,
nomeadamente a decoração e a grande diversidade de formas do vasilhame produzido,
tem funcionado como um marcador cultural que permite observar as variações ocorridas
de uma região para outra e ao longo do tempo. Uma das classificações latas, mas não
universalmente aceite, é a de que a cerâmica do planalto zimbabweano, em Guruuswa, se
integra no vasto “Complexo Chifumbaze”, associado à chegada dos povos Bantu nos dois
primeiros séculos do primério milénio d.C..243 Beach pretende ver um continuum entre as
primeiras comunidades de agricultores, presentes no planalto desde c. de 200 e os povos
Shona, que considera terem vivido nas terras do Crescente desde antes de 1500. Esta
posição, muito discutível, baseia-se na própria continuidade dos estilos cerâmicos do
sudoeste do planalto.244
Na zona do “Grande Crescente”, particularmente nos territórios entre o Save e o
Limpopo, destacou-se a cultura conhecida por Leopard’s Kopje, correspondente a
sociedades que viviam no topo das colinas rochosas, onde as aldeias cresciam à medida
que aumentavam as manadas de bovinos e se intensificava a mineração do ouro.
Pelo menos desde c. de 1100, que se afirma uma dinastia reinante, do grupo
Gumanye, associado à cultura Leopard’s Kopje, cujo poder e riqueza se correlacionam
com o aumento de cabeças de gado e o estabelecimento de rotas comerciais entre as
jazidas auríferas do sudoeste do planalto e a costa índica. A elite governativa tornou-se
241
Paul Stuart LANDAU, op. cit., p. 44.
242
IDEM, ibidem, p. 45.
243
David BEACH, The Shona and their Neighbours, (…), p. 35.
244
IDEM, ibidem, p. 39.
67
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
poderosa e rica com a acumulação de gado, a que se juntou o controlo direto das áreas de
mineração, a taxação da extração mineira e dos mercadores em trânsito, que pagavam
uma percentagem dos bens de comércio que desejavam trocar por ouro e marfim.245
Descobertas arqueológicas feitas na baía de Vilanculos, em frente ao arquipélago
do Bazaruto, parecem apontar para a existência nesse local de um dos mais antigos centros
de comércio costeiro, onde foram encontradas cerâmicas persas e vidraria islâmica, assim
como contas de vidro amarelas, verdes e azuis, análogas às de K-2 e Shroda. Segundo
Thomas Huffman, algumas contas azuis tubulares desta série são do mesmo tipo que as
contas de vidro mais antigas encontradas no Zimbabwe.246 Os contactos das sociedades
do planalto com as cidades-estado do litoral Índico consolidaram o poder da elite e, em
breve, os centros urbanos do planalto destacariam áreas circundadas com muros de pedra
(os zimbabwes), que se identificavam com o espaço do grupo dirigente.
A estrutura urbana do Grande Zimbabwe atesta uma história de acumulação de
poderes, em que se conjugam o político, o económico e o religioso, bem como uma
crescente complexidade social. Para Huffman, tal complexidade é expressa no próprio
esquema urbano do Grande Zimbabwe. O gado, considerado capital e elemento de
riqueza, não era guardado no centro.
Enquanto para os povos Nguni, do sul do Limpopo, foi constatada a presença de
um padrão de organização do espaço social, que Huffman designou de “Central Cattle
Pattern” (CCP), para o Zimbabwe, o mesmo arqueólogo observou um esquema urbano
diferenciado que designou de “Zimbabwe Plan” (ZP). Nas cidades ZP, não só o curral de
gado ficava fora da corte dos homens, como também existia um centro complexo e
diferenciado que albergava a torwa247e outras instituições de género. Este padrão urbano,
que proliferou entre os povos falantes de línguas pré-Shona, no ambiente pós 1400, teria
245
David BEACH, “Cognitive Archaeology and Imaginary History at Great Zimbabwe”, in Current
Anthropology, vol. 39, no. 1, 1998, p. 56. www.jstor.org/stable/10.1086/204698 (Consultado em
8/07/2020)
246
Thomas HUFFMAN, “L’Afrique méridionale au sud du Zambèze”, in Histoire Generale de l’Afrique,
III. L’Afrique du VIIe au XIe siècle, Paris, UNESCO/NEA, 1990, p. 719.
247
Torwa é, de acordo com David Beach, a designação Shona para um conjunto de membros da elite
governativa não ligados pelo parentesco, que residiam num determinado espaço, dentro do perímetro do
Grande Zimbabwe. Veja-se David BEACH, “Cognitive Archaeology and Imaginary History at Great
Zimbabwe”, in Current Anthropology, (…), p. 57.
www.jstor.org/stable/10.1086/204698 (Consultado em 8/07/2020)
68
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
248
Paul Stuart LANDAU, op. cit., p. 45.
249
IDEM, ibidem, p. 101.
250
Alberto da Costa e SILVA, A Enxada e a Lança. A África antes dos portugueses, São Paulo, Editora
Nova Fronteira -Editora da Universidade de S. Paulo, 1992, p. 408.
251
“Carta de Diogo de Alcáçova para El-Rei”, in Documentos sobre os Portugueses em Moçambique e na
África Central, Vol. I (1497-1506), Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, National Archives
of Rhodesia and Nyasaland, 1962, pp. 388-401. (Doravante D.P.M.A.C.).
252
Malyn NEWITT (Editor), East Africa. Portuguese Encounters with the World in the Age of Discoveries,
(…), p. xviii.
69
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
palavra que definiu os actores da elite política que construíram o Estado do Grande
Zimbabwe. Butua, como Estado satélite do Grande Zimbabwe assistiu à emergência da
dinastia Changamira, que havia de construir os seus estabelecimentos ao longo do rio
Save. Trata-se das chefaturas Rozvi que floresceram a norte do Limpopo, cujas estruturas
urbanas incluem fortificações em pedra, num novo tipo de povoamento identificado por
Maggs como “tipo – V”.253
Posteriormente, em meados do século XV, o Estado do Mutapa, sediado na região
de Dande, entre os rios Mazowe e Hunyani (Manyame), conquistou todas as terras ao sul
do Zambeze e ao longo da costa até ao rio Save. A rota prioritária de ligação do interior
aos litorais do Índico passava a fazer-se através do rio Zambeze e seus afluentes, que se
desenvolveu, de forma crescente, como um espaço de interacção mercantil, conhecido na
documentação portuguesa como Rios de Cuama, Rios de Sofala ou Rios de Sena.254
Este eixo do poder político e económico, exercido por dinastias Caranga, no norte
do planalto, entrou em contacto com os portugueses, que estabeleceram relações
comerciais com o litoral desde os primeiros anos do século XVI. As fontes portuguesas
coevas mencionam as sociedades e os poderes do planalto como “Caranga” /
“Mocaranga”, associando esta designação aos construtores do complexo urbano do
Grande Zimbabwe e aos fundadores do famoso reino do Muene Mutapa. Isaacman
também designa estes Esatdos por “Karanga”, não adoptando o etnónimo Shona.
Em finais do século XVI, Frei João dos Santos diferenciava em termos linguísticos
os Mocarangas dos Botongas: aos habitantes do reino do Monomotapa “(…) chamam
mocarangas, porque todos falam a língua mocaranga; e por essa razão chamam também
a todas estas terras o Mocaranga, tirando as fraldas do mar destes reinos, porque em alguas
delas falam outras línguas diferentes, particularmente a língua botonga, polo que chamam
às mesmas terras Botonga, e aos habitadores delas botongas”.256
Enquanto os primeiros – os Carangas – exercem um domínio político-cultural
sobre as sociedades do planalto, os segundos – os Tongas – são descritos como um povo
253
Paul Stuart LANDAU, op. cit., p. 53.
254
Eugénia RODRIGUES, op. cit., p. 25.
256
Frei João dos SANTOS, Etiópia Oriental e Vária História de Cousas Notáveis do Oriente, (Introdução
de Manuel LOBATO; Notas de Manuel LOBATO e Eduardo MEDEIROS; Coordenação da fixação do
texto por Maria do Carmo Guerreiro VIEIRA), Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 1999, pp. 204-205.
70
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
“(…) porque o Reino de Inhambane fica junto do Cabo das Correntes pera a banda do
Cabo de Boa Esperança, e do rio de Inhambane pera a banda da Índia vai correndo outro
Reino chamado Botonga, e acaba junto do rio da Sabia, de que é Rei o Sedanda, cujo
Reino vem correndo até perto de Sofala, e em Sofala se começa o Reino do Quiteve, e
chega até o rio de Tendanculo, e daqui corre o Reino do Manamotapa até o rio de Luabo;
e deste rio de Luabo até Moçambique são cento e trinta léguas ao longo da costa. Nas
quais terras há muitos reis de diferentes castas, e nações de cafres, e nenhum destes, nem
dos mais que nomeámos, paga tributo, nem vassalagem ao Manomotapa, antes todos são
livres, e supremos, e alguns deles têm guerra com o mesmo Manamotapa, como já
dissemos. Donde fica claro não estarem os Reinos de Inhambane, e do Manamotapa
juntos entre Sofala, e Moçambique, senão mui distantes, e apartados um do outro; nem
menos estes reis serem vassalos do Manamotapa, nem lhe pagarem tributo, nem menos
andarem seus filhos na sua corte.”. 257
257
IDEM, ibidem, pp. 218-220.
258
David BEACH, The Shona and their Neighbours, (…), p. 25.
259
IDEM, ibidem, p. 26.
71
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
As terras baixas entre o Cabo das Correntes e o norte do Natal eram espaços
habitados por comunidades Tsonga. As fontes portuguesas destacam, na foz do Limpopo,
os chefes da linhagem Inhaca, que controlavam o comércio da península e ilhas a sudeste
da baía de Lourenço Marques e com quem os portugueses estabeleciam o trato do
marfim.262
A historiografia do grupo linguístico Tonga-Tsonga tem sido marcada por uma
falta de consenso no que se refere tanto à classificação, como às relações entre os vários
povos que a falaram. Desde os trabalhos do missionário e etnógrafo suíço, Henri
Alexandre Junod263, que se estabeleceu uma problemática terminológica em torno deste
grupo linguístico africano. O termo ‘Tonga’, um empréstimo Nguni (Zulu), usado no
século XIX para se referir aos povos conquistados das áreas costeiras a norte do Natal,
foi usado com o mesmo sentido pejorativo em várias chefaturas do sul de Moçambique,
sendo que, pelo menos uma destas chefaturas seria mais tarde classificada como falando
língua Tsonga.
260
Allen ISAACMAN, Mozambique. The Africanization of a European Institution: the Zambesi Prazos,
1750-1902, Madison, The University of Wisconsin Press, 1972, p. 16.
261
IDEM, ibidem, p. 27.
262
Andrew DUMINY e Bill GUEST, op. cit., p. 42.
263
Henri Alexandre JUNOD, The Life of a South African Tribe, 2 Vols., 1912 e 1913.
72
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
264
Allen ISAACMAN, op. cit., p. 4.
265
IDEM, ibidem, p. 4.
266
IDEM, ibidem, p. 5.
267
Leroy VAIL (Editor), The Creation of Tribalism in Southern Africa, Berkeley – Los Angeles – Oxford,
University of California Press – California Digital Library, 1989, p. 85.
http://publishing.cdlib.org/ucpressebooks/view?docId=ft158004rs&chunk.id=d0e2273&toc.depth=1&toc.
id=d0e2188&brand=eschol (Consultado em 15/06/2018)
268
António RITA-FERREIRA, A Presença Luso-Asiática e Mutações Culturais no Sul de Moçambique
(Até c. 1900), Lisboa, Instituto de Investigação Científica Tropical, Junta de Investigações Científicas do
Ultramar, 1982, p. 45.
269
IDEM, ibidem.
73
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
século XIX, os colonos adoptaram a palavra com um sentido geral e aplicaram-na aos
povos vivendo ao longo da costa, entre o norte do Natal e o rio Save, independentemente
das filiações culturais ou linguísticas. Devido à dimensão pejorativa e à própria
imprecisão de que o termo estava imbuído, este nunca foi usado pelo povo a quem se
aplicou. Somente no século XX, os linguistas tentaram expurgar as conotações abusivas
do termo, inicialmente introduzindo um /h/ aspirado e finalmente adoptando o termo
‘Tsonga’270, que continua a suscitar polémica, pois é visto como uma construção recente
que reduz uma realidade histórica e sociológica complexa e fluida a uma simples
“entidade étnica”, classificada como tal de acordo com os propósitos da administração
colonial.271
Apesar da polémica em torno da designação dos povos, que se relaciona tanto
com processos de construção da etnicidade, como com critérios definidos na base do
etnocentrismo colonial, há que considerar uma ampla identidade Tonga/Tsonga, baseada
em semelhanças linguísticas, numa estrutura social e numa cultura material comuns. O
consenso existe para o século XVIII, considerando-se que em territórios do sul de
Moçambique se distinguiam três grupos culturais – Tsonga, Chopi e Tonga. Os primeiros,
habitavam o sul de Moçambique e áreas adjacentes, os Tonga habitavam a área de
Inhambane e os Chopi a costa a norte da baía de Lourenço Marques.
As sociedades partilhando da identidade Tonga/Tsonga caracterizavam-se pela
fragmentação política. A base da sua organização era a aldeia governada pelo chefe de
linhagem (mfumu). Porém, existiam chefias (mambos) que estendiam o seu domínio sobre
um agrupamento de aldeias, por vezes com dimensões suficientemente grandes para que
os portugueses lhes chamassem “reinos”.272 O chefe (mambo) tinha importantes funções
religiosas e políticas e era assistido por um conselho de anciãos e um grupo de chefes das
aldeias (afumu/mfumu), geralmente os membros mais velhos da linhagem dominante
local.273
Enquanto a sul do Limpopo as comunidades Nguni eram estruturadas em torno de
uma economia pastoril, cujo significado social e correlação com o simbolismo do poder
270
Leroy VAIL (Editor), op. cit., p. 85.
271
Fumiko OHINATA, “The beginning of ‘Tsonga’ archaeology: excavations at Simunye, north-eastern
Swaziland”, in S.A.H., 2002, Vol. 14, p. 25.
272
Stanislaus I. Gorerazvo MUDENGE, A Political History of Munhumutapa c. 1400-1902, Harare, James
Currey, Zimbabwe Publishing House, 1988, p. 18. Malyn NEWITT, História de Moçambique, (…), p. 47.
273
Allen ISAACMAN, op. cit., p. 4.
74
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
274
William David HAMMOND-TOOKE, The Bantu-speaking Peoples of Southern Africa, (…), p. 69.
275
IDEM, ibidem.
75
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
276
Maria Helena Mano PINHEIRO, Subjectividade Plural. Trajectos do Sofrimento em Emmanuel Lévinas,
Porto, Campo das Letras, 2001, p. 192.
277
Emmanuel LEVINAS, Totalidade e Infinito, 3.ª ed., Lisboa, Edições 70, 2008, p. 28.
278
IDEM, ibidem, p. 188.
279
IDEM, ibidem, p. 25.
280
Maria Helena Mano PINHEIRO, op. cit., pp. 193-195.
76
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
281
François HARTOG, Le Mirroir d’Hérodote. Essai sur la représentation de l’autre, Paris, Galimard,
1980.
282
IDEM, ibidem, p. 225.
77
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Gregos na submissão à lei de uma polis organizada, na língua falada, nos ideais literários
e artísticos, no urbanismo, atributos que eram vistos como a “norma”.283
Com o tempo, o termo “bárbaro” traduziu desconfiança pelos outros,
principalmente os guerreiros que usavam armas e tácticas imprevisíveis e cruéis (furor
barbaricus), estabelecendo uma “barreira moral” que dividia culturas e sociedades. 284
Uma vez que o processo histórico de construção da identidade cultural implica a
criação de fronteiras geográficas, estas últimas são também ponto de partida para a
definição da alteridade, do que é distante, do que não é familiar. Sendo as identidades,
por natureza, fluidas e multifacetadas, decorrem da forma como determinada sociedade
concebe e organiza o espaço, atendendo a um complexo conjunto de “conhecimentos,
signos e códigos específicos”.285 Neste sentido, os lugares, as regiões, os sectores
geográficos do mundo correspondem a “espaços mentais”286, ou seja, são criações do
homem. Seguindo a linha de revisão do discurso do encontro dos europeus com os outros
povos do mundo, iniciado por Tzvetan Todorov (1982)287, Anthony Pagden (1982)288,
Peter Mason (1990)289 e prosseguido por Edward Said e outros pensadores, podemos
afirmar que existe acerca do Ocidente, do Oriente e também da África, uma história e
uma tradição de pensamento, de imagens e um vocabulário conceptual que lhe conferem
“uma realidade e uma presença no e para o Ocidente”.290 O conhecimento sobre a África
e as suas populações foi-se construindo como um “corpo composto de teoria e prática” e
este é simultaneamente um modo de conhecer o Outro, mas também um filtro para se
poder penetrar na própria consciência ocidental.291
A respeito da imagem que o Ocidente foi construindo da extremidade meridional
de África e das suas populações salientam-se dois estudos, já mencionados na Introdução,
283
W. R. JONES, “The Image of the Barbarian in Medieval Europe”, in Comparative Studies in Society and
History, Cambridge University Press Vol. 13, No. 4 (Oct., 1971), pp. 376-377.
https://www.jstor.org/stable/178207 (Consultado em 1/09/2021)
284
IDEM, ibidem,p. 378.
285
Filomena SILVANO, Antropologia do Espaço. Uma Introdução, 2.ª edição, Oeiras, Celta Editora, 2001,
p. 44.
286
Henri LEFEBVRE, La Production de l’Espace, Paris, Anthropos, 1981, ps. 12 e 14.
287
Tzvetan TODOROV, A conquista da América. A questão do outro, São Paulo, Martins Fontes, 2021
(reimpressão).
288
Anthony PAGDEN, The Fall of Natural Man: The American Indian and the Origins of Comparative
Ethnology, New York, Cambridge University Press, 1982.
289
Peter MASON, Deconstructing America: representations of the other, London, Routledge, 1990.
290
Edward W. SAID, op. cit., p. 5.
291
IDEM, ibidem, p. 7.
78
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
292
William G. L. RANDLES, op. cit.
293
François-Xavier FAUVELLE-AYMAR, L’Invention du Hottentot. Histoire du regard occidental sur les
Khoisan (XVe-XIXe siècle, (…).
294
José Augusto MOURÃO, “As duas culturas: o cruzamento dos saberes (in)sustentáveis”, comunicação
apresentada ao Congresso, in José Eduardo FRANCO (Coord.), Obra Selecta de José Augusto Mourão, O
Vento e o Fogo, a Palavra e o Sopro, o Espelho e o Eco, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2017,
pp. 611-629.
79
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
295
William Leo HANSBERRY, Africa & Africans as seen by Classical Writers, Joseph E. HARRIS
(Editor), Washington, Howard University Press, 1981, pp. 5-6.
296
De acordo com William HANSBERRY, o conhecimento e o contacto próximo dos gregos com os
africanos, então designados de Aethiops, está bem documentado nas descobertas arqueológicas, sendo
mesmo de sublinhar a sua presença em áreas do Mar Egeu, vários séculos antes do tempo de Homero. Veja-
se William Leo HANSBERRY, op. cit., p. 6.
297
IDEM, ibidem, pp. 21-22.
298
Malvern Van Wyk SMITH, op. cit., p. 69.
299
Alfred John CHURCH, Stories of the East from Herodotus, 7.ª ed., London, Seeley & CO., 1885, pp.
193-199.
80
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
300
Nossa tradução de “the long-lived Ethiopians, the same that dwell in Libya, by the South Sea.” Veja-se
IDEM, ibidem., p. 192.
301
Malvern Van Wyk SMITH, op. cit., p. 65.
302
IDEM, ibidem, p. 290.
303
IDEM, ibidem.
81
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
304
François de MEDEIROS, op. cit., pp. 48-50.
305
“(…) até à fronteira da Etiópia” (Ez. 29, 9-10).
306
A palavra etíope Qevs (ou Kesh) pode identificar-se com a palavra egípcia Kush e a palavra hebraica
Cush, designação geralmente aplicada à Etiópia durante centenas de anos pelos egípcios e pelos povos da
Ásia ocidental, entre quem existiram contactos próximos durante a História da Antiguidade. A apelação
Kesht ou Keshli parece ser o equivalente etíope para o egípcio Kashto e o hebraico Cushit. A descoberta da
palavra em inscrições etíopes parece indicar estarmos perante vocábulos indígenas ao país e aos povos a
que geralmente se aplicava, apontando para uma derivação de sul para norte e este. No Antigo Testamento,
Cap. 10 do Génesis, Cush, filho de Ham, surge no esquema genealógico como um ancestral dos povos
negros. Exceptuando esta passagem, o termo Cush tem sido traduzido, no Antigo Testamento, como
Etiópia. Na Literatura Rabínica, os termos cushita e cushitas são geralmente usados com a significação de
negróide. Cf. William Leo HANSBERRY, op. cit., pp. 9-15.
307
Raphael BLUTEAU, Vocabulario Portuguez e Latino aulico, anatomico, architectonico, bellico,
botanico .... Autorizado com exemplos dos melhores escritores portugueses e latinos e offerecido a El Rey
de Portugal D. João V Pelo Padre D. Raphael Bluteau, Vol. 3, Coimbra, Colégio das Artes da Companhia
de Jesus, 1713, p. 354.
308
IDEM, ibidem, Vol. 5 (1716), p. 114.
82
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
309
IDEM, ibidem, Vol. 5 (1716), p. 772.
310
Josiah BLACKMORE, Moorings. Portuguese Expansion and the Writing of Africa,
Minneapolis/London, University of Minnesota Press, 2009, p. 2.
311
IDEM, ibidem, p. 3.
312
José da Silva HORTA, “A imagem do Africano pelos portugueses antes dos contactos”, (…), p. 50.
313
Frank M. SNOWDEN, op. cit., p. 15.
83
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
imaginação»314 ganha peso e projecção real nos textos, nos mapas e nas mentalidades. O
mundo africano, associado ao clima tórrido e ao elemento humano “negroide”,
representado de forma estereotipada na sua forma física, torna-se um espaço marginal no
âmbito de uma hierarquia geográfico-civilizacional.
Foi comum, durante a Idade Média, assimilar o etíope à negritude do demónio o
que, em termos simbólicos, se relaciona com a ideia da sua permanência no Inferno, sendo
a cor negra uma “consequência do calor da zona tórrida donde provém o etíope”.315
Inúmeras são as manifestações literárias em que o personagem maléfico, espiritualmente
perigoso, o Príncipe das Trevas é o negro assimilado aos “etíopes”.316 A obra de Jean
Devisse conduz-nos numa viagem às mentalidades e consciências do Ocidente Cristão
Medieval, em que se operou uma transferência dos sentimentos de hostilidade do “etíope”
para o “Mouro negro”.317
Duas teorias fundamentais parecem ter modelado a geografia mental relativa ao
continente africano durante o período medieval: a teoria ptolomaica e a teoria
macrobiana.318
A cartografia ptolomaica, apesar dos fundamentos correctos de que partiu, que
permitiam a localização aproximada numa tábua ou carta, caracterizava-se pela falta de
rigor, decorrente dos Itinerários antigos que estavam na sua base, e também pela
impossibilidade de medir a longitude.319 O sistema de coordenadas ptolomaicas apenas
terá fornecido esboços satisfatórios para a Europa e a África mediterrânicas, para o Mar
Negro e Próximo Oriente.320 Trata-se de um conhecimento geográfico que tem no seu
centro o Mediterrâneo. Por conseguinte, os desenhos ignoram totalmente o Pacífico e o
continente americano, revelando-se insuficientes relativamente ao Oriente, ao Mar
Vermelho, ao norte da Europa e à África.321
314
Luís de ALBUQUERQUE, “Realidades e mitos de Geografia Medieval”, (…), p. 30.
315
José da Silva HORTA, “A imagem do Africano pelos portugueses antes dos contactos”, (…), p. 47.
316
Jean DEVISSE, L’Image du Noire dans l’Art Occidental, II, Fribourg, Office du Livre, 1976, p. 18.
317
IDEM, ibidem, p. 82.
318
William G. L. RANDLES, op. cit., pp. 1-16.
319
Só no século XVIII, quando o inglês John Harrison inventou o cronómetro marinho de elevada precisão,
se tornou possível determinar a longitude em viagens de longa distância.
320
Um dos erros mais significativos de Ptolomeu era o cálculo do comprimento do grau de longitude, o que
levou a que que a Europa e a Ásia ocupassem mais de metade da circunferência da Terra. Esta perspectiva
colocava o Mediterrâneo no centro e projectava-o num comprimento 50% maior do que é na realidade (62º
em vez de 42º). Veja-se Michael SWIFT, Mapas do Mundo, Lisboa, Bertrand, 2006, pp. 10-11.
321
Luís de ALBUQUERQUE, “Realidades e mitos de Geografia Medieval”, (...), pp. 26-27.
84
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
322
Do latim sinus, que pode significar “região muito afastada, raia dum país, confins”, mas também “lugar
oculto, recanto”, e barbaricus, um empréstimo do grego que se refere aos povos que não são gregos; depois
aos povos não romanos; entre os cristãos equivale aos gentios ou pagãos. Veja-se Alfred ERNOUT e Alfred
MEILLET, Dictionnaire Étymologique de la Langue Latine. Histoire des Mots, 4.ª ed., Paris, Libraririe C.
Kincksieck, 1967, p. 66.
323
Henricus Martellus GERMANUS, Florença, início da década de 1490, Biblioteca Nazionale Centrale
de Florença, Magl. XIII, 16, ff. 88 v.-89 r.
324
Michael SWIFT, op. cit., p. 10.
325
http://www.raremaps.com/gallery/detail/20640/Africa_Tabula_IIII_Aphricae_Hae_Sunt_E_Cognitis_T
otius_Orbis/Fries.html
326
Esta tradução foi generosamente verificada e corrigida pelo Professor Doutor Arnaldo Espírito Santo, a
quem agradecemos.
85
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
327
Numa BROC, La géographie de la Renaissance, Paris, Les Éditions du Comité des Travaux Historiques
et Scientifiques, 1986, p. 9.
328
Ambrosius Theodosius Macrobius (séc. V), gramático e filósofo latino que, nos seus Commentarii in
Somnium Scipionis (Comentário do Sonho de Cipião), escrito c. do ano 430, discursou sobre a natureza do
Cosmos. Na secção dos Comentários dedicada à explicação do sonho, Cipião “Africano” (o sonhador) é
guiado pelo seu avô adoptivo que descreve a Terra e a sua divisão em zonas e compara a grandeza do
mundo com o pequeno espaço ocupado pelo Império Romano. A descrição do avô enfatiza a Cipião a
brevidade da vida humana e as realizações mundanas (nomeadamente glória e fama), contrastando com a
magnitude e permanência das esferas celestes e da vida da alma. Afirma que a Terra é escassamente
habitada e que os lugares povoados são como manchas separadas por vastas terras desertas. Os habitantes
destas áreas permanecem separados, alguns obliquamente, outros transversalmente, estando outros, ainda,
diametralmente opostos. Cf. Alfred HIATT, “The Map of Macrobius before 1100”, in Imago Mundi, Vol.
59, Nº 2 (June 2007), p. 150.
86
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
329
Armand RAINAUD, Le Continent Austral. Hypothèses et Découvertes Thèse presentée à la Faculté de
Lettres de Paris, Paris, Armand Colin, 1893, pp. 2-3.
330
Enciclopedista romano, não cristão, do Séc. V, nativo do norte de África. Viveu como advogado em
Cartago e a sua obra maior, escrita provavelmente entre 410 e 429, consistiu numa colectânea enciclopédica
de 9 volumes, dos quais os primeiros dois se intitulam De nuptiis Philologiae et Mercurii, tendo os restantes
7 volumes os seguintes títulos: De arte grammatica, De arte dialectica, De arte rhetorica, De geometrica,
De arithmetica, De astrologia e De harmonia.
Cf. http://www.catholic.org/encyclopedia/view.php?id=7623
331
Filósofo estóico nascido em Mallus, na Cilicia, costa sudeste da Ásia Menor. Viveu em Pérgamo onde
fundou uma escola literária e dirigiu a biblioteca. De acordo com a Geographia, de Estrabão, Crates terá
feito um dos mais antigos globos terrestres, assinalando aí as terras habitadas, a zona tórrida e as terras dos
antípodas.
Cf. http://www.britannica.com/EBchecked/topic/141955/Crates-of-Mallus
332
William G. L. RANDLES, op. cit., p. 4.
333
Francesc RELAÑO, The Shaping of Africa. Cosmographic Discourse and Cartographic Science in Late
Medieval and Early Modern Europe, Hampshire – Burlington, Ashgate, 2002, p. 122.
87
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
se que alguns homens tenham podido navegar através da imensidade do oceano até
chegarem à outra parte onde também se teria estabelecido o género humano procedente
do primeiro e único homem”.334 Como poderiam as terras temperadas do continente
austral ser habitadas por humanos? Não diziam os Evangelhos sobre a pregação da Fé de
Cristo que “a toda a terra se propagou a sua voz, e até aos confins do mundo, as suas
palavras” (Romanos, X, 18)? Os Apóstolos não podiam ter pregado neste continente dos
antípodas, pois que a travessia do oceano implicava a passagem através da zona tórrida,
o que era por natureza impossível, pois nenhuma forma de vida aí poderia subsistir devido
ao calor extremo. Como os antípodas não podiam ser privados da evangelização, então o
continente austral não seria habitado e os antípodas não existiam.335
Isidoro de Sevilha, na obra De natura rerum, que versa assuntos de astronomia e
geografia, conclui categoricamente que o oceano é intransponível pelo homem.336 Na sua
obra maior, Etimologias, utilizou um procedimento enciclopédico socorrendo-se tanto de
fontes pagãs como de fontes cristãs para fixar o conhecimento que, à época, era possível
compilar acerca de matérias muito vastas, nas quais se distinguia a astronomia,
cosmologia, lógica, fisiologia, entre outras. Neste sentido, terá também cristalizado as
opiniões mais diversas exprimidas pelos autores antigos relativamente ao continente
africano. Doravante, a África Etiópica passaria a ter uma utilização simbólica na literatura
patrística e os seus habitantes, os Aethiops, seriam objecto de leituras alegóricas que os
conotavam com o pecado, a abjecção, a barbárie e as terras incultas devido ao extremo
calor do sol.337
Desde Isidoro de Sevilha que se fixou na Imago Mundi a tripartição do mundo em
Ásia, Europa e África, materializada nos diagramas e mapas “T em O”. De acordo com
estas representações, a distribuição de terras obedecia ao seguinte esquema: Ásia no topo,
Europa na parte inferior esquerda e África na parte inferior direita, sendo a divisão destas
partes do mundo feita pelo Mar Mediterrâneo e pelo Mar Vermelho (que intersectavam
formando a letra “T”) e tudo rodeado pelo Oceano (o “O”).
334
Santo AGOSTINHO, A Cidade de Deus, Livro XVI, Cap. IX, (tradução, prefácio, nota biográfica e
transcrições de J. Dias PEREIRA), Vol. III, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, p. 1477.
335
William G. L. RANDLES, op. cit., p. 5.
336
Francesc RELAÑO, The Shaping of Africa. Cosmographic Discourse and Cartographic Science in Late
Medieval and Early Modern Europe, (…), ps. 119 e 139.
337
François de MEDEIROS, op. cit., p. 55.
88
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
338
IDEM, ibidem, p. 54.
339
Alfred HIATT, op. cit., p. 154.
340
IDEM, ibidem.
341
IDEM, ibidem, p. 159.
89
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
342
Anicius Manlius Severinus Boethius, Commentarii in Ciceronis Topica, cota Clm 6362.
343
Alfred HIATT, op. cit., p. 161. Cf. Reprodução digital do Manuscrito Clm 6362, fl. 74 r., da Bayerische
Staatsbibliothek, Munich.
http://daten.digitalesammlungen.de/~db/0006/bsb00065170/images/index.html?seite=151&fip=193.174.9
8.30 (Consultada em 13/07/2012)
344
Rhetorica ad Herennium. Macrobii in Somnium Scipionis libri II, cota Clm 14436
345
Alfred HIATT, op. cit., p. 160. Cf. Reprodução digital do Manuscrito Clm 14436, fl. 58 r., da Bayerische
Staatsbibliothek, Munich.
http://daten.digitalesammlungen.de/0003/bsb00033074/images/index.html?fip=193.174.98.30&id=00033
074&seite=119 (Consultada em 13/07/2012)
90
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
346
François de MEDEIROS, op. cit., p. 57.
347
IDEM, ibidem; Referência ao manuscrito da Bibliothèque Nationale de France, Mss 7266 (Latim, Séc.
XIV).
91
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
348
William G. L. RANDLES, op. cit., pp. 8-9.
349
Biblioteca Apostólica Vaticana, Pal. lat. 1362 B. Veja-se Francesc RELAÑO, The Shaping of Africa.
Cosmographic Discourse and Cartographic Science in Late Medieval and Early Modern Europe, (…), ps.
129 e 142.
350
IDEM, ibidem, p. 129.
92
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
África uma legenda no sentido latitudinal, que separa a terra habitada de uma extensa
franja de terra deserta. Tal legenda - “DIXERTO DEXABITADO PER CALDO” – não
é mais do que a fronteira entre uma massa de terra preenchida por signos gráficos e
legendas, entre as quais “Imperio del presto Janí”, e uma terra vermelha, que evoca
estereótipos acerca dos confins do mundo, localizada no sul do continente africano, onde
o clima tórrido seria incompatível com a vida humana.
No Mapa Mundi de Fra Mauro, desenhado no Mosteiro de S. Miguel de Murano,
em Veneza, entre 1457 e 1459, está presente a passagem entre o Atlântico e o Índico e o
continente africano é concebido como geograficamente circumnavegável: “Adoncha
sença alguna dubitatio(n) se può affermar / che questa p(ar)te austral e de garbin sai
nauigabile e ch(e) / quel mar indiano sai oceano e no(n) stagnon, e cusì / affermano tuti
queli che nauegano quel mar / e che habitano quele i(n)sule” 351, ["Portanto sem dúvida
nenhuma pode afirmar-se que esta parte austral atingida pelo vento que sopra de sul-
oeste chamado 'garbino' é navegável e que o mar indiano é oceano e não um grande
estagno/charco. E isso é o que dizem todos os que navegaram por aqueles mares e que
vivem naquelas terras."].352
Segundo Fra Mauro, na extremidade sul da África ficava a “ETHYOPIA
AVSTRAL”353 separada da “ABASSIA”354 e da “ETHYOPIA OCCIDENTAL”355 por
um grande rio que, tanto pode ser conjectural, como pode evocar o Limpopo.
Para sul deste rio-fronteira não existem quaisquer sinais gráficos alusivos a reinos
ou outros modos de organização das sociedades humanas. O vazio é preenchido com o
grafismo de grandes montanhas e com legendas que, de Este para Oeste, acentuam a ideia
de uma extremidade desconhecida do mundo: “Ethyopia quasi / saluaça e meridional” -
“Ethyopia quasi deserta / e montuosa”356 - Ethyopia arenosa / e quasi abandonata”.357
Para leste desta finisterra, no sul do continente africano, está o cabo de “DIAB”, uma ilha
separada da Etiópia austral por um canal navegável que, segundo Roberto Almagiá, tanto
351
Tullia GASPARRINI LEPORACE (transcrizione) e Roberto ALMAGIÀ (presentazioni di), Il
Mappamondo di Fra Mauro, Roma, Instituto Poligrafico dello Stato, 1956, Tábua XI, p. 27.
352
Tradução do dialecto de Veneza, feita por Mariagrazia Russo, da Università degli Studi Internazional di
Roma, à qual muito agradeço.
353
IDEM, ibidem, Tábua IV da trascrizione, p. 24.
354
IDEM, ibidem, Tábua X da trascrizione, p. 26.
355
IDEM, ibidem, Tábua XI da trascrizione, p. 27.
356
IDEM, ibidem.
357
IDEM, ibidem, Tábuas IV e VII da transcrizione, pp. 24-25.
93
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
poderia representar o Cabo da Boa Esperança (ainda não alcançado pela navegação
portuguesa), como a ilha de Madagáscar, cujas informações poderiam ter chegado a Fra
Mauro por via das fontes árabes. A base informativa constituída pelas fontes árabes é
também sublinhada por Francesc Relaño, tendo em consideração a linhagem etimológica
de diversos topónimos ao longo dos litorais do Índico, tais como “Soffala”, “Xegiba”
(Zanzibar) e “Maabase” (Mombasa).358
O monumento cartográfico tardo-medieval, encomendado a Fra Mauro, monge do
Mosteiro de Murano pelo rei de Portugal, D. Afonso V, parece ter constituído um esforço
de síntese das teorias e conjecturas geográficas acerca de uma grande parte do continente
ainda desconhecido da Europa.
A revelação gradual do continente africano aos europeus, pelas navegações
exploratórias, a cargo da coroa portuguesa, iria solicitar novas formulações conceptuais,
mas estaria também destinada a prolongar algumas das velhas noções relativas a esta
extremidade do mundo.
Quanto à sobrevivência das antigas imagens destacamos, a título de exemplo, o
texto de Mestre António, físico e cirurgião de Guimarães, que ao fazer a Historia
Geografica de varias partes do mundo359, em 1512, tomava como ponto de partida a
matriz genesíaca do Antigo Testamento que Isidoro de Sevilha integrou na sua vasta
compilação: “Esta machina ou redondeza do mundo he partida em três partes principaes
segundo Santo Isidoro escreve no quinze Livro das ethimologias, a saber Asya – Afriqa,
Europa”.360 Estas partes do mundo terão sido distribuídas, depois do Dilúvio, pelos três
filhos de Noé - “Sem o primeiro filho ouve Asya; Cam Afriqa; Jafet filho menor ouve
Europa”.361 Segundo o autor, Africa “tomou este nome de Afer filho de Abrahão, o qual
como trouvesse grande exercito em aquella parte, e vencese os abitadores della hos que
358
Francesc RELAÑO, The Shaping of Africa. Cosmographic Discourse and cartographic Science in Late
Medieval and Early Modern Europe, (…), p. 135.
359
Mestre António, Historia Geografica de varias partes do mundo e huma breve noticia de algumas
couzas mais raras delle tudo por Mestre Antonyo Fisyquo, e Colorgião natural e morador de Guimaraens,
em 1512, B.P.M.P., Fundo Azevedo, Pasta 16 (Cópia com letra do séc. XVII – XVIII). Sobre este
manuscrito veja-se Carlos Manuel VALENTIM, “Uma Corografia Renascentista útil ao poder e aos
poderes”, in Noroeste. Revista de História, Braga, Núcleo de Estudos Históricos da Universidade do Minho,
Vol. 1, Nº 2 (2006), pp. 433-451.
360
Mestre António, Historia Geografica de varias partes do mundo e huma breve noticia de algumas
couzas mais raras delle tudo por Mestre Antonyo Fisyquo, e Colorgião natural e morador de Guimaraens,
em 1512, (…), fl. 35 v.- 36.
361
IDEM, ibidem, fl. 36 v.
94
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
depois a posuhirão forão chamados Africos, ou Africanos, donde toda aquella terra Afriqa
se chamou”.362 Tal matriz genesíaca persiste neste texto de Mestre António, mesmo após
decorridos três quartos de século desde que se iniciaram os contactos directos dos
portugueses com a África subsariana. Mestre António reserva para este território do
mundo as mais fantásticas raridades. Explica em termos bíblicos a origem do nome
“África” e, ao dissertar sobre as “couzas mais raras”, refere-se ao grande continente com
a designação clássica de Ethiopia, uma terra de fontes misteriosas e dos animais mais
singulares do planeta. Na modernidade europeia do século XVI, a construção do
conhecimento do mundo faz-se olhando sempre para o passado e a verdade é
condicionada pelo peso da autorictas dos Antigos.363 Como afirmou José Augusto
Mourão, “a verdade é mais de ordem filológica do que geográfica”.364
Mas, o processo de exploração empírica da costa africana para sul do Equador
conduziu fundamentalmente a uma atitude de observação crítica e descrição da novidade,
pelo que os documentos portugueses passaram a sublinhar a descoberta de um “novo
mundo” e a passagem a um “outro mundo”.365
Para sul da linha equinocial penetra-se nesse “outro mundo”, expressão que pode,
no seu início, evocar dois sentidos diferentes: por um lado, a teoria da existência de um
mundo austral; por outro, o sentido de que se revelavam terras desconhecidas dos Antigos,
na zona tórrida, que se acreditava ser inabitável. O “Novo Mundo” localiza-se, de início,
para além do Equador, antes de ser aplicado às terras de além Atlântico.
Diogo Cão, ao navegar pelo rio Congo (1484), terá sido o primeiro europeu a
verificar a existência de um “mundo austral” e provavelmente não foi tanto a carta de
Vespúcio, “Mundus Novus” a lançar o conceito de Novo Mundo, mas sim a entrada
empírica no hemisfério sul, com a revelação das novas estrelas, a certeza que se podia
chegar às terras dos antípodas, terras afinal habitadas, e de que era possível navegar de
ocidente para oriente.366
362
IDEM, ibidem.
363
Numa BROC, op. cit., 1986, p. 19.
364
José Augusto MOURÃO, op. cit., p. 14.
365
William G. L. RANDLES, “Le Nouveau Monde, l’Autre Monde et la Pluralité des Mondes”, in
Congresso Internacional de História dos Descobrimentos. Actas, Vol. 4, Lisboa, Comissão Executiva das
Comemorações do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, 1961, pp. 347-385.
366
IDEM, ibidem, p. 361.
95
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
367
Vasco Fernandes de LUCENA, “Oração de obediência, dirigida ao Sumo Pontífice Inocêncio VIII por
Vasco Fernandes, doutor em ambos os direitos e orador do Ilustríssimo Rei de Portugal”, 1485, in Abel
Fontoura da COSTA, Às Portas da Índia, Lisboa, Edições Culturais da Marinha, 1990, p. 77.
368
IDEM, ibidem, p. 80.
369
Segundo o costume cristão era enviada uma embaixada de obediência quando se consumava a sagração
de um novo Papa. A 26 de Agosto de 1492 Rodrigo Borja subia ao trono de S. Pedro, sob o nome de
Alexandre VI, a quem D. João II enviou, durante o ano de 1493, três embaixadas, porque as duas primeiras
não conseguiram cumprir a missão e chegar ao seu destino. Veja-se Abel Fontoura da COSTA, Às Portas
da Índia, (...), p. 92.
96
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
“(…) que, descobrindo novos homens, aumentou o género humano; que, juntando à terra
novas e muitas ilhas longínquas, acrescentou o próprio mundo; que sob seus auspícios e
aumentando a República cristã, tornou certas e de nós conhecidas essas terras que por
completo ignorávamos; e que implantou a bandeira da cruz da nossa redenção para além
de 48:000 estádios de distância do seu Reino, e aos bárbaros crudelíssimos que a
desprezavam compeliu-os e ensinou-os a adorá-la e a amá-la”.370
Durante os séculos XV, XVI e XVII assistiu-se ao encontro dos portugueses com
a África num processo histórico que decorre de expedições marítimas ao longo de
extensos litorais. A exploração geográfica de territórios até então desconhecidos e a
consequente interacção com comunidades africanas vieram a integrar o conhecimento do
mundo. Territórios e sociedades africanas entraram nas dinâmicas comerciais do ocidente
europeu, com destaque para o tráfico de escravos. Nesse contexto, a presença quotidiana
370
Fernando de ALMEIDA, “Discurso de Fernando de Almeida, Bispo eleito de Ceuta e orador do
Serenísimo Rei de Portugal, D. João II, ao Sumo Pontífice Alexandre VI”, in Abel Fontoura da COSTA,
ibidem, p. 104. (sublinhado nosso)
97
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
371
Isabel Castro HENRIQUES, A Herança Africana em Portugal, Lisboa, CTT Correios de Portugal, 2009,
p. 11.
372
Thomas Foster EARLE and Kate J. P. LOWE (Editors), op. cit..
98
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
integradas na Etiópia Inferior, e uma Etiópia Asiática ou Superior, que “começa no rio
Indo, além do grande Reyno de Pérsia, do qual a Índia este nome tomou”.373 Nos inícios
do século XVI, Duarte Pacheco Pereira distinguia no continente africano a Etiópia
Inferior ou Etiópia Baixa Ocidental, também designada “Guiné” ou “região das Ethiopias
de Guinee”374, que se estendia desde o rio Senegal até ao Cabo da Boa Esperança e a
Etiópia Inferior “sob-Egipto”, que abrangia as extensões africanas entre o Cabo da Boa
Esperança e o Cabo Guardafui.375
Quanto à categoria de Guiné, de acordo com José da Silva Horta existiriam
também vários sentidos. O sentido lato, que abrangia toda a costa da África Atlântica até
ao Cabo da Boa Esperança. Este sentido extenso correspondia à categoria jurídica
operatória no âmbito da administração régia e da Ordem de Cristo 376 e era legitimado
pelas bulas papais. Mas havia, em simultâneo, outros sentidos mais específicos, entre os
quais a Guiné do Cabo Verde, que constituía uma sub-zona da África Atlântica, localizada
entre o rio Senegal e a Serra Leoa.377
A acepção mais extensa de Guiné colocava o seu começo no Cabo Bojador, mas
o início da Terra dos Negros era assinalado pelo rio Senegal. Esta Guiné de abrangência
continental tinha correspondência geográfica com a classificação ptolomaica de Etiópia
Austral, Inferior ou Baixa Ocidental, que foi adoptada por Duarte Pacheco Pereira.
Ao longo dos séculos XV e XVI verificou-se, numa perspectiva extra-africana,
uma gradual revelação da África atlântica que, implicando um conhecimento prático dos
litorais, das entradas fluviais, dos sertões e dos seus habitantes conduziria, do ponto de
vista da síntese teórica, a um processo de divisão e classificação do continente em
secções, ou seja, a uma desmontagem da extensa Etiópia de Guiné em parcelas
geográficas, marcadas por particularismos.
Duarte Pacheco terá iniciado a redacção do seu tratado de cosmografia,
provavelmente entre Agosto de 1505, tendo sido interrompido nos primeiros meses de
373
Duarte Pacheco PEREIRA, Esmeraldo de Situ Orbis, Edition critique et commentée por Joaquim
Barradas de CARVALHO, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1991, p. 606.
374
IDEM, ibidem, p. 661.
375
IDEM, ibidem, p. 606.
376
José da Silva HORTA, A “Guiné do Cabo Verde”: produção textual e representações (1578-1684),
(…), p. 43.
377
IDEM, ibidem, p. 44.
99
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
378
Joaquim Barradas de Carvalho considera que o início da redação da obra terá sido, provavelmente, em
Agosto de 1505, tendo sido interrompida nos primeiros meses de 1508. A este propósito, veja-se: a
“Esquisse Biographique de Duarte Pacheco Pereira”, de Joaquim Barradas de Carvalho, em Duarte Pacheco
PEREIRA, op. cit., p. 6. Por seu turno, Augusto Epifânio da Silva Dias, concorda com a proposta de Jaime
Cortesão para as prováveis datas de “entre 1505 e 1507-1508”. Veja-se “Introdução” à obra Duarte Pacheco
PEREIRA, Esmeraldo de situ orbis, Reprodução da edição crítica de 1905, anotada por Augusto Epifânio
da Silva DIAS, Lisboa, Sociedade de Geografia de Lisboa, 1975.
379
Duarte Pacheco PEREIRA, Esmeraldo de Situ Orbis, Edition critique et commentée por Joaquim
Barradas de CARVALHO, (…), p. 606.
380
IDEM, ibidem, Prólogo, p. 531.
381
IDEM, ibidem, p. 661.
382
IDEM, ibidem, pp. 601-655.
100
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
em escrever o proveito que daquela região podiamos receber.”383 Só era digna de registo
a área geográfica correspondente ao “Reino do Congo”384 em que, na sequência da
primeira viagem de Diogo Cão, o Mwene Kongo Nzinga Nkuwu e a elite congolesa
aceitaram baptizar-se. A cristianização da “terra de Manicongo” é entendida como um
vector de civilização por excelência e o ensino das coisas da fé, naquelas terras a sul do
Equador, a única realidade capaz de estabelecer uma demarcação entre os diversos graus
de humanidade dos africanos. Apesar do Cristianismo funcionar como um marcador
positivo, que assinala naquelas terras uma espécie de apropriação espiritual, a Cristandade
kongolesa é vista como corrompida pela própria natureza das gentes: “pela pouca
participação que com esta gente temos, a doutrina antre eles se vai perdendo quanto
pode”.385 Esta apreciação de uma cristandade corrompida relaciona-se, certamente, com
a apropriação do Cristianismo pelas sociedades locais através de processos ritualísticos e
simbólicos que, de algum modo, operaram continuidades com o modo de ver o mundo,
renovando e acrescentando algumas referências fundamentais que reforçaram os poderes
da elite, além de que os processos de tradução cultural da teologia cristã para a cosmologia
do Kongo terão resultado em duplos sentidos e ambiguidades, com reflexos nas
representações.386
Para os desconhecidos sertões do nordeste, na província de Anzica ou “terra dos
Anzicos”, Duarte Pacheco Pereira referia a existência de um povo de negros
antropófagos, que tinham muita “guerra com Manicongo”.387 Carlos Almeida refere, a
este propósito, que os europeus sempre ouviram falar que nas terras para norte do rio
Zaire viviam povos que “praticavam o costume de comer carne humana”.388 A questão
da antropofagia é um tópico recorrente nas escritas sobre a África Central, nomeadamente
os territórios a norte do rio Kongo.
383
IDEM, ibidem, p. 666.
384
IDEM, ibidem, p. 668.
385
Duarte Pacheco PEREIRA, Esmeraldo de Situ Orbis, Edition critique et commentée por Joaquim
Barradas de CARVALHO, (…), p. 668.
386
Carlos ALMEIDA, “Christianity in Kongo”, Oxford Research Encyclopedia of African History
https://oxfordre.com/africanhistory/view/10.1093/acrefore/9780190277734.001.0001/acrefore-
9780190277734-e-641 (consultado em 2/09/2021)
387
Duarte Pacheco PEREIRA, Esmeraldo de Situ Orbis, Edition critique et commentée por Joaquim
Barradas de CARVALHO, (…), p. 669.
388
Carlos ALMEIDA, Uma infelicidade feliz. A imagem de África e dos Africanos na Literatura
Missionária sobre o Kongo e a região mbundu (meados do séc. XVI ao primeiro quartel do séc. XVIII),
(…), p. 524.
101
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
389
Carmen RADULET, “As Viagens de Descobrimento de Diogo Cão. Nova Proposta de Interpretação”,
in Mare Liberum, N.º 1, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos
Portugueses, 1990, p. 189.
390
Jared STALLER, Converging on Cannibals. Terrors of slaving in Atlantic Africa, 1509-1679, (Africa
in World History), Ohio University Press, Edição do Kindle, p. 8.
391
IDEM, ibidem, pp. 173-174.
102
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Para sul “de Manicongo”, avizinhava-se uma extensa terra desolada. Duarte
Pacheco salienta as Ilhas das Cabras, localizadas a nove graus de latitude sul, onde as
terras são baixas, abundam as pescarias e os búzios nzimbu circulam por moeda. Próximo
do Monte Negro, cerca de quinze graus de latitude sul, começa uma costa de muita areia,
“quase deserta e de muito pouca povoração”392, terra sem proveito, de gente pobre e
idólatra que sazonalmente vem do sertão para ali pescar e “fazem casas com costas de
baleias cobertas com seba do mar, e em cima lançam areia, e ali passam sua triste vida”.393
O autor destaca a dezasseis graus e dois terços de latitude sul uma imponente
conhecença: a Ponta das Pedras e o Cabo Negro. Adiante deste cabo toda a costa é descrita
como trabalhosa de navegar (razão por que as naus da Índia se afastam para ocidente, no
Atlântico sul) e cujo sertão é baixo, coberto de areia e mau de conhecer. Um pouco mais
a sul, na Angra das aldeias, duas povoações assinalam a última presença humana. Depois,
apenas areais, pedras e penedos compõem a paisagem até ao Cabo da Boa Esperança.
Estamos perante uma extensão do continente africano correspondente ao litoral
namibiano, que carecia de exploração mais detalhada, mas que não suscitava interesse,
pois parecia daí não se vislumbrar qualquer ganho económico ou espiritual.
De acordo com esta concepção geográfica, no “fermoso promontório” de Boa
Esperança terminava a África Atlântica e tinha início a Ásia.394 Seguindo o paradigma
geográfico de Ptolomeu395, Duarte Pacheco Pereira associa a natureza montanhosa destes
confins do continente com os Montes da Lua, onde estaria oculta a nascente do rio Nilo.396
Para leste do Cabo da Boa Esperança, o autor sublinha a inexistência de comércio ou
resgates significativos, refere os animais observados (os lobos marinhos e o pinguim
africano), descreve as conhecenças e classifica as gentes: os habitantes da região do Cabo,
392
Duarte Pacheco PEREIRA, Esmeraldo de Situ Orbis, Edition critique et commentée por Joaquim
Barradas de CARVALHO, (…), p. 671.
393
IDEM, ibidem, p. 672.
394
IDEM, ibidem, ps. 678 e 680.
395
Apesar de Duarte Pacheco Pereira escrever que os “Montes da Lua”, de Ptolomeu, devem ser as “serras
fragosas do promontório da Boa Esperança”, de acordo com Joaquim Barradas de Carvalho esta
identificação não é exacta, pois Ptolomeu situa as fontes do Nilo a 12o,5 de latitude Sul, enquanto Duarte
Pacheco Pereira localiza a 34o,5 ou 35o de latitude Sul, no Cabo da Boa Esperança. Acresce que Ptolomeu
afirma na sua Geografia que as Montanhas da Lua são tão altas que estão cobertas de neve e que toda a
cordilheira se estende por 11 graus de longitude, isto é, por cerca de 700 milhas. Veja-se Joaquim Barradas
de CARVALHO, As fontes de Duarte Pacheco Pereira no “Esmeraldo de Situ Orbis”, Lisboa, Imprensa
Nacional Casa da Moeda, 1982, pp. 59-60.
396
Duarte Pacheco PEREIRA, Esmeraldo de Situ Orbis, Edition critique et commentée por Joaquim
Barradas de CARVALHO, (…), p. 679.
103
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
397
A categorização dos povos designados de “gentios” pressupõe a existência de um referencial bíblico
que, na longa duração, ficou associada à marginalidade espiritual, à ignorância da lei de Deus, à idolatria e
ao paganismo. A propósito do conceito de “gentio”, como categoria elaborada no plano teológico,
previamente aos contactos e a sua utilização no contexto das viagens, veja-se José da Silva HORTA, “A
imagem do Africano pelos portugueses antes dos contactos”, (…). Veja-se ainda, José da Silva HORTA,
“A categoria de Gentio em Diogo de Sá: funções e níveis de significação”, in Clio: Revista do Centro de
História da Universidade de Lisboa, 10, 2004, pp. 137 e 145-146.
398
Duarte Pacheco PEREIRA, Esmeraldo de Situ Orbis, Edition critique et commentée por Joaquim
Barradas de CARVALHO, (…), p. 679.
399
IDEM, ibidem, p. 684.
400
“Other Ethiopians” é a expressão usada por Andries Walter Oliphant na sua leitura sobre a ficção, a
história e o mito no romance de André Brink, The First Life of Adamastor. O autor parte da visão clássica
de Heródoto que concebia duas Etiópias: a dos Etíopes de longa vida, o povo belo e saudável, vivendo na
Núbia Cushítica; a dos “outros etíopes”, moradores das partes ocidentais do continente, que eram
associados a espaços de seres fabulosos e monstruosos. Veja-se Andries Walter OLIPHANT, “Other
Ethiopians. Sideway Glances at Fiction, History and Myth in The First Life of Adamastor”, in Ivan
VLADISLAVIC (Editor), T’Kama Adamastor: Inventions of Africa in a South African Painting,
Johannesburg, University of the Witwatersrand, 2000, pp. 59-69.
401
Duarte Pacheco PEREIRA, Esmeraldo de Situ Orbis, Edition critique et commentée por Joaquim
Barradas de CARVALHO, (…), p. 693.
104
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
402
Carlos ALMEIDA, Uma infelicidade feliz. A imagem de África e dos Africanos na Literatura
Missionária sobre o Kongo e a região mbundu (meados do séc. XVI ao primeiro quartel do séc. XVIII),
(…), p. 78.
105
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
403
O processo de formação do tronco das línguas semíticas tem sido descrito em termos de raiz intervocálica
com um “padrão”. A raiz é um conjunto de consoantes numa sequência específica e identifica o domínio
geral do significado de uma palavra. Determinado tronco pode ser distinguido pelo padrão ou pela raiz, No
106
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
e verbos, tanto na língua hebraica - ( כפרkaf-pei-resh)404, como na língua árabe - ( َكفَ ََرkāf-
fāʼ-rā)405, e os desenvolvimentos semânticos são similares em ambas as línguas.
Na língua hebraica a raiz, que se compõe de três ou quatro consoantes, expressa a
ideia comum principal de um grupo de palavras relacionadas e é, em termos semânticos
e gráficos, uma componente firme e imutável da maior parte dessas palavras. 406 Diversos
homónimos comportando a raíz k-p-r aparecem no Hebraico e em outras línguas semíticas
antigas. Do mesmo modo, encontram-se raízes diferentes mas com forma homógrafa, o
que faz com que a discussão entre os linguistas sobre as interpretações etimológicas e
conceptuais não seja consensual.
Da raiz hebraica k-p-r - כפר- formou-se o verbo kipper, a que os académicos
têm atribuído o significado de “cobrir”, “tapar”, relacionando-se este com a noção,
presente na literatura bíblica, de que a expiação consiste em cobrir os pecados. 407 Porém,
segundo Baruch Abraham Levine, o hebraico bíblico kipper e as suas formas relacionadas
não se reduzem a cobrir ou esconder os pecados, assumindo antes o sentido de “limpar”
e da eliminação resultante desse acto. O sentido de “cobrir” teria, segundo Levine, uma
conotação mais tardia.408
De acordo com o estudo deste autor sobre os termos cúlticos na história antiga
de Israel, o uso de kipper, no hebraico bíblico, assemelha-se ao sentido do acádico
kuppuru, que significa “limpar”, “apagar”, e este sentido está presente em diversos
dialectos aramaicos, aplicando-se a contextos não cúlticos.409
Outras formas relacionadas, com base na mesma raíz, sustentam esta
interpretação. É o caso do termo koper, que significa “resgate, pagamento expiatório” e
primeiro caso, os troncos têm uma raiz comum e partilham um campo semântico comum. No segundo caso,
o padrão pode ser combinado com outra raiz e, neste caso, o conceito de campo semântico muda.
As línguas semíticas são marcadas, principalmente, pelas consoantes, recorrendo apenas em certas ocasiões
a sinais que representam os sons vocálicos. Veja-se “Semitic Languages”, in Britannica academic
https://academic.eb.com/levels/collegiate/article/Semitic-languages/66720 (Consultado em 20/12/2020)
404
“Hebrew alphabet”, in Britannica academic https://academic.eb.com/levels/collegiate/article/Hebrew-
alphabet/39759 (Consultado em 20/12/2020)
405
“Arabic alphabet”, in Britannica academic https://academic.eb.com/levels/collegiate/article/Arabic-
alphabet/8156 (Consultado em 20/12/2020)
406
Rewen MERKIN, Z. BUSHARIA, E. MEIR, “The Historical Dictionary of the Hebrew Language”, in
Literary and Linguistic Computing, Oxford University Press, Volume 4, Issue 4, 1989, p. 271.
https://doi.org/10.1093/llc/4.4.271 (Consultado em 6/08/2021)
407
Baruch Abraham LEVINE, In the Presence of the Lord. A Study of Cult and Some Cultic Terms in
Ancient Israel (Studies in Judaism in Late Antiquity, 5), Leiden, Brill, 1974, pp. 56-57.
408
IDEM, ibidem, p. 57.
409
IDEM, ibidem, pp. 60-61.
107
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
que, de acordo com a interpretação clássica dos etimologistas, seria interpretado como
“cobrir, ocultar, esconder” – uma dívida, uma ofensa ou um crime.410
No hebraico bíblico encontram-se verbos derivados de k-p-r com os seguintes
sentidos: aplacar, restituir, expiar, redimir (através de oferendas rituais), perdoar (tendo
Deus como sujeito). Tais formas verbais relacionam-se com o substantivo koper/kofer411,
“resgate, expiação”, que designa o pagamento feito com o propósito de “apagar” ou
“limpar” a culpa resultante de uma ofensa ou, em termos cúlticos, é associado a um
pagamento expiatório que visa a purificação.412
No hebraico e no aramaico tardios encontramos as conotações legais: “negar,
repudiar” (kapranut) e, numa das derivações da raiz k-p-r, a forma nominal
kepirah/kefirah, com o significado de “recusa, descrença”.413 Ocorre, depois, a extensão
deste contexto legal para conotações teológicas: “negar” a crença básica na divindade
(kapar be’iqqar).414 A derivação deste ramo de conotações, relacionadas com a negação
da divindade, está atestada no aramaico e no hebraico tardios (kapar/kepar)415. Esta
posição é também sublinhada por Yitzhaq Feder, segundo o qual o sentido de “negação”,
subjacente à noção de “herético” e “heresia”, não está evidente no hebraico bíblico,
aparecendo no hebraico rabínico, mais tardio.416
Os desenvolvimentos semânticos conduzem-nos à palavra kefira – 417
ירה
ָ כְּ ִפ
que, no hebraico moderno, define heresia, descrença, incredulidade, repúdio, afastamento
ou negação dos princípios tradicionais da fé judaica. Neste sentido, koper/kofer é aquele
que pratica kefira, que transgride qualquer dos mandamentos (Mitzvot).
410
IDEM, ibidem, p. 58.
411
Resposta de Yitzhaq FEDER (Bar-Ilan University) na rede de discussão da H-net (H-Judaic)
relativamente à questão dos significados associados ao radical KPR, bem como aos nomes Kefira e Kofer,
06/12/2010.http://h-net.msu.edu/cgi-bin/logbrowse.pl?trx=vx&list=H-
Judaic&month=1012&week=a&msg=/uO2dvOSuwjkUuWqPCeYdA&user=&pw=
412
Baruch Abraham LEVINE, op. cit., pp. 61-62.
413
IDEM, ibidem, pp. 124-125.
414
IDEM, ibidem, p. 125.
415
IDEM, ibidem.
416
Resposta de Yitzhaq FEDER (Bar-Ilan University) na rede de discussão da H-net (H-Judaic)
relativamente à questão dos significados associados ao radical KPR, bem como aos nomes Kefira e Kofer,
(questão colocada em 06/12/2010).
http://hnet.msu.edu/cgibin/logbrowse.pl?trx=vx&list=HJudaic&month=1012&week=a&msg=/uO2dvOSu
wjkUuWqPCeYdA&user=&pw= (Consultado em 7/10/2010)
417
“Heresy and heretics”, JewishEncyclopedia.com, https://jewishencyclopedia.com/articles/7591-heresy-
and-heretics (consultado em 20/08/2021)
108
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
De raiz diferente, mas com forma homógrafa, derivaram outras palavras como
kapar/kefar - כְּ פָ ר, que significa aldeia, e ַּפרי
ִ כ, aldeão.418 O significado de aldeia e aldeão
encontra-se também na origem da palavra pagão (paganus = habitante das aldeias, rústico,
não urbano) e das conotações do paganismo.
Kefira (Chephirah) é ainda a designação de um povoado bíblico, cidade
originalmente dos Gibeonitas, uma das nações cananeias que, depois da divisão das terras,
passou para o domínio da tribo de Benjamim, uma das doze tribos de Israel.419
No hebraico bíblico kefira - ירה
ָ כְּ ִפ, transliterado kĕphiyrah (Strong H3716),
designa a forma feminina de kefir - ( כְּ ִפירH3715), que significa jovem leoa.420 O
simbolismo do leão na Bíblia está ligado à ideia de força, coragem e majestade.421 No
Talmud há um uso figurativo do leão muito semelhante ao do Antigo Testamento e, neste
sentido, a própria voz de Deus é assemelhada ao seu rugido. No entanto, este animal
majestoso, que na literatura rabínica é enumerado entre as feras perigosas, pode também
simbolizar o espírito de tentação e sedução para a idolatria.422
O descrente ou o idólatra é aquele que nega ou repudia a verdade da unidade e
grandeza de Deus através de cultos fraudulentos ao sol, à lua e às estrelas ou às suas
representações, bem como o culto a outros seres, pela simples razão de que estes foram
criados por Deus.
418
Diversos povoados mencionados em escritos bíblicos e judaicos incluem a palavra kapar/kefar, de que
são exemplos: a) a cidade bíblica de Cafarnaum, Kapar Nahum (aldeia de Nahum); b) o povoado judaico
de Kefar Sava, mencionado no Talmud e nas Antiguidades, de Flavius Josephus; c) o povoado de Kefar
Baram, entre muitos outros: http://www.britannica.com/EBchecked/topic/314183/Koefar-Sava
(Consultado em 7/10/2010)
https://www.jewishvirtuallibrary.org/site-search?q=kefar (Consultado em 7/10/2010)
http://www.jewishencyclopedia.com/view.jsp?artid=123&letter=C&search=kefar (Consultado em
7/10/2010)
419
Após a conquista da região de Canaã, a cidade de Kefira, como outras cidades dos Gibeonitas teria
passado para o domínio de uma das tribos que formaram a monarquia de Israel. Veja-se "Dictionary and
Word Search for Kĕphiyrah (Strong's 3716)". Blue Letter Bible.
http://www.blueletterbible.org/lang/lexicon/lexicon.cfm?strongs=H3716&t=KJV (Consultado em
12/12/2011)
http://www.jewishencyclopedia.com/view.jsp?artid=423&letter=C&search=Chephirah
(Consultado em 7/10/2010)
420
Blue Letter Bible. “Dictionary and Word Search for kᵊp̄ îr (Strong's 3715)”. Blue Letter Bible. 1996-
2010. https://www.blueletterbible.org/lexicon/h3715/kjv/wlc/0-1/
421
Emil G. HIRSH, I. M. CASANOWICZ, Solomon SCHECHTER, “Chephirah”, in Jewish Encyclopedia,
http://www.jewishencyclopedia.com/view.jsp?artid=436&letter=L&search=chephirah (Consultado em
10/12/2011)
422
IDEM, ibidem.
109
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
423
Segundo Kaufmann Kholer, para além de "kofer ba-Torah” e "kofer ba-'ikkar”, os termos rabínicos
específicos para designar as heresias, entendidas no sentido de cisões ou divisões religiosas, são “min”,
“hizonim” (estranhos ou pessoas alheias a determinado grupo ou sociedade), “apikoros” e “poresh mi-darke
zibbur”. Cf. Kaufmann KOHLER, “Heresy and heretics”, in Jewish Encyclopedia
http://www.jewishencyclopedia.com/view.jsp?artid=623&letter=H&search=heresy and heretics#1660
(Consultado em 10/12/2011)
424
IDEM, ibidem.
425
IDEM, ibidem.
426
IDEM, ibidem.
427
Kaufmann KOHLER e Emil G. HIRSCH, “Atheism”, in Jewish Encyclopedia
http://www.jewishencyclopedia.com/view.jsp?artid=2081&letter=A#6352 (Consultado em 12/12/2011)
428
IDEM, ibidem.
429
IDEM, ibidem.
110
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
430
Baruch Abraham LEVINE, op. cit., p. 125.
431
IDEM, ibidem, pp. 126-127.
432
Walther BJÖRKMAN, “Kafir”, in Emeri J. Van DONZEL, Bernard LEWIS, et Charles PELLAT,
Encyclopédie de l’Islam, Nouvelle Édition, Tome IV, Leiden, Brill, 1978, p. 424.
433
IDEM, ibidem.
434
Marilyn Robinson WALDMAN, “The Development of the concept of kufr in the Qur’ān”, in Journal of
American Oriental Society, Vol. 88, Nº 3 (Jul.-Sep., 1968), p. 442.
435
IDEM, ibidem, p. 443.
111
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
436
IDEM, ibidem, p. 444.
437
IDEM, ibidem, p. 447.
438
IDEM, ibidem, p. 448.
112
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
a kufr. Tal ingratidão pode decorrer do não reconhecimento dos benefícios divinos e
também do politeísmo, através do qual o kāfir não só não acede ao valor de Deus, como
opõe ao seu poder infinito, o poder de outras divindades menores. No primeiro período,
o kāfir não está necessariamente consciente que tem que ser grato a Deus. É ingrato por
ignorância. No segundo período, o kāfir é ainda descrito deste modo, mas cada vez mais
surge como alguém que aceita a criação do mundo por Deus, mas recusa ser grato pelos
benefícios recebidos.
No terceiro período de Meca foi demonstrado conclusivamente que nenhum aviso
usado por Maomé iria ter proveito naqueles que continuassem a mostrar-se hostis à sua
mensagem. Verificam-se pelo menos duas sugestões de que kufr se considerava uma
condição hereditária (Suratas 53 = LXXI, 26-27; 70 = XVIII), que não deixa esperança,
pois a sua atitude implica um corte com a orientação divina, com a luz que conduz os
homens no sentido da verdade e da escolha moral correcta. No Corão, kufr é um conceito
ligado à atitude, às escolhas morais erradas439; kāfir é aquele que, confrontado com a
escolha moral fundamental, por alguma razão vira as costas a Deus e segue os seus
próprios desejos.440 Quando é negada a unidade de Deus, quando os homens se viram
para o mundo das coisas e negam as bençãos divinas tornam-se ingratos, além de que, ao
negarem a possibilidade e o significado de um julgamento, essa negação funciona como
uma causa adicional da punição que espera o kāfir. A forma maior pela qual o kāfir
manifesta kufr é a rejeição do Dia do seu Julgamento, o que equivale, em última análise,
a um estado de cegueira espiritual. Porém, aceder ao coração fechado do kāfir, ao seu
estado de cegueira espiritual, só a Deus compete. Quanto aos homens, estes conhecerão
o kāfir através das manifestações concretas do seu kufr, pelos actos com os quais KFR se
liga ao Corão.
No período de Medina, mercê das exigências da guerra, intensifica-se a oposição
entre kāfirun e mu’minun. A polarização entre KFR e AMN é maior neste período uma
vez que, juntamente com o seu papel político e militar, os mu’minun recebem agora
prescrições e obrigações de Mohammed, das quais o kāfir está naturalmente
excluído.441Kāfir torna-se um termo genérico que define o grupo a ser combatido pois, de
439
IDEM, ibidem, p. 450.
440
IDEM, ibidem, p. 451.
441
IDEM, ibidem.
113
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
acordo com o desejo Divino, o partido dos crentes (mu’minun) deveria cortar a raíz dos
kāfirin. Apesar do carácter genérico do conceito de kāfir e da raíz flexível KFR, o dever
de combate não abrange todos os grupos não integrados na Lei de Mohammed, sendo de
distinguir os munāfiqun, Judeus e Cristãos (Surata 106 = LXIII, 1-3).442
O estudo de Waldman mostra que, ao significado inicial de kaffara, ocorre
historicamente uma acumulação de sentidos em que o “significado básico” se expande
para abranger os “significados relacionais”.443 A crescente oposição entre KFR e AMN
parece derivar menos de um crescimento intelectualizado dos conceitos de “crença” e
“descrença”, do que de uma crescente polarização política, militar e religiosa das partes
designadas por mu’minun e kāfirun.
Como resultado de uma polarização entre os crentes piedosos e os kāfirs, que tem
como pano de fundo um cenário de expansão político-militar, o sentido mais geral de
“infiel” passa a associar-se aos que não professam a fé islâmica e que são ameaçados pela
punição de Deus através do fogo do Inferno. Do mesmo modo, os hadiths, ou seja as
tradições respeitantes às acções e elocuções de Mohammed, referem-se ao destino do
kāfir no dia do Juízo Final e às penas do Inferno em que incorre.
Kāfir, no sentido de “infiel, renegado, incrédulo”, aplica-se àqueles cujo coração
está envolvido pela impiedade, cobrindo ou ocultando a verdade, estando subjacente um
acto de negação e rejeição. Assim, associa-se a alguém cujo coração se fecha à verdade
do Islão e que, por isso, pratica kufr ()كفر444. O Corão usa o termo kufr para designar a
atitude, o pecado da negação dos fundamentos do Islão. O perfil do kāfir está referido no
versículo corânico “Quem não acreditar em Alá, nos Seus anjos, nos Seus Livros, nos
Seus mensageiros e no Dia do Juízo Final, perde-se irremediavelmente” (An-Nisā:
136).445
No Islão, a incredulidade, a falta de fé e a ingratidão para com Deus, características
do Kāfir, podem ocorrer sob diversas categorias correspondentes a níveis de gravidade e
442
IDEM, ibidem, p. 452.
443
Os conceitos de “basic meaning” e “relational meanings” resultam do trabalho de Toshihiko IZUTSU,
God and Man in the Qur’an: Semantics of the Qur'anic Weltanschauung, Tokyo, Keio Institute of Cultural
and Linguistic Studies, 1964, Apud IDEM, ibidem, p. 453.
444
“Nove regras a respeito de Kufr e Takfir”, Compilado pelo Comité Editorial do Salafi Publications,
Islam em linha, https://www.islamemlinha.com/index.php/artigos/islam/item/nove-regras-a-respeito-de-
kufr-e-takfir (Consultado em 23/08/2021)
445
“Quiconque ne croit pas en Allah, en Ses anges, en Ses Livres, en Ses messagers et au Jour dernier,
s’égare, loin dans l’égarement” (An-Nisā: 136). Tradução portuguesa nossa.
114
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
formas de transgressão, que podem ir desde o paganismo, passando pela hipocrisia e pela
blasfémia, até à mais grave de todas as categorias, a apostasia446. Apesar de o infiel ser,
sob todos os pontos de vista, um impuro torna-se possível graduar a infidelidade em dois
grandes níveis de distinção:
Num primeiro nível, existe o Kuffar al-Tahāra, aquele que vivendo no próprio
mundo muçulmano, o Dar al-Islām, obtém um determinado grau de indulgência
compatível com um direito à protecção legal, designando-se pelo nome de dhimmis e
musta’mins.447
Fora do mundo muçulmano, existe o Kuffar al-Djihād ou seja, no contexto da
guerra santa contra os habitantes infiéis do Dār al-harb, através do pagamento da djizya
e do kharādj, aqueles podem tornar-se dhimmis, recebendo a mesma protecção
material.448
Num segundo nível, existem os outros infiéis propriamente ditos, designados por
kāfirun asliyyun. A estes espera-os a morte ou a servidão, no caso de cairem como
prisioneiros de guerra nas mãos dos muçulmanos.
Durante o processo de penetração progressiva do Islão em África, a diferença
entre apóstatas e pagãos de origem parece ter sido difícil de estabelecer, pelo que a
designação genérica de kāfir acabou por se impôr.
Para compreender o desenvolvimento histórico da atitude do Islão face aos povos
que não professavam a mesma religião, torna-se necessário observar que esta atitude foi
condicionada, nos primeiros séculos, menos por razões religiosas do que político-
económicas. A este respeito, parece revestir-se de importância primordial o
relacionamento de natureza comercial estabelecido entre a Arábia antiga e os territórios
africanos que, entre outras mercadorias, forneciam mão-de-obra escrava, compondo esta
o estrato mais baixo da sociedade.
Porém, nem todos os escravos se destinavam a desempenhar as tarefas mais duras;
alguns eram tocadores, outros eram poetas. Ora, através de uma análise de fontes literárias
e anedotas, produzidas por alguns escravos poetas que se tornaram notáveis, Bernard
446
https://www.islamemlinha.com/index.php/artigos/islam/item/nove-regras-a-respeito-de-kufr-e-takfir
(Consultado em 23/08/2021)
447
Walther BJÖRKMAN, “Kafir”, in Emeri J. Van DONZEL, Bernard LEWIS, et Charles PELLAT,
Encyclopédie de l’Islam, (…), p. 426.
448
IDEM, ibidem.
115
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Lewis constatou que os preconceitos face aos negros africanos afirmaram-se na Arábia
antiga, durante os séculos VII e VIII.449 Nos versos e narrativas de poetas, descritos como
“negros”, está patente o lamento devido ao insulto e discriminação de que eram objecto,
devido à sua ascendência africana, sempre associada ao estatuto inferior da negritude e
aos padrões de uma estética negativa. Traços físicos como a pele mais pigmentada, o
cabelo retorcido/encrespado, o formato do nariz e o cheiro da pele eram satirizados. Os
insultos de ignorância, falta de discernimento e fraqueza mental agravavam o padrão de
fealdade de que eram vítimas os descendentes de africanos.
Com o advento do Islão assistiu-se à condenação, na literatura religiosa, da
arrogância social patente em tal discriminação e é proclamada a igualdade de todos os
muçulmanos perante Deus. A religião funcionou como um nivelador social, pois “pela
crença o negro asemelhava-se ao branco”.450 No entanto, nesta literatura religiosa ligada
à emergência do mundo islâmico, surgem novos padrões de discriminação e hostilidade
racial.451 O mundo muçulmano via-se a si mesmo como o mundo civilizado por
excelência, uma espécie de ecúmena pois, de acordo com a matriz islâmica, considerava-
se que o mundo exterior era habitado por povos infiéis e bárbaros. Alguns eram
reconhecidos como tendo formas aproximadas de religião e verniz civilizacional, mas
outros – politeístas e idólatras – eram vistos como reservatórios de mão-de-obra escrava.
A escravidão era vista como benefício que iniciava os povos pagãos e bárbaros num modo
de vida mais polido, através do qual seriam moldados pela “fé verdadeira”.452
Um dos autores que classificou os povos do mundo, de acordo com esta matriz,
foi Sa’id al-Andalusi (d. 1070), um qadi da cidade de Toledo que distinguia os povos
civilizados, os que cultivavam a ciência e o saber, dos povos bárbaros, que “se parecem
mais com as bestas do que com os homens”. 453 Considerava existirem no mundo os
bárbaros do norte, que vivem entre o último dos sete climas e os limites do mundo
habitado, e os bárbaros do sul, que vivem próximo e para além da linha equinocial, nos
limites meridionais da ecúmena. De acordo com este qadi de Toledo, os bárbaros do sul
caracterizavam-se pelo seu temperamento quente e humor feroz, falta de firmeza na mente
449
Bernard LEWIS, Race and Slavery in the Middle East. An Historical Enquiry, New York, Oxford
University Press, 1990, pp. 28-30.
450
IDEM, ibidem, p. 35.
451
IDEM, ibidem, p. 36.
452
IDEM, ibidem, pp. 37-38 e 42.
453
IDEM, ibidem, p. 47.
116
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
454
IDEM, ibidem, pp. 47-48.
455
“A Legal Ruling (Fifteenth Century)”, traduzido por Ahmad AL-WANSHARISI, in Kitab al-Mi’yar al-
Mughrib, vol. 9 (Fes, 1313 A. H./1896), pp. 171-172, Apud IDEM, ibidem, p. 148.
456
IDEM, ibidem.
457
IDEM, ibidem.
117
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
458
Walther BJÖRKMAN, “Kafir”, op. cit., p. 426.
459
António Dias FARINHA, O Imaginário da Cidade Muçulmana, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,
1989, p. 71.
118
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
460
Mark HORTON & John MIDDLETON, The Swahili. The Social Landscape of a Mercantile Society,
Malden, Blackwell Publishers, 2000, p. 48.
461
Joseph CUOQ, Histoire de L’Islamization de l’Afrique de l’Ouest: des origines à la fin du XVI e siècle,
Paris, Librairie Orientaliste Paul Geuthner, 1985, p. 106.
462
Ibn BATTUTA, Viagens Extensas e Dilatadas do Célebre Árabe Abu-Abdllah, mais conhecido pelo
nome de Ben-Battuta, José de Santo António MOURA (Tradutor), Tomo II, Lisboa, Na Typografia da
Academia, 1855, ps. 62, 64, 234. Esta continua a ser a única edição portuguesa desta obra.
463
IDEM, ibidem, pp. 266-267; 218-219.
119
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
464
IDEM, ibidem, p. 7.
465
IDEM, ibidem, p. 219.
466
IDEM, ibidem, p. 29.
467
IDEM, ibidem, p. 28.
468
H. Nevile CHITTICK, “The Coast of East Africa”, in Peter Lewis SHINNIE (Ed.), The African Iron
Age, Oxford, Clarendon Press, 1971, p. 110.
469
A exportação de escravos deve ter sido significativa até ao séc. IX. Este facto pode ser explicado pela
revolta dos escravos Zanj, no sul do Iraque, entre 869-883. Segundo Bernard Lewis, os trabalhos de
drenagem de marinhas e preparação de terrenos para a agricultura, nas terras baixas a este de Basra, eram
feitos por escravos negros, oriundos da África oriental. Aqui trabalhavam grupos de quinhentos a cinco mil
homens, havendo mesmo referência a um grupo de quinze mil homens. Cf. Bernard LEWIS, Os Árabes na
História, Lisboa, Editorial Estampa, 1990, p. 118.
470
IDEM, ibidem, p. 103.
120
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Para além desta dimensão do comércio por terra, ou ao longo do litoral africano,
mais recentemente emergiu a noção de um “Mundo do Oceano Índico” como uma macro-
região, onde uma economia de trocas tras-oceânicas se desenvolveu ao ritmo das
monções, estabelecendo as bases de uma economia global que precedeu a do mundo
Atlântico do século XVI.471
Segundo Sunil Gupta está documentada a presença de artefactos estrangeiros na
costa Suaíli entre os séculos I e VII, evidências que podem ser cruzadas com relatos que
referem viagens aos mais longínquos portos da Azânia.472 Mercadores vindos do Mar
vermelho, Golfo Pérsico e Índia deslocavam-se até aos limite sul desta costa, em Maputo,
Cabo das Correntes, Sofala, Quelimane, Angoche, Moçambique.473
A crescente importância de algumas cidades do litoral, a partir do século X, deixa
perceber a existência de redes comerciais entre povoações do interior e as povoações
costeiras onde estavam em formação as línguas suaíli.474 Estes centros urbanos, de
dimensão variada, ligavam-se, por um lado, às populações africanas do interior, por outro,
ao mundo do Islão, através de laços mercantis e da partilha de todo um código moral e
religioso, que trazia segurança às transacções comerciais e prestígio às elites
governantes.475 Mark Horton assinala a questão da islamização da África oriental como
um dos tópicos mais polémicos e controversos da história deste litoral. Os padrões e os
meios pelos quais o Islão se propagou na costa oriental africana são variáveis, mas parece
ser evidente que, veiculada pelos mercadores, a religião terá chegado a algumas
povoações do litoral e que terá sofrido um processo de reelaboração pelas sociedades
locais, de acordo com o seu próprio contexto cultural. Segundo o autor existem evidências
arqueológicas da prática do Islão na África oriental, datadas do séc. VIII.476
471
Gwin CAMPBELL, “Africa and the Early Indian Ocean World Exchange System in the Context of
Human–Environment Interaction”, in Gwin CAMPBELL (ed), Early Exchange between Africa and the
Wider Indian Ocean World, Montreal, Palgrave Series in Indian Ocean World Studies, 2016, p. 1.
472
Sunil GUPTA, “Contact between East Africa and India in the First Millennium CE”, ibidem, p. 169.
473
IDEM, ibidem, p. 160.
474
H. T. WRIGHT, “Trade and Politics on the Eastern Littoral of Africa, AD 800-1300”, in Thursten
SHAW, Paul SINCLAIR, Bassey ANDAH & Alex OKPORO (Eds.), The Archaeology of Africa. Food,
Metals and Towns, London, Routledge, 1993, p. 659.
475
Mark HORTON & John MIDDLETON, op. cit., p. 48.
476
A investigação arqueológica em Shanga, levada a efeito por Mark Horton, permitiu confirmar que a
Mesquita, construída cerca do ano 1000, se alicerçava sobre estruturas de uma outra mesquita mais antiga
e de menor dimensão. As análises de radiocarbono, realizadas de acordo com os níveis estratigráficos,
permitem datar essa mesquita primitiva como sendo seguramente do século VIII. Veja-se Mark HORTON
& John MIDDLETON, op. cit., p. 49.
121
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
477
Anneli EKBLOM, Paul LANE, Chantal RADIMILAHY, Jean-Aime RAKOTOARISOA,
Paul SINCLAIR, and Malika VIRAH-SAWMY, “Migration and Interaction between Madagascar
and Eastern Africa, 500 BCE– 1000 CE: An Archaeological Perspective”, in Gwin CAMPBELL (ed),
Early Exchange between Africa and the Wider Indian Ocean World, Montreal, Palgrave Series in Indian
Ocean World Studies, 2016, p. 212.
478
Greville S. P. FREEMAN-GRENVILLE (Ed.), The East African Coast. Select Documents from the first
to the earlier nineteenth century, London, Rex Collings, 1975, p. 14.
479
Mark HORTON & John MIDDLETON, op. cit., p. 47.
480
Greville S. P. FREEMAN-GRENVILLE (Ed.), op. cit., Al-Mas’udi (séc. X), p. 14; Crónica de Kilwa
(c. 1520), pp. 36-37, ps. 39 e 46.
481
Devido à sua importância estratégica, a cidade de Adém recebia produtos da Índia e da China que, depois
de subirem o Mar Vermelho, alcançavam os mercados mediterrânicos. Esta cidade foi visitada em 1488 por
Pero da Covilhã. Estava a quatro dias de viagem de Zailá.
122
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
fedor do mundo habitado, e a mais agreste. (...) preferi pernoutar no mar, não obstante o
seu vehemente terror, por não pernoutar nella por causa da sua immundicie ”.482
482
Ibn BATTUTA, op. cit., Tomo I, (…), pp. 315-316.
483
IDEM, ibidem, p. 316.
484
IDEM, ibidem, pp. 315-316.
485
IDEM, ibidem, p. 323.
486
IDEM, ibidem, p. 315
487
IDEM, ibidem, p. 317.
488
IDEM, ibidem, p. 316
489
IDEM, ibidem, p. 323.
490
IDEM, ibidem, p. 323.
123
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
491
IDEM, ibidem, pp. 119-121.
492
Said KAMDUN & Noël KING, Ibn Battuta in Black Africa, Princeton, Markus Wiener Publishers, 2003
(Ed. de 1994 revista e aumentada), p. xxv.
493
IDEM, ibidem, p. xx.
494
IDEM, ibidem, pp. xx-xxi.
495
http://africanlanguages.com/swahili/
496
Dados obtidos numa entrevista com o Prof. Doutor Machozi Tshopo Mbangale, na Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa, em 09/12/2010.
124
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
125
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Trata-se do poema-roteiro de Ibn Magid497, As-Sufaliyya, que tem por objecto o litoral da
Terra dos Zanj, os seus ancoradouros e as suas gentes.
Este texto fixa uma visão poética e mitificada sobre a costa oriental africana
(Azânia) que concebia Sofala, “a baía do ouro”, como o terminus de uma viagem marítima
na direcção do sul.498 Às portas de Sofala, a costa era arenosa, as águas clareavam e as
terras verdejantes, assinaladas pelos bosques de coqueiros, eram um convite à
ancoragem.499 A dois dias de navegação para sul de Sofala, encontrava-se uma baía
abrigada de todos os ventos e, depois desta baía, chegava-se à ilha de Wasika500, terra de
marfim e âmbar cinzento, a principal de um arquipélago que os portugueses viriam a
designar de Bucicas ou Hucicas Grandes501, para se diferenciarem das Hucicas Pequenas,
que se localizavam na foz do rio Save. Para sul, nada mais era conhecido, à excepção da
ilha de Wazah, que os portugueses viriam a designar por Ilha do Inhaca, e nenhum piloto
ousava navegar para além deste limite onde a terra acabava inflectindo, a partir daí, para
ocidente.502 Um conjunto de topónimos de difícil identificação, podem atestar a existência
497
Ahmad Ibn Magid foi um conhecido mestre de navegação do Índico, que redigiu diversos roteiros e
tratados náuticos estudados, copiados e traduzidos posteriormente. Generalizou-se a lenda de que foi este
o piloto que conduziu Vasco da Gama até Calicute. O orientalista francês, Gabriel Ferrand, divulgou esta
tese no meio académico. Segundo Ferrand, o manuscrito 2292=A, da Biblioteca Nacional de Paris, contém
19 roteiros e tratados náuticos de Ibn Majid. Cf. Gabriel FERRAND, Introduction a l’Astronomie nautique
Árabe, Paris, Librairie Orientaliste Paul Geuthner, 1928, pp. 198-199. O manuscrito do poema intitulado
As-Sufaliyya, que integrava, para além deste roteiro, outros dois poemas do piloto, encontrava-se
conservado no Instituto Oriental de Leninegrado e só em 1957 Teodor Adamovich Schumovsky publicou
em fotocópias a tradução para língua russa. Três anos depois, Myron Malkiel-Jirmounsky publicava a
tradução portuguesa: Três Roteiros Desconhecidos de Ahmad Ibn- Madjid o Piloto Árabe de Vasco da
Gama, Lisboa, Comissão Executiva das Comemorações do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique,
1960. Utilizamos a edição crítica de Ibrahim KHOURY, de 1983. Trata-se de um trabalho de exegese
baseado nas versões russa e portuguesa e que procede a uma clarificação das passagens falsificadas do
poema. De acordo com este estudioso, 106 poemas relativos aos portugueses foram acrescentados
posteriormente, não sendo da autoria de Ibn Magid. Cf. Ibrahim KHOURY, As-Sufaliyya. “The Poem of
Sofala” by Ibn Magid, Coimbra, Junta de Investigações do Ultramar, 1983.
498
Ibrahim KHOURY, op. cit., p. 88, verso “697. The reefs, the coast, the measurement, the wind, the
sailing season and the people, / 698. the anchorages, the islands sailing season, (…)”.
499
IDEM, ibidem, pp. 73-74, versos 488, 489 e 503.
500
Segundo Lereno Barradas, o roteiro de Ibn-Madjid integra vários topónimos duvidosos e sem
identificação possível. É o caso das terras de Mulbayuni e Malabati e das ilhas de Sadbuwah que o viajante
encontraria antes de chegar à ilha Wasika, no extremo sul. De acordo com o sistema de conversão de
coordenadas não se verifica uma conciliação entre estas informações do roteiro e a realidade. Cf. Lereno
BARRADAS, O Sul de Moçambique no Roteiro de Sofala do Piloto Ahmad Ibn-Madjid, Coimbra,
Agrupamento de Estudos de Cartografia Antiga – Junta de Investigações do Ultramar, 1967, p. 16.
501
Arquipélago do Bazaruto de que a Ilha Wasika seria a maior, Cf. IDEM, ibidem, p. 172
502
Ibrahim KHOURY, op. cit., p. 80, versos 576-589.
126
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
503
Ana Cristina Ribeiro Marques ROQUE, Terras de Sofala: persistências e mudança. Contribuições para
a História da costa Sul-Oriental da África nos séculos XVI-XVII, (…), pp. 172-175.
504
Ibrahim KHOURY, op. cit., pp. 78-79, versos 548, 550, 552, 553, 563 e 564.
505
IDEM, ibidem, 81, versos 586 e 595-603.
506
IDEM, ibidem, verso 606.
507
Hazel CRAMPTON, op. cit., pp. 18-19.
127
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
tanto na costa ocidental africana, como com os povos da África oriental, desde Axum até
ao Zimbabué508. Tal prática comercial, em que a troca de mercadorias se estabelecia sem
o contacto directo das partes envolvidas, poderia ser uma forma de ultrapassar as
dificuldades de comunicação, decorrentes da barreira linguística e seria, certamente,
desconhecido dos Mpondo.509 Dado que o litoral da terra dos Mpondo estava fora do
alcance dos ventos de monção e, portanto, das embarcações suaíli, as tentativas de
estabelecer este método comercial, a sul do Cabo das Correntes, acabavam por resultar
em raids de captura de escravas, o que possivelmente deverá ter ocorrido numa base
acidental ou irregular510, mas que marcou a memória colectiva destas populações.
No sítio arqueológico de KwaGandaganda, no vale do rio Umgeni, próximo de
Durban, no contextos da 1ª Idade do Ferro (Early Iron Age), foram encontrados um
fragmento de cerâmica vidrada islâmica e algumas contas de vidro, que parecem atestar
ligações comerciais entre populações Nguni e comerciantes suaíli, actuando ao longo da
costa oriental africana e no âmbito das redes comerciais do Próximo Oriente e do Oceano
Índico. Segundo Peter Mitchell, estas redes podem ter alcançado territórios e
comunidades tão a sul quanto a região do Natal.511
As navegações dos portugueses rumo à Índia processavam-se no sentido inverso
ao das navegações árabes ao longo da costa da Azania. Contrariamente à visão do mundo
árabe, expressa no poema de Ibn Magid, que concebe as terras a sul do rio Limpopo como
terras desoladas até ao fim do mundo, as primeiras referências documentais portuguesas
desta costa africana, observada no sentido de sudoeste para nordeste, referem-na como
“densamente povoada” por gente de “bom agasalho”.
O vocábulo cafre, que corresponde a uma categoria de representação
antropológica, é uma das heranças da geografia mental árabe, que assinalava como terras
do fim do mundo Mulbayuni, próximo do Cabo da Correntes, e Wazah, ilha sobranceira
508
António Fernandes, que viajou pelos territórios africanos entre Sofala e o Monomotapa, entre 1514-
1515, descreveu este método comercial, que Gaspar Veloso deu a conhecer na sua carta para o rei de
Portugal. Veja-se Hugh TRACEY, António Fernandes descobridor do Monomotapa (1514-1515), trad.
portug. e notas por Caetano MONTEZ, Lourenço Marques, Arquivo Histórico de Moçambique, 1940, p.
24.
509
“Silent Trade”, in Encyclopædia Britannica
http://www.britannica.com/EBchecked/topic/544086/silent-trade (Consultado em 17/01/2011)
510
Hazel CRAMPTON, op. cit., p. 19.
511
Peter MITCHELL, The Archaeology of Southern Africa, Cambridge, Cambridge University Press, 2002,
p. 288.
128
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
à foz do rio Limpopo. Concebia, também, para sul destes topónimos, a existência de terras
desconhecidas, habitadas por “pagãos selvagens” vivendo numa natureza remota e não
domesticada.
Esta matriz de apreensão e de representação das terras austrais e dos seus
habitantes estava subjacente à designação de cafre, vocábulo adoptado pelos falares
portugueses. Importa problematizar até que ponto a carga pejorativa implícita a este
vocábulo foi resultado de uma construção cumulativa dos discursos portugueses sobre os
africanos que, em parte, mostrou ser convergente com as acepções que este termo assumia
nos discursos muçulmanos locais. Pode também questionar-se se terá ocorrido uma
transferência dos significados negativos nos contextos sociais em que se verificou a
adopção da palavra.
Terá sido no contexto de uma produção documental de natureza administrativa,
relativa à feitoria de Sofala, que encontramos pela primeira vez o registo dos vocábulos
cafre e chaffer.
Na Biblioteca Pública de Évora conserva-se um manuscrito do século XVIII
intitulado Compendio de alguns Vocabulos Arabicos, que se uzão no Idioma Portuguez,
da autoria de Frei João de Sousa, religioso da Ordem Terceira da Penitência. 512 Apesar
de, aparentemente ser distante do período temporal abordado, não deixa de ser um texto
importante atendendo à escassez de outras fontes semelhantes para os séculos anteriores.
Por outro lado, o próprio autor alude a ter compilado autores antigos e a elucidação do
termo “Caferon” revela já ser uma fixação de significados que se construíram na língua
portuguesa sobre o vocábulo de origem árabe “cafre”. Neste compêndio figura a seguinte
definição:
“Caferon. Val o mesmo, que homem infiel, sem Ley, impio, incredulo etc.ª.
Deriva-se do verbo [...] Cafara que significa o mesmo que fica dito.
Tambem se pode derivar este nome do primitivo [...] Cafron /fl. 31 v.º/escrito com a letra
[...], e não com [...] e significa homem rustico salvagem, sem cultura; taes como são os
Cafres que vivem no interior de Africa, Asia e America, que alem de não cultivarem as
terras, são bravios, incomunicaveis, e quazi como brutos: E sendo derivado de [...] Cafron
512
Frei João de Sousa, Compendio de alguns Vocabulos Arabicos, que se uzão no Idioma Portuguez, e
outros Persicos com suas derivações, Etymologias, e significações genuinas; Recopilados de alguns
Authores Portuguezes, Antigos e Modernos, B.P.E., Cod. CXI/2-24, (manuscrito do século XVIII).
Transcrição nossa. Neste manuscrito existe uma referência escrita posteriormente que indica que terá sido
impresso em 1789.
129
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
que val o mesmo que terra secca, arida, falta de agua, inculta, que nada produz, tem então
as significaçoens apontadas.”513
513
IDEM, ibidem, fl. 31 v.
514
Serge MOSCOVICI, Homens domésticos, homens selvagens, Lisboa, Bertrand, 1976, p. 24.
515
IDEM, ibidem, pp. 25-26.
130
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
516
António A. Marques de ALMEIDA, “Paradigma e Invenção em Pedro Nunes”, in Maria da Graça
Mateus VENTURA e Luís Jorge Semedo de MATOS (coord.), As Novidades do Mundo: conhecimento e
representação na Época Moderna/Oitavas Jornadas de História Ibero-Americana. XI Reunião
Internacional de História da Náutica e da Hidrografia, Lisboa, Edições Colibri, 2003, p. 382.
517
Michel BALARD, Jean BOULÈGUE, Jean-Pierre DUTEIL, Robert MUCHEMBLED, Les Civilisations
du monde vers 1492, Paris, Hachette, 1997, p. 9.
131
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
518
A bula Romanus Pontifex, de 8 de Janeiro de 1455, atribui aos reis de Portugal o direito de conquista,
ocupação e apropriação dos territórios, portos, ilhas e mares a sul do Cabo Bojador, em toda a Guiné e até
à sua extremidade meridional, impondo as suas leis, edificando templos cristãos e reduzindo à escravidão
tanto “infiéis”, como os “pagãos”. Em 21 de Junho de 1481, a Bula do Papa Sisto IV, Aeterni Regis
clementia, confirma as concessões feitas pela bula Romanus Pontifex. “Bula de Nicolau V, Romanus
Pontifex”, 8 de Janeiro de 1455, in Portugaliae Monumenta Africana, Luís e ALBUQUERQUE e Maria
Emília Madeira SANTOS (Dir.), Maria Luísa Oliveira ESTEVES (Org.), Vol. I, Lisboa, Instituto de
Investigação Científica Tropical, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos
Portugueses, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1993, pp. 60-73. “Bula do papa Sisto IV, Aeterni Regis
clementia”, 10 de Abril de 1488, in Portugaliae Monumenta Africana, Vol. I, (…), pp. 275-284.
519
O conceito de “zona de contacto” como espaço social onde as culturas se encontram, confrontam e lutam
umas com as outras, muitas vezes em contextos marcadamente assimétricos ao nível das relações de poder,
foi definido por Mary Louise PRATT, “Arts of the Contact Zone”, Profession, 1991, New York, Modern
Language Association, p. 34. JSTOR, http://www.jstor.org/stable/25595469 (Consultado em 6/09/2020)
132
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
520
Boubacar BARRY, Senegâmbia: o Desafio da História Regional, Rio de Janeiro, SEPHIS – Centro de
Estudos Afro-Asiáticos, 2000, pp. 65-67.
521
Boubacar BARRY, La Sénegambie du XVe au XIXe Siècle. Traite Négrière, Islam et Conquête
Coloniale, Paris, L’Harmattan, 1988; Eduardo Costa DIAS et José da Silva HORTA, “ ‘La Sénégambie’:
un concept historique et sociocultural et un object d’étude réévalués”, in Mande Studies, Vol. 9, 2007, pp.
10-11.
133
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
ligavam a costa da Guiné às Ilhas de Cabo Verde e definiu modos de articulação entre os
interesses comerciais desenvolvidos nestes espaços complementares, que em muito
tentavam escapar ao esforço de controlo burocrático-administrativo da coroa portuguesa.
Neste contexto, foi-se afirmando um grupo de indivíduos que viviam e actuavam
comercialmente à margem das autoridades da coroa e se “lançavam com os negros” nas
terras de Guiné. As designações de “lançados” e “tangomaos” aplicavam-se a indivíduos,
que se inseriam nas comunidades locais e aí desenvolviam uma atividade comercial que
rivalizava com os interesses monopolistas da coroa portuguesa.522 A verdade é que estas
categorias correspondem a indivíduos integrados nas culturas africanas, nas quais
constituíam família e geravam descendência afro-portuguesa.523 O domínio das línguas
locais permitia-lhes estabelecer o papel de intérpretes e intermediários, tanto com os
poderes africanos, como com os agentes portugueses do comércio das feitorias e dos
navios. Estabelecidos nos litorais ou nas margens dos rios, dedicavam-se ao trato do
marfim, dos escravos e do ouro, entre outras mercadorias do comércio local e regional,
cujo afluxo aos litorais aumentou constantemente ao longo dos séculos XV e XVI. 524
Antes de mais, estas categorias são a expressão da formação de comunidades
caracterizadas pelas mestiçagens socio-culturais e pelas identidades fluidas.
A Guiné, no sentido amplo, fora também um espaço de recolha de dados
informativos e acumulação de riqueza, que permitiu a continuidade portuguesa na
exploraração da costa africana para sul. A fim de se assegurar que as comunicações
poderiam ser empreendidas com povos dos territórios mais a sul, os cativos provenientes
522
A designação de Lançados ou tangomaus foi aplicada aos intermediários entre os poderes africanos e os
europeus que se envolviam nos circuitos comerciais de longa distância e tentavam escapar ao controlo
oficial português do comércio da costa da Guiné, em actividades e modos de vida considerados irregulares
e marginais. A este respeito veja-se: José da Silva HORTA, “Evidence for a Luso-African identity” in
‘Portuguese Accounts on ‘Guinea of Cape Verde’ (Sixteenth-Seventeenth Centuries)”, in History in Africa,
v. 27 (2000), p. 101. Carlos LOPES, “Construção de identidades nos rios da Guiné do Cabo Verde”, in
Africana Studia. Revista Internacional de Estudos Africanos, Nº 6 (2003), pp. 45-64.
523
A propósito da formação de comunidades euro-africanas ao longo da costa da Senegâmbia e Alta Guiné,
e inspirados pela abordagem conceptual das “lógicas mestiças”, lançada po Jean-Loup Amselle, veja-se:
George E. BROOKS, Eurafricans in Western Africa: commerce, social status, gender, and religious
observance from the sixteenth to the eighteenth century, Athens, Ohio University Press, 2003. Peter MARK,
‘Portuguese’ Style and Luso-African Identity: precolonial Senegambia, sixteenth–nineteenth centuries,
Bloomington, Indiana University Press.
524
Maria Emília Madeira SANTOS, “Lançados na Costa da Guiné: aventureiros e comerciantes”, in Carlos
LOPES, Mansas, Escravos, Grumetes e Gentio. Cacheu na Encruzilhada de Civilizações, Bissau, Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisa, 1993, p. 70.
134
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
525
Diogo Gomes de SINTRA, Descobrimento Primeiro da Guiné, Aires A. NASCIMENTO (edição crítica)
e Henrique Pinto REMA (introdução histórica), Lisboa, Edições Colibri, 2002, p. 46.
526
Jill DIAS, África nas Vésperas do Mundo Moderno, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações
dos Descobrimentos Portugueses, 1992, p. 100.
527
IDEM, ibidem.
528
IDEM, ibidem, p. 108.
529
IDEM, ibidem, p. 259.
530
IDEM, ibidem, pp. 262-263.
135
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
531
Carlos ALMEIDA, Uma infelicidade feliz. A imagem de África e dos Africanos na Literatura
Missionária sobre o Kongo e a região mbumdu (meados do séc. XVI ao primeiro quartel do séc. XVIII),
(…).
532
Linda HEYWOOD, “Slavery and its transformations in the Kingdom of Kongo: 1491-1800”, in Journal
of African History, 50 (2009), pp. 1–22.
533
Carlos ALMEIDA, Uma infelicidade feliz. A imagem de África e dos Africanos na Literatura
Missionária sobre o Kongo e a região mbumdu (meados do séc. XVI ao primeiro quartel do séc. XVIII),
(…), pp. 118-119.
136
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
534
Paulo GUINOTE, Eduardo FRUTUOSO e António LOPES, Naufrágios e outras perdas da “Carreira
da Índia”. Séculos XVI e XVII, Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 1998, p. 69.
535
Vitorino Magalhães GODINHO, Mito e Mercadoria, Utopia e prática de navegar, Lisboa, Difel, 1990,
p. 339.
536
António Borges COELHO, “Manipulador do tempo”, in O Tempo e os Homens. Questionar a História
– III, Lisboa, Caminho, 1996, p. 17.
137
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
537
António Manuel HESPANHA, Filhos da Terra. Identidades Mestiças nos confins da Expansão
Portuguesa, Lisboa, Tinta da China, 2019, p. 21.
138
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
538
IDEM, ibidem, pp. 31-32.
139
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
539
“Relato Directo da Viagem de Descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia, segundo o
Manuscrito Anónimo existente na Biblioteca Municipal do Porto”, in José Pedro MACHADO e Viriato
CAMPOS, op. cit., pp. 111-225
540
De acordo com Carmen Radulet, as mais recentes análises da grafia apontam para anotações feitas pela
mão de Cristovão Colombo. Cf. Carmen RADULET, Documenti delle Scoperte Portoghesi, I-Africa, Bari,
Adriatica Editrice, 1983, p. 419.
541
IDEM, ibidem. Segundo Carmen Radulet, a obra Imago Mundi, tem a anotação de Colombo no capítulo
VIII, num exemplar da 1ª edição do livro, de 1480 ou 1483; o exemplar da Historia rerum ubique gestarum,
de Pio II, seria da edição de Veneza, de 1477.
542
IDEM, ibidem, pp. 420-421.
140
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
autóctones sobre a Índia e o “Preste João” e também para que, se entrassem pelo sertão,
dessem notícia às populações locais do reino de Portugal:
“(…) assy leuáua quatro negras destoutra cósta de Guiné. A primeira das quáes leixou na
angra dos jlhéus, onde assentou o primeiro padram, e a segunda na angra das vóltas e a
terceira morreu, e a quarta ficou na angra dos jlhéus de sancta Cruz com duas que ali
tomarã que andáuam mariscando: e nam as quisseram trazer porque mandaua el rey que
nam fizessem fórça nem escandalo aos moradóres das terras que descobrissem”.543
Este episódio, narrado por Barros, dá-nos conta de uma estratégia praticada no
âmbito da exploração da costa africana, que consistia em capturar homens e mulheres,
trazê-los para Portugal, baptizá-los e ensinar-lhes a língua para que depois regressassem
a África, na qualidade de intérpretes, “línguas” ou tradutores.544 Estas mulheres negras da
Guiné, largadas em angras da extremidade sul da África, devem ter causado impacto nas
comunidades locais, pois terá sido a primeira vez que gentes Khoikhoi viam mulheres
com aspecto físico e vestuário diferentes e linguagem imperceptível. Dado que na costa,
onde foi deixada a quarta negra da Guiné, andavam mulheres a mariscar, é provável que
a africana treinada para intérprete tenha sido acolhida pela comunidade local e que,
devido à sua chegada por mar e aos conhecimentos que acumulou provenientes do mundo
africano ocidental e do Portugal de Quatrocentos, esse acolhimento e integração tivessem
ocorrido envoltos em misticismo.
Do olhar de Bartolomeu Dias, a informação que chegou a Barros é a de que existia
na costa meridional africana, na angra que chamam dos Vaqueiros, população de pastores
e “como nã leuauam lingua que os entendesse, nã podéram auer fala deles: ante como
gente espantáda de tal nouidade careáram seu gádo pera dentro da térra, com que os
nóssos nam podéram sabér mais delles que verem ser negros de cabello reuolto como os
de Guiné”.545
A primeira descrição antropológica das populações da África meridional consta
do relato anónimo, atribuído a Álvaro Velho. O texto refere-se aos habitantes da Baía de
543
João de BARROS, Ásia de João de Barros: dos feitos que os portugueses fizeram no descobrimento e
conquista dos mares e terras do Oriente, Primeira Década, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda,
1988 (facsimile da edição revista e prefaciada por António BAIÃO, da Imprensa da Universidade de
Coimbra de 1932), p. 85.
544
Diogo Gomes de SINTRA, op. cit., p. 46.
545
João de BARROS, op. cit., p. 86.
141
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Santa Helena onde a armada de Gama ancorou oito dias. Aos olhos dos viajantes, estes
africanos revelavam-se diferentes de todos os outros habitantes do extenso continente já
visitado pelos portugueses. Os homens da extremidade meridional da África foram
descritos como “baços” e “pequenos de corpo”, cobrindo-se com peles de animais e
trazendo “bainhas em suas naturas”, alimentando-se de “lobos-marinhos e baleias e carne
de gazelas e raízes de ervas”.546 Tais habitantes de terras longínquas, sadias e temperadas,
viviam da caça e recolecção, tinham como armas, cornos tostados metidos em varas,
ignoravam a canela, o cravo, o aljôfar e o ouro, mas davam indícios de prezar o cobre.
Na descrição somática destas populações, o autor começa por usar o vocábulo
distintivo “baço”, que significa moreno, escuro, sombreado, retratando deste modo uma
coloração mais clara e acobreada das populações Khoisan, habitantes do mundo austral,
um mundo novo que se revelava pelo litoral, ante o avançar da armada portuguesa. Num
primeiro momento, a definição cromática “baços” parecia esbater o estereótipo da
representação do corpo dos africanos e captar a novidade.
Mas quando ocorre o primeiro episódio de conflito entre os autóctones e os
marinheiros portugueses, motivado pela tentativa de intrusão de Fernão Veloso, que
pretendia ir às aldeias ver como viviam as gentes547, o vocábulo “negro” impôs-se como
dominante como se, repentinamente, a identidade do outro fosse revelada: “os negros
começaram de correr ao longo da praia”.548
Apesar destas populações se distinguirem em termos cromáticos dos povos da
Guiné, ao observador europeu elas revelam participar dos mesmos padrões de
“negritude”, subjacentes a uma concepção civilizacional que remetia o africano para um
plano marginal.
Como sugere o texto, o marinheiro português tentara forçar a sua entrada no
espaço social destas populações onde mulheres e crianças estariam em segurança.549 A
intrusão mostrava-se perigosa, suscitando o medo e originando a atitude de expulsão. De
acordo com a perspectiva africana, o espaço da aldeia, enquanto complexo socialmente
coerente, estava limitado por regras, tabus e crenças, que o demarcavam e separavam do
546
“Relato Directo da Viagem de Descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia, segundo o Manuscrito
Anónimo existente na Biblioteca Municipal do Porto”, (…), p. 117.
547
IDEM, ibidem, pp. 13-14.
548
IDEM, ibidem, p. 14.
549
Richard ELPHICK, op. cit., p. 55.
142
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
mundo marítimo, por natureza estranho e místico. A praia, enquanto espaço marginal, na
fronteira entre a terra-mãe e a vastidão do outro mundo, era por natureza perigosa,
tornando-se uma zona onde todas as estruturas se tornavam vulneráveis.550 Permitir que
um ser estranho, proveniente do “outro mundo” marítimo, ultrapassasse a zona de
contacto para entrar no espaço social poderia implicar a violação de regras que punham
em causa a própria segurança e coesão do grupo. Mas, tais possíveis significados,
inerentes à organização dos espaços sociais nestas terras austrais, não eram sequer
considerados como existentes para os visitantes do Velho Mundo.
Entretanto, a viagem prosseguiu. Contornado o Cabo, a armada de Gama avistou
uma “angra muito grande que entra pela terra bem seis léguas”551 sem que fosse lançada
âncora. Foi na baía de S. Brás, mais tarde conhecida como angra dos Vaqueiros, que a
esquadra estacionou por mais treze dias. O texto estabelece a semelhança de traços físicos
entre os habitantes da baía de Santa Helena e os da angra de S. Brás, sugerindo unidade
étnica e a rápida comunicação entre as populações.
De facto, a armada estava perante variações geográficas e culturais de um mesmo
grupo, para o qual se pressupõe uma origem comum, que a Linguística designou por
Khoisan.552 A descrição de Álvaro Velho, sobre as gentes do primeiro contacto reporta-
se, muito provavelmente, a um grupo de caçadores-recolectores e, a segunda, a um grupo
de pastores Khoikhoi. Estes organizavam-se em unidades políticas ligadas pelo
parentesco, que a historiografia tem designado de “tribos”, as quais resultavam da
aglomeração de clãs, sendo movidos por impulsos migratórios com vista ao domínio de
territórios de pastagem553, o que implicava mobilidade dos grupos e envolvia competição.
Ora, devido a tal mobilidade, não poderemos afirmar que o grupo de pastores que
interagiu com a tripulação da expedição de Bartolomeu Dias, em 1488, tenha sido o
mesmo que uma década depois interagiu com as gentes da armada de Gama.
Os pastores que, em 1497, usavam manilhas de marfim nos braços, tocavam
flautas e bailavam “como negros”, eram provavelmente pertencentes a comunidades
Hessequa, que acampavam ocasionalmente nas vizinhanças da Aguada de S. Brás e
550
Mary DOUGLAS, Purity and Danger. An Analysis of Concepts of Pollution and Taboo, London, Pelican
Books, 1970 (reimpressão da ed. de 1966 de Routledge & Kegan Paul), p. 145.
551
“Relato Directo da Viagem de Descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia, segundo o Manuscrito
Anónimo existente na Biblioteca Municipal do Porto”, (…), p. 121.
552
Richard ELPHICK, op cit., p. 7.
553
IDEM, ibidem., pp. 14-15.
143
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
próximo dos numerosos rios que corriam para sul.554 A expressão “bailavam como
negros”555 parece traduzir o processo mental de “leitura” dos gestos e ritmos corporais,
em conexão com uma musicalidade que conjugava vozes, palmas e flautas e que é
considerada pelo autor do texto de forma surpreendentemente positiva: “concertavam
muito bem para negros, de que se não espera música”.556 Esta apreciação favorável pode,
no entanto, ter outro sentido, ou seja, pode pressupor a ideia que os “negros”, por serem
considerados civilizacionalmente inferiores, eram incapazes de alcançar a sofisticação
das artes musicais.
Do lado dos africanos, estas manifestações de dança e música poderiam envolver
uma dimensão de celebração, ou ser simplesmente a dramatização de uma história ou um
ritual de aplacação perante os estranhos que vinham do mar. Tais expressões faziam com
que os portugueses comparassem estes pastores a outros africanos já contactados na
África ocidental, devido a padrões de semelhanças encontrados.
Segundo o relato de Álvaro Velho, a interacção de Bartolomeu Dias com as
populações locais já teria sido marcada pela desconfiança e agressão. Consta que
enquanto os marinheiros faziam o abastecimento de água “à beira do mar, eles lha
defenderam às pedradas de cima de um outeiro que esta sobre esta aguada. E Bartolomeu
Dias lhes atirou com uma besta e matou um deles”.557 Na perspectiva africana local, as
fontes de água, para além de estarem impregnadas de um valor sagrado, eram dos mais
importantes bens na definição dos territórios das comunidades, associando-se ao sentido
de propriedade e à sobrevivência dos grupos humanos e seus gados. Ora, o desembarque
destas tripulações estranhas aos africanos, que se apropriavam da água, representa muito
mais do que uma ameaça territorial ou patrimonial, pois poderia também estar envolvido
o perigo de contaminação no sentido místico o que, em termos cosmológicos, produziria
impacto na própria ordem social das comunidades.
Duas visões do mundo tão diversas conduziam a atitudes e reacções susceptíveis
de desencadear mal-entendidos.
554
IDEM, ibidem., p. 139.
555
“Relato Directo da Viagem de Descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia, segundo o Manuscrito
Anónimo existente na Biblioteca Municipal do Porto”, (…), p. 123.
556
IDEM, ibidem.
557
IDEM, ibidem.
144
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
558
Anne HILTON, The Kingdom of Kongo, Oxford Clarendon Press, 1985, pp. 50-51.
145
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
domínio territorial, a partir de finais do século XVII.559 O texto de Álvaro Velho é a única
fonte que nos narra estes primeiros contactos. Porém, deixou-nos apenas uma das
perspectivas de como foi percepcionado o encontro. De qualquer modo, pode considerar-
se que as primeiras interacções entre os portugueses e as comunidades Khoikhoi terão
produzido um forte impacto que, certamente, perdurou na memória colectiva, pois os
momentos do encontro foram momentos de ruptura na vida normal de todos os dias. E o
“normal” deve aqui ser entendido em dois sentidos: o sentido da vida quotidiana regida
por normas que eram observadas pela comunidade desde sempre; um outro sentido, que
tem a ver com as vivências comuns e as coisas simples da vida e do mundo, que foram
temporariamente abaladas.560
Deixando para trás uma marca de inquietação entre estes grupos de pastores, a
armada de Gama prossegue a sua navegação para Oriente, tendo ficado registada uma
visão positiva da terra que medeia entre o último padrão de Bartolomeu Dias e o Rio do
Infante. Ao longo da costa índica, a terra é “muito graciosa e bem assentada”, de praias
extensas, alto arvoredo e abundância de gados.561 É “muito povoada” e, em termos
político-sociais, existem aí “muitos senhores”. O texto descreve populações diversas das
anteriores: “homens e mulheres negros”, de “grandes corpos”, gente de bom agasalho,
vivendo em aldeias com “casas de palha”, praticando o cultivo de cereais e a criação de
aves domésticas.
A norte do rio Limpopo, numa aguada a que foi dado o nome de Terra da Boa
Gente562, provavelmente em Inharrime ou em Inhambane, abundava o cobre e o marfim,
as azagaias eram feitas de ferro, existiam objectos de estanho, produzia-se o sal e os panos
de linho tinham alta cotação nos mercados locais.
Para o observador europeu, o uso de armas cujos materiais pressupunham a
fundição de minérios, a produção do sal e a circulação de tecidos, envolvendo actividades
559
A expedição contra o kraal do chefe Klaas (1693-1701) assinala o declínio do equilíbrio entre as tribos
Khoikhoi do Cabo ocidental, a sua riqueza em gados e a gestão dos territórios de pastagem, de acordo com
os ciclos naturais. Todo o equilíbrio fora comprometido pelas alianças forçadas com os colonos holandeses,
cuja economia de expansão agrícola implicava uma contracção dos territórios tradicionais dos Khoikhoi.
Veja-se Richard ELPHICK, op. cit., ps. 144-145 e 170-174.
560
Evan M. ZUESSE, Ritual Cosmos. The Santification of Life in African Religions, Ohio, Ohio University
Press, 1979, p. 3.
561
“Relato Directo da Viagem de Descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia, segundo o Manuscrito
Anónimo existente na Biblioteca Municipal do Porto”, (…), p. 129.
562
IDEM, ibidem, p. 133.
146
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
563
IDEM, ibidem, p. 135.
564
IDEM, ibidem, p. 139.
565
João de BARROS, op. cit., Primeira Década, (…), p.130.
147
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
566
Álvaro VELHO, op. cit., p. 139.
567
João de BARROS, op. cit., Primeira Década, (…), p.136.
148
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Sofala tinham motivado a inimizade do rei de Quíloa, cuja riqueza e poder dependiam
dos direitos do ouro daquela região.
Na torna-viagem, já em 1501, Sancho de Tovar, que fora destacado por Pedro
Álvares Cabral para realizar uma expedição de reconhecimento da “mina de Sofala”, terá
sido acompanhado pelo “língua” Gaspar da Gama568, um bom piloto de Melinde e
mercadores de Moçambique. Tovar levou como presentes de cortesia, peças de seda
vermelha, espelhos, barretes, cascavéis, campainhas da Flandres e continhas de vidro
cristalinas.569 Consta que pediu a amizade do rei de Sofala e licença para negociar na
região como qualquer outro mercador, o que lhe terá sido concedido. Segundo Gaspar
Correia, o rei de Sofala teria selado esta amizade enviando ao capitão-mor um conjunto
de “continhas d’ouro”.570
Ainda que este encontro entre Tovar e o soberano de Sofala seja narrado em fontes
históricas posteriores, Ana Cristina Roque considera que as informações recolhidas sobre
Sofala como terra de “grande riqueza” e “resgate d’ouro”571 poderiam facilmente provir
do piloto e mercadores, sem que isso implicasse a concretização de um encontro com o
soberano local. A dúvida sobre a realização desse encontro decorre, segundo Ana Roque,
da falta de informações precisas sobre o porto ou a indicação de “conhecenças”, assim
como a ausência de conhecimento mais concreto das principais mercadorias do comércio
local.572
Durante a expedição de Tovar, em que busca informações sobre a região de Sofala,
através da mediação de um intérprete, pode levantar-se a hipótese do vocábulo cafre ter
entrado, de novo, nas conversações para designar e referir as populações autóctones, não
islamizadas, que dominavam as minas e detinham o poder nos sertões. A palavra era de
uso comum entre os mercadores islamizados de quem os portugueses obtiveram as
informações iniciais sobre a mina, suas populações e poderes.
Entretanto, ainda durante o ano de 1501, antes de Cabral regressar a Lisboa, D.
Manuel enviou à Índia uma nova armada, sob o comando de João da Nova, com intuitos
568
Gaspar CORREIA, Lendas da Índia, Volume Primeiro, Introdução e revisão de M. Lopes de ALMEIDA,
Porto, Lello & Irmão Editores, 1975, p. 227.
569
IDEM, ibidem, p. 228.
570
IDEM, ibidem, p. 229.
571
IDEM, ibidem, p. 227.
572
Ana Cristina Ribeiro Marques ROQUE, Terras de Sofala: persistências e mudança. Contribuições para
a História da Costa Sul-Oriental de África nos séculos XVI-XVIII, (…), p. 201.
149
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
573
João de BARROS, op. cit., Primeira Década, (…), p. 207.
574
Luís Adão da FONSECA, Vasco da Gama: o homem, a viagem, a época, Lisboa, Edição do
Comissariado da Exposição Mundial de Lisboa, 1998, p. 172.
575
Geneviève BOUCHON (coord. ed. portuguesa Carlos ARAÚJO), Vasco da Gama, Lisboa, Terramar,
1998, p. 198.
576
João de BARROS, op. cit., p. 224.
577
Geneviève BOUCHON, op. cit., p. 199.
150
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
vimos muitos fumos com que nos convidavão a entrar, o que não fizemos, perdendo nisso
muito; (…) julgámos que os fumos erão sinal para chamar-nos”.578
Verificada a fraca actividade no mercado da região, os navios seguiram para
Moçambique, onde se deu entendimento com as autoridades locais para abastecimento de
víveres essenciais, como água, madeiras, galinhas e limões.579
Segundo Gaspar Correia, Pero Afonso de Aguiar terá sido enviado ao rei de
Sofala, “que era cafre gentio”, a buscar paz e amizade para mandar a sua terra os
portugueses com mercadorias para o trato. Nesse mesmo tempo, Aguiar teria recolhido
do xeque muitas informações sobre o modo de se resgatar ouro por panos, em Sofala.580
A armada de 1504, que levava como capitão-mor Lopo Soares, terá dado
aviamento “nas cousas de Çofala, que estaua contrato bem assentado e pacifico”. 581
Segundo Alexandre Lobato, quando Gaspar Correia refere que Lopo Soares em
Moçambique deu aviamento às coisas de Sofala, poderá isso querer dizer que Pero Afonso
de Aguiar foi enviado para essa expedição a Sofala em 1504, e não em 1502. tendo sido
acompanhado por um piloto de Moçambique que lhe forneceu o xeque e que levou ao rei
de Sofala o habitual presente, da parte do capitão-mor. Aguiar foi a terra com mais de 20
homens “bem vestidos” e expôs a sua missão que era pedir amizade e licença para os
portugueses irem a Sofala comerciar em pé de igualdade com os outros mercadores. O rei
acedeu e declarou que já o havia prometido a Sancho de Tovar, enviado por Pedro Álvares
Cabral (1500), e jurou paz e amizade “polo sol e polo ceo, e sua cabeça e barriga”.582
Deste modo, em 1502 ou 1504 terá sido selada amizade com o rei de Sofala, com
objetivos comerciais.
Em Março de 1505 era enviada à Índia a armada de D. Francisco de Almeida. O
regimento que a acompanha atribui uma importância crucial à construção de uma
fortaleza em Sofala. Ordena que seja escolhido um sítio forte e seguro, assim como
578
Thomé LOPES, “Navegação às Índias Orientaes escrita em Portuguez por Thomé Lopes”, in Collecção
de Notícias para a Historia e Geografia das Nações Ultramarinas que vivem nos domínios Portuguezes,
publicada pela Academia Real das Sciencias, Tomo II, Nº 5, 2ª ed., Lisboa, Typographia da Academia,
1867, p. 160.
579
Geneviève BOUCHON, op. cit., p. 199.
580
Gaspar CORREIA, op. cit, p. 272.
581
IDEM, ibidem, pp. 494-495.
582
IDEM, ibidem, p. 274.
151
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
favorável ao abastecimento “de lenha e toda outra cousa”.583 Adverte que não deveria ser
feito qualquer dano “aos naturaes da terra”, tanto em suas pessoas como em suas fazendas,
mas contra os mouros deveria ser travada guerra contínua, por serem inimigos da fé.584 O
regimento menciona o envio do capitão, gente, artilharia e coisas necessárias ao
estabelecimento da fortaleza, cuja obra deveria ser realizada o mais breve possível. 585
Os interesses da coroa portuguesa centravam-se nestas “terras do ouro” e na Índia.
O Cabo da Boa Esperança é, neste regimento de D. Francisco de Almeida, um obstáculo
a transpor com cuidado. A extensa costa entre o promontório e Sofala surge como um
espaço intermédio, útil para as aguadas, onde eram deixados sinais e cartas para os navios
que porventura se perdessem do corpo da armada, mas era, acima de tudo, um espaço de
transição, de passagem.586 O próprio discurso do regimento é sumário e transitório no que
se refere ao extenso litoral, designado de “Costa do Cabo da Boa Esperança”.
A descrição da viagem do primeiro vice-rei da Índia regista conformidade com o
regimento, a mesma transitoriedade relativa ao promontório e à costa que se lhe segue:
“Dobrarom ho Cabo de Boa Esperança aos 26 dias de Junho e forom afastados delle 70
legoas. (...) 18 dias de Julho virom a primeyra terra alem do Cabo de Boa Esperança 565
legoas a saber Ylhas Derradeyras, e 30 legoas de Ylha Moçambique”.587
Os vastos territórios africanos para este e nordeste do Cabo da Boa Esperança, que
algumas décadas mais tarde seriam designados de Terra dos cafres e Cafraria, não
despertavam o interesse da coroa portuguesa. Apenas um ponto na costa leste - Sofala -
captaria a atenção da coroa para a construção de uma fortaleza a partir da qual fosse
possível controlar o comércio do ouro.
A 18 de Maio de 1505 largava de Lisboa uma outra armada de seis naus,
comandada por Pero de Anhaia, e em Setembro partiam mais duas velas, onde seguiam
Cide Barbudo e Pero Quaresma.588
583
“Regimento do Capitão-mor D. Francisco de Almeida – Lisboa, 5-Março-1505”, in D.P.M.A.C., Vol. I,
(1497-1506), (…), p. 182.
584
IDEM, ibidem, p. 180.
585
IDEM, ibidem, p. 184.
586
IDEM, ibidem, pp. 170-172.
587
“Descrição da Viagem de D. Francisco de Almeida, Vice-rei da Índia, pela costa oriental de África”, 22
de Maio de 1506, in D.P.M.A.C., Vol. I (1497-1506), (...), pp. 520-522.
588
João de BARROS, op. cit., Primeira Década, (…), p. 367.
152
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Datam de 1505 e 1506 documentos escritos pelo primeiro capitão de Sofala, Pero
de Anhaia, e pelo capitão da fortaleza de Quíloa, Pero Ferreira Fogaça, que usam
alternadamente os signos identificativos preto, negro, negra, cafre aplicados às
populações locais e alguns dos moradores das referidas fortalezas.590 O termo cafre entra
em uso com grafia e significado variável – chaffer, cafer, cafere, cafre.
A carta do rei D Manuel de Portugal aos Reis Católicos, narrando as viagens dos
Portugueses, entre 1500 e 1505, faz uso do vocábulo Chaffer para designar os habitantes
“idolatras” de Calicute, o que nos faz compreender que o vocábulo estava imbuído de
589
“Conquista da India per humas e outras armas reaes, e evangelicas”, Documentação Ultramarina
Portuguesa, António da Silva REGO (Prefácio), Vol. I, Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos,
1960, p. 287. (Doravante D.U.P.)
590
“Mandado de Pero de Anhaia, Capitão-mor de Sofala, para os contadores de El-Rei”, in D.P.M.A.C.,
Vol. I, (…), ps. 366, 370, 382, 384, 506-508 “Rol do pagamento do mantimento de fevereiro de 1506 na
Fortaleza de Sofala”, in D.P.M.A.C., Vol. I, (…), p. 436. “Rol do pagamento do mantimento de Abril de
1506 na Fortaleza de Quiloa”, in D.P.M.A.C., Vol. I, (…), p. 462. “Rol do pagamento do mantimento de
Maio de 1506 na Fortaleza de Quiloa”, in D.P.M.A.C., Vol. I, (…), ps. 494,496 e 500. “Mandado de Manuel
Fernandes, Capitão de Sofala, para os contadores de E-Rei”, in D.P.M.A.C., Vol. I, (…), p. 614.
153
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
591
Prospero PERAGALLO, “Carta de El-Rei D. Manuel ao Rei Catholico narrando-lhe as viagens
portuguesas á India desde 1500 até 1505”, in D.P.M.A.C., Vol. I, (…), p. 64.
592
“Mandado de Pero de Anhaia, Capitão-mor de Sofala, para os contadores de El-Rei”, in D.P.M.A.C.,
Vol. I, (…), p. 382.
154
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
“Francisco limgoa”. A ambos eram pagos sete alqueires de milho, mas Gaspar teria o seu
mantimento aumentado para dez alqueires de milho, por ser casado.593 Os “línguas” eram
os intermediários entre o poder português, que visava estabelecer-se em Sofala, e os
poderes da terra, e a sua importância estratégica é evidenciada pelo pagamento dos
mantimentos a cargo da coroa portuguesa. Apesar de escravos, o seu soldo era superior
ao de alguns homens de armas, bombardeiros, escrivães, físicos, pedreiros, carpinteiros,
telheiros, ferreiros, barbeiros e os degredados, que todos recebiam seis alqueires de
milho.594
“hum fambulle gramde da tixa de cimquo miticaes que mandey daar a hum filho dum rey
que vive pollo rio acima que se chama Maxamdyra e tres vespiças dobradas da taixa de
tres miticaes cada hum a tres negros que com elle vieram pera os trazer a nosa
593
“Rol do pagamento do mantimento de Junho de 1510 na Fortaleza de Sofala”, in D.P.M.A.C., Vol. II,
(...), p. 458. “Rol do pagamento do mantimento de Janeiro de 1511 na Fortaleza de Sofala”, in D.P.M.A.C.,
Vol. II, (...), p. 568.
594
IDEM, ibidem, pp. 562-570.
595
“Rol do pagamento do mantimento da Maio de 1506 na Fortaleza de Quiloa”, in D.P.M.A.C., Vol. I,
(...), pp. 494, 496 e 500.
596
Portugaliae Monumenta Africana, Vol. II, 1995, (…) , Doc. 46, p. 84 e Doc. 58, p. 102.
155
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
comversaçam amyzade (sic) e quatro baretes baixos vermelhos que deu a tres caferes que
vieram aquy resgatar”.597
597
“Mandado de Manuel Fernandes, Capitão de Sofala, para os contadores de El-Rei”, in D.P.M.A.C., Vol.
I, (...), p. 614.
598
Próspero PERAGALLO, Carta de El-Rei D. Manuel ao Rei Catholico narrando-lhe as viagens
portuguesas á India desde 1500 até 1505, Lisboa, Typografia da Academia Real das Sciencias, 1892.
599
IDEM, ibidem, p. 27.
156
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
viagens de Ibn Battuta, este aplicou amplamente aos povos não islamizados da Índia, a
categoria classificatória de cafre.600
A carta de D. Manuel é um documento muito importante a vários níveis: porque
revela oficialmente a descoberta de um novo mundo, tão diverso do dos Antigos, e porque
veicula imagens e estereótipos relativos aos habitantes da África oriental, destinados a
perdurar durante séculos no imaginário europeu.
Ao referenciar o cabo da Boa Esperança, a carta de D. Manuel nega a autoridade
da geografia ptolomaica. Aos confins da África, outrora designada de Terra Incógnita,
opõe a descrição de uma “costa mui bem povoada de gente não muito preta; é fertil, e
abunda em fructos de toda a qualidade e em aguas”.601 É, afinal, a revelação de um novo
mundo que se projectava na extremidade sul do continente africano.
Do ponto de vista antropológico, nesta carta o rei dá voz oficial ao mito da
antropofagia e da monstruosidade dos habitantes dos sertões do mundo austral. Diz sobre
Sofala que:
“(…) é uma ilha ao pé da barra de um rio: é habitada por muitos mercadores; aonde há
ouro infinito, que ahi é introduzido do sertão da Africa por homens de baixa estatura, mas
fortes, e monstruosos muitos d’elles; pois comem carne humana, principalmente de seus
inimigos, e teem pequena voz”.602
600
Cf. nesta dissertação: 5. 2. “Cafres” e “bárbaros” na visão do mundo de Ibn Battuta.
601
Próspero PERAGALLO, op. cit., p. 11.
602
IDEM, ibidem.
603
A ideia de que este texto resultou de um trabalho de co-autoria foi apresentada por José da Silva HORTA,
“O Africano: produção textual e representações (sécs. XV-XVII)”, in Condicionantes Culturais da
Literatura de Viagens: Estudos e Bibliografias, (Coord. Fernando CRISTOVÃO), Coimbra, Almedina,
2002, p. 271.
604
Duarte LOPES & Filippo PIGAFETTA, Relação do reino de Congo e das terras circunvizinhas, reed.
do texto traduzido por Rosa Capeans (1951), estudo introdutório de Ilídio do AMARAL, Benavente,
[Câmara Municipal], 2000.
157
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Mundo numa perspectiva polémica para a época, pois coloca em paralelo a barbárie da
antropofagia dos índios com a crueldade dos civilizados
Tais registos, acerca da antropofagia africana nas terras auríferas de Sofala,
parecem invocar velhos mitos sobre a existência de antropófagos nos confins da Etiópia,
particularmente em territórios associados à mineração do ouro. A este respeito saliente-
se que o Mapamundi de Fra Mauro, de meados de 1459, numa das legendas da “Tavola
XVIII”, relativa ao sertão africano confinante com o Golfo da Guiné, refere a existência
de uma província de populações antropófagas:
“p(rouincia) giantropophagi, / (id est) terra de queli che ma(n)zano / carne humana.” 605
605
Tullia Gasparrini LEPORACE, Il Mappamondo di Fra Mauro, (…), Trascrizione, Tavola XVIII, p. 32.
158
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
606
Isabel Castro HENRIQUES, “A invenção da antropofagia africana”, Os Pilares da Diferença. Relações
Portugal-África. Séculos XV-XX, Lisboa, (…), pp. 225-226.
607
Santo AGOSTINHO, A Cidade de Deus, Vol. III, Liv. XVI, Cap. VIII, (...) p. 1474.
608
IDEM, ibidem, p. 1476.
609
Umberto ECO, (dir. de), História do Feio, Lisboa, Difel, 2007, p. 114.
610
“Bula do Papa Nicolau V, Romanus Pontifex”, 8 de janeiro de 1455, in Portugaliae Monumenta
Africana, (…), Vol. I, pp. 60-73; Bula do Papa Sisto IV, que confirma a bula de Nicolau V. Cf. “Bula do
159
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
em África, até às costas mais meridionais, cuja missão consistia em evangelizar, purificar
terras e povos distantes da Cristandade, como seriam estes a quem a Carta Régia se
referia.
Será necessário esperar pelas representações mais próximas dos contactos
efectivos, para que se produzam registos descritivos de viagens e expedições, que terão o
valor de verdadeiros inventários sobre os poderes africanos e suas hierarquias, as
actividades produtivas, as mercadorias e rotas comerciais, os costumes, as crenças e os
rituais que organizam a diversidade humana nos mundos africanos.
papa Sisto IV, Aeterni Regis clementia”, 10 de Abril de 1488, in Portugaliae Monumenta Africana, (…),
Vol. I, pp. 275-284.
611
Sobre a publicação de Figueroa e o seu teor no que se refere à imagem da África oriental, veja-se neste
trabalho a Parte II, ponto 3. A Cafraria e as suas populações nos registos entre 1510-1551.
612
“Regimento de Cide Barbudo (Projecto)”, in D.P.M.A.C., Vol. I, (...), p. 274. Simão Ferreira PAIS, “As
Famozas Armadas Portuguezas”, in D.P.M.A.C., Vol. I, (...), pp. 90-92.
613
IDEM, ibidem.
160
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
614
IDEM, ibidem, p. 278.
615
“Carta de Pero Quaresma para El-Rei” (Moçambique, 31 Agosto 1506), in D.P.M.A.C., Vol. I, (…), p.
622.
161
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
sobreaviso acerca das acções e intenções dos seres estranhos que às suas terras chegavam
por mar. É provável também que, após algum confronto, o grupo de pastores mudasse o
seu aldeamento mais para o interior, pois apesar de fértil em pastagens e cursos de água,
o litoral da aguada de S. Brás tornara-se vulnerável e inseguro para estas comunidades.
A descrição feita pelos homens enviados a terra, ainda que não tivesse sido
confirmada pelos responsáveis da expedição, pois Quaresma afirma não saber “quamto
ysto poderra ser verdade”, parece acentuar sentimentos de receio e desolação, relativos à
costa entre o cabo da Boa Esperança e Sofala e seus habitantes.616
A carta de Pero Quaresma para o rei descreve ainda o cenário do forte de Sofala
destruído, com Pero d’Anhaya, o alcaide e setenta e seis homens mortos, a que se somou
a grande necessidade de todo o tipo de mantimentos que encontrou em Moçambique. 617
Regista, acima de tudo, as dificuldades suscitadas pela interacção dos portugueses com a
África Índica. Muitas destas dificuldades decorrem da extensão territorial onde, a pouco
e pouco, por ordem de regimentos régios, se iam assinalando alguns pontos de paragem
(as aguadas), fronteiras de encontros nem sempre pacíficos com a diversidade humana,
horizontes de uma paisagem que permanecia ainda incógnita.
Em suma, a expedição saída do Tejo em Setembro de 1505 teve como finalidades:
procurar alguma gente das naus perdidas de Pero de Mendonça e Francisco de
Albuquerque; fazer paz com os habitantes da aguada de Saldanha; consolidar o
conhecimento da costa, o que se depreende das referências à contagem das pedras que
funcionavam como conhecenças; proceder ao registo da navegação efectuada em função
dos ventos e das correntes dominantes, de acordo com o calendário da viagem.
Fica-nos a interrogação se teria esta viagem dado origem a algum esboço
cartográfico relativo à secção da costa entre o cabo da Boa Esperança e Sofala. Segundo
a Relação das Náos e Armadas da Índia, “[...] partirão Cide Barbudo e Pero Coresma
para descobrirem a Terra do Cabo da Boa Esperança”.618 Também o esboço do regimento
dado a Cid Barbudo sublinha a dimensão de busca e descoberta desta expedição. João de
616
“Carta de Pero Quaresma para El-Rei” (Moçambique, 31 Agosto 1506), in D.P.M.A.C., Vol. I (...), pp.
622-628.
617
IDEM, ibidem.
618
Maria Hermínia MALDONADO (leitura e anotações), Relação das Náos e Armadas da India com os
sucessos dellas que se puderam saber, Para Noticia e instrucção dos curiozos, e amantes da Historia da
India (British Library, Códice Add. 20902), Coimbra, Biblioteca Geral da Universidade, 1985, p. 14.
Sublinhado nosso.
162
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Barros confirma que estes dois capitães foram enviados pelo rei para “que fossem
descobrir toda a terra do cábo de bóa esperança te Sofala”.619 Ora, considerando que a
missão de “descobrir” implica um trabalho exploratório de carácter técnico, parece-nos
plausível que tenha sido elaborado algum relatório pormenorizado, acompanhado de
esboço cartográfico que não chegou aos nossos dias. 620
À data desta expedição, o Planisfério de Cantino era o documento cartográfico
mais perfeito e detalhado do continente africano cujos contornos foram fixados a partir
do mar, através de métodos de navegação astronómica.621 Apesar da perfeição atingida
neste monumento cartográfico, verifica-se ainda uma importante influência de elementos
ptolomaicos visíveis, acima de tudo, na toponímia sudeste do continente. Mas, o
planisfério representa também os avanços na exploração dos litorais cujos marcos
simbólicos são os padrões de pedra: os padrões implantados por Diogo Cão no cabo
Negro e no cabo Padrão (Cape Cross) durante a sua segunda viagem (1483-1484)622, o
padrão de S. Filipe, que Bartolomeu Dias implantou no cabo da Boa Esperança (1487-
88), e o “padrão de S. Gregório”.623 Na costa oriental, seis bandeiras assinalam “Sofala,
Moçambique, Quiloa, Melinde, Mogadoxo e Barbara, entre uma toponímia que é muito
menos densa do que a das costas ocidentais e austrais do continente”624, locais onde
chegaram as expedições de Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral e cujo conhecimento
o Planisfério de Cantino sintetiza e assinala.
Porém, depois de Cabral (1500), outras armadas dobraram o Cabo:
- a armada de quatro velas capitaneada por João da Nova (1501-1502);
- a segunda viagem de Vasco da Gama à Índia, com vinte velas repartidas
entre três capitanias (Vicente Sodré, Vasco da Gama e Estevão da Gama);
- a frota de 1503, que levava Afonso de Albuquerque, Francisco de
Albuquerque e António de Saldanha como capitães de uma armada de nove velas;
619
João de BARROS, op. cit., Primeira Década, (…), p. 367. (sublinhado nosso)
620
“Regimento de Cide Barbudo (Projecto)”, in D.P.M.A.C., Vol. I, (...), pp. 284-286.
621
Avelino Teixeira da MOTA, A África no Planisfério Português Anónimo “Cantino” (1502), Lisboa,
Junta de Investigação do Ultramar – Centro de Estudos de Cartografia Antiga, 1977, ps. 3 e 12.
622
Data proposta por Carmen Radulet para a segunda viagem de Diogo Cão. Cf. Carmen RADULET, “As
Viagens de Descobrimento de Diogo Cão. Nova Proposta de Interpretação”, (…), pp. 189-190.
623
Os restos deste padrão foram localizados por Eric Axelson, em Kwaihoek, no Cabo Oriental e
encontram-se actualmente na Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo.
624
Avelino Teixeira da MOTA, op. cit., p. 10.
163
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Ora, pelo número de navios que, entretanto, dobraram o Cabo (47 velas) e pelas
perdas sofridas, entre o cabo da Boa Esperança e o cabo das Correntes, justificava-se uma
missão de reconhecimento, incumbida a Cid Barbudo e Pero Quaresma, que juntasse, à
busca de eventuais sobreviventes das naus perdidas, uma missão geográfica capaz de
aprofundar e actualizar o conhecimento desta secção da costa africana, relativamente ao
que fora fixado no Planisfério dito de Cantino, que cumpria essencialmente funções
políticas.
Se, de algum modo, encontramos um vazio documental na sequência desta
expedição de 1505, há outros dados que, de forma indirecta, podem confirmar o
aprofundamento no conhecimento da costa meridional do continente africano.
A este respeito, salientamos o regimento de Diogo Lopes de Sequeira, de 13 de
Fevereiro de 1508, que estabelece um ancoradouro diferente do habitual para aguada e
encontro das naus, após a passagem do cabo da Boa Esperança:
“(…) E dobrado o dito cabo prazemdo a Nosso Senhor hirees demandar a Amgra da Roca
porque dally nos parece que devees fazer voso caminho pera a terra de Sam Lourenço por
parecer mais proveitoso. E queremos que toquees aquy na Amgra da Roca pera se algum
navio da vosa conserva se apartar de vos ho irdes ally buscar a elle a vos como ao diante
vos sera declarado.
625
Memoria das armadas que de Portugal passaram à Índia e esta primeira é a com que Vasco da Gama
partiu ao descobrimento dela por mandado de El-Rei Dom Manuel no segundo ano de seu reinado e no do
nascimento de Cristo de 1497, Edição fac-similada do Manuscrito da Academia das Ciências de Lisboa, in
Luís de ALBUQUERQUE (Introd. De), Macau, Instituto Cultural de Macau, Museu Marítimo de Macau e
Comissão Territorial de Macau para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1995, fl. 4.
626
IDEM, ibidem, fl. 5.
164
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
(…) depois de dobrado o Cabo da Boa Esperamça como atras vos fica declarado e aquy
esperares por qualquer dos navios de vosa comserva que de vos se perdese dez dias e
nestes vos repairarees aquy do que vos comprir asy d’auga como lenha como qualquer
outra cousa”.627
627
“Regimento de Diogo Lopes de Sequeira”, in D.P.M.A.C., Vol. II (1507-1510), (...), pp. 240-246.
628
IDEM, ibidem, p. 246.
629
Sublinhado nosso.
630
Simão Ferreira PAIS, “As Famozas Armadas Portuguezas” (Ms. 1650), in D.P.M.A.C., Vol. I (1497-
1506), (...), p. 90.
631
João de BARROS, op. cit., Primeira Década, (…), p. 369.
165
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
que viria a ser explorada anos mais tarde por Lourenço Marques.632 Porém, Manuel de
Mesquita Perestrelo, no seu roteiro do sul da África refere ter sido na aguada de S. Brás
que mataram João de Queirós, “com quasi toda sua companhia, no ano de mil quinhentos
e cinco, na armada de Pêro de Anaia, por se meter pela terra dentro a tomar gado por
força”.633
Em 20 de Novembro de 1506, Diogo de Alcáçova escreveu de Cochim uma carta
para o rei, com informações relativas ao sertão de Sofala.
Para Alcáçova, que afirma ter um conhecimento “muito certo” sobre as coisas de
Sofala, as populações indígenas são descritas como ladrões e descrentes. Afirma que os
mouros que dominam o comércio no litoral não penetram mais que quatro léguas pelo
sertão “porque os roubam os caferes e matam porque nom creem em nenhuma cousa”.634
A designação das populações como cafres está associada aos perigos da selvajaria, porque
matam e roubam, e à incredulidade, que categoriza estas populações como pagãs ou
gentias. A imagem da selvajaria e descrença dos cafres é construída com memórias da
experiência de destruição do forte de estacas recentemente erguido e a morte do capitão
e do feitor. Mas o autor da carta poderá também ter recebido informações de mercadores
islamizados da região, que designavam as populações do interior como descrentes.
Alcáçova refere-se também ao grande reino de Ucalanga, de onde provém o ouro de
Sofala, com “muytas villas muito grandes”, desde o sertão até à “beyra do mar”, extensões
imensas que os reis “nom curam muito nem pouco dela se a senhoream os mouros”.635
Esta carta estabelece alguns dos estereótipos que vão constituir o “topos”
Cafraria, vindo a consolidar e ampliar a imagem monstruosa da antropofagia, veiculada
oficialmente pela carta de D. Manuel ao rei Católico pouco tempo antes.
O desconhecimento real dos territórios do interior alimentava-se de factos e mitos
que se mesclavam, que se refaziam e transmitiam dentro das tradições de oralidade, nas
quais se integram as africanas.
632
IDEM, ibidem.
633
Manuel de Mesquita PERESTRELO, “Roteiro dos portos, derrotas, alturas, cabos, conhecenças,
resguardos e sondas, que á per toda a costa desdo cabo de boa esperança ate o das correntes”, in COSTA,
Abel Fontoura da (ed.), Roteiro da África do Sul e Sueste desde o Cabo da Boa Esperança até ao das
Correntes (1576), Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1939, p. 22.
634
“Carta de Diogo de Alcáçova para El-Rei”, in D.P.M.A.C., Vol. I (1497-1506), (...), p. 390. (sublinhado
nosso)
635
IDEM, ibidem.
166
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
636
João de BARROS, op. cit., Primeira Década, (…), p. 369.
637
“Carta de Duarte Lemos para El-Rei”, in D.P.M.A.C., Vol. II (1507-1510), (...), pp. 282.
638
IDEM, ibidem.
639
IDEM, ibidem.
167
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
640
“Inquirição de testemunhas, tirada por Rui Varela, escrivão da feitoria de Moçambique” [Moçambique,
25 de Agosto de 1509 – sobre as razões que conduziram à arribada da nau Madanela à Aguada de S. Brás],
D.P.M.A.C., Vol. II (1507-1510), (...), pp. 356-369.
168
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
história da relação dos portugueses com a África meridional, deve ser considerado quando
se reflecte sobre uma determinada imagem em construção. Em finais do século XV e
durante os séculos XVI e XVII, a produção escrita era apenas uma das dimensões da
transmissão das notícias das viagens. Como demonstram os estudos de Bouza Álvarez,
na Época Moderna os mecanismos da transmissão oral desempenhavam um papel crucial
na divulgação de notícias, nomeadamente entre os que não tinham acesso à leitura.641 Nas
“notícias”, que circulavam no âmbito da cultura popular, incluíam-se relatos de
experiências de interacção com terras e gentes muito distantes vividas pelas tripulações
das naus. No regresso das viagens, tais notícias eram contadas e recontadas, matizavam-
se com outras informações, com contos orais, com lendas e fabulações, que permaneciam
nas memórias dos que contavam e dos que ouviam. Tais notícias estavam sujeitas ao
imaginário, aos arquétipos que estruturam o pensamento e a invenção,642 por isso também
terão contribuído para a construção de uma imagem dos povos dos confins da África.
641
Fernando Jesus BOUZA ÁLVAREZ, Del Escribano a la Biblioteca. La Civilizatión Escrita Europea en
la Alta Edad Moderna (Siglos XV-XVII), Madrid, Editorial Síntesis, 1992, pp. 27-28.
642
Partilhamos a ideia de Lucian Bóia, de que a história, como “aventura do espírito”, é permanentemente
trespassada pelo imaginário. Cf. Lucian BOIA, Pour une Histoire de l’Imaginaire, Paris, Les Belles Lettres,
1998.
643
Jean Philibert BERJEAU, (introd. e trad. para inglês), Calcoen. A Dutch Narrative of the Second Voyage
of Vasco da Gama to Calicut, printed at Antuerp circa 1504, London, Basil Montagu Pickering, 1874.
644
Augusto Carlos Teixeira de ARAGÃO, Vasco da Gama e a Vidigueira. Estudo Histórico, Lisboa,
Imprensa Nacional, 1898, p. 89. Este estudo sobre Vasco da Gama inclui, entre as páginas 87-95, a tradução
portuguesa do texto impresso em Antuérpia, cerca de 1504, p. 88.
169
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
porque a terra “abunda em prata, oiro, pedras preciosas e riqueza”.645 A descrição da terra
dos Paepians refere-se a gentes e reis, lugares, costumes e mercadorias da África oriental.
O rio dos Paepians era provavelmente o Zambeze ou Cuama e Miskebyc, a ilha de
Moçambique. Neste texto, acerca do sudeste africano, estão ausentes juízos de valor
decorrentes de percepções da diversidade cultural. Porém, quando no relato da viagem o
curso da armada se aproxima da terra da Arábia, então o autor refere-se a Meca, como a
cidade onde jaz “o demónio dos pagãos”.646 O espaço africano e as suas populações, não
suscitaram oposição nem juízos negativos. Essa atitude está antes associada ao espaço do
Islão, cujos estereótipos negativos estariam enraizados na cultura europeia cristã.
Um ano depois, na armada de 1503, sob o comando de Afonso de Albuquerque,
numa das naus seguia a bordo o mercador florentino, Giovanni da Empoli, como agente
de uma casa comercial de Florença, que registou as suas impressões sobre os habitantes
da África meridional. O seu relato foi integrado na colectânea de textos sobre as
novidades das navegações portuguesas, organizada em três volumes por Giambattista
Ramusio, e publicada pela primeira vez em Veneza, no ano de 1550. Uma segunda edição
do primeiro volume saía logo no ano de 1554, o terceiro volume em 1556 e o segundo
volume, em 1583, sob o título Delle Navigationi et Viaggi.647 A integração nesta
colectânea, do texto de Giovanni da Empoli sobre a escala feita na aguada de S. Brás,
consagra a primeira difusão de uma descrição dos Khoikhoi. De um modo completamente
diverso do texto flamengo Calcoen, Empoli narra uma terra de águas abundantes e prados
repletos de gado, onde vivia uma humanidade bruta e bestial – “huomini bestiali”.
Segundo a descrição, esta gente vestia-se com peles de animais, comia carne crua e falava
uma língua que ninguém entendia, pois que na armada viajavam homens conhecedores
de diversos idiomas e mostraram-se incapazes de decifrar tais falares.648
645
IDEM, ibidem, p. 89.
646
IDEM, ibidem, p. 91.
647
Giovanni Battista RAMUSIO, Primo volume della Navigationi et Viaggi nel quale si contiene la
Descrittione dell'Africa, & del paese del Prete Janni, con viaggi dal mar Rosso à Calicut, & insin'all'isole
Molucche, doue nascono le spetierie, et la nauigatione attorno il mondo, Venezia, Appresso gli heredi di
Lucantonio Giunti, 1550. A 2ª edição saíu em 1554; a 3ª edição, em 1563; a 4ª edição, em 1588 e a 5ª
edição, em 1606. Veja-se sobre este assunto, Luciana Stegagno PICCHIO, Portugal e os Portugueses no
Livro das «Navigationi» de G. B. Ramusio, Lisboa, Centro de Estudos de História e de Cartografia Antiga
– Instituto de Investigação Científica Tropical, 1984, Série Separatas, Nº 152, pp. 3-4.
648
Giovanni Battista RAMUSIO, ibidem, fl. 156 vº.
170
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
649
François-Xavier FAUVELLE-AYMAR, L’Invention du Hottentot. Histoire du regard occidental sur les
Khoisan (XVe-XIX Siècle), (…), p. 53.
650
Marion EHRHARDT, A Alemanha e os Descobrimentos Portugueses, Lisboa, Texto Editora, 1989, pp.
95-100.
651
Jürgen POHLE, Os Mercadores-Banqueiros Alemães e a Expansão Portuguesa no Reinado de D.
Manuel I, Lisboa, Coleção CHAM eBooks, CHAM, 2017, pp. 83-86.
652
Segundo Marion Ehrhardt, este relatório de viagem manuscrito integra-se num códice com o título
“Livro Paumgartneriano de Usanças”, da família dos Paumgartner que, em meados do século XVI, se
moveu nos altos círculos mercantis e banqueiros, entre Nuremberga e Augsburgo. Terá sido Hans I
171
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
por Marion Ehrhardt, revela-nos um relato minucioso do itinerário de viagem, das praças
mercantis importantes, suas mercadorias, pesos, medidas e valores. Neste itinerário
descreve “Sofala do rei de Quiloa”, terra do ouro, que provinha das terras africanas do
interior, cujos habitantes “os pagãos” chamam “cafres”:
“O ouro chama-se arábico, e não se encontra em Sofala mas vem da terra, e o povo trá-lo
e dá-o aos pagãos em troca de mercadoria, cuja maior parte são panos de algodão de
cambaia. E os pagãos chamam ao povo da terra cafres”.653
Este texto do agente alemão anónimo, redigido entre 1503 e 1504, integra um dos
primeiros registos escritos que se conhecem do vocábulo “cafre” para designar as
populações africanas dos territórios do interior, que forneciam o ouro a Sofala.
Curiosamente, o autor designa de “pagãos” os mercadores muçulmanos que
desenvolviam o trato em Sofala. Esta poderá ter sido uma designação corrente aplicada
às gentes não cristãs, professas em qualquer outra religião, pois como observámos no
texto do mercador flamengo, intitulado Calcoen, a cidade de Meca foi identificada pelo
autor como aquela onde jaz “o demónio dos pagãos”. O signo “pagãos” é aplicado pelos
observadores europeus, neste contexto, aos mercadores suaíli, que são os responsáveis
por transmitir o vocábulo “cafre”, identificativo do povo da terra.
A introdução do vocábulo “cafre”, que resulta da recolha de informações durante
a referida expedição de 1503-1504, pressupõe contextos de comunicação verbal com
gentes da costa leste africana no âmbito dos quais, tanto o agente alemão, como os
portugueses desta armada, foram expostos aos significados do vocábulo identificativo.
Paumgartner que compilou este códice, fixando aí vastas informações relativas ao comércio europeu e
ultramarino. Sobre este assunto veja-se Marion EHRHARDT, op. cit., pp. 71-72.
653
IDEM, ibidem, p, 78. (sublinhado nosso)
172
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Sobre Hans Mayr, sabe-se que era escrivão da nau e que deixou um relato que foi
integrado no Manuscrito de Valentim Fernandes. Na sua descrição sobre a conquista de
Quíloa, refere a riqueza desta cidade bem como as populações que a habitavam,
distinguidas entre “senhores” (“moiros da terra”, “mouros aluos”, “mouros brancos e
senhores destes escravos”) e os “escravos negros”, muitos dos quais serviam como
frecheiros dos “reis mouros”, usando na guerra “setas sem ferro”.654 Também em
Angediva, Mayr refere a autoridade exercida por “mouros brancos” sobre os habitantes
locais, “gentios baços”. Os “senhores das cidades” tinham no seu exército gente a cavalo
e tinham sempre guerra “com os gentios”.655
O relato de Mayr transmite uma percepção das cidades suaíli como espaços
urbanos associados a um domínio “branco” / “alvo”, islamizado, exercido sobre
populações “negras” / de “escravos” / “gentios”. Ora, esta percepção de populações
muçulmanas e populações gentias que partilham um mesmo espaço expressava também
as próprias percepções identitárias locais, no contexto das quais terá sido recolhido o
vocábulo “cafre”, associado aos “negros”, “gentios”, ou seja, às populações não
islamizadas. Este é um dado muito importante que nos confirma que o vocábulo “cafre”
entrou nos falares portuguese e europeus pela via dos mercadores suaíli.
654
Códice Valentim Fernandes, leitura paleográfica, notas e índice por José Pereira da COSTA, Lisboa,
Academia Portuguesa da História, 1997, pp. 348-352.
655
IDEM, ibidem, p. 357.
656
Jean Michel MASSING, “Hans Burgkmair's Depiction of Native Africans.” RES: Anthropology and
Aesthetics, The University of Chicago Press, No. 27 (Spring 1995), p. 41.
173
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
657
Mark P. McDONALD, “Burgkmair’s Woodcut Frieze of the Natives of Africa and India”, in Print
Quarterly, Vol. 20, No 3 (September 2003), p. 230.
658
Jean Michel MASSING, op. cit., pp. 42-43.
174
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
de fitas elaboradas a partir dos intestinos dos animais, transmitindo a ideia de comunhão
entre o elemento humano e os animais de criação.659
Numa outra versão desta temática, impressa em 1508, um casal de adultos está de
pé, vestem-se com peles de animais e seguram bastões, uma criança está ao peito da
mulher e outra entre os adultos, levantando uma perna.
Como afirma Fauvelle-Aymar, a gravura sublinha o aspecto “peludo” dos adultos,
deixando campo aberto aos leitores para a livre associação com figuras mitológicas ou
lendárias. Porém, as posturas dos corpos, os gestos e a composição do cenário parecem
evocar um certo estado de inocência, que caracteriza as representações de Adão e Eva em
Dürer. Ao tempo destas primeiras gravuras impressas, não havia convenções seculares
para a representação iconográfica dos habitantes de terras estranhas e o protótipo para a
nudez nativa era encontrado nas cenas de Adão e Eva no Paraíso.660 Segundo Fauvelle-
Aymar, a postura dos corpos, os gestos, o décor, com a árvore no plano anterior, evocam
um certo estado de inocência que caracteriza as representações de Adão e Eva em Dürer,
ou mesmo em Burgkmair.661
Com base no relato de viagem escrito por Springer e outras informações que estão
presentes em detalhes que não constam do texto, Burgkmair criou uma imagem das
populações Khoi, que fontes e relatos de expedições posteriores haveriam de
confirmar.662 Burgkmair não viajou e não observou estes habitantes da costa meridional
africana, mas é muito provável que tenha tido acesso a alguns esboços feitos por
acompanhantes de Springer, pois só deste modo tais pormenores, ausentes do texto,
poderiam ser representados com tanta precisão.
659
Nas comunidades de pastores Khoikhoi havia um intenso envolvimento entre os humanos e os animais
de criação. Quando se sacrificava um animal nos rituais de nascimento, puberdade, casamento e morte, os
seus intestinos passavam a ser usados para fazer adornos usados em volta do pescoço e tronco. As entranhas
dos animais, convertidos em símbolos de comunhão e bem-estar nestas comunidades, repugnaram os
europeus que, desde os primeiros contactos, registaram graficamente este estranho elemento de
identificação. Cf. Noël MOSTERT, op. cit., p. 35.
660
François-Xavier FAUVELLE-AYMAR, L’Invention du Hottentot. Histoire du regard occidental sur les
Khoisan (XVe-XIX Siècle), (…), p. 59.
661
IDEM, ibidem. Veja-se nota 141 do autor.
662
Jean Michel MASSING, op. cit., p. 43.
175
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
In Allago (In Algoa), impresso a partir das gravuras de Hans Burgkmair, em 1508.
Representação que segue de forma mais próxima as descrições de Springer.
176
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Nativos da Guiné e Algoa: a primeira folha do friso impresso a partir das gravuras de Hans Burgkmair.
In Natives of Guinea and Algoa, natives of Arabia and India. Two sheets of a frieze printed from eight blocks
joined together, printed by Georg Glockendon, 1511.
© The Trustees of the British Museum
https://www.britishmuseum.org/collection/image/56801001 (consultado em 30/12/2020)
663
Valentin-Yves MUDIMBE, op. cit., p. 9.
177
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
664
IDEM, ibidem, p. 8.
665
IDEM, ibidem, p. 9.
178
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
“(...) o Viso Rey D. Francisco de Almeyda (...) fazendo seu caminho passou com bom
tempo o Cabo de Boa Esperança; e como quem se avia já por navegado, disse: Ia as
feiticeiras de Cochim, ficarão mentirozas; e isto era porque em a India andava em a boca
de alguns, que elle o não avia de passar, o qual pronostico dezião proceder das feiticeiras
da terra. E como vinha necessitado de agua, e por detraz do Cabo a avia a que chamão a
aguada de Saldanha, mandou aos pilotos que a fossem tomar: & por se recrearem os
homens da tristeza do mar, deu licença, que quando os bateis fossem em terra, sahissem
alguns soldados a fazer resgate com os negros, que logo acudirão a praya (...)”666
666
“Do fim mizeravel que teve D. Francisco de Almeyda em o anno de 1510”, in Rellação de Varios
Naufragios. B.P.M.P., Reservados, Códice 737, (data desconhecida), fl. 1. (Transcrição nossa). Vide
Anexos, Doc. 1.
667
Richard ELPHICK, op. cit., pp. 51-53.
179
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
sucumbiam, em 1510, junto ao Cabo da Boa Esperança, numa batalha com pastores
Khoikhoi.
Este acontecimento originou relatos e evocações em quase todas as obras
clássicas dos historiadores portugueses. Discursos orais e escritos confluiram para uma
versão que havia de se materializar na escrita dos cronistas e que, devido à distância
espacial, temporal e vivencial, relativamente aos factos a que se refere, havia de se
constituir como uma representação, ou seja, como uma construção do objecto, ou mesmo
uma recriação, resultante de condições culturais e mentais.668
Na ausência de testemunhos escritos resultantes da vivência directa, apenas
podemos analisar o acontecimento da aguada de Saldanha a partir da versão que se tornou
comum nos relatos indirectos, que foram redigidos muito posteriormente a 1510.
Baseados em diversas fontes informativas, esses relatos não são unívocos quanto ao
motivo que desencadeou a agressão. Porém, parecem ser unânimes em reconhecer a
responsabilidade dos portugueses, tanto no desencadear da escaramuça, como no
posterior agravamento da interacção entre os portugueses e o clã Goringhaiqua.
Dizem os textos que, passado o Cabo com tempo bonançoso, os navios fizeram
escala na aguada de Saldanha. Entre o abastecimento de água e lenha e a troca de carne
por peças de metal e tecidos, alguns marinheiros aventuraram-se a acompanhar os
africanos até às suas aldeias (cerca de uma légua pelo sertão), onde as habitações se
organizavam à volta de currais abundantes de gado.
De acordo com o texto de Fernão Lopes de Castanheda (1552), um homem de
nome Diogo Fernandes Labaredas ter-se-á aventurado até uma aldeia no sertão trazendo
de lá um grande carneiro.669 Gabou a terra e sua abundância em gados, pelo que o vice-
rei lhe ordenou que lá voltasse com mais doze homens para “resgatar daquele gado pera
fazer carnajem”.670 Foram bem agasalhados e banquetearam-se em convívio com os as
gentes da terra, quando um dos homens se lembrou de tomar à força um “negro” a fim de
o levar ao vice-rei que o vestiria ricamente, para que eles e os portugueses vindouros
viessem a beneficiar nos resgates daquela aguada. O negro ameaçado com um “punhal
668
José da Silva HORTA, “O Africano: produção textual e representações (séculos XV-XVII)”, in
Condicionantes Culturais da Literatura de Viagens. Estudos e Biografias, (…), p. 265.
669
Fernão Lopes de CASTANHEDA, História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses,
Liv. II, Cap. CXXIII, Porto, Lello & Irmão, 1979, Vol. I, p. 484.
670
IDEM, ibidem.
180
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
nos peitos” gritou por ajuda, ao que os outros acudiram atirando muitas pedras, que
feriram alguns portugueses.
João de Barros, na sua Década II (1553), descreve uma mesma abordagem inicial
pacífica, baseada na permuta de bens entre os marinheiros, que tiveram licença para vir a
terra “recrear da tristeza do mar”, e as populações autóctones, que logo acorreram à praia
assim que viram as naus ancoradas.671 Infere-se das palavras de Barros que alguns homens
abusaram desta licença e acompanharam os Khoi às suas aldeias, a uma légua pelo sertão,
e que nessa ida alguns perderam ou lhes roubaram os punhais. Para disto se vingar,
Gonçalo Homem, criado do vice-rei, trouxe “enganosamente” dois “negros” para a praia,
o que conduziu à agressão que o deixou com “os fucinhos feitos em sangue, e alguns
dentes quebrados”.672
Noutros textos, como Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel, de Damião de Góis,
Da Vida e Feitos de El-Rei D. Manuel, de D. Jerónimo Osório, Ásia Portuguesa, de
Manuel de Faria e Sousa, a narrativa destes episódios sofre algumas variações, o que é
próprio de relatos indirectos, redigidos muito posteriormente aos acontecimentos.673
O relato de Gaspar Correia dá-nos pormenores sobre a estadia na aguada de
Saldanha que mais nenhum cronista refere.674 Este cavaleiro, que viajou para o Oriente
em 1512, onde passou a maior parte da sua vida e morreu em 1563, foi escrivão particular
de Afonso de Albuquerque. Pela sua anterioridade relativamente a Barros e a Castanheda,
o seu relato merece a nossa atenção.675 Refere que D. Francisco de Almeida permaneceu
dez dias na aguada de Saldanha, para recolha de água e lenha. Explica que a estadia se
alongou devido à distância da fonte e porque os marinheiros traziam a água em barris,
enchendo depois as pipas nos batéis. O caminho “era per antre huns matos, dentro do qual
auia pouoações de Cafres, que tem criações de cabras e vaccas, pera sua mantença de seu
leite e manteiga”.676 O autor procura sondar o “Outro” e interpretar as suas expectativas
671
João de BARROS, op. cit., Segunda Década, (…), p. 144.
672
IDEM, ibidem, pp. 144-145.
673
Damião de GÓIS, Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel, Nova edição conforme a Primeira de 1566,
Parte II (1953), Coimbra, Por Ordem da Universidade. Jerónimo OSÓRIO, Da Vida e Feitos de El-Rei D.
Manuel, Edição actualizada e prefaciada por Joaquim FERREIRA, Vol I, Porto, Livraria Civilização, 1571.
Manuel de Faria y SOUSA, Ásia Portuguesa, Tomo I (1666), Tomo II (1674), Lisboa, En la Officina de
Antonio Craesbeeck de Mello Impressor de Sua Alteza.
674
Gaspar CORREIA, op. cit..
675
Joaquim Veríssimo SERRÃO, A Historiografia Portuguesa. Doutrina e Crítica Vol., Lisboa, Editorial
Verbo, 1972, p. 237.
676
Gaspar CORREIA, op. cit., p. 992.
181
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
e receios. Neste sentido, refere que os habitantes daquela baía, ao verem três naus e tanta
gente, temeram que os estranhos se apoderassem da aguada, o que os levaria a perder os
seus gados. Por isso, andavam pelos matos escondidos enquanto os portugueses
acartavam água. Vindo alguns habitantes locais ao resgate com os portugueses, houve
marinheiros que quiseram tomar uma vaca sem pagar o preço pedido, facto que teria
originado um mal-entendido a que, de um lado e do outro haviam de acudir mais homens
com as armas que cada um tinha, de que resultaram muitos feridos.
Segundo Castanheda, ao chegarem feridos e ensanguentados diante do vice-rei, os
marinheiros contaram a história de modo que não assumiram ser eles a “causa de se
levantarem os negros”. Gaspar Correia vai mais longe, emitindo mesmo um juízo sobre
a condição portuguesa em que os homens sempre querem tomar o alheio às “pobres gentes
da terra”.677
Damião de Góis, Jerónimo Osório, Faria e Sousa reforçam a ideia de que terá sido
forjada uma versão para que os culpados ficassem ilibados e o vice-rei fosse incitado a
punir os africanos. Faria e Sousa não poupa críticas àqueles que se pronunciaram a favor
do ataque:
“(…) imprudentíssimos cavaleiros, que com aquêle facto se deram por feridos no que êles
chamam quási divindade, para tirar satisfações persuadiram o Vice-Rei (não se meteram
nisto, se bem que o acompanharam, Lourenço de Brito, Jorge de Melo e Martim Coelho)
a que para esta acção saísse a terra, em vez de o persuadirem a que castigasse o seu criado
por ir ofender gente cuja terra se ia procurar para refrêsco. Esta seria a política.”678
As posições dividiram-se, mas venceu o partido daqueles que queriam dar uma
lição aos africanos e o vice-rei acabou por aceder em empreender o que seria uma fatídica
expedição punitiva numa aldeia Khoi. Cento e cinquenta homens deixaram a praia já
depois da uma hora da manhã para que o ataque-surpresa ocorresse de madrugada. Pelo
caminho apoderaram-se de algum gado grosso. Pero Barreto e Jorge Barreto entraram
cada um com sua gente por duas diferentes partes da aldeia, ao que os africanos de
imediato responderam com as suas armas. Dizem os relatos que a primeira vítima do lado
dos portugueses foi Fernão Pereira, que estava dentro de uma cabana e que terá sido
677
IDEM, ibidem, p. 992
678
Manuel de Faria e SOUSA, Ásia Portuguesa., Vol. 5, Biblioteca Histórica, Série Ultramarina, Lisboa,
Livraria Civilização Editora, 1945, p. 277.
182
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
atingido por um dos seus companheiros que, ouvindo ruído no interior da habitação,
julgou ser um cafre e o atravessou com uma lança.
Estavam em confronto dois grupos de grande contraste: de um lado - os Khoikhoi,
pastores de coloração acastanhada, a cor “baça” dos primeiros registos; de outro lado - os
portugueses, homens pálidos de barbas negras, ricamente vestidos. Os primeiros,
conhecendo o terreno em que se moviam e usando como armas surrões de couro cheios
de pedras, molhos de “curtos arremessões” e lanças de pau tostado; os segundos,
estranhos aos “ásperos” caminhos do sertão, levavam consigo apenas lanças e espadas.
Estavam tão auto-confiantes da sua missão que não se fizeram acompanhar de armas de
fogo. Quando se aperceberam da desvantagem, e numa tentativa de intimidação do
inimigo, agarraram algumas crianças, o que causou ainda maior fúria entre os africanos,
que se lançaram no combate como “gente que se vinha offerecer á morte por saluar os
filhos”.679 É então que, por certos assobios e sinais dirigidos ao gado, os animais foram
utilizados pelos africanos na sua estratégia de guerra. Os portugueses desbarataram rumo
à praia, sempre seguidos dos adversários e suas manadas de gado que os pisavam, ferindo
e matando muitos. Na praia, já o cansaço lhes tolhia os passos e o desalento lhes tomava
o espírito. Por coincidência, os batéis tinham sido levados para mais longe porque a
corrente marítima tinha mudado e, numa atitude de desespero, alguns homens entravam
pelo mar tingindo-o de sangue. Neste quadro dramático, o vice-rei foi atingido por uma
lança de pau tostado que lhe atravessou a garganta e lhe retirou a vida.
Consta nos relatos que, no final, os africanos despiram o vice-rei e levaram como
troféu as suas peças de vestuário de veludo carmesim. Os corpos ficaram espalhados por
aquela praia dos confins da África e, só quando pareceu seguro, os sobreviventes
regressaram nos batéis para recolher os feridos e dar sepultura aos mortos. Ali teriam
ficado os restos mortais do vice-rei, em terra estranha, não cristã, no próprio espaço que
simbolizava a abertura do vasto Oriente.
O primeiro documento fazendo menção à morte do vice-rei na aguada de
Saldanha data de 2 de Março de 1510, o dia imediato à tragédia. Trata-se de uma acta
redigida pelo escrivão da nau Belém, António Martins, que formalizou a nomeação de
Jorge Barreto como capitão da nau Garça. A referência à morte do vice-rei resume-se ao
679
João de BARROS, op. cit., p. 146.
183
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
seguinte: “Aos ij dyas do mes de março de 1510, nagoada d Amtonio de san (sic)
saldanha, foy morto Dom Framçysquo d Almeida vyso Rej das Jmdeas (...)”.680
Este documento de natureza administrativa terá sido escrito após os
sobreviventes da tragédia regressarem à praia para recolherem os feridos e sepulturar os
mortos. Mesmo assim, não se encontra no texto qualquer traço de consternação.
O primeiro texto impresso que associa a tragédia à aguada de Saldanha e ao cabo
da Boa Esperança foi escrito por Martin Fernández de Figueroa e publicado em Saragoça,
por Juan Augur, em 1512.681 Ao descrever o regresso de Duarte Lemos para Portugal
afirma que, perante a necessidade de abastecimento de água, junto ao Cabo da Boa
Esperança, a armada ancorou na aguada de Saldanha onde viram muitas cabeças de
mortos, sepulturas e pedaços de vestuário e que logo reconheceram ser gente do vice-rei,
tendo mesmo identificado o corpo de D. Francisco de Almeida.682
O texto estabelece uma dicotomia entre “los negros de aquella tierra”, povo
estranho de uma terra distante e não cristã, autor das maiores crueldades, e as pessoas
“mas catholicas, valientes, generosos y esfforçadas de portogal” que, através daquele
conflito, se converteram em mártires imortais. A dicotomia que este primeiro texto
impresso parece fixar reflecte o impacte da notícia da morte do vice-rei e das
circunstâncias em que ocorreu, tanto na corte portuguesa, como na castelhana. A
percepção daquela batalha, entre portugueses e pastores Khoikhoi, como um “massacre”
ecoou pelos séculos através da pena dos mais diversos autores portugueses, desde os
680
“Morte de D. Francisco de Almeida”, in Portugaliae Monumenta Africana, (…), Vol. 3, 1995, doc. 6,
p. 21.
681
Juan AUGUR [segundo notas de Martin Fernández de Figueroa], “Conquista de las Indias de Persia y
Arabia que fizo la armada del rey don Manuel de Portugal & de las muchas tierras: diuersas gentes: extrañas
riquezas & grandes batallas que alla ouo”, Salamanca, 1512, Seg. o exemplar da Bibl. Palha, n.º 4139,
Biblioteca da Univ. Harvard, Capítulo XLIX-L, pp. 150-154. Existe uma cópia do texto original de Martín
Fernández de Figueroa, que se conserva na biblioteca do Harvard College e que foi traduzido e comentado
por James B. McKENNA, A spaniard in the portuguese indies. The narrative of Martin Fernández de
Figueroa, Cambridge, Harvard University Press, 1967.
682
Duarte Lemos embarcara para a Índia, em 9 de Abril de 1508, como capitão de uma das 13 caravelas da
armada de que era capitão-mor seu tio materno, Jorge de Aguiar, que ia substituir D. Francisco de Almeida
como vice-rei. Com o naufrágio de Jorge de Aguiar, abertas as sucessões determinadas pelo rei, Duarte de
Lemos achou-se sucessor do tio como Capitão-mor do Mar e da Costa da Etiópia e da Arábia, cargo
importante e o mais rendoso a seguir ao de Vice-Rei, em que se viu sucessor D. Afonso de Albuquerque,
com quem Duarte de Lemos se incompatibilizou, pois defendia a estratégia comercial de D. Francisco de
Almeida e não a visão imperial de Albuquerque. Por pressão deste, depois de ter desempenhado o seu cargo
durante três anos, Duarte de Lemos é mandado regressar a Lisboa. Regressa em dezembro de 1510,
chegando a Lisboa em 3 de Julho de 1511. Cf Jean AUBIN, “A propôs de la Relation de Martín Fernández
de Figueroa sur les conquêtes portugaises dans lÓcéan Indien (1505-1511)”, in Bulletin des Etudes
Portugaises, Tome Trente, Lisbonne, Institut Français au Portugal, 1969, p. 54.
184
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Este aviso num roteiro, cerca de vinte e cinco anos depois da morte do vice-rei,
alertava aqueles que governavam as naus para uma atitude de cautela relativamente à
utilização da aguada, habitada por gentes já categorizadas como negros traiçoeiros. Se os
dados técnicos do roteiro se destinavam a ser lidos e interpretados pelos pilotos e sota-
pilotos, esta informação teria, certamente, um alcance mais vasto, em termos da tripulação
dos navios. Não será difícil imaginar de que modo este dado roteirístico terá reforçado os
medos, as fantasias e os mitos que alimentavam o imaginário dos homens do mar, bem
como as divagações fabulosas sobre aquele espaço intermédio onde confluiam o Atlântico
e o Índico, onde terminava a África e começava o Oriente, onde se avistava uma
misteriosa montanha, a Mesa do Cabo, terra de frescas águas e abundância de carnes, mas
que era um espaço habitado por uma estranha humanidade, que viam como selvagem e
perigosa.
683
“Roteiro das Costas Sul e Oriental da África”, [post. 1535], in D.P.M.A.C., Vol. VI (1519-1537), (...),
pp. 440-457.
684
IDEM, ibidem, p. 456.
185
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Do ponto de vista dos Khoi , que sofreram a agressão perpetrada pelos estranhos
que chegaram pelo mar, semelhantes a outros com quem ocasionalmente haviam trocado
objectos metálicos pelos seus animais domésticos, destaca-se um confronto que terá sido
marcante na memória do grupo: desde a desvalorização do gado (o bem mais precioso
para estas comunidades), que os marinheiros queriam roubar ou diminuir nos termos das
trocas, ao temor pelas suas vidas e famílias, até à batalha que matou muita gente dos dois
lados e expulsou os intrusos agressores para o mar. Consideramos que este acontecimento
terá deixado, certamente, forte marca na memória colectiva, a qual não nos é possível
aceder.
186
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
“(…) su tierra caliente, de mucho arroz e mijo. Trigo no lo hay. Los carneros de aquella
tierra son grandes, no tenientes cuernos ni lana; el pelo es como de perro blanco. Dice
Figueroa que en aquel río hay caballos marinos que salen a pacer en tierra e se vuelven
a la mar, las cola e ancas como potros, que en ninguna cosa difieren excepto en el efecto
del fin para que su nombre suena. Hay cañas de azúcar. (...) Hay sandalo blanco, oro,
ambar e otras riquezas. […] E cient leguas dentro en tierra, en un reino de cáferes que
se llama Benamotapa se halla el oro com que tratan en aquellas partes muy
copiosamente.”687
685
Frederick John NORTON, Printing in Spain 1501-1520, New York, Cambridge University Pres, 1966,
p. 177..
686
Donald Frederick LACH, Asia in the Making of Europe, Vol. II, Chicago, The University of Chicago
Press, 1994, p. 165.
687
Juan AUGUR [segundo notas de Martin Fernández de Figueroa], op. cit., p. 35.
187
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Em 1512, este discurso impresso dava notícia das novas terras, ao mesmo tempo
que valorizava o empreendimento cristão, sublinhando a dimensão épica da dilatação do
mundo conhecido, Figueroa descrevia a diversidade da terra e das gentes, bem como os
contactos históricos testemunhados:
“Andando peregrinando por tan estrañas tierras, el buen caballero Pedro de Añaya e los
suyos llegaron a una [ciudad] llamada de sus pobladores Quiloam, que dista de Sofala
doce leguas. Su gente es moros, cáferes ricos, los cuales no se circuncidan como hacen
los moros o los judíos.”688
As terras de entre Sofala e Quíloa são referidas como “estranhas”, habitadas por
“moros, cáferes ricos”, gente que não se circuncida, como fazem os mouros ou os judeus.
Na primeira referência parece haver alguma indefinição quanto à natureza dos cafres,
porém o adjectivo “ricos” torna-os objecto de curiosidade. Os próprios mouros destas
partes da África revelavam marcas distintas daqueles que historicamente já eram do
conhecimento ibérico, pois não praticavam a circuncisão.
O autor acrescenta informações que contribuem claramente para a definição de
um retrato moral dos cafres. Ao narrar o encontro de Pero d’Anhaia com os náufragos
portugueses de uma das naus perdidas em 1504689, entre o Cabo das Correntes e Sofala,
o relato dos acontecimentos conduz à formulação de uma imagem dos cafres, enquanto
elemento humano associado à desintegração da ordem. Na descrição de Figueroa, os
náufragos portugueses figuram como “perdidos” em terra estranha, enquanto os cafres,
usando o poder de senhores da terra, escarnecem e deleitam-se com o seu esgotamento,
negando-lhes alimento e obrigando-os a dançar até à exaustão. A derrota imposta pelos
cafres aos náufragos perdidos foi tal que, quando foram encontrados por Pero d’Anhaia,
aparentavam ter sofrido um processo de metamorfose, que envolveu a mutação cromática.
O discurso enfatiza um conjunto de marcadores culturais inteligíveis, dentro de
um sistema de linguagem e pensamento peculiar do ocidente europeu. François de
688
IDEM, ibidem.
689
Em 1504 naufragaram nos “Baixos de S. Lázaro” a nau Rainha, comandada por Francisco de
Albuquerque e a nau Faial ou Faia, que levava por capitão Nicolau Coelho. Ambos os naufrágios
ocorreram na viagem de regresso. Cf. Paulo GUINOTE, Eduardo FRUTUOSO e António LOPES, op. cit.,
p. 187.
188
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
690
Para uma análise da cor “negra” na escala de valores ocidentais, veja-se François de MEDEIROS, op.
cit., pp. 224-226. Ver ainda Theresa H. PFEIFER, “Deconstructing Cartesian Dualisms of Western
Racialized Systems: A Study in the Colors Black and White”, in Journal of Black Studies, Vol. 39, No. 4
(Mar., 2009), p. 533.
691
Juan AUGUR [segundo notas de Martin Fernández de Figueroa], op. cit., p. 36.
692
A Bíblia de Jerusalém, (Nova Edição Revista), S. Paulo, Edições Paulinas, 1986, Jeremias, 31-35.
189
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Acresce, a esta descrição, um poderoso juízo valorativo que define os cafres como
inimigos de guerra. Ao usarem processos bélicos estranhos, como os ataques nocturnos
inesperados, ao manipularem armas rústicas, como setas, flechas, dardos e azagaias, ao
integrarem gritos e alaridos na sua estratégia de guerra e ao levantarem a terra com os
pés, por forma a afirmarem a sua força e a simbiose com as forças ctónicas, os habitantes
das novas terras ambicionadas pela coroa portuguesa suscitavam o apelo dos cristãos à
guerra contra os cafres, como serviço de Deus e forma de alcançar a Salvação:
“El rey de Sofala e los cáferes llegaron a los cristianos dando voces e alaridos, echando
tierra e levantando arena com los pies, tirando flechas. Lo cual sentido de Pedro de Añaya,
mandó llamar e armar su gente a mucha priesa. […] Quién podría contar la excelencia,
grande ánimo e orden de Pedro de Añaya, fiero león a sus enemigos, armado e a punto,
que decía como viese venir infinidad de saetas e flechas, dardos e azagayas de los cáferes:
A ellos, compañeros e hermanos míos, generosos cristianos de España! Dad en ellos, que
la guerra de los cáferes más parece juego de cañas que gente de lid.”695
693
Mary DOUGLAS, Natural Symbols, 3ª ed., New York, Routledge Classics, 2003, p. 80.
694
Juan AUGUR [segundo notas de Martin Fernández de Figueroa], op. cit., p. 36.
695
IDEM, ibidem, pp. 48-50
190
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
696
Sobre a questão do bilinguismo castelhano-português no século XVI, veja-se Pilar VÁSQUEZ
CUESTA, “O bilinguismo castelhano-português na époda de Camões”, in Arquivos do Centro Cultural
Português, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian – Centro Cultural Português, 1981, pp. 807-827. Ver
também Ana Isabel BUESCU, Aspectos do bilinguismo português-castelhano na Época Moderna, in
Hispania, LXIV/1, num. 216 (2004), pp. 13-38.
697
Segundo Randles, esta carta data de 1512. Veja-se William G. L. RANDLES, L’Empire du Monomotapa
du XVe au XIXe Siècle, Paris, École des Hautes Études en Sciences Sociales - Centre de Recherches
Historiques, 1975, p. 18. Hugh Tracey estabelece como datas prováveis para esta carta 1515 ou 1516. Veja-
se Hugh TRACEY, op. cit., p. 20.
698
“Apontamentos de Gaspar Veloso, Escrivão da Feitoria de Moçambique, enviados a El-Rei (1515-16)”,
in D.P.M.A.C., Vol. III, 1964, pp. 180-188.
699
Hugh TRACEY, op. cit., pp. 17-19.
700
IDEM, ibidem, pp. 5 e 9.
701
R. W. DICKINSON, “António Fernandes – A Reassessment”, in Rhodesiana, Salisbury, nº 25 (Dez.
1971), pp. 46-47.
191
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
702
“Carta de Gaspar Veloso para o rei”, in Hugh TRACEY, op. cit., p. 28.
703
IDEM, ibidem, ps. 83 e 87.
704
William G. L. RANDLES, L’Empire du Monomotapa du XVe au XIXe Siècle, (…), pp. 33-38.
192
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
705
Hugh TRACEY op. cit, p. 20.
706
Ana Cristina Ribeiro Marques ROQUE, Terras de Sofala: persistências e mudança. Contribuições para
a História da Costa Sul-Oriental de África nos séculos XVI-XVIII, (…), p. 51.
707
Hugh TRACEY op. cit., p. 30.
708
IDEM, ibidem.
193
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
709
IDEM, ibidem, pp. 24 e 30.
710
IDEM, ibidem, p. 24.
711
Segundo a narração do itinerário desta viagem exploratória, através do planalto que liga Angola à contra-
costa, para leste do rio Cunene “habitam os bana-cutuba, assim denominados pelo uso de um cinto, d’onde
pende posteriormente uma pequena rodella de sola”. A descrição de uma cobertura posterior em couro, a
cutuba, que parece corresponder ao efeito visual de “rabos como de carneiro”, suscitou a curiosidade dos
viajantes e foi objecto de diversos registos gráficos no caderno de viagem de Roberto Ivens. A própria
narrativa do itinerário descreve os bana-cutuba como povos mestiços em que predomina o elemento
Khoisan, que durante milénios viveram nos territórios então em disputa pelas potências europeias aquando
da expedição de Capelo e Ivens. Cf. Hermenegildo CAPELLO e Roberto IVENS, De Angola à Contra-
Costa. Descripção de uma Viagem atravez do Continente Africano, Vol. I, Lisboa, Imprensa Nacional,
1886, p. 224. Manuel VILARINHO, Expedição Capello e Ivens através da África em 1884-85. Itinerários
da Viagem, Lisboa, Edições Culturais da Marinha, 1989.
194
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
O plural de “Twa” é “Batwa”, por vezes “Vatua”, o que corresponde não apenas
a um dado linguístico, mas também étnico.712 Muito provavelmente, a descrição de
António Fernandes referia-se às populações que compuseram um poderoso estado
Khoisan, a oeste do planalto, que explorava o cobre da região de Mombara e que terá sido
submetido a processos de absorção por povos Bantu, a partir do séc. XV, tal como a
arqueologia parece confirmar.713 De acordo com as informações que Gaspar Veloso
recolheu de António Fernandes, e que constam da carta enviada para o rei de Portugal, os
homens de Mombara traziam cobre a vender ao Monomotapa e praticavam o “comércio
silencioso”, tanto com os “mouros”, como com os “cafres”. 714 Além disso, referia que
estes povos praticavam a antropofagia ritual, ingerindo os seus mortos. Note-se que a
carta de Gaspar Veloso aludia a que esta informação teria sido transmitida oralmente a
António Fernandes pelos autóctones, muito provavelmente Carangas, com quem este terá
comunicado. A expressão “e dizem que …” indicia estes processos de circulação de
informações que se inscrevem num registo de oralidade. Neste contexto, teria ouvido
dizer que “quanto mais um negro fôr preto mais dinheiro dão por êle, para o comerem, e
dizem que a carne dos brancos é mais salgada que a dos pretos”.715
O tópico da antropofagia, patente neste texto, difundia e ampliava imagens
provenientes da oralidade africana e resultantes das construções da alteridade, no âmbito
da diversidade dos espaços culturais africanos. Deste modo, imagens africanas sobre
“outros” africanos entram em textos cuja leitura irá reforçar o estereótipo de que os povos
dos sertões africanos eram povos bárbaros, selvagens, antropófagos e temíveis.
As informações de António Fernandes, transmitidas pela pena de Gaspar Veloso,
referiam-se a comunidades humanas organizadas segundo um sistema de pensamento e
crença muito diverso do sistema cristão ocidental, o que se traduzia naquilo que Lévinas
designou por “alteridade absoluta” e por “heterogeneidade radical do outro”.716 O sistema
de referências do “Mesmo” esbarrava com a diversidade do “Outro”, com a separação
712
William G. L. RANDLES, L’Empire du Monomotapa du XVe au XIXe Siècle, (…), pp. 36-37.
713
IDEM, ibidem, p. 37. A hipótese da vassalização dos Khoisan pelos povos Caranga encontra
confirmação na arqueologia que revela que a cultura de Khami sucede à de Leopard’s Kopje: os crânios da
fase II têm características Khoisan (+ ou – 1080 d. C.) e os da fase III (1450) têm características mais
negróides.
714
Hugh TRACEY, op. cit., p. 24.
715
IDEM, ibidem.
716
Emmanuel LEVINAS, op. cit., pp. 20 e 22.
195
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
717
O Livro de Duarte Barbosa, Maria Augusta da Veiga e SOUSA (Prefácio, texto crítico e apêndice), Vol.
II, Lisboa, Ministério da Ciência e Tecnologia - Instituto de Investigação Científica Tropical - Comissão
Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000, p. VIII.
718
IDEM, ibidem, p. IX. Duarte BARBOSA, Livro em que dá relação do que viu e ouviu no Oriente Duarte
Barbosa, Augusto Reis MACHADO (Introdução e notas), Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1946, p. 6.
719
Francisco Fernandes LOPES, “Duarte Barbosa”, in Dicionário de História de Portugal, dirig. por Joel
SERRÃO, Vol. I, Porto, Livraria Figueirinhas, s.d., p. 298.
720
Giovanni Battista RAMUSIO, Primo volume, & quarta editione delle Navigationi et viaggi raccolto da
M. Gio. Batt. Ramusio & com molti vaghi discorsi da lui in molti luoghi dichiarato, & illustrato. In Venetia,
nella Stamperia de Giunti, 1588, fls. 287 vº. - 323 vº.
196
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
A versão portuguesa deste texto circulou sob a forma manuscrita, até aos começos
do século XIX, quando Mendo Trigoso o publicou na Colecção de Notícias para a
História e Geografia das Nações Ultramarinas, com a chancela da Academia Real das
Ciências. O número de cópias manuscritas, assim como a diversidade de locais onde se
conservam hoje essas versões, muitas vezes acrescentadas, interpoladas e glosadas pelos
copistas, são a prova de que o texto teve projecção na sua época pelas novidades que
versava.
Neste itinerário, em que o autor conduz o leitor pelas coisas “maravilhosas e
estupendas”721 do Oriente, destaca Ormuz e o Mar da Pérsia, passa pelo Gujerate, por
Ceilão e demora-se no Malabar, onde aprende os falares e exerce o ofício de escrivão da
feitoria de Cananor.
Com um discurso desprovido de erudição ou recurso às autoridades, a
credibilidade de Duarte Barbosa é atribuída por Ramúsio à experiência vivida em toda a
Índia e por ter amplamente navegado com os capitães portugueses.722 O próprio Duarte
Barbosa, no seu prefácio, declara ter feito todas as diligências para confrontar as notícias
que recolheu de informadores locais e ser o mais exacto possível nos conhecimentos que
veicula.
O traço orográfico do Cabo da Boa Esperança, onde então se considerava ser o
início do Oriente, marca o começo do texto, seguindo-se o Índico, numa estrutura que
lembra a de um roteiro.
Dois macro-espaços estão presentes na sua visão da África Sul-Oriental: o
primeiro, entre o Cabo da Boa Esperança e o Cabo de S. Sebastião (Inhambane); o
segundo, do Cabo de S. Sebastião até à Costa Suaíli e aos grandes centros mercantis de
Quíloa, Mombaça e Melinde. A cada um destes macro-espaços correspondiam
especificidades geográficas e antropológicas
Do ponto de vista antropológico, o texto de Duarte Barbosa destaca aspectos como
a cor da pele e o modo como são cobertos os corpos: as gentes são “pretas”, escassamente
cobertas com peles de animais selvagens. A descrição das primeiras gentes como
“pretas”, bem poderia corresponder às representações iconográficas de Burgkmair ou à
721
Duarte BARBOSA, Livro em que dá relação do que viu e ouviu no Oriente Duarte Barbosa, (…), p. 13.
722
Giovanni Battista RAMUSIO, Primo volume, & quarta editione delle Navigationi et viaggi raccolto da
M. Gio. Batt. Ramusio & com molti vaghi discorsi da lui in molti luoghi dichiarato, & illustrato, (…), fl.
287 vº.
197
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
A noção de distância cultural face aos povos deste primeiro macro-espaço é tão
acentuada que Barbosa afirma:
723
“cafres do cabo da [boa] esperança”, in Album di disegni, illustranti usi e costumi dei popoli d'Asia e
d'Africa con brevi dichiarazioni in lingua portoghese, Ms. 1889, 1540.
http://opac.casanatense.it/Record.htm?idlist=42&record=19921765124917499479#
724
“cafres do cabo da [boa] esperança”, ibidem.
198
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
“os nossos nunca poderão haver notícia de língua, nem serem informados do que vai pela
terra dentro; nem eles têm navegação, nem se servem do mar, nem os mouros da Arábia
e Pérsia nunca até ali navegaram, nem a descobriram por causa do Cabo das Correntes
ser muito tormentoso.”725
Esta visão da África oriental mais meridional encontra algum paralelo nas
representações que o mundo árabo-suaíli produziu sobre os territórios e suas populações
a sul do Cabo das Correntes.726 O texto de Duarte Barbosa acrescenta que tais gentes
pretas se dedicavam a apascentar os seus gados e que nas “terras formosas de muitas
montanhas e campos (…) há muita criação de muitas vacas, carneiros e muitas alimárias
monteses”.727
Entrando no segundo macro-espaço, para norte dos Cabos de S. Sebastião e das
Correntes, que tinham por referência Inhambane, informações sobre reinos, poderes,
gentes e mercadorias revelam-se mais detalhadas. Duarte Barbosa concebe duas
categorias organizadoras do espaço antropológico, tendo por base as crenças religiosas e
o domínio dos circuitos comerciais.
No litoral, o espaço limite do continente, nas ilhas e nos rios predominavam as
comunidades suaíli, designadas de “mouros”, estabelecendo uma dinâmica mercantil,
tanto com os reinos costeiros de Quiloa, Mombaça e Melinde, como com os reinos do
sertão. Estas populações são descritas como “pretos” e “baços”, cobrem-se da cintura para
baixo com panos de algodão e seda, usam toucas mouriscas 728e tanto falam em árabe,
como na “língua da terra”, que é a dos “gentios”. Estamos perante o retrato uma sociedade
mestiça em termos somáticos e culturais, a sociedade Suaíli, que se desenvolveu em
pontos estratégicos da costa sudeste africana, com objectivos comerciais ligados à
produção aurífera e outros recursos provenientes do grande planalto.
No interior, predominavam os povos categorizados como “gentios”, que
senhoreavam os reinos do ouro e do marfim. Quanto aos poderes políticos locais -
“gentios”, o autor destaca nos territórios do sertão o “Grande Reino de Benametapa” e o
725
Duarte BARBOSA, op. cit., p. 15.
726
Atenda-se a este respeito o sub-ponto 2.3.3. desta dissertação, sobre o poema de Ibn Magid, As-Sufaliyya.
727
Duarte BARBOSA, op. cit., p. 15.
728
IDEM, ibidem, p. 17.
199
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
730
IDEM, ibidem, p. 18; sublinhado nosso.
731
IDEM, ibidem, pp. 18-19.
732
IDEM, ibidem, p. 19.
733
IDEM, ibidem, pp. 19-20.
200
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
comum dos mortais e a quem os outros reis enviam grandes presentes. Afirma ainda que
este imperador tem grande exército, o qual inclui “cinco a seis mil mulheres que também
tomam as armas e pelejam, com a qual gente anda sossegando alguns reis que se levantam
ou querem alevantar contra seu Senhor”.734 Tal referência, num texto do início da centúria
de Quinhentos, terá permitido criar nos seus leitores imagens poderosas de exércitos
femininos pelejando pelo seu rei, nos confins da África, mobilizando os mitos clássicos
das Amazonas que replicarão em muitos textos posteriores.735
Descreve também a ilha de Angoche, que o autor designa de “Angoia”,736
localizada no terminus de um dos braços do Zambeze.737 A esta ilha chegavam grandes
quantidades de ouro e marfim provenientes do interior, trocados por panos de seda e
algodão e contas de Cambaia que aí eram conduzidos pelos “mouros de Sofala, de
Mombaça, de Melinde e Quilôa em uns navios muito pequenos, escondidamente dos
nossos navios”.738 Afirma que a região da ilha de Angoche é terra de “homens pretos,
baços”, quase nus, usando panos de algodão e seda e falando tanto a língua dos gentios
como a língua árabe.739
Detém-se depois na ilha de Moçambique que, devido ao seu bom porto, foi
apropriada pela coroa portuguesa, a fim de prestar apoio às armadas da Índia. A terra
firme oposta à ilha “é habitada de gentios, que são uns homens bestiais, que andam nus e
barrados todos com um barro vermelho; trazem as suas naturas emburilhadas em umas
tiras de pano azul de algodão, sem nenhuma outra cobertura; trazem os beiços furados
com três furos; em cada beiço três búzios, e neles metidos uns ossos com umas pedrinhas
e outros brinquinhos.” 740
Se a descrição das gentes “pretas”, das terras a sul do cabo das Correntes, parece
ter resultado de informações genéricas recolhidas pelo viajante em territórios mais a norte,
a representação destes habitantes da terra firme, frente à ilha de Moçambique, parece
resultar de uma apreciação presencial, física e visual, na qual se confrontaram códigos
absolutamente divergentes de representação do corpo. A distância cultural manifestada
734
IDEM, ibidem, p. 20
735
Duarte LOPES & Filippo PIGAFETTA, op. cit., p. 73.
736
Leia-se “Angoja”.
737
Duarte BARBOSA, op. cit., p. 21.
738
IDEM, ibidem.
739
IDEM, ibidem, pp. 21-22.
740
IDEM, ibidem, pp. 22-23.
201
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
pelo autor, que se coloca perante a alteridade, expressa-se em juízos depreciativos que
categorizam as populações locais como “homens bestiais”.741
Proseguindo para norte, ao longo da costa oriental africana, nas ricas cidades de
Quiloa, Mombaça e Melinde, os mouros surgem ricamente ataviados com panos de seda
e algodão, ornamentando-se com ouro. A estrutura urbana de Mombaça e Melinde chega
mesmo a ser elogiada, estabelecendo-se uma semelhança com o que seria familiar ao
autor: “O qual lugar é de mui formosas casas de pedra e cal, de muitos sobrados com
muitas janelas e terrados, à nossa maneira; o lugar está mui bem arruado” 742, sendo ainda
de destacar a cintura de hortas, pomares e frescas águas. As populações destas cidades
são descritas como de brancos, pretos e alguns de cor baça.743
Os segmentos da população islamizada do sudeste africano são reconhecidos pela
língua falada e por seus atavios, como os turbantes e as vestes de seda e algodão,
elementos que correspondiam a uma imagem física do muçulmano, formada desde o
período medieval, fruto de contactos históricos duradouros na Península Ibérica. Nesse
período, quando o Islão se constituíu como ameaça e desafiou mecanismos colectivos de
apuramento dos quadros identitários e da alteridade, fixaram-se estereótipos
desfavoráveis, os quais definiam o muçulmano como um oposto em termos teológicos,744
o que muitas vezes era extensível ao plano comercial. De algum modo essa herança
cultural está presente na atenção dispensada pelo autor aos centros urbanos e aos eixos
comerciais dominados por comunidades islamizadas.
Quanto aos povos designados de “gentios”, a descrição de Duarte Barbosa revela
a preocupação em fornecer detalhes fisionómicos capazes de proporcionar ao leitor
atributos mais concretos para a construção deste modelo de “gentio” ou “cafre”. As
descrições, ainda que pouco extensas, permitem a formulação de uma imagem não só do
corpo físico, mas também do corpo social e ritual, porém, sem que essa imagem
envolvesse a compreensão dos seus significados complexos.
O texto de Duarte Barbosa, resultante da sua visão do Oriente nas duas primeiras
décadas do século XVI, conhecerá várias edições e traduções em outras línguas europeias,
741
IDEM, ibidem, p. 22.
742
IDEM, ibidem, p. 25.
743
IDEM, ibidem, p. 24.
744
Philippe SÉNAC, L’Image de l’autre, histoire de l’Occident médiéval face à l’Islam, Paris, Flammarion,
1983.
202
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
203
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
204
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
745
Damião de GÓIS, op. cit..
746
Jerónimo OSÓRIO, op. cit..
747
João de BARROS, op. cit., p. 146.
748
IDEM, ibidem, pp. 146-147.
205
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
749
IDEM, ibidem, p. 147.
750
IDEM, ibidem, p. 148.
751
Lucian BOIA, op. cit., p. 118.
752
João de BARROS, op. cit., p. 148.
753
Fernão Lopes de CASTANHEDA, op. cit., p. 486.
754
IDEM, ibidem, p. 487.
206
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Góis retoma o esterótipo da barbárie: “homens tam barbaros”; “gente tam barbara
& desarmada”. Na Crónica de D. Manuel, os habitantes desta África distante ora são
designados de “negros”, ora de cafres. O primeiro termo salienta a coloração da pele
como traço físico marginalizador, mas remete sobretudo para uma dimensão
civilizacional. A segunda designação deriva do árabe kaffir, ou seja infiel, renegado,
selvagem, aquele que nunca foi alcançado por qualquer lei divina sendo, por isso,
marginalizado espiritual e culturalmente.
O discurso de D. Jerónimo Osório é, em si mesmo, um percurso ascendente na
construção de uma escala da bestialidade. Os africanos, que revelavam no início ser
“bondosos” e dotados de “rara singeleza e humanidade”, passam depois a “índios boçais”
e “brutos” e, num crescendo, tornam-se “um povo tão parecido às feras nos costumes e
meneio da vida”.755 Jerónimo Osório convoca o estereótipo do etíope, cujas raízes recuam
a Aristóteles, tendo-se difundido no imaginário medieval, associado à cor “negra”, ao
cabelo crespo e a uma “constituição física irracional”.756 Correspondem-lhe os traços de
selvajaria que os fazia parecer medonhos:
“homens negros de côr, cabelo retorcido e queimado, como os mais da Etiópia, mui feios
de semblante, que ainda fazem mais horrendo com esgares medonhíssimos, por
parecerem na guerra mais ferozes. Para nos meterem mêdo vinham desengonçando
ferinamente todas as feições, horrorizando gestos, desentoando gritas ”.757
755
Jerónimo OSÓRIO, op. cit..
756
José da Silva HORTA, “A representação do Africano na Literatura de Viagems, do Senegal à Serra Leoa
(1453-1508”, (…), p. 239. Este autor retoma o trabalho de exegese sobre o estereótipo do etíope na tradição
medieval, de Fraçois de MEDEIROS, op. cit., pp. 217-220.
757
Jerónimo OSÓRIO, op. cit., p. 309.
758
José da Silva HORTA, “A imagem do Africano pelos portugueses antes dos contactos”, (…), pp. 46-47.
759
Jerónimo OSÓRIO, op. cit., p. 309.
207
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
sentidos. Por exemplo, o facto de não usarem armas significa que expunham os seus
corpos de forma suicida, ou por falta de entendimento, ou pela incapacidade de possuírem
armas dignas desse nome. A posse de armas pressupunha um artifício humano e não
apenas a mera adaptação do que vinha da natureza. O protótipo de uma vida sem costumes
e sem polícia traduzia-se numa incapacidade de organização de defesa armada, pelo que
recorriam a gestos, feições e gritos assustadores nas suas investidas. A ferocidade é, pois,
um adjectivo do campo semântico da animalidade.
760
Ana Isabel BUESCU, “Cultura Impressa e Cultura Manuscrita em Portugal na Época Moderna: uma
sondagem”, in Penélope, N.º 21, 1999, p. 18.
761
Fernando Jesus BOUZA ÁLVAREZ, op. cit., (…), pp. 35-48.
208
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
762
“Do fim mizeravel que teve D. Francisco de Almeyda em o anno de 1510”, in Rellação de Varios
Naufragios, B.P.M.P., Cod. 737, fls. 1-4. Cf. com João de BARROS, Ásia de João de Barros, Segunda
Década, (…), pp. 147-148.
763
Ibidem, fl. 3 vº.
764
Luís de CAMÕES, Os Lusíadas, (ed. organizada por SARAIVA, António José), Porto, Livraria
Figueirinhas, 1978, Canto V: 28.
765
IDEM, ibidem, Canto V: 34.
209
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
os quais se percebem elementos clássicos da epopeia homérica, mas não só. Heródoto, “o
pai da História”, acreditava que nos territórios africanos para sul do Sahara, nessa Etiópia
distante, viviam homens “com cabeças de cão e sem cabeça, cujos olhos ficavam no
peito” e não falavam nenhuma língua humana766; Plínio, o Velho, na sua Historia
Naturalis localizava as “raças humanas monstruosas” do mundo algures na Etiópia, onde
o calor excessivo era responsável pela disformidade das criaturas.767
A herança erudita de concepções geográficas sobre a África modelava as
formações de um imaginário que o poeta explanou. De um lado, a geografia macrobiana,
conforme já foi referido, concebia a Terra dividida em cinco zonas: tórrida; temperada,
do norte e do sul, glacial, ártica e antárctica. Segundo esta concepção, só as zonas
temperadas permitiam a presença humana, pois a sua sobrevivência não era possível nem
na zona tórrida, nem nas zonas geladas. Duarte Pacheco Pereira rebateu estas ideias com
a fundamentação da experiência. Porém, algo daquela geografia ter-se-ia enraizado nas
percepções deste novo mundo. De outro lado, Ptolomeu havia representado
superficialmente algumas zonas do nosso planeta, ignorando por completo a África a sul
do Equador. Tais concepções do mundo deixaram campo aberto à fauna, à flora e à
“geografia de imaginação”, assim como à “geografia de anomalias”, e portanto, a
representação dos espaços da África meridional abriam-se à lenda e à projecção
persistente dos mitos fantásticos.768
Na senda de concepções geográficas que postulavam um centro, a Europa cristã,
e periferias, a extremidade sul do continente africano radicava numa das orlas do mundo.
Aí, no degredo dos rochedos da “Africa extremitas”, onde pesavam todos estes
referenciais geográficos, a figura mitológica do Adamastor estava destinada a transfigurar
as imagens e os conceitos que há muito se associavam ao elemento humano. A sua
natureza titânica é inspirada na mitologia grega e o nome é tirado de Rabelais,
especificamente da genealogia do gigante Pantagruel em Gargântua e Pantagruel,
publicado quarenta anos antes d’Os Lusíadas.769 Através deste empréstimo, Camões
766
Jill Rosemary Rainey DIAS, África: nas Vésperas do Mundo Moderno, Lisboa, Comissão Nacional para
as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1992, p. 18.
767
IDEM, ibidem.
768
Luís de ALBUQUERQUE, “Realidades e mitos de Geografia Medieval”, (…), pp. 30-31.
769
Ivan VLADISLAVIC, op. cit., p. 42.
210
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
770
Luís de CAMÕES, op. cit., Canto V: 39-40.
771
IDEM, ibidem, Canto V: 39.
772
Luís de CAMÕES, op. cit., Canto V: 44.
773
IDEM, ibidem, Canto V: 45.
211
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
o apoio às armadas do Índico.774 Num texto de 1556, os seus argumentos em prol de uma
presença mais estruturada da coroa portuguesa naqueles territórios, esbateu o discurso
que se afirmara como oficial, defendendo os habitantes da região do Cabo face aos abusos
dos homens de D. Francisco de Almeida:
“(…) o que aconteçeo naquella costa ao V. Rey Dom francisco dalmeida, e a outros,
porque por ventura ouve da nossa parte tanta sem rezão que bastou a gerar os tais
escandalos porque com a gente dalgumas outras naos converçarão e tratarão
amigavelmente”.775
Estas palavras de João Pereira Dantas testemunham a sua opinião sobre os abusos
que poderão ter existido por parte dos homens que acompanhavam D. Francisco de
Almeida. Note-se que classifica como “sem rezão” a ação dos portugueses, contrastando-
a com outras situações de trato amigável.
A morte do primeiro vice-rei da Índia pelos Khoikhoi do Cabo pode ter
contribuído para um afastamento das embarcações portuguesas da costa meridional de
África, pois os roteiros aconselhavam a que os navios da Carreira da Índia se afastassem
da costa, por resguardo dos ventos e correntes marítimas, e fossem evitadas as aguadas.776
O Livro de Marinharia de Bernardo Fernandes (c. 1548) alerta para o “mui grande
cuidado e vigia nesta derrota” e, caso se faça sentir a necessidade de proceder a aguada,
os navios podem “entrar na Baía de Saldanha e na da Roca ou da Lagoa; e na de Saldanha
(…); da qual baía vos saireis logo por não vos tomar o poente dentro”.777 A regra deverá
ser, ao demandar a terra do Cabo da Boa Esperança, os navios afastarem-se “logo dela 30
ou 40 leguas”, devido à força das correntes do levante. No roteiro de Perestrelo há
referência, na vasta costa do Cabo da Boa Esperança, a dois espaços especiais para
aguadas: o mais antigo ancoradouro daquela costa, na aguada de S. Brás,778 e ao norte da
774
“Apontamentos que fez João Pereira Damtas por mandado Del Rey Dom João Terceiro no Anno de
1556”, in Maria Emília Madeira SANTOS, O carácter experimental da Carreira da Índia. Um plano de
João Pereira Dantas, com fortificação da África do Sul (1556), Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar,
1969, Sep. da Revista da Universidade de Coimbra, Vol. XXIV 24, p. 32.
775
IDEM, ibidem.
776
Gabriel Vitor do Monte PEREIRA (Ed.), Roteiros portugueses da viagem de Lisboa à Índia nos séculos
XVI e XVII, Lisboa, Imprensa Nacional, 1898, ps. 87, 107, 126, 156 e 159.
777
Livro de Marinharia de Bernardo Fernandes, Abel Fontoura da COSTA (Prefácio e notas), Lisboa,
Agência Geral das Colónias, 1940, pp. 59-61.
778
Manuel de Mesquita PERESTRELO, “Roteiro dos portos, derrotas, alturas, cabos, conhecenças,
resguardos e sondas, que á per toda a costa desdo cabo de boa esperança ate o das correntes”, in Abel
Fontoura da COSTA (ed.), (…), pp. 22-26.
212
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
baía de Lourenço Marques, na aguada da Boa Paz, onde a “gente da terra é de nação
Mocaranga e nossa amiga”.779
779
IDEM, ibidem, pp. 54-56.
213
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
2.1. Os naufrágios
780
Paulo GUINOTE, Eduardo FRUTUOSO e António LOPES, op. cit., pp.184-256.
781
IDEM, ibidem, pp. 124- 125.
782
IDEM, ibidem, p.105.
783
IDEM, ibidem, pp.184-256.
214
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
784
Giulia LANCIANI, op. cit., p. 71.
785
IDEM, ibidem.
786
Alfredo MARGARIDO, “O trabalho de luto nos relatos dos naufrágios”, in Afreudite, Lisboa,
Universidade Lusófona, Ano IV, 2008 - n.º 7 / 8, p. 75.
787
Josiah BLACKMORE, Manifest Perdition: Shipwreck Narrative and the Disruption and the Empire,
(…), p. 40.
788
IDEM, ibidem, p. 51.
215
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
789
IDEM, ibidem, p. 41.
790
Alfredo MARGARIDO, “O trabalho de luto nos relatos dos naufrágios”, (…), pp. 73-83.
791
IDEM, ibidem, p. 80.
792
Mapa 2 – naufrágios de navios portugueses na Cafraria nos séculos XVI e XVII, página seguinte.
793
Anexos: Quadro 3 – Imagens e estereótipos da terra africana nos relatos de naufrágios (sécs. XVI e
XVII), p. 454.
216
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
217
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
795
Harry GARUBA, “How to not think Africa from the Cape”, in Mail & Guardian, Johannesburg, 5th of
July 2011 (online) https://thoughtleader.co.za/readerblog/2011/07/05/how-not-to-think-africa-from-the-
cape/ (Consultado em 24/08/2011)
796
Josiah BLACKMORE, Manifest Perdition: Shipwreck Narrative and the Disruption of Empire, (...), pp.
28-29.
218
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
797
Jerónimo LOBO, Itinerário e outros escritos inéditos, Ed. crítica do Padre M. Gonçalves da Costa
BARCELOS, [Lisboa], Livraria Civilização - Editora, [imp.1971].
798
IDEM, ibidem, pp. 609-610.
799
“Regimento que se fez por ordem do snor’ Visorrej Matias Dalbuquerque tirado do Roteiro da viagem
que fez por terra da cafraria a gente da Não Santo Alberto governada por Nuno velho pereira”, B.A. (Cod.
51-VI-54, nº 27), publicado por Maria Emília Madeira SANTOS, O carácter experimental da carreira da
Índia. Um plano de João Pereira Dantas, com fortificação na África do Sul (1556), Lisboa, Junta de
Investigações do Ultramar – Agrupamento de Estudos de Cartografia Antiga, 1969, documento anexo nº 4,
pp. 48-53.
219
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
800
Claude-Gilbert DUBOIS, L’Imaginaire de la Renaissance, Paris, Presses Universitaires de France, 1985,
pp. 95-96.
801
IDEM, ibidem.
802
François HARTOG, op. cit., p. 225.
803
Joan-Pau RUBIÉS, “Imagen mental e imagen artística en la representación de los pueblos no Europeos.
Salvajes y civilizados 1500-1650”, in Joan LLUIS PALOS e Diana CARRIÓ-INVERNIZZI (ed.), La
Historia Imaginada. Construcciones Visuales del Passado en la Edad Moderna, Madrid, Centro de
Estudios Europa Hispánica, 2008, p. 334.
220
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
804
IDEM, ibidem, p. 348.
805
Josiah Blackmore salienta o sentido etimológico do adjectivo português “estranho”, como derivando do
latim extraneus, que significa externo, estrangeiro, exterior, que é de fora, que não é da família ou da pátria.
Veja-se Josiah BLACKMORE, Moorings: Portuguese Expansion and the Writing of Africa, (…), p. 75.
806
Charles Ralph BOXER, “An Introduction to the História Trágico-Marítima”, in Revista da Faculdade
de Letras, Nº 3, Série I, Lisboa, Universidade de Lisboa, 1957, p. 50.
221
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
porque desses fios da memória pesava mais a dimensão da tragédia e da morte do que a
novidade ou a épica sobrevivência de poucos, um dos náufragos, Álvaro Fernandes, teria
transmitido a um redactor anónimo,807 não só as suas impressões e lembranças sobre o
desastre colectivo no mar e arribada a terra, como também teria divulgado outros
testemunhos, entre os quais as vívidas memórias das escravas de Dona Leonor de Sá sobre
as circunstâncias da morte desta fidalga e seus filhos e, também, o desaparecimento
suicida de Manuel de Sousa de Sepúlveda nos matos da terra dos cafres.
Num manuscrito quinhentista, não datado, da Biblioteca da Ajuda, intitulado
“Perdimento do gualeão São João que vinha da Imdia pera Portugall Manoell de Sousa
de Sepulluada por capitão”808, consta uma única vez o topónimo “cafrarya”. Este
manuscrito é, segundo Kioko Koiso, anterior à primeira edição impressa da Historia da
muy notauel perda do Galeão grande Sam João (entre 1555 e 1564).809 Nesta época,
como já mencionado, os manuscritos circulavam e eram copiados, sendo muito provável
que o editor da primeira impressão tenha usado partes de um manuscrito anterior na
composição da edição do folheto de cordel. Tal topónimo singular teria transitado para a
primeira edição impressa deste relato de naufrágio e todas as que se sucederam ao longo
dos séculos XVI e XVII, até à sua integração na compilação de Gomes de Brito, bem
como as versões daí procedentes:
“não ha duuida senão que sem homens despinguardas atreuesarão a cafrarya toda”.810
(Manuscrito anónimo da Biblioteca da Ajuda)
“agora sabemos por esta perdição e pela da nau S. Bento, que cem homens de espingarda
atravessariam toda a Cafraria”.811
807
Prólogo à “Relação da mui notável perda do Galeão Grande S. João em que se contam os grandes
trabalhos e lastimosas cousas que aconteceram ao Capitão Manuel de Sousa Sepúlveda e o lamentável fim
que ele e sua mulher e filhos, e toda a mais gente, houveram na Terra do Natal, onde se perderam a 24 de
Junho de 1552”, in H.T.M., Vol. I, (…), pp. 13-14.
808
B.A., Cod. 50-V-22 – Miscelânea Histórica, Vol. II, fls. 418vº-433, publicado por Kioko KOISO, Mar,
Medo e Morte: aspectos psicológicos dos náufragos na História Trágico-Marítima, nos testemunhos
inéditos e noutras fontes, Vol. II, Cascais, Patrimonia Historica, 2004, pp. 515-551.
809
IDEM, ibidem, p. 485.
810
IDEM, ibidem, p. 542. (sublinhado nosso)
811
“Relação da mui notável perda do Galeão Grande S. João em que se contam os grandes trabalhos e
lastimosas cousas que aconteceram ao Capitão Manuel de Sousa Sepúlveda e o lamentável fim que ele e
sua mulher e filhos, e toda a mais gente, houveram na Terra do Natal, onde se perderam a 24 de Junho de
1552”, in H.T.M., Vol. I, (…), p. 32. (sublinhado nosso)
222
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
O uso deste topónimo uma única vez no texto, comparativamente com o uso
frequente da designação terra de cafres, parece indiciar que em meados do século XVI
está em construção, tanto no plano discursivo como imaginativo, uma representação
territorial da costa do Cabo da Boa Esperança até Inhambane, à qual são atribuídos traços
definidores e identitários. Dado que o topónimo Cafraria não volta a ser utilizado nos
relatos de naufrágios até ao texto do sotapiloto da nau S. Tomé, que naufragou em 1589,
podemos considerar que a representação territorial expressa numa fórmula toponímica
ainda está longe de se generalizar.
O apuramento do topónimo Cafraria na produção escrita pressupõe o
reconhecimento de uma identidade geográfica, humana, cultural, política e linguística que
se foi consolidando progressivamente nos textos, para posteriormente integrar a
cartografia, num processo complexo que mobilizava também o imaginário dos leitores.
O relato anónimo do naufrágio do galeão S. João812 é um “texto fundador” no que
se refere ao género literário, à estrutura, aos elementos que o tipificam e também no que
se refere à construção de imagens sobre a terra e as gentes. Na textualidade deste relato
fundem-se as memórias de uma experiência de sobrevivência813 com a dimensão
noticiosa do folheto de cordel, intencionalmente impresso para divulgar o acontecimento
dramático. A tragédia é contínua, não se limitando ao episódio do desastre marítimo ou
naufrágio, mas antes prolongando-se no tempo e no espaço, através da peregrinação pela
terra dos cafres, entre as proximidades do rio Mtavuna até Inhambane. A narrativa desta
peregrinação permitiu compôr paisagens conceptuais, que foram retomadas em textos do
mesmo género, no âmbito de uma lógica de tradição.
Após dois meses de navegação no Índico, em viagem de regresso ao reino, os
viajantes do galeão S. João avistavam a costa do Cabo da Boa Esperança. Diz o texto que
o piloto fez o “caminho para ir à terra do Cabo das Agulhas”, “foram ver a Terra do
Natal”; foi correndo a costa “até ver o Cabo das Agulhas”.814 Estes topónimos tinham-se
tornado correntes nos regimentos de navegação e na cartografia portuguesa desde os
812
IDEM, ibidem, pp. 2-37.
813
O autor anónimo da “Relação da mui notável perda do Galeão Grande S. João (…)” refere ter sido um
Álvaro Fernandes, guardião do galeão, o qual “muito particularmente” lhe contou em Moçambique as
vicissitudes deste naufrágio, no ano de 1554. IDEM, ibidem, p. 13.
814
IDEM, ibidem, p. 16.
223
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
815
Recorde-se que a expedição de carácter exploratório, de Cid Barbudo e Pero Quaresma (1505),
contribuiu para aumentar a informação sobre os litorais sul do continente.
816
“Relação da mui notável perda do Galeão Grande S. João em que se contam os grandes trabalhos e
lastimosas cousas que aconteceram ao Capitão Manuel de Sousa Sepúlveda e o lamentável fim que ele e
sua mulher e filhos, e toda a mais gente, houveram na Terra do Natal, onde se perderam a 24 de Junho de
1552”, in H.T.M., Vol. I, (…), p. 22.
817
IDEM, ibidem, p. 31
818
IDEM, ibidem, p. 26
224
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
“se forão metendo pelos matos tomando desvayrados caminhos comendo frutas brabas, e
raizes de ervas, fazendo conta com Deos, e com suas Almas, como homens que hyão em
estado que cada dia ficauão por esses matos mortos de fome”. 819
819
“Relação da perdição do Galeão São João vindo da India na Costa da Cafraria de que hera Cappitam
Manuel de Sousa Sepulueda”, B.P.E. (letra do século XVIII), códice com a cota CXV/2-8, fl. 52 vº.
820
Gaston BACHELARD, The Poetics of Space. The classic look at how we experience intimate spaces,
Boston, Beacon Press, 1994, p. xx.
821
IDEM, ibidem, p. xix.
822
IDEM, ibidem, p. xxi.
823
Ana Isabel BUESCU, op cit., p. 18.
824
Também Alfredo Margarido afirma que a fixação escrita do naufrágio alarga a oralidade, permitindo a
normalização dos diferentes acidentes das narrativas. Alfredo MARGARIDO, “O trabalho de luto nos
relatos dos naufrágios”, (…), p. 82.
825
“Relação da mui notável perda do Galeão Grande S. João em que se contam os grandes trabalhos e
lastimosas cousas que aconteceram ao Capitão Manuel de Sousa Sepúlveda e o lamentável fim que ele e
225
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
sua mulher e filhos, e toda a mais gente, houveram na Terra do Natal, onde se perderam a 24 de Junho de
1552”, in H.T.M., Vol. I, (…), p. 27.
826
IDEM, ibidem, p. 34.
827
“Relação da perdição do Galeão São João vindo da India na Costa da Cafraria de que hera Cappitam
Manuel de Sousa Sepulueda”, B.P.E., CXV/2-8, fls. 46-54 vº.
828
IDEM, ibidem, fl. 48
829
IDEM, ibidem, fl. 53.
830
IDEM, ibidem, fl. 51.
831
Manuel de Mesquita PERESTRELO, “Relação Sumária da viagem que fez Fernão D’Álvares Cabral
desde que partiu deste Reino por Capitão-mor da armada que foi no anno de 1553 às partes da Índia até que
se perdeu no Cabo de Boa Esperança no ano de 1554”, in H.T.M., Vol. I, (…) p. 53.
832
IDEM, ibidem, p. 57.
833
IDEM, ibidem, p. 56.
226
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
834
IDEM, ibidem. (sublinhado nosso)
835
IDEM, ibidem, p. 57.
836
IDEM, ibidem, p. 67.
837
IDEM, ibidem, p. 67.
838
IDEM, ibidem, p. 60.
839
“Relação da mui notável perda do Galeão Grande S. João em que se contam os grandes trabalhos e
lastimosas cousas que aconteceram ao Capitão Manuel de Sousa Sepúlveda e o lamentável fim que ele e
sua mulher e filhos, e toda a mais gente, houveram na Terra do Natal, onde se perderam a 24 de Junho de
1552”, in H.T.M., Vol. I, (…), p. 31.
840
Manuel de Mesquita PERESTRELO, “Relação Sumaria da Viagem que fez Fernão de Álvares Cabral
desde que partiu deste Reino por Capitão-mor da armada que foi no ano de 1553 às partes da Índia até que
se perdeu no Cabo de Boa Esperança no ano de 1554”, in H.T.M., Vol. I, (…), ps. 67 e 96.
227
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
vez de caminhos humanos. Ásperas eram as serras, os outeiros, as costras íngremes cheias
de “penedos, ervas e mato”.841
A transitoriedade da presença dos sobreviventes deste e de outros naufrágios
condiciona em muito a percepção do espaço, enquanto heterotopia ou grandeza
contrastante,842 uma vez que os textos sublinham a ausência de caminhos e construções
feitas pela mão do homem, o que definia para este território uma marginalidade, em
termos dos referenciais civilizacionais.
Nesta percepção de uma terra contrastante são comuns as expressões relativas à
esterilidade do solo, que apenas produzia “raízes e bagas do mato”.843 Apesar do
predomínio descritivo de paisagens inóspitas, o texto deixa abertura para as semelhanças
ou para a evocação de imagens míticas que alimentavam a esperança, como as sugeridas
pelo abrigo nocturno encontrado nas moitas, junto a um cômoro. 844 Foi junto à árvore
bíblica que os náufragos se abrigaram após grandes frios e tempestade de areia, que lhes
deixou o corpo em chagas.845
Ainda que, em certas passagens da peregrinação por terra, os náufragos tivessem
sido acolhidos por comunidades que, praticando a agricultura e a pesca, tinham
abundância de mantimentos, como ocorreu na “Barra da Pescaria”, na área envolvente da
actual cidade de Durban, logo se seguiram “desertos” ou extensões de terra “despovoada
e em extremo estéril de árvores e ervas”. 846 Passado o rio “Medãos do Ouro”,
provavelmente o Umfolozi, foi tanta a carência de alimentos, que os “constrangeu a comer
os sapatos” e “ossos de alimária” no carvão, quase se consumando a antropofagia,
841
IDEM, ibidem, p. 68.
842
Henri LEFEBVRE, op. cit., p. 190.
843
Manuel de Mesquita PERESTRELO, “Relação Sumaria da Viagem que fez Fernão de Álvares Cabral
desde que partiu deste Reino por Capitão-mor da armada que foi no ano de 1553 às partes da Índia até que
se perdeu no Cabo de Boa Esperança no ano de 1554”, in H.T.M., Vol. I, (…), p. 66.
844
O sicómoro ou Ficus sycomorus é uma árvore com um habitat muito disperso, estendendo-se desde o
Médio Oriente a várias partes da África subsahariana, sendo cultivado há milénios. Na maioria das línguas
europeias o seu nome deriva do hebraico “sikmah”, através do grego “sukomorea”. Esta árvore, robusta,
alta e de copa arredondada e densa é, por diversas vezes, citada na Bíblia, como elemento característico das
paisagens campestres. O reconhecimento, pelos náufragos, de uma árvore bíblica nestes territórios africanos
de errância, muito provavelmente desempenhou sentimentos de segurança e proteção.
Cf. “Ficus sycomorus L. subsp. Sycomorus”, http://pza.sanbi.org/ficus-sycomorus-subsp-
sycomorus%C2%A0 (Consultado em 7/10/2020)
845
Manuel de Mesquita PERESTRELO, “Relação Sumaria da Viagem que fez Fernão de Álvares Cabral
desde que partiu deste Reino por Capitão-mor da armada que foi no ano de 1553 às partes da Índia até que
se perdeu no Cabo de Boa Esperança no ano de 1554”, in H.T.M., Vol. I, (…), p. 88.
846
IDEM, ibidem, p. 90.
228
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
impedida pelo capitão para evitar a fama de que comiam gente.847 Devido à fraqueza e à
fome, muitos caminhantes iam ficando pelos matos perante a indiferença sentimental
daqueles que ainda conseguiam caminhar, situação que, segundo o autor, mais parecia de
“alimárias irracionais que por ali andavam pascendo”.848 Como acontecera meio século
antes, em 1505, com os náufragos encontrados por Pero d’Anhaia, os deambulantes
sofriam um processo de morte simbólica, a qual pressupunha a corrupção dos valores
civilizacionais e a aproximação ao estado irracional e selvagem.
Manuel de Mesquita Perestrelo retoma o tópico que associa esta terra ao habitat
da fauna selvagem, sendo comuns as descrições de vastas charnecas onde pasciam
“grande bando de búfanos mecenos, zevras e cavalos”,849 “alimárias, que naquela terra
deviam ser muitas, segundo o infinito género de pegadas com que toda estava coberta”.850
Mesmo próximo dos domínios do rei Inhaca, que inspirara a esperança de salvação entre
os náufragos, é referida uma “mata antiga e grande, onde havia muitos tigres, leões e todo
o outro género de alimárias nocivas”851, de tal modo que durante quatro meses se
verificaram ataques de felinos à povoação grande, “tendo levado mais de 50 cafres”.852
O rio da Alagoa, designado nos textos e nas cartas por rio do “Espírito Santo” ou
de Lourenço Marques, retém a atenção do autor, que fornece dados sobre a sua
hidrografia. Assim, designa os três rios que, de sul para norte, desaguam na ampla baía:
pelo lado sul, o “mar do Zembe”; depois, o rio Santo Espírito, em cujos territórios se
localiza o reino do Inhaca; a norte, o rio Manhiça, associado a outro reino onde ocorreu
o “desbarato” de Manuel de Sousa de Sepúlveda.
O detalhe descritivo acerca da geografia desta baía relaciona-se com a presença
de embarcações portuguesas que aí vinham anualmente fazer o comércio do marfim e
com a economia monetária praticada pois, segundo o autor, foi “o primeiro lugar” onde
aceitaram dinheiro a troco de carne de hipopótamo.853
Para Perestrelo, a expessão “má terra” sintetiza toda a experiência de privação
vivida entre o local do naufrágio e o embarque que resgatou os sobreviventes, nos
847
IDEM, ibidem, p. 103.
848
IDEM, ibidem, p. 90.
849
IDEM, ibidem, p. 96.
850
IDEM, ibidem, p. 93.
851
IDEM, ibidem, p. 112.
852
IDEM, ibidem, p. 114.
853
IDEM, ibidem, p. 108.
229
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
domínios do Inhaca, junto à baía de Lourenço Marques. A “má terra” correspondia a uma
parte da Etiópia ainda não conhecida dos europeus: “estranha, estéril e quase não
conhecida costa da Etiópia”, onde os náufragos passaram
“(…) por tantas brigas, por tantas fomes, calmas, frios e sedes, nas serras, vales e
barrancos, e finalmente, por tudo aquilo que se pode imaginar contrário, medonho,
pesado, triste, perigoso, grande, mau, desditoso, imagem da morte e cruel, onde tantos
homens, mancebos, rijos e robustos, acabaram seus dias, deixando os ossos insepultos
pelos campos e as carnes sepultadas em alimárias e aves peregrinas, e com suas mortes a
tantos pais e irmãos, a tantos parentes, a tantas mulheres e filhos, cobertos de luto neste
reino.”854
854
IDEM, ibidem, p. 123.
855
IDEM, ibidem, p. 74: “topámos um rio que não está posto nas cartas”.
856
Manuel Godinho CARDOSO, “Naufrágio da Nau Santiago no ano de 1585 e Itinerário da gente que
dele se salvou”, in H.T.M., Vol. II, (…), p. 164.
857
IDEM, ibidem, pp. 162-163.
858
IDEM, ibidem, p. 167.
230
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
praia, terra, árvores, e este, onde o navio encalhou, seria em 21º30’ de latitude sul, não
dispondo de nenhuma das referidas conhecenças. É destacada a ausência de sinalização
do baixio “nas cartas antigas de marear” 859, facto atribuído ao descuido de pilotos e
cartógrafos, mas que reforça a concepção de um vasto espaço marítimo no sudeste
africano, ainda por conhecer e mapear.
O texto de Manuel Godinho Cardoso, com o título “Relaçam do Naufragio da Nao
Santiago, & itenerario da gente que delle se salvou”, foi editado em Lisboa, por Pedro
Craesbeeck, no ano de 1602.860 Foi este texto que Gomes de Brito acrescentou, no século
XVIII, com dados sobre o itinerário da nau desde Lisboa até ao Canal de Moçambique 861
e terá sido, também, com base neste texto, que foi redigido o relato incluído no códice
737, da Biblioteca Pública Municipal do Porto.862 Esta versão, incluída numa colectânea
manuscrita de naufrágios, do século XVII, segue muito ao pé da letra o texto publicado
em 1602, diferindo geralmente na pontuação ou em detalhes descritivos, alguns com
assinalável extensão, nomeadamente os que se reportam às bocas do Zambeze.
Inclinamo-nos para que a versão incluída no códice 737 seja a mais próxima do que terá
sido o texto original de Manuel Godinho Cardoso, pois os manuscritos dos autores ao
serem editados passavam por um processo de intervenção técnica, que incluía revisão do
texto, alteração da pontuação, acréscimo de informações provindas de outras fontes
escritas e orais e ainda, posteriormente, o processo complexo da impressão tipográfica.863
Todas estas intervenções resultavam no “processo colectivo” de construção da
materialidade e textualidade de uma obra.
Nas palavras do autor da compilação manuscrita,
859
IDEM, ibidem, pp. 170-173.
860
Manuel Godinho CARDOSO, Relaçam do naufragio da nao Santiago, & itenerario da gente que delle
se salvou. Escrita/ por Manoel Godinho Cardozo, Em Lisboa, impresso por Pedro Crasbeeck, 1602.
861
De acordo com nota de António Sérgio, a versão deste naufrágio, da mão de Manuel Godinho Cardoso,
a qual se inicia com a narração da catástrofe, teria sido acrescentada por Bernardo Gomes de Brito. A
narrativa detalhada da viagem, desde a sua largada de Lisboa, passando pelas calmarias equatoriais, a
passagem do Cabo da Boa Esperança e navegação pelo Canal de Moçambique até à sua perdição ter-se-ia
baseado em manuscritos hoje desconhecidos. Veja-se Manuel Godinho CARDOSO, “Naufrágio da Nau
Santiago no ano de 1585 e Itinerário da gente que dele se salvou”, in H.T.M., Vol. II, (…), pp. 156-157.
862
“Naufragio Horrendo de Fernão de Mendonça 1585.”, in Rellação de Varios Naufragios, B.P.M.P., Cod.
737, fl. 35.
863
Roger CHARTIER, “Ecrit et Cultures dans l’Europe moderne”, comunicação proferida em seminário
no âmbito de uma Cátedra entre o Collége de France e a Universidade de Lisboa (ULisboa), Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian (Auditório 3), 30/05/2014. Veja-se, a este propósito, a obra recentemente
publicada de Roger CHARTIER, José Damião RODRIGUES e Justino MAGALHÃES (org.), Escritas e
Cultura na Europa e no Atlântico Modernos, Lisboa, Centro de História e Instituto de Educação da
Universidade de Lisboa, 2021.
231
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
“(…) o que fes este naufragio mais medonho foy ser de noite, e tão escura, que mal se
vião huns a os outros; a grita, e confusão da gente era grandissima, como de homens, que
se vião sem nenhuma esperança e remedio, no meyo do mar que bramia, com a morte
diante dos olhos, na mais triste, e horrenda figura que imaginar se pode em nenhum dos
naufragios passados”. 864
De acordo com o relato incluído no Códice 737, quase meio milhar de almas foram
confessadas na noite do naufrágio pelos religiosos que seguiam a bordo, pois todos se
preocupavam naquela hora mais com a “salvação das almas, por quão desenganada se
vira da dos corpos”.865
A circum-navegação meridional do continente fazia-se com grandes perigos,
todos eles marcos iniciáticos no percurso marítimo pelo globo. A costa do cabo da Boa
Esperança já havia sido explorada com objectivos associados a uma maior segurança nas
navegações. Porém, este naufrágio, num atol de coral do Canal de Moçambique, ampliava
uma visão geográfica desfavorável, associada à grande margem de desconhecimento
daquela periferia do mundo. Num plano subjectivo, tal periferia englobava primeiro, o
espaço marítimo e, depois, a terra africana, como se as águas que bramiam e conduziam
as naus a destroços e ruína, se comportassem como uma vasta aura líquida envolvente da
terra dos cafres.
As referências geográficas patentes no relato de Manuel Godinho Cardoso
definem uma concepção que cruza a denominação clássica de Etiopia866, aplicada à massa
continental africana, com a mais recente designação de terra dos cafres, assinalando um
espaço com identidade específica, no sudeste do continente.867
À extensão territorial designada por terra dos cafres correspondia um imaginário
fixado em relatos de naufrágios anteriores, os quais concebiam a praia como um lugar de
contacto com o oponente antropológico:
864
“Naufragio Horrendo de Fernão de Mendonça 1585.”, in Rellação de Varios Naufragios, B.P.M.P., Cod.
737, fl. 35 vº. Passagem textual muito próxima à da versão de Manuel Godinho CARDOSO integrada na
História Trágico-Marítima, Vol. II, (…), pp. 167-168.
865
“Naufragio Horrendo de Fernão de Mendonça 1585.”, in Rellação de Varios Naufragios, B.P.M.P., Cod.
737, fl. 35 vº.
866
Manuel Godinho CARDOSO, “Naufrágio da Nau Santiago no ano de 1585 e Itinerário da gente que
dele se salvou”, in H.T.M., Vol. II, (…), p. 210.
867
O códice 737, da B.P.M.P., não obstante seguir muito de perto o texto publicado em 1602, diverge por
omissão em certas passagens do texto, nomeadamente na utilização do conceito geográfico clássico de
Etiópia.
232
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
“quão errados vão os que dizem «na zona tórrida não há frio», o que parece se deve
entender nos que habitam junto à Linha equinocial; e nesta terra não durava mais o frio
que até uma hora depois do sol saído, e todo o mais dia até o pôr do sol era a calma
insuportável”.870
868
Manuel Godinho CARDOSO, “Naufrágio da Nau Santiago no ano de 1585 e Itinerário da gente que
dele se salvou”, in H.T.M., Vol. II, (…), p. 186.
869
IDEM, ibidem.
870
IDEM, ibidem, p. 188.
871
IDEM, ibidem, pp. 212-213.
872
IDEM, ibidem, pp. 210-211.
233
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
873
IDEM, ibidem, pp. 213-214.
874
Duarte Gomes SOLIS, Alegación en favor de la Compania de la India Oriental y comércios
ultramarinos que de nuevo se instituyó en el reyno de Portugal, Alcalá de Henares, Universidad
Complutense, 1628, p. 273.
875
Diogo do COUTO, “Relação do Naufrágio da Nau S. Tomé na Terra dos fumos, no ano de 1589 e dos
grandes trabalhos que passou D. Paulo de Lima nas terras da Cafraria, até sua morte”, in H.T.M., Vol. II,
(…), p. 239.
876
Esta obra, redigida em 1611, a pedido de D. Ana de Lima, irmã de D. Paulo de Lima, ficaria manuscrita
até à impressão de 1765, com o título: Vida de D. Paulo de Lima Pereira Capitam Mór de Armadas do
Estado da Índia, onde por seu valor, e esforço nas batalhas de mar, e terra, de que sempre conseguio
valerosas vitórias, foy chamado o Hercules Portuguez, Lisboa, Na Officina de Jozé Filippe, 1765.
877
Diogo do COUTO, “Relação do Naufrágio da Nau S. Tomé na Terra dos Fumos, no ano de 1589 e dos
grandes trabalhos que passou D. Paulo de Lima nas Terras da Cafraria, até sua morte”, in H.T.M., Vol. II,
(…), pp. 217-266.
878
Gaspar Ferreira REIMÃO, “Trattado dos grandes trabalhos que passarão os portuguesses, que se
saluarão do espantosos naufragio que fez a nnaao São Thome que vinha pera o Reino no Anno 1589, a qual
abrindo muita agoa, querendo se hir ao fundo perto da terra do Natal se meterão no batel e nelle nauegarão
ate hirem dar em terra de caferes, pela qual caminharão duzentas legoas passando muitos trabalhos, fomes,
perigos, necessidades, ate nosso senhor ser seruido de traser alguns deles a terras de christãos, e os mais
acabarão as vidas por teras de cafres, com muito desemparo, como neste tratado se vera. Feito por Gaspar
Ferreira sotapiloto da mesma Naao Anno de 1590”, in Kioko KOISO, op. cit., Vol. II, pp. 563-623.
234
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
879
“Navfragio Lastimozo de Estevão da Veiga. 1588.”, in Relação de Varios Naufragios, B.P.M.P., Códice
737, sem autoria, data desconhecida [século XVII?], fls. 58-61 vº.
880
“Historia de Dom Paulo de Lima escripta por Dom António de Ataíde”, B.P.E., Cod. CXVI/1-24, 278
fólios f.to 8º. “Relaçam do Naufragio da Náo São Thomé de que era Cappitão Esteuão da Veiga, a qual se
perdeo na Terra dos Fumos no anno de 1589, e dos grandes trabalhos, que passou Dom Paulo de Lima e
mais Companheiros nas Terras da Cafraria, até sua morte”, B.P.E., Cod. CXVI/1-22, 407 fólios f.to 8º. Esta
obra, sem menção de autoria, revela grandes semelhanças com o texto do códice com a cota Cod. CXVI/1-
24. Não deixam de existir, porém, algumas diferenças de pormenor, assim como na extensão e na
organização-divisão dos conteúdos. Daí que se tenha optado por apresentar este texto nos Anexos. As
semelhanças e as diferenças entre os conteúdos destes códices, que versam a mesma matéria textual,
interessam-nos, neste ponto, para testemunhar a prática de circulação, apropriação e cópia total ou parcial
de manuscritos, durante o século XVII. Vide Anexos – Doc. 2.
881
“Navfragio Lastimozo de Estevão da Veiga. 1588.”, in Rellação de Varios Naufragios, (…), fls. 58-61
vº.
882
“Naufragio da nao S. Thome aonde se conta a lastimosa perdição d’Dom Paulo de Lima Pereira e de sua
mulher Dona Britis de Monte Rojo”, A.N.T.T., Manuscrito da Livraria 1076, publicado por Kioko KOISO,
op. cit., Vol. II, (…), pp. 625-656.
883
Diogo do COUTO, “Relação do Naufrágio da Nau S. Tomé na Terra dos Fumos, no ano de 1589 e dos
grandes trabalhos que passou D. Paulo de Lima nas Terras da Cafraria, até sua morte”, in H.T.M., Vol. II,
(…), pp. 234-235.
884
Gaspar Ferreira REIMÃO, op. cit., p. 579.
235
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Numa tão curta porção do relato, repetem-se os signos definidores do tópico das
paisagens selvagens e inóspitas. Adiante no texto, o autor menciona os ares doentios, as
águas impuras e os muitos animais ferozes, que agravavam o carácter antinómico da
terra.894
Porém, aponta também algumas semelhanças, positivas, entre a baía de Lourenço
Marques ou de Maputo e a baía de Lisboa, destacando a grandeza e beleza de ambas e
estabelecendo um elo conceptual e retórico com a unidade do mundo. Através da
885
IDEM, ibidem, p. 580.
886
IDEM, ibidem, p. 603.
887
IDEM, ibidem, ps. 580 e 616.
888
IDEM, ibidem, p. 581.
889
IDEM, ibidem, p. 582.
890
IDEM, ibidem, p. 583.
891
IDEM, ibidem, p. 584.
892
IDEM, ibidem, p. 585.
893
IDEM, ibidem, p. 586.
894
IDEM, ibidem, pp. 604-605.
236
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
895
Luís Filipe BARRETO, Descobrimentos e Renascimento. Formas de Ser e Pensar nos Séculos XV e
XVI, (…), p. 137.
896
IDEM, ibidem, p. 585 - “toda aquella cafraria”; p. 594 - “por toda a Cafraria”; p. 596 – “se pode atrauesar
toda hesta Cafraria”; p. 599 – “por toda aquella Cafraria”; p. 609 - “en toda aquella Cafraria”; p. 613 – “por
esta Cafraria”; ps. 617 e 619 – “por toda aquella Cafraria”; p. 620 – “naquela Cafraria”.
237
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Cafraria é usada nas cartas dos missionários, para definir a extensa costa desde o Cabo
da Boa Esperança até Inhambane e aos Rios de Cuama. O Padre Gonçalo da Silveira
referia-se, em Novembro de 1559, ao contexto da missão de Inhambane:
“a missão he pera a cafraria gente toda negrissima a qual mora na costa do cabo que
chamão boa esperança e se estende muito como la podereis ver no mapa mundi”.897
897
“Carta (copia) do Padre D. Gonçalo para os Irmãos da Companhia de Jesus de Portugal”, in D.P.M.A.C.,
Vol. VII, (…), p. 420.
898
Portugaliae Monumenta Cartographica, Armando Zuzarte CORTESÃO e Avelino Teixeira da MOTA
(ed. de), Vol. I, Lisboa, Comissão para as Comemorações do V Centenário da Morte do Infante D.
Henrique, 1960, Estampa 27.
899
IDEM, ibidem, Vol. I, Estampas 37, 38, 39 e 40.
238
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
chamam África”.900 Os textos das obras Vida de D. Paulo de Lima Pereira901, da qual faz
parte integrante o conteúdo da Relação do Naufrágio da Nao S. Thomé902, e das Décadas
IX903 e XI904, fixaram no topónimo Cafraria os significados e intersubjectividades já
presentes na expressão terra de cafres.
A designação referencia um espaço geográfico que, sendo muito amplo, é cada
vez mais definido e balizado, abrangendo toda a costa desde o Cabo da Boa Esperança
até ao Cabo das Correntes e estendendo-se até à Zambézia pois, segundo Diogo do Couto,
inclui as terras conquistadas por Francisco Barreto e Vasco Fernandes Homem - os
“reinos de Monomotapa e de todos os mais daquele sertão, e marítimos, desta Etiópia
interior”.905
As vastas descrições e informações veiculadas por Diogo do Couto, sobre a
Cafraria, as suas populações e formas de organização sociopolítica, são, em parte,
resultado de testemunhos orais e escritos que foi reunindo e papéis diversos a que teve
acesso, como cronista e guarda-mor do tombo de Goa. O relato do naufrágio da nau S.
Tomé e das desventuras dos sobreviventes em territórios do sudeste africano permite um
levantamento de descritores relativos, tanto ao espaço geográfico natural, como ao espaço
político, uma vez que nomeia as autoridades locais e respectivas áreas de implantação
territorial.
900
Diogo do COUTO, “Relação do Naufrágio da Nau S. Tomé na Terra dos Fumos, no ano de 1589 e dos
grandes trabalhos que passou D. Paulo de Lima nas Terras da Cafraria, até sua morte”, in H.T.M., Vol. II,
(…), p. 240.
901
IDEM, Vida de D. Paulo de Lima Pereira, Capitam Mór das Armadas do Estado da Índia, onde por seu
valor, e esforço nas batalhas de mar, e terra, de que sempre conseguio gloriosas vitórias, foi chamado o
Hercules Portuguez, (…). Ao título, o autor acrescenta: “Com huma descripção, que de novo deixou feita
o mesmo Author desde a Terra dos fumos até o Cabo das Correntes, para muitos útil, e para todos grata”.
902
IDEM, “Relação do Naufrágio da Nau S. Tomé na Terra dos Fumos, no ano de 1589 e dos grandes
trabalhos que passou D. Paulo de Lima nas Terras da Cafraria, até sua morte”, in H.T.M., Vol. II, (…), 217-
266.
903
A respeito da Década IX, é de destacar que, juntamente com a Década VIII, o texto manuscrito passou
por inúmeras peripécias, envolvendo roubo e perda da versão integral inicial, sendo depois reescrito a partir
das memórias, notas e versões resumidas de Diogo do Couto. A versão reescrita só conheceria os prelos a
partir da 2ª metade do século XVII. Sabe-se, no entanto, que em 1608, o historiador trabalhava na redacção
desta década. Veja-se Maria Augusta Lima da CRUZ, “Década 8ª da Ásia de Diogo do Couto – informação
sobre uma versão inédita”, in Arquipélago. Série Ciências Humanas, Nº. 6 (Jan. 1984), pp. 151-166;
António Coimbra MARTINS, “História de Diogo do Couto e dos seus livros”, in Sep. da Revista da
Universidade de Coimbra, Vol. XXXVI, 1991, pp. 73-118.
904
Diogo do COUTO, Década XI da Ásia, Cap. 3, Lisboa, Na Regia Officina Typografica, 1788.
905
IDEM, “Relação do Naufrágio da Nau S. Tomé na Terra dos Fumos, no ano de 1589 e dos grandes
trabalhos que passou D. Paulo de Lima nas Terras da Cafraria, até sua morte”, in H.T.M., Vol. II, (…), p.
239.
239
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Para Diogo do Couto, a Cafraria descrita neste relato de naufrágio tem como
ponto de referência central a baía de Lourenço Marques, e é a partir deste elemento
geográfico que organiza os reinos e poderes de “bárbaros costumes e leis”. 906 São
descritas as duas ilhas frente à grande baía: Choambone, povoada por sete aldeias, e
Setimuro, despovoada de autóctones e espaço de alojamento para os portugueses, que ali
se deslocavam ao trato do marfim. No lado meridional da baía, ficava o reino do Inhaca,
cujos domínios se estendiam para sul até ao nordeste do reino de Viragune. Este, era já
na “Terra dos Macomates”907, expressão apontada como sendo a das populações locais,
correspondendo à nomeação portuguesa de “Terra dos Fumos”, tal como era conhecida
aquela costa nas cartas de marear.
A designação de “Macomates” seria, muito provavelmente, a transposição, para o
texto, de informações provenientes da tradição oral africana sobre a auto-nomeação dos
grupos humanos, a partir dos elementos geográficos dominantes, como os rios.908 Os
territórios descritos eram habitados por populações de cultura Tsonga, e o seu nome
étnico teria derivado do rio Komati ou Incomati. Ao tempo do naufrágio da nau S. Tomé,
o rei Viragune seria a autoridade política desta “Terra dos Macomates” ou “Terra dos
Fumos” e o seu território estendia-se até 30 léguas pelo sertão.909
Diogo do Couto refere, ainda, um outro rio, onde encalhou o batel com os
sobreviventes desta perdição, localizado a 27 ½ º S, cinquenta léguas a sul de Lourenço
Marques. Tal rio andava sem nome nas cartas de marear, mas os práticos que ali se
deslocavam para o comércio do marfim, chamavam-lhe rio “de Simão Dote”, o nome de
um português que aí fora ter num pangaio, fazendo o seu reconhecimento.910 Estamos
perante registos que testemunham o progressivo avanço da geografia experiencial, através
da exploração daquele interface entre os trilhos terrestres e marítimos, traduzindo-se num
conhecimento ainda não transposto para a cartografia. As informações recolhidas têm
sobretudo importância roteirística e decorrem de uma tradição de oralidade entre
marinheiros e práticos que andavam ao comércio naqueles rios.
906
IDEM, ibidem, p. 243.
907
IDEM, ibidem, p. 239.
908
Elizabeth A. ELDREDGE, Kingdoms and Chiefdoms of Southeastern Africa: Oral Traditions and
History, 1400-1830, Rochester, University of Rochester Press, 2015, p. 70.
909
Diogo do COUTO, “Relação do Naufrágio da Nau S. Tomé na Terra dos Fumos, no ano de 1589 e dos
grandes trabalhos que passou D. Paulo de Lima nas Terras da Cafraria, até sua morte”, in H.T.M., Vol. II,
(…), p. 240.
910
IDEM, ibidem.
240
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
911
IDEM, ibidem.
912
IDEM, ibidem.
913
IDEM, ibidem.
914
IDEM, ibidem, pp. 241-243.
915
IDEM, ibidem, p. 262.
241
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
916
Os três exemplares que existem na secção de Reservados da Biblioteca Nacional têm sido considerados
contrafacções do século XVIII. Um dos raríssimos exemplares da 1.ª edição de Lavanha encontra-se na
Biblioteca Ducal de Vila Viçosa com a cota Res. BDM 2.º/574. Cf. António Manuel de Andrade MONIZ,
A História Trágico-Marítima: Identidade e Condição Humana, Lisboa, Colibri, 2001, p. 44.
Sobre os raríssimos exemplares da editio princeps de Lavanha, veja-se também Leite FARIA,
“Bibliografia”, in Studia, Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, N.º 20-22, Abril-Dez. 1967,
pp. 295-302.
917
Glória de Santana PAULA, op. cit..
918
João Baptista LAVANHA, “Relação do Naufrágio da Nao S. Alberto, no Penedo das Fontes no anno de
1593. E Itinerario da gente, que delle se salvou, athè chegarem a Moçambique”, in H.T.M., Vol. III, (…),
pp. 9-76.
242
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
919
“Naufragio do Capitão Iulião de Faria Cerveira”, in B.P.M.P., Reservados – Cod. 737, fólios 62-63.
920
Perdição da nao Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, custumes dos que a abitão até o Cabo das
Correntes, códice manuscrito com grafia do século XVI, Reservados da B.N.P., Cod. 639. Publicado em
Glória de Santana PAULA, op. cit., pp. 105-106.
921
IDEM, ibidem, pp. 111-163.
922
IDEM, ibidem, p. 125.
923
IDEM, ibidem, p. 118.
243
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
924
IDEM, ibidem.
925
IDEM, ibidem, pp. 133-134.
926
IDEM, ibidem, p. 120.
927
IDEM, ibidem, p. 128.
244
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
“huma ribeira d’aguoa tam fria e tão emselemte que alguns companheiros hafirmarão que
sendo doente da pedra a semtirão botar com a beberem e em todo tempo que caminharão
a não sentirão”.928
“ouue neste arraial omem de ojtenta anos, e moso de doze, e manquos que da praia
comesaram a caminhar em muletas que (...) sararão ao cabo de oito dias de caminho, mais
ouue que auia omem que auia - vinte e tres anos, que trazia huma çhagua que nem no
esprital com o pao nem com muitas curas a pode sarar, e neste caminho sem lhe por nada
só com o caminhar e comer carne somente e aguoa se lhe sarou, destes milagres ouue
muitos, yuntos a outros que Deos fez aqui por todos”.929
“nem lenha nem aguoa nos faltou nunqua, que a cada piqueno espaço açhauamos rios,
ribeiras, regates fresquos e amenos pera corasoys mais liures de cuidados de que os nos
traziamos. As terras são as melhores que se podem pedir, e darão tudo que lhes samearem,
melhor e tambem como em Portugual”.931
“caminhamos por terra fresqua muito apraziuel a uista te cheguarmos a luguar acomodado
pera repouzarmos, açhamos por todo este caminho muitas adeñs, perdizes, cordonizes,
pombas, garsas, pardais, coruos, e muitas eruas da Europa, como agrjois, bredos, alecrim,
alorna, pregose, mentratro, amoras da silua, pitos, erva babosa, rabasas, e muitas boninas,
928
IDEM, ibidem, p. 135.
929
IDEM, ibidem, p. 136.
930
Rogério Paulo SILVA, A Catarse na Dimensão Purificadora do Ritual,
https://www.academia.edu/6967089/A_Catarse_na_Dimens%C3%A3o_Purificadora_do_Ritual
(Consultado em 12/07/2017)
931
Perdição da nao Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, custumes dos que a abitão até o Cabo das
Correntes, in Glória de Santana PAULA, op. cit., p. 136.
245
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
“fomos marchando sempre ao nordeste sobindo muitas serras e desemdo muitos vales
muj frescos, e grasiozos e abundantes e prosperos de muitas ribeiras fermozas de agoas
mui christalinas e claras que das serras clissão”.935
“açhamos huma fomte nasida d’area da mais emxelente agoa que numqua uimos da quoal
nasia tres fermozos olhos que todos fazia hum regato que uinha desemdo por antre humas
eruazinhas verdes”.936
É, também, neste espaço sedutor, apelativo dos sentidos, que irrompe o fantástico,
na descrição de um boi com sete cornos:
“vimos demtro em hum curral com outro gado hum boi que lhe sahia da testa hum
tromquo de hum palmo domde se repartião tres cornos que hum lhe cahia em arco sobelos
olhos e outros dous em arco pelas jlharquas que lhe uinhão aos holhos, tinha mais os dous
cornos ordinarjos, e outros dous, que lhe cahião por detras das orelhas, de modo que erão
sete”.937
932
IDEM, ibidem, p. 138.
933
IDEM, ibidem, pp. 134-135. (sublinhado nosso)
934
IDEM, ibidem, p. 138. (sublinhado nosso)
935
IDEM, ibidem, p. 146. (sublinhado nosso)
936
IDEM, ibidem, p. 150. (sublinhado nosso)
937
IDEM, ibidem, p. 151.
246
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
938
Pierre FRANCASTEL, Peinture et Societé. Naissance et destruction d’un espace plastique - de la
Renaissance au Cubisme, Paris, Denoel, 1977, Apud Helena Carvalhão BUESCU, Incidências do Olhar:
Percepção e Representação, Lisboa, Caminho, 1990, p. 59.
939
Maria Emília Madeira SANTOS, O carácter experimental da Carreira da Índia. Um plano de João
Pereira Dantas, com fortificação da África do Sul (1556), (…), pp. 6-7.
940
Perdição da nao Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, custumes dos que a abitão até o Cabo das
Correntes, in Glória de Santana PAULA, op. cit., p. 152.
247
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
941
IDEM, ibidem, p. 137.
942
IDEM, ibidem, p. 139.
943
IDEM, ibidem, p. 156.
944
IDEM, ibidem, p. 116.
945
Documento existente na B.A., Cod.51-VI-54, n.º 27 e publicado por Maria Emília Madeira SANTOS,
O carácter experimental da Carreira da Índia. Um plano de João Pereira Dantas, com fortificação da
África do Sul (1556), (…), pp. 48-53.
248
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
946
Vide Anexos, Quadro 1.
947
Glória de Santana PAULA, op. cit., pp. 33-37.
948
Vide Anexos, Quadro 2.
949
Paul Edward Hedley HAIR, op. cit., pp. 3-46.
950
IDEM, ibidem, p. 18.
249
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
951
Glória de Santana PAULA, op. cit., pp. 34-37.
952
Perdição da nao Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, custumes dos que a abitão até o Cabo das
Correntes, in Glória de Santana PAULA, op. cit., p. 162.
953
Segundo Gillian Vernon, o sítio do naufrágio da nau S. João Baptista localiza-se na praia hoje conhecida
por “Cannon Rocks”, cerca de 20 Km a ocidente do rio Bushman; cf. Gillian VERNON, Even the Cows
were Amazed. Shipwreck Survivors in South-East Africa (1552-1782), Cape Town, Jacana, 2013, p. 58.
250
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
954
Francisco Vaz DALMADA, Tratado do sucesso que teve a Nao S. Joam Baptista, E jornada que fez a
gente que della escapou, desde trinta & tres graos no Cabo de Boa Esperança, onde fez Naufragio, atè
Sofala, vindo sempre marchando por terra, Em Lisboa, Por Pedro Craesbeck Impressor delRey, 1625.
955
“Naufragio Lastimozo de Pedro de Morais. 1626”, in Rellação de Varios Naufragios, (…), fls. 68-75 vº.
O autor desta compilação data, erroneamente, a perdição da nau S. João Baptista em 1626, sendo todos os
demais registos unânimes em datar a ocorrência em 1622.
956
Portugaliae Monumenta Cartographica, Armando Zuzarte CORTESÃO e Avelino Teixeira da MOTA
(ed. de), Vol. IV, (…), Estampa 469 B.
957
Manuel de Faria y SOUSA, Ásia Portuguesa, Tomo III, Parte IV, Cap. VIII, Lisboa, en la Officina de
Antonio Craesbeeck de Mello Impressor de Sua Alteza, 1675, pp. 459-462.
958
O Códice Add. 20902 foi transcrito, anotado e publicado por Maria Hermínia MALDONADO, op. cit.
959
Simão Ferreira PAIS, “Recopilação das famosas Armadas Portuguezas que pera a India foram, 1496-
1680”, in C. I. Alphonso da COSTA, As famosas armadas portuguesas 1496-1650, Rio de Janeiro,
Ministério da Marinha, 1937, pp. 123-125.
251
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
960
Patricia STORRAR, Drama at Ponta Delgada. Shipwreck in Plettenberg Bay, Braamfontein, Lowry
Publishers, 1988.
961
Joseph de CABREYRA, Naufragio da Nao N. Senhora de Belem Feyto na terra do Natal no cabo de
Boa Esperança, & varios sucessos que teve o Capitão Joseph de Cabreyra, que nella passou à India no
anno de 1633. Fazendo o officio de Almirante daquella frota atè chegar a este Reyno, Em Lisboa, Por
Lourenço Craesbeeck Impressor d’ElRey, 1636.
962
Jerónimo LOBO, op. cit., pp. 542-634.
963
B.A., Ms Avulsos 54-X-13, nº 74, 30 fls.. Este manuscrito foi transcrito e publicado por Kioko KOISO,
op. cit., Vol. II, pp. 656-701.
964
Bento Teyxeyra FEYO, op. cit..
965
Carl Vernon destaca entre os vestígios materiais encontrados na praia de Bonza Bay: os fragmentos de
porcelana Ming azul e branca e contas de cornalina; uma larga porção da quilha de um navio, cuja madeira
foi identificada como Quercus alba e Tectona grandis, o que poderá corresponder a um navio construído
252
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
em Lisboa e reparado na Índia; uma grande quantidade de pedras de granito, exterior à geologia local, e
cuja análise microscópica indica coincidir com o granito de Goa, o que, segundo Vernon, poderá ser um
vestígio do lastro do navio. Cf. http://www.bonzabay.co.za/blog/post/ming (Consultado em 20/11/2014)
966
Bento Teyxeyra FEYO, p. 11.
967
IDEM, ibidem.
968
IDEM, ibidem, p. 20.
969
IDEM, ibidem, p. 19.
970
IDEM, ibidem, pp. 44-50.
971
IDEM, ibidem, p. 36.
972
IDEM, ibidem, p. 39.
973
IDEM, ibidem, p. 45.
974
IDEM, ibidem, pp. 48 e 54.
975
IDEM, ibidem, p. 54.
976
IDEM, ibidem, p. 55.
253
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Após três meses de caminhada, os náufragos foram atacados por populações que
lhes “atirarão infinitas azagayas”977 com o intuito de os roubarem, sendo que alguns
sucumbiram e muitos ficaram feridos. O texto de Vaz de Almada apresenta uma natureza
hostil das populações autóctones, o que muito provavelmente seria uma resposta
defensiva face à fama destrasosa e agressiva que o grupo de náufragos foi deixando à sua
passagem.
Do combate entre os náufragos e as populações locais resultou uma visão da
Cafraria como uma terra de cura surpreendente. Foi, com espanto, que o autor descreveu
a situação em que foram atacados e feridos e em
“(…) que ninguem escapou que o não fosse, ou de azagaya, ou de pedradas, & fizerão-se
as maiores curas, que eu nunca vi, porque havia muytos atravessados pelos peytos de
banda a banda, & pelas coxas, & cabeças quebradas, & nenhu delles morreo, & só com
tutanos de vacas eraõ curados”. 978
977
IDEM, ibidem, p. 59.
978
IDEM, ibidem.
979
IDEM, ibidem.
980
Na reflexão e análise sobre os marcadores simbólicos dos territórios africanos, veja-se Isabel Castro
HENRIQUES, “A materialidade do simbólico: marcadores territoriais, marcadores identitários angolanos
(1880-1950)”, in Textos de História, Brasília, Universidade de Brasília, Vol. 12 - n.os 1/2, 2004, pp. 13-15.
https://periodicos.unb.br/index.php/textos/article/view/27862/23951 (Consultado em 06/01/2011)
254
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
“rio do Almíscar”,981 dois dias depois, passaram o rio dos camarões,982 mais adiante,
chegaram ao “rio da fome”,983 depois ao rio do lagarto, ao rio das ilhas, ao rio das
formigas,984 entre muitos outros que se afirmavam como elementos de uma nova
geografia.
O modo como os rios são nomeados e descritos destinava-se a funcionar como
conhecença, mas simbolizava também uma forma de apropriação escrita, retórica, de um
novo território, ainda que, na prática, no terreno, a posição dos náufragos fosse de
vulnerabilidade e dependência face à ajuda prestada pelas populações africanas.
Outro importante marcador territorial consiste nas comunidades sedentárias,
organizadas em “aldeias” ou “povoações”, que eram os espaços de socialização das
populações africanas, onde se teciam as relações múltiplas da vida de todos os dias, as
relações familiares e com os outros membros do grupo, as relações com a terra, com o
sagrado e com a ordem cósmica.
Uma povoação poderia ter “quinze casas de palha”, ou mais, e estava associada à
pastorícia e agricultura, o que permitia aos náufragos em trânsito a troca de pedaços de
metal por bovinos, carneiros, leite e frutos das sementeiras. Quando possível, era em
povoações, ao cuidado “dos cafres”, que ficavam muitos náufragos impossibilitados de
caminhar. Era, também, nestes espaços sociais organizados que surgia, em muitos
caminhantes, a oportunidade de escapar às duras condições do cativeiro e permanecerem
livres na Cafraria. Aconteceu com muitos escravos que iniciaram a viagem a bordo. 985
Aos doentes incapazes de caminhar, deixava-lhes o capitão “muytos pedaços de cobre, &
de latão, que he cousa, que aqui val mais que tudo, & dous caldeyrões”.986 A leitura dos
relatos de naufrágios, numa sequência cronológica, revela-nos que muitos náufragos que
ficaram pelo caminho, entregues aos cuidados dos chefes das aldeias, recuperaram a
condição de saúde e foram encontrados anos mais tarde, por outros náufragos, totalmente
integrados nas comunidades locais.
Para além de rios e povoações, os “desertos” funcionaram também como
indicadores territoriais. Esta designação corresponde a extensões de muitas serras e rios,
981
Francisco Vaz DALMADA, op cit., p. 17.
982
IDEM, ibidem.
983
IDEM, ibidem, p. 39.
984
IDEM, ibidem, p. 52.
985
IDEM, ibidem, p. 31.
986
IDEM, ibidem, pp. 28, 31, 49, 51.
255
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
987
IDEM, ibidem, pp. 17-18.
988
IDEM, ibidem, p. 24.
989
IDEM, ibidem, p. 50.
990
João TEIXEIRA, [Sul da África, de Mozambique até Cabo da Boa Esperança], Atlas de trinta e uma
cartas, 1630, Library of Congress, in Portugaliae Monumenta Cartographica, Vol. IV, (…), Estampa 469
B.
991
Francisco Vaz DALMADA, op cit., p. 54.
256
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Moçambique992, como ainda por ser um espaço onde muitos africanos “fallavão muyto
bem Portuguez”.993 Contudo, as relações diplomático-comerciais com este rei Inhaca
sofreram prejuízo depois que ali foram mortos, em 1620, um clérigo e três portugueses,
tendo este incidente conduzido à suspensão do envio de pangaios da Ilha de Moçambique
para o comércio do marfim e do âmbar.
Apesar do simbolismo positivo que representava alcançar o reino do Inhaca, em
termos climáticos, era considerada uma terra doentia, tal como toda a que seguia para
norte, até Inhambane, condição agravada por aí habitarem povos Mocarangas, descritos
como “dos mais máos que havia em toda a Cafraria”.994
De Inhambane, é descrito o “rio fermosissimo”, numa zona abundante de
mantimentos da terra e do mar. Apesar da presença portuguesa ser aí uma constante, os
náufragos consideravam este espaço ainda um “cativeyro”.995 Sofala era por excelência
terra de respeito pelos portugueses, “terra de Christãos”,996 por oposição a todas as outras,
consideradas de “bárbaros”, onde não só se arriscava o corpo, mas também a alma, por
influência dos maus costumes dos habitantes.997
Dos 279 sobreviventes do naufrágio da nau S. João Baptista, apenas 27 pessoas
chegaram a Moçambique e daí regressaram a Goa. Fácil será entender que, a projeção da
informação de tal saldo humano nos leitores, teria contribuído para consolidar os
estereótipos definidores de uma terra em negativo.
O texto sobre o mesmo naufrágio, contido no manuscrito 737 da Biblioteca
Pública Municipal do Porto, é uma recompilação que segue as etapas do texto de Vaz de
Dalmada998, mas que aprofunda e agrava os estereótipos sobre a terra e as populações do
sudeste africano. Segundo este relato, os náufragos atravessaram a Cafraria, “por
barrancos, e por brenhas”, “asperissimos desertos” e “serras fragozissimas”, “por
montanhas, profundos rios, e talvez por entre pobres povoaçoens”. Nestas terras, o perigo
ensinou-lhes “rigores tão bárbaros, como inhumanos”. A este propósito, é dado especial
enfoque ao episódio do abandono da jovem donzela, que pelo caminho foi deixada “ao
992
IDEM, ibidem, p. 71.
993
IDEM, ibidem.
994
IDEM, ibidem, pp. 81-82.
995
IDEM, ibidem, p. 94.
996
IDEM, ibidem, p. 93.
997
IDEM, ibidem, p. 30.
998
B.P.M.P., Códice 737, fl. 75 vº.
257
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
apetite dos Cafres, ou ao alvedrio das feras” 999; “moça donzela, e Portuguesa (…), exposta
assim para sustento dos feros tigres, e leões, ou a torpeza dos cafres” 1000, parecendo-nos
ser significativo que “Cafres” e “feras” ocupam no texto o mesmo plano da natureza
selvagem e oponente.
Quanto à perdição da nau S. Gonçalo (1630), no registo que transitou do diário do
frade capucho, Francisco dos Santos1001, para a Ásia Portuguesa, de Manuel de Faria y
Sousa, percebe-se uma representação da terra que valoriza tanto a diversidade, como a
semelhança numa perspectiva positiva, deixando mesmo revelar-se as notas de um
admirável e idílico trecho do Orbe. Este frade, do movimento da Estreita Observância dos
Franciscanos na Ásia, dirige o seu olhar para a grandeza da natureza, que nos parece
desempenhar um papel central na representação deste naufrágio e experiência de
sobrevivência como um processo místico.
A Baía Formosa, que se anunciara aos navegantes como abrigo face ao mar
tormentoso, mostrava-se amparada dos ventos, com uma beleza natural intocada e de
grande dimensão, pois teria “de boca tres leguas y de circulo cinco”.1002
De acordo com o discurso que transitou para a obra de Manuel de Faria y Sousa, a
presença dos náufragos da nau S. Gonçalo na Baía Formosa, por um período de oito
meses, teria cristianizado temporariamente um espaço que, sendo selvagem, mostrava
revestir-se de enorme potencial:
“El terreno es bonissimo, sin piedra alguna, (…) los valles com muchas yervas y plantas
(…). La arboleda copiosa y grande. Rieganlo todo caudalosos rios; y abundantes e bellas
fuentes.”1003
A estadia nesta terra durante uma parte do ano permitiu descrever um solo africano
que frutificava e se mostrava generoso e semelhante. O inventário da flora indígena, rica
e de múltiplas fragâncias, os animais selvagens, “inumerables y de extraordinaria
999
IDEM ibidem, fl. 70 vº.
1000
IDEM ibidem, fl. 71 vº.
1001
De acordo com Manuel de Faria y Sousa, Frei Francisco dos Santos era custódio da Província da Madre
de Deus dos Capuchos da Índia. Veja-se Manuel de Faria y SOUSA, Ásia Portuguesa, Tomo III, (…), p.
461.
1002
IDEM, ibidem, p. 459.
1003
IDEM, ibidem.
258
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
grandeza”, com destaque para a arte com que certas aves faziam seus ninhos, aproximam
esta extremidade meridional do continente africano de uma idealização do Éden. 1004
Quanto ao naufrágio da nau Nossa Senhora de Belém, em 1635, terá ocorrido na
sequência de tempestades muito violentas no espaço marítimo, considerado o troço mais
perigoso da viagem da Índia, o “cabo de boa Esperança tam tormentoso, & fatal para os
navegantes”.1005 A tormenta fora tal, que o texto de José Cabreira personifica nos mares
o intento de derrubar as naus, afirmando que vieram “os temporaes a ser tão rijos, &
continuos que parece que cada qual procurava de acabar com nosco de hua vez”.1006
A nau perdeu-se junto à foz do rio Umzimvubu, numa costa descrita como
“áspera”, onde mal se podia navegar.1007 O Padre Jerónimo Lobo, sobrevivente deste
naufrágio, que integrou no seu Itinerário um vasto relato da perdição da nau e dos cerca
de oito meses de vida “sedentária” na Cafraria, identifica o rio do naufrágio como o “Rio
das Formigas”, tal como era designado nas cartas de marear.1008 Os primeiros trilhos dos
sobreviventes na terra firme consumavam o milagre da salvação, enquanto as serras altas
e matos se ofereciam como cenário das maiores provações terrenas.
Existe um terceiro relato deste naufrágio, redigido por um anónimo, cujo
manuscrito se encontra depositado na Biblioteca da Ajuda, tendo sido editado por Kioko
Koiso, em 2004.1009 Este texto constitui, muito provavelmente, uma cópia de um relato
de sobrevivente e mostra-se, em algumas passagens, de maior detalhe descritivo quando
comparado com os relatos de Cabreira e Jerónimo Lobo.1010 De acordo com o texto
anónimo, a Cafraria era um espaço de “praias e matos”, “aonde não há senão alarues e
muitos bichos feros”.1011 O local do naufrágio revelava-se abundante de mantimentos,
não apenas grande variedade de peixes no rio junto do qual os náufragos se fixaram, como
1004
IDEM, ibidem, p. 461.
1005
Joseph de CABREYRA, op. cit., p. 13.
1006
IDEM, ibidem, pp. 9-10.
1007
IDEM, ibidem, p. 21.
1008
Jerónimo LOBO, op. cit., pp. 542-634. O “rio das Formigas” é referido na p. 569.
1009
Relação da Perdição da Nao Belem, da qual era Capitão Joseph Cabreira, Mestre Miguel Jorge grego,
e piloto Mathias Figueira, a mais mal afortunada Nao que nauegou no Mar, a qual partio da barra de
Lisboa pera a India por Capitanea no Ano de mil e seiscentos e trinta e hum em Companhia da não Rosario,
e arribou na altura de oito graos da banda do Sul. B.A., Avulsos 54-X-13, n.º 74. Editado por Kioko
KOISO, op. cit., Vol. II, (…), pp. 657-701.
1010
IDEM, ibidem, Vol. I, (…), pp. 114-117.
1011
IDEM, ibidem, Vol. II, (…), pp. 669 e 676.
259
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
“As águas são muitas de rios e fontes frescas, delgadas, sadias e doces”. 1016
Este tópico, que concebe a Cafraria como uma terra de cura e catarse é recorrente,
pelo menos desde o naufrágio da nau Santo Alberto, para os territórios mais temperados,
a sul do rio Limpopo. Ao mesmo tempo que se construía conceptualmente este tópico,
aplicado aos territórios mais meridionais, consolidava-se também a concepção geográfica
que defendia que a norte do Limpopo os ares eram doentios, os matos mais perigosos, as
águas peçonhentas e os habitantes locais mais aguerridos.
Numa extensa praia, na embocadura do rio Umzimvubu, fixaram-se os náufragos
durante a temporada de cerca de meio ano, com o objectivo de construir duas embarcações
que lhes possibilitariam a saída das “terras de alarves” 1017, expressão utilizada por
Cabreira, em vez de terras de cafres. Segundo José Pedro Machado, a designação
“alarves”, tendo uma origem antiga, que significa “árabes”, especificando os que se
1012
IDEM, ibidem, (…), pp. 672-673 e ps. 686, 693 e 696.
1013
Joseph de CABREYRA, op. cit., p. 27.
1014
IDEM, ibidem, p. 26.
1015
Jerónimo LOBO, op. cit., p. 571.
1016
IDEM, ibidem, p. 572
1017
Joseph de CABREYRA, op. cit., ps. 21, 27, 31 e 43.
260
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
dedicavam à pastorícia e tinham vida nómada, passa a ligar o seu sentido à “vida errante
dos campos”, oposta “à vida mais pulida das cidades, onde há hábitos de civilidade”. Ao
tornar-se um adjectivo, este vocábulo passou a ter a significação dominante de “bruto,
grosseiro, sem maneiras”.1018 O uso deste vocábulo para designar populações nómadas
está presente na “Carta da Europa e África”, de Bartolomeu Velho (1561), em que a
legenda “ALARVES” consta no sudoeste africano, a sul de outras designações que
representavam poderes e soberanias africanas, como “MANICONGO”, “ANGOLA” e
“BENGVELA”.1019 “Alarves” terá sido um dos termos disponíveis no léxico português
da época para designar as populações de caçadores-recolectores e pastores nómadas, que
viviam nos territórios do interior, a sul do cabo Negro e que José Cabreira utiliza
continuamente no seu relato para nomear as gentes do rio Umzimvubu, no sudeste
africano. Os significados de “bruto”, que levava “vida errante”, ou “rústico”, partilhavam
aspectos comuns do campo semântico do vocábulo cafre.
Assim, é no sudeste africano, tendo como referência o rio Umzimvubu, em terra
de alarves ou de cafres que, com a ajuda dos escravos, foi construída uma “estancia” de
palhotas, onde se destacava uma igreja “muyto bem feyta” 1020 e um verdadeiro estaleiro
de construção naval, que Cabreira designou de “ribeyra dos navios”, por ser tão
semelhante a “huma ribeyra como a das naos deste Reyno”.1021
Os matos forneciam a abundante madeira que, depois de benzida, seguia para a
“fabrica”. Segundo o capitão, o lugar escolhido para se fixarem, fora previamente morada
de cobras e, desde sempre, marcado por pegadas de hipopótamos, búfalos e “outras feras”;
porém, “com a continuação da gente veyo a estar tudo tão limpo como o terreyro do Paço
desta Cidade”.1022 Num discurso acentuadamente etnocêntrico, o texto de Cabreira
reclama uma tomada de posse de uma terra considerada selvagem, através de um processo
de domesticação e cristianização temporária do espaço.1023
1018
“Alarve”, in José Pedro MACHADO, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa com a mais antiga
documentação escrita e conhecida de muitos dos vocábulos estudados, Vol. I, Lisboa, Livros Horizonte,
1995, p. 171.
1019
Bartolomeu VELHO, “Carta da Europa e África” (1561), in Portugaliae Monumenta Cartographica,
Armando Zuzarte CORTESÃO e Avelino Teixeira da MOTA (ed. de), Vol. II, (…), Estampa 203.
1020
Joseph de CABREYRA, op. cit., p. 41.
1021
IDEM, ibidem, pp. 40-45.
1022
IDEM, ibidem, p. 43.
1023
IDEM, ibidem.
261
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Já o Padre Jerónimo Lobo considera este espaço africano como o “melhor torrão
e clima de terra” que viu. Ao longo do seu texto percebe-se um convite à fixação dos
portugueses na Cafraria, essa terra onde “a erva crece da altura de hum homem, na mesma
forma crecera o mantimento se o semearão”;1024 “não vi terra mais temperada e milhor
clima do que esta (…) posso dizer he sempre huma alegre primavera”. Nos formosos
bosques abundavam madeiras, que bastariam para “armar muitas naus da India”, as águas
eram frescas e sadias e “a fermosura e dilicia das flores que Deus Nosso Senhor ali
plantara tão pouco estimada de gente tão barbara”.1025 Enquanto o domínio cristão não
alcancasse estas terras e estes povos, a Cafraria, apesar do seu potencial, continuaria a
ser percepcionada como um desterro.
Postos à água os navios construídos com madeiras dos bosques do Umzimvubu,
nomeados “Nossa Senhora da Natividade” e “Nossa Senhora da Boa Viagem”, 1026
voltaram a enfrentar-se as tormentas do cabo da Boa Esperança que, ao ser dobrado rumo
ao Atlântico, permitiu acrescentar à vida dos náufragos um outro “renascimento”
simbólico.1027 Este decorria não apenas do sucesso náutico da dobragem do Cabo, saindo
dos mares “empolados e cruzados” para mares atlânticos mais bonaçosos, mas também
da aproximação a terras cristianizadas, no reino de Angola.1028
O Cabo Negro era o referencial topográfico que assinalava, na costa sudoeste
africana, a transição entre as terras do desterro e as terras “de christãos”. Para o padre
Jerónimo Lobo, a verdadeira libertação coincidia com a chegada “a terra de christãos”,
no novo reino de Benguela.1029
Em 1647, naufragavam as naus Nossa Senhora da Atalaia do Pinheiro, a sul do
rio Kei, e Santíssimo Sacramento, na baía da Alagoa. Esta faixa da costa meridional
africana tinha sido trilhada recentemente por sobreviventes do naufrágio da nau S. João
Baptista (1622) e da nau Santa Maria Madre de Deus (1643). A peregrinação dos
náufragos no sentido nordeste seguia o mesmo rumo que haviam tomado os náufragos da
nau Santo Alberto (1593), muito embora os modos de atuação face às populações locais
fossem totalmente distintas.
1024
Jerónimo LOBO, op. cit., p. 571.
1025
IDEM, ibidem, pp. 571-573.
1026
Joseph de CABREYRA, op. cit., p. 48.
1027
IDEM, ibidem, p. 63.
1028
Jerónimo LOBO, op. cit., ps. 624 e 630.
1029
IDEM, ibidem, p. 632.
262
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1030
Bento Teyxeyra FEYO, op. cit., pp. 8-9.
1031
IDEM, ibidem, p. 10.
263
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
A Cafraria não se revelava apenas como uma geografia em negativo, também apontava
caminhos diversos para a libertação do sofrimento social ou da prisão do corpo.
O texto de Teixeira Feio é intensamente trespassado por referências ao território,
as quais permitem construir uma imagem quase bipolar da Cafraria, como terra de exílio
e salvação; terra de oponentes humanos, os cafres brutos, bárbaros, alarves, ladrões, mas
onde também se consuma o encontro com gente boa, generosa e acolhedora; espaço por
excelência de bosques e matos cerrados, rios caudalosos de difícil travessia, caminhos
ásperos e ruins, serras íngremes e medonhas, de penedos alcantilados e até terras doentias
onde muitos sucumbiram às febres. Todos os obstáculos físicos descritos faziam deste
percurso um verdadeiro acto de contrição que transmutava a travessia da Cafraria num
percurso espiritual redentor e purificador.1032 A “terra áspera”, que permitia a expiação
dos pecados humanos, revelava também as suas fontes de boas águas, os muitos rios
envoltos em fresco arvoredo e as terras abundantes de milho e de gado.
No âmbito da representação do espaço, verifica-se uma consolidação dos tópicos
que se tornaram estruturantes no corpus discursivo consagrado à antítese dos sucessos,
desde o relato do naufrágio do galeão S. João (1552). Este corpus reservava para a
Cafraria, enquanto terra estranha, o papel de um palco onde desfilaram as maiores
tragédias a que o teatro do mundo assistiu, nos séculos XVI e XVII .
Enquanto categoria espacial, a Cafraria faz parte de uma nova geografia afirmada
ao longo do século XVI e construida com dados do conhecimento empírico, permitindo
ampliar e renomear os espaços do mundo. Luis del Mármol Caruajal, na sua Descripcion
general de Africa, publicada em Málaga, no ano de 1599, afirma que a divisão antiga do
continente se fazia entre Baixa e Alta Etiópia, a que os Hebreus haviam chamado Cush e
que “el dia de oy se divide en tres grandes partes. La baxa Etiopia, la Quefreria, y la
Abaxia”.1033 Tal classificação decorre da informação geográfica proveniente da
experiência das viagens e dos naufrágios, que passou a ser incluída nos textos impressos
e se generalizou como representação de uma nova secção geográfica do continente
africano.
1032
IDEM, ibidem, p. 29.
1033
Luis del Mármol CARUAJAL, SEGUNDA PARTE Y LIBRO SEPTIMO DE LA DESCRIPCION
general de Africa, donde se contiene las Provincias de Numidia, Libia, la tierra de los Negros, la baxa y
alta Etiopia, y Egipto, cõ todas las cosas memorables Della, Málaga, Emprenta de Iuan Rene, 1599, fl.
XXI. Em Quefreria, sublinhado nosso.
264
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1034
Jerónimo LOBO, op. cit., p. 569.
1035
“Consulta do Conselho de Portugal” (Janeiro 1608), in Monumenta Missionária Africana. África
Ocidental, colig. e anotada por BRÁSIO, António, 1.ª Série, Vol. XV, Suplemento (Sécs. XV, XVI, XVII),
1485-1665, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1988, pp. 406-407. “Consulta do Conselho da Índia”,
in Monumenta Missionária Africana. África Ocidental, colig. e anotada por BRÁSIO, António, 1.ª Série,
Vol. XV, Suplemento (Sécs. XV, XVI, XVII), 1485-1665, (…), pp. 419-420.
1036
“Consulta do Conselho de Portugal”, IDEM, ibidem, p. 406.
265
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1037
“Consulta do Conselho da Índia”, IDEM, ibidem, p. 420.
1038
IDEM, ibidem.
266
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1039
“Regimento da Descoberta da Costa da Cafraria” (25-01-1613), in Monumenta Missionária Africana.
África Ocidental, colig. e anotada por BRÁSIO, António, Vol. VI (1611-1621), Lisboa, Agência Geral do
Ultramar, 1955, p. 118.
1040
IDEM, ibidem, p. 119.
1041
Portugaliae Monumenta Cartographica, Armando Zuzarte CORTESÃO e Avelino Teixeira da MOTA
(ed. de), Vol. III, (…), p. 46.
1042
“Carta Régia ao Vice-Rei da India sobre a Descoberta da Cafraria” (27-3-1629), in Monumenta
Missionária Africana. África Ocidental, colig. e anotada por BRÁSIO, António, 1.ª Série, Vol. XV,
Suplemento (Sécs. XV, XVI, XVII), 1485-1665, (…), p. 562.
1043
Wendy Van DUIVENVOORDE, “DUTCH SEAMAN DIRK HARTOG (1583–1621) AND HIS
SHIP EENDRACHT.” The Great Circle, vol. 38, no. 1, 2016, p. 7. https://www.jstor.org/stable/26381208
(consutado em 28/08/2021).
267
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1044
http://museum.wa.gov.au/explore/dirk-hartog
Eendracht era nome de navio e significava “união” ou “harmonia”, tendo a extremidade sul do continente
africano recebido esse nome, antes do navio prosseguir viagem rumo ao arquipélago indonésio. Conhece-
se uma carta de 1627, que representa uma terra com este nome, mas que se refere à costa explorada na
Autrália ocidental, no contexto desta mesma expedição. Veja-se Hessel GERRITSZ, Caert van't Landt van
d'Eendracht uyt de Iournalen ende afteykeningen der Stierluyden t'samengestelt, Ao. 1627 [cartographic
material] / Bij Hessel Gerritsz, 1627 http://nla.gov.au/nla.obj-231306061 (consutado em 28/08/2021)
1045
Wendy Van DUIVENVOORDE, op. cit., p. 17.
1046
IDEM, ibidem, p. 9
268
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
e para abrigo e conserto das naus da Índia, tendo entregue um planta deste seu primeiro
reconhecimento e solicitado apoio para empreender uma outra missão exploratória.1047 O
Conselho Ultramarino deu parecer favorável à realização dessa expedição, que foi
iniciada por Domingos de Magalhães em 1650. Entretanto, devido a mau tempo o piloto
teve que arribar a Benguela, falecendo pouco tempo depois.1048
Em 1652, outra “Consulta do Conselho Ultramarino” suscitou nova análise da
planta feita por Domingos Magalhães e, encontrando-se no reino o piloto Gaspar Pereira
dos Reis, foi convocada uma reunião de cosmógrafos para considerarem o que deveria
ser feito ou alterado face à informação entretanto recebida de António Raposo que, de
Amsterdão, avisava sobre o projeto da instalação holandesa no cabo da Boa Esperança.
A notícia de que os holandeses tinham enviado um navio com oitenta pessoas para
fazerem fortaleza e povoação no cabo da Boa Esperança parece assinalar o fim de um
ciclo de presenças intermitentes de portugueses no Cabo, cuja importância estratégica
chamou a atenção de alguns homens práticos que defenderam a fixação portuguesa na
extremidade meridional africana. A morosidade dos processos que levaram à aprovação
de expedições de “descobrimento” e as dificuldades técnicas das suas realizações
levaram, ainda assim, à recolha de informações importantes, que se mantiveram em
círculos confidenciais. O conde presidente deste conselho ultramarino de 1652,
conformando-se com o que fosse o voto dos conselheiros, acrescentou que “quando se
não resolua que daqui se vá fazer o dito descobrimento, ou que de Angolla se mande
apurar com breuidade o que isto hé, se ordene ao V. Rey da India envie a este
descobrimento, com promessa de mercês, alguma pessoa pratica, e com ella os dous
Cafres que Domingos de Magalhães leuou á India, da mesma sua terra, bem vestidos, e
contentes porque podem ser de muito effeito”.1049
Na referida reunião de cartógrafos, Gaspar Pereira dos Reis recolheu os dados
registados por Domingos de Magalhães, tendo estes sido incluídos no Atlas de dez cartas
manuscritas, elaboradas por André Pereira dos Reis, filho do piloto Gaspar, em 1654. A
1047
“Consulta do Conselho Ultramarino” (5-9-1648), in Monumenta Missionária Africana. África
Ocidental, colig. e anotada por BRÁSIO, António, Vol X (1647-1650), Lisboa, Agência Geral do Ultramar,
1965, pp. 223-226.
1048
Portugaliae Monumenta Cartographica, Armando Zuzarte CORTESÃO e Avelino Teixeira da MOTA
(ed. de), Vol. V, (…), p. 27.
1049
“Consulta do Conselho Ultramarino” (21-2-1652), in Monumenta Missionária Africana. África
Ocidental, colig. e anotada por BRÁSIO, António, Vol XI (1651-1655), Lisboa, Agência Geral do
Ultramar, 1971, p. 146.
269
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1050
André Pereira dos REIS, “Demonstração do Cabo de Boa Esperança” (1654), in Portugaliae
Monumenta Cartographica, Armando Zuzarte CORTESÃO e Avelino Teixeira da MOTA (ed. de), Vol.
V, (…), Estampa 541 A.
1051
“Comunicação entre as duas costas africanas” (1663), in Monumenta Missionária Africana. África
Ocidental, colig. e anotada por BRÁSIO, António, Vol. XII (1656-1665), Lisboa, Agência Geral do
Ultramar, 1981, p. 474.
1052
Maria Emília Madeira SANTOS, Viagens de Exploração Terrestre dos Portugueses em África, 2ª ed.,
Lisboa, Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, 1988, p. 125.
270
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1053
Antes de servir na corte do rei Luís XIV, Allain Manesson Mallet esteve ao serviço do rei de Portugal,
Afonso VI, desde 1663, até à assinatura do Tratado de Lisboa, em 1668, trabalhando como engenheiro de
fortificações e sistemas defensivos. Na sua estadia em Portugal recolheu textos e informações que lhe
permitiram compôr uma imagem geográfica, ainda que genérica, da Cafraria.
1054
Maria Fernanda ALEGRIA, Suzanne DAVEAU, João Carlos GARCIA, and Francesc RELAÑO,
“Portuguese Cartography in the Renaissance”, in The History of Cartography, David WOODWARD (ed.),
Volume 3, Parte I - Cartography in the European Renaissance, Chicago, University of Chicago Press, 2007,
p. 1021. https://press.uchicago.edu/books/HOC/HOC_V3_Pt1/HOC_VOLUME3_Part1_chapter38.pdf
(consultado em 20-08-2021)
1055
IDEM, ibidem, p. 1059.
1056
Vincenzo Maria CORONELLI, Globo Terrestre, Veneza, 1688, [ Ø 108 𝑐𝑚], 𝑖𝑛 Instituto e Museo di
Storia della Scienza - Museo Galileo, Firenze, Inv. 2363.
1057
Allain Manesson MALLET, Description de l'univers: contenant les différents systêmes du monde, les
cartes générales et particulières de la géographie ancienne et moderne, les plans et les profils des
principales villes et des autres lieux plus considérables de la terre, avec les portraits des souverains qui y
commandent, leurs blasons, titres et livrées, et les moeurs, religions, gouvernemens et divers habillemens
de chaque nation, Tomo 3 (Afrique ancienne et moderne), Paris, Chez Denys Thierry,1683, p. 115.
https://archive.org/details/descriptiondelun00mane_2/page/114/mode/2up (consultado em 2/02/2017)
271
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
272
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
tradição que realça a extremidade sul do continente com a legenda “Bonaespei” e designa
os traços topográficos da costa com as informações e conhecenças de carácter roteirístico.
Destacam-se como excepção as seguintes cartas: o “Atlas de vinte e uma folhas”, de
Fernão Vaz Dourado (1575), que representa a carta da África a sul do Equador e cuja
moldura ostenta a legenda – “NESTA LAMINA . ESTA LAMCADO . TODA . A CAFRARIA
. DE COMGO . ATE . O CABO . DE . BOA . ESPERÃCA . E MOSAMBIQUE .”1058; o “Atlas
de Africa com vinte e nove cartas”, de João Teixeira Albernaz II (1665), que faz figurar
a legenda “Terra de Cafres” para identificar os territórios da África ocidental, entre o
Cabo Negro e o Cabo da Boa Esperança, prolongando para sul a sequência de legendas
“Reino de Congo” e “Reino de Angolla”1059. Preenchia-se, deste modo, um espaço vazio
do mapa que, durante a primeira metade do século XVII despertou o interesse da coroa
portuguesa na organização de expedições exploratórias do litoral da Cafraria, entre o
cabo Negro e o cabo da Boa Esperança.
O período posterior ao estabelecimento dos holandeses no Cabo, com a construção
de uma fortaleza para apoio à Companhia das Índias Orientais, tornava mais frequentes
as explorações nestes territórios meridionais. Em breve surgiriam as primeiras descrições
exaustivas da Cafraria e dos seus habitantes. Olfert Dapper (1686) tentava reunir todo o
conhecimento sobre esta parte do mundo numa obra que seria sucessivamente traduzida
em inglês, alemão e françês.1060 Os séculos XVII e XVIII assistiram a uma verdadeira
proliferação cartográfica onde as legendas “Cafraria”, “Costa de Caffres”, “País dos
Caffres” traduziam, por entre a sinaléctica gráfica, um conhecimento prático acumulado
pelas expedições de “descobrimento” e “reconhecimento” levadas a cabo por pilotos
portugueses. De acordo com esse conhecimento prático, os territórios inicialmente
marcados com estas legendas localizam-se a leste do cabo da Boa Esperança, e só numa
fase posterior passam a designar os territórios mais vastos, localizados entre o cabo Negro
e o cabo das Correntes. Alguns dos autores e cartógrafos estrangeiros que divulgaram
representações gráficas da Cafraria: Blaeu – 1635; Meran – 1649; Sanson – 1655 e 1690;
1058
Fernão Vaz DOURADO, “Atlas de vinte e uma folhas”, 1575, fl. 10, in Portugaliae Monumenta
Cartographica, Armando Zuzarte CORTESÃO e Avelino Teixeira da MOTA (ed. de), Vol. III, (…),
Estampa 303.
1059
João Teixeira ALBERNAZ II, “Atlas de África com vinte e nove cartas”, ibidem, Vol. V, 1665, fl. 15
v.-16r., Estampa 554 C.
1060
Olfert DAPPER, “La Description de l’Afrique”, (1686), in Dominique LANNI, Fureur et Barbarie.
Récits de Voyages chez les Cafres et les Hottentots – 1665-1721, Paris, Cosmopole, 2001, pp. 36-62.
273
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Du Vaal - 1664 e 1682; Ogilby – 1670; De Wit – 1680; Mallet – 1683-88; Coronelli –
1689 e 1691; Allard – 1690; Mortier – 1700; Van Keulen – 1716.
Se o uso do vocábulo cafre está atestado para os primeiros anos do século XVI,
começando por ter uma circulação regional, a sua fixação em suporte impresso garantiria
a generalização de um sentido definidor dos habitantes da África oriental. Na segunda
metade do século XVI este sentido já estava suficientemente generalizado. A prová-lo
está a sua utilização pelo autor caboverdiano, André Álvares de Almada (1594), que ao
explicar as dinâmicas comerciais nos Rios de Guiné do Cabo Verde, com destaque para
o comércio do ouro em troca de manilhas, afirmava (equivocamente) que a origem desse
ouro, trazido pelos comerciantes mandingas do Rio Gâmbia e todo o ouro que chegava a
Tombuctu, estava nas “serras de Sofala” e era mediado pelos “Cafres”:
“(…) vem este ouro e o que vai a Tumbocutum, das serras de Sofala (14). Porque falando
com Anhadelen, capitão daquela cáfila, perguntando-lhe miudamente donde ia[m] e
donde levavam as manilhas, me disse que aos Cafres, nomeando-os por este próprio
nome.”1061
1061
André Álvares de ALMADA, Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo Verde dês do Rio de Sanagá
até os baixos de Santa Ana de todas as nações de negros que há na dita costa e de seus costumes, armas,
trajos, juramentos, guerras. Feito pelo capitão André Álvares d' Almada natural da Ilha de Santiago de
Cabo Verde prático e versado nas ditas partes. Ano 1594., leitura, introdução e notas de António BRÁSIO,
Lisboa, Editorial L. I. A. M, 1964, p. 49.
1062
IDEM, ibidem, p. 50.
274
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Nos diversos discursos relativos à África oriental temos verificado que, sob o
signo identificativo cafre, foi-se construindo uma categoria que não se limitava a
designar, mas que permitia classificar os habitantes do sudeste africano quanto à sua
natureza religiosa. Neste sentido, cafres eram descritos como gentios ou pagãos, a que se
acrescentavam atributos relativos a modos de vida, que confluiam para a barbárie e a
selvajaria.
No corpus concreto dos relatos que integram a literatura de naufrágios, os
discursos que materializam as concepções sobre os povos da África do sudeste
construiram-se com recurso à categoria de “bárbaro” que, na sua antiguidade de sentidos,
designava “os outros”, os habitantes da extremidade do mundo, que não partilhavam a
mesma matriz cultural e eram considerados rudes. Dentro da barbárie, emergiu com
frequência a categoria de “selvagem” que, associando terras e gentes a adjectivos como
brutos, bravios, ferozes, entra no campo semântico e simbólico da animalidade.
A descrição do corpo, das crenças e dos modos de viver das comunidades com
quem os náufragos portugueses interagiram, nos séculos XVI e XVII, ocupa extensões
consideráveis dos relatos de naufrágios, desde os registos referentes à perdição do galeão
S. João (1552), até aos relatos versando os naufrágios das naus Sacramento e Nossa
Senhora da Atalaia (1647). Estes agrupamentos temáticos das informações contidas nos
textos dos relatos funcionam como descritores ou, na definição de José Horta, como
“níveis de representação”, que nos permitem analisar as concepções sobre os africanos,
na perspectiva do observador português.1063
O discurso do relato anónimo do naufrágio do galeão S. João, tal como é
conhecido, tanto na versão de folheto de cordel, como na versão Britiana, foi concebido
e estruturado sob a forma de um lamento contínuo que deveria permitir a mobilização dos
mecanismos psíquicos para o trabalho do luto colectivo1064, mas também tinha um intento
pedagógico e moralizador, conducente a reflexões sobre as acções humanas. Dado que a
reflexão era sugerida pelo acontecimento trágico do naufrágio, muitas vezes motivado
pela ambição materialista que feria de morte os alicerces do império marítimo português,
1063
A propósito do conceito de “níveis de representação”, veja-se: José da Silva HORTA, “A representação
do Africano na Literatura de Viagens, do Senegal à Serra Leoa”, (…), p. 211; A “Guiné do Cabo Verde”:
Produção Textual e Representações (1578-1684), (…), p. 278.
1064
Alfredo MARGARIDO, “O trabalho do luto nos relatos dos naufrágios”, (…), pp. 76 -77.
275
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
estes relatos constituem-se também como a antítese da epopeia, ou seja, como fontes
historiográficas de natureza disruptiva, nas quais o elemento humano “cafre” desempenha
um papel determinante1065.
Os códigos culturais do viajante e observador português, bem como do escritor,
compilador ou editor, que não viajou nem observou as realidades narradas nos textos,
funcionaram como referenciais em rede, de um sistema de pensamento assumido como
hegemónico. Ao plasmarem-se nos textos de leitura corrente, tais códigos culturais
contribuiram para moldar o conhecimento europeu sobre África do sudeste e seus
habitantes com base num inventário de diferenças que se transmutam em oposições.
Sendo os relatos de naufrágios construções retóricas que integram na sua
textualidade concepções emanadas do sistema de pensamento que se veio consolidando
na cultura europeia desde a Antiguidade, registam as “leituras” possíveis do encontro com
a diversidade antropológica. Assim, num primeiro nível de abordagem, os relatos de
naufrágios revelam-nos a percepção de um “outro” genérico e indiferenciado. Num
segundo nível de leitura, é-nos possível apreender o outro relacional, com o qual foram
estabelecidas ligações, diálogos, comunicação, permitindo em certos casos a revelação de
quadros mentais abertos à heterogeneidade humana.
As circunstâncias dramáticas que deram origem ao texto impresso sobre o
naufrágio do galeão S. João legitimaram, na época, a consolidação de estereótipos
desfavoráveis relativos aos africanos da costa leste. A afirmação de que o galeão varou
“em terra de cafres”, um remédio “tão perigoso” para aquelas quinhentas vidas, reflecte
uma percepção concreta dos africanos no processo de construção de uma categoria de
representação, que é tanto beneficiária de uma tradição cultural de longa duração, quanto
geradora de imagens mentais secundárias. Estas imagens secundárias construíam-se a
partir das leituras que, através dos sentidos atrbuídos pelo público, permitiam recriar
cenários de desintegração de referentes, que conectavam num imaginário os destroços da
nau perdida, os cafres e o perigo.
De seguida, analisaremos os estereótipos que integram a categoria de cafre,
enquanto imagem classificatória, pela qual foi apreendida esta humanidade africana nos
relatos de naufrágios.
1065
Josiah BLACKMORE, Manifest Perdition. Shipwreck Narrative and the Disruption of Empire, (…), p.
41.
276
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
“(…) e estiveram ali doze dias, e em todos eles lhes não veio falar nenhum negro da terra;
sòmente aos três primeiros apareceram nove cafres em um outeiro, e ali estariam duas
horas, sem terem nenhuma fala connosco; (…) E dali a dois dias lhe pareceu bem
mandarem hum homem e um cafre do mesmo galeão, para ver se achavam alguns negros
que com eles quisessem falar. (…)
Dali a três dias, estando naquele lugar onde escaparam do galeão, lhes apareceram em um
outeiro sete ou oito cafres com uma vaca presa, e por acenos os fizeram os cristãos descer
abaixo, e o capitão com quatro homens foi falar com eles, e, despois de os ter seguros,
lhes disseram os negros por acenos que queriam ferro”. 1066
Neste excerto, como em muitas passagens dos textos dos diversos relatos, são
comuns as referência aos “cafres da terra” ou “negros da terra”, para se distinguirem dos
“cafres nossos”, neste caso “um cafre do mesmo galeão”, como frequentemente eram
nomeados os escravos africanos a bordo dos navios perdidos.
No manuscrito de Évora do naufrágio do galeão S. João, destaca-se uma referência
aos cafres, que seriam escravos, carregando às costas, num andor, Dona Leonor de Sá.1067
Na peregrinação terrestre rumo a um porto conhecido, estes cafres desempenharam a
função de carregadores de pessoas e mercadorias ou ainda de intérpretes ou mediadores
na comunicação verbal e, nesse sentido, surgem identificados como “cafres nossos”,
1066
“Relação da mui notável perda do Galeão Grande S. João em que se contam os grandes trabalhos e
lastimosas cousas que aconteceram ao Capitão Manuel de Sousa Sepúlveda e o lamentável fim que ele e
sua mulher e filhos, e toda a mais gente, houveram na Terra do Natal, onde se perderam a 24 de Junho de
1552”, in H.T.M., Vol. I, (…), p. 24; sublinhados nossos.
1067
“Relação da Perdição do Galeão São João vindo da India, na Costa da Cafraria. De que hera Cappitam
Manuel de Sousa de Sepúlveda”, B.P.E., Cod. CXV/2-8, fl. 50 vº.
277
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
distinguindo-se dos “cafres da terra”. Esta designação de cafres, aplicada aos escravos,
funcionava simultaneamente como um rótulo genérico em sinonímia com “escravo”,
“cativo” ou “negro”, que especificava o espaço africano de origem dos mesmos,
remetendo para a costa sudeste africana.
Os “cafres da terra” eram as populações locais, que ora agasalhavam os náufragos,
ora saíam ao caminho para trocas e resgates ou, ainda, armados salteavam e afugentavam
os estranhos caminhantes que percorriam as suas terras.
Em termos da concepção antropológica vigente, é significativa a forma como os
textos exibem a contagem dos sobreviventes dos diversos naufrágios, em distintas
parcelas de uma soma: a parcela dos “escravos” e a dos “portugueses”. Do galeão S. João,
o texto impresso menciona terem morrido no embate e fractura da nau “mais de quarenta
portugueses e setenta escravos”1068, tendo chegado ao final da peregrinação por terra “oito
portugueses e catorze escravos, e três escravas”.1069 A mesma lógica descritiva, que
separa “portugueses” de “escravos” na contagem dos sobreviventes, ocorre nos relatos
dos naufrágios das naus S. Bento (1554) e Santo Alberto (1593). 1070
Nos casos das naus Santiago, naufragada no Baixo da Judia (1585), e S. Tomé
(1589), afundada próximo dos medãos do ouro, os sobreviventes que alcançaram terra
foram os que tiveram o privilégio de embarcar em batéis salva-vidas ou jangadas, o que
implicava desde logo uma dura selecção de acordo com a própria hierarquia social da
nau. Ainda assim, no relato do naufrágio da nau S. Tomé, são mencionadas as pessoas
que, tendo entrado no batel acabariam por ser alijadas ao mar, entre as quais se contavam
“alguns escravos”1071.
José Cabreira, ao narrar as desaventuras da nau Belém (1635) e a quebra do navio
pela tempestade e furacão, coloca em evidência o compromisso de “passageyros” e
1068
“Relação da mui notável perda do Galeão Grande S. João em que se contam os grandes trabalhos e
lastimosas cousas que aconteceram ao Capitão Manuel de Sousa Sepúlveda e o lamentável fim que ele e
sua mulher e filhos, e toda a mais gente, houveram na Terra do Natal, onde se perderam a 24 de Junho de
1552”, in H.T.M., Vol. I, (…).
1069
IDEM, ibidem, p. 36.
1070
IDEM, ibidem, p. 60. Veja-se, para a nau Santo Alberto: João Baptista LAVANHA, “Naufrágio da Nau
Santo Alberto no Penedo das Fontes, no ano de 1593 e Itinerário da gente que dele se salvou até chegarem
a Moçambique, escrito por João Baptista Lavanha Cosmógrafo-mor de Sua Majestade, no ano de 1597”, in
H.T.M., Vol. III, (…), p. 26.
1071
Diogo do COUTO, “Relação do naufrágio da Nau São Tomé na Terra dos Fumos, no ano de 1589 e
dos grandes trabalhos que passou D. Paulo de Lima nas Terras da Cafraria, até a sua morte”, in H.T.M.,
Vol. II, (…), p. 236.
278
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1072
Joseph de CABREYRA, Naufragio da Nao N. Senhora de Belem Feyto na terra do Natal no cabo de
Boa Esperança, & varios sucessos que teve o Capitão Joseph de Cabreyra, que nella passou à India no
anno de 1633. Fazendo o officio de Almirante daquella frota atè chegar a este Reyno, (…), ps. 13 e17.
1073
Bento Teyxeyra FEYO, op. cit., pp 16-17. (sublinhado nosso)
1074
Kate LOWE, “Introduction: The black African presence in Renaissance Europe”, in Thomas Foster
EARLE e Kate J. P. LOWE, Black Africans in Renaissance Europe, (…), p. 8.
279
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
interacção com os seus povos parecia revelar aspectos de similitude entre as gentes locais
e os escravos levados a bordo. Não foram raras as vezes em que os escravos
desempenharam o papel de intérpretes nos processos de comunicação com as populações
autóctones, das quais dependia o salvamento colectivo. Nestes casos, apesar do estatuto
“inferior” do escravo africano, este passava a ser reconhecido pela sua função utilitária,
como mediador de culturas que, então, o observador europeu supunha estruturalmente
indiferenciadas.
Aconteceu, também, que o estatuto do escravo africano sofresse uma mutação,
sendo dissipada a sua condição de “cativo”, consequência das circunstâncias extremas de
peregrinação pela Cafraria. Francisco Vaz Dalmada refere que, em 1622, mandou “hum
negro nosso apalpando com um pào na mão por onde era a passagem, & para o fazer com
melhor vontade, lhe dey huma cadeya de ouro, porque elles não erão alli nossos cativos,
& porque não fugissem para os da terra, era necessario trazermolos contentes”.1075
Se, por um lado, esta passagem nos testemunha a realidade constituída pela fuga
de muitos escravos, que buscaram abrigo nas comunidades locais, revela-nos também que
o naufrágio, como acontecimento fracturante, servia de pretexto para que se manifestasse,
nos planos da vida e da sua projecção retórica, a verdadeira condição humana. Neste
sentido, chegou mesmo a ocorrer a supressão de dicotomias classificatórias. Exemplo
disso é o de um escravo a bordo da nau Santiago (1585), perdida num recife de coral, no
canal de Moçambique, que, na eminência da morte, festejava a sua alforria face aos
grilhões que a vida lhe havia reservado:
“À vista destas calamidades, um moço, cativo de Manuel Rodrigues, passageiro, começou
a fazer muita festa, alegrando-se e comendo dos doces, que não faltavão; saltou com
muito contentamento na água dentro do tanque, que a nau em si recolheu, onde, nadando,
dava muitos mergulhos, zombando dos mais, e dizendo que já era forro, que não devia
nada a ninguém, tão seguro e sem medo como se nadara no rio de Lisboa. Donde se vê
que os mesmos efeitos obra às vezes nos bárbaros a bruteza que nos bem instruídos a
lição e a filosofia”.1076
1075
Francisco Vaz DALMADA, op. cit., (…), p. 78; sublinhado nosso.
1076
Manuel Godinho CARDOSO, “Naufrágio da Nau Santiago no ano de 1585 e Itinerário da gente que
dele se salvou”, in H.T.M., Vol. II, (…), p. 176.
280
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1077
Vide Anexos, Quadro 4.
281
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1078
Jerónimo LOBO, op. cit., p. 561.
1079
Manuel de Mesquita PERESTRELO, “Relação Sumaria da Viagem que fez Fernão de Álvares Cabral
desde que partiu deste Reino por Capitão-mor da armada que foi no ano de 1553 às partes da Índia até que
se perdeu no Cabo de Boa Esperança no ano de 1554”, in H.T.M., Vol. I, (…), p. 85.
1080
Francisco Vaz DALMADA, op. cit., pp. 75-77 e 81-82.
1081
“Relação da mui notável perda do Galeão Grande S. João em que se contam os grandes trabalhos e
lastimosas cousas que aconteceram ao Capitão Manuel de Sousa Sepúlveda e o lamentável fim que ele e
sua mulher e filhos, e toda a mais gente, houveram na Terra do Natal, onde se perderam a 24 de Junho de
1552”, in H.T.M., Vol. I, p. 24.
282
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
As diversas fontes sobre este naufrágio atestam que, ainda que os portugueses
procurassem estratégias para comunicar com as populações da designada “Terra dos
Fumos”, utilizando para esse efeito um intérprete dos rios de Cuama, a comunicação
verbal não se concretizou devido às diferenças estruturais entre os grupos linguísticos
Caranga e Tonga. O fundamental da comunicação terá sido não verbal, deixando clara a
atitude de espanto das gentes locais perante a presença, em suas terras, de homens
brancos. A fuga inicial e o posterior acolhimento que os habitantes locais prestaram aos
náufragos, muito provavelmente teria resultado da leitura cosmológica local, a partir da
qual estes povos atribuiram um significado místico ao homem branco, patente na
expressão de que seriam “filhos do sol”. A expressão “filhos do Sol”, com que algumas
populações teriam interpretado os portugueses devido à sua cor branca, foi registada nos
relatos do naufrágio da nau Santo Alberto, tanto o manuscrito anónimo, como a versão de
1082
Manuel de Mesquita PERESTRELO, “Relação Sumaria da Viagem que fez Fernão de Álvares Cabral
desde que partiu deste Reino por Capitão-mor da armada que foi no ano de 1553 às partes da Índia até que
se perdeu no Cabo de Boa Esperança no ano de 1554”, in H.T.M., Vol. I, (…), p. 64.
1083
Gaspar Ferreira REIMÃO, op. cit., p. 578.
283
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
João Baptista Lavanha.1084 A mesma expressão aparece de novo no texto de Frei João dos
Santos, referindo-se à percepção que as populações da “Terra dos Fumos” tiveram dos
náufragos portugueses da nau S. Tomé.1085 Tal percepção do homem branco, no âmbito
de um horizonte religioso, se em determinados casos gerou medo, provocando a fuga de
gentes locais, também suscitou o “agasalho”, a proteção e a ajuda a grupos de náufragos
que passavam próximo das aldeias.
Terá sido nos territórios mais meridionais do continente africano, onde os
náufragos encontraram populações Khoi, que a reacção perante as línguas locais se
mostrou mais negativa. A comunicação verbal nunca se efectivou, nem com as tentativas
de mediação dos escravos “línguas”, facto na maioria das vezes imputável aos
autócnones, e ao seu grau de “barbárie”, que não permitia a compreensão com os outros
povos. É como se subtilmente fosse mobilizado o mito da Torre de Babel, da punição
divina e da dispersão das línguas pelas diversas regiões do mundo, cuja memória
simbólica era encontrada nesta extremidade meridional, onde os falares exibiam ainda as
marcas desses tempos primordiais da dispersão, sob a forma de “cliques” e outros sons
não encontrados, nem nas línguas europeias, nem noutras línguas africanas já contactadas
pelos portugueses. A constatação da diversidade do mundo aflora nas palavras de Vaz
Dalmada, para quem os habitantes dos territórios a sul do rio Great Fish “se não pode
entender nunca a esta gente palavra algua, porque o seu fallar não he como de gente, (…)
de modo que se pòde dizer por estes: que nem a terra he toda huma, nem a gente quasi
quasi”.1086
Frei Francisco dos Santos, cujos registos terão sido a fonte de Manuel de Faria e
Sousa, confirma a impossibilidade do entendimento linguístico com os habitantes do local
do naufrágio da nau S. Gonçalo (1630): “hablã cõ ciertos estallidos de legua y boca”.1087
Apesar dos constrangimentos, impeditivos de uma comunicação verbal, os sobreviventes
do naufrágio da nau S. Gonçalo conviveram com as populações locais da “Baía Formosa”
(Plettenberg bay), por cerca de oito meses, o tempo necessário à construção de duas
embarcações, que os tornariam ao mar. Os náufragos instalaram nesta inesperada terra as
1084
Veja-se “Perdição da nau Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, costumes dos que a abitão ate o Cabo
das Correntes”, in Glória de Santana PAULA, op. cit., p. 131; João Baptista LAVANHA, op. cit., p. 30.
1085
Frei João dos SANTOS, op cit., p. 543.
1086
Francisco Vaz DALMADA, op. cit., p. 13.
1087
Manuel de Faria y SOUSA, op. cit., Tomo III, p. 460.
284
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1088
IDEM, ibidem.
1089
Joseph de CABREYRA, op cit., p. 44.
285
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
ou Frei Francisco dos Santos, seriam considerados seres diminuídos pela ausência das
faculdades eternas da alma, como a discursiva e intelectual. 1090 Sendo a alma separável
em partes ou faculdades, tais povos possuiriam as faculdades da alma comuns a todos os
animais (nutritiva, perceptiva e do movimento), mas mostravam ser desprovidos das
faculdades superiores do raciocínio e pensamento discursivo.1091 Deste modo, as
manifestações da diferença convertiam-se em argumentos de um discurso que postulava
a existência, nestes territórios, de uma categoria humana inferior, primitiva e selvagem.
Quando os náufragos encontraram populações que os receberam pacificamente e
os ajudaram com alimentos e guias para mostrar os caminhos, esses foram considerados
“cafres bem inclinados” ou “domésticos”.
A marginalização moral e intelectual é evidente nos traços de carácter
apresentados: interesseiros, mesquinhos e sem razão. Acresciam, ainda, as características
físicas, tais como o corpo “negro” e o “cabelo revolto” que, no âmbito de uma longa
tradição, eram vistos como traços de uma fealdade congénita, a qual podia agravar-se
quando a cabeça era adornada de “cornos”, elementos simbólicos que evocavam no
observador, e ainda mais no leitor europeu, a imagem popular do próprio diabo.
A forma como se alimentavam as populações constitui um outro indicador que
permitia posicionar estes povos em diversos graus de inferioridade humana. As referidas
descrições das práticas alimentares dos pastores Khoi terão, certamente, contribuído para
a sua classificação como os mais “bárbaros” e “selvagens” dos povos.1092 O Padre
Jerónimo Lobo refere que as gentes “que habitão daqui para o Cabo de Boa Esperança e
toda a mais costa até Angola he a peor gente que povoa esta região”.1093
A referência a práticas alimentares, consideradas selvagens, está ausente dos
relatos versando populações Khoi, em processo de fusão com os migrantes Nguni. Sobre
as comunidades contactadas não encontramos referências à ingestão de alimentos crus,
ainda assim, o observador regista , a sul do rio Kei, comunidades de pastores que tinham
como base da sua dieta bovinos e carneiros, sendo que a ausência de agricultura e de
1090
ARISTÓTELES, Sobre a Alma, Ana Maria LÓIO (Trad.), António Pedro MESQUITA (Coord.),
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2010, 413b; 414a, 25; 414b.
1091
ARISTÓTELES, ibidem, 415a.
1092
Manuel de Faria y SOUSA, op. cit., Tomo III, p. 460.
1093
Jerónimo LOBO, op. cit., p. 569.
286
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1094
“Perdição da nau Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, costumes dos que a abitão ate o Cabo das
Correntes”, in Glória de Santana PAULA, op. cit., (…), p. 128.
1095
IDEM, ibidem, p. 148.
1096
Relaçam do Naufragio da Náo São Thomé de que era Cappitão Esteuão da Veiga, a qual se perdeo na
Terra dos Fumos no anno de 1589, e dos grandes trabalhos, que passou Dom Paulo de Lima e mais
Companheiros nas Terras da Cafraria, até sua morte, B.P.E., CXVI/1-22, fls. 33 vº-34 e 43. “Perdição da
nau Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, costumes dos que a abitão ate o Cabo das Correntes”, in Glória
de Santana PAULA, op. cit., p. 159.
287
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1097
Francisco Vaz DALMADA, op. cit., p. 91.
1098
Joseph de CABREYRA, op. cit., p. 28.
1099
Brigitte BAGNOL, “Lovolo e espíritos no Sul de Moçambique”, in Análise Social, Vol. XLIII (2.º),
2008, p. 253. O artigo de Bagnol, sobre a persistência das práticas contemporâneas Lovolo no Sul de
Moçambique, mostra a dimensão espiritual desta instituição, na qual se acredita que participam os
antepassados das linhagens. Sendo uma prática que se foi modificando e adaptando aos contextos históricos,
socioeconómicos e culturais, continua hoje a simbolizar a inserção do indivíduo numa rede de relações de
parentesco e o selar de alianças entre os vivos e os antepassados.
288
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Cafres e gentios
A contagem dos sobreviventes de um navio naufragado é feita, nos relatos, de
acordo com determinadas categorias de humanos. Em primeiro lugar era feita a distinção
entre os “escravos” e os “portugueses” e, dentro dos “portugueses”, eram destacadas
algumas figuras da aristocracia e religiosos, identificados com valores de heroísmo nobre
e cristão. Só depois eram enunciadas as outras categorias sociais, como os oficiais das
naus, os marinheiros/”homens do mar”, grumetes e soldados, sendo frequente a referência
indistinta a “homens”.
“acharam-se menos cento e cinquenta pessoas; convém a saber: passante de cem escravos,
e quarenta e quatro portugueses, entre os quais foi D. Álvaro de Noronha”.1100
“(…) se mandou fazer resenha da gente que auia, e das armas, açhou-se sento e uinte e
sinquo portuguezes e 93 – escrapvos e – 8 escrapvas e duas molheres fidalguas”.1101
1100
Manuel de Mesquita PERESTRELO, “Relação Sumária da viagem que fez Fernão D’Álvares Cabral
desde que partiu deste Reino por Capitão-mor da armada que foi no anno de 1553 às partes da Índia até que
se perdeu no Cabo de Boa Esperança no ano de 1554”, in H.T.M., Vol. I, (…) p. 60. (sublinhado nosso)
1101
“Perdição da nau Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, costumes dos que a abitão ate o Cabo das
Correntes”, in Glória de Santana PAULA, op. cit., (…), p. 132. (sublinhado nosso)
1102
Diogo do COUTO, “Relação do Naufrágio da Nau S. Tomé na Terra dos Fumos, no ano de 1589 e dos
grandes trabalhos que passou D. Paulo de Lima nas Terras da Cafraria, até sua morte”, in H.T.M., Vol. II,
(…), pp. 235-236. (sublinhado nosso)
289
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1103
José da Silva HORTA, “A categoria do gentio em Diogo de Sá: funções e níveis de significação”, (…),
p. 145.
1104
IDEM, ibidem, p. 149.
1105
“Perdição da nau Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, costumes dos que a abitão ate o Cabo das
Correntes”, in Glória de Santana PAULA, op. cit., p. 139.
290
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Ainda que este trecho possa decorrer de uma tentativa de “tradução” através da
acção de intérpretes que apenas alcançavam um entendimento parcial do discurso do
“outro”, a verdade é que a mensagem parece ser construída com base em concepções
prévias acerca da religiosidade das populações a que se refere, definindo atributos de
ignorância em simultâneo com a ausência de maldade e malícia, que sublinhavam uma
condição espiritual inferior. Esta era a condição dos povos da Cafraria, uma espécie de
“humanidade esquecida” que nenhuma Lei alcançara e cujo pecado resultava da
ignorância.1106 O total desconhecimento dos mistérios da fé cristã, se marcava uma
condição espiritual inferior, também permitia a construção de um pressuposto de
inocência, pois esta humanidade esquecida não tivera oportunidade de expressar
historicamente a sua livre adesão à fé.1107 Algo semelhante fora constatado na Carta de
Pero Vaz de Caminha (1500), aquando do primeiro encontro com as populações da terra
nomeada de Vera Cruz.1108
No que se refere à Cafraria, foi comum os autores aludirem à perda de muitas
almas naquelas terras, por falta de pregação evangélica, reclamando a responsabilidade
da Igreja na remissão dos pecados das gentes de tão extensa parte do mundo.
Quatro décadas depois da perdição da nau Santo Alberto, o missionário jesuíta
Jerónimo Lobo, náufrago da nau Nossa Senhora de Belém (1635), observou e inquiriu a
natureza espiritual das gentes da Cafraria, afirmando que a costa era povoada
“de barbaros gentios, porque ategora não inficionou a esta gente a seita mahometana que
tanto se dilatou por toda a Africa. O gentio he geralmente de bom natural. Não adorão
idolo algum nem tem templo ou casa de oração, conhecem porem aver huma cousa laa
no ceo que governa este mundo e de quem esperão os bens delle, que os da outra vida
nem curão nem sabem se os há”.1109
1106
De acordo com William Randles, estavam afectados por uma infidelidade negativa todos aqueles que,
por desconhecimento, não praticassem a doutrina cristã. Diferente natureza tinham os que recusavam
deliberadamente o Evangelho, pois esses estavam afectados por uma infidelidade positiva. Veja-se William
G. L. RANDLES, L’Image du Sud-est Africain dans la Littérature Européenne au XVI Siècle, (…), p. 116.
1107
Juvenal Saraiva FILHO, “Nota para estudos teórico-históricos do fenômeno da heresia”, in Antíteses,
Vol 11, Nº 21, Jan./Jun. 2018, p. 462. https://doi.org/10.5433/1984-3356.2018v11n21p461 (Consultado em
20/08/2021)
1108
Pero Vaz de CAMINHA, Carta a el-rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil, 1 de Maio de 1500.
https://purl.pt/162/1/brasil/obras/carta_pvcaminha/index.html (Consultado em 21/08/2021)
1109
Jerónimo LOBO, op. cit., p. 569. (sublinhado nosso)
291
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1110
IDEM, ibidem, p. 570.
1111
José da Silva HORTA, “A categoria de Gentio em Diogo de Sá: funções e níveis de significação”, op.
cit., pp. 135-136.
1112
Luís Filipe BARRETO, Os Descobrimentos e a Ordem do Saber. Uma análise sociocultural, (…), p.
38.
1113
Joan-Pau RUBIÉS, “Travel Writing and Ethnography”, in Peter HULME e Tim YOUNGS (eds.), The
Cambridge Companion to Travel Writing, Cambridge, Cambridge University Press, 2002, pp. 242-260.
292
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1114
Luís Filipe BARRETO, Os Descobrimentos e a Ordem do Saber. Uma análise sociocultural, (…), p.
37.
1115
“Relação da mui notável perda do Galeão Grande S. João em que se contam os grandes trabalhos e
lastimosas cousas que aconteceram ao Capitão Manuel de Sousa Sepúlveda e o lamentável fim que ele e
sua mulher e filhos, e toda a mais gente, houveram na Terra do Natal, onde se perderam a 24 de Junho de
1552”, in H.T.M., Vol. I, (…), p. 28
1116
IDEM, ibidem, p. 30.
293
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
designadas de “reinos”, entre a “Terra dos Fumos” e a “Terra do Natal”, a sul da qual
predominava uma organização sócio-política diversa, as chefaturas.
As populações Tsonga são descritas como sendo “todos comummente, assim
homens como mulheres, tamanhos de corpos que parecem gigantes”.1117 Além desta
característica física distinta, outras especificidades destes povos foram observadas. A
ocidente do rio do Espírito Santo, a dois dias de caminho pelo sertão, em terras de um rei
chamado Angomanes, os códigos de comunicação envolvidos no comércio chamaram a
atenção a uma testemunha presencial, um mercador português que transmitiu a
informação a Diogo do Couto:
“(…) e um português nos disse que, indo por este rio acima ao resgate em uma
embarcação, fora dar com as gentes destas povoações que andavam pescando em barcos
pequenos, os quais viu que quando queriam alguma cousa da terra chegavam com seus
barcos à parte que os podiam ouvir, e davam certos silvos e apitos, aos quais lhes acudiam
os da aldeia com tudo o que queriam, porque por aqueles assobios se entendem, mas não
deixam de ter língua própria, e muito diferente de todas as mais daqueles reinos”. 1118
1117
Diogo do COUTO, “Relação do naufrágio da Nau São Tomé na Terra dos Fumos, no ano de 1589 e
dos grandes trabalhos que passou D. Paulo de Lima nas Terras da Cafraria, até a sua morte”, in H.T.M, Vol.
II, (…), p. 242.
1118
IDEM, ibidem.
1119
IDEM, ibidem.
1120
Relaçam do Naufragio da Náo São Thomé de que era Cappitão Esteuão da Veiga, a qual se perdeo na
Terra dos Fumos no anno de 1589, e dos grandes trabalhos, que passou Dom Paulo de Lima e mais
Companheiros nas Terras da Cafraria, até sua morte, B.P.E., CXVI/1-22, fls. 32 e 33.
294
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Lagoa de Santa Luzia, território nomeado “rio da Abundância”, que deixou um rasto
positivo na memória dos náufragos, convertendo-se em topónimo, registado em vários
relatos. Da visão positiva destas comunidades, o autor destacou “a familiaridade, e
singeleza da gente”.1121
Outra referência positiva do poder africano corresponde ao chefe Inhaca, cujo
prestígio se relacionava com a sua importância comercial no rio do Espírito Santo, em
territórios de predomínio Tsonga. As suas insígnias diferiam da do chefe do “rio da
Abundância” e os elementos têxteis, provenientes do comércio com os portugueses, são
vistos como uma marca desta interacção. Os outros rios da baía de Lourenço Marques,
como o rio do Fumo e Anzate, eram concebidos como território de comunidades
antagónicas - “de huma mesma ruim natureza”1122 - por estarem associados ao desastre
de Manuel de Sousa de Sepúlveda e Dona Leonor de Sá.
O manuscrito anónimo da perdição da nau Santo Alberto (1593) constata a
diversidade humana, logo no início do relato, afirmando que a Cafraria é habitada de
“tantas nasomis de barboras e siluestres gentes”1123, “tantas naturezas de quafres, que é
espanto”.1124 Referindo-se às primeiras comunidades contactadas a sul do rio Kei,
descreve-as em termos físicos como “pretos e compridos e muj bem apeçoados” 1125,
prosseguindo com dados sobre a sua organização socio-política. A este respeito, informa
sobre as características destes povos pastores, organizados em pequenas aldeias dispostas
em torno de um curral central ou kraal, chefiadas por um chefe ou inKosi.1126 Com cerca
de quarenta dias de caminhada pelo sertão, desde o sul do rio Kei no sentido nor-nordeste,
e já em terras do Natal, os náufragos chegaram a uma zona de abundância que designaram
por “Vale da Misericórdia”1127, cuja economia diferia substancialmente da praticada pelas
primeiras comunidades de pastores. Aqui, além dos bovinos, abundavam cabras, galinhas,
leite, mel, feijões e cereais como o nachenim.1128 O modo de saudação e os traços
1121
IDEM, ibidem, fl. 33.
1122
IDEM, ibidem, fls. 45 e 46.
1123
“Perdição da nau Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, costumes dos que a abitão ate o Cabo das
Correntes”, in Glória de Santana PAULA, op. cit., p. 116.
1124
IDEM, ibidem, p. 118
1125
IDEM, ibidem, p. 128.
1126
IDEM, ibidem.
1127
IDEM, ibidem, pp. 148-149.
1128
“Nachenim” era a designação dada nos territórips de Moçambique ao cereal africano, Eleusine
coracana. Cultivado durante milhares de anos, desde os planaltos do Uganda e Etiópia até ao sul do
continente africano, revelava-se resistente à seca, permitia longos períodos de armazenamento, destacando-
295
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
fisionómicos destas gentes eram diversos dos que caracterizaram os primeiros grupos –
“são todos como mulatos”.1129 Passado este vale auspicioso, os náufragos atravessaram
uma área “deserta” ou despovoada, anunciando-se a aproximação a populações distintas
no modo de saudar, “dizendo nhanha, nhanha”, e usando adornos de contas vermelhas
que lhes chegavam do rio de Lourenço Marques.1130 Junto à lagoa de Santa Luzia, ou “rio
da Abundância”, foi descrito um tipo de economia mista, praticada por comunidades que
conciliavam a pastorícia, com a agricultura e a pesca.1131 A nordeste desta lagoa, veio ao
encontro dos náufragos uma irmã do rei Inhaca, que aí estava casada com um chefe local.
Era já o território de comunidades Tsonga, que diferiam estruturalmente das Nguni, sendo
identificadas pelos portugueses com o símbolo político e económico do “rei” Inhaca. Não
só o título político de “rei” e até “El-Rei”, como o designou Diogo do Couto1132, é
significativo nesta representação do poder africano, como também a associação deste
chefe ao comércio de marfim, âmbar, cobre e escravos. A sua imagem é distinta da dos
outros chefes da Cafraria e, de acordo com o olhar da época, essa diferença era
determinada pelas relações mantidas com os portugueses:
“Este Rej do Inhaqua é muito nosso amigo e hum omem bem feito e muito alto de corpo
e jentil homem (…) que nos pareseo se fora branquo dom Constamtino irmão do Duque
de Bargamça”.1133
se também o seu paladar e o elevado valor nutritivo. Com este cereal, as populações africanas faziam papas,
pães, bolos a que chamavam “mocates” e uma bebida fermentada, o “pombe”. Veja-se Lost Crops of Africa:
Vol. I: Grains, (National Research Council), Washington DC, The National Academies Press, 1996, ps. 10
e 39-44. https://www.nap.edu/catalog/2305/lost-crops-of-africa-volume-i-grains (Consultado em
17/05/2020)
1129
“Perdição da nau Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, costumes dos que a abitão ate o Cabo das
Correntes”, in Glória de Santana PAULA, op. cit., p. 145.
1130
IDEM, ibidem, p. 155.
1131
IDEM, ibidem, p. 159.
1132
Diogo do COUTO, “Relação do naufrágio da Nau São Tomé na Terra dos Fumos, no ano de 1589 e
dos grandes trabalhos que passou D. Paulo de Lima nas Terras da Cafraria, até a sua morte”, in H.T.M, Vol.
II, (…), p. 251.
1133
Glória de Santana PAULA, op. cit., p. 159.
1134
“Relação da mui notável perda do Galeão Grande S. João em que se contam os grandes trabalhos e
lastimosas cousas que aconteceram ao Capitão Manuel de Sousa Sepúlveda e o lamentável fim que ele e
296
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
“a divisão da gente he o que faz na terra este rio onde estavamos, porque os que habitão
daqui para o Cabo de Boa Esperança e toda a mais costa até Angola he a peor gente que
povoa esta região; os que vivem deste rio para Moçambique he gente tratavel de bom
termo e condição”.1138
sua mulher e filhos, e toda a mais gente, houveram na Terra do Natal, onde se perderam a 24 de Junho de
1552”, in H.T.M., Vol. I, (…), p. 28.
1135
François de MEDEIROS, op. cit., pp. 224-226.
1136
IDEM, ibidem, p. 226. Segundo o autor, “si la nature humaine de l’Aethiops est un principe acquis, sa
coleur noire n’en est pas moins un élement d’imperfection par rapport à la couleur blanche”.
1137
Jerónimo LOBO, op. cit., p. 570.
1138
IDEM, ibidem, p. 569.
297
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1139
Ioan Petri MAFFEII, Historiarum indicarum libri XVI. Selectarum, item, ex India epistolarum, eodem
interprete, libri IV. Accessit Ignatii Loiolae vita. Omnia ab auctore recognita, & nunc primum in Germania
excusa. Item, in singula opera copiosus index, [Historiarum indicarum libri XVI], Coloni Agrippin, In
Officina Birckmannica, sumptibus Arnoldi Mylij, 1589.
https://archive.org/details/bub_gb_LWmEoVuYaokC/page/n315/mode/2up (Consultado em 21/07/2020).
298
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1140
Simon GOULART, Thresor d’histoires admirables et memorables de nostre Temps recueillies de
plusieurs Autheurs, Memoires, & Auis de diuers endroits, [Genève], par Paul Marceau, 1610.
https://bit.ly/3hz4AS8 (Consultado em 22/07/2020)
1141
IDEM, ibidem, pp. 952-953 e 957.
299
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
resgatados por algum navio português, como os que periodicamente se deslocavam à baía
de Maputo, ou chegarem a um entreposto português, como Inhambane ou Sofala.
Estes naufrágios, em particular, vieram a originar um corpus de relatos escritos
que dedicam grande parte do seu discurso à representação do encontro com a diversidade
antropológica, fixando estereótipos e imagens genéricas, marcadas pelo sentimento de
tragédia e infortúnio. Ainda assim, todos os relatos registam os bons ares, a beleza das
colinas e dos vales, a abundância de rios e ribeiros, bem como o agasalho prestado por
muitas comunidades do sudeste africano ou sobreviventes de outros naufrágios ocorridos
anteriormente. Em todos os relatos repetem-se descrições de encontros com portugueses
ou antigos escravos, africanos e asiáticos, deixados na Cafraria por ocasião de naufrágios
anteriores, os quais prestaram ajuda como intérpretes ou guias temporários e não quiseram
deixar as comunidades nas quais foram acolhidos.
Na descrição do percurso por terra, o relato do naufrágio do galeão S. João refere
que não havia dia que não ficasse uma ou duas pessoas pelas praias e pelos matos, por
não conseguirem caminhar, tendo também muitos escravos desertado.1142 Acreditavam
os caminhantes que os companheiros deixados na Cafraria haviam de ser logo “comidos
dos tigres e serpentes”.1143 Dos cerca de quinhentos sobreviventes deste naufrágio, apenas
cerca de vinte e cinco chegaram à ilha de Moçambique. Dois anos mais tarde, os
sobreviventes do naufrágio da nau S. Bento, que percorreram os mesmos territórios,
descreveram o encontro com diversos sobreviventes do galeão S. João, que mostravam
estar integrados nas comunidades locais. Nas proximidades do rio Umkomazi, vieram ao
encontro dos náufragos da nau S. Bento gentes de diversas aldeias que, reagindo alegres
à novidade que passava pelas suas terras, cantavam, tangiam as palmas e traziam
alimentos para resgate. Entre os “cafres”, vinha “um moço de Bengala que ficara da outra
perdição” e, apesar dos pedidos e promessas para que fosse guia, este recusou, recolheu-
se com o grupo de “cafres” e não quis voltar a ver os náufragos.1144 Mais adiante
encontraram um moço chamado Gaspar que funcionou como intérprete e, na “Barra da
1142
“Relação da mui notável perda do Galeão Grande S. João em que se contam os grandes trabalhos e
lastimosas cousas que aconteceram ao Capitão Manuel de Sousa Sepúlveda e o lamentável fim que ele e
sua mulher e filhos, e toda a mais gente, houveram na Terra do Natal, onde se perderam a 24 de Junho de
1552”, in H.T.M., Vol. I, (…), pp. 27.
1143
IDEM, ibidem.
1144
“Relação Sumaria da Viagem que fez Fernão de Álvares Cabral desde que partiu deste Reino por
Capitão-mor da armada que foi no ano de 1553 às partes da Índia até que se perdeu no Cabo de Boa
Esperança no ano de 1554”, in H.T.M., Vol. I, (…), pp. 74-75.
300
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1145
IDEM, ibidem, pp. 74-77.
1146
IDEM, ibidem, p. 78.
1147
IDEM, ibidem, p. 77.
1148
IDEM, ibidem, p. 90.
1149
João Baptista LAVANHA, op. cit., p. 71.
301
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
mulheres e vinte filhos.1150 A nove dias de caminho achariam um “Cafre por nome Jorge”
e, na mesma povoação, um português chamado Diogo, natural de S. Gonçalo de
Amarante, o qual vieram a saber que ali vivia “casado, & com filhos” e que se tinha
tornado um “fazedor de chuva”.1151
Em casa do referido jau e aos seus cuidados ficaram dois portugueses que já não
conseguiam caminhar. Eram eles Gregório de Vidanha e o marinheiro Francisco
Rodrigues Machado. Com o malabar ficaram duas “cafras” e uma “jaoa” e, mais adiante,
provavelmente entre os rios Msikaba e Mtavuna, ficaram mais quatro pessoas: o
marinheiro Motta, um italiano chamado Pedemassole, um passageiro coxo e o filho de
Dona Ursula, de nome Cristovão de Mello, de idade de onze anos.1152 O “cafre” Jorge
acompanhou os náufragos ao topo de uma serra, de onde se viam muitas aldeias, “entre
as quaes etava huma muyto grande”, que era a do português Diogo. Nessa povoação
destacava-se uma “casa de quatro aguas de palha”, coisa não vista por todo aquele
caminho, pois “as outras eraõ mais pequenas, & redondas”.1153 A casa funcionava como
um elemento distintivo de cultura material e, sendo a maior da povoação, revelava a
importância social que este homem assumiu naquele contexto africano, como “fazedor de
chuva”. Ao mesmo tempo, o estilo de construção, com uma cobertura em “quatro aguas”
associava-se a uma memória ligada à sua identidade portuguesa. Este exemplo de
habitação distinta de um português, que nos remete para a imagem de uma casa
rectângular “à portuguesa” é comparável ao que aconteceu noutras regiões africanas de
contacto, como os exemplos dados por Peter Mark para o tipo de construção dos luso-
africanos da Senegâmbia, na mesma época.1154
Bem mais a nordeste, na terra dos Tongas, a que os portugueses chamavam
“Medãos do ouro”, após o capitão matar um pássaro com espingarda, o espanto das gentes
locais foi tão grande que os tomaram por “feiticeiros”, pelo que veio ao encontro dos
náufragos um aleijado de uma perna a pedir para ser curado.1155
Pouco mais de uma década depois, no tempo em que os náufragos da nau Belém
se estabeleceram na foz do rio Umzimvubu, a notícia chegou a um sobrevivente da nau
1150
Francisco Vaz DALMADA, op cit., pp. 50-51.
1151
IDEM, ibidem, pp. 48-49 e 56.
1152
IDEM, ibidem, p. 53.
1153
IDEM, ibidem, p. 57.
1154
Peter MARK, op. cit., p. 17.
1155
Francisco Vaz DALMADA, op cit., p. 65.
302
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Santo Alberto, que ali se deslocou acompanhado de um chefe local para fazer resgate de
gado com os portugueses, tendo sido facilitador desse encontro, pois falava algumas
palavras de português. José Cabreira refere-se a este homem como um “cabra”, expressão
que designava um mestiço, de nome António, que ficou por aqueles matos ainda criança,
havia mais de quarenta anos. As populações locais adoptaram-no, foi criado na terra,
estava casado com três mulheres, tinha muitos filhos e constou que se tinha tornado muito
rico.1156
O relato dos naufrágios das naus Sacramento e Nossa Senhora da Atalaia (1647)
continuou a registar um elevado número de náufragos que iam ficando pelos trilhos do
sudeste africano, alguns por impossibilidade de caminhar, outros porque optaram por
fugir e desertar.1157 Tanto as fugas dos escravos, como a decisão do padre Francisco
Pereira em permanecer naquelas terras, poderão ter sido motivadas por diversos encontros
com sobreviventes de naufrágios anteriores, os quais mostravam viver plenamente
integrados nas comunidades africanas. Destaca-se, a este respeito, o encontro dos
náufragos com um cafre chamado João, que ficara naquelas terras desde o naufrágio da
nau Belém (1635).1158 Foram surpreendidos por “hum Cafre de boa feyção”, que lhes
falou em português e devia ter ficado “alli pequeno, de alguma perdição”. 1159 No arraial
apareceu um grupo de africanos para fazer resgate, entre os quais se destacava um cafre
falando português, de nome Alexandre, que ali ficara pequeno, “da perdição da Náo São
João” (1622). Este homem, casado na terra e com cinco filhos, ao aproximar-se do arraial,
beijou o crucifixo e reverenciou os sacerdotes, gesto que emocionou o padre Francisco
Pereira e o motivou a permanecer numa das povoações da Cafraria, para a catequização
dos gentios, antes de ser abandonado pelo mesmo cafre, que o fez retornar, desiludido,
ao arraial.1160 Pouco depois, durante quatro dias, caminhou em companhia dos náufragos
um outro cafre, a quem os sobreviventes da perdição da nau Santa Maria Madre de Deus
reconheceram ser Tomé, um africano que quatro anos antes tinha sido de grande préstimo
e serviço aos caminhantes.1161
1156
Joseph de CABREYRA, op. cit., p. 45.
1157
Bento Teyxeyra FEYO, op. cit., pp. 22-24.
1158
IDEM, ibidem, pp. 27-28.
1159
IDEM, ibidem, p. 47.
1160
IDEM, ibidem, pp. 58-60.
1161
IDEM, ibidem, p. 61.
303
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1162
Jeff PEIRES, The House of Phalo. A History of the Xhosa People in the Days of their Independence,
(…), ps. 9 e 20.
1163
Gillian VERNON, Even the Cows were Amazed. Shipwreck survivors in South-East Africa 1552-1782,
Cape Town, Jacana, 2013, p. 157.
1164
Gai ROUFE e Joseph C. MILLER, “African Voices Echoing in European Texts: The Muffled Meanings
of the Madzimbabwe of the Mocaranga between the Sixteenth and the Nineteenth Centuries, in History in
Africa, Volume 47, 2020, pp. 5-36.
1165
IDEM, ibidem, pp. 8-9.
304
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1166
Agradeço ao Professor José da Silva HORTA a partilha, para leitura, do seu texto em elaboração,
intitulado “Continuidades e descontinuidades nas primeiras décadas dos contactos afro-europeus na
Senegâmbia: modalidades e percepções”, 24 ps.
1167
IDEM, ibidem, pp. 5-6.
305
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1168
Joseph de CABREYRA, op. cit., p. 29.
1169
Jacob Ludwig DÖHNE, A Zulu-Kafir Dictionary etymologically explained, with copious illustrations
and examples, preceded by an introduction to the Zulu-Kafir language, G.J. Pike's Machine Printing
Office, Cape Town, 1857, pp. 206-207.
1170
IDEM, ibidem, p. 214.
1171
Jacob Ludwig DÖHNE, op. cit., p. 202.
1172
IDEM, ibidem.
306
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Num outro espaço mais a sul, o registo do primeiro contacto também nos concede
uma aproximação à reação dos africanos perante a chegada dos náufragos às suas terras.
O encontro dos sobreviventes da Santo Alberto (1593) com o inKosi de Tiombe, no
Penedo das Fontes, foi marcado pelo espanto e admiração:
“o amcose como pasmado esteue olhando pera todos e com grandes brados com os olhos
no mar disse, o agoa nosso amiguo quoantas couzas trazes as nossa terras, eu te gradeso
muito, e disse aos seus que folgaua de nos uer por nos pareçermos com heles tendo simquo
dedos, boqua, olhos, mãos, pes como heles tinhão, e que pela aluura deuiamos ser filhos
do sol”.1175
1173
É interessante verificar como noutros contextos africanos de contacto, há questões identitárias a
reclamar a genealogia como estratégia de afirmação. Francisco Freire estudou, para o contexto dos
primeiros contactos euro-saarianos, a transmissão intergeracional da noção de naçāra, associada à presença
europeia cristã na região da Mauritânia, estando esta fortemente ligada às estratégias locais de afirmação
genealógico-identitária. Veja-se José da Silva HORTA e Francisco FREIRE, “Os primeiros contactos luso-
saarianos: narrativas europeias quatrocentistas e tradições orais Bidān (Mauritânia)”, in As Lições de Jill
Dias. Antropologia, História, África, Academia / The Jill Dias Lessons. Anthropology, History, Africa,
Academia, Maria Cardeira da SILVA e Clara SARAIVA (coord), Lisboa, Centro em Rede de Investigação
em Antropologia, 2013, p. 39. pp. 37-53.
1174
José da Silva HORTA, “Continuidades e descontinuidades nas primeiras décadas dos contactos afro-
europeus na Senegâmbia: modalidades e percepções”, (…), p. 6.
1175
“Perdição da nau Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, costumes dos que a abitão ate o Cabo das
Correntes”, in Glória de Santana PAULA, op. cit., (…), p. 131.
307
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Já referimos, neste trabalho, que todo este sentido pode ter sido inferido a partir
de gestos rituais e comunicação não-verbal. Sucedeu que o inKhosi entregou ao mar, de
forma ritual, as entranhas de um carneiro oferecido a Nuno Velho. A tradução das
palavras rituais e as simbologias complexas dos gestos podiam escapar ao observador
português, porém, foi percepcionado e registado um sentido cerimonial protagonizado
pelo chefe. Provavelmente, aquilo que foi percepcionado como uma oferta a Nuno Velho,
significou para o chefe africano um sacrifício de um animal, que era sempre um
transportador de informação entre os vivos e o mundo dos espíritos, a que o mar oceano
se associava.
A busca de semelhanças físicas que o inKosi estabelece entre o seu povo e os
náufragos, como ter boca, olhos, mãos e pés com cinco dedos, parecia descartar a hipótese
de serem animais ou outras criaturas não-humanas, emergindo uma explicação alternativa
ligada à cor “alva” de muitos náufragos, que os remetia para a categoria de “filhos do
sol”, sendo que essa interpretação implicava significados cosmológicos que o observador
europeu não teria alcançado.
Durante o longo percurso por terra, em diversas latitudes, os náufragos da Santo
Alberto atraíram muitas gentes, que vinham das povoações a vê-los “como pasmados”.1176
Em certas áreas provocavam a fuga, como aconteceu com caçadores e suas famílias que
“vivião naqueles matos”.1177 Noutros casos ainda, as gentes locais traziam muitas espigas
de milho para que os náufragos as tocassem com as mãos, mostrando “tanta venerasão
que auião que só com lhes tocarmos sarauão suas enfermidades”. Numa área de muitas
povoações, em territórios do Natal, gentes que estavam doentes acorriam aos náufragos
caminhantes e estes esfregavam-lhes as espigas de milho nos “pes, e mãos, e barriga,
fazendo-lhes o sinal da crus, (…) e eles muito satisfeitos estirauão as pernas, e brasejauão
com os brasos avemdo que estauão fortissimos”. Dizia um sobrevivente deste naufrágio
que “foj tanta a fe que estes negros tinhão em nós os tocarmos (…) e era tam geral a cura
que ate os moços, negros, meninos se punhão esfregar, cafarrõis bem gramdes”.1178
Muitos homens e mulheres de diversas aldeias acompanharam por cerca de dois dias os
náufragos, ajudando a carregar os alforges pesados. As mulheres rodeavam as machiras
1176
IDEM, ibidem, p. 145.
1177
IDEM, ibidem, p. 147.
1178
IDEM, ibidem, pp. 153-154.
308
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
onde eram transportadas duas fidalgas portuguesas e, numa manifestação que parecia ser
ritual, tangiam as palmas, cantando muito alto e bailando, trazendo-lhes leite e
galinhas.1179
Quando o grupo de náufragos parou para descansar junto a uma ribeira, chegou-
lhes o “presente” de uma vaca enviado pela viúva de um inkosi, que não podia vir vê-los
e por isso lhes pedia que passassem pelas suas aldeias.1180 Na cultura local, não só as
mulheres estavam impedidas de cuidar e transportar o gado, como a observância da inzila,
um conjunto de preceitos ligados ao luto, impossibilitavam a viúva de deixar a sua área
residencial e deslocar-se pelos campos a fim de concretizar este encontro, eventualmente
percepcionado como “curador”.1181 Para os povos locais, depois da morte, e cumpridos
os rituais, o inkosi tornava-se isithundi, uma “sombra”, até que se juntaria aos
antepassados, para vir a desempenhar um papel especialmente importante como guardião
espiritual do kraal.1182 Era preciso honrar, respeitar e dar atenção ao isithundi, por
exemplo através de rituais sacrifíciais em que o gado desempenhava um papel crucial,
pois este era parte da identidade da própria comunidade, ligando-se simbolicamente aos
humanos e aos ancestrais.1183
Poderemos interpretar o envio da vaca pela viúva do inkosi como um ritual que
reforçava a união entre os vivos e os mortos? Em tempo de luto e da crise que implicava
a morte de um chefe, o envio de uma vaca a criaturas desconhecidas do seu povo poderia
assumir um sentido sacrificial, e portanto reconciliador e purificador no âmbito
comunitário? Se for esse o sentido, é muito provável que os náufragos fossem
percepcionados como criaturas actuando num horizonte ou num espectro do sagrado, pelo
1179
IDEM, ibidem, pp. 153.
1180
IDEM ibidem, p. 154.
1181
Cecilia Daphney NDLOVU, The Mourning Cultural Practices amongst the Zulu-Speaking Widows of
the Kwanyuswa Community: A Feminist Perspective, Dissertation submitted in partial fulfillment of the
requirements for the Degree of Master of Arts, University of Kwazulu-Natal, 2013, pp. 6-7.
http://hdl.handle.net/10413/11374 (consultado em 12/08/2021)
1182
Axel-Ivar BERGLUND, Zulu Ideas and Simbolism, Thesis submitted for PhD Degree at the University
of Cape Town, 1972, p. 125. No seu trabalho antropológico, Berglund procurou compreender os padrões
de comportamento, pensamento e expressão a partir da interpretação dos próprios Zulus sobre as suas ideias
e simbolismos. Assim, a “sombra” ou isithundi é definido como «the "shadow of man, the living principle
in man, spirit (while living), shade (after death= idlozi)».
1183
W. D. HAMMOND-TOOKE, “Cattle Symbolism in Zulu Culture”, in Benedict CARTON, John
LABAND and Jabulani SITHOLE (Editors), Zulu Identities. Being Zulu, Past and Present, London,
Hurst&Company, 2009, p. 64.
309
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1184
Em 1989, a jornalista Hazel Crampton, ao investigar um povo de entre os Tshomane, que se
autodesignava de abeLungu, fez o levantamento das diversas recolhas de oralidade empreendidas durante
o século XX. Quando, em 1950, o Reverendo Holt entrevistou um ancião, já então era notória uma grande
amálgama na consciência colectiva. A própria Hazel Crampton entrevistou gentes que lhe referiram: “We
are the abeLungu; our forefathers were White men”; “We are not lost, we know where we are coming from
– overseas”; “we are different, as we are abeLungu”. Se há uma identidade abeLungu definida, impossível
se torna precisar os naufrágios que poderão estar na sua origem, pois como afirmou Guaxaza kaLugaga,
um abeLungu entrevistado em Agosto de 1989, “it was not only one ship that was broken [it was] one after
another”. Veja-se Hazel CRAMPTON, op. cit., Appendix 1, pp. 296-298.
310
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
311
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1185
Maria de Deus Beites MANSO, “Contexto Histórico-cultural das missões na Índia: Séc. XVI-XVII”,
in História Unisinos, Vol. 15, nº 3, Setembro/Dezembro 2011, p. 408.
https://doi.org/10.4013/htu.2011.153.08 (Consultado em 20/09/2018)
1186
IDEM, ibidem.
312
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1187
Júlio GONÇALVES, “Goa”, in Dicionário de História de Portugal, Joel SERRÃO (Dir.), Vol. III,
Porto, Livraria Figueirinhas, s.d., p. 120.
1188
Dauril ALDEN, The Making of an Enterprise: The Society of Jesus in Portugal, Its Empire and beyond,
1540-1750, Stanford, Stanford University Press, 1996, p. 43.
1189
“St. Francis Xavier: a visit to Malindi and Socotra in 1542” [carta assinada por Francisco Xavier, escrita
em Goa, 20 Setembro de 1542], in Greville S. P. FREEMAN-GRENVILLE (ed.), op. cit., p. 135.
1190
Eugénia RODRIGUES, Portugueses e Africanos nos Rios de Sena. Os Prazos da Coroa em
Moçambique nos séculos XVII e XVIII, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2013, p.72.
313
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
o autorizou, não só devido ao perigo turco, mas também porque lhe estava destinada a
instrução de outros cristãos, alegadamente mais necessitados do serviço divino.1191
Antes da chegada dos primeiros missionários da Companhia de Jesus ao Oriente
fora construído em Goa o Seminário da Santa Fé. Esta instituição tinha a sua raiz na
Confraria da Santa Fé (1542), fundada por Miguel Vaz Coutinho, primeiro vigário geral
de Goa, e Diogo Barbosa, provavelmente um padre franciscano, com o propósito de
acolher estudantes de diversas partes de África e da Ásia que viriam a ser padres seculares
entre as populações indígenas.1192 O Seminário admitia estudantes com idades
compreendidas entre 13 e 15 anos, num sistema de quotas para Indianos, Kaffirs, Malaios
e Chineses.1193 Cerca de 1548, o Seminário alojava estudantes que falavam 13 línguas
nativas.1194
Vaz Coutinho e Diogo Barbosa faleceram em 1547. Em 1549 constituiu-se a
Província de Goa da Companhia de Jesus, que viria a tomar posse formal do Seminário
da Santa Fé, núcleo do Colégio de S. Paulo (1551). Em breve, Seminário e Colégio
separavam-se fisicamente, sendo que este passou a ser o centro estratégico do Padroado
do Oriente. Era missão do Colégio treinar padres e irmãos chegados da Europa antes
destes serem enviados para as diversas partes do Oriente, que se considerava ter o seu
começo no Cabo da Boa Esperança, prolongando-se para leste, até ao arquipélago
nipónico.
Desde a chegada de Francisco Xavier à Índia que o empreendimento jesuíta se
havia sediado em Goa, o principal centro gravitacional da Companhia de Jesus no Oriente.
A partir daí, irradiou para outros centros e áreas de missionação, com uma intensa
atividade de padres seculares e missionários que levavam o Cristianismo católico pós-
tridentino a comunidades hindus e muçulmanas. 1195
Em 1559, destacam-se como algumas das áreas de missionação jesuíta no Oriente:
Baçaim, Cochim, Costa da Pescaria, Taná e Costa de Travancore, na Índia. Fora da Índia,
destacava-se, a Este, o Japão, as Molucas e Malaca. Na parte ocidental do “Estado da
1191
“St. Francis Xavier: a visit to Malindi and Socotra in 1542” [carta assinada por Francisco Xavier, escrita
em Goa, 20 Setembro de 1542], in Greville S. P. FREEMAN-GRENVILLE, op. cit., p. 137.
1192
Dauril ALDEN, op. cit., p. 44
1193
IDEM, ibidem.
1194
IDEM, ibidem.
1195
IDEM, ibidem, pp. 48-49.
314
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Índia”, Dauril Alden salienta apenas Ormuz (desde 1549)1196 e a missão da Etiópia (desde
1557)1197.
Na África Oriental, os interesses dos Portugueses centraram-se na Abissínia, cuja
soberania era atribuída ao lendário “Preste João”, o rei cristão que controlava os altos
planaltos da Etiópia e que, durante séculos, alimentou no Ocidente o desejo profético de
estabelecer uma aliança espiritual e militar para combater os muçulmanos.
A primeira embaixada enviada à Etiópia (1520-1526), chefiada por Duarte
Galvão, levou por capelão o Padre Francisco Álvares, autor da narrativa “fundadora” do
conhecimento europeu sobre o reino cristão da Etiópia, que descreve os primeiros
contactos com o Ngusa e contextualiza o seu poder face aos dos povos circundantes, seus
costumes e religiões. A riqueza informativa da obra impressa em 1540, Verdadera
Informação das Terras do Preste João das Indias1198 foi ao encontro de uma intensa
curiosidade cristã europeia, o que é visível nas traduções para castelhano, francês, italiano
e alemão, durante o século XVI e para inglês, em 1615.1199
A partir de 1529, o Estado cristão da Etiópia viu-se ameaçado pelos exércitos
muçulmanos comandados pelo rei de Zeila, Ahmad ibn Ibraim, que integravam vários
clãs de pastores Somali, Harari e Afari. Face ao avanço militar muçulmano, e num
contexto de relações diplomáticas com os portugueses, o imperador Galawdewos pediu
auxílio aos Portugueses, o que resultou na força expedicionária comandada por D.
Cristovão da Gama, que actuou entre 1541 e 1543, no sentido de conter o avanço das
forças muçulmanas. Esta cooperação militar servia a um mesmo tempo os interesses
estratégicos portugueses, ligados ao controlo do comércio no Mar Vermelho e noroeste
do Índico, e também o objetivo de estabelecer uma missão jesuíta naquele reino. Ao
mesmo tempo, dissipava-se a imagem mítica que associava ao monarca etíope uma
poderosa força militar.1200
1196
IDEM, ibidem, p. 53.
1197
IDEM, ibidem, p. 54.
1198
Francisco ALVARES, Ho preste Ioam das Indias: verdadera informaçam das terras do Preste Ioam
segundo vio & escreueo ho padre Francisco Aluarez, capellã del rey nosso senhor. Agora novam[en]te
impresso por mandado do dito senhor, Lisboa, em casa de Luis Rodrigues, 1540.
http://175anosbpb.pt/bpbuminho/preste-joao/ (Consultado em 08/02/2020)
1199
http://175anosbpb.pt/bpbuminho/preste-joao/ (Consultado em 08/02/2020)
1200
Manuel João RAMOS, “O destino etíope do Preste João. A Etiópia nas representações cosmográficas
europeias”, in Condicionantes Culturais da Literatura de Viagens. Estudos e Bibliografias, Fernando
Cristovão (Coord. de), Coimbra, Almedina – CLEPUL, 2002, p. 247.
315
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1201
André Ferrand de ALMEIDA, “Da Demanda do Preste João à Missão Jesuíta da Etiópia: a Cristandade
da Abissínia e os Portugueses nos Séculos XVI e XVII”, in Lusitania Sacra, 2ª Série, 11 (1999), p. 285.
1202
IDEM, ibidem, p. 283.
1203
Livro Io. Em o qval. Se trasladão. as cartas. que mandão os Padres. he Irmãos. da Companhia. de Iesu
qve andão. na India. das covsas. qve naqvelas. Partes. Deus. Nosso Senhor. por meyo deles. em serviço
sev. he lovvor. Obra. que comeca. do anno. do Nacimento. de Nosso. Senhor. Iesv. Christo. de. 1557. em
diante. Até. 64., B.N.P. – Reservados, Cod 14534.
316
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1204
Josef WICKI e John GOMES (Editores), Documenta Indica, 18 vols, Roma, Apud “Monumenta
Historica Societatis Jesu”, 1948. Trata-se de um repositório de documentação relativa às missões jesuítas
no Índico, em 18 volumes, coligidos e editados por Josef Wicki e John Gomes, no ano de 1948. A
transcrição, impressão e divulgação da documentação integra-se no projeto mais vasto, designado
“Monumenta Historica Societatis Iesu”, tendo por missão a publicação de documentos sobre as origens da
Companhia de Jesus, que constam dos arquivos da Ordem, sob a responsabilidade maior do “Institutum
Historicum Societatis Iesu”. É do volume V desta colectânea que extraímos as fontes para análise neste
tópico da nossa dissertação.
1205
António Pereira de PAIVA E PONA, Dos primeiros trabalhos dos portuguezes no Monomotapa: o
padre D. Gonçalo de Silveira, 1560: memoria apresentada á 10.ª sessão do Congresso internacional dos
orientalistas, Lisboa, Imprensa Nacional, 1892.
1206
Sob a responsabilidade editorial do Centro de Estudos Históricos Ultramarinos e do National Archives
of Rhodesia and Nyasaland, nesta colectânea encontra-se também publicada a correspondência jesuíta
produzida no contexto da primeira missão da Cafraria, a partir de cópias depositadas nos fundos
documentais da Biblioteca da Ajuda, da Biblioteca Nacional de Portugal e da Academia das Ciências de
Lisboa (Ms. Azul). Veja-se D.P.M.A.C., Vol. VIII (1561-1588), (…), 1975.
317
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1207
“Copia de huma do Padre Don Gonçalo que escreueo aos Irmãos de Portugal em Nouembro de 1559,
de Goa”, in Livro Io. Em o qval. Se trasladão. as cartas. que mandão os Padres. he Irmãos. da Companhia.
de Iesu …, fl. 127 vº.
1208
António da SILVA, Mentalidade Missiológica dos Jesuítas em Moçambique antes de 1759. Esboço
ideológico a partir do núcleo documental, Vol. I, Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, 1967, p. 22.
O Padre António da Silva foi Professor de Missiologia na Universidade Gregoriana em Roma, no ISESE
em Évora e na Faculdade de Filosofia em Braga.
1209
“Treslado de huma carta que escreueo o padre dom Gonçalo de Moçambique aos padres e irmãos do
collegio da companhia de Goa. de sua tornada de Inhambane. E ida para o Rejno de Monomotapa. A 9
dagosto de 1560”, in Livro Io. Em o qval. Se trasladão. as cartas. que mandão os Padres. he Irmãos. da
Companhia. de Iesu …, fl. 212 vo. Versão impressa em PAIVA E PONA, op. cit., p. 47.
1210
“De uma do padre António Fernandes da Cafraria de 3 de Junho 1561 para o irmão Mario em Portugal”,
in PAIVA E PONA, op. cit., p. 52.
1211
José da Silva HORTA, “A Representação do Africano na Literatura de Viagens, do Senegal à Serra
Leoa”, (…), p. 236.
318
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
diziam que “os cafres os tem por deoses e lhes pedem agoa e sol”, a gente era tão subtil
que dava “ouro por vidro e por pano de estopa”, o território era pacífico e toda a terra
sadia e fresquíssima, além de que a organização sociopolítica em aldeias se afigurava um
fator facilitador para a doutrinação.1212
Inhambane C. Correntes
Tonge
1212
“Carta (copia) do Padre D. Gonçalo para os Irmãos da Companhia de Jesus de Portugal”, in D.P.M.A.C.,
Vol. VII, (…), p. 422.
1213
Mapa adaptado de Eugénia RODRIGUES, op. cit., p. 997.
319
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Com esta notícia e o convite do mf’umu para que se fizessem os baptismos nas
suas terras, partiram os padres de Goa, pelo Índico, rumo ao porto de Inhambane, no
sudeste africano, rezando a bordo Padres Nossos, Avé Marias e os Credos “pela
Cafraria”.1216
Em Chaul, André Fernandes escrevia aos Irmãos de Goa. Iniciava-se o ano de
1560 e o grupo de missionários determinava marcar o início de uma nova Era com esta
missão na África Oriental, simbolizada por uma nova marcação do tempo – “começar de
nouo com feruor a seruir ao Senhor e daqui por diante contar o tempo”.1217 Nesta carta,
André Fernandes solicitava a oração coletiva favorável à futura conversão da “rainha de
Inhambane” sobre quem recaíam grandes expectativas, pela influência que se esperava
que exercesse no chefe da linhagem, nas elites locais, na comunidade mais vasta, mas
também pelo exemplo que constituía para as chefaturas vizinhas.
1214
“Carta (copia) do Padre D. Gonçalo para os Irmãos da Companhia de Jesus de Portugal”, in D.P.M.A.C.,
Vol. VII, (…), pp. 422-424.
1215
IDEM, ibidem.
1216
“Carta (copia) do Padre D. Gonçalo para o Padre Provincial da Companhia de Jesus de Goa” (12 de
Fevereiro de 1560), in D.P.M.A.C., Vol. VII, (…), p. 440.
1217
“Carta (copia) do Padre André Fernandes para os Irmãos do Colégio de Goa”, (Chaul, 2 de Janeiro de
1560), in D.P.M.A.C., Vol. VII, (…), pp. 434-437.
320
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1218
IDEM, ibidem.
1219
IDEM, ibidem.
1220
“Carta (copia) do Padre Andre Fernandes para o Irmão Luis Fróis” (Tonge, 25 de Junho de 1560), in
D.P.M.A.C., Vol. VII, (…), p. 480.
1221
“Carta (copia) do Padre Andre Fernandes para o Padre Provincial da Companhia de Jesus da Índia”
(Tonge, 24 de Junho de 1560), in D.P.M.A.C., Vol. VII, (…), p. 466.
1222
S.I.G. MUDENGE, op. cit., pp. 17-18.
321
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1223
“Carta (copia) do Padre Andre Fernandes para os Irmãos do Colégio da Companhia de Jesus de Goa”
(Tonge, 26 de Junho de 1560), in D.P.M.A.C., Vol. VII, (…), pp. 496-499.
1224
“Carta que el-rei de Inhambane, que o padre D. Gonçalo fez christão, escreveu ao viso-rei D.
Constantino (em maio de 1560) á India”, in António Pereira de PAIVA E PONA, op. cit., pp. 50-52.
1225
“Carta (copia) do Padre André Fernandes para o Irmão Luis Fróis” (Tonge, 25 de Junho de 1560), in
D.P.M.A.C., Vol. VII, (…), p. 486.
322
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
iniciação que permitia aceder a poderes novos, daí que diversas comunidades pedissem
para receber o baptismo e participar num novo culto.
Anne Hilton refere semelhante interesse pelo baptismo, no Kongo, em que depois
do rei ser baptizado, alguns “principais” pediam o mesmo ritual, que simbolizava a
iniciação no culto mbumba, relacionado com os espíritos da água ou da terra e com o
“outro mundo”.1226 Segundo Carlos Almeida, depois que muitos baptismos aconteceram
no Kongo, verificaram-se processos de redefinição de sentidos e os missionários
procuravam impedir a apropriação africana dos sacramentos cristãos para lhes atribuírem
sentidos novos.1227
Na Cafraria, diziam os padres que eram tantos os que os procuravam para receber
a novidade do batismo, que se faziam as cerimónias coletivas, como se uma transposição
simbólica e metafísica do rio Jordão ocorresse então nos muitos cursos de água de
Inhambane. Na verdade, para as comunidades africanas as águas dos rios, os lagos
profundos e o mar estavam impregnados não só da força vital dos ancestrais, mas também
de outros espíritos poderosos ligados à Criação, pelo que muitos dos espaços aquáticos
onde ocorreram os batismos poderiam já ser, previamente, lugares de comunicação e
ritual. Ao mesmo tempo, a cor “branca” dos padres, que estava associada à cor dos
espíritos, a sua proveniência do mar, que era concebido em muitas cosmologias bantus
como um espaço de fronteira com o “outro mundo”, consolidavam no novo ritual uma
dimensão que permitia canalizar poderes divinos.
A missionação cristã envolvia as comunidades africanas em novos rituais e, nesse
sentido, mobilizava símbolos e interpretações que encontravam coerências nas visões do
mundo dessas mesmas comunidades.1228 A visão missionária cristã compartimentava a
existência acima da esfera humana, como sendo sobrenatural e espiritual, o que implicava
distinção e distância relativamente ao mundo natural, dos homens e da vida “prática” de
todos os dias. Como explica Kwasi Wiredu, existem profundas disparidades entre a
cosmovisão cristã e as cosmovisões africanas em relação a questões ontológicas
1226
Anne HILTON, op. cit., pp. 51-52.
1227
Carlos ALMEIDA, «“Ajustar à Forma do Viver Cristão”. Missão Católica e Resistências em Terras
Africanas», Cadernos de Estudos Africanos [Online], 33, 2017, pp. 74 e 76.
http://journals.openedition.org/cea/2194 ; DOI : 10.4000/cea.2194 (Consultado em 20/06/2018)
1228
Kwasi WIREDU, “African Religions from a Philosophical Point of View”, in Charles TALIAFERRO,
Paul DRAPER, Philip L. QUINN, (eds.), A Companion to Philosophy of Religion, 2ª ed., Malden-Oxford,
Wiley-Blackwell Publishers, 2010, p. 37.
323
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
específicas e o que os discursos missionários nos transmitem são, antes de mais, projeções
dos seus próprios esquemas de pensamento dual.1229
A propósito de uma visão dual veja-se o entendimento do padre André Fernandes
acerca do impacto do batismo na comunidade do Tonge. Sendo a cerimónia do batismo
das chefias das aldeias uma forma de iniciação ritual, esta poderia reflectir-se num reforço
simbólico do estatuto social de que o mf’umu estava naturalmente investido, enquanto
autoridade sociopolítica à escala local. O discurso missionário tende a extravasar esta
possibilidade de reforço dos estatutos do mf’umu e atribui ao baptismo cristão das elites
africanas a capacidade de vir a segmentar as gentes das aldeias, entre os que permaneciam
na distante “gentilidade” e os que se aproximavam e familiarizavam com o propósito
daquela missão cristã. A descrição feita pelo padre André Fernandes relativamente a um
mf’umu, sobrinho do madzimambo, refere que, sendo aquele já baptizado, sentou-se num
tronco com outros cristãos e, chegando um “gentio” para se sentar junto a eles “nunca o
consentio que cafre não se avia de assentar com christãos”.1230 Parece estarmos perante a
formulação descritiva de uma oposição social entre os africanos com recurso às categorias
de cafre/gentio versus cristão, oposição essa que reflecte, antes de mais, o quadro mental
dos missionários. Este tipo de oposição binária está presente em todos os momentos em
que o missionário analisa ou descreve as comunidades africanas e também na forma como
concebe a transformação do africano mediante a “conversão” ao Catolicismo através do
baptismo.
A ideia de que todos os reinos e círculos de poder “de gentios” estariam tão
predispostos para o Cristianismo como estivera o chefe Gamba precipitara a partida de
Gonçalo da Silveira, que deixava a missão de Inhambane entregue aos seus companheiros
e ao chefe local, na sua perspectiva, convertido. A 9 de Agosto de 1560, já se dirigia para
a Ilha de Moçambique, para depois seguir até ao planalto do Monomotapa. Procurava
concretizar o projecto de evangelização do Mutapa que, com entusiasmo já havia referido
numa carta que escreveu aos Irmãos de Portugal dizia:
“(…) ymaginay irmãos quantoos outros se oferecem por todas aquellas prouincias do
Cabo de Boa Esperança e espicialmente entra nesta impressa o emperador de
1229
IDEM, ibidem, ps. 37 e 40.
“Carta (copia) do Padre Andre Fernandes para o Irmão Luis Fróis” (Tonge, 25 de Junho de 1560), in
1230
324
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Manamotapa em cujo poder dizem que ha minas e serras d’ouro e tem seu asento perto
de sofala. Tãobem temos emformação que não esta longe de receber a fee”. 1231
1231
“Carta (copia) do Padre D. Gonçalo para os Irmãos da Companhia de Jesus de Portugal” (Goa,
Novembro de 1559), in D.P.M.A.C., Vol. VII, (…), p. 424.
1232
“De uma do irmão Balthasar da Costa da India que escreveu a um padre da Companhia de Jesus em
Portugal a 16 de novembro de 1560”, in António Pereira de PAIVA E PONA, op. cit., pp. 49.
1233
IDEM, ibidem, p. 50.
325
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1234
Helena BARBAS, “Monstros: o Rinoceronte e o Elefante – Da ficção dos Bestiários à Realidade
Testemunhal”, in Actas do V Encontro Luso-Alemão / Akten der V Deutsch Portuguiesischen
Arbeitgesprache, Koln-Lisboa, Universidade de Colónia, 2000, pp. 103-122.
https://www.researchgate.net/publication/272566481_MONSTROS_O_RINOCERONTE_E_O_ELEFA
NTE_-_Da_Ficcao_dos_Bestiarios_a_Realidade_Testemunhal (consultado em 01/08/2017)
1235
“Carta (copia) do Padre André Fernandes para o Irmão Luis Fróis” (Tonge, 25 de Junho de 1560), in
D.P.M.A.C., Vol. VII, (…), p. 484.
326
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1236
Santo Tomás de AQUINO, Suma de Teología, Damián Byrne OP (Apresentação por), 4ª ed., Madrid,
Biblioteca de Autores Cristianos, 2001, Parte I, questões 75 a 102.
1237
“De uma do irmão Balthasar da Costa da India que escreveu a um padre da Companhia de Jesus em
Portugal a 16 de novembro de 1560”, in António Pereira de PAIVA E PONA, op. cit., p. 50.
1238
Rosalind SHAW, “The Invention of ‘African Traditional Religion’”, in Religion (1990), 20, p. 343.
1239
“Carta (cópia) do Padre D. Gonçalo para os Padres e Irmãos do Colégio da Companhia de Jesus de
Goa”, (Moçambique, 9 de Agosto de 1560), in D.P.M.A.C., Vol. VII, (…), p. 502.
327
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
qual poderia ser edificado o conceito monoteísta do Deus cristão, eram assumidas nas
escritas missionárias como supostamente equivalentes.1240 No Tonge foi recolhida a ideia
africana da existência de um Criador, designado localmente por Umbe1241, significando
aquele que cria ou que molda. O conceito africano da existência de Muzimos ou Vadzimu
fora traduzida como equivalente à ideia de uma alma que vive depois da morte. A partir
de correspondências conceptuais como estas desenvolvia-se a acção catequética.
O entusiasmo colectivo que a chegada dos padres da Companhia de Jesus possa
ter suscitado nas chefaturas próximas a Inhambane, traduzindo-se num elevado número
de baptismos, não significa que tenha ocorrido uma aculturação das populações ou
qualquer tipo de mudança substancial na cosmovisão dos povos locais. O ritual do
baptismo não significava a adesão em exclusivo ao culto do Deus cristão, que os
missionários apresentavam como o criador de todas as coisas, e a Nossa Senhora, cujas
imagens suscitavam apreço na comunidade.
Com base numa percepção simplificadora do substrato espiritual africano
pensavam os padres imprimir a fé católica na base do monoteísmo e da doutrina da
Salvação, mas a verdade é que a presença dos padres jesuítas nestas terras em nada abalou
as concepções epistemológicas e ontológicas africanas. Através do ritual do baptismo, o
culto cristão fora aceite pelas populações, não em oposição ou por afastamento
relativamente às práticas religiosas tradicionais, mas antes pela integração dos novos
símbolos na cosmovisão africana. A este respeito consideremos que o entendimento
cristão da água purificadora do baptismo teria outros significados e entendimentos no
mundo africano, podendo mesmo participar de uma ontologia do sagrado, sem qualquer
correspondência com as categorias tipológicas da religião cristã, pois cursos de água,
lagos, mares e chuva estavam impregnados da força da vida.
Quanto à importância da imagem para as comunidades africanas, parece estar
patente no apreço que as mulheres do Tonge tinham pelas representações de Nossa
1240
Rosalind SHAW, op. cit., p. 344.
1241
Na língua Tsonga “Mumbi” significa o criador, aquele que molda, que tanto pode ser o barro, como
pode ser o acto criador divino. http://www.xitsonga.org/dictionary/xitsonga?_=mumbi (Consultado em
15/06/2027)
“Umbe”, a palavra grafada pelos padres nesta missão, tem origem neste vocábulo Tsonga, mostrando que
no âmbito religioso prevalecia a linguagem ancestral, prévia ao estabelecimento de chefaturas Caranga na
região de Inhambane.
328
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1242
“Carta (copia) do Padre Andre Fernandes para o Padre Provincial da Companhia de Jesus da Índia”
(Tonge, 24 de junho de 1560), in D.P.M.A.C., Vol. VII, (…), p. 470. “Carta (copia) do Padre Andre
Fernandes para o Irmão Luis Fróis” (Tonge, 25 de Junho de 1560), ibidem, p. 482.
1243
IDEM, ibidem.
1244
Vítor SERRÃO, “Poder de convencimento e narração imagética na pintura portuguesa da contra-
reforma”, in Cultura. Revista de História e Teoria das Ideias, Vol. 21, 2005.
http://journals.openedition.org/cultura/2951 (Consultado a 26/03/2020)
1245
Ronnie Po-Chia HSIA, The World of Catholic Renewal 1540-1770, New York - Cambridge, Cambridge
University Press, 2005, p. 182.
329
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
descansava tirou da manga do seu hábito um breviário, gesto que atraiu muita gente à sua
volta que “embibidos e maravilhados olhavão para elle” e, ao folhear o pequeno livro, o
espanto das gentes locais aumentou, como se o tivessem por “cousa viva”.1246
A captação discursiva deste momento direcciona-nos a atenção para o breviário
na óptica africana. Era tal a convicção das gentes de que o livro de orações estava imbuído
de força mística, que um nganga local, referido pelos missionários como “feiticeiro”, lhe
“dava pelo breviário um escravo”.1247 Os missionários cristãos aplicavam a categoria de
“feiticeiro” à pessoa da comunidade africana que tinha por missão uma variedade de
atividades, incluindo a preparação e administração de ervas medicinais, a adivinhação ou
diagnóstico, os rituais de cura, a detecção de actos de bruxaria com o objectivo da sua
erradicação, acrescentando-se ainda acções de manipulação das forças da natureza, como
fazer a chuva ou buscar apoio mágico para a agricultura, a caça, a pesca e o comércio. 1248
Não se encontrando na sociedade de origem dos missionários qualquer tipo de
correspondência com as funções diagnósticas, terapêuticas e profiláticas, de natureza
mística do nganga, estes foram percepcionados e enquadrados no âmbito da categoria
marginal da “feitiçaria”, como prática associada à manipulação de forças sobrenaturais.
Curiosa foi a atracção do nganga pelo pequeno livro, mostrando existir a possibilidade
de sentidos justapostos no mesmo objeto, envolvendo ritos, orações, palavras e
invocações.
O padre, que protagonizava rituais como o baptismo e usava a palavra, era visto
como investido de poderes místicos. André Fernandes escreveu, aquando do seu regresso
a Goa, que no tempo em que “era tido por mais sabedor feiticeiro e mór que entre eles
havia” obrigou o rei africano a dizer que não era ele quem dava a chuva, pensando o
próprio rei que o padre sabia de tudo através dos seus poderes de grande feiticeiro 1249,
pois como refere, ao “vêr-me a mim tam branco julgavam ser eu de muitos anos e viver
1246
“Carta (cópia) do padre André Fernandes para os Irmãos do Colégio da Companhia de Jesus de Goa”
(Tonge, 26 de Junho de 1560), in D.P.M.A.C., Vol. VII, (…), p. 492.
1247
“Carta de André Fernandes a 5 de dezembro de Goa de 1562 para os charissimos em Christo irmãos e
padres da Companhia de Jesus em Portugal”, in António Pereira de PAIVA E PONA, op. cit., p. 88.
1248
Matthew SCHOFFELEERS, “Christ in African Folk Theology: the Nganga Paradigm”, in Thomas D.
BLAKELY, Walter E. A. Van BEEK, Dennis L. THOMSON (Editors), Religion in Africa: experience &
expression, London, New Hempshire, James Currey, Heinemann, 1994, p. 75.
1249
“Carta de André Fernandes a 5 de dezembro de Goa de 1562 para os charissimos em Christo irmãos e
padres da Companhia de Jesus em Portugal”, in António Pereira de PAIVA E PONA, op. cit., p. 87.
330
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
por feitiços e conservar as forças de os poder aturar ainda aos mais mancebos caminhando
todo o dia quando eram assaz grandes calmas”.1250
O Padre André Fernandes revela-nos que as comunidades de Inhambane o
reconheceram e respeitaram como detentor de poderes espirituais, como um líder
religioso ou nganga. Além de líder religioso, o padre era um ancião com “muitos anos”,
estando próximo dos ancestrais, venerados pela sabedoria e moral, era “branco”, da cor
dos espíritos, tendo chegado àquelas terras vindo do mar, espaço que para muitas
sociedades era associado a uma grande morada dos mortos.1251 A descrição do padre
André Fernandes leva-nos a considerar que este terá sido interpretado na comunidade de
Inhambane a partir do “paradigma do nganga”, pois surgia como um intermediário entre
o mundo dos humanos e o mundo do Criador, além de se afirmar como um tradutor da
mensagem da “Salvação” que seria recepcionada localmente, não na perspectiva bíblica,
mas na dimensão da “cura”. Muito provavelmente, ao pregar a doutrina da “Salvação”, o
padre, ou o intérprete que o assistiu, terá usado o vocabulário do nganga, de forma a se
tornar perceptível às populações locais. Ainda que não tenhamos dados sobre o
vocabulário africano usado na pregação (e sobre essa questão as cartas não nos dão
respostas), a declaração do Padre André Fernandes mostra que a percepção local da
mensagem veiculada pelo sacerdote também passava por processos de “tradução” e, nesse
sentido, iria ao encontro do “paradigma nganga”, tão tangível e presente nas práticas
religiosas locais.1252 Para o contexto do Kongo, Carlos Almeida refere o exemplo do
Padre Pedro Tavares, que era interpretado localmente como um nganga com “poderes
particularmente eficazes de intermediação com o mundo dos espíritos”. Esta dimensão
dos padres como ngangas foi reforçada aquando da investidura de um Mwene Kongo, que
se fez conduzir ao trono acompanhado por um padre, à sua direita, e pelo kitome de
Mbanza Kongo, à sua esquerda, desempenhando os padres a função de ngangas do novo
culto que participava de uma dupla dimensão.1253
Sobre a problemática da comunicação da mensagem evangélica para as línguas
africanas e da possibilidade dos significados não encontrarem coerência nos diferentes
1250
IDEM, ibidem, p. 88.
1251
William G. L. RANDLES, L’Empire du Monomotapa du XVe au XIXe Siècle, (…), p. 103.
1252
Matthew SCHOFFELEERS, op. cit., p. 86.
1253
Carlos ALMEIDA, Uma infelicidade feliz. A imagem de África e dos Africanos na Literatura
Missionária sobre o Kongo e a região mbundu (meados do séc. XVI ao primeiro quartel do séc. XVIII),
(…), p. 680 e pp. 142-143.
331
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1254
B. A. – Cod. 49-V-18, “Arte da Língua de Cafre”, fls 201-223.
1255
Segundo Gonçalo Fernandes, este manuscrito pertence à coleção “Jesuítas na Ásia” da série “Província
da China”, integrando uma colecção constituída por 61 volumes que foram copiados entre 1744 e 1746, por
João Alvares, por ordem do Provincial de Japão Domingos de Britto, a partir de documentos existentes no
arquivo dos Jesuítas do Colégio da Madre de Deus, em Macau. Veja-se sobre este assunto: Gonçalo
FERNANDES, “Primeiras descrições das línguas africanas em língua portuguesa”, in Confluência, Rio de
Janeiro, Nº 49, 2.º semestre de 2015, p. 53. Veja-se ainda: Gonçalo FERNANDES, “Missionary and
Subsequent Traditions in Africa”, in Cambridge World History of Lexicography, ed. by John CONSIDINE,
Cambridge, 2019, Cambridge University Press, pp. 658-681.
1256
B. A. – Cod. 49-V-18, “Arte da Língua de Cafre”, fl. 213.
332
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1257
A expressão “polícia”, enraíza no grego politeia, que significa, “qualidade e direitos de cidadão, género
de vida de cidadão” e, mais directamente, no sentido latino politia, para significar “organização política,
governo”. Veja-se José Pedro MACHADO, op. cit., Vol. IV, (…), p. 392. Com este sentido etimológico,
“sociedades polidas” eram as que correspondiam ao paradigma europeu cristão da época renascentista.
Perante cenários de diferenciação cultural, os missionários classificavam as sociedades de acordo com uma
escala de referência na qual a “gente de polícia” / “sociedades polidas” correspondiam à própria identidade
europeia e cristã, associada a um conjunto de virtudes morais, religião, estruturação política e hábitos de
civilidade social e urbana. Num plano divergente eram considerados os povos “bárbaros” e os “gentios”
que, nas palavras de Carlos Almeida, se regiam por “hábitos e regras de vida social impróprios”,
participando toda esta categorização de um “sistema epistemológico construído na base da similitude e
analogia”. Veja-se Carlos ALMEIDA, Uma infelicidade feliz. A imagem de África e dos Africanos na
Literatura Missionária sobre o Kongo e a região mbundu (meados do séc. XVI ao primeiro quartel do séc.
XVIII), (…), ps. 42-43, 82,407 e 710.
1258
Vitorino Magalhães GODINHO, “Entre Mito e Utopia: os Descobrimentos, construção do espaço e
invenção da Humanidade nos séculos XV e XVI”, in Revista de História Económica e Social, Nº 12,
Julho-Dezembro 1983, p. 17.
1259
Fr. Ioannes Fernandes S. I. Ex Comm. P. Jacobo Lainez, Praep. Gen. S. I., Romam, (Lisboa 22 Setembro
1561), in Josef WICKI e John GOMES, Documenta Indica, Vol. V, (…), pp. 189-190.
333
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1260
P. L. Frois S. I. Ex Comm. Sociis Europaeis, (Goa 15 Dezembro 1561), in Josef WICKI e John GOMES,
Documenta Indica, Vol. V, (…), p. 338.
1261
IDEM, ibidem, p. 339.
1262
IDEM, ibidem.
1263
IDEM, ibidem, p. 340.
1264
Bernardo de CIENFUEGOS, Vida del Bienaventurado Padre Gonzalo de Sylveira, Sacerdote de la
Companhia de Iesus, martirizado en Monomotapa, Ciudad en la Cafraria. Traducida de Latine n
Castellano por Bernardo de Cienfuegos, Madrid, por Luíz Sanchez impressor del Rey, 1614, ps. 59 vo e
63.
334
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1265
Gai ROUFE, “Local Perceptions of Political Entities along the Southern Bank of the Zambesi in the
16th and Early 17th Centuries”, in International Journal of African Historical Studies, Vol. 49, No. 1
(2016), p. 71.
1266
P. L. Frois S. I. Ex Comm. Sociis Europaeis, (Goa 15 Dezembro 1561), in Josef WICKI e John GOMES,
Documenta Indica, Vol. V, (…), p. 340.
1267
S. I. G. MUDENGE, op. cit., p.63.
1268
P. L. Frois S. I. Ex Comm. Sociis Europaeis, (Goa 15 Dezembro 1561), in Josef WICKI e John GOMES,
Documenta Indica, Vol. V, (…), pp. 341-342.
335
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
baptizados mais alguns trezentos “dos principaes senhores e cabeças do reino”. 1269
Durante algum tempo, o padre Gonçalo da Silveira gozou de proeminência espiritual na
Corte do Mutapa que, como refere a carta de Luís Fróis, a “gente nobre e plebeia toda se
queria fazer cristãa”.1270 Porém, em meados de março, António Caiado recebia a notícia
de que o soberano decretara a sentença de morte a Gonçalo da Silveira. Dada a sua posição
influente na Corte, Caiado intercedeu no sentido de se fazer revogar a sentença, porém
sem sucesso pois, como afirma, “não aproveitou pelas cousas que os mouros já tinham
metidas em cabeça ao rei”.1271
Na noite de 15 para 16 de março de 15611272 o Padre foi morto por
estrangulamento às ordens do soberano, tendo a execução observado alguns preceitos
rituais descritos por Luís Frois, com base nas informações que lhe chegaram de António
Caiado, cujos criados assistiram a tudo, escondidos no mato.1273
O documento escrito mais próximo do acontecimento foi uma carta de António
Caiado para Gaspar Gonçalves, um mercador português que também vivia nas
imediações.1274 Nesta carta, escrita no Monomotapa, em 22 de Março de 1561, ficaram
registadas as acusações de que o Padre foi alvo na Corte do Mutapa, bem como as
percepções e informações que Caiado recolheu localmente sobre a morte do missionário.
Em Goa, o padre Provincial António Quadros mandou coligir todas as informações
daqueles que acompanharam Gonçalo da Silveira e que com ele estiveram nas terras do
Planalto. Tal colacção de dados ficou patente numa carta do Padre Luís Fróis, datada de
15 de Dezembro de 1561, sobre o “felice transito e bem-aventurado fim do nosso
1269
IDEM, ibidem, p. 342.
1270
IDEM, ibidem.
1271
“Carta de António Caiado ao amigo Gaspar Gonçalves”, (Monomotapa, 22 Março 1561), in Josef
WICKI e John GOMES, Documenta Indica, Vol. V, (…), p. 126.
1272
António Caiado menciona que o padre foi morto “sábado antes da dominga de Suzana”, referindo-se
ao Sábado depois do terceiro Domingo da Quaresma, em que na missa se lia a Epístola que narrava o
episódio de Susana, acusada falsamente pelos dois velhos, e não à festa de Santa Susana, virgem e mártir,
que era assinalado a 11 de Agosto. Francisco CORREIA S.J., O Venerável Padre Gonçalo da Silveira.
Proto-mártir da África Austral (1521-1561), Braga, Editorial Apostolado da Oração, 2006, p. 59.
1273
P. L. FROIS S. I. Ex Comm. Sociis Europaeis, (Goa 15 Dezembro 1561), in Josef WICKI e John
GOMES, Documenta Indica, Vol. V, (…), p. 335.
1274
“Antonius Caiado [Gaspari Gonçalves] Amico”, in Josef WICKI e John GOMES, Documenta Indica,
Vol. V, (…), pp. 125-129. “Carta (cópia) de António Caiado pra um Amigo”, in D.P.M.A.C., Vol. VIII,
(…), pp. 2-9. “Carta que um portuguez por nome Antonio Caiado escreveu de Manamotapa a outro seu
amigo que estava em outro logar da mesma terra sobre a morte de D. Gonçalo”, in IDEM, ibidem, pp. 70-
73.
336
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
charissimo Padre Dom Gonçalo”.1275 Este documento constitui-se como uma recriação
do percurso do missionário, desde que saiu de Inhambane até aos domínios do Mutapa,
realçando a sua obra espiritual, que culminara com a conversão do soberano e sua mãe, e
o ponto de viragem neste percurso, assinalado pela suposta conjura dos “emgangas
mouros”, que “com toda sua perversa sagacidade” e “veneno diabólico” semearam a
discórdia no coração do rei, ao ponto deste rei determinar a sua execução.1276
A designação de “emgangas mouros”, usada logo na primeira carta de António
Caiado, conjuga a imagem do mouro, enquanto adversário religioso de longa duração,
com a do emganga, traduzido como feiticeiro, o que resulta na representação de um
oposto absoluto e inconciliável.
Neste plano discursivo, que enfatiza o fervor místico e missionário católico por
oposição à heresia e às superstições, os “emgangas mouros” são erigidos em actores
sociais ligados ao “diabo”, à feitiçaria e à oposição ideológica, convocando estereótipos
de longa duração enraizados no imaginário cristão. Por um lado, o termo “mouros” remete
para um lastro histórico de oposição religiosa, militar e comercial, com raízes medievais
peninsulares, vindo a revelar uma intensa plasticidade no que se refere ao seu uso para
categorizar os habitantes do espaço africano, fossem estes praticantes do Islamismo, ou
não.1277 Por outro lado, a percepção do emganga como feiticeiro remetia para uma
categoria de inimigos da fé, perseguidos e condenados no mundo católico por se
considerarem pactuar com o diabo, operando todo o tipo de manipulações com entidades
ocultas.
As narrativas patentes nas primeiras cartas jesuítas, posteriores à morte do Padre
Gonçalo da Silveira, e as interpretações a que deram lugar, criaram as bases para uma
mitificação do acontecimento, entendido como acto sacrificial de um raro “semeador do
Evangelho”1278, em paralelo com a demonização dos responsáveis pela sua execução.
A missão de Inhambane ressentiu-se com a morte de Gonçalo da Silveira, pois
como diria o padre Baltasar da Costa, em carta para os irmãos da Companhia na Europa,
1275
P. L. FROIS S. I. Ex Comm. Sociis Europaeis (Goa 15 Dezembro 1561), in Josef WICKI e John
GOMES, Documenta Indica, Vol. V, (…), pp. 333-349.
1276
IDEM, ibidem, p. 343.
1277
Josiah BLACKMORE, Moorings. Portuguese Expansion and the Writing of Africa, (…), p. 31.
1278
Bartolomeu GUERREIRO, Gloriosa Coroa d’ Esforçados Religiosos da Companhia de Iesu Mortos
Polla Fe Catholica nas Conquistas dos Reynos da Coroa de Portugal, Lisboa, Por Antonio Alvarez, 1642,
p. 214.
337
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
“embrulhou o Demonio esta coussa de maneira que não ouve efeito donde os padres se
tornarão com tanto desguosto quanto charissimos podeis entender por ver impedir o fruito
que se sperava”.1279 Em 1562, André Fernandes regressava a Goa e terminava a missão
de Inhambane. O que no início eram esperanças e possibilidades de evangelização de uma
“pura gentilidade”, com o tempo transformava-se em dificuldade, impedimento e
desilusão. O Padre André Fernandes atribuía à solidão em que laborava a falência de uma
obra tão vasta como a Missão da África Oriental a partir de Inhambane:
“Estou aqui entre estes cafres. Doutrino-os e bautizo aos que me parece poderei ajudar,
ou não averão mester ajuda, como as crianças, etc. E mais bautizaria se quisesse, mas não
posso acudir a tantos, porque a messe hé grande e os obreirios poucos”. 1280
1279
“Excertos (copia) da Carta do Padre Baltasar para os Padres e Irmãos da Companhia de Jesus na Europa”
(4 Dezembro 1562), in D.P.M.A.C., Vol. VIII, (…), p. 114.
1280
“Doutras do mesmo Padre [André Fernandes] pera alguns Irmãos de Portugal, do mesmo tempo”
[Tonge, 3 Junho de 1561], in Documenta Indica, Vol. V, (…), pp. 149-150.
1281
“Carta (copia) do Padre Andre Fernandes para o Padre Provincial da Companhia de Jesus da Índia”
(Tonge, 24 de junho de 1560), in D.P.M.A.C., Vol. VII, (…), p. 470.
1282
“Doutra sua [André Fernandes] pera o Irmão Gaspar italo, em Portugal” [Tonge, 3 de Junho. 1561]”,
in Joseph WICKI e John GOMES, in Documenta Indica, Vol. V, (…), pp. 148-149.
338
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1283
Mogobe RAMOSE, “The earth «mother» metaphor: an African perspective”, in Fons ELDERS
(Editor), Visions of Nature: Studies on the Theory of Gaia and Culture in Ancient and Modern Times,
Brussels, VUB Brussels University Press, 2004, p. 205.
1284
Thomas D. BLAKELY, Walter E. A. VAN BEEK e Dennis L. THOMSON (Editors), op. cit., p. 1
1285
IDEM, ibidem, p. 1.
1286
IDEM, ibidem, p. 2.
339
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
or unconditional reverence toward that which is taken to be the determiner of that destiny,
whether it be an intelligent being or an aspect of reality.”1287
1287
Kwasi WIREDU, op. cit., p. 35.
340
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1288
“Carta (cópia) do Padre D. Gonçalo de Moçambique aos Padres e irmãos do Colégio da Companhia de
Jesus de Goa”, (9 de Agosto de 1560), in D.P.M.A.C., Vol. VII, (…), p. 504.
1289
Canisius MWANDAYI, “Death and After-life Rituals in the eyes of the Shona. Dialogue with Shona
Customs in the Quest for Authentic Inculturation”, in Bible in African Studies, Joachim KUGLËR,
Lovemore TOGARASEI, Masiiwa Ragies GUNDA e Eric Souga ONOMO (Editors), Vol. 6, Bamberg,
University of Bamberg Press, 2011, p. 218.
341
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Inhambane e referiu a existência de uma crença absoluta de que as almas dos antepassados
faziam as suas justiças nos vivos, levando-os muitas vezes a morrer.1290 Estamos perante
uma percepção do princípio africano de que a morte era sempre provocada por algum
feitiço, por desaprovação espiritual dos antepassados ou por um espírito vingativo. 1291
Daí que a morte fosse considerada uma transição envolvendo muitos perigos, o que
justificava contínuos rituais, desde o enterro, aos rituais de limpeza e purificação, de
trazer o espírito de volta, da herança, da honra e do apaziguamento, vistos pelo
missionário como de difícil compatibilidade com o Cristianismo.
Quanto a algumas práticas mortuárias, o Padre Gonçalo da Silveira havia
expressado não entender o hábito de deixarem a casa do morto ou mudarem de aldeia
quando um chefe morria e espanta-se com certas leis baseadas no costume, como a que
estipulava que, morrendo algum homem sem filho, o irmão do defunto tomava a mulher
por sua.1292
De facto, se de acordo com as conceções locais havia a probabilidade da morte ser
provocada por feitiços ou medicinas nefastas, isso fazia com que os familiares movessem
os seus doentes para um lugar isolado fora de sua casa (kusengudza), de modo que o seu
espírito não pudesse ser localizado pelos poderes maléficos. Quando a morte ocorria na
casa da pessoa doente, os perigos associados aos supostos feitiços tinham o poder de
infectar a família, daí o costume destes se mudarem para outra casa ou para outra aldeia,
caso se tratasse da morte de um chefe.1293
Quanto ao referido costume pos mortem em que o irmão do defunto tomava a
viúva por sua esposa, poderá relacionar-se com a lobola, ou seja, a entrega de um presente
em bens, pela família do noivo à família da noiva, na altura em que era negociado o
casamento.1294 Esses bens eram normalmente em gado, mas nas zonas costeiras mais
1290
“P. Andreas Fernandes S. I. Ex Comm. Sociis Lusitanis”, in Josef WICKI e John GOMES, Documenta
Indica, Vol. V, (…), pp. 642-643. “Carta de André Fernandes a 5 de dezembro de Goa de 1562 para os
charissimos em Christo irmãos e padres da Companhia de Jesus em Portugal”, in António Pereira de PAIVA
E PONA, op. cit., pp. 76-91.
1291
Canisius MWANDAYI, op. cit., p. 200.
1292
“Carta (cópia) do Padre D. Gonçalo para os Padres e Irmãos do Colégios da Companhia de Jesus de
Goa” (Moçambique, 9 de Agosto de 1560), in D.P.M.A.C., Vol. VII, (…), pp. 502-504.
1293
Canisius MWANDAYI, op. cit., p. 200.
1294
Wiliam David HAMMOND-TOOKE, The Nature and Significance of Bride Wealth Among the South
African Bantu, Thesis submitted in partial fulfilment of the requirements for the Degree of Master of Arts
(Anthropology), University of Cape Town, 1948.
342
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
infestadas pela mosca tsé-tsé, seriam enxadas, esteiras e objetos de cestaria.1295 Dado que
o investimento no lobola era feito com a colaboração dos outros homens da família,
traduzindo-se num vínculo entre as linhagens, poderá o testemunho do Padre André
Fernandes referir-se ao costume que alocava à linhagem do noivo o valor oferecido, o
que, em caso de seu falecimento, poderia colocar um irmão ou outro familiar masculino
em posição de assegurar a continuidade da união.1296 O estudo feito por Hammond-Tooke
sobre a instituição lobola identifica a referida prática entre os Tsonga. Sobre a persistência
do vínculo entre as linhagens, refere o antropólogo: “The man’s group has paid for the
person of the female who becomes part of the group. Death of a husband does not end the
membership of the husband’s group”.1297
Aos costumes que envolviam a lobola acrescia a ética instituída entre as
populações locais de um homem cuidar de uma mulher viúva e dos filhos de um irmão
falecido, princípio este ainda hoje considerado entre comunidades Shona.1298
Os padres da primeira missão da Cafraria constatavam que o baptismo das
comunidades de Inhambane não tinha conduzido a modificações de comportamento
colectivo, nomeadamente na questão da poligamia, vista como de difícil conciliação com
as normas da moral católica, que desejavam implementar nas comunidades cristianizadas.
Além dos sistemas de parentesco não terem sofrido alterações, também muitas
manifestações da religião africana, integrantes de um sistema cosmológico holístico e
complexo, continuaram a dar sentido à vida das comunidades, mesmo com a introdução
de símbolos e rituais cristãos que passaram a coexistir em justaposição com as
simbologias autóctones.
Tanto a referida carta de Gonçalo da Silveira, como os testemunhos escritos do
Padre André Fernandes consideravam as vivências africanas demasiado divergentes do
ponto de vista social e espiritual, encaixando-as numa escala de classificação cristã
ocidental com raízes muito profundas no tempo e remetendo-as para as categorias
menores e marginais da idolatria e da superstição.
1295
IDEM, ibidem, p. 67.
1296
IDEM, ibidem, p. 70.
1297
IDEM, ibidem, p. 74
1298
Paradzayi David MUBVUMBI, Christianity and Traditional Religions of Zimbabwe: Contrasts and
Similarities, 2nd edition, Bloomington, WestBow Press, 2016, Location 471.
https://read.amazon.com/ref=kcr_app_surl_cloudreader (Consultado em 02/06/2020).
343
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1299
Matthew SCHOFFELEERS, op. cit., p. 79.
1300
IDEM, ibidem, pp. 78-79.
1301
“Carta de André Fernandes a 5 de dezembro de Goa de 1562 para os charissimos em Christo irmãos e
padres da Companhia de Jesus em Portugal”, in António Pereira de PAIVA E PONA, op. cit., pp. 84-85.
344
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
esta tradição e outras leis afins que, segundo o documento, “antigamente erão praticadas
à risca”.1302 O registo de informações acerca de tradições judiciais, tão opostas à noção
de prova factual e racional e ao princípio herdado do Direito Romano “quod non est in
actis non est in mundo”,1303 terá contribuído para uma imagem de justiça exercida por
forças divinatórias e para a consolidação de estereótipos desfavoráveis, de acordo com os
quais a regulação da sociedade estava dependente de crenças mágico-religiosas e
superstições.
André Fernandes condena ainda os juramentos tradicionais, que se faziam
assoprando nos rostos uns dos outros e não por Deus e a prática de beberem demais, entre
outras manifestações locais da cultura e religião que o missionário solitário naquele vasto
espaço de pregação via como adversas e intransponíveis.
Fraco e doente, André Fernandes regressa a Goa na nau Rainha, a 6 de agosto de
15621304, tendo chegado “tão magro e desfeito das muitas fomes e trabalhos que passou
que quassi de todos os sentidos carecia”.1305 Finda a missão no Tonge, André Fernandes
expressava a sua contradição face ao que outrora o tinha animado para esta obra de
evangelização na Cafraria:
“(…) entre elles todo o impossível se crê e o arrezoado se arrenega”.
“(…) quasi nenhuma coisa fazem sem superstição e as mais d’ellas pestiferas que não se
podem trazer à memoria sem muitro grande fastio”.
Falam, ora por “si, ora pelo demonio que se acommoda a suas compreições e rudezas”.
“(…) crerem as impossibilidades e mentiras (…), e fazerem tão pouco caso das que sam
conformes a toda a razão.”
“(…) dizem que não ha Deus nem paraizo nem inferno nem obras más nem boas, mas
que tudo é indiferente, nem teem alma somente a vida que depois que não fica nada
d’elles”.
São “totalmente indómitos e indisciplinados”.1306
1302
Gerhard LIESEGANG (introd. E notas), “Reposta das Questoens sobre os Cafres” ou Notícias
Etnográficas sobre Sofala do fim do Século XVIII, Lisboa, Centro de Estudos de Antropologia Cultural -
Junta de Investigações do Ultramar, 1966, pp. 19-21.
1303
“O que não está nos autos não está no mundo”.
1304
“Copia de huma do Irmão Antonio Fernãodez pera os padres e irmãos da Companhia de Jesus de
Coimbra. De Goa 15 de Setembro 1562”, in D.P.M.A.C., Vol. VIII, (…), p. 94.
1305
“Excertos (copia) da Carta do Padre Baltasar para os Padres e Irmãos da Companhia de Jesus na Europa”
(4 Dezembro 1562), in D.P.M.A.C., Vol. VIII, (…), p. 116.
1306
“Carta de André Fernandes a 5 de dezembro de Goa de 1562 para os charissimos em Christo irmãos e
padres da Companhia de Jesus em Portugal”, in António Pereira de PAIVA E PONA, op. cit., pp. 84-87.
345
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
346
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
religiosa o que, dado o contexto da acção missionária, terá contribuído para reforçar o
ideário de martírio.
Uma das fontes do padre Luís Fróis foi a carta de António Caiado para Gaspar
Gonçalves, ambos portugueses residentes nas terras do Mutapa. 1307 Essa carta menciona
terem sido os “engangas mouros” que aconselharam o soberano e sua mãe a aniquilar o
padre. Os ngangas eram os consultores espirituais que, entre outras incumbências, tinham
a responsabilidade de promover a prosperidade de uma comunidade, detectar quaisquer
tipos de infortúnio, bem como erradicar as ameaças e denunciar a feitiçaria.1308 Chegaram
informações a António Caiado de que os ngangas, através dos seus poderes de
adivinhação, haviam identificado Gonçalo da Silveira como um feiticeiro traidor (moró)
e um espião enviado pelos portugueses para preparar a tomada do poder naquele estado
africano, colocando em perigo o Mutapa e fragilizando toda a comunidade com ameaças
de fome e de sede. É provável que os ngangas a que se refere António Caiado tenham
consultado, através do espírito do mhondoro real, os riscos que poderiam estar envolvidos
na recepção do Padre Gonçalo da Silveira, como líder espiritual estrangeiro. Quando o
médium e consultor espiritual do rei entrava em transe mediúnico, através do qual se
considerava receber inspiração sobrenatural, respondia a todo o tipo de questões relativas
a paz e guerra, chuva e fome, disputas de sucessão, entre outras questões de poder e de
religião.1309 As respostas chegadas através do espírito mhondoro foram desfavoráveis ao
padre cristão, pois foi considerado que “trazia o sol e a fome, e hum osso de finado e
outras muitas mezinhas pera tomar esta terra e matar a el-rei”.1310 De acordo com as
revelações dos ngangas, a água que o padre vertera sobre as cabeças durante as
cerimónias baptismais, juntamente com as palavras pronunciadas, incompreensíveis aos
conversos, eram os elementos centrais de uma manipulação mágica, de destino trágico
para o Mutapa, pois que a sua terra seria tomada, como fora Sofala. Ora, o apuramento,
pelo nganga, deste tipo de ameaça implicava a sua necessária erradicação, o que se fez
prestes mediante a ordem do rei e morte consumada do padre.
1307
“Carta de António Caiado ao amigo Gaspar Gonçalves”, (Monomotapa, 22 Março 1561), in Documenta
Indica, Vol. V, (…), pp. 125-129.
1308
Matthew SCHOFFELEERS, op. cit., pp. 75-76.
1309
S.I.G. MUDENGE, op. cit., pp. 121-125.
1310
“Carta de António Caiado ao amigo Gaspar Gonçalves”, in Documenta Indica, Vol. V, (…), p. 127.
347
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1311
IDEM, ibidem, p. 129.
1312
Balthazar TELLES, Chronica da Companhia de Iesu, na provincia de Portugal: e do que fizeram, nas
conquistas d'este reyno, os religiosos, que na mesma provincia entràram, nos annos em que viveo S. Ignacio
de Loyola, nosso fundador, parte 2, Liv. 4, capítulo 38, Lisboa, por Paulo Craesbeeck, 1645, p. 165.
Francisco de SOUSA, Oriente conquistado a Jesu Christo pelos padres da Companhia de Jesus da
Provincia de Goa: primeyra parte, na qual se contèm os primeyros vinte, [e] dous annos desta provincia,
Volume I, Lisboa, Na Officina de Valentim da Costa Deslandes, 1710, p. 865.
1313
Collis Garikai MACHOKO, “Water Spirits and the Conservation of the Natural Environment: a case
study from Zimbabwe”, in International Journal of Sociology and Anthropology, Vol. 5, Nº 8 (Nov. 2013),
p. 288. http://www.academicjournals.org/IJSA (Consultado em 02/06/2020)
1314
Canisius MWANDAYI, op. cit., p. 63.
1315
Gai ROUFE, “The Reasons for a Murder. Local Cultural Conceptualizations of the Martyrdom of
Gonçalo da Silveira in 1561”, in Cahiers d'études africaines, 2015/3 (N° 219), pp. 467-488.
1316
IDEM, ibidem, pp. 472-473 e p. 482.
1317
Marthinus Louis DANEEL, The God of the Matopo Hills. An Essay of the Mwari Cult in Rhodesia,
Leiden, Afrika Studiecentrum, 1970, p. 16.
1318
S.I.G. MUDENGE, op. cit., p. 41
348
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
que fingia ser imperador e que, ao falhar nos seus propósitos, se sacrificou afogando-se
num lago.1319 Uma outra versão sobre a morte ritual por afogamento relaciona-se com a
oposição que as forças militares ao serviço da princesa Chicara fez às forças do fundador
do império, Matope. Estando o exército de Chicara em vantagem, Matope mandou
capturar um dos indivíduos locais de nome Chikuma, que revelou o segredo mágico das
forças de Chicara. Traída e derrotada, teria fugido na direcção do lago Nyamakate, o
santuário de Dzivaguru, onde se fez afogar com os seus filhos.1320
O ritual da morte do Padre Gonçalo da Silveira relaciona-se com a história de
Chicara, nomeadamente a morte por afogamento, consumada de acordo com o ritual de
estrangulamento de um traidor, como o que era imposto a um imperador derrotado na
guerra, e o seu lançamento num grande lago.1321 Segundo Gai Roufe, depois da morte do
Padre Gonçalo da Silveira não terão existido repercussões para os portugueses nas terras
do Mutapa, sugerindo que, na percepção local, o acto não estava associado aos
portugueses enquanto grupo.1322
Se a reconstrução operada recentemente por este historiador permite lançar uma
nova luz sobre as complexas razões que naquela sociedade africana suscitaram a morte
do Padre Gonçalo da Silveira, a verdade é que nos meios missionários portugueses e
europeus tal acontecimento abria caminho à construção da imagem do herói mártir cristão
na Cafraria.
Após a morte de Gonçalo da Silveira é quase imediata a generalização da ideia de
martírio e santidade do padre: “Cá na comum voz do povo é chamado e tido por santo e
martyr glorioso e em Moçambique lhe quizerão fazer os fidalgos uma solemne procissão
e vestirem-se de festa por seu bemaventurado fim”.1323 Luís Frois considerava que a obra
de evangelização da Cafraria tinha sido consolidada “sobre sangue derramado puramente
pela honra e gloria de Jesu Christo” e, tanto o provincial da Companhia de Jesus em Goa,
1319
Gai ROUFE, “The Reasons for a Murder. Local Cultural Conceptualizations of the Martyrdom of
Gonçalo da Silveira in 1561”, in op. cit., p. 482.
1320
S.I.G. MUDENGE, op. cit., pp. 41-42.
1321
Gai ROUFE, “The Reasons for a Murder. Local Cultural Conceptualizations of the Martyrdom of
Gonçalo da Silveira in 1561”, in op. cit., p. 482.
1322
IDEM, ibidem.
1323
“Carta do irmão Luiz Froes do Collegio de Goa de 15 de dezembro de 1561 para o irmão Bento Toscano
em Portugal recebida em agosto de 1562”, in António Pereira de PAIVA E PONA, op. cit., p. 54.
349
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
como o vice-rei da Índia mostravam “grande vontade e alvoroço esperando a monção para
mandar alguns padres e irmãos aquelle imperio e monarchia tam grande”.1324
A aura de santidade que envolvia Gonçalo da Silveira construiu-se em Portugal e
outras Províncias da Companhia de Jesus na Europa, no âmbito da tendência teológica
para a santificação da acção missionária através da busca de uma semelhança com Cristo,
nomeadamente pelo ideário do sacrifício e do sangue derramado.1325
Em 1612, o jesuíta Nicolau Godinho publicava em Lion a obra Vita Patris Gonzali
Sylveriae, Societatis Jesu sacerdotis…, biografia em latim de Gonçalo da Silveira e a
primeira representação impressa do seu martírio.1326 Em 1614 saía em Madrid a tradução
castelhana desta obra, pelo jesuíta Bernardo de Cienfuegos; no mesmo ano, em Augsburg,
era publicada uma tradução alemã, pelo padre João Volckio Bavaro e, em 1615, era
impressa em Roma uma versão italiana, feita pelo padre Francisco Maria de Amatis.1327
Através da tradução castelhana, sabemos que Nicolau Godinho havia consultado
vasta documentação do arquivo do Colégio da Companhia de Jesus, em Coimbra, tendo
reunido testemunhos de portugueses, contemporâneos do sacerdote nas terras do Mutapa
que, regressados à Índia, aí partilharam as suas perceções dos acontecimentos.1328
Esta obra refere algumas lendas, que persistiram entre as populações do Zambeze,
como a que falava do apaziguamento dos crocodilos do rio Musengeze, depois que o
corpo do padre aí foi lançado.1329 Mathias Tanner, jesuíta da região da Boémia, que fora
reitor da Universidade de Praga, integrou no seu martirológio em latim a história de que
após a morte de Gonçalo da Silveira se ouvia falar de uma luz maravilhosa que brilhava
no local onde o corpo do padre foi afundado e que os crocodilos das águas do rio
Musengeze haviam perdido a sua selvajaria e ferocidade, não voltando a atacar mais
1324
“Carta que um portuguez por nome Antonio Caiado escreveu de Manamotapa a outro seu amigo que
estava em outro logar da mesma terra sobre a morte de D. Gonçalo”, in António Pereira de PAIVA E
PONA, op. cit., p. 70.
1325
Bartolomeu GUERREIRO, op. cit., Capítulo III.
1326
Nicolau GODINHO, Vita Patris Gonzali Sylveriae societatis Iesu sacerdotis in urbe Monomotapa
martyrium passi, Lion, par Horace Cardon, 1612. A obra é prefaciada por Claudio Acquaviva, Superior
Geral da Companhia de Jesus.
1327
Diogo Barbosa MACHADO, Bibliotheca Lusitana Historica, Critica, e Cronologica. Na qual se
comprehende a Noticia dos Authores Portuguezes, e das Obras, que compuseraõ desde o tempo da
promulgaçaõ da ley da Graça até o tempo prezente, Tomo III, Lisboa, Na Officina de Ignacio Rodrigues,
1752, p. 493-494.
1328
Bernardo de CIENFUEGOS, op. cit., pp. 45 e 64 vº.
1329
IDEM, ibidem, p. 69 vo.
350
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
nenhum homem.1330 Com estas obras, a aura de santidade de Gonçalo da Silveira vai
sendo nutrida pela convicção de que a memória do padre teria permanecido nas próprias
“terras da Mocaranga” e integrado lendas e tradições locais.
De entre as narrativas que se contavam, a mais prodigiosa foi a lenda recolhida pelo
Padre Afonso Leão de Barbudas, da Companhia de Jesus. Este padre foi enviado às terras
do Mutapa em 1625, na qualidade de secretário do vice-rei D. Luís de Ataíde, com a
incumbência de se certificar da recente descoberta das minas de prata de Chicova. 1331
Nesta expedição, redigiu um diário das coisas que considerou notáveis nas terras do
Mutapa onde, além do que levava por missão, registou tudo o que observou e inquiriu
sobre o padre Gonçalo da Silveira. Regressado a Portugal em 1627, Barbudas escreveu
uma carta ao Provincial Francisco de Gouveia na qual transcreve as suas anotações e
regista as suas lembranças. Baltazar Telles copiou “fielmente” 1332 para a sua Cronica da
Companhia de Iesu o conteúdo dessa carta:
“Relaçam, que o Lecenciado Affonfo Leàm de Barbuda deo ao Padre Francisco de
Gouvea da Companhia de IESV, do que achâra, & soubera da morte do Padre Gonçalo
da Sylveyra em Monomotapa”.1333
1330
Mathias TANNER, Societas Jesu usque ad sanguinis et vitae profusionem militans, in Europa, Africa,
Asia, et America, contra gentiles, Mahometanos, Judaeos, Haereticos, impios, pro Deo, fide, ecclesia,
pietate, Sive Vita, et mors eorum, qui ex Societate Jesu in causa fidei, & virtutis propugnatae, violenta
morte toto orbe sublati sunt, Praga, Typis Universitatis Carolo-Ferdinandeae, in collegio Societatis Jesu ad
S. Clementem, per Joannem Nicolaum Hampel Factorem, 1675, p. 162.
https://archive.org/details/societasjesuusqu00tann/page/162/mode/2up (consultado em 20/07/2020)
1331
Diogo Barbosa MACHADO, Bibliotheca Lusitana Historica, Critica, e Cronologica. Na qual se
comprehende a Noticia dos Authores Portuguezes, e das Obras, que compuseraõ desde o tempo da
promulgaçaõ da ley da Graça até o tempo prezente, Tomo I, Lisboa, Na Officina de Antonio Isidoro da
Fonseca, 1741, p. 38.
1332
Balthazar TELLES, op. cit., Parte 2, Liv. 4, Capítulo 38, p. 164.
1333
IDEM, ibidem, pp. 164-166.
1334
IDEM, ibidem, pp. 165-166.
351
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
padre Barbudas foi uma lenda transmitida por pescadores locais sobre um corpo
milagrosamente conservado:
“(…) chegando a hua paragem onde entestam dous rios, que apartam pera diversos
lugares opostos muyto hum do outro. No remanso que fazem a modo de enseada (como
he a do Alfeyte da banda de Almada) achey grande quantidade de Aves, e pássaros muyto
mayores que Perús, e Batardas, muy alvos das penas, (…) Muytas destas áves estavam
postas num pao muyto grosso de mais de doze varas de comprido, o qual era tam pesado,
e forte, que parecia de ferro. Este pao estava junto a hum grande, e espesso arvoredo, e
brenha muy alta. Quis saber mais especificadamente do pao, e das aves, e tentando sahir
em terra pera a parte da brenha, os moradores de humas povoaçoens vizinhas, que estam
da outra banda do rio, avisaram aos três negros, que hiam comigo, filhos de Reys, que
por nenhum caso sahissem em terra, porque aquele pao estava ally havia muytos anos, o
qual do fundo do rio o lançara ally a cheya com hum corpo de hum homem branco vestido
de negro, atado. O qual homem branco certos tigres e outros animaes levaram nas bocas
lá dentro daquela brenha, e que nella o tinham guardado, e enteyro, e que os mesmos
animaes, como de guarda postos, o defendiam, e tinham encerrado. (…) e que também os
animaes defendem o pao, e que so consentiam aos ditos pássaros, e aves porem-se nelle,
(…) E nelle faziam huma tam suave armonía de diversas vozes, que muyta gente dos
lugares comarcãos que andavam pescando, de propósito se chegavam pera aquella parte,
assim pera ouvirem a musica, como pera tomarem por ally mais peyxe”. (…) E dos negros
mais antíguos, e velhos daqueles lugares, achey (o que todos afirmam) que o corpo que
está naquela brenha deve de ser de algum grande sancto ou de algum Deos”. 1335
Perante tal relato, o Padre Barbudas ficou convencido de que o corpo a que se referia
a lenda africana deveria ser o de Gonçalo da Silveira, cuja memória teria permanecido
nas mentes das populações locais. A convicção de que o corpo incorrupto da lenda seria
o do “mártir” jesuíta, guardado e defendido por animais terrestres e do céu em lugar
escondido, parecia confluir para a justaposição de uma construção narrativa católica sobre
outras narrativas e fenómenos da religião autóctone.
1335
“Relaçam que o Lecenciado Leàm de Barbuda deo ao Padre Francisco de Gouvea da Companhia de
Iesu, do que achara, & soubera da morte do Padre Gonçalo da Sylveyra em Monomotapa”, in Balthazar
TELLES, op. cit., pp. 163-165.
352
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
A lenda foi recolhida entre pescadores ou seja, entre comunidades ribeirinhas cuja
vida dependia de uma relação de proximidade com o rio, conhecendo bem o seu percurso
e os seus santuários e lugares de poder, que podiam estar ligados a sepulturas e a espíritos
de antepassados. A menção a “pássaros muyto mayores que Perús, e Batardas, muy alvos
das penas” como os guardiões daquela parte do rio, parece invocar a imagem das aves
njerere, que anunciavam a chegada das chuvas, representando simbolicamente Mwari, o
grande espírito Criador do mundo natural e vigilante do seu equilíbrio, ou um dos seus
nomes de louvor, Dzigavuru, o espírito das águas dos lagos ou rios.1336
Poderia esta lenda ser um reflexo de que aquele recanto do rio seria, para as
populações ribeirinhas, um espaço de culto apenas acessível aos médiuns espirituais? É
possível que essa lenda se refira a um destes espaços santuários, o que parece ser
reforçado pelos avisos dos moradores das povoações vizinhas, para que de modo algum
se desse um desembarque naquela margem. JoAnn McGregor, num estudo sobre
paisagem e memória, que indaga as ideias africanas sobre o ambiente, focando-se nas
interações do passado com o rio Zambeze, refere a existência de diversos lugares sagrados
ao longo do rio e seus afluentes. Tais espaços associam-se a antigas comunidades
inespecíficas de antepassados, alguns guardavam sepulturas de chefes fundadores e
contava-se que ocorriam fenómenos sobrenaturais que podiam ser vistos ou escutados. 1337
Acrescenta ainda que, segundo algumas tradições, em certos lagos nas margens do
Zambeze os espíritos médiuns se fizeram imergir, tendo permanecido no fundo das águas
por diversos anos e, quando emergiam, traziam consigo abundância de sementes e
prosperidade para a terra.1338 Ainda que as tradições recolhidas na atualidade não possam
ser vistas como preservando formas passadas de ver a paisagem, sem contaminação com
influências mais recentes, neste caso concreto parece-nos ser possível estabelecer uma
ligação a registos profundos da cosmologia africana, que integram espectros mitológicos
associados ao antigo espírito de Dzivaguru.
Relativamente à lenda recolhida pelo padre Barbudas no século XVII, questionamo-
nos se incluiria algum eco de memórias do padre Gonçalo da Silveira por entre as
1336
Marthinus Louis DANEEL, op. cit., p. 25. Collis Garikai MACHOKO, op. cit., p. 288.
1337
JoAnn McGREGOR (Ed.), “Living with the River. Landscape and Memory in the Zambezi Valley
Northwest Zimbabwe”, in William BEINART e JoAnn McGREGOR, Social History & African
Environments, Oxford, James Currey, 2003, pp. 95-96.
1338
IDEM, ibidem, p. 96.
353
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
comunidades dos rios? Se, tal como sugeriu Gai Roufe, o padre foi interpretado
localmente como munido de diversos poderes mágicos e possuído pelo espírito de
Dzigavuru-Kuruva e Chicara, tendo o poder de trazer a chuva e a seca ou a força para
destronar o Mutapa; se por recomendação dos ngangas o padre foi morto; se a sua morte
por estrangulamento e o posterior lançamento do seu corpo num rio ou num lago pode ter
correspondido a preceitos rituais associados aos antigos cultos de Dzigavuru, então
devemos considerar também que tais acontecimentos terão produzido impacto nas
comunidades locais, com reflexo nas narrativas orais.
A publicação desta lenda em obra impressa havia de alimentar em Portugal e na
Europa, nos meios jesuítas, o mito de uma sublimação miraculosa e santificação ocorrida
nas próprias “brenhas da Cafraria”. Mas se, como verificamos, determinada literatura
parece refletir a existência de uma corrente ideológica que constrói a narrativa da jornada
heroica de evangelização e martírio, a verdade é que Gonçalo da Silveira não chegou a
integrar o catálogo dos santos mártires canonizados no período da Contrarreforma. 1339
Segundo Ronnie Po-Chia Hsia, duas ordens de razões justificariam que um número
elevado de missionários que perderam as suas vidas em terras distantes da Europa não
tivessem sido oficialmente proclamados como santos. A primeira das razões estaria na
própria ideologia contrarreformista de uma Igreja apostólica, militante e triunfante cuja
identidade não se coadunava com a imagem do martírio dos seus membros às mãos de
poderes pagãos. Uma segunda ordem de razões prende-se com a própria natureza
centralizada da política e da administração papal, cujos poderes e influências eram
decisivos nas escolhas dos santos.1340 Ainda que o papado restringisse a escala de
beatificações, a já mencionada compilação do jesuíta Mathias Tanner procurava glorificar
a vida e a missão de 304 padres jesuítas que, na Europa, África, Ásia e América, foram
martirizados devido à sua fé.1341 Entre os missionários de África figura o “P. Gonsalvus
Sylveria” que ao ter iniciado a missão no Tonge (Regnum Tongense), baptizou centenas
de almas no Monomotapa, antes da sua execução. O texto, que narra em nove fólios a
ação deste padre, além de integrar a lenda recolhida pelo padre Barbudas, acrescenta que
a memória de Gonçalo da Silveira era reverenciada entre aqueles povos:
1339
Ronnie Po-Chia HSIA, op. cit., p. 130.
1340
IDEM, ibidem, pp. 130-133.
1341
Mathias TANNER, op. cit..
354
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Tradução: «[Afonso] Barbuda contava que tinha visto essas aves e essas feras e que
se cria que o cadáver era de Gonçalo da Silveira, do qual, entre esses povos, é grande a
veneração e viva a memória dos seus benefícios, e que parecia que foi conservado por
Deus milagrosamente até esses tempos.1343
A obra de Mathias Tanner é ilustrada pelo dramatismo das gravuras de Küsell, que
contribuem para consolidar uma ideologia de martírio, transversal às missões jesuítas nos
diversos palcos do mundo. A gravura dedicada a Gonçalo da Silveira ilustra o momento
em que os seus carrascos se preparam para lançar o corpo do padre ao rio Musengeze.
Toda a imagética da gravura (Figura 4) pretende vincar estereótipos, nomeadamente
a simbologia binária que opõe os dois mouros africanos, no ato de puxar com uma corda
a sua vítima pelo pescoço, e o padre que jaz morto por estrangulamento. Os mouros são
identificados pelos turbantes e pelo corpo negro, apenas coberto com um saiote têxtil, por
oposição ao padre, que veste os seus paramentos cristãos e deixa para trás, em solo
africano, um crucifixo num pedestal, ladeado por duas velas acesas sobre uma esteira,
como que simbolizando a luz da fé que ele próprio revelara aos gentios, ou o próprio
Cristo ressuscitado. Nesta obra em latim, destaca-se o seu valor propagandístico que terá
contribuído para a difusão do tema do martírio subjacente à ação evangelizadora e para a
formação de opiniões generalizadas relativamente a outros povos do mundo,
recentemente convertidos ou em projeto de conversão.
Acima de tudo, a busca de informações sobre a ação missionária do Padre Gonçalo
da Silveira nas terras Caranga e as interpretações sobre as razões que levaram à sua morte
contribuiriam para a amplificação de uma representação desfavorável das populações e
territórios do sudeste africano.
1342
IDEM, ibidem, p. 164.
1343
Tradução da frase do Latim para Português, generosamente realizada pelo Professor Doutor Arnaldo
Espírito Santo, a quem muito agradecemos.
355
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Figura 4
1344
IDEM, ibidem, p. 156. Banco de imagens da Coleção da Biblioteca Digital da Saint Louis University,
http://digitalcollections.slu.edu/digital/collection/imagebank/id/89 (consultado em 20/07/2020)
1345
Tradução da frase do Latim para Português, generosamente realizada pelo Professor Doutor Arnaldo
Espírito Santo, a quem, mais uma vez muito agradecemos.
356
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1346
Luís de CAMÕES, Os Lusíadas, (…), Canto X, 93.
1347
“Determinação dos letrados, scilicet, com que condiçoens se podia fazer guerra aos reys da conquista
de Portugal. Fala em especial do Monomotapa”, in Josef WICKI e John GOMES, Documenta Indica, Vol.
VIII, (…), pp. 675-679.
1348
Nuno VILA-SANTA, “A Coroa e o Estado da Índia nos reinados de D. Sebastião e D. Henrique: política
ou políticas”, in Lusitania Sacra, 29 (Jan.-Junho 2014), p. 55.
357
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
igrejas e templos e fizesse promulgar o Evangelho por ministros idóneos. 1349 Ora,
segundo a argumentação da Mesa da Consciência e Ordens, nos reinos e senhorios do
Monomotapa a pregação do Evangelho fora impedida com grande violência e prejuízo,
nomeadamente com a morte do Padre Gonçalo da Silveira, além de que teria sido
obstruída a “hospitalidade e comercio” com graves danos e ofensas a vassalos da coroa
portuguesa e favorecimento dos “mouros imigos”.1350
A “hospitalidade e comercio” constituía o cerne do ius communicandi ou direito
da comunicação e partilha inter-humana, desenvolvido e fundamentado pelo dominicano
Francisco de Vitória, da Escola de Salamanca.1351 Segundo os princípios da razão natural
que presidiam à concepção da communitas orbis, tanto os poderes dos povos cristãos,
como os dos “infiéis e pagãos” tinham equivalente legitimidade quanto à jurisdição e
posse ou dominium dos seus territórios.1352 Contudo, no contexto específico sobre o qual
reflete, o da presença espanhola nas Índias ocidentais, Vitória considera que, se os nativos
impedissem os cristãos espanhóis de viver nas suas terras, aí comerciar e espalhar o
Evangelho, originavam uma justa causa de intervenção bélica, que poderia legitimar o
domínio espanhol através da guerra. A violação do ius communicandi mostrava ser o mais
controverso dos títulos de conquista baseado na violação do ius gentium, uma vez que
legitimava a guerra e a apropriação dos territórios indígenas através do dominium, ou seja,
do direito de propriedade.1353 Segundo Francisco de Vitória, para determinar se uma
guerra é justa, torna-se essencial examinar com muito cuidado a justiça e a causa da
guerra, sendo necessário “consultar os homens prudentes e sábios”.1354 Entre vários
argumentos que podiam ser alegados, a injúria recebida era considerada a causa justa de
guerra por excelência.1355 Em caso de guerra justa, era lícito fazer tudo o que fosse
necessário ao bem público e para defesa do bem público, recuperar todas as coisas
1349
“Determinação dos letrados, scilicet, com que condiçoens se podia fazer guerra aos reys da conquista
de Portugal. Fala em especial do Monomotapa”, (…), p. 676.
1350
IDEM, ibidem, p. 677.
1351
Paolo AMOROSA, Rewriting the History of the Law of Nations: How James Brown Scott made
Francisco de Vitoria the Founder of International Law, New York, Oxford University Press, 2019, p. 175.
1352
Pedro Ricardo da Silva SANTOS, Sobre o Direito de Guerra. Estudo introdutório e tradução
comentada da ‘Relectio de iuri belli’ de Francisco de Vitória, Dissertação de Mestrado em Estudos
Clássicos – Ramo de Estudos Medievais e Renascentistas, Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra, 2016, p. 16.
1353
Martii KOSKENNIEM, “Empire and International Law: the Real Spanish Contribution”, in University
of Toronto Law Journal, (2011), 61, p. 14.
1354
Pedro Ricardo da Silva SANTOS, op. cit., p. 47.
1355
IDEM, ibidem, ps. 25 e 34.
358
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
perdidas ou o valor delas, ressarcir as despesas de guerra e todos os danos com os bens
dos inimigos e castigar a injúria deles recebida.1356
Verificamos que o direito comum das gentes, refletido e reelaborado, entre outros,
por Fr. Francisco de Vitória, permeia conceptualmente os argumentos sustentados no
documento português, Determinação dos letrados, de 1569.
Podemos considerar estar perante um contexto marcado por uma certa unidade
ideológica de dimensão ibérica, cujas raízes se encontram na estrutura teológica e
filosófica da Universidade de Paris, onde Francisco de Vitória se doutorou, tendo esse
clima mental influenciado o movimento doutrinal que constituiu a Escola de
Salamanca.1357 Neste sentido, à base ética, teológica e filosófica de Paris veio acrescentar-
se a circulação de clérigos e doutores entre Salamanca e a Universidade de Coimbra, no
contexto da Segunda Escolástica Peninsular, que desenvolveu uma acção reflexiva
importante sobre as condições éticas e político-jurídicas da ocupação de territórios e
domínio de povos extra-europeus.1358
Os seis letrados portugueses que assinaram a Determinação de 1569 têm à cabeça
Martim Gonçalves da Câmara, jesuíta, Doutor em Teologia, presidente da Mesa da
Consciência e do Desembargo do Paço, escrivão da puridade de D. Sebastião e irmão do
influente Luís Gonçalves da Câmara, jesuíta, reitor do Colégio das Artes de Coimbra e
confessor do rei.1359 Uma elite de letrados, que constitui o alicerce eclesiástico do Estado
durante o reinado de D. Sebastião, utiliza argumentos jurídico-políticos e conceitos
morais que Francisco de Vitória expôs quanto ao relacionamento da coroa de Leão e
Castela com as comunidades e poderes nativos do Novo Mundo, nomeadamente a
necessidade de justificar a guerra com uma causa justa, como defender o bem público e
castigar a injúria recebida.1360 Este argumento doutrinário está subjacente às três causas
1356
IDEM, ibidem, pp. 44-45.
1357
Paula Oliveira e SILVA, “Causa dos índios e direitos dos povos. Significado do contributo de Francisco
Vitória para a Filosofia do Direito”, in Mediaevalia. Textos e estudos, 30 (2011), pp. 140-141.
1358
Fábio Fidelis de OLIVEIRA, “História da Segunda Escolástica Peninsular no Ambiente Universitário
Lusitano: uma reflexão sobre as Concepções Jurídico-Políticas do Doutor Martín de Azpicuelta Navarro”,
in Revista Brasileira de História do Direito, Minas Gerais, Vol. 1, nº 2, Julho/Dezembro 2015, p. 51.
1359
“Martim Gonçalves CÂMARA (1539-1613)”, in Dicionário de História de Portugal, dir. Joel
SERRÃO, Vol. I, (…), pp. 440-441.
1360
Frei Francisco de Vitória não deixou uma obra escrita estruturada, sendo as “relectiones” um conjunto
de escritos que foram compilados postumamente por Jaques Boyer. As “relectiones” conhecidas como De
Indis (Dos índios) consistem nas reflexões, análises e comentários das questões jurídico-morais
relacionadas com a presença espanhola nas Índias ocidentais, em particular, e a defesa de uma ordem de
justiça que regulamentasse as relações entre todas as comunidades, em geral. As “relectiones” constituíram
359
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
fundamentais com que a Determinação dos letrados justifica a guerra justa e sem pecado
movida pela coroa portuguesa contra o Monomotapa, a saber: 1) a existência de ofensas
e lesões feitas a portugueses, desde o roubo e prisão de dois enviados pelo capitão de
Sofala até à morte do Padre Gonçalo da Silveira; 2) a autoridade do rei português para,
no plano internacional, defender os seus vassalos de todas as injúrias que lhes tivessem
sido infligidas; 3) a intenção de promulgar o Evangelho ou seja, promover a “conversão
e salvação das almas”, enviando para esse efeito número “competente de missionários
idóneos”.1361
De acordo com as declarações expressas em Almeirim, antes de fazer a guerra ao
Monomotapa, devia ser requerido, em nome do rei de Portugal a expulsão de todos os
mouros naquelas terras e senhorios, a decorrer num espaço de tempo limitado; ainda
assim, depois de expulsos os mouros, podia ser feita “guerra justa” contra o Monomotapa
devido às “injurias e lesões feitas aos portugueses”, a não ser que fosse pago um elevado
tributo, tanto em ouro, como em “legoas de terra que a juizo de bons varoens seja igual
recompensa de todas as ditas injurias e lesões, e das despesas da armada e das que se
fizerem” e “sendo caso que o dito rey negue a dita satisfação pode-se-lhe fazer justamente
guerra seguindo se todos os direitos, que se nella executão”.1362
A acusação feita ao soberano africano era a de não respeitar “o comum direito das
gentes”, que era um conceito derivado do direito romano e cuja “universalidade” só fazia
sentido no âmbito político-jurídico europeu que, com os teólogos de Salamanca, iniciava
o estabelecimento de preceitos do direito internacional. Tornado categoria do pensamento
ocidental, a ius gentium enquanto direito natural assentava na premissa da universalidade
e imutabilidade e, deste modo, entrava em confronto com uma incomensurabilidade de
instituições de diferentes sociedades e culturas não europeias e não cristãs, como eram
consideradas as das sociedades Caranga dos planaltos de entre os rios Zambeze e
Limpopo.
Neste sentido, por uma alegada violação do ius gentium, estabeleciam os letrados
que o rei de Portugal podia mandar fazer guerra ao “rey de Monomotapa” e, tendo por
360
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1363
José CAPELA, Moçambique pela sua História, Porto, Centro de Estudos Africanos da Universidade
do Porto, 2010, p. 19. http://www.africanos.eu/images/publicacoes/livros_electronicos/EB020.pdf
(Consultado 2/09/2020)
1364
“Relação da viagem que fizeram os Padres da Companhia de Jesus com Francisco Barreto na conquista
do Monomotapa no Anno de 1569, feita pelo P.e Monclaro da mesma Companhia”, in Josef WICKI e John
GOMES, Documenta Indica, Vol. VIII, (…), p. 684.
1365
IDEM, ibidem, pp. 683-739.
1366
IDEM, ibidem, pp. 693-699.
1367
IDEM, ibidem, p. 693.
361
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1368
IDEM, ibidem, p. 700.
1369
IDEM, ibidem, pp. 719-720.
1370
IDEM, ibidem, pp. 111-112.
1371
IDEM, ibidem, p. 712.
362
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Mutapa se fazia de acordo com uma lógica local de sucessão ou herança posicional,
conceptualmente muito diversa de qualquer modelo europeu ocidental.1372
O Mutapa, enquanto titular de um poder real, era o soberano de um sistema
político que integrava várias entidades percepcionadas pelos europeus como “vassalos”,
sendo uns mais poderosos do que outros. A entidade política da Mocaranga assentava em
concepções de descendência comum e parentesco, no âmbito das quais se definiam
soberanias e subordinações, ritualmente consagradas e simbolizadas.1373
Seguindo a geografia da expedição, do litoral índico para o interior, através do
vale do Zambeze, Monclaro destacou as populações “macuas” da margem norte do rio. 1374
Descreve estes povos como “negros”, com as cabeças cheias de “barro almagrado”, “os
beiços todos furados com pedaços de calaim, cobre e estanho, metidos pellos buracos, e
com o grande peso sempre lhe caem os beiços e sempre se andão babando. Os dentes
trazem limados”.1375 Os pescadores macuas eram classificados como “muy bárbaros”, por
não terem culto, serem grandes feiticeiros, traidores e ladrões1376, vivendo em “casinhas
de palha muy pequenas”,1377 estabelecendo comércio com os portugueses, principalmente
marfim e âmbar e não tendo “nenhum modo nem forma de justiça”, nem reis, governando-
se por mf’umus.1378
Dos Tongas do médio Zambeze, descreve os “cornos nos cabelos por galantaria”,
uma “invenção estranha” que considera geral em toda a Cafraria.1379 Este traço físico-
cultural já os padres da primeira missão jesuíta haviam tentado eliminar entre as gentes
locais, pela sugestão de semelhança com os diabos, e veremos que também o missionário
dominicano Frei João dos Santos se intrigou com tal apresentação do corpo, que interpreta
de acordo com padrões simbólicos e imaginários da matriz cultural cristã.
1372
Gai ROUFE, “Local Perceptions of Political Entities along the Southern Bank of the Zambesi in the
16th and Early 17th Centuries”, in The International Journal of African Historical Studies, Vol. 49, No. 1,
2016, p. 63 e pp. 66-70. http://www.jstor.org/stable/44715442 (consultado em 28/08/ 2021)
1373
“Relação da viagem que fizeram os Padres da Companhia de Jesus com Francisco Barreto na
conquista do Monomotapa no Anno de 1569, feita pelo P.e Monclaro da mesma Companhia”, in Josef
WICKI e John GOMES, Documenta Indica, Vol. VIII, (…), p. 712.
1374
IDEM, ibidem, p. 704.
1375
IDEM, ibidem, p. 701.
1376
IDEM, ibidem.
1377
IDEM, ibidem, p. 702.
1378
IDEM, ibidem.
1379
IDEM, ibidem, p. 713.
363
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1380
IDEM, ibidem, pp. 714-715.
1381
IDEM, ibidem, p. 714.
1382
IDEM, ibidem, p. 712.
1383
IDEM, ibidem, pp. 723-724.
1384
Monclaro refere que o chefe Chombee, vizinho das terras do Mongaz, veio ao encontro de Francisco
Barreto, cedendo-lhe “200 cafres pera levarem o fatto e guiarem pella terra dentro”. IDEM, ibidem, p. 725.
1385
IDEM, ibidem, pp. 726-727.
364
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1386
Malyn NEWITT, “The Early History of the Maravi”, in The Journal of African History, Vol. 23, No. 2
(1982), pp. 148-149 e 156-157.
1387
IDEM, ibidem, p. 157.
1388
Sendo os Maraves povos que chegaram ao vale do Zambeze a partir do norte da fronteira fluvial, não
dispomos de documentação direta que nos permita avançar na especificidade tanto do espaço, quanto das
razões impulsionadoras das diversas vagas migratórias. Alpers considerou que estes povos seriam oriundos
da Bacia do Congo e que se haviam fixado a sul do Zambeze desde o século XIV, asserção que Newitt
procura relativizar baseando-se na ausência de confirmação documental. Veja-se Malyn NEWITT, “The
Early History of the Maravi”, (…), p. 145.
1389
“Relação da viagem que fizeram os Padres da Companhia de Jesus com Francisco Barreto na conquista
do Monomotapa no Anno de 1569, feita pelo P.e Monclaro da mesma Companhia”, op. cit., ps. 712 e 724.
1390
IDEM, ibidem, pp. 728-729.
365
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
entendiam e interpretavam os “outros”. E os “outros” aqui são tanto aos Mongazes, como
o próprio exército português que, com o fogo e o fumo dos arcabuzes transformara o dia
em noite, tendo derrotado tão temível “exército da Cafraria”.1391
O registo das observações e do testemunho vivencial do Padre Monclaro, a que se
acrescentam as informações aduzidas pelos informantes africanos, vão contribuindo para
uma redução da imagem mítica do império africano do Monomotapa. Ao destacar os
Mongazes como povos guerreiros, muito temidos nas duas bandas do rio Zambeze, o
autor mostra que o Monomotapa não correspondia a um Império ou a um estado unitário
à maneira europeia, ocupando a maior parte do sudeste africano, como alguns mapas
conjecturavam. Emergia a imagem do Monomotapa como uma confederação de Estados,
sendo que nas margens do Zambeze, povos e poderes vindos de fora aspiravam à
conquista territorial e ameaçavam os próprios Estados Carangas, criando instabilidade no
comércio fluvial dos panos, dos metais preciosos e do marfim.
A descrição do confronto entre o exército português, simbolizado pelo crucifixo
arvorado, e o exército Mongaz, do chefe Capote, contabilizado em dez ou doze mil
guerreiros de arcos e flechas, deslocando-se em formação de meia lua, constrói uma
imagem quase gráfica de triunfo de um exército europeu cristão contra um exército
africano.1392 Ainda que as forças africanas tenham coberto o ar com flechas, os arcabuzes
portugueses varejaram e mataram grande número de homens, como se fossem
“cardumes”.1393 O léxico empregue por Monclaro para descrever o opositor militar
africano, ao recorrer a metáforas zoomórficas, reforça as dicotomias cristão versus cafre,
no âmbito de um quadro mental e conceptual em que cada uma das categorias ocupava
distintas posições numa suposta escala dos povos humanos.
A investida militar de Francisco Barreto saldava-se na queima de muitas aldeias
dos Mongazes1394, deixando uma marca de “terror e espanto à gente da terra” e
funcionando até como um bloqueio à expansão de chefaturas Maraves, no sentido do
planalto Caranga.1395 O embaixador que Francisco Barreto enviou para o Monomotapa,
com presentes e a proposta de paz, amizade e negócios, tardou com a resposta, pelo que
1391
IDEM, ibidem, p. 729.
1392
IDEM, ibidem, p. 727.
1393
IDEM, ibidem, p. 726.
1394
IDEM, ibidem, p. 733.
1395
IDEM, ibidem, p. 722.
366
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
a companhia militar de Barreto avançou ao longo do rio, até chegar aos domínios dos
Mongazes.1396 Face à derrota militar do exército mongaz, o Monomotapa respondeu com
o envio da sua embaixada “para ser amigo d’El-Rey de Portugal”.1397
Para Monclaro, a resposta do Monomotapa, que colocava Barreto na posição de
aliado e um dos seus homens, resultava da fama que se espalhou devido à “destruição dos
mongazes” e, na perspetiva portuguesa, mostra congregar interesses comuns,
nomeadamente o de limpar estes “espinhos” e desimpedir “o caminho” para o trato e para
as minas.1398
Francisco Barreto respondeu com o envio de outra embaixada portuguesa que
levou ao Mutapa “hum bom presente de roupa”, tendo recebido “do cafre oito manilhas
de ouro de fio e muy delgado (…), honra que ele não faz a ninguém e que reserva somente
para si. Isto segundo alguns dezião”.1399
Para selar o acordo diplomático com o Mutapa, através da embaixada que lhe foi
enviada, Francisco Barreto apresenta as três condições que levava por regimento:
expulsão dos mouros daquelas terras; o necessário acolhimento dos Padres para a
expansão da fé católica; a entrega aos portugueses de minas de ouro.1400
Entretanto, Francisco Barreto retorna a Moçambique para se abastecer de fato e
outros bens essenciais para o arraial e pagamento dos soldados. Designa Vasco Fernandes
Homem como mestre de campo, responsável pelos 450 homens da companhia, que
permaneceram perto de Sena. No regresso, soube Monclaro que grande parte dos homens
do arraial tinham morrido ou estavam doentes com febres. Centenas de homens morriam
de paludismo e privação de mantimentos, “por estar a terra muy inficionada e os ares
corruptos”1401, não tendo faltado a acusação de que muitas mortes eram causadas por
peçonha lançada pelos mouros nos pastos e nas águas. 1402 O próprio Francisco Barreto
fora vítima mortal de uma febre que Monclaro designa de “mordexim” e que, segundo
Dalgado, seria provavelmente colera morbus.1403 A verdade é que, como afirma
Mudenge, a entrada do exército português no Zambeze durante a estação seca constituiu
1396
IDEM, ibidem, pp. 722-723.
1397
IDEM, ibidem, p. 732.
1398
IDEM, ibidem, pp. 732-733.
1399
IDEM, ibidem, p. 733.
1400
IDEM, ibidem, p. 732.
1401
IDEM, ibidem, p. 735.
1402
IDEM, ibidem, pp. 707-708.
1403
IDEM, ibidem, p. 736. Atente-se na nota 176 do documento.
367
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
um erro militar, pois conduziu à falta de água e provisões, além de que a malária
contribuiu para dizimar elevado número de homens e cavalos. 1404
Dos 700 arcabuzeiros e muitos outros militares portugueses que desembarcaram
em Sena, no início desta expedição, no final apenas restavam 180 homens vivos e esses
estavam doentes.
Desta expedição resultou um saldo negativo em termos humanos, mas uma
segunda embaixada enviada pelo Mutapa respondia às condições anteriormente
solicitadas pelos portugueses: os mercadores mouros seriam expulsos; as questões da fé
e da instalação de padres católicos seriam combinadas com os portugueses; e uma grande
quantidade de minas seria entregue aos portugueses, incluindo minas de prata. 1405 Estas
eram as condições para “ter paz e amizade com suas molheres (que assi nos chamão, não
por desprezo, mas por honra e mostras de amor)”.1406 Segundo Eugénia Rodrigues, a
denominação “mulheres” tinha para os Caranga um significado político associado à
dependência, não traduzindo necessariamente um género ou um laço matrimonial. A
denominação “aplicava-se também a chefes que administravam territórios, com os quais
o mutapa estabelecia pactos, assim como aos seus aliados estrangeiros, como era o caso
dos portugueses”.1407 Gai Roufe, que analisou nos textos portugueses os ecos das
conceptualizações locais sobre o poder político, explica que o conceito de “casamento”
corresponde, na linguagem vernacular, a uma posição ou categoria política honrosa.1408
O estabelecimento de uma aliança entre o Mutapa Ngomo Mpunzagutu e os
portugueses, na sequência da derrota que estes infligiram aos Mongazes, marcou uma
viragem quanto à presença portuguesa no vale do Zambeze. Foram instituídas as
capitanias-mores de Sena e Tete, que ficaram na dependência administrativa do capitão
1404
S.I.G. MUDENGE, op. cit., ps. 208 e 216.
1405
“Relação da viagem que fizeram os Padres da Companhia de Jesus com Francisco Barreto na conquista
do Monomotapa no Anno de 1569, feita pelo P.e Monclaro da mesma Companhia”, op. cit., p. 738.
1406
IDEM, ibidem.
1407
Eugénia RODRIGUES, “Rainhas, princesas e donas. Formas de poder político das mulheres na África
Oriental nos séculos XVI e XVIII”, in Cadernos Pagu, Dossiê História das Mulheres, Gênero e Identidades
Femininas na África Meridional, (UNICAMP, Campinas), vol. 49, 2017, p. 8.
http://dx.doi.org/10.1590/18094449201700490002
1408
Gai ROUFE e Joseph C. MILLER, “African Voices Echoing in European Texts: The Muffled Meanings
of the Madzimbabwe of the Mocaranga between the Sixteenth and the Nineteenth Centuries, (…), pp. 24-
26.
368
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1409
Eugénia RODRIGUES, op. cit., pp. 99-100.
1410
“Relação da viagem que fizeram os Padres da Companhia de Jesus com Francisco Barreto na conquista
do Monomotapa no Anno de 1569, feita pelo P.e Monclaro da mesma Companhia”, op. cit., p. 738.
1411
Eugénia RODRIGUES, op. cit., p. 100.
1412
Gai ROUFE, “Local Perceptions of Political Entities along the Southern Bank of the Zambesi in the
16th and Early 17th Centuries”, (…), p. 73.
369
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
“Relação da viagem que fizeram os Padres da Companhia de Jesus com Francisco Barreto na conquista
1413
do Monomotapa no Anno de 1569, feita pelo P.e Monclaro da mesma Companhia”, op. cit., pp. 686-687.
370
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1414
Bernardo de CIENFUEGOS, op. cit., pp. 42 vo-43.
1415
IDEM, ibidem, p. 43.
1416
IDEM, ibidem, pp. 58 vo-59 e p. 61 vo.
1417
IDEM, ibidem, p. 61 vo.
371
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
4. No dealbar do século XVII: Frei João dos Santos e a dimensão lata da Cafraria
1418
Frei Luis de SOUSA, Parte III. Da Historia de S. Domingos, particular do Reyno, e conquistas de
Portugal, Lisboa, na Officina de Antonio Rodriogues Galhardo, 1767, pp. 363-364.
1419
IDEM, ibidem, p. 363.
1420
IDEM, ibidem, p. 364.
1421
Philippe DENIS, The Dominican Friars in Southern Africa. A Social History (1577-1990), Leiden,
Brill, 1998, p. 7. https://books.google.pt/books?id=M3UV2oZFZcIC&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false (Consultado em 12/01/2019)
1422
Frei António do ROSÁRIO, Dominicanos em Portugal. Repertório do Século XVI, Porto, Arquivo
Histórico Dominicano Português, 1991, p. 45.
372
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1423
Publicação online da edição de 1609: https://openlibrary.org/books/OL15104369M/Ethiopia_oriental
Houve mais três edições portuguesas desta obra de Frei João dos SANTOS: Ethiopia Oriental, 2 vols.,
Bibliotheca dos Clássicos Portuguezes, Lisboa, Mello d'Azevedo editor, 1891. http://purl.pt/26732
(Consultado em 6/01/2019). Etiópia Oriental, Luís de ALBUQUERQUE (Dir.), 2 vols., Lisboa, Edições
Alfa, 1989. Etiópia Oriental e vária História de cousas notáveis do Oriente, com introdução de Manuel
LOBATO, notas de Manuel LOBATO e Eduardo MEDEIROS e fixação do texto por Maria do Carmo
Guerreiro VIEIRA, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses,
1999. É esta a edição que citaremos nas páginas que se seguem.
1424
Frei Luis de SOUSA, op. cit., pp. 366-367.
1425
António BOCARRO, Decada 13 da Historia da India, Tomo II, Lisboa, Academia Real das Sciencias
de Lisboa, 1876, pp. 603-604. http://purl.pt/26126/4/ (Consultado em 15/06/2028)
1426
Diogo Barbosa MACHADO, Bibliotheca Lusitana, Histórica, Critica, e Chronologica, na qual se
comprehende a Noticia dos Authores Portuguezes, e das Obras, que compozeraõ desde o tempo da
promulgação da Ley da Graça até o tempo prezente, Tomo IV, Lisboa, Na Officina Patriarcal de Francisco
Luiz Ameno, 1759, p. 659. https: //archive.org/details/bibliothecalusit04barbuoft/page/659 (Consultado
em 12/12/2019)
1427
António BOCARRO, op. cit., Capítulo CXLVI.
373
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Mapa 5 - Alguns espaços de circulação de Frei João dos Santos na África do Sudeste
(mapa extraído de Eugénia RODRIGUES, 2013, p. 999)
1428
IDEM, ibidem, p. 603.
374
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1429
Frei João dos SANTOS, op. cit., p. 556.
1430
IDEM, ibidem, pp. 87-88 e ps.175 e 557.
1431
IDEM, ibidem, pp. 557-558.
1432
IDEM, ibidem, p. 568.
1433
IDEM, ibidem, p. 568.
1434
IDEM, ibidem, pp. 335-336 e p. 580.
375
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Podemos supor existir algum exagero nos números de batizados que apresenta, o
que decorre da natureza apologética da sua obra.1435 No entanto, podemos supor que estes
baptismos tenham ocorrido sob a forma de rituais coletivos, que as populações locais
aceitavam, integrando os novos símbolos cristãos nas suas cosmologias.
A itinerância que marcou a missão de Frei João dos Santos na África do Sudeste
resultava da necessidade de padres e irmãos para administrarem os sacramentos aos civis
e militares portugueses, em serviço nas fortalezas de Sofala e Moçambique e nos postos
fortificados de Sena, Tete e Quelimane, bem como nas comunidades luso-africanas
dispersas por aqueles Rios de Cuama, onde o número de escravos baptizados seria
significativo. Colocava-se também o grande desafio da evangelização dos gentios da
terra, pois era considerado elevado o risco de contágio com o Islão, tão presente na costa,
como nos sertões.
Ethiopia Oriental é título de obra escrita, mas também se constitui como categoria
geográfica de abrangência quase continental, tendo início no Cabo da Boa Esperança,
prolongando-se pelos litorais do Índico e seus sertões, até terminar nas fronteiras da
Abissínia. Nesta categoria extensa, mobilizadora da definição clássica de Aethiopia,
ficava a Cafraria.
No texto de Frei João dos Santos, como em outros da mesma época versando
sociedades extra-europeias e não cristãs, a construção do discurso fazia-se recorrendo a
categorias de base religiosa que estruturavam o pensamento. As categorias de cristão,
gentio, idólatra e mouro permitiam uma leitura imediata das comunidades e indivíduos
no plano espiritual. Enquanto os gentios eram vistos como pecadores por desconhecerem
a Lei de Deus, estando abertos à conversão, a condição espiritual dos mouros e dos
adoradores de ídolos era afectada pela recusa deliberada do Evangelho e pelos desvios
diabólicos que concediam a criaturas a honra devida ao Criador.1436
1435
IDEM, ibidem, p. 568.
1436
Joan-Pau RUBIÉS, “Theology, Ethnography, and the Historicization of Idolatry”, in Journal of the
History of Ideas, Volume 67, Number 4, October 2006, p. 582.
376
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1437
Refira-se, a título de exemplo, alguns vocábulos registados pelo missionário: encosse ou fumo (capitão
de lugar), empófias (administração da justiça na circunscrição da aldeia) cacizes (padres), chuni (óleo de
gergelim), mungodao e matuvi (paus moído para efeitos medicinais), mocate (bolinhos de arroz e milho),
pombe (vinho feito de milho), lucasse, (tipo de juramentos e morte ritual por ingestão de peçonha), xoca
(juramento com ferro em brasa), calão (juramento da panela de água quente) pemberar (correr como quem
peleja numa batalha), lupangas (espadas de ferro), muzungos (senhores), Molungo (Deus), Musuca (Diabo).
1438
Frei João dos SANTOS, op. cit., p. 222.
377
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
necessidade de recorrer aos línguas ou intérpretes.1439 Além do mais, João dos Santos era
movido por uma intensa curiosidade histórica e naturalista que o levou a recolher junto
de informadores africanos notícias, histórias e tradições que cruzou com as suas
observações empíricas. Por esta razão, o discurso de Frei João dos Santos constituiu-se
como uma representação geográfica, naturalista, antropológico-política e religiosa, de um
vasto território no sudeste africano.
Acresce, ainda, um olhar que procura sistematizar as informações sobre os bens
de valor económico, que circulavam nos territórios teoricamente sob a jurisdição do
capitão de Moçambique. Assim, enumera as mercadorias que, ao ritmo das monções,
chegavam à capitania. Da Ilha do Inhaca e do rio de Lourenço Marques, do Cabo das
Correntes e rio de Inhambane, de Sofala, dos Rios de Cuama, das ilhas de Angoche e das
Quirimbas, do Cabo Delgado e, ainda, da ilha de S. Lourenço chegavam, de seis em seis
meses, pangaios repletos das mais variadas riquezas: ouro, marfim, escravos, dentes e
unhas de rinoceronte, aljôfar, pérolas, âmbar, mel, manteiga, arroz, panos e esteiras e, de
cada um daqueles portos, embarcavam sempre “grande cópia de escravos”.1440
Na sua representação da Cafraria, destacamos alguns níveis de observação directa
e indirecta, que passamos a considerar.
1439
Eric ALLINA, “The Zimba, The Portuguese, and Other Cannibals in Late Sixteenth-century Southeast
Africa”, in The Journal of Southern African Studies, Vol. 37, No. 2, June 2011, p. 221.
https://doi.org/10.1080/03057070.2011.579433 (Consultado em 5/09/2018)
1440
Frei João dos SANTOS, op. cit., p. 299.
1441
IDEM, ibidem, p. 557.
378
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
abundavam elefantes, tigres, onças, leões, búfalos e muitos outros animais temidos. 1442
Em todas estas terras da Cafraria criavam-se muitos cágados que as gentes locais comiam
assados e cozidos, como se fosse galinha.1443
Nos matos selvagens surgiam, de quando em quando, caminhos que conduziam a
clareiras de organização sociopolítica, os povoados, onde os animais domésticos e o
cultivo de legumes, inhames e cereais emprestavam laivos de humanização àquele mundo
bravio.
Sofala chega a surpreender pela sua similitude com o mundo rural de Portugal,
havendo aí muitas hortas com variadas hortaliças, árvores de fruto, com destaque para os
citrinos, ervas aromáticas que lhe eram familiares, como manjericão e jasmim, além de
muitas galinhas que ali se criavam e eram vendidas aos portugueses. A este nicho de
elementos similares, somava-se depois a grandeza exótica dos palmares de coqueiros,
canaviais de canas-de-açúcar, milho, arroz, inhame, batatas, feijões e abundância de
gergelim, o qual era moído para produção de um óleo a que as gentes locais chamavam
chuni.1444
O rio de Quelimane é descrito como “fermoso, e aprazível”, com um porto
abrigado, onde estão umas casas, um palmar e uma horta do português Francisco
Brochado, que fora capitão daqueles rios, e onde se refugiavam os portugueses e
cristãos.1445 O rio de Loranga também é considerado muito aprazível, com uma barra
muito boa e abundância de peixes e junto às povoações crescem os palmares e cultivam-
se os legumes.1446
Frente ao Cabo Delgado, que é assinalado a dez graus Sul da linha equinocial,
ficavam as ilhas Quirimbas, onde abundavam os palmares e as searas de milho.1447
Em diversas passagens textuais, o autor transfere para a natureza imagens do
inferno, as quais encontravam coerência, no âmbito de uma mentalidade que entendia o
sul da África, como um distante espaço do mundo ou uma parte da Criação onde
profundos desvios sociais e morais solicitavam a obra evangélica.
1442
IDEM, ibidem, p. 557.
1443
IDEM, ibidem, pp. 154-155.
1444
IDEM, ibidem, pp. 83-86.
1445
IDEM, ibidem, p. 240
1446
IDEM, ibidem, pp. 240-242.
1447
IDEM, ibidem, p. 335.
379
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1448
IDEM, ibidem, pp. 584-586.
1449
IDEM, ibidem, p. 657.
1450
IDEM, ibidem, p. 657.
380
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
moradores são descritos como “gentios cafres, não muito pretos”1451; outros são “pretos
como azeviche, de cabelo crespo”.1452 Os homens faziam na cabeça uns penteados com o
cabelo torcido e uns paus delgados pelo meio, de modo que, segundo o frade, tal
“bizarria” se assemelhava a cornos.1453 Tal traço, que era tanto físico como cultural,
permitia o estabelecimento de analogias com os animais silvestres e teria mesmo afligido,
no passado, os jesuítas, que associaram o aspecto das cabeças masculinas às criaturas dos
infernos. 1454
Nas longas descrições acerca dos povos da Cafraria, o olhar detém-se na forma
como os corpos são cobertos, ou não. Se são cobertos, quais os materiais usados? Sendo
a cobertura com têxteis, importava saber se eram de produção local, como os panos de
machira, ou se seriam finas sedas que lhes chegavam através do comércio de longa
distância? Na ausência dos têxteis, cobriam-se com peles de animais ou com fibras
vegetais?1455 As respostas a estas questões permitiam estabelecer algumas diferenciações,
no que se convencionava entre a cristandade europeia serem os povos bárbaros do mundo.
Aqueles que andavam nus, ou se cobriam escassamente com peles de animais, eram
considerados silvestres e mais próximos da restante fauna, ao passo que as comunidades
em que existia o labor transformador da tecelagem de fibras ou a presença de sedas
provindas do comércio a longa distância, eram consideradas socialmente mais
“domésticas”.
Para Frei João dos Santos,
“(…) a nação dos cafres é a mais bárbara, e bruta que há no mundo, porque nem adoram
a Deus, nem têm ídolos a que adorem, nem imagens, nem templos, nem usam sacrifícios,
nem menos têm ministros dedicados ao culto divino, cousa que toda a nação de gente tem,
polo instinto natural que os move à religião, e culto sagrado.”1456
1451
IDEM, ibidem, p. 175.
1452
IDEM, ibidem, p. 111.
1453
IDEM, ibidem, pp. 111-112.
1454
Pela correspondência da missão Jesuíta de Inhambane (1560-1562), sabe-se que os padres pediram aos
superiores em Goa, que lhes fosse enviado um retábulo, contendo imagens de diabos com “muitos cornos”,
para uso pedagógico, que esperavam pudesse induzir modificações nos hábitos dos africanos baptizados,
cujos penteados evocavam a imagem do diabo.
1455
Frei João dos SANTOS, op. cit., pp. 111-112.
1456
IDEM, ibidem, p. 100.
381
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1457
José da Silva HORTA, “A categoria de Gentio em Diogo de Sá: funções e nível de significação”, (…),
pp. 148-149.
1458
Frei João dos SANTOS, op. cit., p. 113.
1459
Giuseppe MARCOCCI, “Blackness and Heathenism. Color, Theology, and Race in the Portuguese
World, c. 1450-1600”, in Anuario Colombiano de Historia Social y de la Cultura, 43.2, pp. 33-57.
https://www.researchgate.net/publication/309581841_Blackness_and_Heathenism_Color_Theology_and
_Race_in_the_Portuguese_World_c_1450-1600#fullTextFileContent (Consultado em 10/01/2019)
1460
Frei João dos SANTOS, op. cit., p. 100.
1461
IDEM, ibidem, p. 240.
1462
IDEM, ibidem, p. 298.
382
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1463
IDEM, ibidem, pp. 564-566.
1464
Sobre a temática das práticas mágicas e da sua representação no Portugal quinhentista veja-se Francisco
BETHENCOURT, O imaginário da magia. Feiticeiros, saludadores e nigromantes no século XVI, Lisboa,
Projecto Universidade Aberta, 1987.
1465
Frei João dos SANTOS, op. cit., p. 566.
1466
IDEM, ibidem, pp. 121-122.
1467
IDEM, ibidem, p. 138.
383
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
de pobreza e “vida miserável”, que o autor considerava ser comum a toda a Cafraria.1468
Frei João dos Santos valoriza os lugares onde se regista a presença de portugueses, ao
passo que a sua descrição diminui o valor dos aglomerados de cafres gentios, por
considerá-los pequenos e pobres.
O missionário destaca diversos costumes que considera bárbaros, nomeadamente
os juramentos dos quais lhe parecia depender o sistema de justiça (lucasse, xoca e calão);
a poligamia como base das estruturas sociais e redes de poder; a renovação anual de
cerimónias fúnebres dedicadas aos reis defuntos; a feitiçaria; e a atribuição de um culto à
lua nova; entre muitas outras manifestações que conduziam à conceptualização do cafre
no âmbito de uma dicotomia essencialista.
Ora, tanto nas ilhas, como em terra firme, em Sofala, pelos Rios de Cuama e nas
terras do Mutapa, viviam espalhados muitos portugueses que, movidos pelo comércio, se
radicavam em aldeias, constituíam família e geravam descendência mestiça. Frei João dos
Santos baptizou centenas de filhos dos cristãos, que por estas terras viviam, e, em
cerimónias colectivas, teria alcançado milhares de cafres gentios que viviam “à sombra
dos cristãos”.1469 Depois do baptismo, era necessário catequizar para instruir as gentes da
terra e os portugueses que, segundo Frei Luís de Sousa, “quasi que tinhaõ perdido o
conhecimento de que eraõ Christaõs, devassos nos costumes, cegos nas obrigaçoens da
Fé, e mandamentos de Deos, e de sua Igreja”.1470 Das práticas catequéticas que de
contínuo eram ministradas, Frei João dos Santos destaca a celebração da missa, as
“práticas espirituais” entre as quais eram dados “os dias de guarda e de jejum”, 1471 a
confissão e os sacramentos. As cerimónias cristãs a que assistiam os portugueses atraíam
as gentes da terra, que acreditavam no grande Criador “que está no céu” e na imortalidade
da alma, sendo que quando a diversidade conceptual se manifestava em acções, os
missionários consideravam-nos pecadores e blasfemos, devido à ignorância da Fé Cristã
e das Escrituras.
1468
IDEM, ibidem, p. 114.
1469
IDEM, ibidem, p. 588.
1470
Frei Luís de SOUSA, op. cit., p. 365.
1471
Frei João dos SANTOS, op. cit., p. 588.
384
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Frei João dos Santos destaca duas grandes entidades políticas no sudeste africano:
os Estados do Quiteve e do Mutapa.
Estes Estados correspondem a poderes africanos, ligados por uma relação
genealógica pois, de acordo com as tradições que Mudenge sintetiza, Nyamunda
Mukombero, um dos filhos de Matope, fundador da dinastia dos Mutapas, teria iniciado
a conquista das terras do Uteve – Quiteve, de forma a poder exercer controlo sobre as
redes do comércio muçulmano, que ligavam o complexo comercial Sofala-Quíloa ao
planalto zimbabuéano.1472 Diversas versões de tradições locais referem que um filho ou
um irmão do Mutapa Mukombero teria fundado o novo reino que os portugueses
designaram por Quiteve.1473 O importante é considerar o Sachiteve como um soberano
pertencente à dinastia real Mutapa, incorporando um sistema político do qual faziam parte
estados como Barue, Manica e Danda que, de acordo com Gai Roufe, constituem a
Mocaranga, um sistema político assente em conceptualizações locais do parentesco.1474
Do reino do Quiteve - Uteve, com uma extensão territorial entre o rio de Sofala e
um vasto sertão, que se mostrava incerto ao observador exterior, Frei João dos Santos
constrói a imagem de uma unidade política autonomizada face ao Monomutapa. Neste
sentido, o autor critica João Botero, Luís de Guzman, Osório e Felippo Pigafetta, por
escreverem “informações pouco certas” e sem conhecimento directo e actualizado do
Estado do planalto e dos reinos que lhe pagavam tributo.1475 Ao tempo em que Frei João
dos Santos missionou na Cafraria, a configuração política, envolvendo uma relação de
suserania dos Mutapas sobre outras dinastias e Estados não era verificável e, com base
nas informações recolhidas no terreno afirma que os Estados do Quiteve, Quissanga e
Sedanda “nenhum destes (…) paga tributo, nem vassalagem ao Manamotapa, antes são
todos livres, e supremos, e alguns deles têm guerra com o mesmo Manamotapa”. 1476
Depois de algumas décadas, em finais do século XV, em que os Mutapas dominaram por
1472
S.I.G. MUDENGE, op. cit., p. 46.
1473
IDEM, ibidem.
1474
Gai ROUFE, “Local Perceptions of Political Entities along the Southern Bank of the Zambesi in the
16th and Early 17th Centuries”, (…), p. 55.
1475
Frei João dos SANTOS, op. cit., pp. 218-220.
1476
IDEM, ibidem.
385
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1477
S.I.G. MUDENGE, op. cit., p. 55.
1478
Frei João dos SANTOS, op. cit., pp. 96-98.
386
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
O relato de que o Sachiteve teria mais de cem mulheres, e que, dessas, uma ou
duas seriam “grandes, como rainhas”, suscitava um enquadramento marginal, no âmbito
da ética do poder.1479 Essa marginalidade agravava-se com as informações acerca de
costumes que envolviam a morte do rei, nomeadamente a ideia de que as esposas reais
eram sacrificadas para o acompanharem no túmulo e o costume do lucasse, que consistia
no juramento envolvendo ritual de envenenamento dos diversos suspeitos dessa morte,
na origem da qual se supunha existir sempre algum acto de feitiçaria.1480
Relativamente às “mulheres” ou “esposas” do Sachiteve, mais uma vez
mobilizamos a interpreração de Gai Roufe, de que “as esposas” não seriam
necessariamente mulheres biológicas.1481 Roufe e Miller apelam à necessidade de se
atender aos múltiplos significados que uma palavra pode assumir nas língua e dialectos
falados na região do baixo Zambeze.1482 Muito provavelmente a informação chegou a
João dos Santos na forma uma palavra traduzida literalmente, perdendo-se o significado
indígena de “esposa” no contexto das concepções políticas locais, que designava pessoa
dependente ou subordinada de qualquer género.1483 O ritual do sacrifício de tais
subordinados, mulheres ou homens, significa que estes tinham a incumbência de guardar
o túmulo do rei defunto e venerá-lo para o resto das suas vidas, mobilizando a percepção
local da criação das entidades políticas que compunham a Mocaranga. 1484 A guarda dos
túmulos dos chefes das entidades políticas pelas populações significava manter o legado
político na “casa” do espírito ou Zimbabwe.1485 A guarda deste legado implicava “casar”
com o sucessor, significando isso que toda uma população aceitava a subordinação ao
novo rei e ratificava os laços de afinidade.1486
Um discurso que decorre de uma tradução literal e sem o enquadramento
conceptual local conduz a leituras distorcidas de práticas sociais e políticas diversas, que
foram integradas pelo missionário no tópico das sociedades “bárbaras”.
1479
Frei João dos SANTOS, op. cit., pp. 87-88.
1480
IDEM, ibidem, p. 88.
1481
Gai ROUFE, “Local Perceptions of Political Entities along the Southern Bank of the Zambesi in the
16th and Early 17th Centuries”, (…), p. 63.
1482
Gai ROUFE e Joseph C. MILLER, “African Voices Echoing in European Texts: The Muffled Meanings
of the Madzimbabwe of the Mocaranga between the Sixteenth and the Nineteenth Centuries, (…), p. 10.
1483
IDEM, ibidem, p. 11.
1484
IDEM, ibidem, p. 22.
1485
IDEM, ibidem, p. 31.
1486
IDEM, “Local Perceptions of Political Entities along the Southern Bank of the Zambesi in the 16th and
Early 17th Centuries”, (…), pp. 66-67.
387
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1487
Frei João dos SANTOS, op. cit., p. 207.
1488
G. L. RANDLES, L’Image du Sud-est Africain dans la Littérature Européenne au XVI Siècle, (…), p.
47 e pp. 79-80.
1489
Frei João dos SANTOS, op. cit., p. 220.
1490
IDEM, ibidem, pp. 312-313.
1491
IDEM, ibidem, p. 247.
388
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
constituído por uma multiplicidade de territorialidades sociais não existindo, no séc. XVI,
uma identidade étnica que apontasse para o que veio a ser a construção do “mundo
macua”.1492
Os Macuas organizavam-se em pequenas aldeias e as unidades políticas que Frei
João dos Santos designava de reinos eram pequenas chefaturas, como a de “um cafre
chamado Galo, que tem nome de rei, mas seu reino é pequeno, de poucos vassalos, e
menos sustância”.1493 Apesar de predominarem as unidades políticas de pequena escala,
pelo interior viviam alguns “reis grandes, e poderosos” 1494, como o reino de Mongalo,
“senhor de muitos vassalos”, que dominava terras férteis e ricas em mantimentos. 1495
Entre as comunidades Macuas viviam muitos mouros e alguns chefes africanos
convertiam-se ao Islão, como foi o caso do Sapata, próximo de Quelimane, que por se ter
“feito mouro (…) era malquisto, e odioso a todos os cafres”.1496
O vocábulo macua corresponde a um etnónimo identificativo exterior,
muçulmano, aplicado a uma diversidade de populações não islamizadas. Enquanto a
palavra cafre, deriva do árabe e significa infiel, renegado e bárbaro Macua deriva,
segundo António Pires Prata, do termo local nikhuwa (plural makhuwa), com o
significado de “grande extensão de terra”, “sertão”, “selva”, “deserto”, tendo-se
acrescentado também o sentido pejorativo de “rude”, “selvagem”, “povo gritador e
barulhento”.1497 A este indicador negativo parecem corresponder as palavras de Frei João
dos Santos, quando refere que o modo de falar dos Macuas é “muito áspero, como quem
peleja”, posicionando-os na antítese dos Mocarangas, que considerava falarem a mais
polida das línguas da Cafraria.1498
Frei João dos Santos descreve as populações que, ao longo do séc. XVI, vão
ocupando a margem norte do Zambeze, desde os sertões até à terra firme frente à Ilha de
Moçambique. A chegada de chefaturas Macuas, aos litorais do Índico, resultava de
mudanças no panorama geopolítico da região, provocadas pela já mencionada expansão
1492
Eduardo MEDEIROS, “O Islão e a construção do «Espaço Cultural e Social Macua»”, in José Damião
RODRIGUES e Casimiro RODRIGUES (Ed.), Representações da África e dos Africanos na História e
Cultura – séculos XV a XXI, (…), p. 209.
1493
Frei João dos SANTOS, op. cit., p. 240.
1494
IDEM, ibidem, p. 247.
1495
IDEM, ibidem, p. 265.
1496
IDEM, ibidem, p. 240.
1497
Eduardo MEDEIROS, op. cit., p. 199, nota 13.
1498
Frei João dos SANTOS, op. cit., p. 222.
389
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
de povos Maraves, a partir do norte do Zambeze. Eugénia Rodrigues explica que este
grupo de povos, oriundos da região Luba-Lunda, exerceu pressão sobre outros povos que
viviam na margem sul do Zambeze.1499 É neste sentido que se enquadra a referência de
que algumas nações, sujeitas ao rei Mauruça, haviam chegado como estrangeiros à terra
firme da Ilha de Moçambique, que ocuparam e usurparam, tendo ficado com a fama, entre
as populações locais, de que matavam e comiam todos quantos achavam.1500
Os traços de identidade física de alguns destes grupos mereceram um descritivo
muito vívido por parte do frade, que se espanta com os corpos furados e pintados. De
entre as particularidades que mais lhe chamaram a atenção, os Macuas limavam os dentes
de cima e de baixo, de modo que pareciam agulhas, escarificavam a pele, furavam as
queixadas, desde a orelha até quase à boca, e, nesses buracos, metiam uma rolha de pau
ou de chumbo. Traziam as orelhas todas furadas e nos buracos metiam paus delgados. O
autor reúne no seu descritivo um conjunto de manifestações corporais, cujos significados
sociais e culturais lhe eram ininteligíveis. Somente o conceito de “barbárie” permitia
enquadrar tantos atributos desviantes, face ao padrão que conhecia. A natureza,
supostamente gentílica ou a propensão destas populações para apreender a Lei Natural,
poderia fazer prever um sucesso missionário. Porém, Frei João dos Santos sublinha a
dificuldade continuamente sentida em “converter, e trazer ao conhecimento de seus
erros”, o que considerava dever-se à natureza muito bárbara daquela gente.1501 Tanto a
missão jesuíta de Inhambane, como a missão dominicana em que participou Frei João dos
Santos, constatam os muitos erros e desvios dos cafres no que se refere às práticas da sua
vida social e comunitária, bem como a ausência de uma verdadeira conversão pelo ritual
do baptismo. Sobre este aspecto, Monclaro havia já referido que os povos da Cafraria
não têm nenhum entendimento do que “hé ser christão, porque andão tão metidos em seus
costumes e contentamentos da carne, que da alma, como a não vêm, não sabem nada e
cuidão que ser christão não hé cousa de outra vida, senão ser como amigos dos
portugueses”.1502
1499
Eugénia RODRIGUES, op. cit., pp. 104-105.
1500
Frei João dos SANTOS, op. cit., p. 249.
1501
IDEM, ibidem, p. 556.
1502
390
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
O texto de Frei João dos Santos funciona, ainda, como testemunho escrito de
tempos conturbados nos territórios ao sul do Zambeze, assolados por guerras, fomes e
doenças. O autor refere quatro pragas que se abateram sobre a Cafraria, que terão sido as
agressivas investidas dos exércitos Zimbas, sendo o ano 1589 particularmente dramático,
a grande praga de gafanhotos que consumiu todas as searas, hortas e palmares, a fome
que dizimou muita população e levou ao aumento da venda de pessoas a troco de
alimento, e a grave epidemia de varíola, conhecida como “doença de bexigas”.1503
A primeira praga da Cafraria, referente à invasão dos povos Zimbas, remete-nos
para o processo de desintegração das linhagens dirigentes Maraves que, a partir da África
Central, se impunham sobre outros povos, levando à afirmação de novos poderes, com
implicações na margem sul do Zambeze. 1504 As informações africanas, acerca desta
expansão, que chegavam a João dos Santos referiam um ambicioso “cafre muzimba”, que
querendo expandir o seu poder partira à conquista das terras localizadas para leste, num
movimento militar que destruía e progressivamente integrava os povos conquistados. 1505
“(…) saieram de suas terras, e começaram logo exercitar sua fúria em seus vizinhos, e
foram por todos os lugares, e reinos da Cafraria, caminhando sempre pera o levante; polas
quais terras iam destruindo, e roubando quanto achavam, matando, e comendo toda a
cousa viva, assi homens, mulheres, e mininos, como gado, cães, gatos, ratos, cobras, e
lagartos, sem perdoarem a ninguém, salvo aos cafres que se vinham pera eles, e os
queriam acompanhar nesta empresa, os quais admitiam a seu exército. E desta maneira
ajuntaram mais de quinze mil homens de guerra, com que foram assolando todas as terras
por onde passavam, que parecia um cruel açoute, e castigo que Deus quis dar a esta
Cafraria.”1506
São diversas as passagens textuais da Ethiopia Oriental que fixam o estereótipo
dos povos Maraves, como selvagens antropófagos: “Têm de costume comer a gente que
matam em guerra, e beber polas caveiras, mostrando-se nisso fonfarrões, e ferozes”1507,
havendo até um chefe, o Quizura, a cuja casa se acedia através de uma calçada de caveiras
1503
IDEM, ibidem, p. 278.
1504
S.I.G. MUDENGE, op. cit., pp. 224-225.
1505
Frei João dos SANTOS, op. cit., pp. 234-235.
1506
IDEM, ibidem, pp. 234-235.
1507
IDEM, ibidem, p. 229.
391
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
humanas.1508 Este chefe, que se tinha apoderado das terras de Chicarongo, a dez léguas
de Tete, era retratado como um ladrão muito cruel que comia as gentes vencidas na guerra,
mas também os seus cativos, vendendo a carne humana no açougue.1509 Mas, a selvajaria
atribuída a estes povos e seus soberanos revestiu-se também de alguma ambiguidade,
nomeadamente no caso da punição de que foi alvo o rei de Quíloa, pois na visão de João
dos Santos, a punição de um traidor era considerada “sentença certo não de bárbaro, como
este era, senão de homem prudente”.1510 Frei João dos Santos não só testemunhou o rasto
de destruição deixado pelos Zimbas, no norte do Zambeze, registando a notícia do
“horrendo, e lastimoso espectáculo” da morte do capitão de Tete e de Frei Nicolau da
Rosário, no ano de 1592, mas também fixou a representação que os povos do Planalto e
do vale do Zambeze construíam sobre os invasores vindos da margem norte do rio e cuja
ação militar se fez sentir até Quíloa.1511
Eric Allina, debruçou-se sobre o significado das extensas descrições do frade
dominicano acerca destes povos, supostamente antropófagos. Questionou até que ponto
alguns detalhes de “barbárie” que o missionário registou seriam construções de retórica
que iam ao encontro de uma “cultura de curiosidade” dos europeus? Ou até que ponto o
assunto do canibalismo se posicionaria num plano retórico e metafórico africano? 1512
Analisando vasta documentação e estudos relativos à África Central, Allina verificou que
o tópico do canibalismo correspondia, numa das suas acepções, a uma expressão
idiomática associada a manifestações de abuso e à iniquidade política e social.
Também John Thornton analisou documentos e testemunhos recolhidos de
escravos que, perante a situação social em que haviam caído, temiam ser mortos e
devorados.1513 Na ideologia local, considerava-se que um abusador devorava as gentes
vulneráveis. Traficantes de escravos, chefes ou reis tiranos e também exércitos agressivos
eram considerados canibais; atividades de bruxaria, avareza e todos os tipos de abuso
social eram formas de “comer” ou “devorar” as pessoas.1514 No caso concreto dos Zimbas,
1508
IDEM, ibidem, pp. 225-226.
1509
IDEM, ibidem.
1510
IDEM, ibidem, p. 236.
1511
IDEM, ibidem, p. 236.
1512
Eric ALLINA, op. cit., pp. 211-227.
1513
John THORNTON, “Cannibals, Witches, and Slave Traders in the Atlantic World”, The William and
Mary Quarterly, Vol. 60, No. 2, Apr. 2003, pp. 273-294.
1514
IDEM, ibidem, p. 225.
392
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1515
Eric ALLINA, op. cit., p. 216.
1516
Gehrard LIESEGANG, op. cit., p. 24.
393
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Frei João dos Santos foi ainda contemporâneo de diversos naufrágios de navios
portugueses na costa da Cafraria, detendo-se na descrição de alguns destes
acontecimentos e da natureza dos confrontos entre os náufragos e os cafres.
Notoriamente, a partir das experiências dos naufrágios e das informações que a esse
respeito recolheu, o autor concebeu duas vastas zonas distintas na Cafraria: uma, a sul da
ilha do Inhaca e do rio Limpopo, por onde sobreviveram os náufragos das naus S. Tomé
e Santo Alberto; outra, correspondendo à restante Ethiopia Oriental, terminando a
nordeste, no Cabo Guardafui, onde ocorreram os naufrágios das naus Nossa Senhora do
Castelo, S. Luís, Santiago e Madre de Deus.
Da Cafraria a sul do Inhaca destaca os “cafres bem inclinados” da Terra dos
Fumos, “mui diferentes de outros que por esta terra moram”.1517 Sobre aqueles povos,
que outras fontes designaram de Macomates, relata um episódio de grande impacte sobre
as representações africanas acerca do encontro com os náufragos, nomeadamente o
espanto perante o homem branco:
“cousa que eles até então não tinham visto, chamaram-lhes filhos do sol, e como a tais
lhes fizeram muito gasalhado, e lhes deram de comer, e beber”. 1518
1517
Frei João dos SANTOS, op. cit., pp. 543-544.
1518
IDEM, ibidem, p. 543.
1519
IDEM, ibidem, pp. 577-578.
1520
IDEM, ibidem, p. 536.
394
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Linde, “onde foram logo despidos, roubados, e espancados pelos cafres da terra”. Um
segundo grupo que se salvou deste naufrágio incluía o piloto da nau, o padre dominicano
Frei Tomás Pinto, que levava por missão vir a ser Inquisidor da Índia, o padre Frei Adrião
de S. Jerónimo e o jesuíta Pero Martins. Também estes, ao chegarem à costa entre o rio
de Loranga e o de Quizungo “foram salteados polos cafres, despidos, e roubados, e alguns
deles feridos”, ficando depois cativos dos cafres. Um terceiro grupo que se salvou numa
jangada, arribou a uma praia entre o rio Linde e o rio de Cuama-a-Velha, onde também
foram “roubados polos cafres”, tendo padecido grandes fomes porque os cafres lhes
negavam alimento.1521
Em 1595, a nau Madre de Deus perdia-se na costa deserta, a nordeste de
Mogadíscio, território tão abrasado e estéril pelo grande calor, desabitado e sem
mantimentos nem água, que os poucos náufragos sobreviventes chegaram ao cabo
Guardafui “todos esfolados do sol, e negros como cafres (…) que mais representavam a
figura da morte que a de homens vivos”.1522 Reafirmavam-se estereótipos já correntes na
época sobre a Cafraria como território perigoso e dos cafres, como elementos humanos
associados a um conjunto de significados em negativo, ao mesmo tempo que tomava
forma uma conceção de duas zonas distintas na Cafraria.
1521
IDEM, ibidem, pp. 525-527.
1522
IDEM, ibidem, pp. 380-381.
395
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
superstições das gentes de Sofala e dos remédios contra a malária, que aplicavam nas
ilhas Quirimbas, teve conhecimento directo. Acerca dos poderes do Quiteve e do
Monomotapa e suas concepções religiosas, informou-se junto de “cafres honrados, e bem
entendidos”.1523 O mesmo sistema de informação levou-o ao conhecimento dos
“juramentos espantosos”, como o lucasse, a xoca e o calão, que consta terem sido vistos
por “pessoas de crédito” de Sofala.1524 O recurso aos informadores locais, considerados
credíveis, permitiu integrar no seu discurso muitas tradições orais e representações
africanas. Sobre os tempos de mudança violenta que se viviam no sudeste africano,
marcados sobretudo pelas migrações dos povos Maraves para sul do rio Zambeze,
vivenciou toda a conjuntura de insegurança e movimentação militar e teve acesso
imediato a informadores africanos. Na sua perspectiva de missionário católico, por
referência à matriz cultural bíblica, interpretou ser este o tempo das quatro pragas da
Cafraria.
A sua dimensão da Cafraria é lata, pois corresponde a vastos territórios onde
vivem os “cafres” ou gente “negra” na acepção unitária do Outro.1525 Por vezes
especializa o sentido para “cafres cristãos”, referindo-se aos que aceitaram o baptismo,
outras vezes, para “cafres mouros”, que identifica a gente da terra que professava o Islão
ou que vivia em aldeias com “mouros”, aliando-se a estes através dos laços familiares ou
do comércio.
Mas Frei João dos Santos designa também por “cafres” os habitantes de Angola.
Ao referir-se ao reino de “Abatua” (Butua), um dos reinos que fazia fronteira com
o Monomotapa, o qual seria tão extenso que:
“dizem que chega pelo meio da terra firme até os confins do Reino de Angola, com cujos
cafres tem comercio”. 1526
1523
IDEM, ibidem, p. 102.
1524
IDEM, ibidem, pp. 108-110.
1525
Jeremy PRESTHOLDT, “Portuguese Conceptual Categories and the “Other” Encounter on the Swahili
Coast”, in Journal of Asian and African studies, Vol. 36, Nº 4, February 2001, pp. 383-384.
1526
Frei João dos SANTOS, op. cit., p. 205.
396
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
como também indica ter recebido este dado geo-político de relevo para os portugueses,
através da oralidade.
A informação densa que esta obra contém, acerca de territórios e povos onde
actuavam os missionários dominicanos, transformam-na numa grande síntese que, nestes
primórdios da globalização, a imprensa permitiu disseminar.
Para além da riqueza descritiva incluída na obra, a mesma comportava em si um
conjunto de estereótipos e categorias de análise geográfica e antropológica, que teria a
sua primeira divulgação europeia com a versão latina da obra do jesuíta, Alonso de
Sandoval, De instauranda Aethiopia salute, publicada em Sevilha, em 1627.1527 De
acordo com Teresa Nobre de Carvalho, através da obra em latim de Sandoval, os
conteúdos da Etiópia Oriental entravam “nos círculos cultos europeus”.1528
Em 1625, o compilador inglês Samuel Purchas publicou alguns excertos da obra
do dominicano na sua coleção de relatos de viajantes, Collections out of the Voyage and
Historie of Friar J. dos Santos his Aethiopia Orientalis.1529
As mencionadas versões da obra, em latim e inglês, a que se seguiu a tradução
francesa abreviada, do padre Gaëtan Charpy, nas edições de 1684 e 16881530, que serve
de base para a segunda edição em língua inglesa, em 1814, por John Pinkerton, numa
coleção monumental de relatos de viagens, permitiram alcançar vastos círculos de leitores
1527
O jesuíta Sandoval, reitor do Colégio de Cartagena de Índias, destacou-se pela evangelização de
escravos africanos e terá redigido a obra De Instauranda Aetiopum Salute numa viagem a Lima, entre 1517-
1519. Segundo a estudiosa Andrea Guerrero Mosquera, a 1ª edição terá sido publicada em Sevilha, em
1627, pelo impressor Francisco de Lira. O tomo I tem a sua 2ª edição em Madrid, em 1647. Veja-se Andrea
Guerrero MOSQUERA, “Alonso de Sandoval: un tratadista en Cartagena de Indias”, in Cuaderno de
Bitácora. El Caribe: Epicentro de la América Bicentenaria III, Fundación Carolina Colombia, Edición E-
book, diciembre 2012, p. 19. Sobre as edições da obra, veja-se Eduardo RESTREPO, “De instauranda
æthiopum salute: sobre las ediciones y características de la obra de Alonso de Sandoval”, in Tabula Rasa,
3, 2005, pp. 13-26. https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=396/39600302 (Consultado em 27/09/2020)
1528
Teresa Nobre de CARVALHO, “Registos da biodiversidade africana anotados por Frei João dos Santos
em «Etiópia Oriental» (Évora, 1609)”, in Atas do Congresso Internacional Saber Tropical em
Moçambique: História, Memória e Ciência, Lisboa, Instituto de Investigação Científica Tropical, 2013, pp.
4-5. https://2012congressomz.files.wordpress.com/2013/08/t05c02.pdf (Consultado em 27/12/2018)
1529
Samuel PURCHAS, “Collections out of the Voyage and Historie of Friar J. dos Santos his
Æthiopia Orientalis and Varia Historia, and out of other Portugals,
for the better knowledge of Africa and the Christianitie therein”, in Hakluytus posthumus or Purchas his
Pilgries, Vol. 2, London, W. Stansby for H. Fetherstone, 1625, pp. 1525-1556. Veja-se também New
Edition Glasgow, Vol. 9, James Mc Leosh & Sons, 1905, pp. 197-255.
1530
Gaëtan CHARPY, Histoire de l’Ethiopie Orientale composée en Portugais par le R. Pere Jean dos
Santos, Religieux de l’Ordre de S. Dominique, A Paris, Chez André Cramoisy, 1684.
397
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
na Europa. Deste modo, a Etiópia Oriental afirmava-se como uma relevante síntese
geográfica e antropológica versando a África do Sudeste e fonte autorizada para
cartógrafos, geógrafos e enciclopedistas, até ao século XIX. 1531 A par das informações de
natureza supostamente objetiva, a Etiópia Oriental veiculou também o seu universo de
imaginários e representações sobre os cafres como bárbaros e antropófagos, tendo
certamente contribuído para a persistência desta imagem nas escritas europeias até ao
advento dos sistemas coloniais.
1531
Teresa Nobre de CARVALHO, op. cit., p. 5.
398
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Conclusão
399
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
suscitou ampla especulação acerca da sua existência, das diversas hipóteses relativas à
sua habitabilidade, o que envolvia questionar se, sendo aquela finisterra habitada, o seria
por criaturas humanas ou por raças monstruosas. Estes esquemas especulativos deixaram
um lastro teórico e imagético na ordem discursiva sobre aquela parte do mundo e seus
habitantes, que emerge subtilmente aquando dos contactos.
Da cosmografia medieval, que concebia a África como a terceira parte do mundo,
habitada pelos filhos de Cam, a modernidade europeia cristã recebeu um dos componentes
da sua complexa matriz epistemológica por referência à qual os mundos novos foram
percepcionados e descritos. Foi a partir dos referenciais culturais que postulavam um
centro do Orbe, cristão, que se analisaram as periferias, durante muito tempo incógnitas
e inventadas. As viagens marítimas empreendidas pela coroa portuguesa para estabelecer
uma ligação à Ásia permitiram a revelação gradual de grandes extensões litorais da África
meridional e do sudeste, onde se estabeleceram zonas de contacto com as sociedades
africanas sobre as quais se desenvolveram discursos.
As escritas produzidas no âmbito dos contactos directos com a diversidade
geográfica e antropológica, ou decorrentes da recolha de informações orais, de leituras,
transcrições e compilações, vieram a construir sentidos e imagens mentais que, por sua
vez circularam, foram apropriados, geraram outras imagens e estereótipos que se
replicaram e cristalizaram naquilo que se considera um amplo “arquivo” europeu de
representações sobre determinada extensão do continente africano.
É na zona de contacto, estabelecida entre os litorais de Sofala e a ilha de
Moçambique, que se dá a adopção, por empréstimo, do vocábulo kaffir para designar as
populações africanas não islamizadas. Proveniente do mundo árabe-suaíli, o termo que a
partir de 1505 teve grafia variável, mas que havia de se estabilizar na forma “cafre”, tinha
já uma longa história na categorização de povos que, do ponto de vista religioso,
significavam um oposto: o infiel, o descrente, o ignorante e renegado. Em termos
linguísticos, quando o vocábulo “cafre” entra nos falares portugueses, em inícios do
século XVI, já comportava em si uma forte carga pejorativa, associada ao pecado, à
descrença e à infidelidade dos africanos não islamizados da costa oriental africana.
As informações acumuladas durante os contactos empreendidos ao longo do
século XV, com sociedades da África ocidental, e também a herança de um ideário
medieval relativo aos africanos, condicionaram as percepções e os discursos produzidos
400
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
sobre a África do Sudeste. Ainda que a experiência da viagem e do contacto directo opere
correcções ao nível da geografia positiva e das descrições antropológicas, alargando o
leque das novidades acerca de uma extensa parte do mundo que se revela diversa, rica e
heterogénea, verifica-se a persistência de estereótipos e categorizações que são
convocados a preencher determinados níveis de representação nomeadamente no que se
refere aos códigos de descrição do corpo, das crenças e modos de viver.
A partir do corpus documental, a sequência de análise deve ser vista como um
todo, não tendo sido a tipologia dos documentos que organizou a análise e a reflexão, mas
antes aquilo que os textos revelam sobre o objecto em estudo. Neste sentido, procuramos
reunir uma amostragem significativa e diversa de fontes para o estudo das categorias de
representação cafre e Cafraria, definindo a sua historicidade e os seus contornos.
O corpus documental permitiu identificar três fases na construção das categorias
de representação da terra e das populações da África do Sudeste, a saber:
1ª fase – 1497-1510 - cronologicamente marcada pelos primeiros contactos
estabelecidos com as populações khoisan e com sociedades bantófonas da costa leste
africana. As representações formuladas nesta fase são um reflexo do encontro com a
humanidade do mundo austral e da costa do Índico, que se revelava progressivamente ao
conhecimento do ocidente através das informações portuguesas. Na vasta costa navegada
entre o cabo da Boa Esperança e a ilha de Moçambique, é Sofala que desperta o interesse
da coroa portuguesa, que aí projecta a construção de um forte e que, na sequência de
diversas armadas enviadas de Lisboa, se estabelecem os contactos com os poderes
africanos locais. Neste período, o vocábulo cafre entra nos falares portugueses da região
para designar as populações africanas não islamizadas, ao qual se acrescentava, com
frequência, e quase em sinonímia o qualificativo “negro”.
É também nesta fase que, através da carta do rei D. Manuel aos reis Católicos se
faz a primeira difusão internacional do termo cafre, não por referência aos povos do
sudeste africano, mas para se referir aos “idólatras” de Calicute, o que pressupõe uma
associação entre a “cafritude” e a “idolatria”. De Sofala, o documento diplomático
divulga a ideia de uma terra de “ouro infinito” que aí afluía de sertões habitados por povos
monstruosos e antropófagos. Esta carta, referindo-se a populações dos sertões de Sofala,
e o Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira, referindo-se aos povos de
Anzica, a nordeste do reino do Kongo, lançavam o mito da antropofagia na África central
401
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
402
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
403
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
404
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
405
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
406
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Pela análise e cruzamento de todas estas fontes é possível aferir que nos séculos
XVI e XVII se construiu uma representação portuguesa dos cafres e da Cafraria com
larga projeção na Europa culta e prolongando uma herança histórica de longa duração.
Mesmo os contactos no terreno não apagaram a imagem pejorativa, marginal e
assimétrica ligada à África meridional e do sudeste a que se aplicou o macro-topónimo
Cafraria. Não deixaram, porém, de se registar algumas vozes dissonantes, especialmente
de homens práticos que andavam no trato dos Rios de Cuama, que olharam as populações
africanas sem o peso das categorizações apriorísticas que já se haviam instalado nos
círculos eruditos. Note-se, ainda, que mesmo nos discursos mais marcados por uma
imagem depreciativa não deixam por vezes de ser reconhecidos alguns aspectos positivos
e surpreendentes decorrentes dos contactos e interacções culturais no terreno.
As fontes que constituem este corpus permitem-nos acompanhar a construção das
categorias de representação e classificação cafre e Cafraria, as quais passaram a designar,
a partir do século XVI, novas realidades antropológicas e geográficas através de um
processo simbiótico que cruza as heranças culturais com os novos dados do
conhecimento.
Terra de cafres foi a designação que primeiro se aplicou às extensões da costa
africana entre o cabo da Boa Esperança e o cabo das Correntes, identificando os territórios
que foram palco de naufrágios de navios e travessias pedestres dos sobreviventes. A
definição do topónimo Cafraria correspondeu a uma maior especificação e apropriação
do espaço, que ocorreu nos textos e resistiu a figurar na cartografia portuguesa,
maioritariamente manuscrita. Desde a primeira década do século XVII que se fixaram os
contornos da Cafraria como categoria geográfica, que tinha o seu começo no cabo Negro,
no sudoeste africano, e terminava no sudeste do continente, oscilando o seu limite entre
o cabo das Correntes e os rios de Cuama, ou ainda mais a norte, dependendo dos autores.
O vocábulo cafre foi adoptado como um adjectivo, que qualificava populações
quanto à sua natureza espiritual e religiosa, ao qual se associou sempre um conjunto de
atributos negativos. Por vezes o seu uso foi o de um substantivo que identificava
determinado tipo humano, sem a carga religiosa herdada da cultura islâmica e, por vezes,
em sinonímia com “negro ou “preto”. Foi frequente as descrições aludirem às muitas
“nações de cafres”, aplicando-se a uma diversidade de sociedades não islamizadas da
África oriental.
407
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1532
Agradeço ao Dr. Carl Vernon, biólogo do East London Museum, na África do Sul, que comigo
partilhou estas informações sobre taxonomia das plantas nativas do Cabo Oriental.
408
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
409
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
ANEXOS
410
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
411
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1. DOCUMENTOS
Os dois documentos que integram este anexo são manuscritos inéditos que são
interpretados ao longo do trabalho. São, pois, precisamente apresentados pela ordem de
remissão do texto para facilitar a sua consulta e leitura integral. Apesar de se conhecerem,
dos dois primeiros documentos, outras versões publicadas, estes textos registam
diferenças consideráveis relativamente às edições existentes. Além disso, estes
manuscritos consideram-se fundamentais porque versam as categorias de cafre e de
cafraria em análise no trabalho.
1533
Cf. Eduardo Borges NUNES, Álbum de Paleografia Portuguesa, Lisboa, Instituto de Alta Cultura-
Centro de Estudos Históricos anexo à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1969 e “Varia
Paleographica, Maiora ac Minora”, in Portugaliae Historica, 1973, pp. 223-243 e 405-410.
412
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Documento 1
Documento 2
413
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1.3. DOCUMENTOS
414
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Documento 1
s.l., s.d.
415
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Por se vingarem daquella afronta, hum Gonçalo Homem, criado do Viso Rey,
trouxe dous delles enganados, carregados de certas cousas que elle lhes comprara & como
os Cafres de ma vontade querião chegar a praya, sospeitosos da malicia delles, & elle
hum pouco por força os quizesse obrigar, deixarão o que trazião, e tratarão tão mal ao
Portuguez que se veyo aprezentar ante o Viso Rey com o rosto cheyo de sangue, e alguns
dentes quebrados ; e foy isto em tempo que estavão com o Viso Rey algumas pessoas,
cujos criados tinhão recebido dos negros outra tal companhia ; principalmente hum
Fernão Carrafeo criado do capitão Iorge de Melo : & tanto se indignarão contra todos os
Cafres que moverão ao Viso Rey a sahir ate a povoação, e dar lhe hum castigo, mais por
comprazer aquelles fidalgos, que o incitarão, do que elle tinha vontade de o fazer ; com
tudo isto alguns delles forão de parecer contrario, como forão os capitães Lourenço de
Brito, Iorge de Melo, e Martim Coelho.
E porque a povoação estava hum pouco assima se foi em os bateis com I50.
soldados dos melhores de toda a gente, e desembarcou mais junto das aldeas ; deixando
dito a Diogo de Vnhos mestre da sua nao que em os bateis ficava, que não se apartasse
daquelle lugar, e não parece senão que seu coração lhe dezia quanta necessidade avia de
ter delles : & em o aspecto que /fl. 2/ levava naquella jornada lhe pronosticava sua ultima
hora : porque despois que concedeo aquella ida aos fidalgos que o persuadião a isso,
sempre disse, e fez cousas como que annunciava a morte ; e assim sahindo do batel disse :
Adonde levão 60 annos ! Despois caminhando pella praya, acertou de se meter huma
pouca de area pellos çapatos, e mandando a hum Ioão Gonsalvez que lhe servia de
Camareiro que lhos descalçasse, começou este Ioão Gonsalvez a bater hum no outro para
lançar a area fora. Ao que ele disse : Quão fora estava D. Ioão de Meneses, se aqui fora,
e ouvira esse seu bater de çapatos dar hum passo mais adiante, ajnda que fora para dar
huma batalha muyto de sua honra : mas como eu creyo mais em Deos, que em abusos,
não deixarei de seguir meu caminho.
E o caso que o Viso Rey alegava com D. Ioão, era por ser cousa muy sabida em o
Reyno de Portugal, que tinha o agouro em duas cousas ; em o bater dos çapatos, & em o
dia de terça feira ; pello que lhe socedeo em o tempo que lhe morreo o Principe D. Afonso
ao tempo que em Sanctarem cahio do cavalo ; & em outras ocasiões : porem em o Viso
Rey foi o contrario, porque fez zombaria do bater, que aconteceo a cazo, o qual não tardou
416
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
meya hora que o não notasse em a aldea dos Negros. Porque entrada ella dos nossos,
matarão a Fernão Pereyra ; e chegando a nova ao Viso Rey, mandou logo com toda a
pressa recolher a gente ; e vindo já por caminho, e andado meya legua, trazendo os
soldados algumas vacas, e crianças que acharão pellas cazas ; começarão de descer do
lugar / fl. 2 v./ ate 80. delles, como gente que se vinha offrecer a morte por salvar seus
filhos ; e vendo a resolução delles, mandou o capitão Brito deixar as crianças : porem
elles vinhão furiosos, que passando por tudo, derão em o corpo dos nossos, tomando por
industria carear, e asubiar ao seu gado, que como o tem acostumado para aquelle
ministerio da peleja, começarão de lhe fazer os sinais, e outras cousas : de maneira que
lançados entre elle, como em esquadrão de seu amparo arremessarão aos Portugueses seus
paos tostados, com que comessarão logo de cahir alguns dos nossos feridos, fazendo-lhes
dano tambem o gado ; e como os mais delles não trazião armas offensivas, e as que trazião
era huma pica, & espada, e naquelle modo de peleja não podião fazer muyto dano aos
Cafres, & elles de dentro do gado atiravão com seus arremessos que derribavão logo hum
Portuguez.
Em este modo de peleja vindo os nossos bem cançados, e para tomarem algum
alivio se forão retirando ate os bateis, donde mandou o Viso Rey ficar o mestre da nao
Diogo de Vnhos, mas não os acharão, por fazer alli grandes ondas o mar, com o tempo
que lhes sobreveyo, que causou levarem os bateis para junto das naos, de maneira que
adonde esperavão algum refugio, acharão a morte ; porque estando em a area da praya,
ficarão de todo decepados, sem poder dar mais hum passo, e os Cafres andavão tão soltos,
e ligeiros que parecião aves, movendo se para toda a parte com /fl. 3/ notavel ligeireza,
derribando em os fidalgos, e cavaleiros, que por respeito do Viso Rey o vinhão
acompanhando com grande trabalho sem se poderem deslindar delles. O mais piedoso de
tudo isto foi que alguns Portugueses vinhão já muy feridos, e de não poderem pella area
solta dar hum passo se metião pella1534 agua por acharem o chão mais tezo, tengindo o
mar com o seu proprio sangue, não podendo ajudar huns aos outros em aquelle trabalho ;
e assim veyo o capitão Iorge de Melo a encontrar se com o Viso Rey, e vendo que vinha
algum tanto desemparado da gente, por cada hum ter bem que fazer em si, lhe disse o
capitão Melo (por vir hum pouco descontente delle sobre as cousas de Afonso de
1534
Repetido no Ms.: «pella».
417
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Albuquerque) Aqui quisera eu ver junto a vos aquelles, a quem fizestes tanta honra,
porque este he o tempo em que se pagão as boas obras. Ao que lhe respodeo : Senhor
Iorge de Melo, os que me devião alguma cousa, já ficão atras de mim, e não he tempo já
para isso, senão para vos lembrar vossa fidalguia ; e vos pido em esta vltima hora (pois
Deos he servido que acabe a vida entre estes Cafres) que acompanheis, e liberteis aquella
bandeira del Rey nosso Senhor, porque vay muy mal tratada. Em este tempo erão já
derribados os capitães Pedro Barreto de Magalhães, Lourenço de Brito, Manoel Tellez,
Manoel Coelho, Antonio do Campo, Francisco Coutinho, Pedro Teixeira, Gaspar de
Almeyda, e outros, somente com humas varas tostadas sem ferro, ajnda que /fl. 3 v./ elles
se defenderão maravilhosamente, mas nada lhes aproveitou, porque os Negros não fazião
senão arrojar suas varas, e picar os pes.
Iorge de Melo em este dia bem mostrou seu grande valor, pois nunca dezemparou
assim a bandeira, como a pessoa do Viso Rey acompanhando-o sempre, ate que
atravessando lhe a garganta em aquelle areal que tinha mohido, com huma vara tostada
sem ferro ; e sentindo se ferido de morte, o valeroso Viso Rey, cravou logo os joelhos em
terra, e os olhos em o Ceo : & encomendando sua alma a Deos, espirou logo com grande
dor dos seus, que perderão nelle pay, irmão, e companheiro juntamente, porque o foi elle
sempre, de todos os quatro annos que governou em aquellas partes da India. E ouvindo
Diogo Pirez ayo que fora de D. Lourenço, que o Viso Rey ficava derribado, arremeteo
contra os Cafres dizendo : Nunca Deos queira que eu fique vivo, deixando qua o filho, e
o pay, e tornando sobre elles ficou tambem morto para sempre. Morrerão com o Viso Rey
muytos soldados velhos dos melhores que vinhão em as embarcações ; & entre elles doze
principais capitães, que he vergonha dize lo : os quais pelejando com os Barbaros, e não
se sabendo menear em a muyta area que avia, vierão a morrer mais de 80. E os que
escaparão vinhão os mais delles feridos. Iorge de Melo a quem ficou o cuidado das
reliquias que ficarão das mãos dos Cafres, despois que elles se recolherão a sua aldea,
trouxe para as naos os feridos, e tornou a buscar / fl. 4/ os mortos a praya, para lhes dar
nella algum modo de sepultura ; e quando chegou adonde estava o corpo do Viso Rey o
vio já despojado em carnes (cousa lastimosa) em a dura area, não so sem a honra que lhe
merecia, porem ajnda o que mais lastima faz, privado de huma pobre sepultura, e feito
manjar das aves, e bestas do campo. Sentio se notavelmente em Portugal aquella disgraça,
porque foi huma das memoraveis que sucederão em muytos annos, morrendo alli tanta
418
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
nobreza, e os mais valerosos capitães que teve a India. Este lastimoso caso sucedeo em o
primeiro de Março de I5I0. cuja morte de D. Francisco de Almeyda foi sentida del Rey
D. Manoel, pella falta de tão grande pessoa ; e dos Reys Catholicos de Castella, a quem
tinha servido com grande valor em as guerras de Granada.”
419
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Documento 2
“Relaçam do Naufragio da Náo São Thomé de que era Cappitão Esteuão da Veiga, a qual
se perdeo na Terra dos Fumos no anno de 1589, e dos grandes trabalhos, que passou Dom
Paulo de Lima e mais Companheiros nas Terras da Cafraria, até sua morte” (transcrição
nossa).
s.l., s.d.
“Relaçam do Naufragio da Náo São Thomé de que era Cappitão Esteuão da Veiga, a
qual se perdeo na Terra dos Fumos no anno de 1589, e dos grandes trabalhos, que
passou Dom Paulo de Lima e mais Companheiros nas Terras da Cafraria, até sua morte
1535
Códice sem menção de autoria, composto por 407 fólios, sendo a primeira folha a que contém o título.
Na numeração, ao fólio 386 segue-se o 388. Códice cosido à lombada (não original), formato 8º, composto
por cadernos de duas folhas A4 dobradas; filigrana do papel distinta da do códice CXVI/1-24, com o qual
partilha afinidades de conteúdo, mas se revela distinto, tanto na extensão como na organização do texto. A
letra deste códice é diferente, a tinta quase preta; bom estado de conservação. Divide-se em duas partes: 1ª)
Relação do naufrágio da nau S. Tomé, fls 1-103; 2ª) Genealogia de D. Paulo de Lima, fls. 104-407. Este
manuscrito foi durante muito tempo confundido com o de cota próxima – CXVI/1-24, de autoria de António
de Ataíde, publicado por por Luís SILVEIRA, A Derradeira Aventura de D. Paulo de Lima, Colecção « As
Grandes Aventuras e os Grandes Aventureiros», Lisboa, Typographia Portugal-Brasil – Livraria Bertrand,
1947.
420
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Carreira, que não sey como a não continuão antes, que á ordinaria por entre as Ilhas razas,
e baixos sobre auguados, perigos irreparaueis.
Em altura de 28 graos da banda do sul, vindo demandar a Ilha de Diogo Rodrigues,
entrou sueste ventante, e rrijo, que naquella paragem e derrota, he vento escasso, e não se
pode navegar, senão por bolina esternida; o mar grosso, o vento grande, a Náo com
esçesso sobrecarregada, abrio agua pella /fl. 3/ proa, vão buscala achão as custuras sem
calefeto. Não se pode cuidar sem dor, que enforca a justiça hum homem por furtar sinco
tostois, e não se castigão os que tem estas tanto mayores culpas; que huns por furtar a
fazenda del Rey, outros por não gastar da fazenda del Rey (que destes há poucos) perdem
tantas vidas, tantas fazendas, como vem em huma Náo da India. Tomou se a agoa o
melhor que foy possivel, e para mayor segurança alijarão de proa 70. barris de gengibre,
e conserua; abonançou, e milhorou o tempo, a Náo mais leve foi fazendo viagem;
facilmente se vençião as bombas. Não durou /fl. 4/ muito este repouzo, dahi a poucos
dias, como sem leguas da cabeça da Ilha de São Lourenço, em 26. graos, abrio outra agoa
por popa, em parte onde o rremedio hé quaze impossiuel; (...)
/fl. 18/ (...) surgirão na manhaã de 21. de Março, despedem quatro marinheiros a explorar
a terra, com ordem que descobriçem dos outeiros se uião algumas pouoaçoens; tornão
elles dizendo que virão perto hum fogo; junta lhe Dom Paulo hum homem, que sabia a
lingoa dos cafres de Cuama, para ver se podia entender se com os que encontrassem. Em
hum valle forão dar com huas cazas cubertas de palha; os negros, que nunca tinhão visto
homens de outra cor, fugirão como de monstruos, por /fl. 19/ assenos se introduzio a
familiaridade, e sem se lhes emtender palavra alguma se vierão com os portuguezes a
praya; mas como o uento susudueste era já fresco, e seruia em popa, por costa; leuou se
o batel para hir tomar os companheiros em huma enseada, que se uia perto. Os Cafres se
despidirão, tendo conuidado aos Portuguezes com um pedaço de merú, animal semelhante
á vaca. Cresceo o vento com tanta furia, que sem duvida se perderião todos, senão
emcalharão, e já o fizerão com munto risco das vidas. Dezembarcarão municoens, e
mantimentos; poem fogo ao batel para se valerem da pregadura, e ferros, mercaduria de
proveito naquella Cafraria. A noite, /fl. 20/ e a chuva passarão entre huns penedos, ou
medos de areia, que por haver muitos naquella paragem lhe chamão os Medos do Ouro.
421
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Ao outro dia tomou o Piloto o sol, achouçe em 27 graos entre a terra do Natal, e a
dos Fumos, toda a costa limpa e sem recifes; e feita resenha, acharam-se nouenta, e ouito
pessoas, sinco arcabuzes, quatro espadas, hum barril de poluora, murroens, e pelouros, e
sinco rodellas. Dos rremos fazem astzas (?), que ferrarão com pregos, e uerrumas; de
couros crus uazilhas para agua da uella alforges para recolher o mantimento, que fossem
achando pello caminho; e aquelle pouco biscouto com que se acharão /fl. 21/ de que coube
a cada hum dous punhados. Entrão em conselho sobre o caminho que hauião de leuar, e
assentão, que ao longo da praya, uão buscando o Rio de Lourenço Marques, muyto
conhecido na carta de marear, mas não hauia entre elles quem tiuesse outra notiçia. O
successo mostrou ser o conselho errado; e depois esta experiencia faz cauto a Nuno Velho
Pereira, que na sua perdição se meteo pello sertão, em que achou mantimentos, e depois
de estar tanto dentro, que já podesse atrauessar os rios a uao, seguio sua uiagem com bom
successo.
Com esta esquadra assim armada, e assim prouida comessou Dom Paulo de Lima
a /fl. 22/ marchar a 22 de Março, e primeiro que partissem fez aos companheiros hua
pratica deste modo: quem pode, senhores, comprehender os altos juizos de Deos, saberá
dar a rrazão porque foy seruido escolher os que aqui estamos, para nos liuar (?) daquelle
espectaculo que uimos há tres dias, e que não pode esquecer, emquanto uiuermos:
pudéramos chegar a Portugal com essa fazenda, que leuauamos que não era bastante para
nos leuantar muito da fortuna em que nascemos, nem ainda para nos sustentar nella com
abundançia: se Deos tem liurado nestes trabalhos a salvação de nossas almas,
bemauenturado infortunio, prospero naufragio, riquissima perdição: a fama, de que
sempre os Portuguezes fizerão o /fl. 23/ mayor cabedal, mais se eterniza por aduersidades
uençidas, que em prosperidades logradas: se o Capitão Manoel de Souza de Sepulueda, e
seus companheiros chegarão a Portugal a saluamento, tambem hoje forão mortos, e
esquecidos; nesta mesma paragem perpetuarão os nomes, e as famas. Ainda por conta de
intereçe he de crer, que se Deos nos leuar ao Reyno com as merçes del Rey, auantejemos
de fazenda, como sempre aconteceo aos que se saluarão de semilhantes naufragios; que
aos princepes generozos, soem ser mais agradaveis os monstros da fortuna, que os da
natureza; na uossa união consiste a nossa saluação; não haja quem se emgane cuidando,
que apartandoçe pode adiantarçe, por que além de prouocar a ira de Deos, com /fl. 24/ a
impiedade de deixar os companheiros nestes dezertos, não poderão defender se dos
422
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Cafres, que todavia hão de respeitar este numero unido; no mesmo Manoel de Souza
temos o exemplo, que pela dezunião de alguns se perderão tantos; seja nosso Alferes o
Padre Frey Antonio da Magdalena, que seguindo aquelle gloriozo Estandarte, que tem
nas mãos, quem pode perder as esperanças de sua salvação. Mas primeiro o adoremos, e
inuoquemos o esquadrão celeste em nosso fauor. Ajoelharão-se todos, canta o Padre Frey
Nicolao do Rozario da ordem dos Pregadores as ladainhas, a que respondem todos muito
deuotamente. E acabadas se fes justa repartição entre os dous Religiozos: o /fl. 25/de São
Domingos com offiçio de Mestre, e o de São Françisco na occupação de Parroco.
1536
Forão os dous religiozos, emquanto uiuerão o rremedio, o aliuio, e a consolação
Espiritual daquella companhia. Toma Dom Paulo de Lima a uanguarda, e o Capitão
Esteuão da Veyga a rretaguarda para leuarem assim recolhida a gente, que não se
dezordene. Este dia e o seguinte se alojarão naquelles montes de area, e para descubrir
gente deixarão a praya, e sobirão as primeiras serras. A agua tinhaçe derramado pellas
costuras das uelas, digo uazilhas, e não acharão outra. Já não comião senão os cangrejos
da praya, poucos, e ruins; para os que sacraficarão a Deos este trabalho, e o rreceberão
com santa con- /fl. 26/ formidade, pouco melhor mantimento era, que o de gafanhotos e
mel silvestre. Já rendidos da calma, e da sede baxarão dous homens a um ualle buscar
agua, e dezesperados della, derão no chão com enxós de carpinteiro que leuauão, e a
poucos golpes achão agua muito boa. Não se alegrou mais o pouo de Israel com o toque
da uara de Moyzes na pedra, mas este agradeçeo melhor o benefiçio. Refizerão-se aquella
noite do trabalho, mas não puderão prouersse de agua para o caminho, por falta de
uazilhas. Descem ao outro dia da serra a huma terra mais chaã caminhando pello sertão
ao rrumo, que a costa corre; do caminho ouuem gritos de Cafres, e logo uem hum torpel
delles /fl. 27/ com zagayas nas maos, párão a uista dos Portuguezes, respeitando o
numero, e modo com que os esperauão; e de hum outeiro conuocão a gritos mais gente.
Dom Paulo de Lima despede logo da uanguarda aquelle homem, que tinha notiçia da
lingoa dos Cafres de Sofala, com outro companheiro, e com huma bandeirinha branca, se
chegassem, e uissem se podião entender alguma palaura. Sahe a rreçebelos hum Cafre
dizendo a gritos: Molungos, Molungos. Palavra que entre elles signefica senhores, e com
ella nomeão tambem os Portuguezes. Recebe em premio hum barrete uermelho; em
1536
Ms. : Riscado por engano do autor: «ligiozos». Na mesma linha continua o texto.
423
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
agradeçimento, e festa começa a correr pello canpo de huma parte para a outra ao longo
das nossas filleiras. A esta demonstração descemos /fl. 28/os companheiros nenhuma
outra palaura se lhe pode emtender; por assenos lhe pedem os nossos agua, guião elles,
seguem os nossos por sementeiras de feijoens, em nada tocam por não haver offença;
mostram os Cafres cabaços de agua, não querem dalla sem preço; impede Dom Paulo a
compra, porque seria de grande damno passar aquella noua e exemplo adiante, de que
uendião agua. A tal estado chega a cobiça que atè elementos liures, e comuns á gente,
dificulta, uende, e encareçe se pode; e por isso jà o outro senador bebendo com grande
sede hum pucaro de agua da fonte fria do seu cazal, leuantando mãos, e olhos ao Ceo,
disse: Bemdito seja deos que não uens para consulta! Não quizerão os Cafres dar agua,
nem uen- /fl. 29/ der outro mantimento, manda o capitão a hum soldado, que diante delles
a tire com huma espingarda a hum passaro. Não tinhão elles ouuido disparar arcabus,
atordidos cahem os mais delles no chão, largão as zagayas, e fogem gritando.
424
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Bem sei, que muitas das couzas, que tenho escrito, e hei de referir, parecerão
indignas de memoria, e por uentura mais affectuozas, que importantes, mas trato-as com
particularidade, para que siruão de auizo, e como hum Itene- /fl. 32/ rario daquellas
Prouincias em cazos dezestrados. Tambem Cornelio Tacito se desculpa do mesmo nos
Annaes de Tiberio, dizendo, que se lhe ofereçeo materia curta, e trabalho sem gloria, em
tempo que estaua a cidade triste. Como os negros se uirão mais de duzentos, intentarão
Batalha, e as primeiras arcabuzadas, que os nossos derão, uoltarão fugindo mais do
estrondo, que do damno. Continuarão os nossos seu caminho, e tendo caminhado meya
legua, sahio de hum ualle á praya hum uelho uenerando cuberto de huma grande pelle de
tigre, huma uara direita na mão, a mulher a sua ilharga, cuberta de pano azul, que pareçia
bertangil, acompanhado de muitos Cafres, com tanto respeito que /fl. 33/ por elle, e pellas
insignias, julgarão os nossos ter supremo poder naquelle destrito; por asenos segnificou
domistiqueza, a qual tão bem se enxergaua em todos os da sua companhia: guião para o
sertão, seguem os nossos, parão em huma pouoação situada junto de huma lagoa igual ou
mayor, que toda a bahia de Lisboa; entra nella a maré por huma boca do Rio, muito
piquena, e estreita, que de baixa mar se uadea pella praya. Esta lagoa he saloubra, mas as
muitas poucas, que há ao longo della, são todas de agua doçe. Por pedaços de panos e
alguns pregos uenderão os Cafres muito peixe saborozo, e gordo, galinhas, massa cozida,
cabras; o que mais se estimou foy a familiaridade, e singeleza da gente; derão a enten- /fl.
34/ der, que forão conuocados para o assalto passado, e não quizerão acharçe nelle. Toda
a noite rodearão as suas mulheres o nosso alojamento com bailes, e cantares a seu modo.
Lembrado ficou sempre entre os nossos o Rio da Abundancia, que assim o nomearão
pello bom acolhemento que alli tiuerão.
Em Domingo 26. de Março o Piloto achou, que estaua em 26. graos e meyo.
Segunda feira passarão pella praya grande sede, entrarão por huma uereda dos animaes
do campo, que os leuou a hum brejo, aonde fizerão alto, e alojarão aquella noite. De
comum pareçer detriminarão o dia seguinte entrar pello sertão, por que já uião, que na
praya nem ha- /fl. 35/ uia agua, nem mantimento, nem pouoaçõens. Duas atalayas
descubrirão huma lagoa tão grande como a da Abundançia, e da outra banda alguns fogos,
caminharão e alojarão na praya. Aos 30. de Março chegarão a boca da lagoa, e por hum
rio estreito, que da terra se uinha meter no lago, passarão á outra parte; tomarão o sol em
26. graos, e hum quarto.
425
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Nestas praticas forão até a pouoação do Rey; no meyo de hum grande terreiro se
assentarão à sombra de huma aruore rodeados daquelle pouo, reçebidos com amor, e
singileza, prinçi- /fl. 39/ palmente das mulheres, que muito se comdohião dos trabalhos,
e do estado lastimozo em que uião as nossas Portuguezas, e as conuidauão com
agazalhado das suas cazas. Pouco tardou o Rey, uinha nú, mas honesto, e cuberto com
hum farragoulo uerde já uzado, a cabeça descuberta, sinco zagaias na mão, chegarão os
426
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
nossos a fazerlhe cortezia, a cada hum abraçaua o Rey com grande alegria, e logo fes
differença com Dom Paulo de Lima, que naturalmente se fazia respeitar; assenta-se ao pé
da aruore em lugar mais eminente, Dom Paulo de huma banda, e o Capitão Esteuão da
Ueyga da outra, o Cafre lingoa junto a elles; e todos os mais se sentarão em companhia
dos naturaes. Pergunta Inhaca pela cauza, modo, e lugar do Naufragio; refere Dom /fl.
40/ Paulo como a Náo abrio com grande carga, e não podendo chegar a terra os que nella
uinhão, ordenarão como se pudeçem saluar, que aquella companhia ueyo junta em huma
embarcação, e tomara aquella paragem com esperança de bom acolhimento dos naturaes;
que como já tinhão conhecimento dos Portuguezes, e da sua boa comrrespondençia, era
certo, que lhes não faltarião com o necessario para sua uiagem. Nem Dom Paulo se
acomodara a rreprezentar mais mizerias, nem a ocazião o pedia, que entre brabaros antes
grangeão desprezo, que piedade. Confiadamente pedio ao Rey, que os mandaçe prouer; e
em prencipio de bom reconheçimento, o cubrio com hum panno de ouro e seda, que D.
Marianna tirou de /fl. 41/ sy para este prezente; deo lhe mais huma bacia de cobre, e huma
uerruma grossa, pessas que Inhaca estimou muyto, e tanto, que sendo por natureza muito
authorizado, se descompos com alegria do prezente. Responde o Rey com grandes
agradeçimentos, e offertas de secorro, e amparo: manda em retorno duas alcofas de
ameixoeira, e huma cabra; ordena, que logo tragão seus uassallos a uender mantimentos
da terra, sinala-lhes alojamento em huma Aldea, que os nossos agradeçem, mas não
aseitão, por iuitar inconuinientes. Entende Inhaca que desconfião os Portuguezes da sua
fée, recenteçe de não lhe aseitarem agazalhado, e que nisto deferião muito dos outros
Portuguezes, que uinhão a suas terras, e nellas reze- /fl. 42/diam segura, e confiadamente
o tempo que lhes era neçessario para a suas mercançias, e poucos dias hauia que de huma
Ilha sua, que distaua dalli duas jornadas, sahira huma Náo de Portuguezes, e que os
auizaua, que conçiderassem bem como querião continuar a uiagem, por que sendo por
terra hauião de passar pella Prouinçia de Mocangras, gente sem piedade, e sem trato
humano, brutos, temerarios, e crueis; que milhor era esperarem, que uiesse outra Náo de
trato, ou que se foçem para aquella Ilha, na qual, e nas barracas, que os Portuguezes alli
deixarão feitas poderião esperar seguros, e tão bem ficara alli huma embarcação do
seruiço dos mesmos Portuguezes, que por uentura lhes seria de proueito.
/fl. 43/ Muito estimão os nossos tudo o que Inhaca lhes dezia, e já se prometião prospero
successo na embarcação da Ilha; e assim pedirão guias para o caminho. Afirmão, que
427
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
porque erão muitos, e poderia hauer dezordens com seus uassallos, querem aquella noite
alojar no canpo. Conformouçe o Rey com esta razão. Despedido delle, uão-se os nossos
ao canpo, aonde ja hauia praça de galinhas, e mocates (que são huns bollos pardos de
farinha de meixoeira) e massa cozida, jugas, feijoes, cabras, e tudo o mais que na terra
hauia; pagão os nossos com tiras de panno, que rompião das suas camizas, e com pregos.
Era o dia seguinte sesta feira de Paxão, leuão-se os nossos para se partirem, recenteçe
Inhaca da pressa atribuindo-o a desconfiança de sua uerda- /fl. 44/ de. Uem-se aos nossos,
dis lhes que não he bem que partão das suas terras como fugitiuos, ou temerozos, que
descansem hum dia para se refazerem do grande trabalho passado, e que quando outra
rezão não houuesse, só por respeito das mulheres deuião de dar mais repouzo. Assim se
fes, e ao sabbado Santo partirão com aprazimento do Rey, e com tres Cafres, que
seruissem de guias, e saluaguarda; dous delles fallauão bem a lingoa Portugueza: hum
disse que se chamaua Pedro; nenhum dá razão de como alli uiera ter; conjecturarão os
nossos, que deuião ser fugidos de Portuguezes das Naos do trato: outro, que os não pode
acompanhar, e se chamaua Antonio, já muito uelho, contou co- /fl. 45/ mo se perdera em
companhia de Manoel de Souza de Supulueda, referio com particularidade a perdição da
Náo, e os trabalhos, que passarão atè chegarem áquelle Rey, em cuju seruiço elle ficara,
e que Manoel de Souza se perdera por não seguir o concelho do Inhaca uelho: semelhante
ao que lhes daua seu filho, que senão podessem passar a Bahia de Lourenço Marques, que
esperassem occazião e não cometesse rodealla pello sertão, pois não leuauão armas, com
que resestir, nem mantimentos para passar aquellas terras, nas quaes o não acharião, se
não conquistado; e que entendessem, que todos os habitadores, desta Bahia, Rio do Fumo,
e Anzata, erão de huma mesma ruim na-/fl. 46/tureza; que se o não cressem o successo o
acreditaria.
Caminharão os nossos com muita chuua, forão bem reçebidos nas Aldeas por onde
passarão, e aos 4 de Abril houuerão uista da Bahia, e Rio, que uinhão buscando, que nas
cartas de marear se intitulla de Lourenço Marques, porque elle o descobrio, e lhe pos o
nome do Espirito Santo; e logo uirão a Ilha do Inhaca separada da terra firme por duzentos
passos. Està à boca da Bahia em altura de 26 graos escaços, terà de terra a terra seis leguas;
há dentro bom fundo de quinze, uinte braças, entra muito pella terra dentro fazendo
braços, e reçebendo os Rios Melengane, e Anzete, e Fumo, no qu-/fl. 47/al acabou Manoel
de Souza, e sua Mulher, e companheiros o Rio de Manhica está na boca da Bahia.
428
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1537
Repetido no Ms.: «da».
429
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
/fl. 51/ de Inhaca, que elle lhes tinha dito o que emtendia amiga, e singelamente, que sobre
isso fizeçem o que lhes pareçesse.
Já entre os nossos hauia diferentes pareçeres, huns dizião, que no Luzio poderião
nauegar atè Inhambane; outros requerião, que primeiro passassem todos a Manhica, terra
abastada, e gente conhecida, e que alli escolherião o que mais conuiesse. Para isto se
embarcarão a 18 de Abril, o Mestre com 16 pessoas na Almadia, os mais no Luzio, que
estaua aperçebido de amarras de raizes, ancora de pedra, uella de hum cobertor, e de
pedaços de camizas. Não pode o Luzio com a carga, e era já tanta a agua que recolhia,
que com difficuldade, e pi- /fl. 52/ rigo se dezembarcarão todos. Eis a confuzão, a
dezesperação os portestos: huns pedião o Luzio, que elles com pouca gente se obrigauão
a hir a Inhambane, e a Sofala, e trarião embarcação aos companheiros: outros, que na
Almadia, e no Luzio passassem á outra banda com pouca carga, e por muitas uezes. Todos
se timião da fidelidade dos primeiros, que como se uiçem embarcados se esqueçerião dos
que ficauão. Dom Paulo não quis ser dos que primeiro se saluassem, e como anteuia o
successo da separação, como Julio Cezar se cobrio com a capa, rendido à liga dos
senadores, assim ellese meteo na ssua choupana com sua mulher, rendido já à conjuração
da fortuna. Manda dizer ao capitão que na- /fl. 53/ quella Ilha se ficaua purgando seus
pecados, por que entenia, que elles forão a cauza da perdição da Nao, e erão o
impedimento da Saluação daquella Companhia, que tinha dito o que conuinha, que não
podia encaminhar as dezordens. Era o mayor tarbalho que temia aquella gente faltar lhes
Dom Paulo de Lima, Uão-se todos a elle encampar lhe as suas uidas, que as não querião
deixando-o, e que se elle ficaua, todos querião morrer antes na sua obediençia, e
companhia, que seguir a esperança de chegar a Moçambique, que uisse como pendia sò
delle a sua uida, senão a todos elles, que lhe fazião preito homenagem de o não deixar, e
de o acompanharem atè /fl. 54/ morrerem, ou chegarem juntos aonde se dezejauão.
Assim como a Lus, que se uay acabando, esforça os ultimos resplandores, assim
a fortuna de Dom Paulo deuesta ultima labareda de se uer aclamado, e inuocado daquelles
companheiros para seu remedio. Responde lhes, que os quer acompanhar emquanto uiuer.
Ordem, que o Capitão se embarque no Luzio com quarenta e cinco companheiros, e o
Mestre na Almadia com dezaçeis, que postos da outra banda, tornem a passar mais gente,
que elle queria ser dos ultimos. Todos sabião quanto lhes conuinha passar, e por que Dom
430
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Paulo de ficaua, foy neçe- /fl. 55/ ssario rogos, e ainda uiolençia para os primeiros. Não
sou affeiçoado a digreçoens na historia, quando não são neçessarias para mayor notiçia
das couzas que pertençem ao argumento della, e assim pudera deixar, esta gente, que
partio, e se apartou nas embarcaçoens e continuar com D. Paulo de Lima; mas pareçe me,
que sera faltar a obrigação que me corre de dar conta destes companheyros, que tão bem
póde seruir aduertimentos a futuros successos, será mais abreuiado, que for possiuel.
Ambas as embarcaçoens surgirão da outra banda já sol posto, onde uirão dous
Cafres, que dizendo: Manhica, apontauão o Rio, que atras / fl. 56/ ficaua. O Luzio fazia
muita agua, o uento calma, caminho comprido, pareçeo-lhes esperar a manhãa, que entrou
uentante do sudueste, contrario para hirem a Manhica; pareçe a todos, que uelejassem até
o Rio do ouro distante doze legoas, onde poderião abrigarçe do tempo, e esperar leuantes,
com que tornaçem por Dom Paulo. Esta Costa do Rio de Lourenço Marques atè o Cabo
das Correntes, corres a lesnordeste, toda limpa, e sem reçifes. O uento foy escasseando,
e de noite saltou ao sudueste, traueçia daquella costa. Dão fundo, quebra a amarra, uirão
noutra uolta, tralos o mar a praya, uarão em terra, eis outro naufragio. Amanheçem
apartados /fl. 57/ da Almadia, sem poderem comprir a promessa feita a D. Paulo;
entregues a noua perigrinação, e a nouos perigos, caminhão ao longo da praya, esperando,
que no Rio do ouro acharião a Almadia, em que passassem a outra banda. A poucos passos
encontrarão duas negras, não se entendem com ellas, nem por asenos; manda Capitão
hum Marinheiro que as siga atè à pouoação. Chegão as negras, passão palaura, baixão à
praya trezentos Cafres differentes dos passados no traje, na communicação, e em tudo;
nas cabeças muitos cornos, que, ou fossem armas, ou ornato, os fazia inormes; trazião
arcos, e flechas nas maos. Estes erão os /fl. 58/ Mocrangas de cuja inhumanidade Inhaca
os auizaua. Receberão os nossos muito mao tratamento desta gente, porque nenhuma
outra couza querião, senão roubalos dessa pobreza com que se cobrião; na reuolta
chegarão dous, a que os outros guardauão algum respeito, os quaes com duas camizas
senão ouuerão por obrigados; deu o Capitão a hum delles hum Astrolabio de metal, com
que o negro ficou seu protector, mas com tão pouca eficaçia, que ainda a turba os não
deixauão. Já não podião os nossos caminhar, uira-se o Capitão para os inimigos, com
huma espada faz hum risco na praya, significando-lhes, que era aquella arraya da
paçiençia. /fl. 59/ A rrezolução dos nossos fes deter os negros, e sem duuida que com
pouca gente (como fora armada e principalmente de arcabuzes) se pode seguramente
431
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
atrauessar todas aquellas Prouinçias. Este conflito se quietou com a chegada de hum
Cafre, que falaua alguas palauras Portuguezas: apartou, e dispidio os outros, e disse ao
Capitão, que elle os guiaria para o Rey de Ampulo, em cuja companhia estauão
Portuguezes de huma Naueta de trato, que ali se perdera.
A pouco mais de legoa chegarão ao Rio do ouro, uirão da outra banda o casco do
Nauio perdido. Pello Rio arriba os foy guiando o Cafre para o sertão, por entre ma- /fl.
60/ tos espessos, e brejos de agua, que as uezes daua pelo çinto, com que os nossos
entrarão em sospeita de trayção. Inhate Ambexeque daquelle territorio, e muito priuado
do Rey Ampulo, ueio reçecer os Portuguezes ao caminho fallaua algumas palauras
Portuguezas, e nomeaua pessoas com quem trataua hauia annos em Moçambique; e por
alentar os nossos, lhes dezia, que alguns dos que se perderão com a Naueta estauão com
seu Rey. Chegados a pouoação, não quis el Rey uellos aquella noite, ou por authoridade,
ou por suprestição; manda que se recolhão em huma grande caza cuberta de palha, e nella
os prouerão de feijoes cozidos, massa, e ruim agua. Logo /fl. 61/ Uierão dous Cafres, e
huma Cafra ladinos, que forão catiuos de Jeronimo Leitão, e contarão como o Alferes mor
Dom Jorge de Menezes Capitão de Sofala, e Moçambique, mandara o seu senhor por
Capitão da Naueta com seis Portuguezes, e outros Marinheiros Mouros à Bahia de
Lourenço Marques comprar marfim, ambar, e outras mercadorias, que hà naquella
Cafraria, e que anno e meyo estiuerão na Bahia, temerozos de tornar na mesma Naueta,
que a neçessidade os animara; embarcados arribarão com o tempo a Ilha do Inhaca, donde
comunicarão muito com o Manhica, que tornando a fazer uiagem abrio a Naueta, e /fl.
62/ com muito trabalho encalharão no Rio do ouro, que saluarão as uidas, e perderão a
fazenda, que Ampulo os recolhera, que Manhica como soube da perdição os mandara
buscar, lembrado1538 da boa correspondençia, que com elle tiuerão, que não quizerão
cometer o caminho por terra á Inhambane pella ruim informação que acharão das gentes
por onde hauião de passar, mas que despidirão dous Marinheiros com recado à
Inhambane; que se ali estiuesse Pangayo de resgate (que he o mesmo que Nauio de trato)
os uiesse buscar, ou paçasse com o mesmo recado a Sofala; que os outros Marinheiros
Mouros ficarão com Ampulo alguns dias, mas /fl. 63/ que jà todos erão hidos por terra, e
de nenhuns tornara ainda resposta.
1538
No Ms. : «lembrardo».
432
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Seruio este Cafre de lingua para no dia seguinte o Capitão referir ao Rey Ampulo
a perdiçam da Não, trabalhos do caminho, apartamento dos companheiros, e necessidade
prezentes. Responde condoendo se, e oferecendo todo o fauor, e ajuda possiuel para
remedio, e saluação de todos, que elles considerassem, e escolhessem se querião esperar
alli resposta dos Marinheiros, que tinhão hido a Inhambane, se tornar para Manhica
juntarçe com os outros Portuguezes, se cometer a passagem por terra. Todos aquelles
Reys, e superiores não sofrem passar estrangeiro /fl. 64/ por suas terras, por pobres, e
perdidos que sejão, sem os reconheçerem com algum prezente conforme as suas
possibilidades, satisfazendo assim a cobiça, e a uaydade. Significou o Rey, que o
paganaçem com algum chapeo pardo, o qual lhe derão e elle estimou muito.
No mesmo dia adoeçerão quaze todos de grandes febres e tão repentinas, que
duuidarão se lhes teria feito damno, ou a rruim calidade de algum dos mantimentos
incognitos, ou a cantidade demaziada dos conheçidos com que naquelle dia quizerão
repararçe, contra a moderação que se deue ter em estomagos debilitados. Tres dias se
ditiuerão, e assim doentes consul- /fl. 65/ tarão sobre o que hauião de fazer: alguns
disserão, que a doença de todos deçedia a questão, que os menos grauados não estauão
para caminhar, e quando se atreuessem, era impiedade digna de castigo de Deos deixar
em dezesperação os impossibilitados; que emquanto a saude uniuersal tomaua termo,
haueria tempo de saber, ou dezesperar do recado, que os Marinheiros da Naueta leuarão
a Inhabane; que Ampulo os trataua bem, e que entretanto procurassem saber dos
Portuguezes que estauão na Bahia, cujo conçelho deuião ouuir, para todos se
acompanharem no que asentaçem, que não se dezia chegar mais depreça, o que se
preçipita, que /fl. 66/ neste cazo poderia a temeridade frustar o intento de abreuiar a uinda
de Dom Paulo de Lima e sseus companheiros, o que elles muito dezejauão, e deuião
acodir: outros emtenderão, que toda a detença era negligençia e fraqueza; que os
Marinheiros quando chegaçem a Inhambane, dauão nouas de seis Portuguezes ordinarios,
a que se acoderia tambem por uia ordinaria, quando uiesse Nauio de trato, que a Dom
Paulo de Lima, e àquellas Senhoras, e mais companheyros se deuia pronto soccorro; que
se os Marinheiros não chegarem a Inhambane, atè quando hauião de esperar, pois que
Nauio de resgate àquellas costas uinha poucas uezes; que o que então /fl. 67/ hauião de
fazer mais impossibilitados, fizessem agora; que o tempo não daria mais uidas, nem mais
saude, antes cada dia hauião de ser menos, e mais fracos; que os doentes ficassem em
433
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Ampulo na protecção daquelle Rey; que todos hião expostos à mesma uentura, e a ficarem
pellos matos mais dezemparados; que se lembraçem da obrigação, e promessa que tinhão,
e fizerão a D. Paulo de Lima, e que a esta não faltauão, emquanto forcejauão pella
comprir, que cerrar com os perigos, hir apos a obrigação atè morrer não hauia mister
desculpas nem razoens; que escreuessem aos Portuguezes de Manhica, para que elles
esperacem, ou Nauio, ou resposta /fl. 68/ dos Marinheiros da Naueta e auizaçem D. Paulo,
e que elles passassem a Inhambane; que qualquer delles que tornasse desculpaua, e
honrraua todos; que os outros discurssos de parar, e esperar, erão sospeitozos em gente,
que tendo pormetido de uoluer a passar Dom Paulo, da Ilha à terra firme, correra com o
Luzio, que se bem fora sem desculpa, fortificaria este acto a ruim prezumção.
Este parecer aprouou o Capitão Esteuão da Ueyga, deu conta ao Rey da sua
determinação, e pede lhe que mandasse amparar seis companheiros que ficauão alli, que
não podião caminhar, e que desse liçenssa a Inhantembe para os acompanhar atè
Inhambane, com o qual se /fl. 69/ concertarão sobre o premio. Partirão o terçeiro dia da
chegada. Crem aquelles Cafres que não hé a morte termo natural, e assim todos à tribuem
a uiolençia, se a não conheçem extrior, dizem que hè peçonha. A este erro segue a
deshumanidade não tocarem nos doentes, temerozos do contagio; os que já estão muito
mal, tirão ainda uiuos das cazas, e dos lugares, e os deixão morrer nos matos.
Dos Portuguezes dizem, que são filhos do Sol, e cuidão que no lugar, em que
algum fica morto, hão de pereçer as sementeiras o anno seguinte, por falta de chuua. No
mesmo dia, que os nossos partirão, morreo hum dos doentes, que deixarão, despacha /fl.
70/ logo Ampulo recado a Inhatabane, que faça tornar os Portuguezes a buscar os seus
doentes , e morto, e que sem isso não passem adiante. Manda o capitão huma esquadra,
tomão o morto, e a rrastos o leuarão a enterrar longe da pouoação; e os doentes, alguns ás
costas, outros como puderão, leuàrão onde o Capitão os esperaua. Contarão, que os Cafres
para aueriguarem se estauão ainda uiuos (por quanto com a força da febre não fallauão)
lhes punhão fogo nos pes com palhas acezas por não tocarem nelles. Forão caminhando
para o Rio do ouro, antes de o passarem deixão no mato dous doentes (que jjánão podião
leuar nem elles andar) ainda uiuos.
/fl. 71/ Está a fos do Rio do ouro em 25 graos, a barra he de pouco fundo, quebra
o mar muito nella, não podem entrar senão embarcaçoens pequenas; em Almadias o
434
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
passarão, e caminharão de noite com receyo dos naturaes que erão ladrões crueis.
Inhatembe guiou para o sertão, dizendo, que os queria leuar ao Xeque Mamuça, genro de
Ampulo. No caminho encontrarão dous Mouros da Naueta perdida com tres Cafres;
contão os Mouros, que o Rey Panda, e Gamba mais uizinhos do Rio de Inhambane, com
os quaes fizerão os Portuguezes resgate de marfim, tanto que souberão a perdição da
Naueta, mandarão seus filhos, que erão aquelles tres Cafres, para que /fl. 72/
franqueassem o caminho aos Portuguezes, que ficarão com Ampulo, até onde elle rezidia,
e que achando os Marinheiros com Manuça souberão, que já erão tornados para Manhica;
mas porque corria fama da perdição da Não, e que os Portugezes hião marchando por
aquellas terras, repartirão gente pellos matos, e pella praya para os emcontrarem, que se
tinhão por ditozos em elles serem os primeiros. O Capitão lhes agradeçeo o beneficio,
que o tempo depois mostrou ser grande.
Estes Cafres forão sempre fieis, e sem elles mal puderão sahir dos pirigos da
jornada. Manuça os reçebeo com bom acolhimento; não hauia fonte no lugar, a agua era
/fl. 73/ de brejo uerde, e grossa, e saloubra, foy grande parte de adoecer mais gente, e de
morrerem seis pessoas, que os Cafres fizerão logo leuar pellos mesmos Portuguezes, pella
superstição referida. Deo lhes o Manuça duas guias para o caminho. Inhamtembe fugio a
noite dantes da partida, inferirão os nossos, que trazia intenção de alciuozia, e uendo que
o não podia executar na companhia dos filhos do Panda, e Gamba, quizera antes perder o
premio, que continuar o acompanhamento; da gente por onde agora hião passando
leuauão ruim informação, quis hum dos guias metellos pello sertão, dizendo que para os
apartar dos inimigos. Entende hum dos filhos do /fl. 74/ Gamba a trayção, auiza ao
Capitão, que prenda a guia, e que o leuaçem comsigo, e andassem depressa. Importou o
auizo a uida de todos, porque a pouca distançia encontrarão uinte cafres, que se adiantarão
a reconheçer os nossos, com dous arcabuzeiros afastarão; e a bom passo, deixando alguns
doentes morrendo nos matos, chegarão à pouoação do Xeque Inhambuzi aonde os bons
filhos do Gamba, e Panda os leuauão.
Já sahidos dos confins da gente, que temião, acharão bom gazalhado, e Rio de
agua clara, que falta della era o mayor tormento que padeçião. Seguirão seu caminho, e
ao outro dia ainda os acometerão, huma boa manga de Cafres tambem / fl. 75/ armados,
e tão rezolutos, que os caminheiros Mouros da Naueta fugirão. Os Portuguezes se
435
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
436
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
437
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
hauia mais de trinta annos, que tinha feito a mesma jornada; passa o Rio do Mel a 9 de
Junho. Não bastou a peruenção de caminharem de noite para escaparem de asaltos de
Cafres, com que tiuerão /fl. 84/ alguns recontros, em que as duas escopetas forão de muita
importançia; já não querião cobre, nem pregos, pedião marrot, que assim chamão ao
estanho que elles muito prezão.
Na pouoação de Sene, que está na ponta da terra do Cabo de São Sebastião, forão
bem recebidos do Xeque, o qual já tinha comerçio com os Portuguezes e com Mouros das
Ilhas de Bacaruto. Todo o mais caminho tinhão passado com muitos recontros de Cafres;
sem comer, nem beber agua, senão alguma de brejo, e atè esta lhes faltaua, despidos,
doentes, aqui acharão nouas, que os tres companheiros tinhão passado adiante. /fl. 85/
Continuando o seu caminho, acharão huns Cafres na praya, dos muitos que por ella andão
buscando ambar, que lhe disserão, que alli perto andaua hum Portugues fazendo resgate
de marfim, e aljofar, que se pesca nas Ilhas de Bacaruto. A tarde chegarão a Fumbaze,
aonde uirão surta huma embarcação, sahe della o Portugues, chamauaçe Bras Pires, e o
Gordião, que o Capitão tinha despedido de Inhambane, saudão-se com grande
contentamento, dis o Gordião, que o Feitor, era morto, que elle parara alli por sua grande
doença que o Marinheiro passara a Monemone buscar embarcação para Sofala. Pede o
Capitão a Bras Pires a embarcação atè Menemone, o /fl. 86/ offereçea de boa uontade,
mas que conuinha hirem primeiro à Ilha de Bacaruto, aonde estaua Antonio Rodrigues
natural de Sofala, que tão bem uiuia em hum Rio de Monemone por homizios, sem o qual
não acharião embarcação nem guia.
438
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
logo hum Pangayo pequeno, que só hauia na terra, embarcação que não podia chegar
mais, que a Inhambane buscar os que alli ficarão. Ho Capitão Esteuão da Ueyga com seus
companheiros se embarcarão em hum Nauio para /fl. 88/ Moçambique, duas uezes
arribarão a Soffala, perdida a monção daquelle anno.
O Pangayo tornou, e troche a gente de Inhambane, com carta de Simão Lopes, que
logo partia por terra para Manhica buscar D. Paulo de Lima, e trazelo a Inhambane. Em
Outubro chegou a Sofala hum Pangayo de Moçambique com fazendas, deu nouas, que
em sua companhia partira huma Naueta para a Bahia de Lourenço Marques, a fazer
resgate, mas que perzumião ser perdida, ou aribada, porque não tinha entrado em nenhum
dos Rios de Cuana, aonde primeiro hauia de fazer escalla; por esta incerteza comprou o
Capitão da Fortaleza o /fl. 89/ mesmo Pangayo, para nelle mandar buscar Dom Paulo de
Lima. Embarca-se o Capitão Esteuão da Ueyga, que com ualerozo e honrrado punha a
sua saluação na de Dom Paulo. Chegado às Ilhas de Bacaruto, sahirão Marinheiros em
terra, trocherão nouas, que a Naueta tinha passado a saluamento; depois se uio, que de
medo inuentarão os Mouros a noua. Chegou a Inhambane achou des companheiros de
Manhica, que lhe contarão o que tinha passado na Ilha da Inhaca, depois que elle se
apartou no Luzio, de trabalhos, doenças, e mortes. Com esta gente arribou a Sofala donde
foy a Moçambique soliçitar segunda embarcação para hir buscar a gente /fl. 90/ que ficaua
em Manhica.
Dom Paulo de Lima com toda a companhia, que ficou na Ilha do Inhaca esperauão,
que tornaçem as embarcaçoes a buscalos; quanto mais tardauão, mais creçia a
dezesperação, e o escandalo em alguns, atribuindo a tardança a quebrantamento das
palauras do Capitão, do Mestre, e dos companheiros, que tinhão passado no Luzio, e na
Almadia. Dom Paulo os aquietaua quanto podia, dizendo: que de innumeraueis cauzas,
que podia hauer para tardarem, ou não uirem, não era razão que se atribuiçe sò a maliçia
de todos; que num momento se uiraua a fortuna, como tinhão uisto /fl. 91/ nelle, e naquella
Nao, que emquanto não parasse esta carreira com que os hia atropellando, não tinhão para
que aplicar as culpas a seus companheiros; que elle estaua certo, em que, se erão uiuos,
não sentião menos a tardança os que forão, que os que esterauão. Ora com estas, e outras
razoes, era cometer em partica rodearem a Bahia por terra, padeçendo todos as
descomodidades, e mizerias, que pode dar o mayor dezemparo, passou aquella companhia
439
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
atè chegar a Almadia. A qual apartandoçe, como uimos, do Luzio, em que hia o Capitão,
ueyo surgir no Rio de Manhica, e emquanto esperou tempo para tornar à Ilha, lhe adoeçeo
a gente de modo, que não /fl. 92/ hauia quem paçasse.
Reçebe Dom Paulo carta de Jeronimo Leitão, em que lhe aconcelha, que se uanha
(?), e que alli poderião, ou esperar com menos descomodidade, ou consultar com mais
notiçia: juntos em Manhica tratou Dom Paulo de Lima de continuar o caminho por terra
para Inhambane. Jeronimo Leitão humas uezes reprezentaua as grandes difficuldades que
para isso hauia, que se acrecentauão com a companhia daquellas senhoras, que não podia
deixar de uir Nauio de Mocambique, ou com a carreira ordinaria, ou com as nouas, que
já terião por algum dos muitos que cometerão a pa-/fl. 93/ssagem. Outros se despunhão a
caminhar; e como elle era pessoa inteligente, muito conhecido daquelle Rey, e dos
Naturaes, e com pratica da terra.
Dezejaua Dom Paulo de Lima que todos se comformassem, e de comua
aprouaçam cometeçem a jornada: atè que a natureza, carregada com idade, com os
trabalhos, com as afliçoes corporaes, e do espirito, não pode já com o pezo. Adoeçeo Dom
Paulo de huma febre malina, sem cama, sem remedios, sede ardente, agua ruim, e de
mantimentos o que temos referido, rodeado daquelles companheiros, que a fortuna lhe
deixou por testemunhas da sua constançia, lhes disse estas palauras. Espero, senhores,
que nos impenetraueis ju-/fl. 94/izos de Deos haueria eternas conuiniençias para ser esta
morte, e modo della, o milhor caminho da minha saluação; também Deos renoua a tempos
cazos portentozos em alguns para exemplo, e freyo de outros: saberão os Portuguezes,
que me conheçerão, e uirão as uictorias, e triunfos, que as uaidades por que tanto fazemos,
podem uir a parar no que uedes; grande triaga(?) serà contra ellas esta memoria emquanto
durar; sobretudo entendo, que em muitos dias circunstançias hà mais horror, que damno;
o lugar em que acabo não he considerauel para sentirsse que o sono, e a morte tambem
semelhão, em que o mesmo são na terra propria, que na estranha; e se ao uarão forte,
ainda para uiuer, todo o lugar /fl. 95/ he Patria, quanto mais ao morto. Facil he a perda do
sepulcro, cuja ostentação não importa gloria aos defuntos, toda redunda nos successos
uiuos quando estes Cafres me impidão sepultura, como costumão, tolherão que me cubra
a terra, mas mais nobre abobeda hé a do ceo, que me não podem tirar; se me comerem
feras, e aues, tão inteiro hey de appareçer no Ualle de Josafat como os embalçemados; so
para uos acompanhar nos trabalhos estimara a uida, Deos que assim o ordena, saberá, que
440
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
por meus pecados, uos era antes impedimento, que soccorro: as neçessidades de cada hum
se uos estão emcomendando a todos; já uedes o que perdemos na seperação, se os poucos
que aqui estais uos não dezunirdes, e acompanhardes estas senho-/fl. 96/ras, fareis o que
deueis a uos mesmos, e às obrigaçoes comuas, e ao que uos mereço. Despede-se de todos
com animo socegado, sereno rosto, seguro nas palauras, reprime as lagrimas dos
circunstantes, reparte as demonstraçoes segundo a calidade e meriçimento de cada hum;
chama o confessor, com o qual repetindo reconçiliaçoes, e fazendo generozos actos de
contrição, sem temor, nem descontentamento da morte, sem perturbação, nem ainda
aquella que se deue à humanidade, com valeroza esperança na Misericordia de Deos,
passou aquella alma à eternidade a 18 de Agosto de 1589.
Tanto que o rey Manhica soube, que era morto o Homem grande (fatal apelido,
que /fl. 97/ ate os Cafres o reconheçião, e nomeauão por elle) teueo por infausto portento
de ruina sua, e de seus vassallos, e pareçeo-lhe que com o corpo hiria o castigo que
ameaçaua; manda logo que o tirem de sua terra. Foy leuado a borda do Rio, e sepultado
ào pe de humas aruores, para o que ainda se comprou liçença aos Cafres executores desta
comissão. Os nossos amontuarão a terra sobre a sepultura, leuantão em sima huma crus,
crauão ao pè della este epitafio.
Abrazada Mangalor, destroçadas, e rrendidas Armadas do Camorim, Hidalxa,
Niza Maluco; descercadas Acarim, e Malaca, tomadas Onor, e Barcelor, defendida Goa,
conquistada Ior, uencidos quatro Reys de Viantana, /fl. 98/ Tugal, Andragil, Campar;
triinta e hum annos na guerra da Azia, desde Capitão mòr, sempre victoriozo Dom Paulo
de Lima Exemplo raro das fortunas, fica sepultado neste dezerto.
Poucos dias despois morreo D. Pedro de Lima. Não quis o Manhica deixar partir
a companhia, interessado no resgate que esperaua para quando uiesse o Nauio de
Moçambique. Passarão nesse tempo innumeraueis mizerias, e alguns que se auenturarão,
correrão quazi os mesmos trabalhos, que os primeiros, e não tem nouidade digna de
referir, nem tão bem he razão, que alarguemos a historia funesta, e dezabrida. Chegou o
Nauio no mês de Julho de 1591. Recebe /fl. 99/ Inhaca os agradecimentos, e premio dos
benefiçios, e Manhica o estipendio, em que a sua cobiça aualiou a mizarauel despeza que
tinha feito, a cuja conta deteue em refens os que lhe pareçeo. Dezenterrão o corpo de D.
Paulo, embarcão-se com elle, forão a Moçambique e a Goa; o pouo todo renouando o
sentimento da sua morte, como se naquella hora o perdera, huns publicando elogios de
441
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
sua vida, outros queixas de sua ultima fortuna, acompanharão o corpo com solene pompa
funeral, atè o Conuento de São Francisco, aonde está sepultado em capella propria, com
este letreiro: Aqui jás Dom Paulo de Lima, que os trabalhos acabarão na Cafraria no anno
de 1589.
Muito fes D. Brites /fl. 100/ por D. Paulo seu marido nesta perigrinação, muito se
deuia nestes escritos à sua memoria, pella honrra, e animo com que procedeo; mas como
depois quis antes ser cazada, que uiuua de tal homem, pareçeo que conuinha reportar nos
louuores, e história de mulher alheya: isto basta para não faltarmos à obrigação de
agradeçimento.”
442
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
2. QUADROS
443
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
444
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
2.3. QUADROS
445
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Quadro 1
Proximidade de excertos textuais
Ms Anónimo /Regimento de Matias de Albuquerque
“(...) açhamos por todo este caminho “(...) por todo este caminho, acharão perdizes,
muitas adeñs, perdizes, cordonizes, codornises, pombas, garças, pardais, corvos, e
pombas, garsas, pardais, corvos, e muitas ervas da nossa terra, agrioes, bredos, alecrim,
eruas da Europa, como agrjois, bredos, losna, fedeguosa, mentrastos, amoras de silva,
alecrim, alosna, fedegose, mentratro, fetos, erua babosa.” (p. 50)
amoras da silva, fetos, erva baboza,
rabasas, e muitas boninas”. (fl. 28)
“(...) auendo coatro dias que caminhamos “(...) aos quatro dias deste despovoado,
pelo dezerto achou-se o piloto em trinta tomaram o sol, acharão trinta graos menos sete
graos menos sete menutos (...) e aos dous minutos, a outro dia foi guinando o piloto a
de maio foj o piloto guinamdo mais a les lesnordeste, porque assim lhe dixe a gemte da
nordestes porque lhe disserão os negros que terra, que fosse para o sol que iriam dar em
fosse por omde nasia o sol e achariamos povoado, aqui pola estimativa, se fez o piloto
pouoado, (...) aqui se fes o piloto por sua vinte sinquo legoas, afastados da praia”. (p. 50)
estimatiua uinte e simco legoas pelo
sartão”. (fls. 37 vº-38 vº)
“Lulubala (...) que amdaua desterrado por o “(...) se chamava cucubala, que andava
Inhaqua lhe tomar o seu Reino”. (fl. 42) desterado, por lhe tomar o Inhaqua seu Reino.”
(p. 51)
“(...) sobimos huma serra muito alta e em “(...) subindo, desendo, algus outeiros, por onde
sima fomos por huma cham que hia te acharão hua serra muj alta que ensima tinhão
huma ribeira que da outra banda tinha hua chãa que hia dar nua ribeira que da outra
montes altos e chãos e nas chãns tinha banda tinha montes altos, e chãos e nas chãs
dezassete pouoaçomis, esta ribeira tinha dezasete povoações. E esta ribeira, se
passamos com agua pela simta, (...) e
1543
As citações do Regimento de Matias de Albuquerque são retiradas da edição de Maria Emília Madeira
SANTOS, op. cit..
446
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
fomos caminhando sempre por antre pasou a agoa pela sinta o amquose destas
pouoado de humas aldeias de hum ancose povoações se chamava panjana”.
por nome, pamjana”. (fl. 45 vº)
(p. 51)
447
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Quadro 2
Proximidade de excertos textuais
Ms Anónimo /Regimento de Matias de Albuquerque/J. B. Lavanha
“achamos por todo este “por todo este caminho, “acharam, pela terra que
caminho muitas adens, acharão perdizes, codornises, tinham andado, adens,
perdizes, codornizes, pombas, garças, pardais, perdizes, codornizes,
pombas, garsas, pardais, corvos, e ervas da nossa terra, pombas, garças, pardais e
coruos, e muitas eruas da agriões, bredos, alecrim, corvos”.
Europa, como agriois, losna, fedeguosa, mentrastos,
bredos, alecrim, alosna, amoras de silva, fetos,
fedegose, e mentratro, eruababosa.”
amoras da silua, fetos, erva
baboza”.
448
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Quadro 3
449
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
B.P.E., Cód. CXV/2-8, “Relação da Perdição do Galeão São João vindo da India, na Costa da Cafraria.
1544
De que hera Cappitam Manuel de Sousa de Sepúlveda”, fls. 46-54 v.. Letra do século XVII.
450
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Nau H.T.M., I -“íngremes serras e bravas penedias daquela tão estranha e Terra bárbara
São Bento bárbara terra”, p. 57 e estranha
1554 -“praia grande”, p. 60
-“penedos […] ásperos e pontiagudos”, p. 60 Praia,
-caminharam por “uma vereda de elefantes”, p. 67 território
-“comprido, incerto, e perigoso caminho”, p. 67 limite
-“vales tão baixos e serras tão altas, que estas confinavam
com as estrelas e aqueles com os abismos”, p. 67 Terra de
-“penedos, ervas e mato”, p. 68 perigosos
-“impossibilidades do caminho tão terríveis”, p. 68 caminhos
-“sem caminho nem carreira, pelos altos e baixos daqueles
matos”, p. 69 Matos, terras
-“mato íngreme e espesso”, p. 71 selvagens e
-“topámos um rio que não está posto nas cartas”, p. 74 incultas
-“Barra da Pescaria”, p. 77
-“desertos de África”, p. 80 Terra deserta
-“praia erma”, p. 80
-costa “toda escalvada, sem árvores nem abrigo”, p. 87
451
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
452
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
453
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
-“a terra era doentia, por estar debaixo do Trópico […] Terra doentia
febres malignas”, p. 261
-“na Cafraria”, p. 262
1545
B.P.E., Ms. CXVI/1-22, “Relaçam do Naufragio da Náo São Thomé de que era Cappitão Esteuão da
Veiga, a qual se perdeo na Terra dos Fumos no anno de 1589, e dos grandes trabalhos, que passou Dom
Paulo de Lima e mais Companheiros nas Terras da Cafraria, até sua morte”. Uma parte do texto desta obra
é comum ao texto do códice com uma cota próxima (Cod.CXVI/1-24), da autoria de António de Ataíde.
Entre os dois textos verificam-se algumas diferenças de pormenor e a estrutura e organização do texto
também é diversa. No que se refere ao manuscrito CXVI/1-22, o conteúdo textual divide-se em duas partes:
1ª - Naufrágio da Nao São Tomé na Terra dos Fumos no anno de 1589 (fl. 1- 103); 2ª - Genealogia de Dom
Paulo de Lima (fl. 104-407).
454
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
455
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1546
Manuscrito da B.N.P., COD. 639, com o título “Perdição da não Santo Alberto, e das couzas da Cafraria,
costumes dos que a abitão ate o Cabo das Correntes”, transcrição integral em Glória de Santana PAULA,
O Naufrágio da Nau Santo Alberto. Discurso de um manuscrito anónimo, Lisboa, Caleidoscópio, 2007, pp.
111-163.
456
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
457
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
458
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
459
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
460
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
-“vale mui fundo e de espinhosos mato coberto […] não Matos, terras
parecendo que poderia ser o lugar habitado senão de feras selvagens e
[…] entre altos e ásperos rochedos”, p. 49 incultas
-“fresquidão desta ribeira […] por sua beleza lhe puseram
nome das Flores Fermosas. E os negros lhe chamam
Mutangalo”, p. 53 Terra de
-“se recolheram em um fresco vale que entre grandes rochas beleza e
se estendia, povoado de algumas quinze aldeias”, p. 54 frescura
-“uma viçosa serra”, p. 55 Caminhos
-“caminhar por boa estrada e mui seguida”, p. 55 bons e
- uma Cruz “foi por este honrado e virtuoso fidalgo [Nuno povoados
Velho] levantada e arvorada no meio da Cafraria, centro da
gentilidade […] a árvore da Santa Cruz na Cafraria”, p. 66
-“por uma mui estendida várzea os nossos caminharam,
povoada de bons pastos e arvoredo”, p. 66 Terra fértil e
-“terra alagadiça, […] de muitos brejos […] Dele se via ao abundante
Sudoeste a foz de um rio, que é o que nas cartas de marear
se chama de Santa Luzia”, p. 69
-“povoações, cujas casas eram como as nossas choupanas de
vinha”, p. 70
-“Terras do Inhaca […] uma grande baía de quinze ou vinte
léguas de comprido”, p. 73
-“…….
Nau Melchior
Santo Estácio - Naufrágio da nau Santo Alberto, cuja gente “foi ter a Terra de
Alberto do Moçambique por entre aquela bruta cafraria, 300 léguas por perigosos
1593 Amaral, terra […] tão largo e oculto caminho”, p. 207 caminhos
H.T.M.,
III1547
1547
Melchior Estácio do Amaral, “Batalhas e Sucessos do Galeão Santiago e da Nau Chagas”, HTM, Vol.
III, p. 207.
461
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Nau Francisc -“fomos amanhecer duas legoas da terra em trinta & tres
o Vaz
S. João graos, & hum terço, & foy tamanha a alegria em todos como
Dalmada
1549
Baptista se fora a barra de Lisboa, não imaginando o muyto caminho,
1622 que tinhamos para andar, & os trabalhos, que nos
aguardavam ao diante.”, p. 10
-“E porque nos pareceo hua praya de area, & bom
desembarcadouro (o que depois conhecemos não ser assim)
surgimos em sete braças com duas ancoras. Mandou logo o
Capitão a Rodrigo Affonso de Mello com quinze homes
arcabuzeyros reconhecer a terra […] & nos mandou agua Terra de
doce, & hervas cheyrosas, com que nos causou notavel perigosos
alegria.”, p. 11 caminhos
-“havemos de atravessar esta Cafraria atè o cabo das
Correntes”, p. 11 Terra de
-“terras tão fragosas, & caminhos tão longe”, p. 11 muitos rios
-“costa brava”, p. 12
-“esta terra he toda cortada de rios de muy boa agua,& tem
lenha, mas falta de fruita, e de mantimentos, sendo assim,
que parece tal, que dará tudo o que nella se semear
abundantemente”, p. 15
-“vinte dias de caminho de Cafre […] que vinhão a ser dous
mezes do nosso caminho”, p. 16
1548
A. Botelho de Sousa, Subsídios para a História Militar Marítima da Índia (1585-1669), Lisboa, 1930-
56, II.
1549
Francisco Vaz Dalmada, Tratado do sucesso que teve a nao S. Joam Baptista, e jornada que fez a gente
que della escapou, desde trinta, & tres graos no Cabo de Boa Esperança, onde fez naufragio, até Sofala,
vindo sempre marchando por Terra, Lisboa, por Pedro Craesbeck (?), 1625(?), 96 ps. (Reservado da
Biblioteca Nacional de Lisboa com a cota RES. 336 6).
462
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
463
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
464
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
465
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
466
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
forças pelos mantimentos serem poucos, & os Cafres no los Diz respeito à
não quererem vender.” P. 78 viagem por
- “ … fomos atè o rio do ouro”, p. 78 terras para
- “ … indo marchando pela praya nos sahiraõ do mato mais norte de
de mil Cafres, & dando-nos hum assalto na retaguarda”, p. Lourenço
84 Marques
- “ … jà Inhambane devia estar perto”, p. 85
- “E caminhando quatro dias pela praya fomos passar hum
rio com água pelo pescoço fria como neve, a qual me tratou
bem mal.” P. 86 Terra de bom
- “E assim fomos caminhando pelas terras do Zavala hum agasalhado
cheque, ou regulo nosso amigo”, p. 86
- “Inhambane, […] là chegàmos, que foy dezanove de
Junho, aonde fomos bem recebidos, & aquella noyte nos não
faltou de comer”, p. 87 Bazaruto
- “ … banda do Chamba, que fica da parte do Cabo das
Correntes, […]. He este rio fermosissimo, tem de largo meya
legoa, & da banda do Camba bom surgidouro para
embarcações de atè trezentas toneladas, […] há muyto Sofala
marisco, […] a terra em si he muyto sádia, & a mais farta,
& barata, que já se vio, abundantisima de mantimentos,
como he milho, ameychueyra, jugos, que são como grãos,
mungo, gergelim, mel, manteyga, muyto fermosos boys,
[…] muytas cabras, & carneyros, o peyxe he o melhor que Inhambane
comi em toda a India, & tão barato, que he espanto […]. Os Terra de
matos todos são cheyos de laranjas, & limões, tem muyta mercadorias
madeyra, de que se podem fazer embarcaçoens.” p. 88 para o
- “E tendo andado aquelle dia todo fomos passar hum rio, & comércio
dormindo da outra banda, se vierão ajuntar mais Cafres à (ambar e
companhia carregados com marfim, & ambre para venderem marfim)
em Zofala”, p. 90
467
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
- “Por todo este caminho fuy muy bem agasalhado, & o que
mais pena me dava nesta jornada, era a detença, que me
fazião ter os regulos, que por aqui hà, que ainda que esta
gente esteja mais perto de nòs, que a do Cabo de boa
Esperança, fazem mais espanto quando vem hum Portuguez.
E depois de ter andado quinze dias, fuy ter à povoação de
outro regulo mayor”, ps 90-91
- “daqui a alguns dias fuy ter com outro regulo, que está
defronte das Ilhas Bazanito, […] cheguey a Molomono que
são jà terras de hum mulato por nome Luis Pereyra, o qual
vive em Zofala, & he a mais venerada pessoa, que nestas
partes hà.” P. 91
- “ … vinte oyto de Julho fomos a Zofala […] aonde os
Cafres com muytos grandes gritos disserão: Muzungos,
muzungos”, p. 92
- [Sofala] “em terra de Christãos”, p. 93
- “me parti para Inhambane a quinze de Agosto, e pla
detença, que fiz em Quelvame cheguey com muytas
tormentas milagrosamente por cima de Inhambane dez
legoas”, p. 93
- “chegàmos à tarde a Inhambane, onde me vieraõ todos
receber com muytas lagrimas, dizendo, que a mim se me
devia tudo, & que eu os vinha tirar do cativeyro do Faraò, &
que os Cafres já lhes não queriaõ dar de comer”, p. 94
- “as mercadoryas da terra […] eraõ ambre, & marfim”, p.
95
- “E fazendo-me dar à vella, tornàmos a arribar por ser fóra
de monção, & aquella costa ser muyto tormentosa”, p. 95
- “Desembarcando em terra fomos todos em procissão a
nossa Senhora do Baluarte, levando hua Cruz de páo diante,
[…] graças a Deos pelas muytas mercès, que nos tinha feyto
de nos trazer a terra de Christãos”, p. 96.
468
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1550
Biblioteca Pública Municipal do Porto, Códice 737, “Rellação de Varios Naufragios”, fls. 68-75 v..
Data desconhecida, parecendo tratar-se de uma recompilação do século XVII.
469
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1551
Manuel de Faria y SOUSA, Ásia Portuguesa, Tomo III, Parte IV, Cap. VIII, Partes 12-19, Lisboa,
Officina de Antonio Craesbeeck, 1671.
470
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Nossa José - “[…] em Abril, & Mayo […] he melhor ir ver terra do cabo
Cabreira
Senhora em altura de trinta & hum para trinta & dous graos, & não
de Belém desgarrar tanto ao mar a buscar tormentas: de mais que para
1635 os infortunios desta navegação sempre na terra se offerece
mais prompto acolhimento. Pelo que nesta volta viemos
ambas as Náos mais de oyto dias atè ver a primeyra terra
daquella costa, […] donde contra o curso ordinario desta
monção começárão os temporaes a ser tão rijos, & continuos
que parece que cada qual procurava de acabar com nosco de
hua vez”, ps. 9-10
471
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
472
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
473
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
474
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
475
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
476
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
477
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
- “Fruitas não nas cria a terra por falta de cultivo, que não no Terra de feras
ha entre os cafres”, p. 572
- “As agoas são muitas de rios e fontes frescas, delgadas,
sadias e doces”, p. 572
- “não vi terra mais temperada e milhor clima do que esta, e
muito poucas tão boas, porque posso dizer he sempre huma
alegre primavera”, p. 573
- “he certo aver multidão e variedade de feras. As de que
pudemos ter noticia são as seguintes: elefantes, bufaras
bravas e o são muito, leões, tygres, onças, porcos monteses”,
p. 573
- “considerando a calidade desta terra en toda a que se Terra fresca,
estende desd’o dito cabo até Sofalla, foy esta a mais de arvoredos
acomodada para remedio de nosso infortunio e misseravel
naofragio que podiamos encontrar”, p. 573
- “descubrimos huma fresca fonte de agoa muito boa ao pee Scralização
de huma rocha […] logo descubrimos muitas outras em da terra –
diversas partes”, p. 575 Igreja
- “fermozos bosques, apraziveis prados”, p. 579 Animais
- “terra tão remontada”, p. 581 peçonhentos
- “naquelles matos”, p. 586
- “descubrimos huma fermosa vargea cercada de montes, à Terra remota
roda alto e espeso arvoredo, aberta somente ao mar. […] E – sinalizada
como o lugar era tão fresco e de bom sitio, ouvemos de ter pela campa
requestas com grande copia de cavalos marinhos dos quais cristã
avia grande numero naquelle rio”, p. 590
- “A igreja tomei a minha conta, fazendo-a capás de mais de
200 pesoas”, p. 593
- “muitas cobras de que aquelle lugar era muito inficionado Praia de
[…] todas erão roins, as peores erão humas que chamão de perdição
asopro”, p. 599
- “sairemos daquelle desterro”, p. 603
478
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
479
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
480
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
481
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
482
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
483
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
484
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
fabrica de algua Náo, que devia dar á cost, & antes do meyo
dia chegamos a hum rio caudaloso”, p. 45
- “[…] deyxamos o nome de Rio da Cruz, por hua de pao
que alli levantamos, & outra que se esculpio em hua pedra”,
p. 45
- “o caminho ápero, & comprido”, p. 47
- “hum mato cerrado […] hum rio de muyto arvoredo
fresco”, p. 50
- “tornárão a marchar por hum monte de muytos espinhos,
& grande praga de gafanhotos pegados nas arvores, a que
sobreveyo grande nevoa com chuva meuda”, ps. 51-52
- “[…] andando todos os dias seis, & sete legoas, por
queymadas, & roins caminhos, […] se forão meter na ponta
de huma serra fragosa, & medonha”, p. 52
- “hum sitio de alto capim, que servia de sombra aos
Elefantes”, p. 52
- “[…] passando o rio com bem roim vao, não se lembrárão
mais, que de ir por diante por se ver livre, de tão má terra, &
peyor gente”, p. 52
- “[…] passando por elles o arrayal nos recebèrão com festa,
cantigas, & bayles a seu modo, assentamos á sua vista, & de
muytas povoações em hua campina junto a hum rio acodindo
tanto resgate, que passarão de mil mocates de milho, o
melhor pão de toda a Cafraria”, p. 58
- “vadeamos o rio com agua pelos peytos dando-lhe por
nome dos figos, por serem aquelles os primeyros, que
achamos nesta Cafraria”, p. 61
- “demos fé em altura de vinte sete para vinte oyto graos, da
mais fermosa varzea, que nossos olhos virão, povoada de
muytas povoaçõens, & regada de rios de agua doce, com
muyto gado, aonde nos sahirão tantos Cafres, & Cafras, que
todos aquelles campos negrejavão”, p. 62
485
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
- “Marchamos este dia com grande orvalho, & frio, & muyto
trabalho”, p. 64
- “avistamos sobre a tarde hum rio caudaloso, que vinha
enchendo a marè nos hia cobrindo o caminho,
apressadamente, que passamos com grande ancia, caindo em
muytas covas de Elefantes, & cavallos marinhos, que
achamos abertas & alagadas com agua, que dava pelo
pescoço.”, p. 64
- “marchàmos logo por caminho bem roim, & em parte
perigoso por causa de Elefantes com suas armadilhas”, p. 65
- “Passado este rio, que chamaõ das Pescarias, tornamos a
marchar com Cafres em nosso seguimento com suas armas”,
p. 65
- “assentamos junto a hua ribeyra de boa agua doce, com
arvoredo aprasivel, à vista de hua pevoação grande, a quem
os praticos chamavaõ o lugar do Sorcor, pelo haver sido para
elles, quando pasarão do naufragio da naveta.”, p. 66
- “nos sahirão de hum mato muytos Cafres armados”, p. 67
- “tornamos a marchar pela praya atè chegar a hum ribeyro
de boa agua, sinco legoas do rio de Santa Luzia […]. Tendo
marchado quatro legoas, atravessando por dentro de hum
areal com serras de area, que se hião ás nuvens, & sem mato.
Chegamos ao rio de Santa Luzia assentando o arrsyal na sua
praya entre muytos espinheyros verdes”, p. 68
- “ […] chegamos a hu braço do rio de Santa Luzia, que
passamos com muytos atoleyros, & alagadiços”, p. 70
- “marchamos pela terra dentro com vista de alegres campos,
povoados de Elefantes, sem conto, passando outro braço do
rio de Santa Luzia, com grandes alagadiços”, p. 70
- “buscando sitio, para descançar, por nos não atrever a mais,
o tomamos defronte de huas palhotas destroçadas”, p. 71
486
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
487
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Quadro 4
Percepções dos Africanos nos relatos de naufrágios (sécs. XVI e XVII)
Galeão S. João “risquo que corria quem la fose dos tigres e lyães, por que como
fiquaua homem ou se desmandaua hum pouco da companhia, ho
(1552)
comião logo ou erra morto dos cafres.”1552
“(…) os cafres são homens que não semeiam senão muito pouco, nem
comem senão do gado bravo que matam.”1555
Nau S. Bento “(…) eles, havendo medo, fugiram, sem quererem vir com os nossos;
(1554) de modo que nenhuma outra informação pudemos ter, mais que serem
cafres de cor bem negra e cabelo revolto, que andavam nus, com mais
aparência de selvagens que de homens racionais.”1556
“bárbaro e criado nas concavidades daquelas desabitadas serras”.1557
“Não avião bem tomado algum alivio como melhor puderão, quando
aparecerão por aquellas serras alguns Cafres com suas varas tostadas
1552
(ed. Por Afonso da Costa, Rio de Janeiro, 19371552 “Perdimento do gualeão São João que
vinha da Imdia pera Portugall Manoell de Sousa de Sepulluada por capitão”, B.A., Cod 50-V-22, in Kioko
KOISO, op. cit., Vol. II, p.534.
1553
“Naufragio Lastimozo de Manoel de Sousa Sepulveda”, in Rellação de Varios Naufragios, B.P.M.P.,
Códice 737, fl. 9.
1554
IDEM, ibidem, fl. 10.
1555
“Relação da mui notável perda do Galeão Grande S. João em que se contam os grandes trabalhos e
lastimosas cousas que aconteceram ao Capitão Manuel de Sousa Sepúlveda e o lamentável fim que ele e
sua mulher e filhos, e toda a mais gente, houveram na Terra do Natal, onde se perderam a 24 de Junho de
1552”, in H.T.M., Vol. I, (…), p. 28.
1556
Manuel de Mesquita PERESTRELO, “Relação Sumaria da Viagem que fez Fernão de Álvares Cabral
desde que partiu deste Reino por Capitão-mor da armada que foi no ano de 1553 às partes da Índia até que
se perdeu no Cabo de Boa Esperança no ano de 1554”, in H.T.M., Vol. I, (…) p. 63.
1557
IDEM, ibidem, p. 98.
488
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
(arma comua de Barbaros Africanos) sem que por mais que fizerão
os pudessem entender1558
“(…) os Barbaros mais conhecidos de Africa”1559
Nau Santiago “em uma praia de bárbaros (…) terra de inimigos tão cruéis como
(1585) estes cafres são.”1560
“os negros (…) ao outro dia despois deles idos vieram com muita
cólera gritando, meteram a todos os que ficaram em um curral, como
gado, dentro em uma pequena choupana, (…) ouvirem gritar um
marinheiro, que ficou fora, que o afogavam, isto com vozes muito
lastimosas; e o caso era que dois moços cafres lançaram uma corda
ao pescoço do pobre homem; e, pretendendo mais espantá-lo que
matarem-no, o arrastavam puxando por ele; (…) e como a tenção dos
cafrinhos era de zombar, acabou-se o jogo em lhe darem muitas
pescoçadas”.1561
Nau S. Tomé “(…) lançaram alguns marinheiros fora para irem ver se havia
(1589) algumas povoações, os quais de cima de uns medãos de areia
enxergaram fogos; e, indo-os demandar, deram em umas palhoças em
que moravam alguns cafres, que em vendo aqueles homens lançaram
a fugir; mas tornando a conhecer serem portugueses, (…) tornaram
logo a eles mui domésticos”.1562
1558
“Naufragio Espantozo de Fernando Alvarez Cabral. Ano de 1554”, in Rellação de Varios Naufragios,
B.P.M.P., Códice 737, fl. 22.
1559
IDEM, ibidem, fl. 24 vº.
1560
Manuel Godinho CARDOSO, “Naufrágio da Nau Santiago no ano de 1585 e Itinerário da gente que
dele se salvou”, in H.T.M., Vol. II, (…), p. 186.
1561
IDEM, ibidem, p. 189.
1562
Diogo do COUTO, “Relação do naufrágio da Nau São Tomé na Terra dos Fumos, no ano de 1589 e
dos grandes trabalhos que passou D. Paulo de Lima nas Terras da Cafraria, até a sua morte”, in H.T.M, Vol.
II, (…), p. 237.
1563
IDEM, ibidem, p. 243.
1564
Gaspar Ferreira REIMÃO, “Trattado dos grandes trabalhos que passarão os portugueses, que se
saluarão do espantosos naufragio que fez a nnaao São Thome que vinha pera o Reino no Anno 1589, a qual
abrindo muita agoa, querendo se hir ao fundo perto da terra do Natal se meterão no batel e nelle nauegarão
489
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
ate hirem dar em terra de caferes, pela qual caminharão duzentas legoas passando muitos trabalhos, fomes,
perigos, necessidades, ate nosso senhor ser seruido de traser alguns deles a terras de christãos, e os mais
acabarão as vidas por teras de cafres, com muito desemparo, como neste tratado se vera. Feito por Gaspar
Ferreira sotapiloto da mesma Naao Anno de 1590”, in Kioko KOISO, op cit, Vol. II, (…), p. 584.
1565
IDEM, ibidem, p. 594.
1566
IDEM, ibidem, p. 595.
1567
Relaçam do Naufragio da Náo São Thomé de que era Cappitão Esteuão da Veiga, a qual se perdeo na
Terra dos Fumos no anno de 1589, e dos grandes trabalhos, que passou Dom Paulo de Lima e mais
Companheiros nas Terras da Cafraria, até sua morte, B.P.E., Cod. CXVI/1-22, fl. 40.
1568
IDEM, ibidem, fl. 42.
1569
“Perdição da nau Santo Alberto, e das couzas da Cafraria, costumes dos que a abitão ate o Cabo das
Correntes”, in Glória de Santana PAULA, op. cit., p. 116.
1570
IDEM, ibidem, p. 118.
1571
IDEM, ibidem, p. 125.
1572
IDEM, ibidem, p. 133.
1573
IDEM, ibidem, p. 139.
490
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Nau S. João “A gente que nella habita não se sustenta mais que de marisco, & de
Baptista humas raizes como tubaras da terra, & da caça. Não conhecem
(1622) sementeyra alguma, nem outro modo de mantimento”.1575
“Cafres barbaros”1576
“sendo barbaros sem conhecimento da verdade”1577
“todos os Cafres desta povoação juntos nos vierão com grandes gritas
perseguindo a retaguarda com muytas pedradas, & azagayadas”1578
“mais valia a palavra de hum Portuguez, que todas as riquezas dos
Cafres”.1579
“(…) em mais de hum mez que tratarão com elles, não foy possivel o
entender se, tão barbara era a sua linguagem, que parecia mais
semelhar a os bramidos das feras, que não a voz dos humanos”1580
“(…) confuso barbarismo de aquella grande gentilidade”1581
“(…) vinhão pelejando, se não com cafilas de Cafres, por cuja imensa
multidão se abria o passo com as armas”1582
1574
João Baptista LAVANHA, “Naufrágio da Nau Santo Alberto no Penedo das Fontes, no ano de 1593 e
Itinerário da gente que dele se salvou até chegarem a Moçambique, escrito por João Baptista Lavanha
Cosmógrafo-mor de Sua Majestade, no ano de 1597”, in H.T.M., Vol. III, (…), p. 32.
1575
Francisco Vaz DALMADA, op. cit., p. 15.
1576
IDEM, ibidem, p. 30.
1577
IDEM, ibidem, p. 35
1578
IDEM, ibidem, p. 50
1579
IDEM, ibidem, p. 88.
1580
“Naufragio Lastimozo de Pedro de Morais. 1622.”, in Rellação de Varios Naufragios, B.P.M.P., Códice
737, fl. 70.
1581
IDEM, ibidem, fl. 73.
1582
IDEM, ibidem, fl. 74.
1583
Manuel de Faria y SOUSA, op. cit., Tomo III, (…), p. 460.
491
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Nau Nª Srª de “(…) donde nunca puzerão pès mais que alimarias bravas, ou aqueles
Belém (1635) Alarves naturaes, que tambem se distinguem pouco das proprias
féras”.1584
“(…) estava acachado hum alarve que de subito se ergueo, & saltou
mais ligeyro que hum galgo, (…) & quando levamos as espingardas
ao rosto jà o negro, como hum passaro, hia por cima de humas
serras”1585
Naus Nª Srª da “os barbaros desta Cafraria (…), sahirão dous barbaros do mato”1591
Atalaia e
“(…) sendo estes barbaros já mais domesticos, por ventura pela
Sacramento
communicação, que tiverão com os nossos da Náo Belem”1592
(1647)
“hum Cafre do mato lançou mão, & correo tão ligeyro, que se lhe não
pode valer. E saindo nos achamos em hum campo cercado de tantos
Cafres, como estorninhos, em ala, & som de guerra brandindo
azagaias”1593
“quando este barbaros vem muytos juntos sem resgate, vem
furtar”1594
“descobrindo tanta copia de Cafres, que negrejavão os campos”1595
“marchar com todos estes brutos em nossa companhia”1596
1584
Joseph de CABREYRA, op. cit., p. 27.
1585
IDEM, ibidem, p. 30.
1586
Jerónimo LOBO, op. cit., p. 558.
1587
IDEM, ibidem, p. 559.
1588
IDEM, ibidem, p. 561.
1589
IDEM, ibidem, p. 568.
1590
IDEM, ibidem, p. 583.
1591
Bento Teixeira FEYO, op. cit., p. 25.
1592
IDEM, ibidem, p. 38.
1593
IDEM, ibidem, pp. 43-44.
1594
IDEM, ibidem, p. 45.
1595
IDEM, ibidem, p. 50.
1596
IDEM, ibidem, p. 62.
492
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
1597
IDEM, ibidem, p. 74.
493
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Bibliografia
FONTES MANUSCRITAS
- Clm 6362.
Reprodução digital do manuscrito em:
http://daten.digitalesammlungen.de/~db/0006/bsb00065170/images/index.html?seite
=151&fip=193.174.98.30 (Consultado em 13/07/2012).
- Clm 14436.
Reprodução digital do manuscrito em:
http://daten.digitalesammlungen.de/0003/bsb00033074/images/index.html?fip=193.
174.98.30&id=00033074&seite=119 (Consultado em 13/07/2012).
- Cod. 51-V-34, fls. 137-168 v.. “Sumario de como se perdeo o galleao Sam João vindo
da India pera este reino a 24 de Junho de 552 vindo nelle por capitão Manoel de Sousa
Sepulveda, posterior a 1552.”
- Cod. 51-VI-46, Miscelânea, Vol. VII, fls. 21-23. Papel do vice-rei da India, conde-
almirante D. Francisco da Gama, sobre o dano que se pode fazer aos ingleses e
holandeses na aguada de Saldanha, Goa, 17 de Fevereiro de 1625.
- Cod. 51-VI-54, n.º 26, fls. 103-116. “Roteiro que fez Manuel de Mesquita do que
descobriu do Cabo da Boa Esperança a Moçambique, 1575-1576.”
494
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
- Reservados, Cod. 475, fls. 60-76. “Geografia historica do Brasil, Africa, Asia,
Portugal, etc..”
- Reservados, Cod. 639. “Perdição da nao Santo Alberto e das couzas da Cafraria
costumes dos que a abitão ate o Cabo das Correntes”, 56 fls.
- Reservados, Cod. 7360, 57 fls.. Gaspar Ferreira REIMÃO, “Trattado dos grandes
trabalhos que passarão os portugueses, que se salvaram do espantoso naufragio que
fez a naao São Thomé que vinha pera o Reino no ano de 1589, a qual abrindo muita
495
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
agoa querendo-se hir ao fundo perto da terra do Natal se meterão no batel e nelle
navegarão até hirem dar em terra de cafres, pella qual caminharão 200 legoas (...)
Feito por Gaspar Ferreira sota piloto da mesma Naao Ano de 1590.”
- Reservados, Cod. 14534, Livro. Iº. em o qval. se tresladão. as cartas. qve mandão. os
Padres. he Irmãos. da Companhia. de Iesu. qve andão. na India. das covsas. qve
naqvelas. partes. Deus. Nosso Senhor. por meyo deles. em servico sev. he lovvor.
obra. qve comeca. do anno. do Nacimento. de Nosso. Senhor. Iesv. Christo. de. 1557.
em diante. até. 64.
- Cod. CXV/1-23, fl. 3-16. “Roteiro dos portos, derrotas, alturas, cabos, conhecenças,
resguardos e sondas, que á per toda a costa desdo cabo de boa esperança ate o das
correntes.”
- Cod. CXV/2-8, fls. 47-54 v.. “Relação da perdição do Galeão São João vindo da India
na Costa da Cafraria de que hera Cappitam Manuel de Sousa Sepulueda.”
- Cod. CXVI/1-22. “Relaçam do Naufragio da Náo São Thomé de que era Cappitão
Esteuão da Veiga, a qual se perdeo na Terra dos Fumos no anno de 1589, e dos
grandes trabalhos, que passou Dom Paulo de Lima e mais Companheiros nas Terras
da Cafraria, até sua morte.”
- Cod. CXVI/1-24. “Historia de Dom Paulo de Lima escripta por Dom António de
Ataíde.”
496
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
- Fundo Azevedo, Pasta 16. “Historia Geografica de varias partes do mundo e huma
breve noticia de algumas couzas mais raras delle tudo por Mestre Antonyo Fisyquo,
e Colorgião natural e morador de Guimaraens, em 1512.”
- Historical Papers Research Archive, A-70, “Rellação que fez João da Costa por
mandado do Senhor Conde Gouernador sobre a barra dos Rios de Cuama e
Nauegação para ella deste Reino de Portugal e da India e trato deles”, 7 fls.
497
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
FONTES IMPRESSAS
A Bíblia de Jerusalém, (Nova Edição Revista), São Paulo, Edições Paulinas, 1986.
ALBERTI, Ludwig, Account of the Xhosa in 1807 being a translation from the original
German manuscript by Dr. William Fehr, Cape Town, Balkema, 1968.
ALVARES, Francisco, Ho preste Ioam das Indias: verdadera informaçam das terras do
Preste Ioam S08/02/2020egundo vio & escreueo ho padre Francisco Aluarez, capellã del
rey nosso senhor. Agora novam[en]te impresso por mandado do dito senhor, Lisboa, em
casa de Luis Rodrigues, 1540.
http://175anosbpb.pt/bpbuminho/preste-joao/ (Consultado em 20/07/2018)
AMARAL, Melchior Estácio do, Tratado das Batalhas e Sucessos do Galeam Santiago
com os Olandezes na Ilha de Santa Elena, e da Nao Chagas com os Inglezes entre as
Ilhas dos Açores: ambas Capitanias da Carreyra da India, & da causa, & desastres,
porque em vinte annos se perdêrão trinta, & oyto Naos della, Lisboa, Na Officina de
Antonio Alvares, 1604.
“Apontamentos que fez João Pereira Damtas por mandado Del Rey Dom João Terceiro
no anno de 1556”, in SANTOS, Maria Emília Madeira, O Carácter experimental da
Carreira da Índia. Um plano de João Pereira Dantas, com fortificação da África do Sul
498
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
AQUINO, S. Tomás de, Suma de Teología, BYRNE, Damián (Apresentação por), 4.ª ed.,
Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 2001.
ARISTÓTELES, Sobre a Alma, LÓIO, Ana Maria (Trad.), MESQUITA, António Pedro
(Coord.), Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2010.
BARBOSA, Duarte, Livro em que dá relação do que viu e ouviu no Oriente Duarte
Barbosa, MACHADO, Augusto Reis (Introdução e notas), Lisboa, Agência Geral das
Colónias, 1946.
BARROS, João de, Ásia de João de Barros: dos feitos que os portugueses fizeram no
descobrimento e conquista dos mares e terras do Oriente, Primeira Década, Lisboa,
Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1988 (facsimile da edição revista e prefaciada por
António BAIÃO, da Imprensa da Universidade de Coimbra de 1932).
499
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
BERJEAU, Jean Philibert (Introd. e trad. para inglês), Calcoen: A Dutch Narrative of the
Second Voyage of Vasco Da Gama to Calicut, Printed at Antwerp Circa 1504, London,
Basil Montagu Pickering, 1874.
BOCARRO, António, Decada 13 da Historia da India, Tomo II, Lisboa, Academia Real
das Sciencias de Lisboa, 1876.
http://purl.pt/26126/4/ (Consultado em 15/06/2018)
BROWNLEE, Charles Pacalt, Reminiscences of Kaffir Life and History, and Other
Papers, Lovedale, Lovedale Mission Press, 1896.
BUDGE, Wallis, History of Ethiopia, Nubia and Abyssinia, 1928, Apud Malvern Van
Wyk SMITH, The First Ethiopians. The Image of Africa and Africans in the Early
Mediterranean World, Johannesburg, Wits University Press, 2009.
“Bula do papa Sisto IV, Aeterni Regis clementia”, 10 de Abril de 1488, in Portugaliae
Monumenta Africana, ALBUQUERQUE, Luís, SANTOS, Maria Emília Madeira (Dir.),
ESTEVES, Maria Luísa Oliveira (Org.), Vol. 1, Lisboa, Instituto de Investigação
Científica Tropical, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos
Portugueses, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1993, pp. 275-284.
CABREYRA, Joseph de, Naufragio da Nao N. Senhora de Belem Feyto na terra do Natal
no cabo de Boa Esperança, & varios sucessos que teve o Capitão Joseph de Cabreyra,
500
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
que nella passou à India no anno de 1633. Fazendo o officio de Almirante daquella frota
atè chegar a este Reyno, Em Lisboa, Por Lourenço Craesbeeck Impressor d’ElRey, 1636.
CAMINHA, Pero Vaz de, Carta a el-rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil, 1 de
Maio de 1500. https://purl.pt/162/1/brasil/obras/carta_pvcaminha/index.html
(Consultado em 21/08/2021)
CAMÕES, Luis de, Os Lusíadas, (ed. organizada por SARAIVA, António José), Porto,
Livraria Figueirinhas, 1978.
501
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Históricos Ultramarinos, National Archives of Rhodesia and Nyasaland, 1962, pp. 388-
401.
“Carta (copia) do Padre André Fernandes para os Irmãos do Colégio de Goa”, (Chaul, 2
de Janeiro de 1560), in Documentos sobre os Portugueses em Moçambique e na África
Central, Vol. VII (1540-1560), Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos,
National Archives of Rhodesia and Nyasaland, 1971, pp. 434-437.
502
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
“Carta (copia) do Padre Andre Fernandes para o Padre Provincial da Companhia de Jesus
da Índia” (Tonge, 24 de Junho de 1560), in Documentos sobre os Portugueses em
Moçambique e na África Central, Vol. VII (1540-1560), Lisboa, Centro de Estudos
Históricos Ultramarinos, National Archives of Rhodesia and Nyasaland, 1971, pp. 462-
477.
“Carta (copia) do Padre Andre Fernandes para o Irmão Luis Fróis” (Tonge, 25 de Junho
de 1560), in Documentos sobre os Portugueses em Moçambique e na África Central, Vol.
VII (1540-1560), Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, National Archives
of Rhodesia and Nyasaland, 1971, pp. 478-487.
“Carta do irmão Luiz Froes do Collegio de Goa de 15 de dezembro de 1561 para o irmão
Bento Toscano em Portugal recebida em agosto de 1562”, in PAIVA E PONA, António
Pereira de, Dos primeiros trabalhos dos portugueses no Monomotapa. o padre D.
503
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
“Carta que el-rei de Inhambane, que o padre D. Gonçalo fez christão, escreveu ao viso-
rei D. Constantino (em maio de 1560) á India”, in PAIVA E PONA, António Pereira de,
Dos primeiros trabalhos dos portugueses no Monomotapa. o padre D. Gonçalo da
Silveira, 1560: memoria apresentada á 10.ª sessão do Congresso internacional dos
orientalistas, Lisboa, Imprensa Nacional, 1892, pp. 50-52.
“Carta que um portuguez por nome Antonio Caiado escreveu de Manamotapa a outro seu
amigo que estava em outro logar da mesma terra sobre a morte de D. Gonçalo”, in PAIVA
E PONA, António Pereira de, Dos primeiros trabalhos dos portugueses no Monomotapa.
o padre D. Gonçalo da Silveira, 1560: memoria apresentada á 10.ª sessão do Congresso
internacional dos orientalistas, Lisboa, Imprensa Nacional, 1892, pp. 70-73.
“Carta que um portuguez por nome Antonio Caiado escreveu de Manamotapa a outro seu
amigo que estava em outro logar da mesma terra sobre a morte de D. Gonçalo”, in
Documentos sobre os Portugueses em Moçambique e na África Central, Vol. VIII (1511-
1514), Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, National Archives of
Rhodesia and Nyasaland, 1964, pp. 2-8.
504
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
CASTRO, D. João de, Roteiros de D. João de Castro, pref. e anot. por COSTA, Abel
Fontoura da, 2.ª ed., 1.º Vol., Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1939-1940.
Códice Valentim Fernandes, leitura paleográfica, notas e índice por COSTA, José Pereira
da, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1997.
505
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Vol. XV Suplemento (Sécs. XV, XVI, XVII), 1485-1665, Lisboa, Academia Portuguesa
da História, 1988, pp. 406-407.
COUTO, Diogo do, “Relação do naufrágio da Nau São Tomé na Terra dos Fumos, no
ano de 1589 e dos grandes trabalhos que passou D. Paulo de Lima nas Terras da Cafraria,
até a sua morte”, in História Trágico-Marítima, (ed. e notas de SÉRGIO, António), Vol.
II, s. l., Editorial Sul, 1955, pp. 217-266.
COUTO, Diogo do, Década Undecima da Asia. Dos feitos que os Portuguezes fizeram
no descubrimento dos mares, e conquistas das terras do Oriente, em quanto governaram
506
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
COUTO, Diogo do, Década XI da Ásia, Lisboa, Na Regia Officina Typografica, 1788.
DALMADA, Francisco Vaz, Tratado do svcesso qve teve a Nao S. Joam Baptista, E
jornada que fez a gente que della escapou, desde trinta & tres graos no Cabo de Boa
Esperança, onde fez Naufragio, atè Sofala, vindo sempre marchando por terra, Em
Lisboa, Por Pedro Craesbeeck Impressor delRey, 1625.
“De uma do irmão Balthasar da Costa da India que escreveu a um padre da Companhia
de Jesus em Portugal a 16 de novembro de 1560”, in PAIVA E PONA, António Pereira
de, Dos primeiros trabalhos dos portugueses no Monomotapa. o padre D. Gonçalo da
Silveira, 1560: memoria apresentada á 10.ª sessão do Congresso internacional dos
orientalistas, Lisboa, Imprensa Nacional, 1892, pp. 48-50.
“De uma do padre António Fernandes da Cafraria de 3 de Junho 1561 para o irmão Mario
em Portugal”, in PAIVA E PONA, António Pereira de, Dos primeiros trabalhos dos
portugueses no Monomotapa. o padre D. Gonçalo da Silveira, 1560: memoria
apresentada á 10.ª sessão do Congresso internacional dos orientalistas, Lisboa,
Imprensa Nacional, 1892, p. 52.
507
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
“Determinação dos letrados, scilicet, com que condiçoens se podia fazer guerra aos reys
da conquista de Portugal. Fala em especial do Monomotapa”, in Josef WICKI e John
GOMES, Documenta Indica, Vol. VIII, Roma, Apud “Monumenta Historica Societatis
Jesu”, 1958, pp. 675-679.
“Doutra sua [André Fernandes] pera o Irmão Gaspar italo, em Portugal” [Tonge, 3 de
Junho. 1561]”, in Joseph WICKI e John GOMES, in Documenta Indica, Vol. V, Roma,
Apud “Monumenta Historica Societatis Jesu”, 1958, pp. 148-149.
“Doutras do mesmo Padre [André Fernandes] pera alguns Irmãos de Portugal, do mesmo
tempo” [Tonge, 3 Junho de 1561], in Documenta Indica, Vol. V, Roma, Apud
“Monumenta Historica Societatis Jesu”, 1958, pp. 149-150.
508
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Históricos Ultramarinos, National Archives of Rhodesia and Nyasaland, 1964, pp. 112-
126.
FEYO, Bento Teyxeyra, Relaçam do Naufragio que fizeram as Naos Sacramento, &
Nossa Senhora da Atalaya, vindo da India para o Reyno, no Cabo de Boa Esperança; de
que era Capitaõ mòr Luis de Miranda Henriques, no anno de 1647, Lisboa, Impressa na
Officina de Paulo Craesbeeck, 1650.
“Fr. Ioannes Fernandes S. I. Ex Comm. P. Jacobo Lainez, Praep. Gen. S. I., Romam”,
(Lisboa 22 Setembro 1561), in Josef WICKI e John GOMES, Documenta Indica, Vol. V,
(…), pp. 188-192.
GODINHO, Nicolau, Vita Patris Gonzali Sylveriae, societatis Iesu sacerdotis, in urbe
Monomotapa martyrium passi, Lion, par Horace Cardon, 1612.
GÓIS, Damião de, Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel, Nova Edição conforme a
Primeira de 1566, 4 Vols., Coimbra, Por Ordem da Universidade, 1949 (Parte I), 1953
(Parte II), 1954 (Parte III), 1955 (parte IV).
509
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
GUERREIRO, Padre Fernão, Relaçam annual das cousas que fizeram os padres da
Companhia de Jesu nas suas missões ... dos anos de 1600 a 1609, 3 Vols., Coimbra –
Lisboa, Imprensa da Universidade – Imprensa Nacional, 1930-1942.
KHOURY, Ibrahim, As-Sufaliyya. “The Poem of Sofala” by Ibn Magid, Coimbra, Junta
de Investigações do Ultramar, 1983.
510
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
LACERDA, Francisco Gavicho de, Os Cafres. Seus usos e costumes, Lisboa, Livraria
Rodrigues, 1944.
LAUJARDIÈRE, Guillaume Chenu de, “Relation d’un voyage à la côte des Cafres”, in
LANNI, Dominique, Fureur et Barbarie. Récits de Voyages chez les Cafres et les
Hottentots – 1665-1721, Paris, Cosmopole, 2001, pp. 86-130.
LAVAL, François Pyrard de Voyages de Pyrard de Laval aux Indes Orientales, (1601-
1611), Paris, Chandeigne, 1998.
LAVANHA, João Baptista, Naufragio da Nao Santo Alberto, e Itenerario da gente, que
delle se salvou. Por João Baptista Lavanha Cosmografo mòr de Sua Magestade
Dedicado ao Principe Dom Phillippe Nosso Senhor, Lisboa, Em Caza de Alexandre de
Siqueyra, 1597.
511
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
LOBO, Jerónimo, Itinerário e outros escritos inéditos, ed. crítica de BARCELOS, Padre
M. Gonçalves da Costa, [Lisboa], Livraria Civilização - Editora, [imp. 1971].
LOPES, Duarte & PIGAFETTA, Filippo, Relação do reino de Congo e das terras
circunvizinhas, reed. do texto traduzido por Rosa Capeans (1951), estudo introdutório de
AMARAL, Ilídio do, Benavente, [Câmara Municipal], 2000.
MAFFEII, Ioan Petri, Historiarium indicarum libri XVI. Selectarum, item, ex India
epistolarum, eodem interprete, libri IV. Accessit Ignatii Loiolae vita. Omnia ab auctore
recognita, & nunc primum in Germania excusa. Item, in singula opera copiosus index,
[Historiarum indicarum libri XVI], Coloni Agrippin, In Officina Birckmannica,
sumptibus Arnoldi Mylij, 1589.
https://archive.org/details/bub_gb_LWmEoVuYaokC/page/n315/mode/2up (Consultado
em 21/07/2020).
MALDONADO, Maria Hermínia, (Leitura e anotações de), Relação das Náos e Armadas
da India com os sucessos dellas que se puderam saber, Para Noticia e instrucção dos
512
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
curiozos, e amantes da Historia da India (British Library, Códice Add. 20902), Coimbra,
Biblioteca Geral da Universidade, 1985.
MELET, Jean-Jaques de, “La description des sauvages Hottentots par Mellet”, in LANNI,
Dominique, Fureur et Barbarie. Récits de Voyages chez les Cafres et les Hottentos -
1665-1721, Paris, Cosmopole, 2001, pp. 24-35.
Memoria das armadas que de Portugal passaram à Índia e esta primeira é a com que
Vasco da Gama partiu ao descobrimento dela por mandado de El-Rei Dom Manuel no
segundo ano de seu reinado e no do nascimento de Cristo de 1497, Edição fac-similada
do Manuscrito da Academia das Ciências de Lisboa, in ALBUQUERQUE, Luís de
(Introd. de), Macau, Instituto Cultural de Macau, Museu Marítimo de Macau e Comissão
Territorial de Macau para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1995.
513
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
MOLOSANKWE, Botho, “Ex-pupil in race attack still not compensated”, in The Star,
Johannesburg,12/04/2005.
MONTAIGNE, Michel de, Les Essais, livres premier et second, Bourdeaus, par S.
Millanges, 1580.
Natal Law Reports. Reports of Cases Decided in the Natal Provincial Division of the
Supreme Court of South Africa, Vol. XLVIII, Johannesburg, Digma Publicatons, 1973,
pp. 156-163.
O Livro de Duarte Barbosa, SOUSA, Maria Augusta da Veiga e (Prefácio, Texto Crítico
e Apêndice), Vol. II, Lisboa, Ministério da Ciência e Tecnologia - Instituto de
514
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
PAIS, Simão Ferreira, “As Famozas Armadas Portuguesas” (Ms. 1650), in Documentos
sobre os Portugueses em Moçambique e na África Central, Vol. I (1497-1506), Lisboa,
Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, National Archives of Rhodesia and
Nyasaland, 1962, pp. 90-93.
Perdimento do gualeão São João que vinha da Imdia pera Portugall Manoell de Sousa
de Sepullvada por Capitão, 1553, in Mar, Medo e Morte: aspectos psicológicos dos
515
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
PEREIRA, Duarte Pacheco, Esmeraldo de Situ Orbis, Edition critique et commentée, por
CARVALHO, Joaquim Barradas de, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1991.
PAIVA E PONA, António Pereira de, Dos primeiros trabalhos dos portugueses no
Monomotapa. o padre D. Gonçalo da Silveira, 1560: memoria apresentada á 10.ª sessão
do Congresso internacional dos orientalistas, Lisboa, Imprensa Nacional, 1892.
516
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
PURCHAS, Samuel, “Collections out of the Voyage and Historie of Friar J. dos Santos
his Æthiopia Orientalis and Varia Historia, and out of other Portugals, for the better
knowledge of Africa and the Christianitie therein”, in Hakluytus posthumus or Purchas
his Pilgries, Vol. 2, London, W. Stansby for H. Fetherstone, 1625.
PURCHAS, Samuel, “Collections out of the Voyage and Historie of Friar J. dos Santos
his Æthiopia Orientalis and Varia Historia, and out of other Portugals, for the better
knowledge of Africa and the Christianitie therein”, in Hakluytus posthumus or Purchas
his Pilgries, Vol. 9, Glasgow, James Mc Leosh & Sons, 1905.
RAMUSIO, Giovanni Battista, Primo volume della Navigationi et Viaggi nel quale si
contiene la Descrittione dell'Africa, & del paese del Prete Janni, con viaggi dal mar
Rosso à Calicut, & insin'all'isole Molucche, doue nascono le spetierie, et la nauigatione
attorno il mondo, Venezia, Appresso gli heredi di Lucantonio Giunti, 1550.
RAMUSIO, Giovanni Battista, Primo volume, & quarta editione delle Navigationi et
viaggi raccolto da M. Gio. Batt. Ramusio & com molti vaghi discorsi da lui in molti
luoghi dichiarato, & illustrato, In Venetia, nella Stamperia de Giunti, 1588.
517
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
chamada o Galião S. João, que se perdeo no Cabo da Boa Esperança, na Terra do Natal,
composto em verso heroico e octava rima, Lisboa, Typ. Rollandiana, 1783.
“Regimento que se fez por ordem do snor’ Visorrej Matias Dalbuquerque tirado do
Roteiro da viagem que fez por terra da cafraria a gente da Não Santo Alberto governada
por Nuno velho pereira”, in SANTOS, Maria Emília Madeira (ed.), O Carácter
experimental da Carreira da Índia. Um plano de João Pereira Dantas, com fortificação
da África do Sul (1556), Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar – Agrupamento de
Estudos de Cartografia Antiga, 1969, documento anexo nº 4, pp. 48-53.
518
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
“Relação da mui notável perda do Galeão Grande S. João em que se contam os grandes
trabalhos e lastimosas cousas que aconteceram ao capitão Manuel de Sousa Sepúlveda e
o lamentável fim que ele e sua mulher e filhos, e toda a mais gente, houveram na Terra
do Natal, onde se perderam a 24 de junho de 1552”, in História Trágico-Marítima, (ed. e
notas de SÉRGIO, António), Vol. I, s. l., Editorial Sul, 1955, pp. 9-40.
“Relação da perdição da Nao Belem, da qual era Capitão Joseph Cabreira, mestre Miguel
Jorge Grego e piloto Mathias Figueira, a mais mal afortunada Nao que nauegou no Mar,
in KOISO, Kioko, Mar, Medo e Morte: aspectos psicológicos dos náufragos na História
Trágico-Marítima, nos testemunhos inéditos e noutras fontes, ed. de KOISO, Kioko Vol.
II, Cascais, Patrimonia Historica, 2004, pp. 656-701.
519
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
“Relação da viagem que fizeram os Padres da Companhia de Jesus com Francisco Barreto
na conquista do Monomotapa no Anno de 1569, feita pelo P.e Monclaro da mesma
Companhia”, in Josef WICKI e John GOMES, Documenta Indica, Vol. VIII, Roma, Apud
“Monumenta Historica Societatis Jesu”, 1958, pp. 683-739.
Report of the Wesleyan Methodist Missionary Society for the Year ending December,
1827, p. 119 “Letter from Shrewsbury of the 9th October”, 1827, Apud KIRBY, Percival
Robson, “Gquma, Mdepa and the Amatshomane Clan: a by-way of miscegenation in
South Africa”, in African Studies, Vol. 13, N.º 1, 1954, pp. 6-7.
RIEBEECK, Jan van, Dagverhaal, ed. Historisch Genootschap, Vol I (1652 - 1655),
Utrecht, Kemink & Zoon, Utrecht / Martinus Nijhoff, Den Haag, 1884. Cópia do
exemplar da Biblioteca da Universidade de Leiden, online (2008):
http://www.dbnl.org/tekst/rieb001dagv02_01/colofon.php (consultado em 17/07/2021).
520
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
ROSÁRIO, Frei António do, Dominicanos em Portugal. Repertório do Século XVI, Porto,
Arquivo Histórico Dominicano Português, 1991.
“Roteiro das Costas Sul e Oriental da África”, [post. 1535], in Documentos sobre os
Portugueses em Moçambique e na África Central, Vol. VI (1519-1537), Lisboa, Centro
de Estudos Históricos Ultramarinos, National Archives of Rhodesia and Nyasaland, 1969,
pp. 440-457.
521
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
SÁ, Artur Basílio de, Documentação para a História das Missões do Padroado
Português do Oriente, 5.º Vol.: Insulíndia (1580-1595), Lisboa, Agência Geral do
Ultramar, 1958.
SANTOS, Frei João dos, Primeira Parte. Da Ethiopia Oriental, em qve se da relacam
dos principaes Reynos della larga Região, dos custumes, ritos, & abusos de seus
habitadores, dos animaes, bichos, & feras, que nelles se crião, de suas minas, & cousas
notaueis, que tem assim no mal, como na terra, de varias guerras, & victorias insignes
que ouue em nossos tempos nestas partes entre Christãos, Mouros, & Gentios. Publicação
online da edição de 1609:
https://openlibrary.org/books/OL15104369M/Ethiopia_oriental (Consultado em
10/12/2018).
SANTOS, Frei João dos, Ethiopia Oriental, 2 Vols., Lisboa, Mello d' Azevedo editor,
1891.
Publicação online: http://purl.pt/26732 (Consultado em 6/01/2019).
SANTOS, Frei João dos, Etiópia Oriental, ALBUQUERQUE, Luís de (Dir.), 2 Vols.,
Lisboa, Edições Alfa,1989.
SANTOS, Frei João dos, Etiópia Oriental e vária História de cousas notáveis do Oriente,
Introdução de LOBATO, Manuel; notas de LOBATO, Manuel e MEDEIROS, Eduardo,
522
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
SOUSA, Alfredo Botelho de, Subsídios para a História Marítima da Índia (1585-1669),
Vol. II, Lisboa, Imprensa da Armada, 1930.
SOUSA, Frei Luis de, Parte III. Da Historia de S. Domingos, particular do Reyno, e
conquistas de Portugal, Lisboa, na Officina de Antonio Rodriogues Galhardo, 1767.
SOUSA, Manuel de Faria y, Asia Portuguesa, Tomo I (1666), Tomo II (1674) e Tomo
III (1675), Lisboa, En la Officina de Antonio Craesbeeck de Mello Impressor de Sua
Alteza.
523
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
SPARRMAN, Anders, A Voyage to the Cape of Good Hope Towards the Antartic Polar
Circle Round the World and the Country of the Hottentots and the Caffres from the Year
1772-1776, Edited by FORBES, V. S., Vol. II, Cape Town, Van Riebeck Society, 1977.
“St. Francis Xavier: a visit to Malindi and Socotra in 1542” [carta assinada por Francisco
Xavier, escrita em Goa, 20 Setembro de 1542], in Greville S. P. FREEMAN-
GRENVILLE (ed.), The East African Coast. Select Documents from the first to the earlier
nineteenth century, 2ª ed., London, Rex Collings, 1975, pp. 135-137.
Supreme Court of South Africa, Reports of Cases Decided in Eastern Districts’ Local
Division, 1911, Johannesburg, Digma Publications, 1973, pp. 101-104.
THEAL, George McCall, Records of South-Eastern Africa, 9 Vols., Cape Town, Struik,
1964.
524
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
WICKI, Josef e GOMES, John (Editores), Documenta Indica, 18 vols., Roma, Apud
“Monumenta Historica Societatis Jesu”, 1948.
FONTES CARTOGRÁFICAS
525
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
The Leardo map of the world (1452 ou 1453), American Geographical Society Library,
University of Wisconsin-Milwaukee Libraries, Digital Map Collection.
https://collections.lib.uwm.edu/digital/collection/agdm/id/538
World map by Henricus Martellus, (c. 1489), British Library, Add MS 15760
https://www.bl.uk/collection-items/world-map-by-henricus-martellus
WRIGHT, John Kirtland, The Leardo Map of the World 1452 or 1453, (Note on the
reproduction of the map by A. B. HOEN, New York, American Geographical Society,
1928. https://www.gutenberg.org/files/53480/53480-h/53480-h.htm
GERRITSZ, Hessel, Caert van't Landt van d'Eendracht uyt de Iournalen ende
afteykeningen der Stierluyden t'samengestelt, Ao. 1627 [cartographic material] / Bij
Hessel Gerritsz, 1627 http://nla.gov.au/nla.obj-231306061 (consutado em 28/08/2021)
526
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
FONTES ICONOGRÁFICAS
- Album di disegni, illustranti usi e costumi dei popoli d'Asia e d'Africa con brevi
dichiarazioni in lingua portoghese, Ms. 1889, 1540. (“cafres do cabo da [boa]
esperança”)
http://opac.casanatense.it/Record.htm?idlist=42&record=1992176512491749947
9#
527
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
- Hans Burgkmair, “In Allago (In Algoa)”, in Natives of Africa and India,
Augsburg, printed in 1508, The Trustees of the British Museum, Asset number
57103001.
https://www.britishmuseum.org/collection/image/57103001 (consultado em
30/12/2020)
- Hans Burgkmair, “Natives of Guinea and Algoa”, in Natives of Africa and India,
Woodcut and letterpress, print by Georg Glockendon, 1511, The Trustees of the
British Museum, Asset number 56801001.
https://www.britishmuseum.org/collection/image/56801001 (consultado em
30/12/2020)
528
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
ESTUDOS
ALDEN, Dauril, The Making of an Enterprise: The Society of Jesus in Portugal, Its
Empire and beyond, 1540-1750, Stanford, Stanford University Press, 1996.
ALEGRIA, Maria Fernanda, DAVEAU, Suzanne, GARCIA, João Carlos, and RELAÑO,
Francesc, “Portuguese Cartography in the Renaissance”, in The History of Cartography,
David WOODWARD (ed.), Volume 3, Parte I - Cartography in the European
Renaissance, Chicago, University of Chicago Press, 2007, pp. 975-1066.
https://press.uchicago.edu/books/HOC/HOC_V3_Pt1/HOC_VOLUME3_Part1_chapter
38.pdf (consultado em 20-08-2021)
ALLEN, David & ALLEN, Geoffrey, The Guns of Sacramento, London, Robin Garton,
1978.
ALLINA, Eric, “The Zimba, The Portuguese, and Other Cannibals in Late Sixteenth-
century Southeast Africa” in The Journal of Southern African Studies, Vol. 37, No. 2,
June 2011, pp. 211-227.
https://doi.org/10.1080/03057070.2011.579433 (Consultado em 5/09/2018)
529
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
ALMEIDA, André Ferrand de, “Da Demanda do Preste João à Missão Jesuíta da Etiópia:
a Cristandade da Abissínia e os Portugueses nos Séculos XVI e XVII”, in Lusitania Sacra,
2.ª Série, 11 (1999), pp. 247-294.
530
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
ALVES, Pedro Manuel Dos Santos, “Levinas crítico de Husserl e de Sartre. Sobre a teoria
da Intersubjectividade e da Alteridade”, in BECKERT, Cristina, (Coord.), Lévinas entre
nós, Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2006, pp.141-154.
AMOROSA, Paolo, Rewriting the History of the Law of Nations: How James Brown Scott
made Francisco de Vitoria the Founder of International Law, New York, Oxford
University Press, 2019.
ANSELL, Nicola, “‘Because it’s Our Culture!’ (Re)negotiating the Meaning of Lobola
in Southern African Secondary Schools”, in Journal of Southern African Studies, Vol. 27,
N.º 4, Dezembro, 2001, pp. 698-704.
531
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
ARNDT, Jochen S., “What’s in a Word: Historicizing the Word ‘Caffre’ in European
Discourses about Southern Africa, 1500-1800", in Journal of Southern African Studies,
Vol. 44, Nº1, 2018, pp. 59-75.
http://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/03057070.2018.1403212 (Consultado em
27/09/2020)
AUGÉ, Marc, Le Sens des Autres. Actualité de l’Anthropologie, Paris, Fayard, 1994.
AXELSON, Eric, Portuguese in South Africa, 1488-1600, Cape Town, C. Struik (Pty),
1973.
AXELSON, Eric, Recent identifications of portuguese wrecks on the south african coast,
especially of the São Gonçalo (1630), and the Sacramento and Atalaia (1647), Lisboa,
Inst. Investigação Científica Tropical, Centro de Estudos de História e Cartografia
Antiga, 1985.
BACHELARD, Gaston, The Poetics of Space. The classic look at how we experience
intimate spaces, Boston, Beacon Press, 1994.
BADEROON, Gabeba, The Provenance of the term ‘Kafir’ in South Africa and the notion
of Beginning, [2004].
http://www.cilt.uct.ac.za/usr/cci/publications/aria/download_issues/2004/2004_MS4.pdf
(Consultado em 3/12/2012).
532
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
BEACH, David, The Shona & Zimbabwe (900-1850). An Outline of Shona History,
London, Heinemann, 1977.
BEACH, David, The Shona and their Neighbours, Oxford, Blackwell, 1994.
533
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
BELL-CROSS, Graham, “A Brief Maritime History of the Coast Between the Kei and
Fish Rivers”, in The Coelacanth.The Journal of the Border Historical Society, 20 (2),
East London Museum, 1982, pp. 27-39.
BERGLUND, Axel-Ivar, Zulu Ideas and Simbolism, Thesis submitted for PhD Degree at
the University of Cape Town, 1972.
534
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
BOIA, Lucian, Pour une Histoire de l’Imaginaire, Paris, Les Belles Lettres, 1998.
BORSSAT, Hippolyte, (Trad. do inglês por), Les Cafres Zulus, Paris, 25 de Outubro
de1853, folheto volante in 8.º (8 páginas).
BOTHA, Colin Graham, Place names in the Cape Province, Cape Town – Johannesburg,
Juta & Co., 1926.
535
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
BOXER, Charles Ralph, Further Selections from the Tragic History of the Sea, 1559-
1565. Narratives of the shipwrecks of the Portuguese East Indiamen Aguia and Garça
(1559) São Paulo (1561) and the misadventures of the Brazil-ship Santo António (1565),
Trans. and ed. BOXER, Charles Ralph, Cambridge, Hakluyt Society, Second Series, Vol.
CXXXII, 1968.
BOXER, Charles Ralph e BLACKMORE, Josiah, (Trad. e ed.), The Tragic History of the
Sea, Minneapolis, University of Minnesota Press, 2001 (1.ª ed. de Charles BOXER
traduzida e editada a partir do original português, Cambridge, Hakluyt Society, 1959).
BRYANT, Alfred Thomas, Olden Times in Zululand and Natal: Containing Earlier
Political History of the Eastern-Nguni Clans, London, Longmans, Green, 1929.
BROOKS, George E., Eurafricans in Western Africa: commerce, social status, gender,
and religious observance from the sixteenth to the eighteenth century, Athens, Ohio
University Press, 2003.
BURMAN, José, Great Shipwrecks Off the Coast of Southern Africa, Cape Town, Struik,
1967.
536
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
BURMAN, José, Shipwreck! Courage and Endurance in the Southern Seas, Cape Town
– Pretoria, Human & Rousseau, 1986.
CAMPBELL, Gwin, “Africa and the Early Indian Ocean World Exchange System
in the Context of Human–Environment Interaction”, in Gwin CAMPBELL (ed), Early
Exchange between Africa and the Wider Indian Ocean World, Montreal, Palgrave Series
in Indian Ocean World Studies, 2016, pp. 1-24.
CAPELA, José, Moçambique pela sua História, Porto, Centro de Estudos Africanos da
Universidade do Porto, 2010.
http://www.africanos.eu/images/publicacoes/livros_electronicos/EB020.pdf (Consultado
em 2/09/2020).
CARVALHO, Teresa Nobre de, “Registos de biodiversidade Africana anotados por Frei
João dos Santos em «Etiópia Oriental» (Évora, 1609)”, in Actas do Congresso
Internacional Saber Tropical em Moçambique: História, Memória e Ciência, Lisboa,
537
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
CHARTIER, Roger, “The Meaning of Representation”, in Books & Ideas, August 25th,
2014. Translated from the French by Michael Behrent, with the support of the Institut
Français.
CHITTICK, H. Nevile, “The Coast of East Africa”, in SHINNIE, Peter Lewis, (Ed.), The
African Iron Age, Oxford, Clarendon Press, 1971, pp. 108-141.
CHURCH, Alfred John, Stories of the East from Herodotus, 7.ª ed., London, Seeley &
CO., 1885.
CIPOLLA, Carlo Maria, Canhões e velas na primeira fase da Expansão Europeia – 1400-
1700, Lisboa, Gradiva, 1989.
538
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
COELHO, António Borges, Quadros para uma Viagem a Portugal no Século XVI,
Lisboa, Caminho, 1986.
COSTA, Abel Fontoura da, Roteiro da África do Sul e Sueste desde o Cabo da Boa
Esperança até ao das correntes (1576), Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1939.
COSTA, Abel Fontoura da, Bibliografia Náutica Portuguesa até 1700, Lisboa, Agência
Geral das Colónias, 1940.
COSTA, Abel Fontoura da, Às portas da Índia em 1484, Lisboa, Edições Culturais da
Marinha, 1990.
539
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
CRUZ, Maria Augusta Lima da, “Década 8ª da Ásia de Diogo do Couto – informação
sobre uma versão inédita”, in Arquipélago. Série Ciências Humanas, Nº. 6 (Jan. 1984),
pp. 151-166.
DANEEL, Marthinus Louis, The God of the Matopo Hills. An Essay on the Mwari Cult
in Rhodesia, Leiden, Afrika Studiecentrum, 1970.
DENIS, Philippe, The Dominican Friars in Southern Africa. A Social History (1577-
1990), Leiden, Brill, 1998.
https://books.google.pt/books?id=M3UV2oZFZcIC&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false (Consultado em
12/01/2019)
DEVISSE, Jean, L’Image du Noire dans l’Art Occidental, II, Fribourg, Office du Livre,
1976.
540
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
DIAS, Jill Rosemary Rainey, África: Nas vésperas do Mundo Moderno, Lisboa,
Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1992.
DOKE, Clement Martyn, The Southern Bantu Languages, London – New York – Cape
Town, Oxford University Press, 1954.
DOUGLAS, Mary, Purity and Dander. An Analysis of Concepts of Pollution and Taboo,
London, Pelican Books, 1970 (reimpressão da ed. de 1966 de Routledge & Kegan Paul).
DOUGLAS, Mary, Natural Symbols, 3ª ed., New York, Routledge Classics, 2003.
541
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
EARLE, Thomas Foster and LOWE, Kate J. P. (Editors), Black Africans in Renaissance
Europe, New York, Cambridge University Press, 2010.
ELLIOT, Aubrey, The Magic World of the Xhosa, New York, Charles Scribner’s Sons,
1970.
ELPHICK, Richard, Khoikhoi and the Founding of White South Africa, Johannesburg,
Ravan Press, 1985.
542
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
FAGAN, Brian, África Austral, 18.º Vol. da Colecção “Historia Mundi”, Lisboa, Ed.
Verbo, 1972 (trad. do original em inglês de 1965).
543
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
FONSECA, Luís Adão da, Vasco da Gama: o homem, a viagem, a época, Lisboa, Edição
do Comissariado da Exposição Mundial de Lisboa, 1998.
544
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
FULLARD, Madeleine, Dis-placing Race: The South African Truth and Reconcialiation
Commition (TRC) and Interpretations of Violence, Centre for the Study of Violence and
Reconciliation, 2004.
GARUBA, Harry, “How do not think Africa from the Cape”, in Mail & Guardian,
Johannesburg, 5th of July 2011 (online)
http://www.thoughtleader.co.za/readerblog/2011/07/05/how-not-to-think-africa-fro-the-
cape/ (Consultado em 24/08/2011).
545
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
GREENFIELD, Haskel Joseph, “On the Nature of daga houses, kraals, metallurgy and
intra-settlement spatial organization of EIA settlements in Southern Africa: a response to
Whitelaw”, in Azania, XLI, 2006, pp. 165-178.
GREENFIELD, Haskel Joseph, MILLER, Duncan, “Spatial patterning of Early Iron Age
metal production at Ndondondwane, South Africa: the question of cultural continuity
between the Early and Late Iron Ages”, in Journal of Archaeological Science, 31, 2004,
pp. 1511-1532.
GROUT, Lewis, Zulu-land: or life among the zulu-Kafirs of Natal and Zulu-land, South
Africa, London, Trubner & Co., [s.d.].
GUNNINK, Hilde, “Language contact between Khoisan and Bantu languages: The case
of Setswana”, in Southern African Linguistics and Applied Language Studies, Volume 38
(2020), pp. 27-45. https://doi.org/10.2989/16073614.2020.1737158
GUPTA, Sunil, “Contact between East Africa and India in the First Millennium CE”, in
Gwin CAMPBELL (ed), Early Exchange between Africa and the Wider Indian Ocean
World, Montreal, Palgrave Series in Indian Ocean World Studies, 2016, pp. 157-171.
HAIR, Paul Edward Hedley, “Portuguese Contacts with the Bantu Languages of the
Transkei, Natal and Southern Mozambique 1497-1650”, in African Studies, Vol. 39, N.º
1 (1980), pp. 3-46.
546
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
HANSBERRY, William Leo, Africa & Africans as seen by Classical Writers, Joseph E.
HARRIS (Editor), Washington, Howard University Press, 1981.
547
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
HEYWOOD, Linda, “Slavery and its transformations in the Kingdom of Kongo: 1491-
1800”, in Journal of African History, 50 (2009), pp. 1–22.
HIATT, Alfred, “The Map of Macrobius before 1100”, in Imago Mundi, Vol. 59, Nº 2
(June 2007), pp. 149-176.
548
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
HIRST, Manton Myatt, The Healer’s Art. Cape Nguni Diviners in the Townships of
Grahamstown, Thesis for the Degree of Doctor of Philosophy, East London, Rhodes
University, 1990, (texto policopiado).
HODGSON, Janet, The God of the Xhosa: a Study of the Origins and Development of the
Traditional Concepts of the Suprem Being, Cape Town, Oxford University Press, 1982.
HORTA, José da Silva, “A imagem do Africano pelos Portugueses antes dos contactos”,
in FERRONHA, António Luís, (coord.), O Confronto do Olhar. O encontro dos povos
na época das Navegações portuguesas. Séculos XV e XVI. Portugal, África, Ásia,
América, Lisboa, Caminho, 1991, pp. 43-70.
549
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
HORTON, Mark & MIDDLETON, John, The Swahili. The Social Landscape of a
Mercantile Society, Malden, Blackwell Publishers, 2000.
HSIA, Ronnie Po-Chia, The World of Catholic Renewal 1540-1770, New York –
Cambridge, Cambridge University Press, 2005.
HUFFMAN, Thomas, “The Central Cattle Pattern and interpreting the Past”, in Southern
African Humanities, Vol. 13, 2001, pp. 19-35.
550
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
IZUTSU, Toshihiko, God and Man in the Qur’an: Semantics of the Qur'anic
Weltanschauung, Tokyo, Keio Institute of Cultural and Linguistic Studies, 1964, Apud
WALDMAN, Marilyn Robinson, “The Development of the concept of kufr in the
Qur’ān”, in Journal of American Oriental Society, Vol. 88, Nº 3 (Jul.-Sep., 1968).
JONES, W. R., “The Image of the Barbarian in Medieval Europe”, in Comparative Studies
in Society and History, Cambridge University Press Vol. 13, No. 4 (Oct., 1971), pp. 376-407.
https://www.jstor.org/stable/178207
JUNOD, Henri Alexandre, The Life of a South African Tribe, 2 Vols., Neuchatel, Attinger
frères, 1912-1913.
JUNOD, Henri Alexandre, Usos e Costumes dos Bantos: a vida de uma tribo sul-
africana, 2 Vols., 2.ª ed., Lourenço Marques, Imprensa Nacional, 1944-1946.
KAMDUN, Said & KING, Noël, Ibn Battuta in Black Africa, Princeton, Markus Wiener
Publishers, 2003 (Ed. de 1994 revista e aumentada).
551
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
KENNEDY, Reginald Frank, Shipwrecks On and Off the Coasts of Southern Africa. A
Catalogue and Index, Johannesburg, Johannesburg Public Lybrary, 1955.
KIRBY, Percival Robson, “Gquma, Mdepa and the Amatshomane Clan: a by-way of
miscegenation in South Africa”, in African Studies, Vol. 13. N.º 1, 1954, pp. 1-24
KOISO, Kioko, Mar, Medo e Morte: aspectos psicológicos dos náufragos na História
Trágico-Marítima, nos testemunhos inéditos e noutras fontes, 2 Vols., Cascais,
Patrimonia Historica, 2004.
KOSKENNIEM, Martii, “Empire and International Law: the Real Spanish Contribution”,
in University of Toronto Law Journal, (2011), 61, pp. 1-36.
KUPER, Adam, Wives for cattle: bridewelth and marriage in Southern Africa, London,
Routledge & Kegan Paul, 1982.
LABACHE, Lucette, “Les Cafres: l’héritage africain occulte à l’île de La Réunion”, The
Tans-Atlantic Construction of the Notions of “Race”, Black Culture, Blackness and
552
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Antiracism: Towards a new Dialogue Between Researches in Africa, Latin America and
the Caribbean, Encontro em Gorée, 11-17 Nov. 2002.
LACH, Donald Frederick, Asia in the Making of Europe, Vol. II, Chicago, The University
of Chicago Press, 1994.
LANDAU, Paul Stuart, Popular Politics in the History of South Africa, 1400-1948, New
York, Cambridge University Press, 2010.
LEBLON, Anaïs, “Le Pulaaku. Bilan critique des etudes de identité peule en Afrique de
lÓuest”, in RAHIA (Recherches en Anthropologie & en Histoire de l’Afrique), N.º 20,
Aix-en-Provence, Éditions du Centre d’Étude des Mondes Africains, 2006.
LEVINAS, Emmanuel, Totalidade e Infinito, 3.ª ed., Lisboa, Edições 70, 2008.
LEVINE, Baruch Abraham, In the Presence of the Lord. A Study of Cult and Some Cultic
Terms in Ancient Israel (Studies in Judaism in Late Antiquity, 5), Leiden, Brill, 1974.
LEWIS, Bernard, Race and Slavery in the Middle East. An Historical Enquiry, New York,
Oxford University Press, 1990.
553
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
LOPES, Francisco Fernandes, “Duarte Barbosa”, in SERRÃO, Joel (Dir. de), Dicionário
de História de Portugal, Vol. I, Porto, Livraria Figueirinhas, s.d., pp. 298-299.
LOPES, Marília dos Santos, “Portugal: uma fonte de novos dados. A recepção dos
conhecimentos portugueses sobre África nos discursos alemães dos séculos XVI e XVII”,
in Mare Liberum, Nº 1, 1990, pp.205-308.
Lost Crops of Africa: Vol. I: Grains, (National Research Council), Washington DC, The
National Academies Press, 1996.
https://www.nap.edu/catalog/2305/lost-crops-of-africa-volume-i-grains (Consultado em
17/05/2020)
LOUREIRO, Rui Manuel, “Redes de informadores e tipos de fontes nas Décadas da Ásia
de Diogo do Couto”, in LOUREIRO, Rui Manuel e CRUZ, Maria Augusta Lima
(coordenação da edição), Diogo do Couto: história e intervenção política de um escritor
polémico, Lisboa, Edições Húmus, 2019, pp. 57-70.
554
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
LUEDKE, Tracy, “Gendered states. Gender and agency in economic models of Great
Zimbabwe”, in PYBURN, Karen Anne (Editor), Ungendering Civilization, New York-
London, Routledge, 2004, pp. 47-70.
M’BOKOLO, Elikia, África Negra. História e Civilizações, até ao Século XVIII, Vol. 1,
Lisboa, Editora Vulgata, 2003.
MACHOKO, Collis Garikai, “Water Spirits and the Conservation of the Natural
Environment: a case study from Zimbabwe”, in International Journal of Sociology, Vol.
5, Nº 8 (Nov. 2013), pp. 285-296.
555
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
MAGGS, Tim, “Patterns and perceptions of Stone-built settlements from the Thukela
Valley, Late Iron Age”, in Annals of the Natal Museum, Vol. 29(2), Outubro 1988, pp.
417-432.
MANSO, Maria de Deus Beites, “Contexto Histórico-cultural das missões na Índia: Séc.
XVI-XVII”, in História Unisinos, Vol. 15, nº 3, Setembro/Dezembro 2011, pp. 406-416.
https://doi.org/10.4013/htu.2011.153.08 (Consultado em 20/09/2018)
MARCOCCI, Giuseppe, “Blackness and Heathenism. Color, Theology, and Race in the
Portuguese World, c. 1450-1600”, in Anuario Colombiano de Historia Social y de la
Cultura, Vol. 43, Nº 2 (Jul. – Dic. 2016), pp. 33-58.
https://www.researchgate.net/publication/309581841_Blackness_and_Heathenism_Col
or_Theology_and_Race_in_the_Portuguese_World_c_1450-1600#fullTextFileContent
(Consultado em 10/01/2019)
556
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
MARTINS, António Coimbra, “História de Diogo do Couto e dos seus livros”, in Sep. da
Revista da Universidade de Coimbra, Coimbra, Vol. XXXVI, 1991, pp. 73-118.
MARKS, Shula, “Khoisan resistance to the Dutch in the Seventheenth and Eighteenth
Centuries”, in Journal of African History, Vol. XIII, Nº 1 (1972), pp. 55-80.
MARKS, Shula and ATMORE, Anthony, “The Problem of the Nguni: An Examination
of the Ethnic and Linguistic Situation in South Africa before the Mfecane”, in DALBY,
David, (edited by), Language and History in Africa. A Volume of Collected Papers
Presented to the London Seminar on Language and History in Africa (Held at the School
of Oriental and African Studies, 1967-69), New York, Africana Publishing Corporation,
1970, pp. 120-132.
MARSTON, Jane Elizabeth, Racial Hate Speech in a Changing Society: from Racial
Oppression to Democracy, Johannesburg, LLD – UP, 1997.
MARTINS, António Coimbra, “História de Diogo do Couto e dos seus Livros”, Coimbra,
Separata da Revista da Universidade de Coimbra, Vol. XXXVI, 1991, pp. 73-118.
557
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
MATHABANE, Mark, Kaffir Boy. The true Story of a black Youth’s coming of age in
Apartheid South Africa.New York, Touchstone, 1998.
MEYER, Andrie, “K2 and Mapungubwe”, Goodwin Series, vol. 8, South African
Archaeological Society, 2000, pp. 4–13. https://doi.org/10.2307/3858042 (consultado
em 22/08/2021)
McDONALD, Mark P., “Burgkmair’s Woodcut Frieze of the Natives of Africa and
India”, in Print Quarterly, Vol. 20, No 3 (September 2003), pp. 227-244.
McGREGOR, JoAnn, “Living with the River. Landscape and Memory in the Zambezi
Valley Northwest Zimbabwe”, in BEINART, William e McGREGOR, JoAnn (Ed.),
Social history & African environments, Oxford, James Currey, 2003.
558
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
MEIRA, Maria José Paredes, “Uma leitura da Relação do naufrágio da nau ‘Santa Maria
da Barca’, no ano de 1559”, in SEIXO, Maria Alzira e CARVALHO, Alberto (Org. de),
A História Trágico-Marítima.Análises e perspectivas, Lisboa, Cosmos, 1996, pp. 147-
160.
MILLER, Duncan & WHITLAW, Gavin, “Early Iron Age metal Working from the site
of Kwagandaganda, Natal, South Africa”, in South African Archaeological Bulletin, 49,
1994, pp. 79-89.
MIQUEL, André, O Islame e a sua Civilização: Séculos VII-XX, Lisboa – Rio de Janeiro,
Edições Cosmos, 1971.
559
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
MORCOM, Geraldine M., “Cove Rock / Gompo: a Place of Myth, Legend and History”,
in The Coelacanth. The Journal of the Border Historical Society, 34, Nº 1, East London
Museum, 1996, pp. 26-38.
MOSTERT, Noël, Frontiers. The Epic of South Africa’s Creation and the Tragedy of the
Xhosa People, New York, Alfred A. Knopf, 1992.
MOURÃO, José Augusto, “As duas culturas: o cruzamento dos saberes (in)sustentáteis”,
in FRANCO, José Eduardo (Coord.), Obra Selecta de José Augusto Mourão: O Vento e
o Fogo, A Palavra e o Sopro, o Espelho e o Eco, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 2017, pp. 611-629.
560
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
MUDIMBE, Valentin-Yves, The Invention of Africa. Gnosis, Philosophy, and the Order
of Knowledge, Bloomington, Indiana University Press, 1988.
MWANDAYI, Canisius, “Death and After-life Rituals in the eyes of the Shona. Dialogue
with Shona Customs in the Quest for Authentic Inculturation”, in Bible in African Studies,
KÜGLER, Joachim, TOGARASEI, Lovemore, GUNDA, Masiiwa Ragies, ONOMO,
Eric Souga (Editors), Vol. 6, Bamberg, University of Banberg Press, 2011.
NDLOVU, Cecilia Daphney, The Mourning Cultural Practices amongst the Zulu-
Speaking Widows of the Kwanyuswa Community: A Feminist Perspective, Dissertation
submitted in partial fulfillment of the requirements for the Degree of Master of Arts,
University of Kwazulu-Natal, 2013. http://hdl.handle.net/10413/11374 (consultado em
12/08/2021)
NEWITT, Malyn, “The Early History of the Maravi”, in The Journal of African History,
Vol. 23, No. 2, (1982), pp. 145-162.
NEWITT, Malyn, East Africa. Portuguese Encounters with the World in the Age of
Discoveries, VILLIERS, John (General Editor), Hampshire, Ashgate Publishing, 2002.
561
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
NEWTON-KING, Susan, Masters and Servants on the Cape eastern frontier, 1760-1803,
Cambridge, Cambridge University Press, 1999.
NIENABER, G. S. “The origin of the name “Hottentot”, in African Studies, Vol. 22, Nº
2 (1963), pp. 65-90. https://doi.org/10.1080/02561751.1935.9676356 (Consultado em
17/07/2021)
OLIVIER, Roland, The Cambridge History of Africa, Vol. 3 – from c. 1050 to c. 1600,
Cambridge, Cambridge University Press, 1977.
562
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
OWNBY, Carolan Postma, Early Nguni History: The Linguistic Evidence and its
Correlation with Archaeology and Oral Tradition, Dissertation for the degree of Doctor
of Philosophy in History, Los Angeles, University of California, 1985, (texto
policopiado).
PAGDEN, Anthony, The Fall of Natural Man: The American Indian and the Origins of
Comparative Ethnology, New York, Cambridge University Press, 1982.
PARKER, John & RATHBONE, Richard, African History: a very short Introduction,
New York, Oxford University Press, 2007.
PASSOS, Carlos de, Navegação Portuguesa dos Séculos XVI e XVII. Naufrágios
Inéditos. Novos Subsídios para a História Trágico-Marítima de Portugal, Coimbra,
Imprensa da Universidade, 1917.
PEIRES, Jeffrey, The House of Phalo. A History of the Xhosa People in the Days of Their
Independence, Johannesburg, Jonathan Ball Publishers, 2003.
PEIRES, Jeffrey, “The rise of the «Right-Hand House» in the History and Historiography
of the Xhosa”, in History in Africa, vol. 2, 1975, pp. 113-125.
PEIRES, Jeffrey, Before and After Shaka. Papers in Nguni History, Grahamstown,
Institute of Social and Economic Research, 1981.
563
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
PLESSIS, J. Du, “The name Hottentot in the records of early travellers”, in South African
Journal of Science, XXIX (1932), p. 663, Apud FAUVELLE-AYMAR, François-Xavier,
L’invention du Hottentot. Histoire du regard occidental sur les Khoisan (XVe-XIXe
siècle), Paris, Publications de la Sorbonne, 2002, pp. 130-131.
PRATT, Mary Louise, “Arts of the Contact Zone”, Profession, 1991, New York, Modern
Language Association, pp. 33–40. JSTOR, http://www.jstor.org/stable/25595469
(Consultado em 6/09/2020)
564
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
RAMOS, Manuel João, “O destino etíope do Preste João. A Etiópia nas representações
cosmográficas europeias”, in Condicionantes Culturais da Literatura de Viagens.
Estudos e Bibliografias, CRISTÓVÃO, Fernando (Coord. de), Coimbra, Almedina –
CLEPUL, 2002, pp. 235-259.
RANDLES, William G. L., “Le Nouveau Monde, l’Autre Monde et la Pluralité des
Mondes”, in Congresso Internacional de História dos Descobrimentos. Actas, Vol. 4,
565
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
RAUM, Otto Friedrich, The Social Functions of Avoidances and Taboos among the Zulu,
Berlim-New York, Walter de Gruyter, 1973.
RELAÑO, Francesc, “Paradise in Africa. The History of a Geographical Myth from its
Origins in Medieval Thought to its Gradual Demise in Early Modern Europe”, in Terrae
Incognitae. The Journal for the History of Discoverie, Society for the History of
Discoveries, Vol. 36, 2004,
https://doi.org/10.1179/tin.2004.36.1.1 (Consultado em 6/07/2018).
566
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
ROQUE, Ana Cristina Ribeiro Marques, A Costa oriental de África na 1.ª metade do séc.
XVI segundo as fontes portuguesas da época, Dissertação de Mestrado em História dos
Descobrimentos e da Expansão Portuguesa, 3 Vols., Lisboa, Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 1994, (texto policopiado).
ROQUE, Ana Cristina Ribeiro Marques, “Para uma outra leitura da Carreira da Índia: A
importância dos Diários de Navegação, Roteiros e Relatos de Naufrágios para o
conhecimento da Costa Sul-Oriental de África no séc. XVI”, in A Carreira da Índia –
Atas do V Simpósio de História Marítima, Lisboa, Academia de Marinha, 2003, pp. 205-
212.
567
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
ROQUE, Ana Cristina Ribeiro Marques, “A costa sul oriental de África e o conhecimento
da natureza no século XVI: saberes, experiência e ciência”, in Atas do I Encontro
Internacional de História Ambiental Lusófona, Inês AMORIM e Stefania BARCA (org.),
Debates, Nº 1, Março/2013, pp. 145-173.
ROUFE, Gai, “The Reasons for a Murder. Local Cultural Conceptualizations of the
Martyrdom of Gonçalo da Silveira in 1561”, in Cahiers d’études africaines, 2015/3 (Nº
219), pp. 467-488.
ROUFE, Gai, “Local Perceptions of Political Entities along the Southern Bank of the
Zambesi in the 16th and Early 17th Centuries”, in The International Journal of African
Historical Studies, Vol. 49, No. 1, 2016, pp.53-75. http://www.jstor.org/stable/44715442
(consultado em 28/08/ 2021)
ROUFE, Gai e MILLER, Joseph C., “African Voices Echoing in European Texts: The
Muffled Meanings of the Madzimbabwe of the Mocaranga between the Sixteenth and the
Nineteenth Centuries, in History in Africa, Volume 47, 2020, pp. 5-36.
568
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
SANTOS, Boaventura de Sousa, “Para além do Pensamento Abissal: das linhas globais a
uma ecologia dos saberes”, in Construindo as Epistemologias do Sul: Antologia
Essencial, Vol. I, Buenos Aires, CLASCO, 2018, pp. 639-675.
569
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
SCHUSTER, Stephan C. et al., “Complete Khoisan and Bantu genomes from Southern
Africa”, in Nature, Vol. 463/18 Fev. 2010, pp. 943-947.
SENNA-MARTINEZ, João Carlos de, Algumas notas para o Estudo das Populações do
Litoral da África Sul-Oriental à chegada dos Portugueses, Lourenço Marques, Trabalho
apresentado ao Seminário de História de Moçambique Colonial na Universidade de
Lourenço Marques, 1975, (texto policopiado).
570
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
SHAW, Thurstan, SINCLAIR, Paul, ANDAH, Bassey & OKPORO, Alex (Editores.),
The Archaeology of Africa. Food, Metals and Towns, London, Routledge, 1994.
SHINNIE, Peter Lewis, (Ed.), The African Iron Age, Oxford, Clarendon Press, 1971.
SILVA, Alberto da Costa e, A Enxada e a Lança. A África antes dos Portugueses, Rio de
Janeiro-São Paulo, Nova Fronteira-Editora da Universidade de São Paulo, 1992.
SILVA, Paula Oliveira e, “Causa dos índios e direitos dos povos. Significado do
contributo de Francisco Vitória para a Filosofia do Direito”, in Mediaevalia. Textos e
estudos, 30 (2011), pp. 139-162.
SILVANO, Filomena, Antropologia do Espaço. Uma Introdução, 2.ª ed., Oeiras, Celta
Editora, 2001.
SMITH, Andrew, “Origins and spread of Pastoralism in Africa”, in Nomadic Peoples, 32,
1993, pp. 91-105.
SMITH, Malvern Van Wyk, The First Ethiopians. The Image of Africa and Africans in
the Early Mediterranean World, Johannesburg, Wits University Press, 2009.
571
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
STRANDES, Justus, The Portuguese Period in East Africa, Edited, with Topographical
Notes, by J. S. KIRKMAN, M.A.(Cantab.), F.S.A., Nairoby, Published for the Society by
East African Literature Bureau, 1961.
THEAL, George McCall, History of Africa South of Zambesi from the Settlement of the
Portuguese at Sofala in September 1505 to the Conquest of the Cape Colony by the British
in September 1795, 4.ª ed., London, George Allen & Unwin, 1927.
572
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
THORNTON, John, “Cannibals, Witches, and Slave Traders in the Atlantic World”, in
The William and Mary Quarterly, Vol. 60, No. 2, Apr. 2003, pp. 273-294.
TODOROV, Tzvetan, A conquista da América. A questão do outro, São Paulo, Martins
Fontes, 2021 (reimpressão).
TURNER, Malcolm, Shipwrecks and Salvage in South Africa – 1500 to the Present, Cape
Town, Struik, 1988.
VAIL, Leroy (Editor), The Creation of Tribalism in Southern Africa, Berkeley – Los
Angeles – Oxford, University of California Press – California Digital Library, 1989.
http://publishing.cdlib.org/ucpressebooks/view?docId=ft158004rs&chunk.id=d0e2273&
toc.depth=1&toc.id=d0e2188&brand=eschol (Consultado em 15/06/2018)
573
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
VANSINA, Jan, “Once upon a Time: Oral Traditions as History in Africa, Daedalus, vol.
100, Nº 2, The MIT Press, 1971, pp. 442–68, http://www.jstor.org/stable/20024011
(consultado em 20/08/2021)
VERNON, Gillian, “Oriental Blue and White Porcelain Sherds at Shipwreck Sites
Between the Fish and Kei Rivers”, in The Coelacanth. The Journal of the Border
Historical Society, 25 (1), East London Museum, 1987, pp. 15-19.
574
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
VERNON, Gillian, Even the Cows were Amazed. Shipwreck Survivors in South-East
Africa (1552-1782), Cape Town, Jacana, 2013.
WILLCOX, Alexander Robert, Shipwreck and Survival on the South-east Coast of Africa,
Winterton, Drakensberg Publications, 1984.
WILSON, Monica, “The Early History of the Transkei and Ciskei”, in African Studies,
Vol. 18, N.º 4, 1959, pp. 167-179.
WILSON, Monica, and THOPSON, Leonard, The Oxford History of South Africa - (South
Africa to 1870), Vol. 1, Oxford, Clarendon Press, 1969.
575
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
WRIGHT, H. T., “Trade and Politics on the Eastern Littoral of Africa, AD 800-1300”, in
SHAW, Thurstan, SINCLAIR, Paul, ANDAH, Bassey & OKPORO, Alex (Editores.),
The Archaeology of Africa. Food, Metals and Towns, London, Routledge, 1993, pp. 658-
672.
ZUESSE, Evan M., Ritual Cosmos. The Santification of Life in African Religions, Ohio,
Ohio University Press, 1979.
576
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
Catálogos
Instituto Português de Arquivos, Guia das Fontes Portuguesas para a História de África,
Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses,
Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1991.
Dicionários
577
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
MERKIN, Reuven, BUSHARIA, Z., MEIR, E., “The Historical Dictionary of the Hebrew
Language”, in Literary and Linguistic Computing, Oxford University Press, Volume 4,
Issue 4, 1989, pp. 271-273.
578
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
NABE, Hobson Lumkili, DREYER, P. W., KAKANA, G. L., Xhosa Dictionary. English
/ Xhosa / Africaans – Xhosa / English / Africaans, Johannesburg, Educum Publishers,
1976.
SERRÃO, Joel (Dir. de) Dicionário de História de Portugal, 6 Vols., Porto, Livraria
Figueirinhas, s.d..
Enciclopédias
https://www.blueletterbible.org/lang/lexicon/lexicon.cfm?strongs=H3716&t=KJV
(Consultado em 7/08/2021)
https://academic.eb.com/levels/collegiate/article/Semitic-languages/66720 (Consultado
em 20/12/2020)
https://academic.eb.com/levels/collegiate/article/Hebrew-alphabet/39759 (Consultado
em 20/12/2020)
https://academic.eb.com/levels/collegiate/article/Arabic-alphabet/8156 (Consultado em
20/12/2020)
https://www.britannica.com/EBchecked/topic/141955/Crates-of-Mallus (Consultado em
2/12/2014)
579
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
https://www.britannica.com/EBchecked/topic/314183/Koefar-Sava (Consultado em
6/10/2018
https://www.britannica.com/EBchecked/topic/379568/Mfecane (Consultado em
5/10/2017)
https://www.britannica.com/EBchecked/topic/544086/silent-trade (Consultado em
30/04/2027))
https://jewishencyclopedia.com/articles/1308-alphabet-the-hebrew (Consultado em
20/08/2021)
https://jewishencyclopedia.com/articles/7591-heresy-and-heretics (Consultado em
20/08/2021)
http://www.jewishvirtuallibrary.org/jsource/judaica/ejud_0002_0012_0_10951.html
(Consultado em 7/10/2010)
http://www.jewishencyclopedia.com/view.jsp?artid=423&letter=C&search=Chephirah
(Consultado em 7/10/2010)
http://www.jewishencyclopedia.com/view.jsp?artid=123&letter=C&search=Kefar
(Consultado em 7/10/2010)
https://www.islamemlinha.com/index.php/artigos/islam/item/nove-regras-a-respeito-de-
kufr-e-takfir (Consultado em 23/08/2021)
http://pza.sanbi.org/ficus-sycomorus-subsp-sycomorus%C2%A0 (Consultado em
7/10/2020)
580
Maria da Glória Carriço de Santana Paula
Cafres e Cafraria: a construção de categorias classificatórias dos africanos na documentação portuguesa (séculos XVI e XVII)
581