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Os ritmos de Marina Abramović: as situações-limite da representabilidade

e o jogo com a vulnerabilidade.

O texto propõe uma análise de cinco ações da performer Marina


Abramović, produzidas entre os anos de 1973 e 1975, as quais ela nomeia com
a palavra “ritmo” seguido de um número: Rhythm 10, 5, 2, 4 e 0. Nessas ações,
a artista expõe o seu corpo a situações em que poderia sofrer o risco real de
ser tocada, ferida ou mesmo morta. Em algumas dessas performances
Abramović abre mão da própria lucidez, lançando-se em situações de
desamparo radical nas quais o público interfere não só como testemunha do
ato, mas como co-participante e/ou responsável, decidindo sobre a integridade
física da performer ou a continuidade da performance. Desta maneira, a artista
parece produzir situações-limite de representabilidade nas quais a
vulnerabilidade é não só o motor, mas a própria potência das situações por ela
criadas. Situações as quais o público se depara com as fronteiras entre arte e
vida, e é levado a pensar e/ou agir de diferentes modos que colocam em
cheque sua relação com o outro. Nessa conversa, estão presentes
pensamentos fundamentais como o do poeta Antonin Artaud e do filósofo
Jacques Derrida a fim de trazer as ideias sobre “crueldade” e sobre “repetição”
nos “ritmos” de Marina Abramovic. Também se fazem importantes reflexões de
autoras como Erika Fisher-Lichte, Eleonora Fabião e Judith Butler, além do
psicanalista Sigmund Freud. O empenho é justamente refletir sobre essas
cinco ações nas quais vemos o corpo da performer colocado no limite do corpo
em risco, da sua inerente fragilidade e finitude, da precariedade e abjeção.
Pensar sobre como a vulnerabilidade fundamental do vivo, pode funcionar
como matéria oculta e intensiva da criação artística quando exposta, partilhada
e tensionada em um jogo que se movimenta entre as fronteiras que costumam
separar a arte da vida.

Palavras-chave: Marina Abramovic, performance, risco, arte-vida,


vulnerabilidade.
1973. Rhythm 10. A performer Marina Abramović abre um extenso papel
branco sobre o chão, ajoelha-se e coloca sobre ele dois gravadores de fita
cassete e dez facas de tamanhos variados. Liga um dos gravadores, estende a
mão sobre o papel, pega uma faca e começa a apunhalar os espaços entre os
seus dedos. A ação é feita repetidamente como um jogo de roleta russa até o
momento em que a performer “erra” e “acerta” um dos seus dedos. Neste
momento a faca é trocada e a ação reiniciada. Quando as dez facas são
utilizadas, e isso também significa que ela se cortou dez vezes, a artista desliga
Imagem 1 - Rhythm 10 (1973). STILES, Kristine, et al. Marina Abramović. London New York,
NY: Phaidon, 2008, p. 12 e 13.
o gravador. No papel branco é possível ver seus “erros/acertos” através do
sangue que manchou a superfície. Utilizadas as dez facas, Marina rebobina a
fita e ouve o ritmo das estocadas das facas que havia aplicado em sua ação.
Com o segundo gravador ligado, ouvindo o som da primeira gravação, ela tenta
repetir o mesmo ritmo aplicado na primeira ação, incluindo os momentos em
que a faca a atingiu (o que podia ser identificado pelos gemidos de dor da
performer). Absolutamente concentrada em sua tarefa, Marina utiliza
novamente as dez facas tentando acompanhar o ritmo empregado
anteriormente. Ao terminar, ela rebobina as fitas colocando, em seguida, as
duas gravações tocando simultaneamente e, então, abandona o espaço.
Imagem 2- Rhythm 5 (1974). STILES, Kristine, et al. Marina Abramović London New York,
NY: Phaidon, 2008, p. 53.

1974. Rhythm 5. Marina Abramović começa a montar uma grande


moldura de madeira no chão formando uma estrela de cinco pontas e deixando
um espaço vazio no meio. Em torno da moldura, ela deposita lascas de
madeira, derrama gasolina sobre as mesmas e põe fogo. Começa a andar em
volta da estrela em chamas, depois corta as unhas e os cabelos e os joga
sobre o fogo. Em seguida salta para dentro da estrela e se deita no meio. A
partir desse momento permanece imóvel. Quem dita o ritmo são as cinco
pontas da estrela que rapidamente começam a se aproximar do corpo da
performer. Nesse momento, algumas pessoas da plateia resolvem interromper
a ação retirando a artista do meio das chamas.

Imagem 3 - Rhythm 2 (1974). STILES, Kristine et al. Marina Abramović. London/New York:
Phaidon, 2008, p. 14

1974. Rhythm 2. No espaço branco, uma cadeira e uma mesa onde há


dois copos de água e dois comprimidos, um destinado a forçar o movimento de
pacientes catatônicos e outro utilizado para acalmar pacientes esquizofrênicos.
Marina Abramović adentra o espaço, senta na cadeira e toma o primeiro
comprimido. Não demora muito até começar a ter reações: espasmos, um
sorriso artificial e descontrole físico. Cerca de uma hora depois o efeito da
pílula havia passado. Então, ela liga o rádio e escuta canções folclóricas
eslavas. Em seguida toma o segundo comprimido, este faz com ela fique
totalmente imóvel e inerte durante o tempo da ação da medicação em seu
corpo. Ao fim de cinco horas, ela se levanta e abandona o espaço.

Imagem 4- Rhythm 4 (1974). STILES, Kristine, et al. Marina Abramović . London New York, NY:
Phaidon, 2008, p. 24

1974. Rhythm 4. Marina Abramović está nua de joelhos, em frente a um


ventilador de alta potência. Ela aponta o aparelho diretamente para o seu rosto.
Sua boca se abre numa tentativa de inspirar todo vento que o ventilador
produz. Sua ação é assistida pelo público através de transmissão das imagens
em vídeo simultaneamente para a sala ao lado. Duas salas fazem parte da
ação, uma em que a artista se encontra e outra onde fica o público. Durante a
ação, a performer desmaia. Por alguns minutos o cinegrafista fecha o plano em
close-up em seu rosto, logo depois interrompe a transmissão das imagens e a
própria ação ao prestar socorro à artista.

Imagem 5- Rhythm 0 (1975). STILES, Kristine, et al. Marina Abramović . London New York,
NY: Phaidon, 2008, p. 62 e 63

1975. Rhythm 0. Ao adentrar o espaço, o público se depara com uma


grande mesa na qual se encontram setenta e dois objetos e um pequeno cartaz
em que podem ser lidas as seguintes instruções: "Há 72 objetos na mesa que
podem ser usados em mim como desejarem. Eu sou o objeto. Eu assumo toda
1
a responsabilidade durante este período” (STILES, 2008, p. 62). Dentre os
objetos, estavam:
1
Tradução livre da autora a partir do original: “There are 72 objects on the table that one can
use on me as desired. I am the object. During this period I take full responsibility” (STILES,
2008, p. 62).
um garfo, um vidro de perfume, açúcar, um machado, um sino, uma
pena, correntes, agulhas, tesouras, uma caneta, um livro, mel, um
martelo, uma serra, um osso de cordeiro, um jornal, uvas, azeite de
oliva, uma polaroide, um ramo de alecrim, um espelho, uma rosa,
batom, um grande colar dourado, um chapéu-coco, uma pistola (e
uma bala) (WESTCOTT, 2015, p. 82).

Por seis horas Marina Abramović se mantém imóvel e disponível para


ser manipulada como um objeto: ela é colocada em diferentes poses, é vestida
com colares, é molhada com água, é fotografada, é despida, tem frases no
corpo escritas com batom, é beijada, dentre outras coisas. Até que uma das
pessoas da plateia resolve carregar o revólver com a bala disponível, colocar
nas mãos da artista e fazê-la apontar para seu próprio pescoço. Nesse
momento a ação é interrompida.

“Ritmos”da arte-vida

Conforme as descrições anteriores, entre 1973 e 1975, a artista Marina


Abramović realiza uma série de performances intituladas com a palavra “ritmo”
(rhythm em inglês), sempre adicionando um número: 10, 5, 2, 4, 0. A palavra,
derivada do grego rhythmos, significa, em português: “retorno a intervalos de
tempo regulares, de um fato, de um fenômeno”. “Ritmo” também é considerado
um “elemento temporal da música, constituído pela sucessão e pela relação de
valores de duração; Sequência regular de movimentos, fenômenos etc., que se
repetem periodicamente; cadência” 2 (LAROUSSE, 2004, p. 669).
Contudo, nos “ritmos” de Abramović, a música não estava relacionada
aos trabalhos. Segundo a artista, o que lhe interessava era o tempo. 3 Em
Rhythm 10, por exemplo, havia uma espécie de sobreposição/duplicação de
ações: passado e presente pareciam se encontrar e se misturar a ponto de se
confundirem. O som gravado da ação anterior da performer (apunhalar entre
seus dedos com uma faca) ditava o ritmo da ação posterior. Na ação já não

2
O que não difere muito do sentido dado à palavra em inglês: “1. A regular repeated pattern of
sounds or beats in music or poetry; 2. a regularly repeated pattern of movements” (KERR &
THOMPSON, 1996, p. 449).
3
Marina Abramović fala sobre a relação entre suas performances “ritmo” e a música em
entrevista a Klaus Biesenbach: “Klaus: The pieces entitled Rhythms are also connected to the
vocabulary and grammar of music. What was your relationship to music? Marina: It was zero.
My mother sent me to piano lessons, and after a year the teacher said to my mother, ‘You
know, I'm just taking your money for nothing. She absolutely doesn't have any talent for music’.
No, these words were related not to music but to sound. But in my mind they were really about
time” (STILES, 2008, p. 13).
havia passado e presente, uma vez que a imbricação de temporalidades se
tornava estranhamente visível na ação. Som e gesto se repetiam quase que
numa tentativa de replicar o tempo do acontecimento passado. E esse era o
propósito da artista, descobrir se seria possível juntar passado e presente,
incluindo os erros. Segundo Marina Abramović em entrevista: “O erro foi
sincronizado junto, o que era um conceito tão louco, se você pensa sobre o
quão impossível isso é. Mas eu sempre estava pensando sobre o passado e o
4
futuro, e em seguida sobre o presente" (STILES, 2008, p.13).
Com dez facas, dez dedos, dez cortes, dez erros/dez acertos, a
performer parecia brincar de imitar, como num jogo mesmo de repetir, de
refazer, de reproduzir. Sua ação mimética de uma repetição guiada pela ação
anterior parecia pôr em questão a ideia mesma da representação enquanto
repetição. Uma ideia de repetição que se difere do que afirma o filósofo
Jacques Derrida (2011), referindo-se ao poeta Antonin Artaud (1896-1948),
considerando que ele “quis apagar a repetição em geral”, pois “a repetição era
para ele o mal” e “separa de si própria a força, a presença, a vida” (DERRIDA,
2011, p. 358). Ao contrário disso, a repetição em Rhythm 10 parece intensificar
o gesto, duplicar a força da ação e amplificar a força da própria vida.
Quando a performer reproduzia a ação guiada pelo som, parecia
acontecer uma subversão da ideia de repetição ao desafiar o “irrepetível”, não
só pela dificuldade clara da proposição em questão, mas também pela
incorporação radical do erro ao infligir conscientemente e propositalmente uma
violência ao corpo. Estranhamente, a performance fica num lugar entre o
previsto (a performer repete a ação que já foi feita) e o imprevisto (a performer
pode errar, e realmente erra por duas vezes). E se na primeira vez era o erro
que fazia a faca atingir a mão, agora é justamente o contrário: a ideia é acertar
o erro, é cortar a mão de maneira absolutamente consciente, proposital. O jogo
proposto por Marina se aproxima do “jogo obscuro”, apontado por Schechner,
comportando o risco como parte integrante da ação. A ação da performer
jogava com a ideia de representação quando se propunha a apresentar
novamente o que já havia sido feito. Uma imitação que, ao mesmo tempo,
afastava qualquer possibilidade de ser uma ficção pela materialidade do
sangue que manchava o papel branco a cada corte que a performer se infligia.
4
Tradução livre da autora a partir do original: “The mistake synched together, which was such a
crazy concept, if you think about how impossible it is. But I was always thinking about the past
and future, and then about the present” (STILES, 2008, p.13).
“A discrição não é coisa nossa” (ARTAUD, 2014, p. 34). Com esta
afirmação, Antonin Artaud queria dizer que o jogo também era profundo,
verdadeiro e sem concessões:

A cada espetáculo montado, jogamos uma partida grave. Se não


estivermos decididos a tirar até o extremo a consequência de nossos
princípios, estimaremos que a partida, justamente, não valerá a pena
ser jogada. O espectador que vem à nossa casa saberá que ele vem
se oferecer a uma operação verdadeira onde não somente seu
espírito, mas seus sentidos e sua carne estão em jogo. (…) Ele deve
estar de fato persuadido de que somos capazes de fazê-lo gritar
(ARTAUD, 2014, p. 34).

Em Rhythm 5 quem ditou o ritmo foram as chamas da fogueira que a


performer acendeu e à qual, conscientemente e de forma determinada,
ofereceu seu corpo. Rodeada pelo fogo que consumiu todo o oxigênio de
dentro da estrela, Marina rapidamente perdeu a consciência e assim se
colocou em risco real. Ao perceberem a condição da artista, alguns amigos a
retiraram de dentro das chamas que já estavam a alcançando. Pela primeira
vez ela desafiou os seus limites de forma radical e, assim, percebeu outra
inquietação que fez parte dos trabalhos posteriores. Em seus “ritmos” duas
ideias paralelas se relacionavam: uma era mesmo sobre o tempo, e outra era
sobre a consciência e a inconsciência da performer. Para ela, uma
performance não poderia parar porque o artista perdeu a consciência: “Eu
queria estender a possibilidade, e é por isso que eu fiz duas peças, Rhythm 2 e
Rhythm 4 (1974), em que o desempenho continua, mesmo que o artista perca
a consciência. Não aceitei os limites do corpo” (STILES, 2008, p. 14).5
Marina fez da inconsciência o seu material de trabalho e, de maneira
extremamente rigorosa e consciente, levou seu propósito até as últimas
consequências. Ofereceu o próprio corpo para experimentação, em possíveis
processos de transformação em um caráter quase ritual, ascético, liminar. O
espectador se envolve em suas ações, que longe de serem representações, se
misturam e se imbricam, porque é “a cena crua, paradoxal, mínima” que
“aponta o teatro-vida” (FABIÃO, 2009, p. 240). Desta forma,

A performance, assim como o teatro artaudiano, é cruel na medida


em que ativa fluxos para-doxais, ou seja, lógicas que escapam à
regulamentação da doxa (senso comum e bom senso); é cruel na
5
Tradução livre da autora a partir do original: “I wanted to extend the possibility, and that’s why
I made two pieces Rhythm 2 and Rhythm 4 (1974), in which the performance continues even if
the performer is unconscious. I didn’t accept the body’s limits” (STILES, 2008, p. 14).
medida em que ativa a consciência crítica atrelada à consciência
corporal, ou seja, ativa a consciência como “coisa corpórea”; é cruel
na medida em que conduz o cênico a situações representacionais
limite (FABIÃO, 2009, p. 240).

Investigando formas de incorporar a inconsciência como parte da ação,


em Rhythm 2 a artista toma dois comprimidos que anulam o controle sobre seu
próprio corpo, já que cada capsula impôs um ritmo ao seu corpo e o subjugou.
A performance teve a duração de pouco mais de seis horas, justamente o
tempo do efeito que as drogas tiveram sobre o corpo da artista. Tudo o que se
viu foi um corpo entregue à impossibilidade de qualquer defesa ou reação. Em
Rhythm 4, por exemplo, ela combina com o cameraman que caso ela
desmaiasse a transmissão das imagens da performance não seria
interrompida. Entretanto, ele não cumpre o acordo, e após alguns minutos
vendo a artista desacordada, interrompe a ação para prestar socorro. Também
em Rhythm 5 a própria audiência é colocada em uma condição ética de
fronteira, na qual a performer cria uma situação em que faz os espectadores
oscilarem “entre as normas da arte e as da vida cotidiana, entre postulados
estéticos e éticos”6 (FISCHER-LICHTE, 2011, p. 25). Assim, a performance de
Marina “mergulhou o espectador em uma situação irritante, de profundo
desconforto e desassossego, em que as normas, as regras e as convicções,
até aquele momento inquestionáveis, pareciam ter perdido sua validade”7
(FISCHER-LICHTE, 2011, p. 25).
Na última performance da série (Rhythm 0), Marina Abramović tensionou
ainda mais a relação ética entre artista e público. A performer se colocou como
mais um objeto dentre os setenta e dois que disponibilizou para que utilizassem
em seu corpo conforme desejassem, garantindo que toda responsabilidade dos
acontecimentos durante aquele período de tempo determinado da performance
seria dela. Assim, qualquer coisa poderia ter sido feita, inclusive nada, porém
não foi o que ocorreu. Marina foi colocada muitas vezes em situação de
humilhação e de risco, mas permaneceu indiferente a tudo que ocorria a ela.
Seu semblante era neutro, não demonstrava nenhuma expressão num

6
Trecho do texto original completo a partir do espanhol: “Thomas Lips”: “Em su performance, y
con su performance, Abramovic creo na situacion en la que hizo oscilar a los espectadores
entre las normas del arte y las de la vida cotidiana, entre postulados esteticos y eticos”
(FISCHER-LICHTE, 2011, p. 25).
7
Trecho do texto original completo a partir do espanhol: “De este modo sumio al espectador en
una situacion irritante, de profundos desconcierto y desasosiego, en la que normas, reglas y
convicciones hasta ese momento incuestionables parecian haber perdido su validez” (Idem)
“equilíbrio delicado entre controle subjugar implacável e entrega dolorosa”
(WESTCOTT, 2015, p. 76). Essa “neutralidade” é o que talvez tenha
encorajado o público a atos cada vez mais extremos, a ponto de a performance
ter sido interrompida por haver risco real à vida da artista. Por isso a teórica
Erika Fischer-Lichte aponta para a proximidade entre algumas dessas
performances de Marina e aspectos do ritual. Isso porque:

Como ritual, causou a transformação da artista e de alguns


espectadores, sem que isso tenha como consequência, como
costuma acontecer nos rituais, uma mudança de status ou identidade
pública. Como espetáculo causou espanto e rejeição nos
espectadores, assustou-os e incitou-os ao voyeurismo.8 (FISCHER-
LICHTE, 2011, p.32).

Pode-se dizer que nos “ritmos” de Marina Abramović o público não está
isolado da ação. Pelo contrário, como nos diz Jacques Derrida (1930-2004), a
respeito do Teatro da Crueldade, “a distância do olhar já não é pura, não pode
abstrair-se da totalidade do meio sensível; o espectador investido já não pode
constituir o seu espetáculo e atribuir-se o seu objeto” (DERRIDA, 2011, p. 357).
Desta forma, “já não há espectador nem espetáculo, há uma festa” (DERRIDA,
2011, p. 357). Isso porque “no espaço da festa aberto pela transgressão, a
distância da representação já não deveria poder alargar-se. A festa da
crueldade arranca as rampas e os parapeitos diante do ‘perigo absoluto’ que é
sem fundo” (DERRIDA, 2011, p. 357).
Marina Abramović se compromete com suas proposições em todas as
suas instâncias legais e consequências físicas. Não dá para voltar atrás. É
também nesta “lucidez” e “direção rígida” como no Teatro da Crueldade de
Antonin Artaud. Afinal, como disse o poeta: “Não há crueldade sem
consciência, sem uma espécie de consciência aplicada. É a consciência que dá
ao exercício de todo ato da vida sua cor de sangue, sua nuance cruel […]”
(ARTAUD, 2006, p. 118). Crueldade que também pode ser chamada de vida,
como disse Artaud. Imprevisível, a vida não faz concessões, não se limita por
regras, não “dá ouvidos” ao bom senso. A vida é abismo, pois o que tem de
imponderável, ela tem de irrepresentável.

8
Tradução livre da autora a partir do espanhol: Como ritual causó la transformación de la
artista y la de algunos espectadores, sin que ello tuviera como consecuencia, como suele ser el
caso en los rituales, un cambio de estatus publico o de identidad. Como espectáculo causó
asombro y repulsa en los espectadores, les asustó y les incitó al voyerismo” (FISCHER-
LICHTE, 2011, p.32).
Nessa dinâmica “arte-vida”, a crueldade descrita por Artaud ecoa em
alguns espetáculos “contemporâneos” nos quais o processo mimético, mesmo
quando presente, não apresenta uma moldura fixa, sendo ao contrário elástica
e volátil, se expandindo e se retraindo em um movimento de tensionamento e
trânsito que é característica da própria vida. Perturbam, desorganizam,
deformam, anarquizam a ordem e o bom senso. Dessa maneira, se afastam do
que Antonin Artaud chamou de “palco teológico”.
Segundo Derrida, Artaud quer “acabar com o conceito imitativo da arte”
(DERRIDA, 2011, p. 342). Para ele, torna-se necessário abrir espaço para vida
naquilo que lhe é inerente (sua crueldade), mas que ao mesmo tempo lhe é
negada. Por esse motivo, Artaud quer eliminar Deus do palco. Para que o
mesmo possa se libertar de qualquer voz ditadora de regras, de um “autor-
criador que, ausente e distante, armado de um texto, vigia, reúne e comanda o
tempo ou o sentido da representação, deixando esta representá-lo no que
chama o conteúdo dos seus pensamentos […]” (DERRIDA, 2011, p. 343). O
que Artaud rejeita, portanto, é toda palavra que domina, organiza e controla,
impedindo que a representação originária se manifeste como “arqui-
manifestação da força ou da vida” (DERRIDA, 2011, p. 347).
Mas Derrida se pergunta qual seria o lugar da palavra no Teatro da
Crueldade. Ela não será condutora do espetáculo, mas também não estará
ausente. “Tudo será prescrito numa escritura e num texto cujo material já não
se assemelhará ao modelo de uma representação clássica” (DERRIDA, 2011,
p. 349). Prescrição significa uma ordem ou determinação. Isso não seria
manter a estrutura do “palco teológico” onde haveria um “Deus-autor”?
Segundo Derrida, a palavra “ocupará um lugar rigorosamente delimitado. Terá
uma função num sistema no qual será ordenada” (DERRIDA, 2011, p. 349).
Palavra e texto voltarão à sua origem, o corpo:

Proponho assim um teatro em que imagens físicas violentas triturem


e hipnotizem a sensibilidade do espectador, envolvida no teatro como
um turbilhão de forças superiores. Um teatro que, abandonando a
psicologia, narre o extraordinário, ponha em cena conflitos naturais e
sutis, e que se apresente antes de mais nada como uma excepcional
força de derivação (ARTAUD, 2006, p. 93).

Ao mesmo tempo, Derrida reconhece e aponta a impossibilidade de um


teatro sem representação como aspirava Artaud, pois, de alguma forma, ela
sempre retorna, porque sempre esteve ali. O filósofo também reconhece e
confirma o “inacessível limite de uma representação que não seja
representação, duma representação que não seja presença plena, que não
carregue em si o seu duplo como a sua morte, [...]” (DERRIDA, 2011, p. 362).
Sendo assim, seria possível supor que uma cena onde os limites do
regime representativo são extrapolados seria uma cena onde o irrepresentável
promoveria maior possibilidade de afetar o espectador? Uma cena que não
garantiria uma distância segura ou conveniente, mas, pelo contrário, que a
intensificação se daria pela inclusão do impiedoso e do imponderado e que
pode ser interpretado como cruel ou insensível? Como, por exemplo, quando o
diretor italiano Romeo Castellucci (1960-) coloca em cena um corpo mutilado
real em sua montagem da peça Hamlet (1992); ou quando o diretor brasileiro
José Celso Martinez (1937-) expõe atos residuais íntimos de seus atores ao
defecarem ou ejacularem em cena como na montagem da peça Para Dar um
Fim no Juízo de Deus (2015),9 de Antonin Artaud. São cenas inconvenientes,
ou que extrapolam a regulagem de afetos tão cara ao regime representativo.
Cenas inadequadas de serem vistas. Cena as quais é preferível se privar, para
não ter que se defrontar com a situação. Como os corpos empilhados de
judeus mortos nos campos de concentração nazistas, por exemplo, mostrados
no documentário Memory of the Camps (1945), de Alfred Hitchcock. 10
Os ritmos de Marina Abramovic como cinco ações em cinco tempos
distintos, propõem um percurso que parece não só orientar a prática da artista,
como também o “caminho de leitura” do espectador que se depare com os
arquivos de sua obra. São ações nos quais vemos o corpo da performer
colocado na fronteira: no limite do corpo em risco, da sua inerente fragilidade e
finitude, da precariedade e abjeção. Trata-se de momentos em que a palavra é
suplantada, a conveniência e o decoro são desprezados. Porque não é de bom

9
O espetáculo aqui tomado como exemplo, é uma remontagem de José Celso Martinez Correa
com o Grupo Oficina Uzyna Uzona em 2015. A primeira montagem feita pelo grupo foi em
1996.
10
Em 1945, quando as tropas aliadas libertavam os judeus dos campos de concentração,
imagens foram feitas por operadores de câmera da Unidade de Cinema do Exército Britânico a
fim de comprovar os crimes cometidos pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial
(1939-1945). O diretor Alfred Hitchcock foi convidado por Sidney Bernstein para ser o
supervisor artístico e fazer das imagens captadas um documentário. Memória dos Campos não
foi exibido à época e os rolos de película ficaram guardados no Imperial War Museum, em
Londres. Em 1984, uma versão incompleta foi exibida no Festival de Berlim e no ano seguinte
pela cadeia de televisão PBS, nos EUA. Disponível em: https://youtu.be/DY9y7cmmmFQ.
Acesso em 25/05/2017.
senso mostrar o horror que são as nossas fragilidades, uma vez que estas
habitam justamente na nossa condição humana. Afinal, são as fraquezas e
precariedades que não nos deixam esquecer a nossa finitude inevitável e certa.

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