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Imagem 3 - Rhythm 2 (1974). STILES, Kristine et al. Marina Abramović. London/New York:
Phaidon, 2008, p. 14
Imagem 4- Rhythm 4 (1974). STILES, Kristine, et al. Marina Abramović . London New York, NY:
Phaidon, 2008, p. 24
Imagem 5- Rhythm 0 (1975). STILES, Kristine, et al. Marina Abramović . London New York,
NY: Phaidon, 2008, p. 62 e 63
“Ritmos”da arte-vida
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O que não difere muito do sentido dado à palavra em inglês: “1. A regular repeated pattern of
sounds or beats in music or poetry; 2. a regularly repeated pattern of movements” (KERR &
THOMPSON, 1996, p. 449).
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Marina Abramović fala sobre a relação entre suas performances “ritmo” e a música em
entrevista a Klaus Biesenbach: “Klaus: The pieces entitled Rhythms are also connected to the
vocabulary and grammar of music. What was your relationship to music? Marina: It was zero.
My mother sent me to piano lessons, and after a year the teacher said to my mother, ‘You
know, I'm just taking your money for nothing. She absolutely doesn't have any talent for music’.
No, these words were related not to music but to sound. But in my mind they were really about
time” (STILES, 2008, p. 13).
havia passado e presente, uma vez que a imbricação de temporalidades se
tornava estranhamente visível na ação. Som e gesto se repetiam quase que
numa tentativa de replicar o tempo do acontecimento passado. E esse era o
propósito da artista, descobrir se seria possível juntar passado e presente,
incluindo os erros. Segundo Marina Abramović em entrevista: “O erro foi
sincronizado junto, o que era um conceito tão louco, se você pensa sobre o
quão impossível isso é. Mas eu sempre estava pensando sobre o passado e o
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futuro, e em seguida sobre o presente" (STILES, 2008, p.13).
Com dez facas, dez dedos, dez cortes, dez erros/dez acertos, a
performer parecia brincar de imitar, como num jogo mesmo de repetir, de
refazer, de reproduzir. Sua ação mimética de uma repetição guiada pela ação
anterior parecia pôr em questão a ideia mesma da representação enquanto
repetição. Uma ideia de repetição que se difere do que afirma o filósofo
Jacques Derrida (2011), referindo-se ao poeta Antonin Artaud (1896-1948),
considerando que ele “quis apagar a repetição em geral”, pois “a repetição era
para ele o mal” e “separa de si própria a força, a presença, a vida” (DERRIDA,
2011, p. 358). Ao contrário disso, a repetição em Rhythm 10 parece intensificar
o gesto, duplicar a força da ação e amplificar a força da própria vida.
Quando a performer reproduzia a ação guiada pelo som, parecia
acontecer uma subversão da ideia de repetição ao desafiar o “irrepetível”, não
só pela dificuldade clara da proposição em questão, mas também pela
incorporação radical do erro ao infligir conscientemente e propositalmente uma
violência ao corpo. Estranhamente, a performance fica num lugar entre o
previsto (a performer repete a ação que já foi feita) e o imprevisto (a performer
pode errar, e realmente erra por duas vezes). E se na primeira vez era o erro
que fazia a faca atingir a mão, agora é justamente o contrário: a ideia é acertar
o erro, é cortar a mão de maneira absolutamente consciente, proposital. O jogo
proposto por Marina se aproxima do “jogo obscuro”, apontado por Schechner,
comportando o risco como parte integrante da ação. A ação da performer
jogava com a ideia de representação quando se propunha a apresentar
novamente o que já havia sido feito. Uma imitação que, ao mesmo tempo,
afastava qualquer possibilidade de ser uma ficção pela materialidade do
sangue que manchava o papel branco a cada corte que a performer se infligia.
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Tradução livre da autora a partir do original: “The mistake synched together, which was such a
crazy concept, if you think about how impossible it is. But I was always thinking about the past
and future, and then about the present” (STILES, 2008, p.13).
“A discrição não é coisa nossa” (ARTAUD, 2014, p. 34). Com esta
afirmação, Antonin Artaud queria dizer que o jogo também era profundo,
verdadeiro e sem concessões:
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Trecho do texto original completo a partir do espanhol: “Thomas Lips”: “Em su performance, y
con su performance, Abramovic creo na situacion en la que hizo oscilar a los espectadores
entre las normas del arte y las de la vida cotidiana, entre postulados esteticos y eticos”
(FISCHER-LICHTE, 2011, p. 25).
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Trecho do texto original completo a partir do espanhol: “De este modo sumio al espectador en
una situacion irritante, de profundos desconcierto y desasosiego, en la que normas, reglas y
convicciones hasta ese momento incuestionables parecian haber perdido su validez” (Idem)
“equilíbrio delicado entre controle subjugar implacável e entrega dolorosa”
(WESTCOTT, 2015, p. 76). Essa “neutralidade” é o que talvez tenha
encorajado o público a atos cada vez mais extremos, a ponto de a performance
ter sido interrompida por haver risco real à vida da artista. Por isso a teórica
Erika Fischer-Lichte aponta para a proximidade entre algumas dessas
performances de Marina e aspectos do ritual. Isso porque:
Pode-se dizer que nos “ritmos” de Marina Abramović o público não está
isolado da ação. Pelo contrário, como nos diz Jacques Derrida (1930-2004), a
respeito do Teatro da Crueldade, “a distância do olhar já não é pura, não pode
abstrair-se da totalidade do meio sensível; o espectador investido já não pode
constituir o seu espetáculo e atribuir-se o seu objeto” (DERRIDA, 2011, p. 357).
Desta forma, “já não há espectador nem espetáculo, há uma festa” (DERRIDA,
2011, p. 357). Isso porque “no espaço da festa aberto pela transgressão, a
distância da representação já não deveria poder alargar-se. A festa da
crueldade arranca as rampas e os parapeitos diante do ‘perigo absoluto’ que é
sem fundo” (DERRIDA, 2011, p. 357).
Marina Abramović se compromete com suas proposições em todas as
suas instâncias legais e consequências físicas. Não dá para voltar atrás. É
também nesta “lucidez” e “direção rígida” como no Teatro da Crueldade de
Antonin Artaud. Afinal, como disse o poeta: “Não há crueldade sem
consciência, sem uma espécie de consciência aplicada. É a consciência que dá
ao exercício de todo ato da vida sua cor de sangue, sua nuance cruel […]”
(ARTAUD, 2006, p. 118). Crueldade que também pode ser chamada de vida,
como disse Artaud. Imprevisível, a vida não faz concessões, não se limita por
regras, não “dá ouvidos” ao bom senso. A vida é abismo, pois o que tem de
imponderável, ela tem de irrepresentável.
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Tradução livre da autora a partir do espanhol: Como ritual causó la transformación de la
artista y la de algunos espectadores, sin que ello tuviera como consecuencia, como suele ser el
caso en los rituales, un cambio de estatus publico o de identidad. Como espectáculo causó
asombro y repulsa en los espectadores, les asustó y les incitó al voyerismo” (FISCHER-
LICHTE, 2011, p.32).
Nessa dinâmica “arte-vida”, a crueldade descrita por Artaud ecoa em
alguns espetáculos “contemporâneos” nos quais o processo mimético, mesmo
quando presente, não apresenta uma moldura fixa, sendo ao contrário elástica
e volátil, se expandindo e se retraindo em um movimento de tensionamento e
trânsito que é característica da própria vida. Perturbam, desorganizam,
deformam, anarquizam a ordem e o bom senso. Dessa maneira, se afastam do
que Antonin Artaud chamou de “palco teológico”.
Segundo Derrida, Artaud quer “acabar com o conceito imitativo da arte”
(DERRIDA, 2011, p. 342). Para ele, torna-se necessário abrir espaço para vida
naquilo que lhe é inerente (sua crueldade), mas que ao mesmo tempo lhe é
negada. Por esse motivo, Artaud quer eliminar Deus do palco. Para que o
mesmo possa se libertar de qualquer voz ditadora de regras, de um “autor-
criador que, ausente e distante, armado de um texto, vigia, reúne e comanda o
tempo ou o sentido da representação, deixando esta representá-lo no que
chama o conteúdo dos seus pensamentos […]” (DERRIDA, 2011, p. 343). O
que Artaud rejeita, portanto, é toda palavra que domina, organiza e controla,
impedindo que a representação originária se manifeste como “arqui-
manifestação da força ou da vida” (DERRIDA, 2011, p. 347).
Mas Derrida se pergunta qual seria o lugar da palavra no Teatro da
Crueldade. Ela não será condutora do espetáculo, mas também não estará
ausente. “Tudo será prescrito numa escritura e num texto cujo material já não
se assemelhará ao modelo de uma representação clássica” (DERRIDA, 2011,
p. 349). Prescrição significa uma ordem ou determinação. Isso não seria
manter a estrutura do “palco teológico” onde haveria um “Deus-autor”?
Segundo Derrida, a palavra “ocupará um lugar rigorosamente delimitado. Terá
uma função num sistema no qual será ordenada” (DERRIDA, 2011, p. 349).
Palavra e texto voltarão à sua origem, o corpo:
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O espetáculo aqui tomado como exemplo, é uma remontagem de José Celso Martinez Correa
com o Grupo Oficina Uzyna Uzona em 2015. A primeira montagem feita pelo grupo foi em
1996.
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Em 1945, quando as tropas aliadas libertavam os judeus dos campos de concentração,
imagens foram feitas por operadores de câmera da Unidade de Cinema do Exército Britânico a
fim de comprovar os crimes cometidos pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial
(1939-1945). O diretor Alfred Hitchcock foi convidado por Sidney Bernstein para ser o
supervisor artístico e fazer das imagens captadas um documentário. Memória dos Campos não
foi exibido à época e os rolos de película ficaram guardados no Imperial War Museum, em
Londres. Em 1984, uma versão incompleta foi exibida no Festival de Berlim e no ano seguinte
pela cadeia de televisão PBS, nos EUA. Disponível em: https://youtu.be/DY9y7cmmmFQ.
Acesso em 25/05/2017.
senso mostrar o horror que são as nossas fragilidades, uma vez que estas
habitam justamente na nossa condição humana. Afinal, são as fraquezas e
precariedades que não nos deixam esquecer a nossa finitude inevitável e certa.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
STILES, Kristine, et al. Marina Abramović. London New York, NY: Phaidon,
2008.
Para dar um fim no juízo de Deus. Teatro Oficina Uzyna Uzona. Disponível
em: <https://youtu.be/IOUcraT1MrU>. Acesso em 30/01/2017.