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Unidade Curricular de Medicina Geral e Familiar

5º ano (2019/2020)

Modificação de comportamentos em saúde


(texto de apoio aos alunos de MGF)

Por favor, leia este texto antes da aula “Mudança


de comportamentos em saúde”, prevista para a 3ª
feira da última semana, a fim de que obtenha o
máximo proveito, em termos de aprendizagem.

Prof. Doutor José Mendes Nunes


Drª. Joana Azeredo
Dr. Nuno Basílio

Lisboa, setembro de 2019


Mudança de comportamentos em saúde – UC de MGF, 5º ano, 2020/2021
INDÍCE
Nota introdutória ................................................................................................. 3
Técnicas de influência ou como ajudar a mudar ................................................ 4
Modelo de Influência Interpessoal (MII) ............................................................. 4
O princípio dos comportamentos gratificantes. ............................................... 6
Conhecer o locus de controlo e a predisposição para a mudança no doente. 6
Modelo de mudança de comportamentos de Prochaska e DiClemente ............. 9
O que é Entrevista Motivacional (EM) .............................................................. 12 2
Os estilos comunicacionais da EM ................................................................... 12
O espirito da EM............................................................................................... 13
1. Partilha /parceria. ...................................................................................... 14
2. Aceitação .................................................................................................. 15
3. Compaixão................................................................................................ 16
4. Evocação .................................................................................................. 16
O método da EM .............................................................................................. 17
1. Relacionar................................................................................................. 17
2. Focar......................................................................................................... 18
3. Evocar....................................................................................................... 18
4. Planear ..................................................................................................... 19
Habilidades comunicacionais da EM ................................................................ 20
1. Perguntas abertas .................................................................................... 20
2. Confirmar .................................................................................................. 21
3. Escuta reflexiva ........................................................................................ 21
4. Resumir .................................................................................................... 21
5. Informar e aconselhar ............................................................................... 21
Integração da EM na consulta de MGF ............................................................ 22
1. Informar sobre a natureza do problema .................................................... 22
Como aumentar a adesão à terapêutica. ...................................................... 25
A EM em ação. ................................................................................................. 26
1º Principio: Evitar dizer o que o doente tem ou deve fazer. ........................ 26
2º Principio: ninguém muda tudo de uma vez nem cada comportamento se
muda de repente. .......................................................................................... 27
3º Principio: Qualquer mudança de comportamento tem subjacente
ambivalência. ................................................................................................ 29
BIBLIOGRAFIA COMENTADA......................................................................... 32
Mudança de comportamentos em saúde – UC de MGF, 5º ano, 2020/2021

Nota introdutória
Estes apontamentos, sobre mudança de comportamentos e técnicas de
influência, são elaborados com o objetivo específico de servirem de texto apoio
para os alunos da Unidade Curricular de Medicina Geral e Familiar que faz
parte do Mestrado Integrado em Medicina da NOVA Medical School /
Faculdade de Ciências Médicas. Não se pretende que o aluno tenha um
conhecimento enciclopédico sobre estes temas, mas que adquira uma
estruturação teórica, relativamente simples, que o ajude a entender a prática da
abordagem centrada no paciente em contraponto com a abordagem clássica e 3
quase única de centrada na doença ou no médico, para além de os ajudar a
compreender a importância da palavra no exercício da medicina.
Compreenderem que a palavra não serve só para transmitir informação mas
que tem muitas outras funções entre as quais a de fazer coisas (How to do
things with words). Declaro que as ideias expressas nestes apontamentos não
são originais, mas adaptadas das obras que menciono como bibliografia
recomendada para quem pretender aprofundar o conhecimento.
Como menciono no texto, existe quase uma centena de teorias sobre a
mudança de comportamentos, mas as que escolhemos, até à data e salvo
melhor opinião, são as que têm demonstrado melhores resultados.
Finalmente uma declaração. Que fique claro que, com o que podem aprender
nesta Unidade Curricular, não ficam capacitados para fazer intervenções
motivações. Isso exige tempo, perseverança, prática reflexiva. Há quem diga:
− Qual a diferença entre uma entrevista vulgar e uma motivacional?
− Dez anos!
Significa isto que esta é uma área que exige estudo e muita prática ao longo da
vida profissional. No fundo não é nada de novo. O aluno sai da Faculdade com
muito estudo e aulas de cirurgia mas não se sente nem está capacitado para
operar. Enfim entendam que estes apontamentos são como sementes
lançadas ao campo na esperança de que mais tarde venham a frutificar.
Mudança de comportamentos em saúde – UC de MGF, 5º ano, 2020/2021

Técnicas de influência ou como ajudar a mudar


Na maioria das consultas médicas existe a necessidade de mudança de
comportamentos. Estão neste caso as mudanças de estilos de vida, como a
alimentação, o exercício físico ou a cessação tabágica, mas também situações
tão comuns como o início de uma nova terapêutica para uma patologia recém-
diagnosticada, entre outras. Mesmo em situações agudas podem estar em
causa medidas para evitar a repetição do evento, como acidentes. Para ir ao
encontro dessa necessidade o médico frequentemente dá conselhos durante a
consulta. Mas quantos de nós não sentimos que os nossos conselhos não 4
foram bem acolhidos pelo utente? Em muitos destes momentos, a reação
reflexa do profissional é insistir nos mesmos argumentos, contribuindo para a
fixação do doente numa posição defensiva e pouco recetiva. A técnica de
aconselhamento deve ser utilizada de forma adequada e nos momentos certos,
sendo esta uma enorme lacuna na educação médica.
Contudo esta preocupação em ajudar as pessoas a mudar de comportamentos
é um campo de trabalho que tem sido objeto de atenção de muitos
investigadores das mais diversas áreas. Existe quase uma centena de teorias
explicativas que dão origem a outros tantos modelos de intervenção. Nestes
apontamentos daremos mais enfase à entrevista motivacional (EM) por ser
uma das mais trabalhadas, nascida da prática clínica e, por isso, com maior
utilidade para a consulta. A EM enquadra-se dentro de um grupo de modelos
que genericamente se designam de Modelo Influência Interpessoal (MII) e que
passamos agora a abordar.
Modelo de Influência Interpessoal (MII)
Todo o ser humano é influenciável e encontra-se em permanente negociação
com o meio ambiente, atribuindo maior poder de influência a algumas pessoas,
como pode ser o caso do médico. Por isso, é que um médico dificilmente pode
ter como pacientes os próprios pais porque perante eles perde o poder
terapêutico.
Segundo o MII, uma pessoa responde aos desafios da vida quotidiana
procurando uma conduta “idónea” para fazer face ao problema. O seu campo
de referência é definido por:
• O que crê que deve fazer
• O que faz e lhe dá prazer
• O que já fez e deixou de fazer
• O que vê os outros fazer
Este modelo incorpora o conceito de "locus" de controlo, mas de um modo
dinâmico, admitindo a existência de um locus externo e interno. Do primeiro
fazem parte todas as influências externas à pessoa, da sociedade à família
passando pelos meios de comunicação e redes sociais. Do locus interno fazem
parte as experiências anteriores, a autonomia e sentido de autoeficácia. Se
existir um predomínio do locus externo a pessoa aceitará a persuasão ou
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aconselhamento por outros, mas se predominar o locus interno a pessoa
procurará a sua própria solução e tentará partilhá-la com o médico.
O MII é um modelo que procura explicar a permeabilidade dos pacientes aos
argumentos médicos para a mudança de comportamentos, exigindo do médico
a perceção do perfil do paciente e adaptação da sua abordagem no sentido de
ajudá-lo efetivamente no processo de mudança.
O MII deriva dos princípios do modelo de crenças na saúde e baseia-se numa
premissa e em três propostas.
A premissa diz que a mudança de comportamentos induzida pela linguagem 5
exige que o recetor tenha capacidade cognitiva de decidir, de imaginar outros
comportamentos e de os planear. Desta premissa se tiram algumas ilações de
importância prática. Uma das ilações é a inutilidade de usar técnicas de
persuasão com alguém que possui limitações cognitivas que os tornam
impermeáveis à mudança. Por ex. é inútil argumentar com alguém que está
embriagado. Atenção, nada de confundir capacidade cognitiva com condição
social.
A motivação para a mudança varia entre dois extremos que vai desde a pessoa
que responde ao aconselhamento inoculado ou explicito até ao outro extremo
em que a pessoa está totalmente impermeável a todas as estratégias que
visem a mudança.

Permeabilidade à Resistência à
influência influência

Nível 1
Sensíveis à persuasão Nível 2 Nível 3
confrontativa Persuasão motivacional Resistentes à
argumentação. Aplicar a
persuasão extrínseca

Figura 1. Níveis de motivação para a mudança

O nível 3 foca-se no que fazer, em termos de argumentação com a pessoa que


permanece imutável com baixa permeabilidade e elevada resistência. Só
através de medidas externas à sua vontade é possível conduzi-lo à mudança,
como é a modulação de condutas através da nomeação de tutores, toma
assistida, recordatórios, etc.
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A determinação da estratégia em função da impressão que o clinico recebe do
paciente durante a relação, leva a designar o MII e a EM de modelo e método
centrados na relação e os seus princípios básicos são:
a) O clima emocional é mais importante que os conteúdos verbais que se
possam transacionar. Todos os esforços devem ser investidos em
estabelecer uma aliança terapêutica;
b) Um clima emocional de culpa aumenta a resistência pelo que todos os
atos de fala que traduzam juízos de valor ou acusação estão proibidos;
c) Mesmo quando a confrontação verbal se impõe, ela não deve existir
sem que tenhamos garantido um clima emocional de cooperação;
6
d) Existem diversos estilos de comunicação que podem ser usados numa
entrevista, mas não está estabelecida por qual começar nem a
sequência de utilização.
Em relação às propostas do MII destacam-se: 1) o princípio dos
comportamentos gratificantes; 2) conhecer o locus de controlo e a
predisposição para a mudança no doente; 3) evitar argumentar.
O princípio dos comportamentos gratificantes.
Cada pessoa desenvolve um “núcleo de condutas gratificantes”, isto é, que lhe
dão prazer. Estas condutas, embora relativamente estáveis, vão se
modificando ao longo das fases da vida.
Assim, o individuo tem uma apetência particular para assumir condutas que
reforcem aquele “núcleo gratificante”. Por outro lado, é difícil assimilar outras
condutas que impliquem renúncias ou exigem esforço, ainda que esse esforço
seja apenas numa fase inicial para dar lugar a uma outra em que se anteveja
prazer. Portanto, cada um tem uma “inércia de hábitos” que o inibe de tomar
outras condutas que suponham esforço, mesmo que seja inicial.
A estratégia nesta situação é tentar demonstrar e fazer interiorizar no paciente
que no final o balanço será positivo através da ponderação das vantagens e
das desvantagens.
Conhecer o locus de controlo e a predisposição para a mudança
no doente.
Existem dois traços que explicam, em parte, a resposta dos pacientes aos
nossos esforços para os levar à mudança: o sentido da autoeficácia e a
predisposição para experimentar novos comportamentos (curiosidade). Do
cruzamento destas duas características podem resultar quatro possibilidades:
1) Baixa curiosidade e elevada autoeficácia (locus interno) em que deve
ser usado o conselho inoculado e persuasão motivacional;
2) Elevada autoeficácia e curiosidade que são os mais suscetíveis às
ordens explícitas e ao estilo diretivo e confrontativo de dar conselhos;
3) Alta curiosidade e baixa autoeficácia (locus externo) deseja a mudança,
mas sente-se incapaz de a fazer;
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4) Baixa autoeficácia e baixa curiosidade exigem conselho explícito e
persuasão confrontativa.
A este propósito falemos do que se entende por conselho inoculado e conselho
explícito.
No conselho inoculado, o doente não se apercebe que está a ser aconselhado.
É o equivalente à publicidade subliminar. Exemplo:
“No outro dia tive uma pessoa que também tinha umas dores nos
joelhos. Ela tinha peso excessivo e com os cuidados dietéticos e
fisioterapia, conseguiu perder peso e as dores dos joelhos, como por 7
milagre, desapareceram”.
Ou:
“A Senhora é muito interessante, se tivesse menos peso, para além de
se sentir muito melhor iria ficar muito bonita”.
O conselho explícito é a expressão pura da intervenção clássica do médico, o
dar ordens, em que o médico transmite o seu conselho de modo direto e o
doente o identifica claramente. Exemplo:
“A fim de melhorar do seu joelho a senhora tem que perder peso.”
A grande diferença entre conselho e persuasão é que neste estabelecemos
uma relação bidirecional. Persuasão é a ação de convencer intimamente
alguém de algo ou de o levar a aderir a um ponto de vista, por meio de
argumentação. Portanto, a persuasão exige diálogo. Ninguém impõe nada nem
ordena. Na persuasão é levar o outro a fazer o que pretendemos respeitando a
sua liberdade de escolha.
A persuasão pode basear-se num processo interno do cliente em que mal nota
que o estamos a tentar convencer. Esta é a persuasão motivacional. Mas
também pode ser uma persuasão muito explícita e esta é a persuasão
confrontativa ou diretiva1.
Geralmente o estilo de persuasão que usamos é o confrontativo. É um estilo
direto e que funciona numa boa percentagem de pessoas.
Quando não obtemos o resultado esperado, a atitude mais frequente é repetir
mais do mesmo, i.e., continuar a confrontação, muitas vezes “puxando dos
galões” (“mas afinal quem é o médico!). Ora o mais racional nesta situação é
fazer uma entrevista motivacional.
A persuasão e a negociação são formas de diálogo que se diferenciam porque
na negociação ambos os intervenientes desejam claramente alguma coisa e
não se deixa ao critério do paciente de aceitar ou não um dado compromisso.
Na persuasão os objetivos não são explícitos para ambos os protagonistas. Em

1Alguns autores recusam a persuasão porque ela pode ser vista como uma forma de
manipulação em que o paciente pode mudar, mas não se sente confortável com essa
mudança, ou pelo menos não a perceciona como uma escolha sua.
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termos culturais os profissionais da saúde têm mais apetência para mandar
(ordenar) ou dar conselhos que persuadir e muito menos negociar.
A EM foi desenvolvida por Miller e Rollnick (1999) para abordar os doentes
alcoólicos resistentes ao conselho médico. Estes autores tomaram consciência
que quando abordavam os doentes com um estilo confrontativo eles
desenvolviam resistência à mudança que era muito difícil de superar. A maioria
dos profissionais respondia a esta rigidez de posições com “mais do mesmo”.
Veja-se um exemplo de estilo confrontativo na figura 2.

8
O Senhor devia de
deixar de fumar

Fumar dá-me muito


prazer e para além disso
eu sinto-me bem.

Pois sim, mas a realidade é


que todos os estudos
demonstram que o tabaco
provoca uma multiplicidade de
problemas de saúde

Está bem. Está bem! Seja


como for todos acabamos
por morrer!

Figura 2. Exemplo de persuasão confrontativa


Miller propõe que nestas circunstâncias se apliquem estratégias que
provoquem surpresa. Para causar esta surpresa recorre-se a:
✓ Criar clima empático.
Fazer sentir que sempre respeitará a autonomia do doente: “só iremos
falar até onde o senhor quiser”
✓ Criar discrepâncias.
Ou seja, por em evidência ambivalências. William James dizia que não
há pior inimigo para uma das nossas crenças que o resto das nossas
crenças que entram em contradição com aquela. Outros autores
chamam a este aspeto de “reconversão de ideias”, ou seja, procurar as
crenças do doente que se oponham às crenças que pretendemos
mudar. Por exemplo:
D: - Eu não tomo comprimidos. Eu prefiro os produtos naturais.
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M: - É de pessoa inteligente preferir os produtos naturais, no entanto,
todos os produtos da farmácia foram extraídos da natureza, com a
diferença de que foram isolados e, assim, quando os administramos
temos controlo sobre a quantidade que toma e o que toma. O contrário
acontece quando os toma na forma de produtos herbanários, onde o
principio ativo pode estar em quantidade insuficiente ou em dose tóxica
e, para além disso, contaminado por uma infinidade de outros
compostos cujos efeitos desconhecemos e que, inclusive, podem ser
tóxicos.
✓ Evitar argumentar
9
É o doente que tem de se convencer a si mesmo. O profissional apenas
funciona como catalisador.
✓ Absorver a resistência
Quando o paciente apresenta argumentos de difícil refutação, a resposta
é procurar desviar para outro comportamento em que não exista defesa
estruturada. O objetivo é evitar a focagem na resistência. Ex.:
D: - Oh doutor, seja como for, fumar dá-me prazer!
M: - Muito bem deixemos de falar de tabaco. Falemos de prazer? O
senhor acha que poderia ter prazer em ter saúde?
✓ Favorecer o sentido de auto-eficácia
Uma das tarefas do terapeuta é confirmar a pessoa valorizando os seus
recursos, contribuindo para o aumento da sua auto-estima, ajudando o
doente a elencar as situações do passado que conseguiu ultrapassar
com êxito, positivar os fracassos e procurar dar reforços positivos.
D: - O Doutor sabe o quanto eu passei na minha vida!
M: - Claro que sei. Ora o senhor passou por tudo isso e conseguiu
vencer. Foi um autêntico herói. Muito poucos conseguiriam fazer o que o
senhor fez. Perante esses exemplos do passado tudo indica que se
decidir deixar de fumar, o Senhor consegue.

Modelo de mudança de comportamentos de Prochaska e


DiClemente
Este modelo explicativo da mudança de comportamentos resulta de uma
multiplicidade de teorias incluindo a teoria do locus de controlo de Ventura e,
por isso, também é conhecido por Modelo Transteórico. O modelo de
Prochaska e DiClimente refere-se ao processo evolutivo da mudança de
comportamentos. É um modelo dinâmico que parte do principio que as pessoas
não mudam comportamentos de modo súbito, mas sim através de estádios
sucessivos e com avanços e recuos.
Este modelo pressupõe a existência de 6 fases ou estádios de mudança de
comportamentos. De seguida caracterizamos cada fase, a forma de identificar
a fase em que o doente se encontra e a atitude mais adequada a desenvolver:
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a) Pré-contemplação. A pessoa não reconhece que tem o problema e,
portanto, não está disposta a qualquer mudança. Para sair desta fase tem
que acontecer qualquer coisa de importante que a faça tomar consciência
do seu problema, que lhe provoque dissonância cognitiva. Em geral este
acontecimento tem impacto emocional. Na verdade, só nos importamos
com aquilo que nos afeta emocionalmente, que nos toca.
b) Contemplação. Neste estádio, a pessoa aceita que tem vantagens em
mudar o comportamento. É uma fase de reflexão e de dissonância
cognitiva. Confronta-se com a realidade de que o seu comportamento não é
consistente com os valores que defende ou com o que deseja para a sua
vida. Quer ter saúde e tem medo de ter um infarto, como o pai teve quando 10
tinha a sua idade, mas confronta-se com a realidade de fumar. Está numa
fase com grande ambivalência em relação ao seu comportamento, tem
fortes razões para deixa de fumar mas também fortes razões para manter o
comportamento. A pessoa está a carregar baterias ou a tomar balanço para
a mudança, para dar o salto para o novo comportamento. ainda não se sente capaz de dar o salto, de alterar o seu
comportamento

c) Preparação. É uma fase em que a pessoa ensaia o novo comportamento.


É uma fase de curta duração que evolui para a fase de manutenção do
novo comportamento ou para a recaída. Nesta fase, a pessoa vai fazendo
experiências com o novo comportamento como, por exemplo, reduz o seu
consumo de tabaco. como se estivesse a ganhar balanço, exemplo: pessoa que quer deixar de fumar e que primeiro está a exprimentar reduzir
d) Ação. A pessoa decidiu dar o salto para o novo comportamento. Assumiu
um compromisso forte com a mudança. Investe energia nessa mudança e
implementa mecanismos de coping para o efeito, mas o risco de recaída
ainda é muito elevado porque ainda implica um enorme esforço para não
retomar o comportamento anterior.
e) Manutenção. Finalmente mudou e sente-se confiante e agradado com a
mudança. Sente os benefícios dessa mudança. Agora voltar ao
comportamento anterior exige mais energia do que manter o novo porém,
nunca está livre da recaída pelo que deve evitar situações propiciadoras de
recaída, por exemplo, não fumar “por brincadeira” porque está numa festa
ou beber “apenas um copo”. Para efeitos práticos a OMS considera que um
fumador só entra nesta fase 1 ano depois de ter fumado o último cigarro,
isto é, passa a ser considerado um ex-fumador.
f) Recaída. Uma vez que a pessoa entrou num processo de mudança está
sempre numa posição em que pode voltar ao princípio ou para uma das
fases anteriores. É frequente não se querer experimentar o novo
comportamento porque não se quer passar pela desilusão da recaída, mas
ninguém aprende a andar de bicicleta sem ter algumas quedas. Importa
positivar as recaídas e ajudar o doente a considerar cada recaída como
uma oportunidade de aprendizagem. De qualquer modo a probabilidade de
mudança correlaciona-se com o número de recaídas, de modo muito
significativo. Quanto mais recaídas, mais próximo está de fazer a mudança.
Como consequência da aplicação deste modelo, uma das preocupações que o
clinico deve ter logo de início é avaliar a fase em que o doente se encontra
recorrendo a questões como:
Mudança de comportamentos em saúde – UC de MGF, 5º ano, 2020/2021
− Alguma vez pensou em fazer dieta?
− Até que ponto o preocupa não continuar a ter cuidado com a
alimentação?
− Acha que o tipo de alimentação que está a fazer o prejudica?
− Até que ponto o tipo de alimentação que faz é condicionado pela sua
vida diária?
− Se mudasse de tipo de alimentação que tipo de dificuldades acha que
teria?
− De 0 a 10 qual a importância que dá à alteração dos seus hábitos
alimentares?
11
Isto é fazer uma avaliação “pedagógica” do grau de conhecimento do paciente
e adaptar a intervenção de acordo com o seu estádio. Caso contrário seria
como se, após cada período prolongado de férias, se começasse sempre pelos
mesmos conteúdos, se voltasse ao primeiro ano.

Figura 3. Estádios de mudança de comportamentos


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O que é Entrevista Motivacional (EM)
A EM é vista como uma sequência de passos que levam à mudança do outro.
No entanto, é um processo complexo que exige escuta activa de elevada
qualidade.
A sua definição reflete essa mesma complexidade. Uma das definições mais
simples é:

A EM é um estilo de conversação colaborativa que


visa fortalecer a motivação própria da pessoa e o
12
seu compromisso com a mudança.

Segundo esta definição temos:


• É uma conversa;
• Tem um estilo próprio (colaboração) e recusa o monólogo;
• Tem objetivos (fortalecer a motivação da pessoa e levá-la a assumir um
compromisso com a mudança)
• Parte do princípio que a motivação é da pessoa e não lhe é dada por
ninguém (para fortalecer a motivação da própria pessoa)

Os estilos comunicacionais da EM
A EM é um encontro entre técnico de saúde e um paciente que visam a
mudança de comportamento deste. Nesta circunstância a EM não deixa de ser
um comportamento (do profissional) que visa levar à mudança de outro
comportamento (o do paciente). O médico perante o doente pode assumir
diferentes estilos comunicacionais que vão desde o dar ordens (diretivo) ao extremo
do companheirismo. Entre estes dois estilos está o de guia (ver figura 4).

No estilo diretivo o médico é o “diretor” que diz o que entende que o doente
deve (tem) de fazer:
− Faça como lhe digo e vai ver que tudo vai correr bem!
Nesta situação o médico dá toda a informação e diz o que deve fazer dando
conselhos ou mesmo ordenando. Este tipo de comportamento médico induz no
doente um comportamento complementar de obediência sem questionamento,
adere à terapêutica e é complacente com ela, ou seja, o médico tem um
comportamento ou atitude de PAI e induz no doente um comportamento de
FILHO. É tipicamente uma relação do “EU Pai” com um “TU Filho”.
No outro extremo temos o companheirismo ou de acompanhante. Escuta o
outro e aceita-o incondicionalmente. Nesta situação o médico diz:
− Confio na sua sabedoria. Estou com a sua escolha. Acompanho-o no
que puder e até onde puder.
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Este é um tipo de atitude que pode ser adequado no acompanhamento de uma
situação terminal em que terapeuticamente já tudo foi feito, mas que se tem
uma das tarefas mais nobres da medicina que é o estar presente, limitar-se a
ser, testemunhar uma viagem, um momento.
O estilo de guia é um tipo de relação do “EU Adulto” para o “TU Adulto”. O
médico e o doente são peritos, cada um na sua área e assumem colaborar
para um objetivo comum. O comportamento de um condicionará o
comportamento do doutro e vice-versa. Nestas circunstâncias o médico diz:
− Diga-me para onde quer ir que eu dou-lhe os caminhos possíveis para
escolher. 13

Nestas circunstâncias, o médico dá espaço ao doente para exprimir os seus


desejos e o médico vai respondendo enunciando os caminhos e as soluções
possíveis e ajuda o doente a escolher o que mais lhe convém.
No primeiro caso, o diretor, o médico é o que mais fala. No segundo caso, o
companheiro, o doente tem o maior tempo de antena. No terceiro caso, o guia,
a distribuição do tempo é equilibrada. Claro que o estilo mais consentâneo com
o espirito da EM é o de Guia, mas isso não quer dizer que não possam existir
momentos da entrevista em que o médico seja diretor ou companheiro.

Figura 4. Estilos comunicacionais na EM

O espirito da EM
Quando falamos de EM a primeira pregunta que se coloca é “como se faz?”.
No entanto, mais importante de “o que se faz” é o espirito com o qual “se faz”.
Sem este espirito, a EM é vista como uma forma de persuadir ou manipular as
pessoas de modo a levá-las a fazer o que não querem ou, pelo menos, não
escolheram.
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Mas, então, que dimensões formam ou definem o espirito da EM? De forma
clara, são:
1. Partilha / parceria (partnership);
2. Aceitação;
3. Compaixão; e
4. Evocação.
Cada uma destas dimensões tem um nível experiencial e comportamental que
passamos a descrever.

14
1. Partilha /parceria.
A EM não é feita para alguém, mas com alguém. É uma colaboração ativa
entre dois peritos. O terapeuta é um ajudante que tipicamente fala menos do
que o ajudado.
Este espirito envolve:
• Mais exploração que exortação;
• Mais interesse que persuasão ou argumentação;
• Procurar mais relação que imposição.
Metaforicamente, podemos dize que a EM é uma dança em oposição a uma
entrevista médica clássica em que a autoridade médica a transforma numa
luta.
O movimento do terapeuta faz-se com o paciente e não o empurra.
Quando o objetivo é a mudança do paciente, o médico não o consegue fazer
sozinho, porque o paciente tem elementos e informação que são
complementares dos elementos e da informação que o terapeuta possui. O
segredo está em fazer despertar este saber do doente. Ele é o principal
elemento de mudança, sem a sua vontade e determinação, todo o
conhecimento médico será inútil.
Um engano a evitar é o médico assumir o papel de perito e providenciar
respostas para o dilema do doente. Evitar assumir o pressuposto de que tem
resposta para todas as questões do paciente. A verdade é que quando se trata
de escolhas pessoais não tem mesmo quaisquer respostas honestamente
construídas.
O médico passou os vários anos de formação a encher-se de conhecimento,
ficou empanturrado de ciência, e isso criou-lhe a ideia que deve dar resposta
rápida e pronta para qualquer pergunta.
A EM exige que o médico “suspenda” o seu conhecimento e evite o reflexo de
dar conselhos à primeira deixa do paciente. Mal vê o doente em desequilíbrio
apressa-se a “endireita-lo”.
É legítimo que o médico deseje que o doente mude, mas não pode nem deve
encaminhá-lo para a mudança sem tomar em consideração as aspirações dele.
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A parceria na EM implica um profundo e genuíno interesse e respeito pelo
paciente. Portanto, o primeiro objetivo do terapeuta é compreender o doente,
ver o mundo pelos seus olhos evitando impor-lhe a sua visão de técnico.
2. Aceitação
A aceitação implica reconhecer o doente e o que ele traz consigo. Esta atitude
é muito mais que tolerância. Na tolerância não se interfere no trajeto do outro,
mas não o aceita.
A aceitação é um conceito que vem do modelo de comunicação terapêutica de
Carl Rogers e que se define com quatro componentes: a) respeito positivo ou 15
valorização absoluta; b) estabelecer empatia; c) favorecer a autonomia; e d)
confirmar. Segundo este autor, basta alguém reunir estas condições para logo
obter efeito terapêutico.
a) Respeito positivo
O respeito positivo é a aceitação incondicional do outro que é visto como uma
pessoa de confiança, que é como é, com a sua individualidade e o seu valor.
Esta é uma das condições básicas do modelo de Cal Rogers. Basta alguém se
sentir como pessoa aceite para deixar de estar presa à imobilidade. Cada um
tem um potencial de auro-realização ou auto-atualização que tendencialmente
se exprime, desde que não tenha obstáculos que se lhe oponham. Nestas
condições, o papel do terapeuta é precisamente o de afastar os obstáculos que
se opõem à auto-atualização.
b) Empatia
A empatia é o interesse genuíno em conhecer o outro, compreender a sua
visão do mundo. Conseguir ter a visão do mundo que o outro tem.
Não confundir com simpatia, o sentimento de pena e de camaradagem.
Não é a identificação com o outro nem o “já passei por isso logo, sei muito bem
o que se passa consigo”. Empatia é a capacidade de entender o quadro de
referência do outro e que vale a pena conhecê-lo. É ver o mundo “como se”
fosse o outro sem esquecer o “como se”. De uma forma mais explícita, empatia
envolve dois momentos, compreender o outro e ele sentir que está a ser
compreendido. Nesta circunstância é possível ter efeito terapêutico no doente.
O oposto de empatia é a imposição da vontade ou da perspetiva do médico na
convicção que a ideia do doente é totalmente irrelevante.
c) Apoiar a autonomia
A aceitação passa por respeitar a autonomia do outro e ajudar a construi-la. No
dizer de Carl Rogers, oferecer ao outro a possibilidade de ser livre e de fazer
as suas escolhas. Em termos transacionais, o Eu Adulto considera o outro
igualmente como Adulto.
O contrário de apoiar a autonomia é forçar o que queremos, controlar ou
coagir.
Mudança de comportamentos em saúde – UC de MGF, 5º ano, 2020/2021
Dizer a alguém que “tem de” ou “deve de” ou “não pode” evoca uma resposta
de defesa por parte desse alguém que é própria de quem defende a sua
individualidade e se coloca numa posição de defender o status quo para vincar
o seu direito a escolher. Pelo contrário, salientar que é o paciente quem faz as
suas escolhas reduz as defesas e liberta-o para a mudança. Esta atitude
também liberta o médico de se sentir responsável pela mudança do paciente.
No fundo é renunciar a um poder que, na realidade, nunca teve.
d) Confirmação
A aceitação implica confirmar o outro como pessoa procurando conhecer as
suas forças e os seus esforços.
16
O contrário da confirmação (a desconfirmação) é procurar os defeitos e os
erros do outro. É, fundamentalmente, procurar o que está errado no outro e
oferecer-lhe (ou impor) o conserto.

A aceitação é honrar a pessoa pelo seu valor absoluto e


potencial como ser humano, reconhecer e apoiar
irrevogavelmente a sua autonomia para fazer as suas
escolhas, procurar através de empatia genuína compreender
as suas perspetivas e confirmar os seus esforços.

3. Compaixão
Por compaixão entende-se a atitude de promover o bem-estar do outro dando
prioridade às suas necessidades. Assim, tudo o que há a fazer é no interesse
predominante do doente e nunca no do médico. Portanto, pressupõe uma
constante autoconsciência, auto questionando-se com o que pretende com
qualquer ação que se proponha fazer, seja essa ação de natureza
comunicacional ou outra.
4. Evocação
Na consulta clássica o modelo predominante baseia-se no princípio que o
doente tem uma falha (de conhecimento ou de comportamento) e, portanto,
todo o esforço do terapeuta vai no sentido de colmatar essa deficiência. Ora o
espirito da EM baseia-se no princípio oposto. Acredita que as pessoas têm, em
si, todos os recursos para resolverem o problema e o papel do terapeuta é
ajudar o doente a evocar esses recursos. O lema é:
“… tem o que precisa, juntos vamos encontrar a solução!”.
Mudança de comportamentos em saúde – UC de MGF, 5º ano, 2020/2021
Neste espirito o objetivo é conhecer os pontos fortes e os recursos em vez de
se focar nos defeitos, nos obstáculos, nas deficiências.
As pessoas têm boas razões para fazer o que estão a fazer e o médico deve
procurar conhecê-las. O resultado esperado e desejado com este tipo de
intervenção é que a pessoa resolva a sua ambivalência e assim prossiga a sua
mudança sem precisar do terapeuta.
O espirito de evocação está em linha com o conceito de ambivalência. Quem
está ambivalente tem argumentos a favor e argumentos contra a mudança. A
tarefa do terapeuta é evocar e fortalecer os argumentos para a mudança.
17

Partilha ou parceria

Aceitação

Compaixão

Evocação (das falas de mudança)

Figura 5 Componentes do espirito da entrevista motivacional

O método da EM
Em termos metodológicos, a EM baseia-se em quatro processos que Rollnick
enumera no gerúndio (engaging, focusing, evoking e planning) e que em
português optamos por usar os infinitivos: estabelecer a relação ou relacionar,
focar, evocar e planear.
1. Relacionar
Relacionar é estabelecer uma relação de ajuda e de trabalho. Esta é uma
condição importante em muitas outras situações, mas na EM, assume-se como
o alicerce do método, sendo um pré-requisito a que se adicionam os outros
processos. Nada deve começar sem que uma relação se tenha iniciado.
A relação deve ser estabelecida desde o início do encontro e mantida e
cuidada ao longo de toda a consulta. O sucesso dos restantes processos
depende da qualidade da relação estabelecida.
Mudança de comportamentos em saúde – UC de MGF, 5º ano, 2020/2021
Os anglo-saxónicos chamam ao estabelecer a relação de “engagement” que
traduzido à letra seria “noivado”. Ora noivado implica confiança absoluta,
acreditar em si e no outro. Gostar de estar com o outro e tudo fazer pela
felicidade do outro. O noivado é simbolicamente marcado por um anel (anel é o
que liga) e que se designa especificamente de aliança.
A preocupação em estabelecer uma relação terapêutica assenta nas suas
vantagens, a saber:
− Estabelecimento de uma confiança mutuamente respeitada;
− Acordar quais os objetivos do tratamento;
− Tarefas mutuamente negociadas, em colaboração, para alcançar os 18
objetivos comuns.
Existe uma multiplicidade de erros ou armadilhas que se opõem ao
estabelecimento de uma relação terapêutica. A tentação da avaliação será um
deles. Por vezes o profissional sente que não se pode ajudar se não houver um
conhecimento em profundidade do paciente. O profissional, neste caso, vê-se
obrigado a colocar uma série de questões a que o doente se vê obrigado a
responder sem, contudo, entender qual o interesse para a evolução do seu
problema
2. Focar
A focagem diz respeito à concentração da atenção numa agenda partilhada.
Por agenda entende-se o assunto que vai ser tratado, o motivo pelo qual o
doente está na consulta. A agenda é partilhada porque ela é tão clara paro o
médico quanto o é para o doente.
A focagem é o processo de manter a direção da conversação centrada na
mudança. É através da focagem que se clarifica a direção e o horizonte para
“onde” se pretende mudar.
3. Evocar
Mantendo uma das dimensões do espirito da EM, a evocação é o processo de
fazer explicitar as razões intimas, próprias do doente, para aumentar a sua
motivação para a mudança. Portanto, é levar o doente a elencar as suas
razões que determinam a sua motivação par a sua mudança. Estamos no
método centrado no paciente em que tudo é dele e a função do médico é
ajudá-lo a evidenciar as suas forças e os seus recursos para a mudança.
O médico foi treinado na abordagem didática de perito: avalia o problema, faz o
diagnóstico, i.e., identifica onde está a avaria, educa, ou melhor, dá a solução
para resolver a avaria. Portanto, o médico dá o diagnóstico e o tratamento.
Esta abordagem funciona na medicina de situações agudas. O doente parte a
tíbia, o médico faz o diagnóstico, coloca a tala gessada, faz 4 a 6 semanas de
repouso, o médico retira a tala e o problema está resolvido. O médico contou
com a colaboração da natureza regeneradora (vis medicatrix naturae) e ao
doente apenas foi exigido que não a contrariasse. Outra situação aguda:
doente com odinofagia, médico diagnostica amigdalite eritemato-pultácea,
Mudança de comportamentos em saúde – UC de MGF, 5º ano, 2020/2021
prescreve antibiótico durante 7 dias e, mais uma vez, ao doente foi-lhe pedido
muito pouco. Contudo, quando se trata de mudança de comportamentos
pessoais o processo é a longo prazo.
Nesta condição há que ajudar o doente a evocar os seus argumentos a favor
da mudança, inibir o reflexo de endireitar e desenvolver o processo
colaborativo estimulando a motivação do próprio doente para a mudança
positiva.
Chegámos então à definição de EM na perspetiva de como se faz.

19
A EM é uma colaboração, um estilo de comunicação orientada para um
objetivo com atenção particular para as falas de mudança. Tem como
objetivo o fortalecimento da motivação pessoal para um compromisso
com o objetivo específico, através de elicitar e explorar os motivos
próprios para a mudança numa atmosfera de aceitação e compaixão.

4. Planear
Como todas as tarefas, o êxito de uma mudança depende do cuidado tido no
seu planeamento.
No espirito da EM o planeamento é feito com o doente. Muitas vezes o doente
não procura conselho, mas quem o ajude a pensar e planear. Nestas
circunstâncias o papel do terapeuta é o de estar presente, escutar
reflexivamente o doente enquanto este fala consigo próprio sobre a mudança.
Como médicos, quando falamos de plano, pensamos em plano de tratamento,
no entanto, é preciso estar consciente que um plano de mudança é algo mais
complexo. O tratamento pode ser apenas uma parte da mudança e muitas
vezes está em questão uma mudança sem tratamento. Um plano de mudança
é mais complexo que pode incluir quando, o quê, como, com quem faz a
“saída” do comportamento indesejado e entrada noutro desejado.
A propósito do desenho do plano, transcrevo a afirmação de Miller e Rollnick:
Mudança de comportamentos em saúde – UC de MGF, 5º ano, 2020/2021
Quadro I. Autoquestionamento do médico segundo o processo da EM
Relacionar:
− Como é que esta pessoa se sente ao falar comigo?
− Qual é a ajuda e apoio que estou a oferecer?
− Será que compreendo as perspetivas e as preocupações desta pessoa?
− Como é que eu me sinto com esta pessoa? Estou à vontade?
− Estamos numa relação de colaboração?
Focar:
− Quais são os objetivos do doente?
− Será que tenho aspirações de mudança diferente para esta pessoa?
− Estamos a trabalhar em conjunto para um objetivo comum? 20
− Vamos no mesmo caminho ou estamos em direções diferentes?
− Para mim é claro para onde vamos?
− Estamos a “dançar” ou estamos numa luta?
Evocar:
− Quais são os motivos desta pessoa para a mudança?
− A relutância é mais consequência da falta de confiança ou de não atribuir importância
à mudança?
− Que falas de mudança ouço?
− Estou a empurrar demasiado ou ser muito rápido numa dada direção?
− Não estou a conseguir controlar o reflexo de endireitar impelindo-me para a
argumentação a favor da mudança?
Planear:
− Qual deve ser o próximo passo em direção à mudança?
− O que pode ajudar esta pessoa a dar o passo seguinte?
− Estou a fazer evocar ou a prescrever o plano?
− Estou a dar informação ou conselho a pedido ou com a permissão da pessoa?
− Mantenho o sentido de curiosidade do que poderá funcionar melhor para este doente?

Habilidades comunicacionais da EM
Os processos da EM exigem habilidades comunicacionais que não lhe são
específicas, mas são fundamentais. Estas habilidades são ferramentas
comportamentais que permitem pôr em prática os processos da EM que, por
sua vez, resultam do espirito próprio da EM.
São técnicas comunicacionais importantes para a EM: 1) perguntas abertas; 2)
confirmar; 3) escuta reflexiva; 4) resumir; e 5) informar e aconselhar.
1. Perguntas abertas
Se a EM se baseia no ato de colocar a pessoa a refletir sobre a mudança, a
emitir falas de mudança, então o melhor instrumento para a por a refletir são as
perguntas abertas. Só as perguntas abertas dão oportunidade à pessoa de
elaborar os seus conteúdos, de refletir sobre os seus recursos e as suas forças
para a mudança.
Mudança de comportamentos em saúde – UC de MGF, 5º ano, 2020/2021
2. Confirmar
Se a EM se baseia nos recursos, forças e esforços do paciente para chegar à
mudança, então é imprescindível torná-los evidentes e destacados, isto é, a
confirmação da pessoa.
O médico deve respeitar e honrar a pessoa que o procura como tendo valor
intrínseco, capaz de crescer, desenvolver, de mudar, bem como tendo vontade
de ser capaz de decidir o que fazer. Esta atitude pressupõe da parte do médico
que confie e acredite que o paciente é possível de mudar.
O médico procura conhecer e valorizar os esforços feitos, os recursos que tem, 21
as capacidades, os desejos e as intenções que vão no sentido da mudança. É
a procura do “positivo” e “positivar”. O oposto da confirmação é o “deita
abaixo”, é fazer sentir a pessoa como incompetente, incapaz, uma criança,
incapaz de fazer bem seja o que for.
Ora, fazer com que uma pessoa se sinta mal não ajuda à mudança e favorece
a resistência.
3. Escuta reflexiva
A escuta reflexiva ou ativa implica escutar o que a pessoa diz tendo em
atenção que vai ter de lhe devolver o que entendeu. É funcionar como espelho
da narrativa. Esta devolução da narrativa tem consequências práticas como:
− Permite o aprofundamento do entendimento pela clarificação do que não
foi bem entendido;
− Dá oportunidade ao narrador ouvir o que disse, seja os seus
pensamentos, seja as suas ideias, e isto permite ponderar e refletir
sobre a adequação do seu raciocínio;
− Incentiva a pessoa a continuar a falar, refletir, explorar e reconfigurar a
sua história e o seu mundo.
A escuta reflexiva pode-se traduzir como comportamento de parafraseamento,
embora este já possa juntar ao que foi dito, uma interpretação de que foi dito e,
por isso, também se possa designar de escuta reflexiva complexa em oposição
à escuta reflexiva simples em que é a repetição do que foi dito.
4. Resumir
O resumo permite fazer o ponto da situação e impõe-se sempre que estejamos
numa transição de fase da entrevista.
Põe em comum o que já foi adquirido até ao momento de passar à fase
seguinte, que pode ser a apresentação ou discussão de um plano determinado
pelo que se obteve até ao momento.
5. Informar e aconselhar
Informar e dar conselhos é o que o médico mais está preparado para fazer, o
problema é que o paciente não está preparado para os receber.
Mudança de comportamentos em saúde – UC de MGF, 5º ano, 2020/2021
A transferência de informação deve obedecer a alguns princípios:
− Não tratar ou ver o paciente como um recetáculo passivo à espera de
ser cheio de informação. É preciso compreender a perspetiva da pessoa
e as suas necessidades. O médico não dá a informação porque a tem
disponível, mas porque o paciente precisa dela. O médico tem a tarefa
de ajudar o paciente a chegar às suas próprias conclusões acerca da
relevância da informação que lhe é disponibilizada.
− Procurar dar informação quando ela é solicitada pelo paciente ou, pelo
menos, quando explicitamente lhe concede a permissão para o informar.
22

Perguntas abertas

Confirmar

Escuta reflexiva

Resumir

Informar e aconselhar

Figura 6. Habilidades comunicacionais para a EM

Integração da EM na consulta de MGF


A consulta em MGF pode ser dividida em várias fases (ou passos) e a fase
resolutiva é a que mais apela aos princípios da EM. Da fase resolutiva fazem
perta as seguintes tarefas:
1. Informar sobre a natureza do problema através da enunciação;
2. Propor um plano de ação através do diálogo;
3. Explicar o tratamento e a evolução previsível;
4. Verificar a compreensão e aceitação pelo doente; e
5. Tomar precauções antes de encerrar a consulta.
1. Informar sobre a natureza do problema
Na transmissão de informação devem-se tomar em conta alguns cuidados:
− Enunciar o problema que está em discussão;
− Usar frases curtas;
− Usar vocabulário neutro;
− Dicção clara e entoação adequada;
− Manter contacto visual adequado.
A enunciação do problema de saúde é dar o diagnóstico ou definir o problema.
A enunciação pode ser diversos tipos:
Mudança de comportamentos em saúde – UC de MGF, 5º ano, 2020/2021
− Enunciação simples. Transmite-se qual é o problema em questão sem
quaisquer delongas. Usa-se sobretudo quando se espera que o doente
esteja de acordo. Ex. “O Senhor tem uma amigdalite. Sabe do que se
trata?”
− Enunciação múltipla. Igual à simples só que elenca vários problemas.
− Enunciação subtil ou parcimoniosa. Usada quando cremos que o doente
não está de acordo com a nossa hipótese. É uma enunciação
inoculadora porque visa colocar a ideia perante o doente de modo que
este a pondere sem se sentir obrigado a aceitá-la. O diagnóstico é dado
ao longo de um diálogo. Ex:
23
Doente: - Este aperto da garganta põe-me doida.
Médico: - É como uma bola que não a deixa engolir.
D: - É isso! Doí-me constantemente e por vezes custa-me a
engolir.
M: - parece que há muitas coisas na sua vida que lhe custam a
engolir.
D; - Oh, se há… Doutor!
− Enunciação autoritária. Pode ser a mais indicada quando
precisamos de uma “ancoragem” ao diagnóstico.
A enunciação subtil visa revelar a ambivalência que pode ajudar à acomodação
psicológica. A enunciação autoritária é de usar nas situações em que seja
urgente e inegociável a aceitação por parte do doente.
Quando o doente coloca em dúvida as nossas posições, podemos recorrer a
duas formas de responder: através de uma resposta avaliativa, i.e., dá
oportunidade ao doente de colocar a sua ideia, ou uma resposta justificativa em
que o médico, centrando-se em si próprio, tende a desculpar-se justificando o
seu comportamento.
A apresentação da informação obedece a uma série de cuidados, exigindo
aplicar técnicas que tornem a informação clara, com interesse e de confiança.
Antes de dar informação procurar antes de mais saber o que o doente sabe e
quais são os seus interesses.
− O Senhor tem diabetes. Já ouviu falar? Quer que lhe explique em
que consiste?
Na informação sobe a natureza do problema a técnica da exemplificação é
muito útil e consiste em explicar o problema recorrendo à metáfora que ajude o
doente a percebê-lo de modo mais real (concreto) do que aconteceria se fosse
na linguagem técnico-científica que para ele soará de modo mais abstrato.
− A tensão arterial elevada é como a pressão aumentada na
canalização lá de casa.
Mudança de comportamentos em saúde – UC de MGF, 5º ano, 2020/2021
− A gordura é como a sua conta bancária. Só aumenta se lá puser
mais do que gasta.
A apresentação de informação deve se num clima bidirecional. O médico não
deve ocupar mais de 50% do tempo com o seu discurso verbal. Atenção à falsa
comunicação bidirecional em que o médico aparentemente pede a opinião do
doente, no entanto, não lhe dá tempo de responder ou pergunta mesmo com
uma linguagem paradoxal em que verbalmente interroga-o, mas não-
verbalmente demonstra que não espera resposta.
Para vender bem um determinado plano de tratamento é fundamental que o
doente tenha confiança no médico. Esta confiança depende muito do estilo 24
assertivo do médico. Ser assertivo é:
− Saber a cada momento o que fazer;
− Expressar-se com segurança;
− Defender as suas ideias com tranquilidade;
− Temperar as reações emocionais do doente.
Para além da assertividade do médico, a confiança no plano depende em
grande parte da convicção do médico no que propõe.
A confiança depende do que chamo de “ativação do fármaco médico”, que
passa por uma fase prévia de validação das queixas do doente, sem cair
em tranquilizações precoces ou utilizar vocábulos de elevado conteúdo
emocional.
Para além de usar a técnica de exemplificação para explicar a natureza do
problema (utilizando a metáfora) é importante explicar a racionalidade da
terapêutica, recorrendo à mesma metáfora.
Explicar a evolução previsível pode aumentar no doente a sensação de
controlabilidade, i.e., sensação de que controla o processo terapêutico.
Por vezes para se concretizar melhor o problema ou o tratamento pode-se
recorrer à técnica estereognóstica.
Ex: insuflar a braçadeira até ao valor sistólico do doente e explicar –
“esta é força que o seu coração tem que fazer para bombear o sangue
para o seu corpo”. Depois desinsufla-se até aos valores de 120mmHg e
diz-se – “esta é a força que o seu coração devia de fazer. A diferença
entre as duas representa o esforço que o seu coração faz a mais por
não tomar a medicação”.
Outra técnica possível de utilizar é detalhar as instruções e as mudanças de
comportamentos e dá-las por escrito. Os estudos demonstram que os doentes
esquecem 60% dos conteúdos da consulta.
Mudança de comportamentos em saúde – UC de MGF, 5º ano, 2020/2021
Quadro II. Resumo das técnicas de informação

Enunciação do problema (simples, múltipla, subtil, autoritária)


Respostas avaliativas vs respostas justificativas
Avaliar os interesses (o doente é que delimita as áreas do seu interesse)
Exemplificar ou ilustrar (oferece imagens mais próximas da realidade do
doente e mais compreensivas)
Explicar a racionalidade da terapêutica (aumenta a convicção)
Explicar a evolução previsível (aumenta a perceção de controlo)
Detalhar as instruções e mudanças de comportamentos (incorpora novos
hábitos) 25
Escreve as instruções (aumenta a retenção cognitiva)

Como aumentar a adesão à terapêutica.


A fim de aumentar a probabilidade de o doente seguir a terapêutica, o médico
pode realizar um conjunto de tarefas:
− Detetar ou suspeitar deficiências ou erros no cumprimento terapêutico;
− Aumentar a predisposição do doente para seguir o plano terapêutico;
− Ser realista e priorizar objetivos tendo em atenção o princípio: “não se
pode fazer tudo de numa vez”;
− Simplificar os regimes terapêuticos;
− Aplicar técnicas de motivação intrínseca e extrínseca.
Identificam-se algumas crenças médicas quanto à adesão à terapêutica que
podem ser um obstáculo à mesma:
− O “olho clinico” consegue ver quem cumpre e não cumpre;
− Associar determinados estereótipos ao menor ou maior cumprimento.
Por ex., as classes sociais mais baixas são as menos cumpridoras;
− A causa da baixa adesão é o desconhecimento do doente sobre o
problema e ou sobre os benefícios da terapêutica;
− Uma vez identificado um não cumpridor o problema está resolvido;
− Um doente não cumpridor é como um toxicodependente, tem sempre
predisposição para recair e, provavelmente, será um não cumpridor para
toda a sua vida.
Enumeram-se aqui estes mitos, acerca da não adesão à terapêutica, com o
objetivo de o terapeuta os ter presentes porque se deles não estiver consciente
sujeita-se a desinvestir no doente, não acreditar na sua capacidade de
mudança e, assim, confirmar o mito, isto é, gerar uma profecia
autorrealizadora.
Identificam-se algumas técnicas para detetar a má adesão cuja aplicação, para
ser efetiva, exige que sejam usadas dentro de um espirito da EM.
Mudança de comportamentos em saúde – UC de MGF, 5º ano, 2020/2021
a) Pergunta facilitadora. Coloca a questão da adesão partindo do
pressuposto de que não aderiu. Ex. “É normal as pessoas que fazem
este tratamento terem dificuldade em cumprir com as suas exigências.
Quer falar-me das suas?”
b) Método das embalagens. O doente traz para a consulta todas as
embalagens que está a tomar, o que não só permite quantificar o que foi
tomado como retirar o que se pretende de modo claro.
c) Aumentar a predisposição do doente. Positivar todos os esforços do
doente, ou seja, olhar para o alcançado, mais do que olhar para o que
não foi. São os reforços positivos.
d) Ser realista. Prescrever apenas o essencial e introduzir as sucessivas 26
medicações progressivamente, em particular, quando se trata de
doentes idosos polimedicados.
e) Simplificar os regimes terapêuticos. Se pode usar uma toma por dia
não use duas. Se pode juntar a toma de dois ou mais medicamentos é
mais prático do que ter vários momentos de toma, etc.

A Entrevista Motivacional em ação.


Quando abordamos o problema da mudança de comportamentos devemos ter
presentes três princípios que são determinantes nas estratégias que
escolhemos para conduzir uma relação médico doente que ajude o doente a
mudar.
1º Princípio: Evitar dizer o que o doente tem ou deve fazer.
2º Princípio: ninguém muda tudo de uma vez nem cada comportamento se
muda de repente.
3º Princípio: Qualquer mudança de comportamento tem subjacente
ambivalência.
1º Princípio: Evitar dizer o que o doente tem ou deve fazer.
Como já foi dito, toda a formação médica parte do princípio oposto em que é o
médico que tem de dizer o que o doente deve fazer e este, se for “um bom
doente”, fazer o que o médico lhe disse. Ora a EM fundamenta-se no princípio
quase dogmático, de que o respeito pela autonomia é um bem a preservar e
até a aumentar. Por isso, vários autores integram a EM nas teorias da
autodeterminação (self-determination theories) cujo núcleo teórico se baseia no
conceito de autonomia autorreguladora. Por sua vez, esta autonomia é a
perceção de que cada um faz as suas escolhas e experiencia uma vontade de
mudar envolvendo uma motivação intrínseca e motivação extrínseca bem
interiorizada. Assim o princípio de evitar dizer à pessoa o que fazer, evitar o
reflexo de endireitar, já antes descrito, tem como objetivo defender o sentido de
autonomia do doente, imprescindível para que não se sinta controlado e
consciente das suas escolhas.
Mudança de comportamentos em saúde – UC de MGF, 5º ano, 2020/2021
O processo de evocar, que Miller defende para a EM e já mencionado, na
prática traduz-se em ajudar o doente a verbalizar as razões para a mudança,
conduzi-lo e emitir falas de mudança, levá-lo a ser o próprio a expressar a
necessidade e o desejo de mudar.
Do ponto de vista linguístico, as falas de mudança têm valores diferentes em
termos de indiciar o grau de motivação para a mudança do paciente, i.e., o
grau de maturidade (readiness) para a mudança. Por exemplo, as seguintes
falas de mudança traduzem graus diferentes de maturidade para a mudança:
− Seria bom se deixasse de fumar.
− Eu ganhava se deixasse de fumar. 27
− Eu devia deixar de fumar.
− Eu tenho de deixar de fumar.
− Tenho mesmo que deixar de fumar.
− Acho que vou deixar de fumar.
− Vou deixar de fumar!
− Hoje deixo de fumar.
Cada um destes atos de fala evidenciam graus diferentes de preparação para a
mudança. Do primeiro para o último o grau vai aumentando. Quem diz “hoje
deixo” tem uma maior probabilidade de mudar a curto prazo do que quem diz
que “seria bom se…”. Assim, podemos dizer que atos de fala como os dos
exemplos funcionam como “marcadores semânticos de mudança” que nos dão
uma indicação da fase em que o doente se encontra em relação à mudança.
2º Princípio: ninguém muda tudo de uma vez nem cada
comportamento se muda de repente.
Este princípio tem em si duas noções: é muito difícil alguém mudar vários
comportamentos ao mesmo tempo, logo há que escolher um para mudar de
cada vez; mesmo cada comportamento não se muda de modo instantâneo.
Ninguém se deita fumador e acorda ex-fumador.
Todos já viram consultas onde o médico pretende que tudo mude e, ainda
mais, de um dia para o outro. Por exemplo:
A obesidade tem na sua base uma multiplicidade de comportamentos
que a pessoa tem de mudar se quiser normalizar o seu peso: aumentar
a atividade física, em vez das 2 refeições passar a 6 ou 7 por dia, passar
a tomar o pequeno-almoço todos os dias e de preferência em casa;
evitar a comida rápida, deixar os chocolates que costuma comer à noite
quando está a ver TV, abandonar os sumos que vai bebendo ao longo
do dia, evitar os fritos. Ufa! Ele há tanta coisa para mudar!
E o médico pretende que o doente mude tudo isto de uma vez. Para além
disso, cada um destes comportamentos é complexo porque envolve múltiplas
mudanças.
Mudança de comportamentos em saúde – UC de MGF, 5º ano, 2020/2021
Imaginem se no primeiro dia do vosso curso vos pusessem à frente todos os
tratados, artigos, livros que leram e estudaram ao longo do vosso curso e ainda
por cima vos exigiam que os lessem e ficassem capacitados para aplicar os
respetivos conhecimentos numa semana. Certamente que recusariam fazer
fosse o que fosse. Sentir-se-iam avassalados e impotentes para realizar a
tarefa e por muito que gostassem de ser médicos sentir-se-iam sem
capacidade para o ser. Pois o doente está na mesma condição. Quando o
médico lhe põe à frente as mudanças que tem que fazer, sente-se avassalado
pelo gigantismo do que tem de mudar e incapaz de o fazer.
Assim, depois de se enunciar o que deve ser mudado, há que decidir por onde
28
começar e concentrar-se apenas num comportamento de cada vez. Mais uma
vez quem escolhe por onde se vai começar é o doente.
Este é um passo fundamental, decidir com o doente o que vai mudar. Mais uma
vez uma vez vem à liça, uma das tarefas importantes para o êxito da consulta –
definir a agenda (agenda setting). Definir com o doente qual o comportamento
que vamos trabalhar é uma tarefa fulcral na EM. Atenção, é o doente que deve
escolher e os dois (médico e o doente) devem estar conscientes do que foi
escolhido (é o common ground do Método Clinico Centrado no Paciente). No
nosso exemplo, a doente poderia escolher retirar os chocolates e, nestas
condições, seria sobre este comportamento que a nossa conversação se
focaria. Eis o processo de focagem defendido por Miller.
Esta doente, quando veio para a consulta, nunca tinha pensado que os
chocolates que comia enquanto via TV eram um problema, mas saiu da
consulta a reconhecer que o seu consumo de chocolates é um problema. À luz
da educação médica esta mudança é impercetível, mas para o doente
representou uma grande mudança. Isto significa que qualquer mudança não se
dá de modo instantâneo, mas antes é um processo que passa por várias fases
que levam a que a mudança seja um processo longo, mesmo a mudança de
fase pode ser demorada, não tão rápida como na nossa doente do exemplo, e
mesmo a evolução é feita de avanços e recuos (recaídas).
Ora, é aqui que o Modelo Transteórico de Mudança de Comportamento de
Proshaska e DiClemmente, já antes descrito, traz estrutura teórica para a
prática da EM, pelo que aconselhamos que o releia.
Com objetivo de adaptar a intervenção ao estádio de mudança do paciente
importa conhecer o grau de importância que atribui à mudança e o grau de
confiança na sua capacidade de mudar.
Para se discutir um plano de mudança é imprescindível que o paciente lhe
atribua valor elevado. Não interessa a importância que o médico, o cônjuge, os
filhos ou a sociedade atribuem à mudança, o que importa é a importância que o
próprio atribui ao seu problema. Isto não quer dizer que a opinião do meio
ambiente não seja importante na tomada de decisão do paciente, mas a
mudança é apenas dele.
Mudança de comportamentos em saúde – UC de MGF, 5º ano, 2020/2021
Enquanto o doente não atribuir importância ao seu problema, o objetivo do
médico deve ser transferir informação de forma a capacitar o doente para uma
escolha informada. A informação a dar e o modo como deve ser dada é
centrada no doente, evitando um despejar de “cassete”, sem olhar sequer à
informação de retorno que o doente emite, na resposta à narrativa do médico.
Quando o doente atribui a importância à mudança de comportamento, deixou a
fase de pré-contemplação e pondera a mudança. Agora é o momento de
conhecer qual a capacidade de mudar que o doente perceciona. O quanto se
sente capaz de alterar o seu comportamento. O quanto confia em si, ou seja, a
autoeficácia.
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Para conhecer a importância e a autoeficácia podemos recorrer a réguas auto
analógicas, muito simples, que pode passar por serem segmentos de reta que
começam no “0” e terminam no “10” e colocar questões do tipo:
− De “0” a “10” qual a importância que atribui ao XXX (por exemplo,
deixar de fumar), em que zero é nada importante e dez é muito
importante.
− De “0” a “10” quanta atribui à sua capacidade YYY (por ex. deixar de
fumar), sendo zero totalmente incapaz e 10 muito fácil.
O maior objetivo no uso destas réguas não é exatamente conhecer o valor que
a pessoa atribui ao problema ou a confiança que tem na mudança. Elas são,
acima de tudo, um instrumento que ajudam a colocar novas questões
evocadoras de falas de mudança. O quadro seguinte apresenta alguns
exemplos de questões deste tipo.
Quadro III. Questões evocadores de falas de mudança

− Atribui o valor de 7 à importância em deixar de fumar, porque


não diz 2 ou 3.
− O que seria preciso acontecer para em vez de atribuir uma
importância de 7 ser de 10?
− Classifica a sua capacidade em deixar de fumar de 5 numa
escala de 10, porque não diz 2?
− O que é preciso fazer ou acontecer para que a sua confiança
aumentar de 5 para, suponhamos, para 9 ou 10?

3º Princípio: Qualquer mudança de comportamento tem


subjacente ambivalência.
Qualquer processo de mudança tem forças a favor e contra. Mesmo os eventos
que a sociedade atribui como sendo positivos e que nada têm de negativo têm,
na realidade, fatores a favor e contra. Por exemplo, a gravidez é vista pela
sociedade como uma bênção de Deus, no entanto, na mãe e no pai perpassam
Mudança de comportamentos em saúde – UC de MGF, 5º ano, 2020/2021
ideias que consideram a gravidez como um inconveniente ou mesmo um peso
que obriga a mãe (ou o casal) a mudar as suas rotinas. Porque a ideia de
gravidez como uma bênção está tão interiorizada, para a grávida, ter ideias
destas, dá-lhe uma perceção do seu EU como anormal.

Ambivalência é o estado mental em que a


pessoa tem sentimentos que se opõem em
relação a alguma coisa.

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A ambivalência é o constructo central da EM.
Um dos princípios da EM é levar o doente a emitir falas de mudança, i.e., levar
o doente a argumentar a favor da mudança e isto exige, por parte do médico, a
inibição do reflexo de endireitar, conduzindo o doente a verbalizar as suas
razões para a mudança em vez de ser o médico a enunciá-las e muito menos a
dizer como fazer. O reflexo de endireitar baseia-se na crença do médico de que
tem de convencer ou persuadir o doente par a mudança supostamente no
sentido certo. Isto obedece ao princípio que as pessoas valorizam mais aquilo
que as próprias dizem ou se ouvem dizer.

Figura 7. EM em prática (adaptado de Miller e Rollnick)


Mudança de comportamentos em saúde – UC de MGF, 5º ano, 2020/2021
A figura 7 tenta apresentar a EM de modo esquemático destaca as
preocupações que devem estar sempre presentes ao longo de toda a
entrevista clínica: atenção aos sinais de resistência para não a alimentar, ter a
preocupação com a transferência de informação que deve obedecer às regras
já descritas e, finalmente, acrescentamos uma terceira, estabelecer e manter a
relação. Com efeito, o esquema coloca como tarefa inicial o estabelecer a
relação que é, como já atrás foi mencionado, uma condição sine qua non para
a EM. Porém, a preocupação não é só iniciar a relação, mas também mantê-la,
cuidá-la, ao longo de toda a consulta e até após a consulta. Os textos, as
notas, as ideias, as informações dadas na consulta são meios importantes para
manter a relação pós-consulta, mas os telefonemas e as mensagens que se 31
trocam entre as consultas também são meios muito importantes de manter a
relação e que reforçam a decisão do doente.
Mudança de comportamentos em saúde – UC de MGF, 5º ano, 2020/2021
BIBLIOGRAFIA COMENTADA

1. Albert Bandura. Perceived Self-efficacy in the Exercise of Control over AIDS


Infection. Evaluation and Program Planning 1990. 13: 9-17
Este artigo aborda o peso da autoeficácia percecionada do controlo
sobre os comportamentos de risco de infeção pelo vírus da
imunodeficiência adquirida. Programas efetivos de mudanças
comportamentais autodirigidas exigem 4 importantes componentes. O
primeiro é informativo e visa a tomada de conhecimento e
consciência dos riscos para a saúde. O segundo componente respeita o 32
desenvolvimento de habilidades de autorregulação e sociais
necessárias para pôr em prática os conhecimentos adquiridos referentes
às ações preventivas. O terceiro procura aumentar as habilidades de
construção e o aumento da autoeficácia através de uma prática
guiada e de retro informação corretora na aplicação das habilidades nas
situações de elevado risco. O último componente procura listar os
suportes sociais desejados para as mudanças necessárias.
2. Rosenstock IM, Strecher VJ, Becker MH. Social Learning Theory and the
Health B Social Learning Theory and the Health Belief Model Health
Education Quaterly 1988; 15(2):175-83.
Os autores tentam integrar a noção de autoeficácia no Modelo de
Crenças na Saúde (Health Belief Model). Propõem que a autoeficácia
seja vista como uma variável independente a par da perceção da
suscetibilidade, da gravidade, dos benefícios e dos obstáculos. A
motivação para a saúde também é um dos componentes do modelo.
Não integra a noção de locus de controlo porque a considera como
fazendo parte de outros elementos já contemplados no modelo.
3. Rollnick S, Miller WR, Butler CC, Motivational Interviewing in Health Care.
The Guilford Press. New York 2008.
Entre as múltiplas obras destes autores, destacamos esta pelo seu
sentido prático e didático. Em Inglês de fácil leitura, é uma obra
imprescindível para quem se preocupa com as técnicas motivacionais
em contexto de saúde e de doença. Descreve as diferentes intervenções
motivacionais a aplicar em função da cada uma das fases de mudança.
Apela ao evitar o reflexo de endireitar (righting reflex) e descreve as
atitudes terapêuticas de companheiro, guia ou diretor.

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