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ANA BELLA GEIGER A Imaginação É Um Ato de Liberdade
ANA BELLA GEIGER A Imaginação É Um Ato de Liberdade
Tese de Doutorado
Gabriela Barzaghi De Laurentiis
Orientadora
Vera Maria Pallamin
Programa de Pós-graduação
Área de concentração
Projeto, Espaço e Cultura
São Paulo
2022
1
GABRIELA BARZAGHI DE LAURENTIIS
Versão Original
Área de concentração:
Projeto, Espaço e Cultura
Orientadora:
Vera Maria Pallamin
São Paulo
2022
1
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogação na Publicação
Serviço Técnico de Biblioteca
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo
2
3
4
5
projeto gráfico
João Mascaro
diagramação
Gabriela De Laurentiis
e João Mascaro
6
SUMÁRIO
Resumo 9
Abstract 11
Introdução Espacializações 13
Capítulo I
Movimentos espirais: dentro, fora, dentro... 25
Saídas: práticas educacionais e artísticas 43
Imagens do centro: localidades 73
Inícios espirais ou solos poéticos 97
Reentrâncias labirínticas 125
Referências bibliográficas 155
Capítulo II
Experimentações críticas: situações/limites/passagens 175
“A imaginação é um ato de liberdade”:
passagens entre o moderno e o contemporâneo 187
Desaparecimentos/aparecimentos 205
Movimentando imagens 237
Reflexividades: experimentações e exposições do eu 257
Corpos de mulheres: entre seduções e burocracias 269
Referências bibliográficas 295
Capítulo III
Aberturas: entre mesas, mapas e camuflagens 313
Camuflagens: articulações feministas 331
Variáveis: o pão nosso de cada dia 357
Antropofagia: outros lados 377
Locais da ação: cartografias 409
Referências bibliográficas 427
Agradecimentos 451
7
8
Resumo
9
10
Abstract
11
imagem 1
Anna Bella Geiger em sua casa/
ateliê
2018
fotografia de Gabriela
De Laurentiis
12
Introdução - Espacializações
13
As conversas informais na cozinha de sua casa/
ateliê, as visitas que ela fez a minha casa/
ateliê, refeições, mercados, telefonemas, trocas
de e-mail, risos são igualmente importantes
na aproximação que tive com as práticas
e obras de Anna Bella Geiger. A presença
da artista e sua possibilidade estendida de
conversação, a grande generosidade em como
escutou minhas perguntas sobre espaços e
espacialidades, respondendo diversas vezes algo
como “você gosta desse assunto, né?”, são parte
imprescindível da construção da escrita.
14
dimensões espaciais orientou a organização dos
materiais consultados em arquivos do Museu de
Arte Moderna do Rio de Janeiro, Museu de Arte
Contemporânea da USP, Fundação Bienal de
São Paulo e Bienal de Veneza. Em arquivos on-
line de jornais, tais quais o Correio da Manhã,
O Globo e o Jornal do Brasil. E, ainda, os
arquivos pessoais da artista. Ao mesmo tempo,
foi no contato com os arquivos, com Anna
Bella Geiger e, principalmente, suas obras que
notei a frequência com que os espaços ganham
importância em suas ações. Dessa maneira
construí a pesquisa e o texto: estudei os
materiais iniciais (notícias de jornais, entrevistas,
catálogos de exposição etc.), que apontaram
ser as análises sobre espacialidades frutíferas
para uma aproximação de Geiger e, em seguida,
passei a organizar os materiais de pesquisa com
esse foco.
15
Near, para citar alguns explícitos. Estão também
invariavelmente relacionadas ao tempo, como
indicam acentuadamente denominações como
Passagens e Circa, que ganham sentidos
políticos em dimensões, indissociáveis, pessoais
e coletivas, adensadas em pensamentos Sobre a
arte, Burocracias e Declarações e Retratos.
16
como professora desde o final da década de
1960. No capítulo 02, as análises se iniciam a
partir de formulações sobre a mostra individual
Situações-limites, exibida pela artista em 1975,
no mesmo MAM-RJ, mas àquela altura Geiger
não ensinava mais ali. No capítulo 03, tomo
como centro da análise a videoinstalação Mesa,
friso e vídeo macios, criada para a XVI Bienal
de São Paulo, em 1981, com curadoria de Walter
Zanini, ganhando destacada importância,
também, as montagens de O pão nosso de cada
dia, realizadas na galeria do Centro Cultural
Candido Mendes (1979), Rio de Janeiro, e na
Bienal de Veneza (1980).
17
como no caso das artistas Ana Mendieta e Mary
Beth Edelson, considerando seus limites, tensões
e aberturas poético-políticas. Desdobrando essa
linha de sentido, trago as contribuições de Lucy
Lippard, e suas preocupações com o centro e
lugar da arte feminista, e de Lélia Gonzalez, com
suas análises sobre o lugar e a fala. Os pensa-
mentos de Judith Butler auxiliam a conjugar tais
discussões aos pensamentos sobre a produção
da crítica, estabelecida como a possibilidade de
elaborar a si, eticamente, diante da alteridade e
da despossessão.
18
subjugada aos meios de produção de imagem
homogeneizantes, como a televisão – discus-
sões em destaque nos anos 1970 no Brasil –, e a
expansão desse meio de comunicação em massa
pelo território nacional.
19
No “Capítulo 03 - Aberturas: entre mesas,
mapas e camuflagens” há uma abertura para
pensamentos sobre as relações da artista com
Walter Zanini e a Bienal de São Paulo e são
trazidas algumas dimensões históricas que
as envolvem. São trabalhados o pensamento
feminista de Sara Ahamed sobre o objeto
mesa, as considerações de Barbara Smith sobre
operações de base e mesas de cozinha, bem
como articulações com trabalhos como os de
Carrie Mae Weems, Martha Rosler, o projeto
Womenhouse, de Judy Chicago e Miriam
Schapiro.
20
sobre a educação – que permeia de modo amplo
as práticas/pensamentos/obras de Geiger – e
pensadas na articulação de seus trabalhos com
os estudos de Norma Telles sobre a cartografia
nos livros didáticos. Faço associações, nessa
perspectiva, entre colonialismo e autoritarismo,
que se expandem com o pensamento de Jerry
Dávila. As mesas, os mapas, as imagens em
movimento trazidos por Anna Bella Geiger
encerram o capítulo e criam aberturas para
pesquisas futuras.
Permeiam o trabalho pesquisas e textos críticos
sobre Anna Bella Geiger, com destaque para
os de Dária Jaremtchuk, Estrella de Diego,
Fernando Cocchiarale e Roberto Pontual, não
podendo esquecer nomes como os de Adolfo
Navas, Dore Ashton, Fernanda Albertoni, Karin
Stempel, Luiza Interlenghi, Mário Pedrosa, Paulo
Herkenhoff, Tadeu Chiarelli e Zana Gilbert.
21
Referências bibliográficas
22
23
24
Capítulo 01 - Movimentos espirais: dentro, fora, dentro…
25
imagens 2 e 3
vistas da exposição
Aqui é o centro
MAM-RJ
2018
fotografias de Paulo Jabur
26
fora, perto/longe, compreensão essa que engloba
a apreensão dos processos de transformação
urbana que envolvem a construção de um museu
de arte moderna naquela região da cidade e sua
importância na cena carioca; a situação política
da ditadura civil-militar em suas relações com
esse campo de produção artístico-cultural; e as
ações educacionais que ocorreram com base no
prédio do MAM.
imagem 4
vista da exposição
Circumambulatio
MAM-RJ
1972
fotografia de Thomas Michel
27
de textos, entre os quais, de O cão sem plumas,
de João Cabral de Melo Neto, e “O segredo da
busca é o que não se acha”, de Fernando Pessoa;
pensamentos de autores, como Carl Jung, Mircea
Eliade, Abraham Moles, e de artistas, como Paul
Klee. Muitas dessas palavras escritas no espaço
expositivo são ouvidas no audiovisual, que traz
uma articulação entre os registros das ações do
grupo de estudantes e apropriações.
28
Essa crise encontra correspondências com
aquela vivenciada por artistas de contextos
muito distintos, como aqueles existentes em
Nova York e Londres, com base na crítica ao
“suporte tradicional da arte”. “Aqui”, essas
questões somam-se “à crise do artista dentro
do momento ditatorial”, e é nessa situação
que, em seus cursos, começa “a querer sair de
dentro do prédio do MAM” (GEIGER, 2018a).
Esse movimento presente em Circumambulatio
está em diálogo com outros artistas brasileiros,
como Lygia Pape (Nova Friburgo, 1927 – Rio de
Janeiro, 2004), Hélio Oiticica (Rio de Janeiro,
1937 – 1980) e Artur Barrio (Porto, 1945).
29
sobre o modernismo” e uma apropriação “de
muitas de suas estratégias e técnicas estéticas,
inserindo-as e fazendo-as trabalhar em novas
constelações” (HUYSSEN, 1992, p. 75). Dito de
outro modo, uma parte da crítica à modernidade
– seus preceitos estéticos e éticos – estabelece
discussões sobre os limites do moderno e suas
categorias.
imagem 5
vista da exposição
Circumambulatio
MAM-RJ
1972
30
de movimentos culturais de contestação – como
o dos hippies –, procurando-se a valorização de
suas manifestações “modificadoras de estruturas
estáticas, consolidadas” (GEIGER, 1970b). Deli-
neiam-se na fala duas necessidades conjugadas:
uma reelaboração dos modos de criar no terri-
tório artístico e uma reestruturação da institui-
ção visando à construção de outras formas de
abordagem do ensino de arte no museu. Busca-
-se abri-lo para o mundo, para movimentos de
contestação dos modos de vida vigentes, articu-
lados e reformulados por meio da arte.
31
situação na qual os papéis de professores e
estudantes eram borrados, em meio a um
contágio forte entre as diferentes formas de
manifestação artística (LEWINSOHN, 2020).
32
antimanicomiais, em tratamentos que têm as
práticas artísticas como propulsores, contrapon-
do-se a métodos como a terapia do eletrocho-
que e como o insulínico, estabelecendo assim
uma série de conversações com o crítico Mário
2 Sobre o trabalho de Nise Pedrosa2.
da Silveira, ver o artigo do
psicanalista João A. Frayze- Nise da Silveira organiza uma exposição no
Pereira, “Nise da Silveira: MAM-RJ em 1975 e convida Anna Bella Geiger
imagens do inconsciente entre para participar de uma mesa sobre Jung. No
psicologia, arte e política” (2003). texto “Arte em torno do centro”, publicado por
E o material produzido pelo Geiger no Jornal do Brasil em 1972, a artista
Grupo de Pesquisa Memória, explicita de forma fragmentária as ideias
Museus e Patrimônio, para o mobilizadoras das ações que antecedem a
“Seminário Leitura de Imagens: montagem da exposição. Quase ao fim do texto,
a epistemologia de Nise da Geiger transcreve um trecho de Psicologia e
Silveira” (2017). Ferreira Gullar alquimia, de Jung (1944),
escreve sua biografia, intitulada
Nise da Silveira: uma psiquiatra o caminho é primeiramente sem discernimento e
rebelde (1996). Sobre as relações caótico, e não é, a não ser progressivamente, que se
entre ela e Mário Pedrosa, multiplicam as indicações que assinalam a existência
consultar o artigo “Loucura, de um alvo. Este caminho não vai em linha reta.
expressão e abstração: a tensa É aparentemente cíclico. Um conhecimento mais
relação entre Nise da Silveira preciso mostra que se eleva em espiral (Jung, citado
e Mário Pedrosa” (2020), da em GEIGER, 1972a)3.
psicanalista Tania Rivera.
O texto do psicanalista refere-se ao
3 O trecho de Psicologia e funcionamento do mundo onírico, às formas
alquimia na versão consultada de aproximação dos sonhos. Na sequência do
para a escrita deste texto é trecho citado por Geiger, o psicanalista afirma
um pouco distinto do citado que os sonhos, “enquanto manifestações dos
por Geiger: “O caminho para processos inconscientes, traçam um movimento
a meta a princípio é caótico e de rotação ou de circum-ambulação em torno
imprevisível, e só aos poucos do centro, dele se aproximando mediante
vão se multiplicando os sinais amplificações cada vez mais nítidas e vastas”
de uma direção a seguir. O (JUNG, 1990, p. 39).
caminho não segue a linha reta,
mas é aparentemente cíclico. Nos sonhos, supõe Jung, os temas “sempre
Um conhecimento mais exato reaparecem depois de determinados intervalos,
o define como uma espiral [...]” sob certas formas que designam à sua maneira
(JUNG, 1990, p. 39). o centro”, e “o processo de desenvolvimento
revela-se cíclico ou em espiral” (JUNG, 1990, p.
37). Em Circumambulatio essas considerações
reverberam, extrapolando as discussões relativas
aos sonhos e configurando-se como um modo
de criar ações e imagens envoltas em indagações
sobre aquilo que constitui o inconsciente
individual ou coletivo. Ou, em outros termos,
33
como perguntas sobre a vida psíquica.
As formulações de Jung citadas por Geiger
ampliam as possibilidades de sentido para
Circumambulatio. Em Psicologia e alquimia, os
sonhos são tomados em séries “conectadas entre
si”, e os quatrocentos sonhos – de um mesmo
sonhador – são avaliados como diferentes
textos. Tomados em conjuntos, em séries, eles
iluminam-se uns aos outros, “de modo que a
leitura dos vários textos já basta para esclarecer
as dificuldades de sentido de cada um deles”
(JUNG, 1990, p. 55).
34
Ao final da década de 1940, as quais a I Exposição Nacional de Arte Abstrata
Fayga Ostrower – sobrenome (1953), no Hotel Quitandinha (Petrópolis, Rio de
adotado após o casamento Janeiro). A abstração em sua vertente informal é
(1941) com Heinz – tem suas marcante na poética da artista.
gravuras publicadas numa
edição especial de O cortiço, de A importância da formação com Ostrower é
Aluísio Azevedo. A ilustração recorrentemente apresentada por Geiger em
torna-se, assim, uma de suas textos e falas. Sobre Ostrower, ela diz:
profissões. A partir das aulas
com Leskoschek, começa a Tudo o que eu aprendi, através de um professor e da
elaborar a própria metodologia prática com um professor, sobre o que significava arte
de ensino, recebendo em sua naquele momento, em um momento tão complicado
casa/ateliê para cursos práticos da passagem da arte da figuração, e de uma figuração
de desenho e gravura, entre política para o abstracionismo, eu aprendi, não há
1950 e 1953, quando decide dúvida, no ateliê da Fayga (GEIGER, 2018a).
dedicar-se exclusivamente aos
cursos teóricos. No MAM-RJ, Conteúdos expressivos ligados à materialidade
ministra durante dezesseis anos física da obra, uma valorização da dimensão
os cursos de “Composição”, psíquica e intensas considerações sobre a
“Estrutura espacial e expressão construção do espaço marcam a abstração
na arte”, “Análise de estilos”, informal no território nacional e internacional
“Teoria da Gestalt” e “Teoria da (GEIGER, 2008, pp. 15-18). Desdobrados,
percepção”. Ostrower recebe tais pensamentos permeiam a criação de
importantes bolsas, como a Circumambulatio. A descoberta do espaço é,
da Fulbrigth, que lhe permite para Ostrower, uma experiência ao mesmo
estudar no Brooklyn Museum tempo pessoal e universal, vivenciada
of Art (1955). É convidada a inconscientemente e constitutiva dos processos
lecionar em universidades no de estruturação da percepção consciente
Brasil e no exterior, como UFRGS (OSTROWER, 1987, p. 30). Sentar, engatinhar,
(1971) e Spelman University andar, tocar os objetos constitui uma maneira
(1964). Os pensamentos da primeira de compreender o mundo, sendo o
escritora produzem interesse espaço um meio e um modo dessa compreensão.
em diferentes áreas, levando-a Ao tratar dessas questões no campo das artes,
palestrar em lugares como o Fayga afirma que a figuração e a abstração
Centro Brasileiro de Pesquisas se inscrevem numa mesma lógica, na qual a
Físicas/CNPq, e os institutos de forma nunca pode ser pensada como um mero
Matemática, Física e Ciências invólucro do conteúdo. Ao contrário, criar
Sociais da UFRJ, entre outros. formas distintas tem como efeito alterações do
Nas práticas artísticas, a paixão próprio conteúdo (OSTROWER, 1987, p. 43).
pela abstração e pela gravação
acompanha Ostrower ao longo Ostrower considera o espaço o referencial pri-
dos anos. Participa de uma meiro de todas as linguagens e argumenta que
série de exposições individuais conteúdos de uma experiência, sempre e em
e coletivas, sendo premiada por qualquer idioma, são comunicados verbalmente
instituições como a Bienal de por meio de imagens espaciais. Compreender é
São Paulo e a Bienal de Veneza um exemplo do uso de imagens espaciais: com =
(GEIGER; OSTROWER, 2008, pp. junto; prender = ligar uma coisa à outra. Um ou-
48-54). tro exemplo é o verbo “pôr”, em que as suas va-
35
riações traspor, expor, impor, compor etc. trazem
a indicação espacial que define como se configu-
ra a ação (OSTROWER, 1988, pp. 173-174).
36
Há outra dimensão imprescindível: o tempo,
ou mais precisamente os tempos vividos e
vivenciados. Na elaboração das formas, são
os tempos da memória que, impossíveis de ser
cronometrados com relógios, são registrados
afetivamente na duração (OSTROWER, 1998, p.
75). As relações com o espaço formam imagens
psíquicas que, mobilizadas no ato criador em
termos da duração, possibilitam reelaborar as
próprias relações espaciais. Circumambulatio
traz reverberações e desdobramentos de
tais pensamentos. Os tempos vividos são
considerados em formas individuais e
coletivas, sobrepostas por meio das sensações
movimentadas, que produzem os espaços em sua
vertente dinamizada. São formas não fixadas em
uma origem formatadora, mas constantemente
reconstruídas na sobreposição de tempos
vivenciados e imaginados.
37
A proposta de Levy-Deinhard, em torno da
sociologia da arte, pergunta, por um lado,
como é possível obras de arte viverem além
de seu tempo e serem vistas como expressivas
e significativas em épocas e sociedades
completamente diferentes? Em outras palavras
como artigos originados como produtos da
atividade humana, dentro de um determinado
tempo e sociedade e para um determinado
tempo, sociedade ou função – mesmo que não
sejam necessariamente produzidas como “obras
de arte” –, ganham sentidos atualizáveis? Por
outro lado, como a idade e a sociedade que os
produziram podem ser reconhecidas nas obras?
(LEVY-DEINHARD, 1970, p. 3).
38
Quando se vai abrindo mão de uma coisa que você
não acredita, você sofre muito com isso, porque
você está perdendo conhecimento e não está mais
podendo olhar para trás. Não é nada simples! [...]
Participar de um movimento, como eu participei
do abstracionismo, dava um respaldo. Porque
o abstracionismo não morreu ali em 1965, ele
continuou muito tempo. Eu que esgotei a minha ideia
de que aquilo significasse para mim alguma coisa. [...]
Uma crise terrível! Eu não consigo mais saber o que
significa o abstracionismo, por que discutir a questão
do espaço e do tempo (GEIGER, 2018a).
imagem 8
vista da exposição
Circumambulatio
MAM-RJ
1972
fotografia de Thomas Michel
39
40
41
42
Saídas: práticas educacionais e artísticas
43
imagem 11 e 12
Registros das ações realizadas
durante os cursos de Geiger no
MAM-RJ
1970/1971
44
Em Atividade/Criatividade há uma grande
preocupação em constituir movimentos de
liberação, aberturas para práticas de liberdade.
“Liberdade total no curso do MAM” são as
palavras destacadas em uma matéria do jornal
O Globo, em 20 de janeiro de 1971. Matérias de
jornais sobre as atividades do museu, bem como
textos dos que trabalham ali, como Frederico
imagem 13 Morais e Geiger, são frequentemente publicadas,
matéria do jornal O Globo naquele momento. Há uma estratégia de
20 de janeiro de 1970. utilização da mídia para divulgar e legitimar as
iniciativas institucionais.
45
A matéria relata que 33 alunos estão inscritos
no curso e contém depoimentos das artistas
explicando suas propostas. Pape comenta que,
para a realização do curso, os docentes estão
se “valendo de todos os sistemas de expressão
possíveis, os sons, os efeitos de luz, os próprios
sentidos, a grande experiência das artes,
incluindo o cinema”. Ela afirma tratar-se de
“algo novo”, cujo objetivo é possibilitar ao aluno
“acordar para o mundo que nos cerca, seja ele
um jardim, um viaduto, seja a água”.
imagem 14
registros das ações realizadas
durante os cursos de Geiger no
MAM-RJ
1970/1971
46
de trabalhar’”. A Geiger interessa mobilizar ações
que tragam a dimensão do inconsciente – de
onde, em suas palavras, surge “nosso mundo
mais rico” (Geiger, citada em SWANN, 1971).
47
Duarte (Ubaíra, 1939 – Brasília, 2016), política, 1964-1969” (1978). No
organizador do evento, em parceria com texto – bibliografia considerada
Hélio Oiticica (Rio de Janeiro, 1937 – 1980) fundamental nas investigações
(SALOMÃO, 2015, p. 66). Durante um fim de sobre a cultura e a política
semana, o público participou e construiu ações brasileira nos primeiros anos
propostas pelos organizadores e por artistas, após o Golpe de 1964 – afirma
como Lygia Pape e Antonio Manuel. Fez parte que, após o Golpe, “apesar da
da experimentação, segundo Oiticica, admitir ditadura de direita há relativa
“a direta interferência do imponderável: a hegemonia cultural de esquerda
desconhecida participação coletiva” (OITICICA, no país” (SCHWARZ, 1978, p.
1986, p. 128). O artista associou Apocalipopótese 62). Schwarz trabalha com
à “criação da liberdade no espaço dentro- perspectivas teóricas na órbita
determinado, intencionalmente ‘naturalista’, do pensamento marxista e
aberta como o campo natural para todas as opositoras ao ideário nacional-
descobertas: o comportamento que se recria, que desenvolvimentista (QUERIDO,
nasce [...]” (OITICICA, 1986, p. 130). Nascer e 2019, p. 239). Em “Cultura
criar são palavras mobilizadas por uma série de e política, 1964-1969”, a
artistas naquele período. noção de cultura é marcada
por tal referencial conceitual,
Oiticica, artista de extrema importância relacionando-se aos materiais
nos debates sobre os limites do moderno produzidos por “grupos
e as possibilidades contemporâneas na diretamente ligados à produção
arte brasileira8, considera Apocalipopótese ideológica, tais como estudantes,
fundamental em seus percursos e pensamentos artistas, jornalistas, parte dos
nas artes (OITICICA, 1986, p. 130). O evento, sociólogos e economistas, a
em 1968, faz parte de um dos maiores parte raciocinante do clero,
acontecimentos artísticos do Rio de Janeiro, Arte arquitetos etc. – mas não
no Aterro: um mês de arte pública (PEQUENO, ultrapassam essas delimitações,
2018, pp. 141-145). Organizado por Frederico nem podem, por razões policiais.
Morais, o evento construiu-se com base em Os intelectuais são de esquerda,
um interesse compartilhado do crítico em e as matérias que preparam, de
“práticas multissensoriais, que dinamizassem e um lado, para as comissões do
usufruíssem do espaço urbano, na exploração governo ou do grande capital
criativa do processo, do acontecimento e na e, de outro, para as rádios,
imaterialidade da arte” (NEVES, 2016, p. 97). Em televisões e os jornais do país,
um cartaz de divulgação lê-se: “Qualquer um não são de esquerda. Somente a
pode fazer arte. E boa arte. Para tanto deve ver matéria que o grupo – numeroso
obras de arte. Feitas (em exposições públicas) a ponto de formar um bom
ou que estejam sendo feitas. E conversar, dar mercado – produz para consumo
palpites sobre tudo o que vê, diretamente com próprio pode ser considerada
os artistas, críticos e professores”. No parágrafo de esquerda. Esta situação
seguinte: “Tudo isso será feito no Aterro” (Arte cristalizou-se em 1964, quando
no Aterro, citado em NÓBREGA, 2017, p. 124). grosso modo a intelectualidade
socialista, já pronta para a
Arte no Aterro traz o interesse em estabelecer prisão, desemprego e exílio,
relações entre a arte e o público “longe das foi poupada. Torturados e
catracas do museu, do controle dos espaços longamente presos foram
institucionalizados, com o intuito de confrontar somente aqueles que haviam
48
organizado o contato com a lógica dos espaços expositivos convencionais,
operários, camponeses, desencadear situações abertas à participação e
marinheiros e soldados” atingir o grande público” (NEVES, 2016, p. 97).
(SCHWARZ, 1978, p. 62). O evento foi realizado no Pavilhão Japonês e
não tinha relações institucionais com o MAM.
8 Sobre os pensamentos e Cerca de 25 minutos de caminhada separam o
práticas artísticas de Oiticica, prédio do museu da área onde Arte no Aterro
consultar Favaretto (2015/1992). foi realizado: o MAM está em uma extremidade
do Parque do Flamengo, próximo ao Aeroporto
Santos Dumont, e o Pavilhão Japonês, no bairro
do Flamengo (PEQUENO, 2018, p. 142).
49
p. 145). Os protestos contra a ditadura e
contra certas categorias estanques da arte são
frequentemente realizados em conjunto por
artistas e críticos no Rio de Janeiro, entre os
quais, Anna Bella Geiger.
50
polícia, que tentava levá-lo ao Instituto Médico
Legal, os jovens caminharam até a Assembleia
Legislativa. “Sem camisa, Edson Luís foi
colocado sobre a mesa” e, no dia seguinte, as
páginas dos jornais locais estampavam aquele
garoto morto (GASPARI, 2014, p. 276).
imagem 17
capa do jornal Correio da Manhã,
30 de março de 1968a.
A edição traz registros das
manifestações ocorridas no dia
anterior, que lembrava o assassi-
nato do estudante secundarista
Edson Luís de Lima Souto.
51
manifestações nas ruas e o MAM não estão
conectados apenas pela realização de Arte no
Aterro. Os eventos que culminam na morte
de Edson Luís estão diretamente associados à
matéria do Correio da Manhã sobre a reunião do
FMI no museu e os processos de reforma urbana
no Rio de Janeiro. O restaurante Calabouço
havia sido transferido de local alguns meses
antes, como parte de uma ação de reforma
urbana para a construção de avenidas no Aterro
do Flamengo (GASPARI, 2014, p. 273).
imagem 18
matéria do jornal O Globo,
02 de agosto de 1967
52
sido retirados “todos os escritórios do MAM para
dar lugar aos do FMI” (O Globo, 1967a).
53
acontece a construção do MAM, e essas questões
reverberam nas manifestações estudantis nas
ruas do centro do Rio de Janeiro.
imagem 19
Correio da Manhã, 30
de março de 1968a. A
edição traz registros das
manifestações ocorridas no
dia anterior, que lembrava
o assassinato do estudante
secundarista Edson Luís de
Lima Souto.
54
a assembleia, a passeata, o comitê, a manifestação.
Faz parte do cotidiano interessar-se ou participar –
como militante, simpatizante ou mero curioso – no
inesgotável debate de ideias, estas estão inesgotáveis
[...] (ALMEIDA; WEIS, 1998, p. 330).
55
A dimensão crítica de testar limites surge em
Arte no Aterro, menos como um debate de ideias
do que como ações coletivas de interferência
no imaginário. As faixas com dizeres políticos
caracterizavam as manifestações e surgem como
imagens frequentes no cotidiano, auxiliadas
pelos jornais. Durante o Arte no Aterro, o uso
desse tipo de material amplia-se em sentidos
poéticos, trazidos pelo grupo Poema/Processo.
Fundado por Neide Sá (Rio de Janeiro, 1940),
Moacy Cirne (São José do Seridó, 1943 – Natal,
2014), Wlademir Dias Pino (Rio de Janeiro,
1927 – 2018), entre outros, chega a contar com
mais de setenta participantes; tendo lançado um
manifesto inaugural em 1967, simultaneamente
realiza exposições nas cidades do Rio de Janeiro
e Natal (NÓBREGA, 2017, p. 12).
56
imagens 22, 23 e 24
Ronaldo Duarte e seu Dog´s act.
Frames do vídeo
Apocalipopótese – Guerra e paz
(1968), feito por
Raymundo Amado
57
Duarte pede atenção e silêncio durante as
manifestações dos cães, que “fazem coisas do
arco da velha: procuram objetos entre pessoas,
eles atacam qualquer lance meio suspeito, eles
avançam” (Duarte, citado em PEQUENO, 2018,
p. 161). O artista lembra que a ideia de levar
aqueles cachorros para o Aterro conectava-se
fortemente à prisão e à tortura: “eu estava sendo
ameaçado de morte” (Duarte, citado em LIMA
Jr., 2016).
58
imagens 25 e 26
ativação da obra Ovos de Lygia
Pape sendo rompidos.
Frames do vídeo
Apocalipopótese – Guerra e paz
(1968), feito por
Raymundo Amado
59
O evento é, sobretudo, efeito de um tempo e de 10 A artista nasce em 1927, em
um local específicos, surge em meio a embates, Nova Friburgo, Rio de Janeiro,
traduz e subverte a “ordem” (palavra da repres- e falece na capital do estado
são policial), imaginando outras possibilidades em 2004. Em 1954, integra o
para a criação. Grupo Frente – marco histórico
do movimento concretista. Em
Imagens em movimento de Dog’s act de Duarte 1959 é uma das criadoras do
foram registradas por Raymundo Amado (1968), Manifesto Neoconcreto. Entre
bem como outras ações de Apocalipopótese, 1969 e 1971, ministra aulas
tal qual Ovo, de Lygia Pape10, na qual uma no Curso Livre no MAM-RJ.
dimensão de morte estabelece-se, porém, em um Em sua própria definição, é
sentido distinto. “intrinsecamente anarquista”
(MATTAR, 2003, p. 16).
A proposta para Apocalipopótese constrói-se
numa ação na qual pessoas saem de cubos de 11 Vanessa Machado, em Lygia
madeira e polipropileno nas cores vermelho, azul Pape: espaço de ruptura (2010),
e branco. Duas delas tocam pandeiros enquanto diz que aqueles nascidos do Ovo
rompem as películas coloridas em ato poético, de Lygia em Apocalipopótese
no qual há sentido cíclico de tempo “NASCER- são Oiticica, Nildo e Santa
MORRER-NASCER” (PAPE, 2012, p. 242)11. Nas Tereza, passistas da Mangueira
palavras do impulsionador Hélio Oiticica – o “Trio do embalo maluco”.
Essa informação é repetida em
os “ovos” de Lygia Pape seriam o exemplo clássico catálogos como Lygia Pape: A
de algo puramente experimental, por isso mesmo, multitude of forms (CANDELA,
diretamente eficaz; estar, furar, sair o contínuo 2017, p. 171). No entanto, no
“reviver” e “refazer”, na tarde, na luz, na gente: o filme Apocalipopótese: Guerra
ovo é o que mais generoso se pode dar: é nascer e & paz (1968), de Raymundo
alimentar, aqui também – o ovo do ovo (OITICICA, Amado, não é possível confirmar
1986, p. 129). essa informação. Do Ovo branco
vemos duas pessoas saindo
Um segundo nascimento, um recomeço instaura das estruturas, e Oiticica não
aberturas para a imaginação. Romper, rasgar aparece realizando o ato de
as cascas do Ovo é a proposição de Pape, nascimento, para citar dois
numa metáfora do indivíduo como ser social exemplos. É importante ressaltar
(PEQUENO, 2013, p. 41). Esse nascimento é que há certa dificuldade em
necessário para a vida, a permanência no Ovo precisar os participantes de
é sufocantemente mortífera. Uma saída para o ações como aquelas ocorridas
mundo, para a Apocalipopótese. Sair do museu, em Apocalipopótese, uma vez
sair do Ovo, sair para fora de si. Do mesmo que muitos escritos sobre o tema
modo, os limites entre a vida e a morte, os trazem informações genéricas a
limites da prática artística, os limites do prédio respeito dos participantes, sem
do MAM, tudo isso entra em reverberação nomeá-los.
naquele fim de semana de julho no Aterro do
Flamengo. 12 Uma segunda Comissão
atuou entre “1974 e 1978 e
Há um sentido de reformulação, de um novo contou com a participação, em
nascimento, de transformação de si no Ovo diferentes momentos, da dire-
de Pape que, em 1972, constrói-se – sob tora-executiva do MAM, Heloisa
60
Aleixo Lustosa; do diretor de formas distintas – em Circumambulatio. Algo
exposições, Roberto Pontual (que alquímico (JUNG, 1990) inscreve-se nas ações
também ocupava o cargo de crí- de Geiger e, parafraseando Rogério Duarte, uma
tico de arte do Jornal do Brasil); alquimia instala-se não como uma ideia de
dos artistas Alair Gomes, Anna transformar pedra em ouro, mas de transformar
Letycia, Carlos Vergara, Sergio a si mesmo (Duarte, citado em LIMA Jr., 2016).
Camargo e Waltercio Caldas; dos As possibilidades de produção de aberturas
críticos Aracy Amaral (diretora para novas formas de constituição da vida ou
da Pinacoteca do Estado de São possibilidades de outros modos de produção
Paulo entre 1975-1979), Frede- subjetiva são dimensões instigantes do Ovo de
rico Morais (naquele momento Pape e das circumambulações de Geiger.
responsável pelo setor de cursos
do museu e crítico de arte do Após um ano da realização de Apocalipopótese
jornal O Globo), Olívio Tavares de houve uma grande reestruturação da área
Araújo (crítico de arte da revista de ensino do museu, orientada por Frederico
Veja) e Ronaldo Brito (crítico de Morais, chefe do departamento educativo
arte do semanário Opinião entre entre 1969 e 1973. A primeira Comissão de
1972 e 1977); além de integran- Planejamento Cultural do Museu é formada
tes da equipe do museu Cosme por Geiger em parceria com Aloísio Carvão,
Alves Netto e José Carlos Avellar Frederico Morais e Cosme Alves Netto (1971-
(representantes da Cinemate- 1973)12. No texto, antes referenciado, sobre a
ca), Irma Arestizábal (parte do reunião entre Geiger e os estudantes do MAM, a
Departamento de Exposições, artista afirma haver uma nova ética, como parte
responsável pela montagem de um processo cultural contemporâneo, à qual
das exposições, expografia e o museu deve estar atento (GEIGER, 1970b).
produção), Karl Heinz Bergmiller
(diretor do Instituto de Desenho O processo cultural a que ela se refere está
Industrial – IDI, setor indepen- envolto em uma série de disputas sobre a
dente dos demais, que fornecia estruturação do espaço urbano, as possibilidades
assessoria na área de design de usos de um museu de arte, os modos de
para o MAM), Nelson Augusto elaborar práticas educacionais e artísticas.
(integrante da equipe de moni- Nele ressoam críticas às intenções de formação
tores do museu) e Sidney Miller de “mentalidades” por meio da educação
(responsável pela Sala Corpo e (SANT’ANNA, 2011). Pretensões são constituintes
Som)” (LOPES, 2013, pp. 37-38). dos discursos e imagens que produzem o MAM
– em especial, no prédio do Aterro – como um
centro de extrema importância cultural, em
13 Carmem Portinho é enge- princípios da década de 1960.
nheira, uma das fundadoras e
primeira presidente da Associa- É imprescindível historicizar que Carmem
ção Brasileira de Engenheiras e Portinho (Corumbá, 1909 – Rio de Janeiro,
Arquitetas (ABEA), em 1937. A 2001)13 – diretora executiva adjunta e
militância feminista marca sua engenheira responsável pela construção da sede
vida. Participa da organização do do museu no Aterro do Flamengo (1957) –, com
movimento sufragista, ao lado auxílio da artista Edith Bering (Rio de Janeiro,
de Bertha Lutz, e da criação da 1916 – 1996), estabeleceu quais deveriam ser
União Universitária Feminina as diretrizes para a criação do Ateliê. Portinho
(1932) (CPDOC/FGV, s./d.). conta que Niomar Sodré – diretora executiva
61
do museu – “autorizou a gastar tudo, fazer
tudo, gastar o que precisasse naquele ateliê que
acabou virando a menina dos olhos do Museu”
(Portinho, citado em TAVORA, 2007, p. 61). As
discussões sobre a gravura e o moderno que se
formulam por meio do e no ateliê marcam o
território artístico carioca, sendo um importante
local na formação artística de Anna Bella Geiger.
62
p. 103). A educação é não apenas um debate
tangencial, mas constitutivo do próprio projeto
do MAM, sendo o Ateliê de Gravura um grande
representante dessa “vocação”.
Desde 1965, Geiger fica menos próxima do
ateliê e começa a oferecer aulas em sua casa. Os
alunos eram pessoas que “apareciam no ateliê
do MAM, às vezes sem nenhuma iniciação, e
queriam aprender gravura” (GEIGER, 2018a).
As discussões sobre a gravura e o moderno que
se formulam por meio do e no Ateliê marcam
o território artístico carioca. De acordo com
Geiger, tratava-se de um ambiente extremamente
político, onde ocorria uma série de discussões da
esquerda socialista (GEIGER, 2018a).
63
do Centro, Lapa, Glória, Catete, Largo do Macha-
do e Flamengo (PEQUENO, 2018, p. 142).
Em inícios da década de 1960 a construção é re-
tomada. Carlos Lacerda – naquela altura gover-
nador do Rio de Janeiro (1960-1965) – nomeia
(1961) Maria Carlota de Macedo Soares (Paris,
1910 – Nova York, 1967), Lota, como assessora
do Departamento de Parques da Secretaria Geral
de Viação e Obras e a Sursan, para coordenar o
projeto do parque (OLIVEIRA, 2006).
imagem 27
matéria do jornal
Correio da manhã
15 de setembro de 1967
64
A arquiteta torna-se presidente de uma equipe
formada por Reidy, Jorge Moreira, Hélio
Mamede e Roberto Burle Marx. Lota Macedo
“assume a empreitada da urbanização da área,
incumbida de completar o sonho da burguesia
carioca − um espaço cosmopolita idealizado
segundo o ideário moderno − na orla da Baía
de Guanabara” (BOHRER, 2001, p. 45). O citado
texto do Correio da Manhã é elaborado nesse
contexto e corrobora uma série de discursos
sobre o “ideário moderno”.
65
uma bela manhã de sol, em atmosfera de festa
perfeitamente enquadrada entre as águas da
Guanabara, as montanhas e a vida intensa da
cidade” (Boletim do Museu de Arte Moderna,
1955). A descrição, uma espécie de crônica
publicitária, cria imagens da paisagem da
cidade, considerando que ficará ainda mais bela
com a obra que se inicia.
66
desenvolvimentos estruturais e econômicos
no país. No território artístico-arquitetônico, o
moderno se consagrava, sendo Oscar Niemeyer
(Rio de Janeiro 1907 – 2012), Lúcio Costa
(Toulon, 1902 – Rio de Janeiro, 1998) e o
próprio Reidy, entre outros, os fundadores
desse pensamento sobre a arquitetura no país,
por meio do qual a vida urbana é posta como
símbolo de um futuro planejado (SANT’ANNA,
2010, p. 67).
imagem 28
fotografia que acompanha Há uma série de possibilidades de sentidos
notícias sobre a construção do em relação à implementação de um Museu de
MAM-RJ. Arte Moderna em uma “área conquistada ao
Boletim n. 13, 1955 mar”. Destaco, entre elas, a construção de um
imaginário de dominação da natureza para
ascensão à modernização da vida e das cidades.
As duas construções, a do MAM-RJ e a do
67
Aterro, não apenas estão intimamente ligadas,
mas legitimam uma à outra em meio às disputas
relativas a um projeto de reformulação do
espaço urbano carioca (BOHRER, 2001).
68
O desmonte do morro Santo Antônio ao qual se
refere o texto remonta às reformas urbanas de
15 Pereira Passos (São João Pereira Passos15 em princípios do século XX, à
Marcos, 1836 – Rio de Janeiro, criação e criminalização das favelas. Ali viviam
1913), engenheiro amplamente milhares de pessoas em casas autoconstruídas,
conhecido pelas reformas que foram postas abaixo seguindo preceitos
urbanas realizadas no Distrito de discursos médicos, jurídicos e midiáticos
Federal do Rio de Janeiro, entre que corroboravam ideais de embelezamento e
1902 e 1904. A reforma e o higienização da cidade (VALLADARES, 2000). O
prefeito ficaram conhecidos Correio da Manhã – que pertencia à família do
pelo apelido “bota-abaixo”, marido de Niomar Moniz Sodré – realiza intensa
tendo havido uma grande cobertura jornalística do desmanche, na qual o
reconstrução do centro da maquinário é figura privilegiada na construção
cidade, em medidas que visavam de um imaginário de progresso e modernização
a substituir o uso de animais e a partir das reformas urbanas (AMOROSO, 2009,
carruagens por trens e bondes. pp. 13-16).
A obra da reforma fica a cargo
do governo federal e trata-se Textos jornalísticos, por sua vez, criam
da “abertura da avenida Central metáforas de dominação da natureza, referindo-
– posteriormente, avenida Rio se à “imponência do morro” que devagar vai
Branco –, que uniu o Rio de se perdendo como efeito da ação de caminhões
Janeiro de ‘mar a mar’, isto é e escavadeiras (AMOROSO, 2009, p. 13). A
do porto, na então Prainha, até fotografia que acompanha os textos sobre o
a recém-construída avenida início das obras do MAM, nessa perspectiva, é
Beira-Mar [...]” (MOTTA, sd). bastante importante. Em meio à fumaça e aos
As reformas foram inspiradas andaimes, ergue-se uma placa com o logotipo
naquelas idealizadas pelo do museu. Repete-se a ideia de uma ascensão
69
à modernidade com a construção não apenas Barão Haussmann, entre 1852
do museu, mas com os aterros e o “desmonte e 1870, em Paris. Como lembra
do Morro de Santo Antônio, velha aspiração a arquiteta e urbanista Paola
da população do Distrito Federal” (Boletim do Berenstein Jacques, Haussmann
Museu de Arte Moderna, 1953c). As estruturas e Pereira Passos têm, também,
verticalizadas trazidas na fotografia do boletim em comum a contratação
do MAM contrapõem-se às autoconstruções de fotógrafos oficiais para o
fragmentadas das favelas16. registro das transformações
urbanas radicais: Charles
Retomando Circumambulatio, os registros de Marville (Paris, 1813 – 1879)
Lewinsohn das vivências em Circumambulatio e Marc Ferrez (Rio de Janeiro,
trazem uma relação com a terra distinta daquela 1843 – 1878) (BERENSTEIN
sugerida na imagem veiculada pelo MAM. Neles, JACQUES, 2004).
as explorações no solo não pretendem dominar
a natureza selvagem. Há neles vivências que 16 Nessa linha de sentido, é
constroem aberturas para experimentações importante destacar a pesquisa
múltiplas com o solo, com camadas de sentido de Paola Berenstein Jacques,
artísticas, psíquicas e políticas. As fotografias Estética da ginga – A arquitetura
apresentadas na montagem trazem sensações de das favelas através da obra
expansão das possibilidades de vida. de Hélio Oiticica (2011), sobre
as potencialidades críticas do
Nas ações registradas e expostas em trabalho de Hélio Oiticica na
Circumambulatio há, também, máquinas. Em intersecção arte e arquitetura
uma das fotografias veem-se marcas deixadas e exploração da construção
por um trator que se distancia da câmera. Ao labiríntica das favelas.
fundo, a paisagem com morros. Na composição
da mostra, a máquina ganha sentidos distintos
daqueles do ideário modernizador envolvido na
construção do MAM-RJ.
70
As memórias de Anna Bella Geiger trazem o mar
em sentidos não conquistadores – relacionados
aos processos de colonização, escravização,
violência e morte, fundadores dos modos
produção capitalista. “Avançando ao mar” está
longe de estabelecer-se como a procura por uma
“área conquistada ao mar”. Diferentemente, o
mar torna-se local para uma ação de liberação
para a criação. Essa é uma procura recolocada
em Circumambulatio por meio da procura por
centros múltiplos.
71
72
Imagens do centro: localidades
73
das práticas artísticas realizadas no Brasil
em relação a centros de produção do Norte
global, como as cidades de Nova York e
Londres, explicita um interesse – localizável de
diversas formas no modernismo brasileiro – em
estabelecer diálogo com o sistema de arte numa
dimensão planetária. São pertinentes, portanto,
as aproximações entre os repertórios imagético
e discursivo mobilizados em Circumambulatio
e aqueles de artistas que produzem em outras
partes do globo na década de 1970.
imagem 34
registro das ações de Marapendi,
exibida em Circumambulatio.
fotografia de Thomas Lewinsohn
(provavelmente)
74
imagem 35
registro das ações de Marapendi,
exibida em Circumambulatio.
fotografia de Thomas Lewinsohn
75
autobiográficas vazadas para o campo político
sob influência dos feminismos. A artista e a irmã
Raquel saem de Cuba para viver nos Estados
Unidos em 1961. As garotas são parte das apro-
ximadamente 14 mil crianças que fazem esse
trajeto com o auxílio da “Operação Peter Pan”,
incentivada por famílias cubanas, associações
religiosas e corporações estadunidenses (LÓPEZ-
-CABRALES, 2006).
imagem 36
Ana Mendieta
Silueta (trabalhos no México)
1973-1977
76
brancas. A analogia era a de que estava coberta
pelo tempo e pela história” (MENDIETA,
2006, p. 26).
imagem 37
folder Arquivo Circumambulatio
publicado pelo MAM-RJ
2012
77
década de 1970. Pesquisas como as de Merlin 19 Merlin Stone é pesquisadora
Stone (Nova York, 1931-2011)19 e de Marija e escultora, autora de livros
Gimbutas (Vilnius, 1921 – Los Angeles, 1994)20 como When God was a Woman/
ressignificam imagens arqueológicas e históricas Quando Deus foi uma Mulher
e ressoam nas práticas artísticas feministas e (1976). Em suas pesquisas,
nas explorações da figura da deusa de mil faces interessou-se por “imagens da
(ORENSTEIN, 1996, p. 176). arte referentes ao poder das
formas femininas, o que a levou,
É possível estabelecer mais precisamente esses por exemplo, à descoberta de
pontos pondo-se em relação Circumambulatio deusas do Paleolítico, como a
e a obra Goddess head/Cabeça da deusa (1975), Vênus de Willendorf [...] uma
de Mary Beth Edelson (East Chicago, 1933 imagem de uma cultura pré-
– Ocean Grove, 2021)21. Luana Tvardovskas, patriarcal” (TVARDOVSKAS, 2008,
na dissertação Figurações feministas na p. 109).
arte contemporânea. Marcia X., Fernanda
Magalhães e Rosângela Rennó (2008), observa 20 Marija Gimbutas “é um dos
que “na fotomontagem cola-se a imagem nomes mais respeitados na área
de fóssil de concha em formato espiral no de conhecimento de antigas
lugar de sua cabeça, criando a figura de uma civilizações da Deusa. Em seu
‘deusa’ enigmática” (TVARDOVSKAS, 2008, p. livro The gods and goddesses
107). A concha, essa espécie de pele calcária of old Europe, Gimbutas estuda
de proteção, torna-se a cabeça desse corpo a antiga Europa, entre 7000 e
feminino e traz a sensação – no registro 3500 a.C., onde teria existido
fotográfico – de uma integração com as pedras o antigo culto matrifocal da
que constroem a paisagem. Grande Deusa e seu consorte, o
Deus Cornífero” (TVARDOVSKAS,
2008, p. 109).
imagem 38
Mary Beth Edelson
Goddess head
1975
78
Tvardovskas retoma os escritos das
pesquisadoras feministas Helena Reckitt e
Peggy Phelan (2005, p. 81), sublinhando o
interesse da artista pelos símbolos e mitos de
uma história perdida das mulheres. Há nessa
atitude a procura por uma herança feminina
e a vontade de uma comunidade feminina
contemporânea (TVARDOVSKAS, 2008, p. 107).
A colagem traz a dimensão construtiva das
imagens que circulam culturalmente. Faz pensar
que esquecimentos e visibilidades são efeitos
de perspectivas específicas, como símbolos
e signos são construídos historicamente.
Os estudos feministas e pós-coloniais das
últimas décadas dedicaram-se a recontar essas
histórias apagadas, reinventando as próprias
narratividades históricas.
79
formam constelações em movimento, abrem- 22 Em 1966, Lucy Lippard
se para o inesperado e para as potencialidades publica o artigo “Eccentric
criativas. Fragmentos de mundos passados, de abstraction/Abstração excêntri-
situações presentes e de futuros imagináveis ca” no jornal Art International.
habitam Circumambulatio, criando condições de Tratava-se de um complemento
expansões do sensível e do cognitivo. à exposição com sua curadoria
na Fischbach Gallery, em Nova
Revisitando os feminismos, é necessário tensio- York. Camille Morineau, no catá-
nar certas apropriações feitas por mulheres bran- logo da exposição Elles: mulheres
cas de classe média acerca de imagens ancestrais na coleção do Centro Pompidou,
e indígenas. É preciso perguntar pelas formas de realizada no Rio de Janeiro em
imperialismo que se tem com a apropriação de 2013, escreve: “As palavras do
imagens de outras culturas. Essa foi uma crítica título foram escolhidas cuida-
bastante presente entre as teóricas da década dosamente, e seu efeito parece
de 1990, segundo Gloria Orenstein (1996, p. intacto. ‘Excêntrico’: desviante,
177). No seu entender, em um contexto em que diferente, segundo regras que
se adota a noção junguiana de arquétipos do não são redutíveis em si mesmas
inconsciente coletivo – como foi entendido no a um princípio. ‘Abstração’: um
começo da década de 1970 –, imagina-se que dos cânones da modernidade
esse inconsciente coletivo é acessível para qual- [...]”. A palavra “excêntrica” tem
quer um, em qualquer lugar, e que essas ima- sentidos de fora do centro,
gens transcenderiam qualquer barreira cultural cujos sentidos feministas são
patriarcal (ORENSTEIN, 1996, p. 177). múltiplos. Abstração excêntrica
é “visual, tátil e visceral” e, diz
A análise de Orenstein reverbera em Morineau, uma expressão que
Circumambulatio. Existe um aspecto obliterante pode “ser aplicada a toda uma
de questões como raça, classe, etnia e geração de mulheres contem-
sexualidade, efeito múltiplo dos debates nos porâneas” (MORINEAU, 2013, p.
quais Geiger está envolvida naquele momento. 49). Observo que os sentidos de
Há, no entanto, no processo que o envolve centro são complementares, mas
uma preocupação com a atuação coletiva, com distintos em From the center:
o estabelecimento de modelos que permitam feminist essays on women’s art.
partilhar o sensível em conversações com outros.
Trata-se de uma importante abertura para 23 Os debates no interior
pensamentos imagético-espaciais críticos. de grupos feministas com
perspectivas político-sociais
Lucy Lippard (Nova York, 1937), curadora, distintas são inesgotáveis. De
crítica e ativista feminista, escreve, em 1976, modo esquemático, no contexto
From the center: feminist essays on women’s estadunidense, o “feminismo
art/A partir do centro: ensaios feministas sobre radical” é focado nas diferenças
a arte de mulheres. A autora, contemporânea entre mulheres e homens,
de Geiger, conta como o movimento feminista sendo a capacidade reprodutiva
transformou suas aproximações da crítica. Algo a mais significativamente
que talvez, diz ela, não possa ser visto “de fora”, explorada. Entre as feministas
mas dali de onde ela vive, “de dentro”, há uma radicais do início dos anos
nova liberdade para responder a todas as artes, 1970, a possibilidade de gerar
em nível pessoal (LIPPARD, 1976, p. 2). Para filhos é um impedimento para
Lippard, o centro refere-se às sociabilidades e a liberação, que nas décadas
80
seguintes será compreendida e possibilidades de individuação instauradas em
celebrada como um poder do suas vivências feministas22.
corpo das mulheres (definidas
pela coerência entre o sexo Na década seguinte, a autora publica Overlay:
e o gênero). O “feminismo contemporary art and the art of prehistory/
socialista” concentra-se Sobreposição: arte contemporânea e a arte
sobre as análises das relações da pré-história (1983). Em um dos capítulos,
econômicas, políticas e sociais “Feminismo e pré-história”, ela afirma serem
que estruturam e mantêm o habituais em diferentes culturas “pré-históricas”
patriarcado, sendo a libertação as associações entre as formas da natureza e
das mulheres impossível numa o corpo feminino. Há a compreensão de que
sociedade capitalista, atentando existem na história psíquica feminina vestígios
densamente para a divisão de outros tempos-espaços, associação que
sexual do trabalho (McLAREN, produz nexos de significações entre corpos
2016, pp. 18-23). O “feminismo feminizados e natureza. Um exemplo é a vagina
cultural” parte da defesa de uma identificada como caverna, lugar de nutrição,
“cultura feminina”, pautada em morte, vinculada ao sexo e à maternidade, numa
atributos biológicos, por exemplo conexão direta dentre o corpo feminino e a Mãe
a vagina. Há uma procura pelo Terra (LIPPARD, 1983, p. 42).
estabelecimento de um espaço
de liberdade feminista em uma Esse tema gerou debates extensos entre
cultura centrada na mulher, cuja feministas culturais, radicais ou socialistas23, por
premissa pode ser interpretada exemplo, sendo importante destacar a crítica aos
como a existência de uma estereótipos pautados no destino biológico, que
“essência feminina” (ALCOFF, consideram que a identificação da mulher com a
2002, pp. 3-7). natureza e dos homens com a cultura contribui
para a manutenção da dominação masculina
24 Lélia de Almeida Gonzalez (LIPPARD, 1983, p. 42).
é formada em Filosofia (1962)
pela Universidade Estadual da Entre as autoras brasileiras que escreveram
Guanabara, atual UERJ. É funda- naquela mesma década de 1980, destaca-se a
dora e militante da organização intelectual, professora, militante antirracista
Movimento Negro Unificado e feminista Lélia Gonzalez24 (Belo Horizonte,
(MNU), em 1978. É a primeira 1935 – 1994, Rio de Janeiro), em fundamental
mulher negra eleita uma das texto “Racismo e sexismo na cultura brasileira”,
mulheres do ano pelo Conselho apresentado pela primeira vez em 1980. Em
Nacional das Mulheres do Brasil uma crítica ao “mito da democracia racial”,
(1981). Participa de uma série de a autora afirma que “o lugar em que nos
eventos feministas e antirracis- situamos determinará nossa interpretação do
tas. É representante brasileira duplo fenômeno do racismo e do sexismo”
no Fórum da meia década da (GONZALEZ, 2021, p. 76)25.
mulher (Copenhague, 1981) e
representante brasileira no fó- O lugar é a forma como se é identificado
rum de encerramento da década enquanto Negro, Mulher, Índio a partir de
da mulher (Nairóbi, 1985). Para práticas discursivas e imagéticas coloniais. É
maior conhecimento sobre a po- também uma forma de reconhecimento de si em
tência da trajetória de Gonzalez, uma sociedade misógina e racista, na medida em
ver Rios e Ratts (2010). que potencializa e multifaceta tais categorias e,
81
simultaneamente, movimenta-se para romper as 25 Sobre o pensamento de Lélia
bases epistemológicas nas quais são estruturadas Gonzalez e os usos da noção de
as construções de estereótipos violentos e “lugar”, consultar Ribeiro (2017)
aprisionantes. e Ambra (2020). Retomarei essas
discussões no próximo capítulo.
O comum entre as diferentes artistas e teóricas
referidas é uma crítica aos modelos de
produção psíquico, imagético, espacial, entre
outros, formulados por meio da racionalidade
ocidental moderna. Fernando Cocchiarale,
em texto publicado em 1978, lembra que em
Circumambulatio há uma procura por elementos
considerados alheios à cultura ocidental, na qual
a investigação sobre o centro é fundamental. O
crítico transcreve trechos escritos por Geiger no
catálogo da mostra26: 26 O catálogo ao qual se refere
Cocchiarale é o produzido no
O esforço para compreender os modos de pensa- ano de 1973 para a exibição de
mento alheios à tradição da razão ocidental para Circumambulatio no MAC-USP e
decifrar o significado de seus mitos e símbolos será abordado adiante.
enriqueceu a consciência do homem contem-
porâneo... Para o homem arcaico, o espaço não
é homogêneo, isto é, apresenta rupturas. Ele
considera algumas porções de espaço qualita-
tivamente diferentes de outras, e esta situação
de não homogeneidade do espaço constitui sua
experiência primordial... Nesta extensão que en-
tende como não homogênea, na qual nenhuma
orientação pode se efetuar, escolhe um lugar, um
ponto fixo, absoluto, um centro (Geiger, citada
em COCCHIARALE, 1978, pp. 20-21).
82
ocidental e das possibilidades de constituição
de práticas críticas marcam o pensamento do
filósofo Michel Foucault (Poitiers, 1926 – Paris,
1984), cujas ideias circulavam no Brasil na
27 Foucault esteve no Brasil em década de 197027. A filósofa contemporânea
1965 e, a cada ano, entre 1973 e Judith Butler (Cleveland, 1956) – em Relatar a si
1976. É marcante sua presença mesmo: crítica da violência ética (2015) – afirma
no Rio de Janeiro em 1974, que Michel Foucault, ao tratar da constituição
quando oferece seis conferências do sujeito, aponta a produção da verdade como
no Instituto de Medicina Social problema incontornável quando pergunta pelas
(CONDE, 2020, pp .20-22). possibilidades da elaboração de uma atitude
Em 1979, o filósofo Roberto crítica (BUTLER, 2015, pp. 34-35).
Machado organiza o livro
Microfísica do poder, aberto com É diante desses efeitos de poder, das normas
“Verdade e poder”, entrevista estabelecidas por meio de certo regime de
concedida por Foucault em verdade, que o sujeito encontra o quadro
1977. Nela é possível observar referencial a partir do qual se relaciona e
que Foucault compreende por reconhece a si mesmo (BUTLER, 2015, p. 35). No
verdade não o conjunto de entanto, observa Butler, “Foucault não defende
coisas verdadeiras a descobrir ou apenas que exista uma relação com essas
fazer aceitar, mas o conjunto de normas, mas também que qualquer relação com
regras pelas quais se distingue o o regime de verdade será ao mesmo tempo uma
verdadeiro do falso e se atribui relação consigo mesmo” (BUTLER, 2015, pp.
efeitos específicos de poder 35-36).
(FOUCAULT, 2008a, p. 13).
Como destaca a autora, a crítica não se refere
apenas “a uma prática social determinada ou
a certo horizonte de inteligibilidade em que
surgem as práticas e instituições; ela também
significa que sou questionada por mim mesma.
Para Foucault, o questionamento de si torna-
se consequência ética da crítica” (BUTLER,
2015, pp. 35-36). Dito de outro modo, é no
reconhecimento de si diante das normas que se
torna possível para o indivíduo observar como
um regime de verdade específico determina
os modos de subjetivação aos quais ele está
vinculado.
83
Em nossa formação como sujeito, existe uma imagem 41
opacidade incontornável. Corpos passam por Robert Smithson
experiências das quais não temos recordações na Spiral jetty
infância, ao menos não claramente configura- 1970
das. É a possibilidade da linguagem que estabe- Fotografia de Gianfranco
lece as condições para a construção narrativa. Gorgoni
Nas palavras de Butler, “Eu sempre recupero,
reconstruo e encarrego-me de ficcionalizar e fa-
bular origens que não posso conhecer” (BUTLER,
2015, p. 55).
84
28 Robert Smithson criou uma estadunidense Robert Smithson (Nova Jersey,
série de trabalhos artísticos 1938 – Texas, 1973)28, no qual uma grande
e textos que versam sobre a forma espiral produzida nos solos da costa de
natureza, o espaço, os limites Great Salt Lake, Estados Unidos, utiliza 6 mil
do museu e da prática estética. toneladas de rochas de basalto preto e a terra
Criou trabalhos como Broken local. Smithson é um dos primeiros artistas a
circle/Spiral hill (1971) e Amarillo trabalhar com formulações ligadas a land art/
ramp (1973), esse último earthwork, elaborada como possibilidade de
interrompido por sua morte subverter a estabilidade do museu. Smithson
em um acidente de avião. A desenvolve uma prática artística marcada pela
esposa Nancy Holt e os amigos busca por lugares inacessíveis em contraposição
Richard Serra e Tony Shafrazi ao meio artístico nova-iorquino, no qual tudo
completaram Amarillo ramp “parecia estar demasiado à mão”, como afirma a
(HOLT/SMITHSON FOUNDATION). historiadora Estrella de Diego (2015, p. 93).
Smithson e artistas como Serra,
Robert Morris, Michel Heizer De acordo com o crítico Craig Owens (Chicago,
e Nancy Holt problematizam 1950 – 1980), o trabalho de Smithson traz um
a categoria modernista de deslocamento radical da arte, removida do
escultura e produzem obras em museu e da galeria para lugares inacessíveis
locais demarcados (KRAUSS, (OWENS, 1979, p. 123). Simultaneamente, a
1984, p. 135). produção de jetty é permeada por discussões
sobre o centro, mais precisamente sobre
29 No texto de Owens e de a dialética entre centro e circunferência,
Smithson o mote inicial das sublinhadas anos antes por Smithson no texto
análises é o mito da Torre de “A museum of language”/“Um museu da
85
linguagem” (1968) (OWENS, 1979, p. 122)29. Babel, em discussões sobre a
O título Spiral jetty refere-se a três operações: linguagem e o espaço. Vale
a estrutura de rochas realizada no solo, um lembrar que a pesquisa de
filme feito durante a sua construção e um texto Garry Shapiro, Earthwards:
publicado pela primeira vez em 1972, no qual Robert Smithson and art after
se discute a ação no solo e o filme, em uma Babel (1997), versa também
linguagem que varia entre as discussões da essa perspectiva. Neste capítulo
história da arte, da geologia e da mitopoética trarei considerações sobre a
(SHAPIRO, 1995, p. 7). Textos e registros são história de Babel com base em
parte constituinte de Spiral jetty, mobilizando Circumambulatio.
discussões sobre lugar/não-lugar e o local de
onde se observa. Com jetty há um deslocamento
radical da noção de ponto de vista, afastando-a
de uma função ligada à posição física e
aproximando-a de debates sobre o modo –
fotografia, cinema, texto – de confrontação com
o trabalho de arte (OWENS, 1979, p.128).
86
fotográficas, longe de serem documentos incon-
testes e intrinsecamente verdadeiros, são produ-
zidas em meio a uma série de práticas discursi-
vas e apresentam um recorte do olhar, marcam
uma localidade.
87
imagens 44 e 45
Nancy Holt
(Al Poynter, Dannis Siroky, Gregg
Tillman e Rick Westby)
Enclosure: Rock Rings,
1977-1978
fotografia de Matthew Anderson
88
importantes das obras de Holt são os registros
fotográficos, considerados parte fundamental
e constitutiva do trabalho, ou seja, tão
importantes quanto a escultura (HOLT, 2012).
89
trabalho inscrita no solo, aos modos de uma
brincadeira da infância. Em seguida, o plano
abre, e Anna Bella é registrada em sua ação de
caminhar em círculos. O local de filmagem é
a floresta que integra o Parque Lage no Rio de
Janeiro, onde no ano seguinte seria inaugurada
a Escola de Artes Visuais31. 31 A escola livre do Parque
Lage torna-se um “centro de
A ação da artista encaminha-se para o final convergência de um grande
quando ela agarra um pedaço de pau com o número de artistas jovens nos
qual marca um ponto no solo, lançando-o em anos 80, e Anna Bella é figura
um movimento acompanhado pela câmera. Ao surpreendente nesse espaço”,
fim, Geiger surge segurando um papel em frente relata o ex-aluno Armando
ao rosto, no qual está desenhado um quadrado Mattos (citado em NAVAS;
– sem muita precisão – e um círculo com um PEQUENO, 2007, p. 112). Sobre
“X” dentro a partir do qual sai uma linha a importância desse local no
curva feita com traços descontínuos. Abaixo território das artes visuais no
do papel está escrito “any directions out of the Brasil, ver o capítulo “O ativismo
center”/“qualquer direção para fora do centro”. institucional em ação”(JORDÃO.
As palavras escritas em inglês justificam-se 2018).
pela intencionalidade de enviar o vídeo, por
intermédio e financiamento do MAC-USP, para a
exposição Video Art (1975), no Instituto de Arte
Contemporânea da Universidade da Pensilvânia,
retomada ao longo deste texto.
32 Vito Acconci trabalha com
Centers/Centros (1971) é o título do vídeo do problemas relativos à linguagem,
artista e arquiteto estadunidense Vito Acconci ao espaço e às tecnologias
(Nova York, 1940 – 2017)32, com o qual a pes- de produção de imagem,
quisadora Thamara Venâncio de Almeida (2017) em intersecção entre arte e
relaciona Centerminal (ALMEIDA, 2017, pp. arquitetura. Ações performáticas
23-24). Centralizado pela câmera, em um plano marcam suas práticas artísticas,
fechado, Acconci sustenta o braço em frente ao tais como o encaminhamento
rosto, apontando com o dedo indicador para a de sua correspondência para
câmera durante pouco mais de 20 minutos. o MoMA durante a exposição
Information/Informação (1970).
Rosalynd Krauss abre seu texto “Vídeo: a es- O artista comparecia todos
tética do narcisismo” (1976) discorrendo sobre os dias ao museu para abri-
Centers. A autora interessa-se em discutir a re- la. Ou em Seedbed /Canteiro
flexividade, “fratura entre duas entidades catego- (1972), apresentada na galeria
ricamente diferentes que podem elucidar uma à Sonnabend, que consistia
outra, à medida que a separação é mantida”, em no artista masturbando-se,
relação à reflexividade especular, a qual “implica enquanto o público passeava
vencer essa fusão” (KRAUSS, 2008, p. 150). Em pela galeria. Ele narra suas
Centers seria a segunda a operar, em um movi- fantasias, enquanto a voz é
mento no qual self e sua imagem refletida têm projetada em alto-falantes. A
suas diferenças “ilusionisticamente” apagadas. ação foi registrada e um vídeo
Acconci mira o centro da tela; porém, “o que produzido.
90
está latente nessa configuração é o monitor em
que ele mesmo está olhando [...]. Assim, para
nós tanto quanto para Acconci, o vídeo é um
processo que permite a fusão desses dois termos”
(KRAUSS, 2008, p. 146).
91
imagens 47, 48 e 49
Anna Bella Geiger
frames do vídeo Centerminal
1974
92
pronunciado sem identificação – um trecho
do poema de Fernando Pessoa:
imagem 50
registro das ações de Marapendi
exibida em Circumambulatio.
fotografia de Thomas Lewinsohn
(provavelmente)
93
Ao som dessas palavras, o audiovisual
encaminha-se para o fim. Após os peregrinos,
surge a imagem do trator. Por fim, uma outra na
qual ao fundo há uma montanha, e, no restante,
vê-se um solo marcado, imagino, pelas rodas
da ferramenta. Produz-se em mim uma forte
sensação de uma procura para a qual não há
fim, pelo que ainda se pode descobrir, por aquilo
que ainda há para apreender do mundo e de si
mesmo. Um retorno que sempre traz o acúmulo
memorial e imemorial, psíquico e social. O
centro do qual fala Geiger (1972)
imagem 51
registro das ações de Marapendi,
exibida em Circumambulatio.
fotografia de Thomas Lewinsohn
94
95
96
Inícios espirais ou solos poéticos
97
Entre as especificidades da montagem de
Istambul estão as estradas de areia branca,
inspiradas nas vistas aéreas durante a viagem do
Brasil para a Turquia: “Eu notei essas estradas
no meio do deserto. Esse traçado das estradas
eu não tinha feito em nenhuma das instalações
anteriores” (GEIGER, 2019b).
98
A fragilidade da matéria e as construções
arquitetônicas em desmanche trazem uma
sensação de destruição, de um território
sendo devastado. Geiger lembra que a
primeira construção de Circa estava envolta
no imaginário da Ocupação do Iraque – que
ocorrera três anos antes –, adensando, por
meio das palavras, as sensações de devastação
operadas pelas formas e as matérias da
instalação. Para a pesquisadora e artista
Ana Hortides, que realizou uma série de
montagens da obra, incluindo a da Bienal de
Istambul, “Circa apresenta uma espécie de
cidade que mescla, à primeira vista, diferentes
culturas e espaços temporais em situação de
ruínas ou aparentemente próximas a ruir”
(HORTIDES, 2019).
imagem 56
páginas da matéria “O pão nosso
de cada dia” (2018-2019), de
Bernardo Mosqueira,
publicada junto com ensaio de
Renato Mangolin da montagem
de Circa
Solar dos Abacaxis
2018
99
imagens 57,58, 59 e 60
Anna Bella Geiger
Circa
2019
Bienal de Istambul
fotografias de Gabriela
De Laurentiis
100
questões contemporâneas (BOURRIAUD, 2019,
p. 47). As guerras motivadas por interesses
econômicos, entrecruzados com problemas
religiosos, os impactos nas infraestruturas de
recursos básicos e nos modos de vida existentes
em diversas regiões do planeta compõem a
contemporaneidade. Circa traz essa dimensão.
101
imagens 61, 62 e 63
Anna Bella Geiger
Circa
2019
Bienal de Istambul
fotografia de Gabriela
De Laurentiis
102
Tratava-se do Livro de areia, no qual o número
de folhas é “exatamente infinito”, explica o
vendedor de bíblias. No tal livro “nenhuma
página é a primeira; nenhuma é a última”. Cada
vez que manuseadas, as páginas alteravam-
se numa “série infinita” que admite “qualquer
número” (BORGES, 2011, p. 102). O homem
adquiriu o estranho livro por uma quantidade
de moedas e o exemplar da “Bíblia de Wiclif, em
letra gótica”, herdado dos pais (BORGES, 2011,
p. 103).
103
O livro de areia leva esse nome porque “nem o
livro nem a areia têm princípio ou fim” (BOR-
GES, 2011, p. 102) – um nexo que reverbera na
poética de Geiger, expresso em Circumambulatio
e Circa. O personagem-narrador de Borges não
suporta a incerteza de tal constatação e precisa
livrar-se do objeto que a faz real. Geiger, por sua
vez, aventura-se nesse caminho.
104
A ilha é o núcleo. O núcleo do mundo, o núcleo
de si, que reverbera em Circumambulatio. As
areias da ilha deserta não marcam o tempo como
aquelas colocadas em ampulhetas e mensuráveis.
Elas são a imensidão do tempo: diante dela o in-
finito se abre, do mesmo modo que ocorre quan-
do deparamos com a imagem da Via Láctea na
montagem de Circumambulatio. A imensidão da
psique, do dentro de si. Na imensidão que procu-
ra alcançar o centro da terra – como na figura
humana desenhada nas areias de Marapendi.
Uma procura pelo mais profundo no solo e pelo
mais longínquo no universo. Uma busca pelas
diversas camadas que constituem cada indivíduo
e as sociedades, sobrepostas e ressignificadas na
forma fragmentária de Circumambulatio.
imagem 64
apropriações de A confusão das
línguas (ca. 1865-1868) de Paul
Gustave Doré
frame do audiovisual de
Circumambulatio.
105
1
Todo o mundo se servia de uma mesma língua e das
mesmas palavras. 2Como os homens emigrassem para
o oriente, encontraram um vale na terra de Senaar e
aí se estabeleceram. 3Disseram um ao outro: “Vinde!
Façamos tijolos e cozamo-los ao fogo!” O tijolo lhes
serviu de pedra e o betume de argamassa. 4Disseram:
“Vinde! Construamos uma cidade e uma torre cujo
ápice penetre nos céus! Façamo-nos um nome e não
sejamos dispersos sobre toda a terra!” 5Ora, Iahweh
desceu para ver a cidade e a torre que os homens
tinham construído. 6E Iahweh disse: “Eis que todos
constituem um só povo e falam uma só língua.
Isso é o começo de suas iniciativas! Agora, nenhum
desígnio será irrealizável para eles.7 Vinde! Desçamos!
Confundamos a sua linguagem para que não mais se
entendam uns aos outros”.8 Iahweh os dispersou dali
por toda a face da terra, e eles cessaram de construir
a cidade.9 Deu-se-lhe por isso o nome de Babel, pois
foi lá que Iahweh confundiu a linguagem de todos os
habitantes da terra e foi lá que ele os dispersou sobre
toda a face da terra (A Bíblia de Jerusalém, 2002).
imagem 65
apropriações de A confusão das
línguas (ca. 1865-1868), de Paul
Gustave Doré.
folder Arquivo Circumambulatio
publicado pelo MAM-RJ
2012.
106
A história da Torre de Babel tem uma série
de usos artísticos, conceituais, teóricos e
metodológicos, aprende-se com o historiador
Paul Zumthor e seu livro Babel ou o
inacabamento. Uma reflexão sobre o mito
de Babel (1998). Apresento alguns sentidos
possíveis para a relação dos mitos de Babel e de
Circumambulatio.
107
enfatiza, no texto, a necessidade de o museu
acompanhar os movimentos de contestação de
estruturas estáticas.
108
confundiu”, está no Gênesis, “a linguagem de
todos os habitantes da terra” (LOLLO, 2017, p.
17). Mas, não apenas as línguas são separadas,
uma vez que o Senhor desce à Terra, também,
para dispersar aquele povo sobre toda a
sua superfície. O caos instaura-se diante da
intervenção divina e impede os humanos de
tornarem-se um só povo, com uma mesma
língua, em uma única cidade. O Uno é desfeito,
entra em curso a diferenciação: haverá na Terra
povos, línguas e cidades distintas, múltiplas.
109
produzir a dúvida, a antítese do Único, do Uno.
O conhecimento histórico da estruturação do
espaço em que vivem, nesse caso, artistas em
contextos metropolitanos, uma compreensão
dessa localização.
110
campo muito blurred. E, ao mesmo tempo, preciso
tomar definições como qualquer artista em qual-
quer época. Mas, ali, a crise que pega é indagada, do
ponto de vista do próprio momento político (GEIGER,
2018a).
111
Para a pesquisadora, uma “direção antropológi-
ca” escolhida pela artista constrói-se como uma
“metodologia e estratégia para a busca de novas
conexões da arte com formas e contextos do seu
entorno” (ALBERTONI, 2016, p. 15).
112
imagem 68
capa do catálogo de
Circumambulatio
produzido pelo MAC-USP
1973
113
câmera fotográfica, o super-8, o vídeo e, antes,
o sismógrafo, aparelho que capta a vibração da
terra, criando registros gráficos.
114
ainda no comportamento do homem moderno,
em sua língua e clichês, projetando esta
necessidade de centro das formas mais variadas
[...]” (GEIGER, 1973a).
115
116
117
A especificidade do catálogo produzido imagem 69
para montagem em São Paulo de páginas do catálogo de
Circumambulatio possivelmente está Circumambulatio
relacionada com a própria concepção produzido pelo MAC-USP
de museu instaurada pelo diretor Walter 1973
Zanini, à frente do MAC-USP entre os
anos 1963 e 1978, e seu incentivo para
criar o museu como “território livre e
experimental em plena ditadura militar”
(FREIRE, 2013, n.p.).
118
imagem 71 É pertinente uma atenção à página dupla central
Anna Bella Geiger e Ana Hortides do material, em que estão imagens das ações na
montagem de Circa lagoa de Marapendi, de solos terrestres/marinhos
2019 e uma apropriação de A Torre de Babel (c.1563),
Bienal de Istambul pintura a óleo de Pieter Bruegel, O Velho (?
fotografia de Gabriela 1525/1530 – Bruxelas, 1569). A torre do artista
De Laurentiis está no audiovisual, com um corte distinto.
119
históricos, antropológicos e culturais singulares.
Retomando as relações entre Circumambulatio
e a montagem de Circa em Istambul, as cidades
e as pessoas estão presentes. Voando sobre
o deserto, e ao notar as estradas brancas –
introduzidas na montagem –, Anna Bella Geiger
imagina que são caminhos que unem pessoas
que vivem no deserto. São caminhos que ligam
pequenas aldeias umas às outras. Do mesmo
modo, em Circa são
120
imagem 73 Da grande maioria delas, o que se pode ver do
Anna Bella Geiger exterior são trabalhadores, andaimes e estruturas
montagem de Circa inacabadas. Forma-se um canteiro de obras em
2019 meio às águas do Bósforo; prédios e mesquitas
Bienal de Istambul compõem a paisagem da região, que naquele
fotografia de Gabriela momento passava por um grande projeto de
De Laurentiis. reurbanização. A arquiteta e artista Laura Nakel
relata que “a transformação do antigo Armazém
n˚ 5, situado na orla da região de Karaköy, em
museu compartilha características com grandes
empreendimentos recentes, como o Puerto
Madero, em Buenos Aires, o Porto Maravilha, no
Rio de Janeiro, e o V&A Waterfront, na Cidade
do Cabo” (NAKEL, 2019).
121
do espaço urbano, por vezes em dimensões
catastróficas. Nakel observa que na região do
museu ocorre “um processo que começa nos
anos 1990, no qual galerias e coletivos de arte
ocupam os antigos armazéns abandonados,
iniciando um processo de gentrificação da
região, intensificado com a chegada dos grandes
investidores privados” (NAKEL, 2019).
122
imagem 74
texto de Anna Bella Geiger para
revista Paper
Búzios
2016
123
124
Reentrâncias labirínticas
125
A fotografia integra o catálogo de
Circumambulatio produzido pelo MAC-USP. Ali,
sobre a imagem, lê-se um trecho do poema de
João Cabral de Melo Neto, “O cão sem plumas”
(1949-1950):
Difícil é saber
Onde a terra
Começa da lama,
Onde o homem,
Onde a pele
Começa da lama
Onde começa o homem
Naquele homem
126
Lygia Clark, segundo Aracy Amaral, chegaria
da “total liberdade formal ao rompimento do
quadro e deste à sua integração no espaço real,
rompendo com o virtual...” (AMARAL, 1977, p.
313). Essa dimensão é sublinhada por Ferreira
Gullar no texto “Lygia entre o brinquedo e a
máquina” (GULLAR, 1977, p. 256), publicado
na Revista Arquitetura em 1964, no qual afirma
que, “partindo da experiência concretista,
Lygia Clark dá um passo adiante, ao romper
a unidade da superfície e, progressivamente,
fazendo-a desagregar-se como tal, para integrar-
se no espaço real, tridimensional. Daí surgem
os ‘bichos’ [...]” (GULLAR, 1977, p. 255). Essa
dimensão de integração, de produção do “espaço
real”, e não apenas do espaço no plano da obra,
relaciona-se diretamente com as relações entre a
arte e o público que marcam os debates sobre as
significações da arte nos anos de 1960.
127
na educação não é a doutrina ensinada, é o
despertar” (SALGADO, 1987, p. 191)36. A ideia de 36 Sobre essas questões ver
um “despertar”, de um “acordar” para o mundo, Herkenhoff (2017).
é sublinhada por Lygia Pape e Anna Bella Geiger
na supracitada entrevista publicada no jornal O
Globo em 1971.
128
É uma estrutura de 8 metros de comprimento
como dois compartilhamentos laterais. O centro
dessa estrutura constitui-se de um grande balão
de plástico. As extremidades são fechadas com
elásticos, e as pessoas, ao se encostarem neles,
provocam as mais variadas formas. Ao penetrar no
labirinto, o visitante afasta os elásticos da entrada,
sentindo um rompimento semelhante ao de um
hímen complacente e tendo acesso assim ao primeiro
compartimento chamado “penetração”. Nessa cabine a
pessoa chega na “ovulação”, espaço igual ao anterior,
cheio de balões. Ao prosseguir, o visitante alcança o
amplo espaço central, onde é possível ver e ser visto
do exterior. Nesse local há uma imensa boca, através
da qual a pessoa entra na “germinação”, ali tomando
as posições que lhe convierem. De volta ao túnel,
continuando o passeio, penetra no compartimento
da “expulsão”, que, além de bolinhas macias de vinil
espalhadas pelo chão, possui uma floresta de pelos
pendentes do teto. Esses pelos começam muito finos
e se tornam gradativamente bastante grossos, e o
visitante vai abrindo caminho no escuro em meio a
essa massa peluda, de contexturas diferentes. Após
uma curva, a pessoa encontra um cilindro giratório.
Através da manipulação, o cilindro gira, e ela se vê
diante de um espelho deformante todo iluminado. É o
fim do labirinto (CLARK,1980, p. 34).
129
imagens 76, 77 e 78
Lygia Clark
A casa é corpo
MAM-RJ
1968
130
em parte a entrada da vagina da mulher e que
geralmente se rompe na primeira relação sexual;
cabaço”, trazendo o complemento sobre o hímen
complacente, “o que permite a penetração do
pênis, sem que se rompa”. A relação entre o
rompimento ou não da membrana e o sexo
delimita-se, sobretudo, como uma definição com
base em certos códigos de moralidade, efeito da
produção e regulamentação da sexualidade.
131
condições ‘objetivas’ necessárias para a
caracterização do crime é a de que não basta
cogitar a existência de contatos íntimos [...]
requer-se que os sinais da relação sexual
estejam literalmente inscritos no corpo da
mulher, visíveis aos olhos dos médicos legistas”.
Investiga-se o tempo da ruptura do hímen e,
caso seja antiga, a mulher perde o direito ao
recurso judiciário. Afinal, uma mulher “de
bem” não demoraria a revelar a transgressão.
Em sentidos morais, a culpa do acusado é
inversamente proporcional à “‘complacência
da ofendida’, isto é, quanto mais complacente
a seduzida, menos culpado o sedutor”. A
complacência física do hímen, por sua vez,
suspende possibilidades de verificações físicas
(BESSA, 1994, p. 181).
132
família, representada por uma figura materna
moralizante, assujeitada como guardiã da honra
familiar. Prende a atenção a minuciosa descrição
do hímen e a lembrança de não se tratar de um
daquele tipo complacente.
133
virginal. Não há exclusividade na experiência
– como desejam homens assujeitados ao
machismo, pois ela pode ser repetida inúmeras
vezes.
134
o texto recordam como a vida no lar, com
seus quatro filhos, havia demandado quase
totalmente suas atenções, afastando-a das
atividades artísticas.
135
tachista para a funcionalidade de uma pesquisa
em profundidade da realidade orgânica” (PE-
DROSA, 1996, p. 27). A crítica de Pedrosa corro-
bora as impressões de Anna Bella Geiger sobre o
pouco interesse do crítico em sua obra abstrata
(GEIGER, 2018a). A profundidade da realidade
orgânica, se pensada a partir das relações entre
maternidade e arte, ganha sentidos múltiplos.
Entram em circulação discussões sobre as pro-
fundezas do corpo materno, as possibilidades de
gestações da vida, violências efeito da materni-
dade compulsória, defrontação com o desconhe-
cimento de si, entre outras.
imagem 79
Anna Bella Geiger
As vísceras mergulham no
profundo azul do mar
1968
136
que podem surgir como imagem para a
despossessão e, simultaneamente, como abertura
para imensidão. Anna Bella Geiger, em uma
entrevista sobre a exposição de suas Viscerais
na Galeria Relevo, diz estar “procurando novos
espaços, uma terceira dimensão para conter estes
órgãos e vísceras” (Geiger, citada em O Globo,
1967). Uma procura que se desdobra numa série
de ações mobilizadas pelas práticas pedagógicas
e artísticas. As travessias de Geiger seguirão
reformulando-se nos anos seguintes nas relações
com o MAM como um centro para ação e
criação.
137
formal é posto em segundo plano, de acordo
com as argumentações de Di Cavalcanti,
em ressonância ao pensamento da esquerda
brasileira naquele momento (COCCHIARALE;
GEIGER, 1987, p. 12).
138
arte contemporânea e crítica feminista no Brasil
e na Argentina (2015), trata da importância de
Maria Martins no território artístico brasileiro,
destacando a participação da artista na
organização da I Bienal de São Paulo (1951)
(TVARDOVSKAS, 2015, p. 96). Martins, como
outros artistas que viviam na América Latina,
tais quais Remedios Varo (Anglés, 1908 – Cidade
do México, 1963) e Leonora Carrington (Clayton
Green, 1917 – Cidade do México, 2011), é
bastante próxima do movimento surrealista.
imagem 80
Anna Bella Geiger
Masculino- feminino
1968
139
retorcidos em O impossível fazem imaginar essa
des-realização da forma humana, a criação de
uma nova pele aberta às práticas de liberdade
(STIGGER, 2013, p. 33).
imagem 81
Maria Martins
O Impossível
gravura pertencente ao catálogo
numerado da exposição
realizada na Valentine Gallery,
Nova York, 1946
140
As palavras de Martins trazem algo próximo das
palavras de Geiger relacionadas à Circumambu-
latio, algo de espiritual na arte que, muito
anteriormente às instituições religiosas, se
relaciona com as explorações das possibilidades
de existência. Um procura por apreender o
universo, pensar sobre os princípios da vida –
assim como as Metamorfoses de Ovídio. Diante
do horror das guerras, dos autoritarismos, das
prisões e campos de concentração, o que é o
humano, o humanismo, a democracia?
(DAVIS, 2018; LEVI, 1988).
141
imagem 83
Anna Bella Geiger
Fígados conversando
1968
142
p. 72). Imaginam-se as entranhas expostas,
não de um, mas de dois corpos, que tentam
conversar. Pedaços de um e de outro corpo
que procuram estabelecer o território mínimo
da ação; estão na ilha deserta, no re-começo
do próprio corpo, após a dilaceração. Há nas
Viscerais, como em O impossível, camadas de
sentidos distintas que operam entre violência e
conversa, erotismo e morte, potencialidades de
recomeços e finitudes.
143
O texto dos autores é aproximado das gravuras
de Geiger (COCCHIARALLE, 1976, pp. 12-16),
compreendidas como essas “partes” – órgãos
– que existem em relação ao “todo” – corpo.
Simultaneamente, cada uma das “partes” existe
em sua “totalidade”, sendo suas transformações
operadas em diferentes dimensões, internamente
– em relação a si próprias – e externamente –
em relação ao corpo, em fluxos de rearranjos
contínuos:
imagem 84
Anna Bella Geiger
Coração e outras coisas
1966
144
A polaridade abstração/figuração marca os
debates artísticos da década de 1960 no Brasil,
como salientam as formulações dos autores.
Daisy Peccinini dedica-se especificamente a tais
articulações no livro Figurações: Brasil anos 60
(1999), no qual relaciona diretamente Coração e
outras coisas à nova figuração. Jaremtchuk, em
direção aproximada, considera que o conjunto
das Viscerais de Geiger é influenciado pelos ares
da nova figuração (JAREMTCHUK, 2007, p. 69).
145
construção de uma gravura, em suas diferentes
camadas de tinta, opera-se uma reconfiguração
da própria prática artística, transformada por
meio da realização de figuras e a procura por
seus sentidos simbólicos marcada na fala de
Anna Bella Geiger.
imagem 85
Anna Bella Geiger
Sem título
segunda metade da década de
1960
146
Latina iniciam-se aos 12 anos, ao mudar-se
com a família para a Venezuela. Aos 18 anos
chega ao Brasil e se instala no Rio de Janeiro. A
chegada ao país possibilita um encontro frutífero
com a explosão do neoconcretismo, seguida
pelas exposições Opinião 1965, Opinião 1966
e Nova Objetividade (1967), todas ocorridas no
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Entre
1968 e 1971, Maiolino instala-se em Nova York,
onde fervilham as liberdades de experimentação
de suportes, meios e procedimentos no território
artístico (ROLNIK, 2001, pp. XVI-XVII).
No trabalho Glu, glu, glu, Maiolino traz
fragmentos de uma figura humana feita com
tecido estofado e colorido com tinta acrílica.
imagem 86
Anna Maria Maiolino
Glu, glu, glu
1966
147
A figura encontra-se sem olhos e com a boca
escancarada, cheia de dentes. Em seu pescoço,
leem-se as palavras que dão título ao trabalho,
escritas em branco, Glu, glu, glu. Trata-se
de uma onomatopeia que se associa – em
língua local – ao som produzido pelo ato de
engolir. Essa parte superior do corpo preserva
sua pele, o que não acontece com a parte
inferior. As entranhas, o sistema digestório, são
exteriorizadas por Anna Maria Maiolino, estão
sem a proteção da pele.
Em Situação...Orhhh...ou...5.000...T.E. ...em N.
Y. ... City...1969, o artista constrói um ambiente
148
no qual sacos com jornal, cimento, espuma
de alumínio e tinta vermelha transformam-se
em trouxas ensanguentadas (TE). Trata-se da
primeira parte do trabalho montado durante
46 O Salão da Bússola leva o Salão da Bússola – ou Salão dos Etc.46 – no
esse nome como referência ao MAM, em 1969. Durante um mês, o público foi
promotor da mostra, Aroldo convidado a interagir com a obra (CALIRMAN,
Araújo Propaganda Ltda., que 2013, p. 86; JAREMTCHUK, 2007, p. 41).
tinha como símbolo o objeto.
Os trabalhos expostos eram em
grande parte influenciados pela
nova figuração (JAREMTCHUK,
2007, p. 41).
imagem 87
Artur Barrio
Situação...Orhhh...ou...5.000...T.E.
...em N. Y. ... City...
1969
149
Finalizada a exposição, a obra foi levada pelo
artista para o Aterro do Flamengo. Ao sair do
museu, Barrio acrescentou carne às peças, que
foram depositadas nos arredores do MAM Ali,
as peças chamaram atenção da polícia, que,
sem conseguir confirmar sua procedência com
o MAM, jogou-as no lixo (CALIRMAN, 2014, p.
86; JAREMTCHUK, 2007, p. 41).
150
No mesmo ano de Situação...Orhhh...
ou...5.000...T.E. ...em N. Y. ... City...1969,
Geiger realiza Carne na tábua (1969), na qual,
como sugere o nome, tem-se a figura de um
pedaço de carne, construído em duas partes
separadas. A primeira feita com semicírculos em
tons amarronzados, alaranjados, esverdeados e
azulados está posto em uma prancheta como de
prontuários médicos ou burocracias em geral.
Uma outra parte é vermelha e está apoiada na
tábua, uma superfície amarronzada. Uma série
de cortes, a partir de diferentes ângulos, cria
espaços em branco, “uma certa agressividade da
ação permanece nessas arestas”, sustenta Tavora
(2000, p. 70).
imagem 89
Anna Bella Geiger
Carne na tábua
1968
151
priori ou por filosofias vãs. Dentro da situação
brasileira, é um momento de virar das tripas
coração mesmo, não é?”49(Geiger, citada em 49 O sentido das palavras
TAVORA, 2000, p. 68). Um despossuir-se, virar- de Geiger amplia-se ao ser
se do avesso, virar-se para as reentrâncias. considerada a expressão “fazer
das tripas coração”, que traz
sentidos de um esforço extremo
para agir na transformação
positiva de uma situação-limite
de adversidade.
imagem 90
vista da exposição AI5 – 50 anos
– não terminou de acabar
Tomie Ohtake
2018
fotografia de Ricardo Miyada
152
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Capítulo 02 - Experimentações críticas:
situações/limites/passagens
175
176
grande importância. Geiger observa que o “ca-
ráter crítico” não é uma “abordagem temática”,
mas ocorre pelos “próprios meios usados”, como
vídeos, cadernos e fotografias (Geiger, citada em
SILVA, 1975). “É importante compreender que
o Setor de Integração Cultural visa estabelecer
diálogos consistentes entre os cursos e o acervo
do Museu”, escreve a artista em um documento
interno da instituição datado de março de 1972.
177
imagem 4
documento do Setor Integração
Cultural
MAM-RJ
1972
178
de Geiger, relacionando-se diretamente aos
processos de passagem de um fazer artístico
moderno, ligado à abstração informal, para
algo desconhecido até aquele momento. A
experimentação surge entre esses artistas como
forma de pensar amplamente sobre o sistema das
artes.
179
exercerá função social na medida em que tenha
consciência de sua responsabilidade coletiva”
(Gullar, citado em AMARAL, 2006, p. 327).
180
a buscar outra alternativa de estão Oiticica, Lygia Pape, Anna Maria Maiolino,
arte politizada e esteticamente Lygia Clark, Frederico Morais.
revolucionária, caso de Carlos
Diegues” (RIDENTI, 2014). Vale trazer as considerações de Celso Favaretto
sobre a Nova objetividade. Ele explica que
Oiticica
181
e a criação de objetos, “na tentativa de instaurar
um mundo experimental onde os indivíduos
pudessem ampliar seu campo imaginativo”
(ARANTES, 1983)8. 8 Nesta pesquisa não trabalharei
mais amplamente sobre o
Na década de 1960, discussões intensas mar- problema da vanguarda no
cam divergências entre a “arte revolucionária” Brasil. É importante considerar,
do CPC e o “experimental” da autointitulada porém, mesmo que de
vanguarda, Heloisa Buarque de Holanda afirma, modo esquemático, tal qual
entretanto, que “supostos adversários, o experi- formula Otília Arantes, três
mentalismo formal e as propostas da arte popu- momentos que, “de certo modo,
lar revolucionária criam uma forte tensão”, que, reproduzem o projeto das
de uma perspectiva histórica, fomenta a produ- vanguardas históricas escandido:
ção cultural brasileira (HOLANDA, 1992, p. 37). 17/32 — cubo/futurista; 45/60 –
abstrato/concreta (ainda no filão
do construtivismo); 65/69 (74?)
– dadaísta/pop (sem abandonar
inteiramente esta componente
construtiva dos momentos
anteriores)” (ARANTES, 1983).
imagem 5
capa da revista Malasartes nº3
1976
182
o exílio, forçado ou não, de muitos artistas”
(FAVARETTO, 2019, p. 8).
9 Com apenas três números, Anna Bella Geiger, àquela altura, não era
editados entre setembro mais parte do Conselho Cultural do Museu,
de 1975 e junho de 1976, cultivando, entretanto, a preocupação com
a revista “tomava para as diretrizes da instituição. Sobre a Área
si a função de analisar a Experimental, ela escreve um artigo para a
realidade contemporânea da revista Malasartes (1976)9. Intitulado “Sala
arte brasileira e de apontar experimental”, é assinado por Geiger, Paulo
alternativas”. Eram editores Herkenhoff (Cachoeiro de Itapemirim, 1949) e
os artistas Carlos Vergara, Ivens Machado (Florianópolis, 1942).
Carlos Zilio, Cildo Meireles,
José Resende, Luiz Paulo O texto traz um tom crítico, a começar pelo
Baravelli, Rubens Gerchman título, afirma Lopes. A autora observa que
e Waltercio Caldas, o crítico “Área” é um espaço sem limites físicos, algo
de arte Ronaldo Brito, além que pode viver em diferentes lugares. “Sala”,
do poeta e letrista Bernardo contrariamente, restringe-se a um lugar fixo,
Vilhena” (LOPES, 2013, p. pré-delimitado (LOPES, 2013, p. 55). No texto,
23). O texto está incluído em Geiger sustenta seu interesse em discutir e
Ferreira e Cotrim (2006). transformar o “próprio conceito e, portanto,
183
função do Museu” (GEIGER, 1976). Anna Bella
contou-me que interessava a eles ocupar todo o
espaço do Museu. O texto, escrito em 1976, diz
ela, tinha o intuito de uma crítica à delimitação
desse espaço “experimental” – apenas o terceiro
andar do Museu (GEIGER, 2019a).
184
posta da exposição e nos documentos do setor
de divulgação do MAM, não há menção alguma
à Área Experimental, diferentemente do que
ocorre com os projetos de outras artistas, como
Lygia Pape, Leticia Parente e Amélia Toledo.
185
186
“A imaginação é um ato de liberdade”: passagens
entre o moderno e o contemporâneo
187
As quatro fotomontagens são compostas pelos
seguintes textos:
Revelações:
1 – Passagens como (situações-limites)
2 – Abolir polaridades
3 – Iminência de passar
188
10 Nesse mesmo ano, 1957, significados se recolocam tanto de uma perspec-
Pape cria Livros-poemas. tiva interna de cada colagem, quanto ao serem
“Nos Livros-poemas, Lygia consideradas em conjunto, como uma série.
operou recortes e colagens
com formas e palavras. Essas Na aproximação desse trabalho de Anna Bella
duas experiências com poemas Geiger, penso nos Poemas-xilogravuras (1959)
inserem-se no caminho aberto de Lygia Pape, que são articulados como livros
pelo poeta francês Stéphane (1957 e 1960) (TAVORA, 2004; MARTINS,
Mallarmé (1842-1898), de 1996)10. Publicado pela Coleção Espaço, editada
rompimento com as estruturas pelo Jornal do Brasil11, no trabalho,
tradicionais da poesia, levando a
sua exploração visual” (TAVORA, cada gravura surge do poema correspondente, não
2004, p. 63). como uma ilustração, mas como a configuração
plástica da disposição gráfico-espacial das palavras
11 “A Coleção Espaço nasceu na página. Como se cada palavra irradiasse, sobre o
na redação do Jornal do Brasil espaço da página, até um determinado limite, uma
em 1958 [...]. Apesar do apoio duração própria [...] (PAPE, 1960)12.
do Suplemento Dominical
do Jornal do Brasil (SDJB) na Preocupações sobre espaço-tempo são trazidas
divulgação da Coleção Espaço, o por Pape na construção da visualidade de seu
Jornal do Brasil não patrocinou poema.
a sua impressão, e os recursos
financeiros foram conseguidos Poema-xilogravura é composto por treze peças
pelos artistas. A Coleção Espaço soltas dentro de uma “capa/caixa” quadrada.
teve cinco números. Além de Ao abri-la pelo lado esquerdo, o público vê “em
Lygia Pape com o nº 5, outros quebra” e, pelo lado direito, encontra a palavra
artistas tiveram seus trabalhos “revela” (MARTINS, 1996, p. 37). Em uma das
editados, como Ferreira Gullar páginas lê-se “fio” e “foz” alinhadas entre si,
com o primeiro número, Theon postas na parte inferior da folha. Palavras e
Spanudis com o no 2, Reynaldo imagem estabelecem relações com a constituição
Jardim com o no 3, e Carlos de livros, revistas, jornais, nos quais as
Fernando Fortes de Almeida com páginas são construídas como duplas. Ao lado,
o no 4” (MARTINS, 1996, p. 18). compondo a dupla, uma das xilogravuras cria
um tipo de onda – formada por linhas verticais –
12 “A posição crítica/criativa de que atravessa a página direita.
Lygia em relação à tradição da
gravura faz parte certamente De acordo com Pape, Poema-xilogravura
do exercício de uma vontade consiste em “um livro formado por duas partes
negativa, identificada pelo crítico distintas: poema e gravura. As duas, lado a
Ronaldo Brito como própria lado, perdem sua independência expressiva por
do neoconcretismo. Para ele, o uma outra catalisadora, que abrange as duas
rompimento com os esquemas partes, fundindo-as num todo de conteúdo
formais dominantes e a abertura novo” (PAPE, 1960). O espaço branco da
da obra à participação do página, seguindo as concepções neoconcretas,
espectador, proposta comum “integra-se à estrutura da poesia, conferindo-
em muitos trabalhos do grupo, lhe significação, compondo poema como forma
levaram esse movimento a visual” (TAVORA, 2004, p. 63).
uma situação paradoxal em
189
“Fio” e “foz” postos no quadro são parte do relação à experiência original da
todo retangular que traz a gravura. Maria Luiza arte construtiva europeia; daí
Tavora traz contribuições instigantes sobre caracterizá-lo como uma filiação
essas relações, dizendo ser o fio “uma junção, maldita. Nesse sentido, e por
encadeamento, ligação” e a foz, “desaguamento, extensão, Hélio Oiticica chamou
mutação para outra água, encontro”. Propõe que as gravuras de Lygia Pape de
“a imaginação das águas provoca as imagens ‘antigravuras’, e, poderíamos
poéticas. Imagens da mobilidade [...] Lygia completar, gravuras malditas?
cria uma espacialidade imaginativa”. Há no A ousadia da artista não a
trabalho uma “espacialidade que incrementa a desviou, todavia, da preocupação
participação do ‘leitor’ no próprio processo de de realizar uma obra gráfica”
criação da obra. Viver essa tensão, em forma de (TAVORA, 2004, p. 62).
poesia, é a proposta dos Poemas-xilogravuras”
(TAVORA, 2004, p. 64).
190
Formulação elaborada em meio a um ambiente
artístico, no Brasil, que faz uso refinado das
palavras na composição de obras áudio|visuais.
Sublinho que as palavras – escritas e faladas –
são recurso recorrente nos trabalhos de Anna
Bella Geiger, como está explícito ao longo deste
texto.
191
Focaliza para isso, no Brasil, as artistas Ana
Miguel (Rio de Janeiro, 1956), Cristina Salgado
(Rio de Janeiro, 1957) e Rosana Paulino (São
Paulo, 1967), relacionando suas poéticas a outras
importantes artistas nacionais e internacionais,
incluindo entre elas Anna Bella Geiger.
192
193
O repertório mobilizado pela artista, nessa
perspectiva, produz um modo de criar no qual
Geiger situa-se com base em determinadas
coordenadas, sem que, no entanto, elas a
assujeitem a um lugar estático, ou identitário.
194
Anna Bella Geiger põe a imagem de si ao lado
de sentenças com conotação de um movimento
de reelaboração de si, de “descanonização” do
artista, retomando o termo de Navas. Pessoas ca-
minhando pela neve e uma porta entreaberta são
imagens que compõem e reforçam essa sensação.
Um caminhar que não sugere seu fim, uma porta
que não sabemos aonde levará. Um movimento
de passagem de práticas estéticas referenciadas
na arte moderna para outras mais próximas
daquilo que depois se convencionaria chamar de
arte contemporânea. Esse movimento é – como
ela sublinha durante as entrevistas – algo extre-
mamente importante em sua trajetória poética.
195
artísticos da modernidade. Essas características
marcantes nas práticas artísticas de Geiger,
afirma Cocchiarale, impedem-nos de pensá-las
por meio de parâmetros cronológicos lineares,
aproximando-as da noção de constelações
imagéticas (COCCHIARALE, 1996, p. 9). Uma
constelação formada por séries que se afetam e
se rearranjam, transformando seus sentidos.
196
inscrevem, simultaneamente, o tempo pessoal,
microscópico, tal como o de uma caminhada, e o
impessoal, gigantesco como uma grande erosão
(DIDI-HUBERMAN, 2013, pp. 121-122).
197
berman (2013, p. 385). Warburg produz séries de
fragmentos históricos, afetivos, políticos, sociais,
astronômicos, espaciais. Em conjunto, suas ima-
gens atualizam a história. A fragmentação não
deve ser analisada em busca de uma totalidade
narrativa, mas na instauração de narratividades
possíveis, nas quais o escritor marca suas posi-
cionalidades e tensiona verdades estanques.
198
“fita de Moebius” em 1963, um ano após
Jacques Lacan (1901-1981) mobilizá-la em
imagem 9 seu Seminário. Para o psicanalista, o sujeito
Lygia Clark é divisível e – tal qual a fita faz – inaugura a
Caminhando distinção entre dentro e fora numa relação de
1963 continuidade (RIVERA, 2013, p. 142).
199
Rivera traz para suas análises a proposição de
Caminhando (1963), que diz ser “uma revolução
na obra da artista”, permitindo-lhe “ultrapassar
a distinção sujeito/objeto e, portanto, recusar
radicalmente a noção de objeto de arte em
prol de uma primazia do ato” (RIVERA, 2013,
p. 142)14. Criada com base na fita de Moebius, 14 Suely Rolnik, uma das
é construída por meio de uma torção de 180 principais pesquisadoras do
graus na ponta de uma fita, colada sobre a outra trabalho de Clark, propõe “dividir
ponta – trabalhada poeticamente por Lygia a obra de Lygia em duas partes,
Clark –, “na qual avesso e direito se tornam tendo como marco divisório
indistinguíveis” (ROLNIK, 1999, pp. 12-13). Caminhando (1963). A primeira
parte (1947-63) se desenrola
Caminhando consiste em uma proposição após o fim da Segunda Guerra
que envolve uma tesoura e um papel torcido Mundial e da ditadura de Getúlio
em 180 graus e colado nas extremidades – Vargas, fatos que antecedem e
transformado em uma fita de Moebius, na qual preparam os anos 1950 de um
avesso e direito não são discerníveis. Corta-se Brasil desenvolvimentista que,
a fita longitudinalmente, escolhendo um ponto sob a presidência de Juscelino
qualquer para iniciar, pela esquerda ou pela Kubitschek, sonha com sua
direita (FABBRINI, 1994, pp. 92-93). Sugere-se integração à modernidade. É o
evitar incidir sobre o mesmo ponto a cada vez momento da construção da nova
que se completa uma volta na superfície. A fita capital, Brasília, emblema maior
afina-se com o ato, até um momento em que desse sonho, embalado ao som
a tesoura não tem como evitar o ponto inicial. da bossa nova. Nesse ambiente,
Então, “a tira separa-se em duas, readquire não só no Brasil, mas em outros
avesso e direito, e a obra se encerra” (ROLNIK, países da América Latina que
1999, p. 13). vivem um processo semelhante,
reatualizam-se as tendências
As práticas artísticas de Clark se iniciam, construtivistas, pela ressonância
em 1947, para sobreviver à crise depois do da nova paisagem local com o
nascimento do terceiro filho (Clark, citada em contexto em que elas haviam se
ROLNIK, 1999, p. 5). Na abordagem das crises desencadeado na Europa após a
de Clark – que acompanham toda a sua obra –, Primeira Guerra Mundial. Assim
é importante dimensionar que não se trata de surgirá o movimento concretista
“um dado secundário ou pitoresco, nem objeto e sua dissidência neoconcretista,
de uma frívola curiosidade acerca da intimidade dos quais Lygia Clark será uma
da artista ou de sua ‘conturbada personalidade’, das mais vigorosas expressões.
mas estão no próprio cerne de sua obra”, Tais movimentos são precedidos
defende Suely Rolnik (1999, p. 6). pela criação dos Museus de Arte
Moderna de São Paulo (1948)
A experiência de criação de Caminhando tem e do Rio de Janeiro (1949), da
essa como uma de suas dimensões. Rolnik (1999) Bienal de São Paulo (1951) e
lembra-se de um texto escrito naquele momento, do movimento Ruptura (1952)”
no qual Clark diz: “Tenho pavor do espaço, mas (ROLNIK, 1999, p. 7).
sei também que através dele me reconstruo. O
seu sentido prático sempre me falta nas crises,
pois a primeira coisa que sinto é a falta de
200
percepção dos planos e perco o equilíbrio físico”
(Clark, citada em ROLNIK, 1999, p. 5). Clark
articula com essas palavras a crise do corpo e do
espaço, algo constitutivo de Caminhando.
201
A crise é algo que se repete em Caminhando e
em Situações-limite. No entanto, os disparado-
res das crises são distintos entre Lygia Clark e
Anna Bella Geiger. Em Clark constitui-se com
base em uma experiência, suponho, próxima ao
que Betty Friedan (Peoria, 1921 – Washington, imagem 10
DC, 2006) descreve, naquele mesmo ano, como Anna Bella Geiger
“o problema que não tem nome”. Em A mística Nearer
feminina (1963), a autora, situando-se em uma 1975
perspectiva das mulheres da classe média branca
dos subúrbios americanos, evidencia os efeitos
aprisionantes da identidade da mãe-esposa-
-dona-de-casa na produção de subjetividades
femininas.
202
203
204
Desaparecimentos/aparecimentos
205
Composta por três peças, exibe fotografias e
palavras, lado a lado, formando narratividades.
Uma distinção importante entre os dois trabalhos
e o processo de criação, pois as colagens –
Indagação sobre a natureza, significado e função
da obra de arte – não passam pelo procedimento
das matrizes de fotolito, diferentemente do que
ocorre em Situações-limite.
imagens 12 e 13
Anna Bella Geiger
Indagação sobre a natureza,
significado e função da obra de
arte (série)
1973
206
ma peça – na qual a artista vai desaparecendo
– há desenhos e registros fotográficos de monta-
nhas colocados lado a lado.
207
desaparição, que de modo mais amplo marcam
as imagens de Geiger.
208
que são então ampliados em papel Kodak. Um
procedimento, registra a artista, “que não é o
de agora, quando se faria isso com scanner”.
Ela afirma que há uma espacialidade própria
do procedimento, “como se as fotografias
estivessem em um jornal, dentro do papel”
(GEIGER, 2018d, p. 236).
209
televisada o total respeito à Revolução de Março
de 1964, que é irreversível e visa a consolidação
da democracia” (GASPARI, 2014b, p. 216).
210
Neste momento do texto é necessário ampliar a
compreensão de aparecimento, espaço e públi-
co, que permite adensar as camadas de sentido
diante do trabalho de Anna Bella Geiger. Propo-
nho que tais noções possibilitam criar visibilida-
des para aspectos pouco explorados das práticas
e obras da artista, em particular, àqueles que as
teorias filiadas aos feminismos apresentam. E,
relembrando, tais relações são pensadas, ainda,
com base nos problemas de espacializações, que
permeiam a escrita desta tese.
211
é compreendido não como algo fixo no qual se
publiciza a fala, mas como constituído no plano
performativo do lugar falante (talking place)
(ATHANASIOU;BUTLER, 2013, p. 194).
212
Nos últimos anos, Djamila Ribeiro (Santos,
1980) concretiza o termo como importante
instrumento de debates públicos, sendo essa
noção apresentada como “localização social”.
213
no senso comum – que uma arte colocada fora
de instituição, em parque, praça, rotatória, é
intrinsecamente pública (DEUTSCHE, 2007, p. 2).
214
ditatorial. Dito de outra maneira, as ações de
artistas e educadores instauram constantemente,
e em formas experimentais, práticas para a con-
quista daquele espaço como público.
215
pejorativa da profissão, muito distintas daquelas
mobilizadas por militantes como Gabriela Leite17 17 Gabriela Leite (São Paulo,
a partir daquela mesma década (RAGO, 2013a). 1951 – Rio de Janeiro, 2013)
estudou Ciências Sociais na USP.
* Fundadora da ONG Davida – que
defende os direitos de pessoas
Os (auto)retratos de Anna Bella Geiger são que se prostituem, tal qual a
um contraponto importante às imagens regulamentação da prostituição
inferiorizantes do feminino. Eles compõem –, ficou amplamente conhecida
um dos motes da exposição Brasil nativo/ ao fundar a grife “Daspu” (2005).
Brasil alienígena (MASP, 2019). O curador
Tomás Toledo divide a mostra em três temas
que, sugere, se repetem na produção da artista,
sendo os outros dois as vísceras e os mapas.
Aos retratos e autorretratos ele associa – talvez
um tanto apressadamente – questionamentos
sobre a “representação humana” em pintura,
vídeo, fotografia. Toledo identifica, então, na
produção da artista, duas miradas opostas: uma
de tom “intimista, autobiográfico e reflexivo” e
outra focada mais “no campo público e político”
(TOLEDO, 2019, p. 34).
216
A produção de Anna Bella Geiger a partir de
meados da década de 1970 traz uma articulação
complexa entre a crise e a reelaboração de si en-
quanto artista contemporânea e o engajamento
crítico à situação política nacional. Declaração
em retrato I (1974) – que compõe a exposição de
1975 no MAM, Situações-limites e Brasil nativo/
Brasil alienígena – traz um importante ponto
para explicitação dessas considerações.
217
218
artistas performatizam e jogam com elementos
biográficos ao utilizarem agulhas, linhas
e outros elementos associados histórica
e culturalmente ao feminino. Trata-se de
elementos da vivência individual que, trazidos
a público, não correspondem a preocupações
de veracidade ou autenticidade, mas tensionam
memórias emblemáticas (TVARDOVSKAS, 2010).
219
tendência muito reconhecível de incorporar
nas obras objetos, fotografias, roupas, cartas
e diversas marcas da vida pessoal do artista”
(ARFUCH, 2010, p. 60). A potência crítica dessa
tendência está em criar autoficções utilizando
memórias íntimas elaboradas por meio de práti-
cas artísticas, que excedem o narcisismo e abrem
possibilidades para a constituição de uma “arte
pública”, no sentido, trabalhado por Rosalyn
Deutsche, de uma arte que possibilita a criação
de um espaço como público (ARFUCH, 2018).
220
envolvida durante a criação do vídeo. Logo
no começo do vídeo ela fala sobre pessoas do
sistema da arte, em especial, nos Estados Unidos
e na Europa, que vêm ao Brasil e assumem
uma posição de “ensinar, colonizar, civilizar”.
Violências coloniais e modos de criar imagens
emancipatórias de si articulam-se em Declaração
em retrato I.
221
Com gravuras abstratas, Geiger ganha o primeiro
prêmio Casa de las Américas no 1º Concurso
Internacional de Grabado (1962), em Havana.
Recebe, por esse motivo, um convite para visitar
Cuba, o que, dois anos mais tarde, lhe causaria
alguns problemas com a polícia. Com o golpe
civil-militar, no contexto da guerra fria e da
caça aos comunistas, a viagem da artista é
motivo de suspeita. É, assim, intimada a depor
aos militares, que – não convencidos com suas
respostas – decidem ir ao seu apartamento;
“queriam saber se fazia dinheiro na prensa de
gravura”, explica Geiger (2018a).
222
223
cercava, no laboratório, de uma faixa preta”. O
resultado visual é de uma navalha que começa
“longe, vai chegando e chega; de repente, a
foto é só da lâmina atravessada” (GEIGER,
2018f). Dito de outro modo, uma página preta
retangular tem dentro dela um retângulo em
branco no qual está a navalha. Nas onze fotos-
sequências essa navalha começa a crescer ao
aproximar-se da câmera.
224
edge” (mais perto da borda). A margem é um
ponto de ação importante nos escritos de bell
hooks. No consagrado texto Teoria feminista: da
margem ao centro, publicado em 1984, a autora
define “estar na margem” como “fazer parte de
um todo, mas fora do todo ideal”
(HOOKS, 2019, p. 2).
imagens 22 e 23
Anna Bella Geiger
Nearer (montagem e detalhe,
respectivamente)
1975
225
oferece a uma pessoa a possibilidade de ter uma
perspectiva radical a partir da qual possa ver e
criar, imaginar alternativas, novos mundos (HOOKS,
2019, p. 289).
226
a demarcação de terras e de assassinatos
de indígenas: “Eu questiono essas imagens
paradisíacas de cartões-postais da época”, diz
Geiger (2007a, p. 92).
227
nativo/Brasil alienígena é fundamental para uma
aproximação crítica ao trabalho. A violência
que se manifesta também na produção de
imagens de exportação do Índio como categoria
identitária fixa que serve ao apagamento da
diversidade dos povos indígenas. O escritor e
professor Daniel Munduruku defende que índio é
228
tradicionalmente convertida em símbolo por meio
da figura do índio (CHIARELLI, 1999, p. 116).
imagem 24
Anna Bella Geiger
Brasil nativo/Brasil alienígena
1977
229
Brasil nativo/Brasil alienígena é, seguindo as
considerações de Chiarelli, uma crítica reflexiva
à própria localização de Geiger. A relação entre
crítica e reflexividade é de interesse de Judith
Butler em conversação com Michel Foucault.
Ao tratar da constituição do sujeito, o filósofo
aponta a produção da verdade como problema
incontornável para a elaboração de uma atitude
crítica, afirma Butler (2015, pp. 34-35).
230
para a criação de processos de subjetivação nos quais
a ética é aquilo a ser permanentemente conquistado.
231
Brasil – little boys and girls. O movimentar
das páginas gera sobreposições que rearranjam
os sentidos para a obra. Durante dois anos,
entre 1974 e 1976, Anna Bella Geiger criou
mais de vinte cadernos, aos quais se refere
como “meus caderninhos”. Deles, uma série de
imagens e temas é retirada para a criação de
outros trabalhos. Eles são fundamentais para
compreender a relação da artista com a história
do Brasil e dos impactos do pensamento militar
a respeito da educação e do meio ambiente
(GILBERT, 2019, p. 51).
232
as análises propostas até o momento, articula
de modo complexo processos pedagógicos
coloniais, produção de visualidades e violências.
233
exemplo –, não acabariam por atualizar a vio-
lência? As obras não acabam, por fim, corrobo-
rando aquilo que dizem querer combater?
imagem 26
Anna Bella Geiger
História do Brasil – little boys and
girls (detalhe)
1975
234
práticas para uma crítica reflexiva e complexa,
afastada de dicotomias.
235
236
Movimentando imagens
237
imagens 28, 29 e 30
Anna Bella Geiger
frames de Passagens I
1974
238
Passagens e Intervals são finalizados com um
ano de diferença. Discussões sobre o tempo-
espaço e as posicionalidades na construção de
imagens são mobilizadas pelos dois trabalhos.
Em Intervals a câmera está estática, fixada
em pontos específicos na cidade de Veneza,
apresentando recortes daquela urbanidade,
para os quais é produzida uma trilha sonora.
Em Passagens I a câmera acompanha o corpo
de Geiger, trazendo os sons do salto alto
quadrado da artista em contato com o chão.
Sons escutados durante o caminhar de Anna
Bella Geiger dentro de um prédio prestes a ser
demolido. Enquanto Anna Bella sobe a escadaria
da Rua Santo Amaro, latidos de cachorros e
assovios – ação recorrente dirigida a corpos
feminizados nas ruas de cidades brasileiras – são
ouvidos ao fundo.
239
aparece uma série de fotos da casa de sua tia
Ethel, gravadas enquanto são escaneadas. O
processo faz com que a foto estática adquira
uma versão mais alongada, mostrada no
trabalho nessa variação. Uma mesma vista da
sala de televisão tem, por exemplo, o aparelho
em dimensões distintas, ocorrendo o mesmo com
registros de sofás, cadeiras e outras peças de
mobiliário. Holt narra trechos de cartas de Ethel
escritas durante dez anos (HOLT, 2011).
imagem 34
página do catálogo da exposição
Video art
organização de Suzanna
Delehanty
Instituto de Arte Contemporânea
da Pensilvânia
1975
240
Com uma poética marcada pelos debates
feministas, Valie Export investiga a produção
de imagens, explorando o próprio potencial do
instrumental fílmico e fotográfico. A artista
torna visíveis os mecanismos de produção dos
imaginários, das linguagens que constroem
os mapas cognitivos, sugere Margarete Lamb-
Faffelberger (2014, p. 26).
imagens 35 e 36
Valie Export
frames de Vendo e ouvindo o
espaço
1974
imagem 37
Valie Export
Alongamento
série Configurações Corporais
1972
241
pode ser compreendida, diz Margarete Lamb-
Faffelberger, como uma resistência aos modelos
de construção do espaço público, notadamente
entendido como masculino, interferindo
nas estruturas arquitetônicas (LAMB-
FAFFELBERGER, 2014, p. 27). Em Passagens
essa ação de expor a si pode, igualmente,
ser compreendida como uma forma de
“reivindicação do espaço público”, colocando-se
como “personagem ativa”, como sugere Isadora
Mattiolli (2018, p. 81). A produção de imagens
em movimento – seja o cinema de Hollywood
ou as propagandas de televisão – é marcada por
um grande interesse por corpos feminizados. No
mais das vezes, as mulheres nessas produções
são figuradas de formas passivas e erotizadas.
242
publicado em 1973 no número 228 da revista
Neues Forum (EXPORT, 2014), sugere que trazer
a situação específica da mulher para o contexto
artístico estabelece signos e sinais que possibi-
litam novas formas de expressões artísticas e
serve para transformar o entendimento histórico
sobre as mulheres (Export, citada em PATRIDGE,
2019, pp. 118-119).
243
A participação de Anna Bella Geiger na mostra
Video art é resultado do trabalho de Walter
Zanini. Como diretor do MAC, Zanini negocia
e envia os trabalhos não só de Geiger, mas de
Sonia Andrade (Rio de Janeiro, 1935), Fernando
Cocchiarale (Rio de Janeiro, 1951), Ivens
Machado (Florianópolis, 1942) e Antonio Dias
(DELEHANTY, 1975, p. 5). Entre os trabalhos
enviados, apenas os de Antonio Dias não foram
feitos com a câmera Sony Portapak de Tom
Azulay. Video art viaja pelos Estados Unidos,
saindo da Pensilvânia para The Contemporary
Arts Center em Cincinnati, para o Museum of
Contemporary Art em Chicago e o Wadsworth
Atheneum em Hartford. Em 1975, Jack Boulton
– diretor do Museu de Cincinnati – organiza
Video art USA como parte do programa da 13ª
Bienal de São Paulo que, vale sublinhar, naquele
momento sofria um boicote por parte de artistas
nacionais.
244
museu comprou um equipamento de vídeo e
disponibilizou-o para uso dos artistas, em um
momento em que seu custo era ainda proibitivo,
o que viabilizou a realização de inúmeros tra-
balhos de videoarte” (JAREMTCHUK, 2013, p. 8).
21 “Criado em maio de 1972
a partir do encontro da Aracy Amaral (São Paulo, 1930) é outra
historiadora e publicitária Maria facilitadora da inserção de trabalhos brasileiros
Luiza de Alencar e do cineasta em videoarte (DELEHANTY, 1975, p. 5) e
Abrão Berman, o Grupo de uma das primeiras a organizar uma mostra
Realizadores Independentes sobre o tema no Brasil. Na sede do Grupo
de Filmes Experimentais de Realizadores Independentes de Filmes
(Grife) consolidou-se como Experimentais (Grife)21, a Expo-projeção (1973)
importante espaço de formação exibe trabalhos das consideradas novas mídias,
e difusão artística, cultural como audiovisuais com slides, filmes em super-8
e cinematográfica, sendo o e 16 mm, além de obras sonoras. À época,
propulsor do uso da então Aracy Amaral defende que a mostra é concebida
novidade, o super-8 mm, na como uma manifestação crítica em relação ao
cidade e no país” (CRUZ, 2016). presente. A Expo-projeção configura-se, em suas
palavras, como uma
245
Medici, Presidente da República” (Catálogo da
XII Bienal de São Paulo, 1973, p. 3). Noventa
por cento dos artistas brasileiros foram re-
provados para a Bienal, tendo como efeito uma
mostra paralela, a Bienal dos Recusados. Assim,
“no dia 5 de outubro, enquanto as autoridades
inauguravam a exposição no Ibirapuera, a
Galeria Espade, na Rua Pamplona, em São
Paulo, abria as portas para as obras de 78 dos
236 rejeitados pelo júri”, conta a jornalista e
curadora Leonor Amarante (1989, p. 214).
246
imagem 40
matéria de Roberto Pontual
Jornal do Brasil, Caderno B, Rio
de Janeiro, 7 jan. 1975
247
USA no MAM, em 29 de janeiro de 1976 – diz
estarem equivocados aqueles que supõem ser a
videoarte um efeito do binômio arte-tecnologia.
O crítico afirma, em “Vídeo-arte: Revolução
cultural ou um título a mais no currículo dos
artistas?” (1976), que o surgimento da videoarte
está envolto num processo de “tornar a cultura
portátil” (MORAIS, 1976).
248
Relacionalmente, as compreensões sobre o
espaço transformam e alteram os modos de
produzi-lo simbólica e materialmente. Geiger e
Foucault lembram Copérnico e Galileu em suas
potências imaginativas e científicas de abertura
do espaço. Galileu, diz Foucault, fez com que o
lugar das coisas e dos indivíduos significasse um
ponto em seu movimento, o espaço construindo-
se como uma extensão (FOUCAULT, 2009, p.
412). A modernidade instaura-se, no entanto,
por meio de múltiplas relações com o espaço, e,
por meio de uma relação menos imaginativa e
mais sacralizada, são sustentadas as divisões
entre público e privado, familiar e social, útil e
cultural, trabalho e lazer (FOUCAULT, 2009, p.
413). As sociedades disciplinares – situadas por
Foucault entre o século XVIII e princípios do
século XX (DELEUZE, 2006, p. 219) – são
marcadas por esse pensamento espacial binário
instaurador dos espaços de confinamento: lar,
fábrica, escola, prisão, hospital. E, assim,
“nunca temos tempo para sonhar” (DE DECCA,
1982, p. 11).
249
momento histórico, de que o espaço é, entre
outras coisas, “um elemento real, uma presença
em tudo o que concebemos. Tudo é espaço [...]”
(GEIGER, 1970, p. 35). Didi-Huberman, duas
décadas depois, pensando sobre O que vemos,
o que nos olha (1992), dirá que o espaço “não
é uma categoria ideal do entendimento, mas o
elemento despercebido fundamental de todas as
nossas experiências sensoriais ou fantasmáticas”
(DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 246).
250
paradoxal de uma proximidade visual que
advém numa distância não menos soberana,
uma distância que ‘abre’ e ‘faz aparecer’”
(DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 247). Rememoro
aqui linhas anteriores e as considerações
sobre as aberturas desérticas que Anna Bella
Geiger traz em Circa, nos caminhantes dos
registros de Circumambulatio nas areias da
lagoa de Marapendi e/ou naqueles da fotografia
apropriada que compõe Situações-limite.
251
252
imagem 41 deformar ao mesmo tempo” (DIDI-HUBERMAN,
Anna Bella Geiger 2013, p. 97). Em Situações-limite 2, a imagem
Situações limite 2 (série) do peixe como abertura está ao lado de uma
1974 figura humana que encara a imensidão de
construções arquiteturais. A pequena figura está
diante de enormes portas que não se pode saber
aonde levarão. São inúmeras as possibilidades
de sentido que a conversa entre as duas imagens
de Situações-limite 2 instaura. Aproximadas de
Bataille e Didi-Huberman, trazem a dimensão do
aparecimento e desaparecimento, que se abrem
no território filosófico para discussões sobre a
reflexividade.
253
filmagem – nas camadas psíquicas e materiais –
têm impacto na elaboração de imaginários. Há
outra dimensão fundamental relativa às imagens
em movimento e à tecnologia que se relaciona
diretamente com a produção artística daquela
situação histórica que é o acontecimento da TV.
No Brasil, a televisão consolida-se como “carro-
chefe da indústria cultural” nos anos 1970, em
uma relação íntima com o governo ditatorial
(HAMBURGER, 2006, p. 49).
254
brasileiro foi operado por e o Campeonato Mundial de Futebol em 1970”
companhias privadas, em grande (PEREIRA FILHO, 2002, p. 38). A televisão torna-
parte formadas por capitais se constitutiva da paisagem, uma nova maneira
estrangeiros [...]” (PEREIRA FILHO, de vida, tal qual na obra de Nan June Paik,
2002, p. 33). De acordo com José TV Gardens; ela reorganiza o olhar e o espaço,
Eduardo Pereira Filho, a criação como na sala de TV de tia Ethel, no Underscan
da Embratel “nos anos 1960 de Holt.
correspondeu às expectativas
econômicas e políticas em favor
da atuação direta do Estado em
setores estratégicos, como foi e
é o caso das telecomunicações.
Naquele período, em várias
regiões do mundo, o Estado era
um ator central na formulação
das políticas econômicas e
sociais, fosse o regime socialista
da URSS, do Leste Europeu e da
China, ou o Welfare State da
Europa Ocidental ou, também, o
desenvolvimentismo da América
Latina” (PEREIRA FILHO, 2002,
p. 33).
255
256
Reflexividades: experimentações
e exposições do eu
257
temporais que é possível avaliar a si próprio e
as “experiências do viver” (OSTROWER, 1984,
p. 25). Jaremtchuk, analisando o simbólico em
Passagens, recorre ao Dicionário de símbolos
de Jean Chevalier e Alian Geenbrant (1986)
e aponta as escadarias como “progressão do
saber”, “ascensão para o conhecimento”. Uma
dimensão que, se associada à Circumambulatio,
localiza esse conhecimento como algo
direcionado ao self (JAREMTCHUK, 2007b,
p. 122). Adensando essa camada de sentido,
recordo que Jung traz a escada e os degraus
como “processo de transformação anímica e suas
peripécias” (JUNG, 1991, p. 72).
258
259
O cuidado de si refere-se a um “fenômeno que
envolve a ideia da necessidade de um trabalho
que cada indivíduo deve ter para consigo e que
a sociedade deve assegurar e apoiar” (FONSECA,
2007, p 125). Dessa maneira, o cuidado de si é
um princípio que organiza o desenvolvimento e
as práticas das artes da existência, referindo-
se aos exercícios que o indivíduo aplica,
simultaneamente, em seu corpo e em sua alma,
e que constituem, acima de tudo, uma atividade
de caráter social (FONSECA, 2007, p. 124).
Trata-se de práticas “sociais e pessoais” nas
quais o conhecimento de si ocupa “um lugar
considerável” (FOUCAULT, 2007, p. 63).
260
serem as mulheres incapazes para a arte.
Atividade pública por excelência, a arte moderna
é frequentemente imaginada como prática
exclusivamente masculina. As mulheres, por
sua vez, pertenceriam naturalmente à esfera
privada, discurso reiterado de diferentes formas
nas distintas classes sociais. A separação entre
público e privado é simultaneamente forma de
racionalização e de governo (PERROT, 2005, p.
459), e essa diferenciação é produzida também
por uma série de imagens (MAYAYO, 2018).
261
inadequações, revoltas, insubmissões diante das
determinações normativas. Dito de outro modo,
quando agimos e falamos, não só nos revelamos,
mas também agimos sobre os esquemas de
inteligibilidade que determinam quem será o ser
que fala, sujeitando-o à ruptura ou à revisão,
consolidando suas normas ou contestando
sua hegemonia” (BUTLER, 2015, p. 167). Cada
indivíduo é efeito de relações sociais que o
precedem, é com base nas normas constituídas
por meio de certo regime de verdade que o
sujeito encontra o quadro referencial com o qual
se relaciona e reconhece a si.
262
Com isso, argumenta-se, ela estabeleceu uma
operação crítica com os novos modelos e aparatos
de inscrição de uma memória cultural, social e
histórica. Além de estar participando da formação
do presente através do alcance e distribuição da
informação, esses novos mecanismos da mídia
de massa e sua cultura da imagem começavam
a afetar não só a formação do presente, mas
moldar uma nova relação com a memória – em
que o volume e a velocidade do que se “lembra”
e se “esquece” cresce vertiginosamente. Com os
ciclos de retorno dessas imagens, pode-se concluir
que essas novas formas de inscrições também
participam de uma projeção do futuro (ALBERTONI,
2016, p. 233).
263
aludem a um cotidiano prosaico e entediante, como o
vivido pela dona de casa, a aeromoça ou a secretária
dos anos 1950. Outros modos de subjetivação podem
assim ser vislumbrados nessa contundente crítica à
normatividade social imposta às mulheres (RAGO,
2013a).
264
Annateresa Fabris afirma que “a auto-
representação, que está na base de Stills
cinematográficos sem título, é um puro jogo de
superfícies, de aparências. Delas emerge uma
visão da mulher não como indivíduo, mas como
estereótipo cultural, como máscara social, como
“glossário de poses, gestos e expressões faciais,
de acordo com a análise de Laura Mulvey”
(FABRIS, 2003, p. 64). O aparecimento e o
desaparecimento articulam-se esteticamente
para a construção da crítica segundo os modelos
falogocêntricos de produção das visualidades.
265
Constant – que encerra Passagens I –, Anna
Bella Geiger grava uma segunda ação, intitulada
Passagens II (1974), com duração de 5 minutos e
50 segundos. A câmera fica estática enquanto o
corpo de Geiger aparece e desaparece
lateralmente na imagem. Geiger surge
caminhando pelos degraus sempre da esquerda.
266
É nos intervalos em que Geiger não está na
imagem, em que some da câmera, bem como em
seus silêncios, que o trabalho atua criticamente.
Criando imagens em movimento (e sons) na
outra polaridade da TV, explorando imagens de
si e reflexividades, Geiger cria, no começo da
década de 1970, vídeos em ações radicalmente
críticas de sua atualidade/espacialidade.
imagem 52 A exploração das imagens de si em ações
Nancy Holt e Richard Serra performáticas ressoa com as ações de Sherman e
frame de Boomerang Export, apesar de não ser intenção consciente de
1974 Geiger estabelecer práticas feministas.
267
As práticas artísticas de Anna Bella Geiger
instauram, nas linhas de sentido propostas,
perguntas e problemas feministas. Como Estrella
de Diego destaca, ao falar da artista, “há
diferentes formas de ser feminista na década de
1970 e agora – fora do âmbito estadunidense e
europeu” (DIEGO, 2019, p. 68).
imagem 53
Anna Bella Geiger
frames de Passagens I
1974
268
Corpos de mulheres: entre seduções e burocracias
269
especialmente às jovens da elite e da classe imagem 54
média – médicas, pianistas, advogadas, pintoras Anna Bella Geiger
–, as operárias, “mães dos futuros construtores série Passagens (fotografia)
da pátria”, eram também alvo dessas concepções 1975
moralizantes (RAGO, 2007, p. 588).
Passagens significa, para Geiger, “estar-não
estar, ir-não ir atravessar-não atravessar, onde
atuo como personagem, presente” (GEIGER,
1975a). Considerados os debates sobre a
construção de um modelo identitário para o
feminino, e em suas articulações com a divisão
dos espaços, o vídeo de Anna Bella nos leva
270
a refletir sobre essa ação de passar do privado
para o público e emerge como uma forma de
enfrentamento dos discursos que estabelecem
a identidade feminina. Na série de fotografias
Passagens (1975), Geiger também utiliza seu
próprio corpo para a construção da obra.
271
pp. 99-105) e Whitney Chadwick (1999, pp.
231-232) retomam essa questão precisamente
para enfatizar que a concepção da prática
artística é produzida em torno da figura do
homem – às mulheres, o lar, e aos homens, a
cidade. Uma noção tão fortemente delineada na
modernidade, que se apresenta como uma das
estratégias principais para a retirada das
mulheres do território da criação (LAURENTIIS,
2017, pp. 194-196).
272
1919, a Revista Feminina comemora a vitória
de Bertha Lutz no concurso, disputado por
candidatos de ambos os sexos, para a direção do
Museu Nacional (RAGO, 1991, p. 69).
273
filhos, havia demandado quase totalmente suas
atenções, afastando-a das atividades artísticas
(A Mulher e a Notícia, 1962). Em tons mais
ou menos enfáticos, esses textos sobre Geiger
demonstram uma constante singularidade
quando se discorre sobre os trabalhos das
mulheres. A maternidade é – ou pelo menos era
naquele momento – recorrentemente lembrada.
274
mas obras de Lygia Pape. No ano seguinte ao
da realização de Situações-limites, Pape cria a
exposição Eat me: a gula ou a luxúria?, que se
realizou em duas mostras: a primeira na Galeria
Global, em São Paulo, e a segunda no MAM-RJ
27 As discussões entre artistas (MACHADO, 2014, p. 220)27.
e Roberto Pontual a respeito da
utilização do espaço expositivo Vanessa Machado, em sua tese Dos “Parangolés”
do MAM fizeram com que a ao “Eat me: a gula ou a luxúria?”, conta que,
exposição programada para em São Paulo, o espaço da galeria divide-se pelo
1975 fosse adiada (LOPES, 2013, uso de luzes vermelhas e azuis em duas salas.
p. 189). Em cada uma delas, Pape instala uma estrutu-
ra cúbica de ferro na qual várias lâmpadas são
penduradas e cobertas com tecido transparen-
te, como numa tenda de venda. Saquinhos de
papel onde está impressa a inscrição “objetos de
sedução” compõem a exposição. Neles, calen-
imagem 61 dários com imagens de mulheres com pouca ou
registro da da exposição nenhuma roupa, pelos, textos feministas, loções
Eat me: a gula ou a luxúria? afrodisíacas, entre outras coisas que podem ser
MAM-RJ, compradas por 1,00 cruzeiro (MACHADO, 2014,
1976 p. 220).
275
Como diz Pape, essa atitude era uma “forma
de contestar o mercado da arte” (Pape, citada
em MACHADO, 2014, p. 220). Um gesto que,
sublinha Machado, “problematiza a mulher
como objeto de consumo”, em uma exibição
que desagradou os censores da ditadura e foi
fechada (MACHADO, 2014, p. 220). Do mesmo
modo, “a chamada televisiva (que a galeria
veicula através da TV Globo) – uma boca com
uma pedra preciosa dentro – foi tirada do ar
no dia da inauguração da exposição (FABRIS,
1976). Destaco que Pape havia sido vítima de
prisão e tortura durante dois meses do ano de
1973 por ajudar pessoas que estavam sendo
procuradas pela ditadura. Mas essa informação imagem 62
não era publicizada pela artista, pois “podia ser Lygia Pape
entendida como meio romântica e, ao mesmo frames de Eat me: A gula ou a
tempo, oportunista”, como explica ela pela luxúria?
primeira vez no livro de Denise Mattar (Pape, 1975
276
citada em MATTAR, 2003, pp. 79-80).
No ano seguinte a exposição abre como parte da
programação da Área Experimental no MAM-RJ.
Na fachada do Museu é projetado um trabalho
criado em super-8. O filme havia sido feito
dentro do Museu, em frente a uma das obras
da exposição na qual um letreiro luminoso em
vermelho trazia o título da mostra. O espaço
apresenta ares de um palco, e ali a artista faz-se
registrar sorrindo e realizando com a mão um
gesto de convite para aproximação daqueles que
o veem.
imagem 63
matéria de Francisco Bittencourt
Tribuna da Imprensa.
Rio de Janeiro, 21/22 ago. 1976
277
O projeto apresentado ao Museu liga-se ao que
Pape denomina Espaço poético, dividido em
Espaço patriarcal e Espaço de criação (PAPE,
1975). Espaço patriarcal traz, referindo-se à
mulher, objetos ligados à gula a à luxúria,
objeto ou não-objeto, e seu uso na sociedade
de consumo. Espaço de criação apresenta
projetos de seus estudantes de Arquitetura na 28 Os outros estudantes de
Universidade Santa Úrsula que realizaria em Pape que participaram da Eat
1978 Projeto para um espaço carioca, também me foram Amora, César Floriano,
na Área Experimental, no qual temáticas que Annabella Blyth, Bruno Madeira,
envolvem as mulheres e a produção do espaço Chico Cunha, Jayme Bastian
são exploradas28. Pinto Júnior, José Carlos Correa
de Barros, L. Felipe Cunha S.,
A ação de Pape, documentada e projetada no Lauro Cavalcanti, Oswaldo
exterior do MAM, apresentava-se como um Milward e Rosana Bazzo Lerer
convite para que o público penetrasse no corpo (LOPES, 2013, p. 190).
do museu onde estava instalada a mostra,
escreve Roberta Barros (2016, p. 121)29. As 29 Nesse ponto é necessário
paredes foram forradas com plástico preto e explicitar algumas divergências
foram montados três palcos (BARROS, 2016b, p. entre autores que abordam
123). Neles há Objetos de Sedução, vendidos a esse filme. À época, Francisco
1 cruzeiro, entre os quais, amendoim, “suposto Bittencourt descreve: “na
afrodisíaco para os machistas”, espelhos, vidros entrada há um filme-imagem
de perfume e cigarros marcados de batom, de uma mulher convidando com
como descreve Francisco Bittencourt no artigo um significativo gesto de mão e
“A gula e a luxúria segundo Lygia Pape”, no com movimentos de boca para
jornal Tribuna da Imprensa, em agosto de 1976 que entremos na exposição”, sem
(BITTENCOURT, 1976). maiores detalhes (BITTENCOURT,
1976). Roberta Barros descreve
Retomando as análises de Barros, destaco que, que, “com apenas meio corpo
em sua concepção, o fato de esses objetos não aparente, trajando uma blusa
estarem “expostos”, mas escondidos em em- de cetim preto com brilho
brulhos, como aqueles que contêm pipocas – e discreto em modelo bastante
amendoins, acrescento –, remete a uma “aproxi- masculino de gola e botões, a
mação entre a relação sexual e o ato de comer” artista se pôs a encarar de frente
(BARROS, 2016b, p. 123). Em um dos palcos/vi- os transeuntes das calçadas
trines de Pape há uma foto de Sandra Bréa nua, do Museu de Arte Moderna do
impressa em página dupla da revista Status. Rio de Janeiro [...] na projeção
A imagem da atriz – considerada um símbolo de Sedução, tal mulher
sexual naquele momento – está colocada ao lado gesticulava enfaticamente para
de manuais de corte e costura. Segundo as con- atrair/convidar os sujeitos a
siderações de Barros, Pape apresenta, “a partir de penetrarem, não em seu corpo,
um espaço particularizado: o espaço patriarcal”, mas no corpo do Museu, onde
uma crítica ao lugar historicamente delineado aguardava escondida a mostra
para mulheres: “colocar comida à mesa e ainda Eat me: a gula ou a luxúria?
oferecer-se como comida na cama” (BARROS, (BARROS, 2016a; 2016b, p.
2016b, p. 124). 121). No arquivo da Cinemateca
278
do MAM-RJ há um filme de Esse jogo de exposição/não exposição que
poucos segundos – consultado permeia Eat me: a gula ou a luxúria? produz um
durante esta pesquisa – que dentro-fora que estabelece conversações com as
traz as imagens em movimento Passagens de Anna Bella Geiger. Pape organiza
descritas nesse texto, nas o espaço “a partir do princípio matemático
quais Pape convida o público que é a fita de Moebius, isto é, um espaço que
a adentrar Eat me. A blusa de desliza pelo dentro e pelo fora do MAM. Sendo
Pape, entretanto, não condiz o próprio espaço do museu revirado para fora
com a descrição oferecida por e retorcido numa fita contínua – um espelho-
Roberta Barros. Talita Trizoli, em plano-infinito que retorna sempre. O dentro fora,
sua tese, diz que “a artista, em o fora dentro” (BITTENCOURT, 1976). A imagem
meio a seu site specific, convida do espelho como um elemento importante em
os transeuntes a adentrarem Eat me é associada ao brilho, segundo Frederico
o Museu com um gesticular Morais em texto para o jornal O Globo (1976).
do dedo indicativo e sorriso
posto nos lábios pintados de O crítico afirma ser o brilho o tema central da
vermelho, num misto de malícia exposição do MAM, e ele “não está nos objetos,
e contentamento que remete aos mas nos olhos do consumidor/espectador, que
convites sexuais das prostitutas” deseja des-velar o conteúdo dos pacotes [...], as
(TRIZOLI, 2018, p. 271). Ali, a vitrines também se apoiam no brilho (inclusive
autora insere um frame do filme do espelho) para envolver o consumidor no
que consta da Cinemateca do mundo ilusório do consumo”. E continua: “em
MAM e uma nota de rodapé uma das vitrines temos 20 maçãs vistosas (e/
na qual traz a descrição de ou brilhantes) distribuídas sobre um colchão
Roberta Barros, sem distingui- de cabelos (brilhantes e sedosos, como diz o
los (TRIZOLI, 2018, pp. 271-272). anúncio de shampoo [...]”. É no item “A maçã”
Annateresa Fabris, em texto de que Morais produz essas análises, fazendo
1976, oferece uma descrição imaginar o fruto de sedução pecaminoso
semelhante: “um espaço exterior brilhando aos olhos de Eva.
– a imagem móvel duma moça
piscando e chamando com Annateresa Fabris, no artigo “A história
o dedo – o clássico siga-me da maçã” (1976), lembra que nos textos
(veio-me à mente a vitrine bíblicos, “seduzida e sedutora, a mulher viu
dos bordéis holandeses, em a desobediência transformada em submissão”
que as prostitutas se expõem)” (FABRIS, 1976). Para essa autora, o fruto traz
(FABRIS, 1976). Destaco que, a tônica da exposição de Pape: “se foi a maçã
como Bittencourt, a autora não que determinou o Espaço patriarcal, será ela a
diz ser Lygia Pape a “moça” destruí-lo [...]. Eva, afinal, não foi personagem
do filme. Por fim, lembro que negativa” (FABRIS, 1976). As palavras fazem
Vanessa Machado afirma “que, lembrar as imagens de si em negativo nas
para chamar a atenção dos quais o corpo de Geiger se torna reluzente e o
transeuntes para sua exposição, problema da exposição do feminino no espaço
Lygia realizou um filme, público. A maçã sedutora brilhante é, portanto,
projetado numa empena do algo que marca os textos críticos daquele
MAM, em que através de gestos momento.
manuais sedutores chamava as
pessoas para visitar a exposição A associação de Fabris com a figura de Eva é,
[...]” (MACHADO, 2008, p. 104). sem dúvida, bastante contundente, e seu texto
279
assume tons feministas, algo pouco comum
naquele momento no país. Observo que na
imprensa, grosso modo, à palavra “feminismo”
era atribuída uma dimensão negativa. Francisco
Bittencourt, pretensamente elogiando a
montagem de Pape em Eat me, sublinha a
“sagacidade” e “inteligência” “desta artista,
que se recusa a participar do jogo ingênuo
do feminismo de ‘jogar fora o soutien’[...]”
(BITTENCOURT, 1976). Os usos e disputas da
palavra “feminismo” na década de 1970, no
Brasil, merecem um estudo específico. No
entanto, é sem dúvida possível afirmar que
Pape tinha interesses bastante direcionados aos
problemas relativos à construção da feminilidade
e da posição das mulheres no espaço público.
imagens 64, 65 e 66
capa e páginas, respectivamente,
do livro Mulher, objeto de cama
e mesa
Heloneida Studart
edição 1980
280
Nessa perspectiva, Fabris conta que um
dos objetos de sedução expostos no MAM é
composto por “amendoins (AFRODISÍACO) e
textos de Heloneida Studart sobre a condição
feminina” (FABRIS, 1976). Trata-se do livro da
escritora e política feminista Heloneida Studart
(Fortaleza, 1932-Rio de Janeiro, 2007), lançado
em 1974, a convite da Editora Vozes, intitulado
Mulher, objeto de cama e mesa. A publicação
de 53 páginas, composta de textos concisos e
irônicos, apropriações de ilustrações e até uma
intervenção na qual a Mona lisa (1503) de
Leonardo da Vinci tem uma faixa sobre a boca,
de modo a tapá-la por completo (CUNHA, 2008,
p. 271;STUDART, 1980, p. 53).
281
Brasileira”, no auditório da Associação Brasileira
de Imprensa (ABI) no Rio de Janeiro (BIROLI,
sem data). Dois meses depois, na Cinemateca do
MAM, ocorre “um conjunto de manifestações”
sob o título de “A mulher no cinema brasileiro:
de personagem a cineasta”, que envolve debates,
exibição de filmes, exposições, entre outras
atividades, conforme noticia o jornal O Globo
em 30 de outubro de 1975. Lê-se que Lygia Pape
deve participar de um debate com a cineasta
Suzana de Moraes (Rio de Janeiro, 1940-Rio
de Janeiro, 2015) e as atrizes Rose Lacreta (São
Paulo, 1946) e, possivelmente, Dercy Gonçalves
(Santa Maria Madalena, 1907 – Rio de Janeiro,
2008) (O Globo, 1975).
282
princesa chega à casa dos sete sexualidade e com grande energia tenta destruir
anões. A história se desenrola, a a nulidade que significa a primeira, o que ela
rainha descobre que a princesa está tentando matar é a Branca de Neve, isto é,
vive. Entre as tentativas de a docilidade e submissão, dentro dela mesma.
matá-la, envenena uma maçã e, Adulta e demoníaca, a madrasta é uma tramadora,
disfarçada, oferece-a à garota. inventora de enredos, autoabsorta, como todos os
“Branca de Neve sentiu um criadores (TELLES, 2007a, p. 54).
ardente desejo pela linda maçã”
e, mordendo-a, cai dura no chão. Branca de Neve é, nessa perspectiva, algo
Após dormir por muito tempo, próximo ao “Anjo do Lar”, definido por Virginia
em um caixão preparado pelos Woolf (Kensington, 1882 – Lewes, 1941) como
sete amigos, Branca de Neve essa figura que espreita as mulheres quando se
é vista por um príncipe, que sentam para escrever. Ele é simpático, delicado,
implora aos anões que o deixem dedica-se totalmente à família, nunca emite uma
levar o corpo da princesa. opinião desagradável. Mas sua principal virtude
No caminho para o castelo, é a pureza (WOOLF, 2012, pp. 11-12). Ensinadas
um tropeço dos criados que a submeter-se ao outro e a silenciar suas vozes,
transportam o corpo faz com as artistas tinham de lutar contra elas próprias
que o pedaço da maçã entalado para poderem criar. Era necessário combater
na garganta de Branca de Neve seus papéis de dona de casa e de mãe abnegada,
solte-se, fazendo-a voltar à vida e os seus duplos complementares de desviantes e
(GRIMM; GRIMM, 2010). de loucas.
283
(PASETTI, 2004, p. 103). Essa associação – para
além de suas bastante estudadas dimensões
no interior dos debates sobre antropofagia e
modernidade no Brasil – faz pensar na exibição
de si de Pape como afirmação do prazer.
284
da mulher (1970), editado pela Vozes, promove
o lançamento do livro A mística feminina, de
Friedan, que veio ao Brasil. Durante sua esta-
da, deu uma entrevista para o número 94 do
jornal. Jornalistas como Paulo Francis, Millôr
Fernandes, Ziraldo, entre outros, consideraram
extremamente relevante questioná-la sobre suas
preferências sexuais, enquanto sublinhavam um
suposto conservadorismo inerente aos movimen-
tos de mulheres. Millôr insiste tanto em enfatizar
a queima de sutiãs, que leva a feminista – cuja
paciência é destacável – a lhe direcionar as pala-
vras “fuck you” repetidas vezes.
285
produção do espaço urbano e as imagens das
mulheres é algo marcante em Eat me, sendo
o filme-convite um elemento de destaque
nessa camada de sentido. Outras imagens em
movimento produzidas por Pape sob o título de
Eat me: a gula ou luxúria? não podem deixar
de ser lembradas. Trata-se de um filme no qual
bocas brincam de mastigar uma pedra preciosa,
algo como diamante e cristal. Como que
beijando as pedras, as bocas abrem e fecham, as
línguas movimentam-se ora mais depressa, ora
mais devagar, e uma delas tem bigodes.
286
2014, p. 226). Essa dimensão trazida pela autora
com base nas análises de Eat me encontra
interessantes correspondências com a série de
fotos de Passagens de Geiger no metrô de Nova
York. Com construções desde o final do século
XIX, o começo do século XX traz a inauguração
do metrô em cidades como Buenos Aires (1913),
Nova York (1904) e Paris (1900). As primeiras
linhas de metrô no Brasil foram abertas em
São Paulo (1974) e Rio de Janeiro (1979). As
reformas urbanas trazidas pela construção do
metrô compunham a paisagem urbana carioca,
e os debates sobre o atraso nas obras apareciam
nas páginas dos jornais. Imagens que anunciam
um porvir urbano, uma nova relação com o
tempo/espaço de deslocamento na cidade.
287
nesse livrinho que se chamava Sobre a arte, já imagem 72
com sentido dúbio: “o que é sobre a arte?”; “é Sobre a arte (caderno)
em cima?”; “é sobre?”; “vai falar profundamente 1976. Fonte
sobre ela?” (GEIGER, 2018b, p. 187). Exposição Anna Bella & Lygia &
Mira & Wanda
A burocracia é tratada por Geiger como tema Curadoria: Pablo Leon de La
relativo à arte e trazido por quatro figuras Barra e Raphael Fonseca.
femininas posicionadas entre os escritos “DIGA MAC-Niterói
CONOSCO” – sobre suas cabeças – e “BU-RO- 2018
CRA-CIA” abaixo de seus pescoços. As figuras
têm as bocas abertas, ficando sugerido que cada
uma pronuncia uma parte da palavra. Dito de
outro modo, as figuras convidam o público a
dizer vagarosamente burocracia (COCHIARALLE,
1978, p. 28). Como observa Jaremtchuk em
diversos trabalhos posteriores, “a mesma
estrutura formal de Burocracia” é trazida para
pinturas e desenhos, alguns contando “com a
inclusão de um autorretrato de Geiger entre as
personagens” (JAREMTCHUK, 2007b, p. 94).
288
no primeiro número da revista. Entre os dez
pontos que uma moça deve seguir, prevalecem
conselhos relacionados ao “julgamento
masculino” (CORAZA, 2017, p. 40).
289
lembra que em 1908, no jornal O Estado de
S. Paulo, um anúncio dizia que Lugolina
substituiria “as antigas pomadas, unguentos e
sabões medicinais, estando sim ‘à altura dos
tempos modernos’” (Sant’Anna, citada em
JAREMTHUCK, 2007, p. 95).
290
imagens 78
matéria O Fluminense
16 de junho de 1976
imagens 79 e 80
catálogo da exposição Medidas
MAM-RJ
1976 Como as bocas de Eat me, insere-se em um
veículo de comunicação de massa. Na fotografia
de Parente é a quietude, e não o movimento,
que estabelece a possibilidade crítica. O dentro e
fora se ressituam. “O que espero”, diz a artista,
“é detectar pontos de cruzamento de malhas,
fissuras e soldas de planos internos no espaço
imposto das gaiolas. Novas faces de luta,
novo impulso para a consciência: a contínua
indagação sem tréguas” (PARENTE, 1976).
291
conciliação, tanto de sexo quanto de raça, em
nome do fortalecimento do combate contra o
Estado ditatorial.
292
para adentrar num território masculino” (TVAR-
DOVSKAS, 2015, p. 106). A exibição de si produ-
zida por Geiger, Pape, Parente, entre outras, seja
pela própria imagem em fotografias e vídeos,
seja pela mobilização de uma autobiografia,
contrapõe-se criticamente a esses discursos.
293
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311
312
Capítulo 03 – Aberturas: entre mesas, mapas e
camuflagens
313
no mapa da América do Sul. Na altura da mesa
dois televisores são instalados, e neles são
reproduzidos vídeos nomeados Quase mancha1, 1 Nos vídeos constantes
que são produzidos com base na filmagem das no acervo da artista lê-se
padronagens encontradas nos frisos e mesa. “intitulado Quase mancha”. No
catálogo da Bienal não há título
Neste terceiro capítulo as análises têm como algum para o vídeo, e em nossas
ponto de partida Mesa, friso e vídeo macios, conversas Geiger já se referiu
na procura por adensar os sentidos sobre as a eles como Quase mancha 1
práticas artísticas de Anna Bella Geiger, sob a e Quase mancha 2, bem como
perspectiva das espacializações. Quase mapa e Quase mancha,
que é também a forma que
aparece em uma série de textos
sobre o trabalho.
imagem 2
página do catálogo da XVI Bienal
de São Paulo com Mesa, friso e
vídeo macios.
imagem 3
desenho para Mesa, friso e vídeo
macios constante no acervo do
MAC-USP.
imagem 4
capa do catálogo da XVI Bienal
de São Paulo.
314
A videoinstalação é exibida na primeira
participação de Anna Bella em uma Bienal de
São Paulo desde sua adesão ao boicote em 1969.
A artista, que havia participado de uma série
de edições, em 1961, 1963, 1965 e 1967, aceita
incluir trabalhos como parte da programação
de 1981, a convite do curador da edição, Walter
Zanini.
315
em 1973, o Circumambulatio vai para o MAC. O
Zanini, por um milagre, compra – não era ainda
nem vídeo que eu fazia – um Super 8, uns slides
que eu fiz – que acabei apresentando lá em São
Paulo (GEIGER, 2018a).
imagem 5
matéria do jornal A Tribuna
22 de julho de 1973
imagens 6 e 7
Os estudantes da USP formavam o público páginas do projeto de Anna Bella
fundamental do Museu, lembrando que Zanini Geiger para a Bolsa Vitae.
era professor na Escola de Comunicações e
Artes da Universidade4, além de diretor do 4 A ECA foi fundada em 1967
MAC. Ao mesmo tempo, sustenta Jaremtchuk, com o nome de Escola de
“a diversidade na programação atraía grande Comunicações Culturais e passa
afluência e frequentadores heterogêneos”. Por a ter o nome atual em 1969.
exemplo, o vernissage da V JAC, de 1971, contou
com a presença de cerca de duas mil pessoas.
Por sua vez, a JAC seguinte, de 1972, “recebeu
na noite de apresentação de espetáculos cerca de
mil pessoas” (JAREMTCHUK, 2013, p. 23).
316
5 Anna Bella Geiger contou-me MAM-RJ. É, principalmente, a partir de 1973
muitas vezes sobre tal relação, (JAREMTCHUK, 2007, p. 62) – quando se desliga
no entanto, não encontrei oficialmente do MAM – que a artista passa a
– até o presente momento – exercer uma espécie de “representação” do MAC,
documentos institucionais que em âmbito nacional e internacional5.
possam adensar a compreensão
sobre sua relação com o MAC, As relações entre o MAM-RJ e o MAC-USP,
como “representante”, e não desde uma perspectiva crítica a respeito do papel
apenas artista. Geiger contou- das instituições museológicas, é tema que a
me: “o meu contato com o própria Anna Bella Geiger se propõe a pesquisar,
Zanini – desde os anos 1960, ao se candidatar à Bolsa Vitae de Artes6:
nessas exposições da JAC, onde “As estratégias do ensino das artes plásticas
eu participei e ganhei prêmios –, durante o regime obscurantista: o período de
foi daí que eu conheci o Zanini e 1969/1976”, no qual ela aproxima as atividades
começo a ir a São Paulo de uma didáticas desenvolvidas no MAM-RJ às que
maneira mais frequente. Ele me realizou na ECA7 e no MAC-USP.
chamou para colaborar de fato
no MAC. [...] Ele me escreve em Um pensamento sobre a educação e a arte que
um certo momento, que ele quer geram tanto interesse em Geiger é também
que eu seja a representante dele preocupação central de Walter Zanini, o qual,
para todos os eventos fora do não se pode esquecer, era professor na ECA.
país, uma coisa assim incrível! Problemas que se articulavam com base em
Mas não é que ele estivesse me locais institucionais, como o MAM-RJ e o MAC-
pagando nem nada” (GEIGER, USP. Em “Primeiros tempos da arte e tecnologia
2018a). no Brasil”, publicado originalmente em 2009,
Zanini recorda que, ao final dos anos 1960, o
6 Funcionando entre 1987 e conceito de museu se deslocava.
2004, o Programa Bolsa Vitae de
Artes concedeu quase 400 bolsas A compreensão do século XIX, que o tratava
para projetos ligados às letras, como “espaço exclusivo para contemplação
música, artes cênicas e artes […], transformava-se no país, contribuindo para
visuais. Ver “A Bolsa Vitae de isso as comunicações e os debates nacionais
Artes chega ao fim” (Agência do da Associação dos Museus de Arte do Brasil (a
Estado, 2013). extinta AMAB)” (ZANINI, 2018, p. 307). Geiger,
em sua fala para o VI Colóquio de Museus de
7 Zanini lembra que a disciplina Arte do Brasil (1972), precisamente, organizado
História da Arte é introduzida pela AMAB, destaca a importância das
na USP por “improvisações”. transformações com base em suas experiências
Recorda que foi nos anos no MAM-RJ (GEIGER, 1972)8.
1950 que “o professor Lourival
Gomes Machado, catedrático Fabricia Cabral de Lira Jordão, em diálogo com
de ciências políticas e estudioso Dária Jaremtchuk, sublinha a importância de re-
das artes, particularmente do conhecer as contribuições de artistas para o es-
barroco brasileiro, mas com tabelecimento de novos espaços e circuitos, bem
desempenho também na crítica como para o fortalecimento de museus e órgãos
da arte contemporânea, lecionou oficiais ligados à cultura na década de 1970.
a História da Arte na Faculdade É preciso, nessa perspectiva, considerar que
de Arquitetura e Urbanismo da “inexistia um modelo consolidado e fortemente
317
estabelecido no país. Muito embora a debilidade, USP, adaptada às finalidades
a falta de políticas culturais e o controle das ins- da escola, na qual, a partir
tituições pelo regime militar fossem fortemente de 1962, seria ministrada no
criticados” (JORDÃO, 2015, p. 162). Departamento de História da
Arquitetura e Estética do Projeto,
A pesquisadora defende a ideia de que a tendo como seu primeiro
participação de artistas foi fundamental para docente o artista e professor
as transformações ocorridas tanto no MAM- Flávio Motta” (ZANINI, 1994, p.
RJ quanto no MAC-USP. “Essas ações, no 487).
contexto da repressão militar, também podem
ser pensadas como uma tentativa de evitar 8 ver p. 175
a dissolução do espaço público que estava
implicada na desintegração institucional”
(JORDÃO, 2015, p. 162).
318
Aqui novamente o velho truque: a cultura “liberal”
serve como tela de fumaça à violência fascista
9 Publicado no catálogo da (Non à la Biennale, 2019, p. 149)9.
exposição AI-5 50 anos: Ainda
não terminou de acabar (2019).
imagem 8
capa do catálogo da exposição
AI-5 50 anos: Ainda não
terminou de acabar (2019).
imagem 9
dossiê Non à la Biennale de São
Paulo
1969
imagem 10
Charge por Biganti
jornal O Estado de S. Paulo
13 de novembro de 1969
imagem 11
Charge de Mino
jornal A Tribuna
7 de outubro de 1969
319
Recordo que, em 1967, Cybèle Varela (Petrópolis,
1943) envia para a IX Bienal de São Paulo
(1967) – que seria conhecida posteriormente
como a “Bienal Pop” – a obra O presente (1967-
2018). O trabalho traz, em esmalte sintético
sobre madeira, a figura do dorso de um general
junto com um mapa do Brasil, uma fita azul
e um trecho do Hino à Bandeira10: “Recebe o 10 O Hino à Bandeira (1906)
afeto que se encerra no nosso peito juvenil”. tem letra do membro fundador
A obra, que é construída como uma caixa que da Academia Brasileira de
pode ser aberta pelo público, sendo aparentes Letras Olavo Bilac (Rio de
as dobradiças que unem as suas duas partes. Ela Janeiro, 1865-1918) e música
foi retirada da exposição a pedido da Polícia do compositor e catedrático do
Federal. Instituto Nacional de Música
Francisco Braga (Rio de Janeiro,
Em carta encaminhada ao presidente da Bienal 1868-1945). Como lembra
(Francisco Matarazzo Sobrinho), o delegado o compositor e pesquisador
regional Silvio Corrêa de Andrade solicita “a Nei Lopes, no livro Afro-Brasil
fineza de excluir da próxima exposição pública reluzente: 100 personalidades
de arte contemporânea a obra de dona Cibelle, notáveis do século XX (2019),
sobre a figura de um militar” (Ofício nº141-E/TI/ Francisco Braga “é autor de
CO) (MIYADA, 2019, p. 45). Excluído, o trabalho vastíssima obra, que inclui
é devolvido à artista, sendo levado à casa de música sacra, dramática,
seus pais, que, com medo da repressão, acabam de câmara e orquestral,
por destruí-lo (MIYADA, 2019, p. 43)11. entre outros estilos” e foi
“condecorado com a medalha da
Outro evento afetado pela censura no momento Legião de Honra pelo governo
foi a II Bienal de Artes Plásticas da Bahia (1968), francês”, país no qual viveu,
para o qual Anna Bella Geiger e Cybèle Varela tendo sido contemplado com
foram selecionadas (Jornal do Brasil, 1968). A uma bolsa de estudos
primeira edição do evento havia sido articula- (LOPES, 2019, p. 19).
da, em 1966/67, pelos artistas Juarez Paraiso
(Arapiranga, 1934), Riolan Coutinho (Pojuca, 11 A obra foi reconstruída pela
1932), Chico Liberato (Salvador, 1936) e Leo- artista a pedido do curador
Paulo Miyada para a exposição
AI-5 50 anos: Ainda não
terminou de acabar, no Instituto
Tomie Ohtake (2018).
imagem 12
Cybèle Varela
O presente
1967 – 2018
320
12 Conhecido como Chatô, foi nardo Alencar (1940, Estância – Aracaju, 2016).
advogado, jornalista paraibano Os artistas são reconhecidos pela crítica “como
e dono do Diários Associados, integrantes da segunda geração de artistas mo-
um dos principais meios de dernos da Bahia, que tinha como característica
produção e circulação de uma tendência ao abstracionismo”, explica Ayr-
notícias no Brasil, com jornais e son Heráclito Novato Ferreira (Macaúbas, 1968)
revistas de circulação nacional, (2016, p. 83). A edição teve como presidente de
bem como emissoras de rádio e honra o empresário e fundador do Museu de
televisão com sedes nos estados Arte de São Paulo (MASP), Francisco de Assis
de Pernambuco, São Paulo, Chateaubriand12 (Umbuzeiro, 1892 – São Paulo,
Rio de Janeiro e Minas Gerais 1968) (FERREIRA, 2016, p. 84).
(SOUZA, 2021, p. 30).
Caroline Saut Schroeder, cujas pesquisas sobre
13 Em sua dissertação, bem as histórias das Bienais e da censura são amplas,
como no texto “A censura escreve que no dia seguinte à abertura da II
política às artes plásticas em Bienal da Bahia (1968), a exposição é acusada
1960” (2013), Schroeder grafa de comunista e fechada por forças estatais.
o nome da artista como Tereza Além disso, Juarez Paraiso, secretário das duas
Simões. Por sua vez, Talita Trizoli, edições da exibição, bem como Luiz Henrique
em “Leituras feministas da arte Dias Tavares, à época diretor do Departamento
de guerrilha – Anna Vitória de Ensino Superior e de Cultura (DESC), foram
Mussi, Theresa Simões, Sonia presos e interrogados (SCHROEDER, 2019, p. 54).
Andrade e Anna Maria Maiolino”. Trabalhos foram apreendidos, acredita-se, dos
No texto, Trizoli explica que artistas Antonio Dias (Campina Grande, 1944 –
Theresa Simões é uma artista Rio de Janeiro, 2018), Antonio Manuel, Farnese
que se “apropria de imagens de Andrade (Araguari, 1926 – Rio de Janeiro,
de larga circulação cotidiana, 1996), Gastão Manoel Henrique (Amparo,
oriundas do fotojornalismo 1933), Lênio Braga (Ribeirão Claro, 1931 – Rio
ou de publicações de arte de Janeiro, 1973) e Theresa Simões13 (Rio de
impressa, geralmente de tradição Janeiro, 1941) (SCHROEDER, 2011, p. 33).
clássica e canônica em âmbito
nacional e internacional, a fim Poucos meses depois, em maio de 1969, a
de estabelecer uma espécie de exposição – prevista para acontecer no MAM-
heráldica pop das lutas sociais” RJ –, com obras de artistas que, em breve,
(TRIZOLI, 2016, p. 577). representariam o Brasil na VI Bienal de Jovens
de Paris, foi suspensa pouco antes da abertura.
14 Maurício é irmão de O diretor executivo do Museu, o arquiteto
Marcelo (1908-1964) e Milton Maurício Roberto14 (Rio de Janeiro, 1921-1996)
(1914-1953), sendo os três recebe um telefonema do embaixador Donatello
formados em Arquitetura Grieco, funcionário responsável por assuntos
pela Escola Nacional de culturais do Itamaraty (Ministério das Relações
Belas Artes (ENBA). Marcelo Exteriores do Brasil), que ordena o cancelamento
e Milton são ganhadores do da exposição.
concurso para a construção da
sede da Associação Brasileira Horas antes, César Montagna de Souza,
de Imprensa (ABI, 1935), comandante da Primeira Região Militar do
e fundam o escritório MM Rio de Janeiro, havia chegado ao MAM para
Roberto Arquitetos (1936). ver as obras de arte (CALIRMAN, 2013, p. 25;
321
MACHADO e PAIVA, 2021, p. 46; SCHROEDER, Em 1937, vencem o concurso
2011, p. 34). Segundo Maurício Roberto, “as para o Aeroporto Santos
tropas invadiram efetivamente o espaço da Dumont, construído entre
exposição. Após este momento, o museu 1938 e 1944. Maurício, em
começou a ter uma conotação subversiva, e, 1941, entra para a sociedade
desde então, uma patrulha militar sempre estava do escritório, que passa a se
estacionada em frente ao prédio” (Roberto, chamar MMM Roberto. Os
citado em CALIRMAN, 2013, p. 27). Por fim, três irmãos trabalham juntos
tampouco os trabalhos foram enviados a Paris. de 1941 a 1953 – lembrada
frequentemente como a época
Anna Bella Geiger contou-me que, em meio ao áurea do escritório. Nesse
clima de censura, artistas se reúnem no MAM- período projetam a sede do
RJ, e discutem os posicionamentos a serem Instituto de Resseguros do Brasil
tomados: (IRB) (1941-1944) e a Colônia
de Férias do IRB (1943-1944)
Vieram alguns de São Paulo e alguns do Rio para (MMM Roberto, verbete da
conversar sobre a situação da próxima Bienal no Enciclopédia Itaú Cultural, 2022).
sentido de se deveríamos participar ou não. E isso é Maurício Roberto foi diretor
realmente assustador [...]. executivo do MAM, entre 1967 e
1972 (MACHADO e PAIVA, 2021,
Não vamos mais participar! Para isso, você p. 144).
acaba cortando coisas um pouco menores, mas
institucionalmente muito importantes para o artista
brasileiro naquele momento [...]. Então pronto,
cortamos nós mesmos de qualquer próxima Bienal
que aconteça (GEIGER, 2018a).
322
–, que Geiger articula em Circumambulatio
(1972) e Situações-limites (1975), ressurgem
em Mesa, friso e vídeo macios, transformadas
e acompanhadas das aberturas políticas que
àquela altura se ampliavam. Antes de adensar
tais sentidos, é preciso compreender alguns
pontos a respeito dos quais a afirmação
da artista sobre uma organização do MAC
“independente da Bienal”, reverberam
historicamente.
323
imagem 14
Fachada da construção onde foi
realizada a 1ª Bienal
1951
imagem 15
Sede da 2ª Bienal, o Palácio das
Nações (atual Pavilhão Padre
Manoel da Nóbrega) hoje abriga
o Museu Afro Brasil
imagem 16
Abertura da 4ª Bienal, com as
presenças de Jânio Quadros,
Juscelino Kubitschek e Yolanda
Penteado
1957
imagem 17
Francisco Matarazzo Sobrinho
e Juscelino Kubitschek visitam
Guernica de Picasso, durante a
2ª Bienal de São Paulo
1953-1954
imagem 18
Montagem da Sala Especial
Maria Martins na 1ª Bienal
fotografia de Peter Scheier
1951
imagem 19
Público aguarda a abertura da
2ª Bienal
1953-1954
324
17 Francisco de Paula Ramos
de Azevedo é engenheiro
formado na Universidade de
Gante, na Bélgica (1878), e
fundador do escritório Ramos
de Azevedo (1886), responsável
pela construção de uma série
de edifícios marcantes na
paisagem urbana de São Paulo,
entre os quais, a Pinacoteca
do Estado (1905), o Theatro
Municipal (1911) e o Mercado
Municipal (1933), tendo seus
projetos um caráter aproximado Concretizado em 1916 pelo escritório de Ramos
da arquitetura eclética com de Azevedo17 (São Paulo, 1851 – Santos, 1928),
influências neoclássicas. o Belvedere18, ocupava não apenas o futuro local
daquela Bienal inicial, mas o do Museu de Arte
18 Assinaram o projeto do de São Paulo (MASP), cujo projeto, feito por
pavilhão os arquitetos Luís Saia Lina Bo Bardi19 (Roma, 1914 – São Paulo, 1992),
e Eduardo Kneese de Mello. seria concretizado em 1968. Vale lembrar que o
Faziam parte do Conselho de MASP é inaugurado pouco antes do MAM, em
Administração figuras como 1947, como iniciativa de Assis Chateaubriand
Antonio Candido de Mello e (1892-1968), e que ambos os museus
Souza e Villanova Artigas (SALA, funcionavam no prédio dos Diários Associados
2001-2002, p. 126). na Rua 7 de abril, no centro da cidade.
325
Amaral – com acidez que parece frequente produção de arte popular no
entre pesquisadores ao se referirem às mulheres Brasil, tal qual escreve Bo Bardi
mecenas –, “apesar de sua evidente frivolidade”, (citada em RUBINO, 2009, p.
foram “seu savoir-faire, seu interesse pelas 134). Os projetos são dissipados
coisas da cultura, sua facilidade comunicativa com a saída da arquiteta de
com o meio artístico fundamentais nos primeiros Salvador, em 1964, diante das
anos do MAM e na implantação das Bienais represálias do governo militar, e
internacionais” (AMARAL, 2001/2002, p. 19). sua influência ali é inegável, até
mesmo entre o grupo de artistas
Yolanda Penteado, por vezes ao lado de Maria que articularam a I Bienal da
Martins, viajava para o exterior e “contatava Bahia (FERREIRA, 2016, p. 83).
artistas e comissários estrangeiros na Europa, Merece destaque, ainda, sua
era embaixadora cultural do Brasil, com carta de realização, junto com Martim
apresentação de Getúlio Vargas para esse fim, na Gonçalves (Recife, 1919 – Rio
articulação com vários países, para a II Bienal” de Janeiro, 1973), da exposição
(AMARAL, 2001/2002, p. 19). Bahia no Ibirapuera, em parceria
com a organização da V Bienal
Prolongada até 1954, a segunda edição de São Paulo (1959) (FERREIRA,
da Bienal de São Paulo contou com uma 2016, p. 68).
retrospectiva de Piet Mondrian (Amersfoort,
1872 – Nova York, 1944), e com o painel 20 Yolanda de Ataliba Nogueira
Guernica (1937), de Pablo Picasso (Málaga, 1881 Penteado é herdeira pertencente
– Mougins, 1973), pela primeira vez enviado à à elite agrária do interior de
América Latina (FABBRINI, 2001-2002, p. 48). São Paulo. Nascida na Fazenda
A vinda da pintura de Picasso é arranjada por Empyreo, muda-se para a
Yolanda Penteado e tem grande importância capital na infância e estuda em
no posicionamento da Bienal de São Paulo colégios de renome. Yolanda
como um evento de relevância nacional e Penteado convive com artistas,
internacional (MANTOAN, 2015, p. 97)21. patrocinadores e colecionadores,
sendo sua tia Olivia Guedes
Na quarta edição da Bienal, em 1957, a Penteado (Campinas, 1872 –
mostra ocupa pela primeira vez sua futura São Paulo, 1934) uma das mais
sede definitiva, o Pavilhão das Indústrias, no importantes colecionadoras
Ibirapuera. A ocorrência da Bienal no Pavilhão de arte moderna de São Paulo.
foi possibilitada pela cessão do prédio para Tornou-se administradora
o MAM-SP22 realizar exposições periódicas da fazenda herdada do pai,
(SOUZA, 2021, p. 47). Nesse mesmo prédio, no investindo na produção de
terceiro andar, seria instalada a sede inaugural algodão e bicho-da-seda
do MAC-USP. Walter Zanini é nomeado primeiro (CERCHIARO, 2020, p. 255).
diretor do Museu, permanecendo no cargo até
1978 (SOUZA, 2021, p. 56). 21 Na tese Yolanda Penteado:
gestão dedicada à arte moderna
Entre 1960 e 1980, o MAC-USP e a Bienal (2015, p. 97), Marcos José
estabeleceram uma relação de coabitação, com Montoan sublinha que Penteado
aproximações e afastamentos, em um processo conviveu com Picasso entre
de construções e reconstruções das “identidades 1952 e 1953, quando conseguiu
institucionais”. A vizinhança potencializava e que viesse a São Paulo a
era potencializada pela circulação de artistas, Guernica – pintura que trata
326
dos horrores da Guerra Civil obras, público, agentes culturais (SOUZA, 2021,
Espanhola (1936-1939), em p. 57)23.
particular, do bombardeio da
cidade de Guernica (1937). A Dessa maneira, a percepção de Anna Bella
obra estava no MOMA em Nova Geiger sobre a independência do MAC em
York, devido à situação política relação à Bienal pode ser considerada um tanto
ditatorial na Espanha, com o inexata ou ao menos deve ser matizada. De todo
regime franquista (1939-1975). modo, a sua decisão em participar da edição de
1981 é, indubitavelmente, efeito de sua relação
22 O MAM-SP, antes de ter com Zanini.
seu acervo transferido para o
patrimônio da USP, havia sido Os anos de ausência de Geiger na mostra são
levado do edifício dos Diários lembrados por Francisco Alambert e Polyana
Associados para um Pavilhão Canhête (2004, p. 162), ao afirmarem que a
do Parque Ibirapuera conhecido XVI edição da exibição é marcada por, entre
como Oca, concebido por outras coisas, um fim ao boicote (ALAMBERT e
Niemeyer originalmente como CANHÊTE, 2004, p. 161).
ambiente para exposições de
esculturas do IV Centenário. Falando ao Jornal do Brasil, sobre sua
participação na XVI Bienal, Anna Bella Geiger
diz ter aceitado o convite como “um desafio
de ir adiante com o problema do meu trabalho
imagem 20 e forçar um caminho”, sem aquele um ano de
notícia Jornal do Brasil trégua e voto de confiança na curadoria (Geiger,
14 de outubro de 1981 citada em BOMFIM, 1981).
327
artísticas por meio da instalação de Mesa, friso 23 Em 1959, o MAM-SP começa
e vídeo macios. As imagens de mapas/manchas, a “ocupar uma seção do segundo
apresentadas de formas fixas e volumétricas pavimento do Pavilhão da Bienal,
e outras em movimento, emergem enquanto assim, o Museu, que outrora
desdobramentos sobre temas relacionados às dera origem às exposições, se
espacialidades gráficas, imagéticas, geográficas, tornava um enclave dentro
psíquicas, expositivas. de sua gigantesca estrutura”
(SOUZA, 2021, p. 57).
imagem 21
cartaz 16ª Bienal de São Paulo
Cláudio Moschella
328
329
330
Camuflagens: articulações feministas
331
A relação entre os três elementos – mesa,
friso e vídeo – é reforçada pelos modos de
usar a luz. Walter Zanini observa que na
obra “o iluminamento produz-se pelos focos
fosforescentes da TV e pelos spots” (ZANINI,
1981, p. 33). Dito de outro modo, os pontos
de luz no ambiente são trazidos pelas telas,
pelos spots direcionados diretamente à mesa e
as lâmpadas – típicas de cozinhas – colocadas
abaixo dos frisos. A luminosidade partilhada
entre spots e telas traz uma sensação de focos
igualmente importante nos três elementos
constituintes da situação instaurada pelo
trabalho.
332
de dupla criação: do espaço da gravura e do es-
paço psíquico da artista, seguindo as considera-
26 ver pp. 32-35 ções de Fayga Ostrower26. As manchas são algo
de grande importância nas criações de Anna
Bella Geiger, estabelecem sentidos múltiplos e
cambiantes ao longo de sua trajetória artística.
Luiz Cláudio da Costa (2021), sublinhando a
importância delas no trabalho da artista, retoma
as considerações de Mário Pedrosa.
333
sentido trazida em Mesa, friso e vídeo macios:
as manchas como camuflagem. Tal dimensão
é apresentada por Fernando Cocchiarale com
importância destacada na obra de Geiger:
334
camuflagem faz pensar em uniformes de
soldados, um aparato militar de guerra.
Ambos os sentidos abrem possibilidades para
compreender o trabalho de Anna Bella Geiger
como uma crítica ao regime autoritário. É
possível pensar que Mesa, friso e vídeo macios e
suas camuflagens falam sobre os modos de criar
que artistas haviam inventado para driblar a
censura da ditadura, em certa medida, modos de
camuflagem da crítica política.
335
Por fim, na última fotografia, Anna Bella Geiger
surge sem a camisa, vestindo apenas uma regata
preta. Seus braços estão à mostra, é possível
ver sua pele em meio às plantas. A pelagem do
tamanduá apresenta uma marcação em preto,
que se assemelha à regata da artista. Com a
ironia característica de suas obras é criado um
paralelismo entre a pelagem animal e a roupa
humana. A curadora Karin Stempel considera que
o tamanduá fica “diluído numa osmose secreta,
sob o disfarce da artista”. Instauram-se problemas
sobre “imagem e reflexo, natureza e arte, original
e falsificação”. Sendo assim, um é o outro e se
forma de acordo com sua imagem (STEMPEL,
2007, p. 53).
336
infantis em construções para serem exibidas
publicamente. Uma relação de metamorfose
do espaço doméstico em espaço para criação
artística, uma articulação entre as vivências
particulares e a prática pública da arte.
imagem 28
Anna Bella Geiger
Camouflage
1980
vista da exposição Anna Bella
Geiger. Native Brazil / alien Brazil
Museu Frans Hals
2022
fotografia de João Mascaro
337
de personagens femininas estereotipadas
acompanhando ditos grandes gênios da história
da arte.
imagem 29
Anna Bella Geiger
Diário de um artista brasileiro
montagem com Barnett
Newman
1975
338
imagem 30
Claes Oldenburg e Patty Muncha,
com a obra Floor burger (1962)
Nova York
1964
fotografia de Ugo Mulas
imagem 31
Anna Bella Geiger
Diário de um artista brasileiro
montagem com Claes Oldenburg
1975
imagem 32
Anna Bella Geiger
Diário de um artista brasileiro
montagem com Marcel
Duchamp
1975
339
Com o dadaísta francês Duchamp, Geiger surge
como sua noiva, em uma imagem da artista
replicada quatro vezes. Na primeira, a artista
surge de vestido branco e um longo véu de
noiva encarando a câmera com um sorriso. Na
segunda, é possível ver metade de seu rosto.
Nos dois cortes sequenciais apenas a brancura
das roupas de matrimônio é vista. Duchamp
de chapéu e um longo casaco branco olha
lateralmente para a noiva Anna Bella. Diante
da fotocolagem, penso que a posição de noiva
do mestre da arte faz com que a própria artista
desapareça, instaurando-se discussões sobre
temas relativos às mulheres na arte.
imagem 33
Anna Bella Geiger
Diário de um artista brasileiro
montagem com Roy Lichtenstein
1975
340
Lichtenstein com um pincel em mãos está
prestes a pincelá-la. Geiger surge entre o pincel
e uma grande tela pintada ao fundo, fazendo
dela mesma um tipo de pintura realizada pelas
mãos do autor.
341
tanto, a sensação se dissipa diante dos ruídos vi-
suais, a descontinuidade espacial, evidências de
intervenção nas imagens que indicam a autoria
do trabalho (JAREMTCHUK, 2007, p. 118).
imagem 34
Anna Bella Geiger
Diário de um artista brasileiro
montagem com Andy Warhol
1975
342
imagem 35 Os cortes e recortes são explicitados na imagem
Henri Matisse no Hotel Regina com Matisse. A fotografia original é de Ly-
em Nice dia Delectorskaya (Tomsk, 1910 – Paris, 1998),
França que trabalhou ao lado do pintor durante mui-
1952 tos anos, sendo também modelo de uma série
fotografia de Lydia Delectorskaya de seus trabalhos. No entanto, aqui ela figura
como artista por trás da confecção da imagem.
imagem 36 Ao lado de Matisse, uma jovem mulher, que no
Anna Bella Geiger trabalho de Geiger surge apenas parcialmen-
Diário de um artista brasileiro te; como a noiva de Duchamp, ela parece estar
montagem com Henri Matisse sendo retirada da imagem. No chão os pedaços
1975 de papel são resquícios das próprias colagens de
Matisse, imagino, considerando que o artista tem
na mão direita uma tesoura. Na mão esquerda,
Geiger insere uma prancheta com sua fotografia,
na qual estão aparentes rosto e dorso, lembrando
também uma capa de LP ou, por que não, de um
livro nos quais ela é personagem principal.
Um ponto importante é marcar que o título não
é Diário de uma artista brasileira. Nomear-se
como artista no masculino abre uma série de
possibilidades interpretativas.
343
Sublinho que em nossas conversas e entrevistas 28 Women artists: 1550-
diversas vezes Anna Bella se refere a si própria 1950 (1976-1977) aconteceu
como “um artista”, e não “uma artista”. no Brooklyn Museum e teve
Nesse ponto lembro-me de Estrella de Diego curadoria da própria Harris e
perguntando sobre os limites metodológicos e de Linda Nochlin, apresentando
políticos na realização de grandes exposições trabalhos de artistas europeias e
dedicadas exclusivamente às mulheres artistas. A estadunidenses.
autora recupera as palavras de Ann Sutherland
Harris, na ocasião de uma das primeiras mostras
internacionais de mulheres artistas28, em 1976, a imagem 37
qual dizia que indício de sucesso da mostra seria Anna Bella Geiger
o fim, de uma vez por todas, da necessidade de Diário de um artista brasiliero
se fazer exposições desse tipo (DE DIEGO, 2018). 1975
344
identificada como Mulher, Brasileira, Sul-
Americana, mas apenas como artista. Enfatizo,
ainda, que as posicionalidades brasileira e
sul-americana não surgem na poética de Geiger
como identidades fixas, mas locais com base
nos quais trabalha, ponto adensado em outro
momento ainda nestas linhas.
345
e se eu negasse seria uma desgraça, um drama
[...]” (Geiger, citada em BOTTI, 2005, p. 109).
O Diário de Geiger opera por justaposições,
aproximações e tensões entre ficção e realidade,
o pessoal e o político. As passagens entre suas
vivências mais íntimas e individuais e uma
crítica política e cultural complexa e sofisticada
são uma marca das práticas artísticas de Anna
Bella Geiger.
346
imagem 41 Os frisos e a mesa são objetos que Geiger associa
Anna Bella Geiger trabalhando às cozinhas de sua própria casa da infância, mas
em sua casa/atêlie não apenas: “esses elementos, como eu venho
Rio de Janeiro falando, vêm de relações com o cenário normal
2022 e pobre da minha infância, vamos dizer, ou da
fotografia de Gabriela infância de qualquer um, que é uma mesa na
De Laurentiis cozinha” (GEIGER, 2022c).
347
por Garcia com base na literatura encontram
ressonâncias entre as críticas, historiadoras
e artistas operando no território das artes
áudio|visuais. Jody B. Cutler, por exemplo,
escreve Feminist art: kitchen testimony (Arte
feminista: testemunho de cozinha) para o
livro The taste of art: cooking, food and
counterculture in contemporary practices (O
gosto da arte: culinária, comida e contracultura
nas práticas contemporâneas).
imagem 44
Robin Weltsch, Vick Hodgetts e
Susan Frazier
Nurturant kitchen
projeto coletivo Womanhouse
1975
imagem 45
capa do catálogo da exposição
Womanhouse que mostral Judy
Chicago e Miriam Schapiro em
frente ao espaço de exibição.
Fotografia de Donald Woodman.
348
organizado pelas artistas Judy Chicago (Chicago,
1939) e Miriam Schapiro (Toronto, 1923 –
Hampton Bays, 2015). Comumente lembrado
como uma das primeiras exposições feministas,
o projeto foi organizado pelo Programa de Arte
Feminista na CalArts – fundado por Chicago
e Schapiro. As estudantes eram convidadas a
interferir nos cômodos de uma casa, que eram
transformados com base nas fantasias da vida
doméstica, pensadas do ponto de vista de uma
crítica feminista (CUTLER, 2017, p. 227).
imagem 46
Martha Rosler
Semiotics of the kitchen
1975
349
demonstrando anedoticamente possíveis usos de
objetos que se vinculam a esses espaços. Rosler
diz estar “sugerindo que símbolos impostos às
mulheres são extremamente redutores. Essa
mulher está enredada em um sistema que
a reduz como indivíduo” (Rosler, citada em
DEBRAY & LAVIGNE, 2013, p. 101).
imagem 47
Carrie Mae Weems
série The kitchen table
1990
350
tiansted, 1992) me disse, durante uma conversa
por telefone: ‘nós, realmente, precisamos fazer
algo sobre publicar’” (SMITH, 1989).
imagem 48
Carrie Mae Weems
série The kitchen table (recorte)
1990
351
A autora, analisando problemas em relação
à escrita de mulheres, traz a materialidade
da mesa como algo fundamental. Nesse
movimento, recorda o pedido de Virginia Woolf
– na conferência “Um teto todo seu” – para
que imaginemos um cômodo e “sobre a mesa
dentro do cômodo, uma folha de papel em
branco na qual está escrito em letras grandes
‘As mulheres e a ficção’, nada mais”. Ahmed,
ao recordar-se do trecho, enfatiza como Woolf
traz a compreensão de que para as mulheres a
construção de um espaço para escrever é um
ato político. E, nessa perspectiva, a mesa, diz a
autora, é não apenas algo que Woolf observa,
mas sobretudo o local (site) de onde cria seu
argumento feminista. Sendo assim, não é
possível pensar sobre a escrita das mulheres sem
questionar a questão prioritária sobre o espaço
que as mulheres têm para escrever (AHMED,
2006, pp. 61-62)30. 30 As articulações entre Ahmed,
Woolf, Weems e Kitchen Table
De acordo com Ahmed, conferir importância às Press estão presentes no artigo
mesas, entre as filósofas feministas, pode ser “Composing at the kitchen
compreendido como uma prática de não colocar table” (2019), de Rhiannon
entre parênteses ou deixar de lado a intimidade Scharnhorst.
dos vínculos familiares para a realização das
análises, tais intimidades estão na frente, elas
estão “sobre a mesa” (AHMED, 2006, p. 62).
Nessa perspectiva, sublinho que Anna Bella
Geiger, em nossas conversas, fala sobre as
horas que passava com suas “reflexões” sentada
naquela única cadeira que cabia na cozinha de
suas memórias infantis (GEIGER, 2022b).
352
e vídeo macios – assim como em O pão nosso de
cada dia – um “desdobramento da abstração”,
bem como uma “discussão sobre o uso arbitrário
do poder” (GEIGER, 2007a, p. 79).
353
e copos. Do mesmo modo, diferentemente
da memória infantil de Geiger, na qual uma
cadeira permitia sentar-se para pensar, na
videoinstalação não há lugar algum para parada.
Nessa perspectiva, retomo uma explicação de
Geiger, durante uma de nossas entrevistas:
354
prioritária na poética de Geiger e “permite per-
correr obra pictórica, vídeos, trabalhos gráficos
e toda uma série de formas híbridas (objetos-es-
culturas, desenho-pintura, fotografias-instalações,
vídeo-instalações e gravura)” (NAVAS, 2007, p. 18).
As passagens de Geiger do interior para o exte-
rior, do privado para o público, do pessoal para o
coletivo reverberam em Mesa, friso e vídeo macios.
Como dito no capítulo anterior, passagens remete
ao conceito de Walter Benjamin, e às transfor-
mações espaciais engendradas pelos processos de
urbanização e as possibilidades de elaboração de
31 ver p. 194 e p. 269 si enquanto artista31. Citando Benjamin, “pas-
sagem é uma cidade, um mundo em miniatura”.
Anna Bella Geiger com a videoinstalação cria
“um mundo em miniatura”, trazido pela cozinha
aberta às possibilidades de interpretação.
imagem 51
Anna Bella e Pedro Geiger na
cozinha de sua casa/ateliê
Rio de Janeiro
2022
fotografia de João Mascaro
imagem 52
Anna Bella e Pedro Geiger na
cozinha de sua casa/ateliê
Rio de Janeiro
2022
fotografia de
Gabriela De Laurentiis
355
imagem 53
Anna Bella Geiger
O pão nosso de cada dia
Centro Cultural Candido
Mendes
1979
fotografia de Ana Vitória
Musse
A imagem compõe o catálogo
produzido por ocasião da
Bienal de Veneza.
356
Variáveis: o pão nosso de cada dia
357
imagens 54 e 55
Anna Bella Geiger
O pão nosso de cada dia
Centro Cultural Candido Mendes
1979
fotografias de Ana Vitória Musse
As imagens compõem o
catálogo produzido por ocasião
da Bienal de Veneza.
358
Um importante pesquisador sobre o tema é
John Brian Harley (Ashley, 1932 – Milwaukee,
1991). Para ele o mapa está longe de ser um
espelho que traz uma representação geográfica
de um aspecto do real, como definem diversos
dicionários de cartografia, na esteira de um
pensamento técnico-científico com raízes no
Iluminismo. De uma perspectiva histórico-
crítica, o mapa refere-se a uma determinada
construção do mundo, expressa por meio da
cartografia. Como qualquer outro documento,
ele redefine o mundo em termos de relações de
poder das práticas culturais, das preferências e
das prioridades (HARLEY, 2001, p. 35).
359
No caso de Anna Bella Geiger, os mapas
surgem quando ela se encontra às voltas com
perguntas sobre “o que é a geografia da Terra”
e o que é uma “geografia ideológico-política”.
A artista começa, em meados da década de
1970, a subverter o mapa alterando suas escalas,
mergulhando nos embates sociais, políticos
e ideológicos dos possíveis significados da
representação de mapas. Precisa para isso,
encontrar, inventar uma estética que permita
transformar uma representação – cuja existência
precede a sua ideia – em uma obra de arte
(GEIGER, 2018g; ZUCCA, 2016).
imagem 58
matéria do jornal O Globo
19 de outubro de 1979
360
curso mundialmente durante a década de 1960,
pontua a autora, abrangem um momento de
reconfigurações político-espaciais envolvendo
a Guerra do Vietnã, a Primavera de Praga, os
processos de descolonização de países do con-
tinente africano, conflitos no Oriente Médio e
a Revolução Cubana. Representações de mapas
tornam-se recorrentes na mídia e povoam os
imaginários (JAREMTCHUK, 2007, pp. 100-101).
361
A mostra de Geiger na galeria do Candido
Mendes é tema da totalidade da coluna de
Roberto Pontual, no Jornal do Brasil, em
um artigo com imagens da obra e intitulado
“Mapeando a arte” (1979). Ali, ele escreve
detidamente sobre O pão nosso de cada dia,
permitindo ampliar as compreensões sobre
a montagem, uma vez que os registros são
poucos32. Um dos elementos que ele descreve é
uma “mesa coberta de tecido branco [da qual]
parece surgir um leito de hospital”. Seria sua 32 Os registos fotográficos
“imaginação demasiada?”, pergunta o crítico que pude ver da montagem
(PONTUAL, 1979b). de O pão nosso de cada dia
na Candido Mendes estão
publicados no Catálogo
feito por ocasião da Bienal
de Veneza (COCCHIARALE,
1980). Foram produzidos 4
catálogos, para cada um dos
artistas do Pavilhão do Brasil,
em parceria do Ministério
das Relações Exteriores e da
FUNARTE (PONTUAL, 1980b).
imagem 59
matéria do Jornal do Brasil
27 de outubro de 1979
362
A articulação entre mapas e corpo a partir
de O pão nosso de cada dia, considerando a
série homônima composta por seis cartões-
34 Dária Jaremtchuk (2007, postais e um saco de pão (papel Kraft)34. Uma
p. 131) diz ser pertencente à de suas imagens compõe o cartaz da exposição
montagem de O pão nosso de (PONTUAL, 1979b). Nela, duas fatias de pão
cada dia (apenas em sua versão de forma repousam sobre um pano colocado,
italiana) a série de postais. De provavelmente, em uma cesta. “A primeira das
acordo com um vídeo feito pela fatias tem seu miolo recortado de maneira a nos
Bienal de Veneza no Pavilhão do mostrar, pelo vazio, o mapa da América do Sul;
Brasil, as imagens dos postais a segunda, no mesmo processo, traz o mapa do
- bem como duas fatias de pão Brasil. Acima e abaixo da foto, o título se divide
(supostamente resultados da também em dois: O pão nosso de cada dia”
performance feita pela artista (PONTUAL, 1979b).
ali) estão colocadas nas paredes
compondo a instalação.
.
imagem 60
Anna Bella Geiger
O pão nosso de cada dia
1978
363
crescimento das imagens das fatias de pão, a 35 O fotógrafo é responsável
tal ponto, que elas são cortadas nas bordas. A por uma série de capas de
própria artista está presente na composição da discos de artistas da música
série O pão nosso de cada dia. Um dos postais brasileira, como Leci Brandão,
traz Geiger com uma das mãos segurando uma Tom Jobim, Caetano Veloso,
fatia de pão bem próxima à boca, que está Chico Buarque e, provavelmente
entreaberta. No corte da imagem não é possível uma das mais conhecidas, a do
ver acima de sua boca. No papel de pão lê-se: disco Alucinação” (1976), de
“O Pão Nosso de cada dia” e logo abaixo “ANNA Belchior. Ele conta que, ao longo
BELLA GEIGER” (assim mesmo, em caixa alta). dos anos, realizou mais de 40
mil registros tendo os negros
Todas as fotos foram feitas por Januário Garcia35
como tema central: “Eu fui fazer
Filho (Belo Horizonte, 1943 – Rio de Janeiro, negros na África, eu fui fazer
2021), que era professor de fotografia no MAM- negros em Israel, eu fui fazer
RJ36,quando seu aluno José Ricardo de Almeida negros na Europa. Então a coisa
o convida para os encontros de jovens negros37 virou diaspórica, o trabalho
que ocorriam na Universidade Candido Mendes, virou diaspórico, mas o básico
nas tardes de sábado: “minha contribuição foi dele é Brasil” (Garcia, citado em
começar a fotografar na reunião seguinte”, diz MASCARENHAS, on-line).
Garcia (citado em MASCARENHAS, online).
Destaco, portanto, que os trânsitos entre arte e 36 Em Trajetória: cursos e
fotografia, política e poética, MAM e Candido eventos no MAM (2016),
Mendes são parte da atmosfera cultural na qual localizei o nome de Januário
Geiger estava envolvida. Garcia Filho no item
“Abertura dos cursos de
A Galeria do Candido Mendes, localizada no fotografia do MAM-RJ”,
bairro de Ipanema, tinha curadoria de Maria de “Ciclo de palestras e debates”
Lourdes Mendes de Almeida38 (Rio de Janeiro, (VARELA, 2016, p. 83). Valeria
1930-2008). Nele foram exibidas, no mesmo uma pesquisa mais detalhada
ano que O pão nosso de cada dia, O sermão sobre os cursos de fotografia
da montanha – Fiat lux, de Cildo Meirelles, e no MAM, seus professores e
Pálpebras, de Tunga (Palmares, 1952 – Rio de participantes, bem como seus
Janeiro, 2016) (DUARTE, 2010, p. 132). E, ainda, conteúdos. É de se supor que
imediatamente antes da montagem de Anna o ensino de fotografia no
Bella Geiger, o espaço apresentou N Operações MAM tenha influenciado não
(1979), de Rute Gusmão (Porto Alegre, 1943) e apenas Geiger, como outros
Maria Carmen Albernaz (Rio de Janeiro, 1952)39 artistas da mesma geração
(PONTUAL, 1979a). envolvidos com o museu.
364
que ajudam a constituir os experimental ocorridos no MAM-RJ, como visto
movimentos de mulheres anteriormente40.
no Brasil, por meio das
quais elas refletem sobre A experimentação permitida pelo espaço
um “cotidiano marcado, por entrava em conversação com os anseios de
um lado, pela discriminação Anna Bella Geiger, naquele fim de década.
racial e, por outro, pelo Importante, nesse sentido, retomar uma
machismo”(GONZALEZ, proposta expositiva de Geiger enviada à Área
2020b, p.103). Experimental, não realizada em decorrência
do incêndio do MAM-RJ. A exposição Mapas
38 Maria de Lourdes Mendes topológicos seria realizada em agosto de 1978.
de Almeida, formada em De acordo com o projeto, partindo da projeção
Filosofia pela PUC-RJ, funda de Mercator ocorreriam transformações espaciais
em 1977 a Galeria do Centro que iriam definir ideologicamente o sentido
Cultural Candido Mendes. É desses novos mapas. Concomitantemente
escritora, tendo publicado ocorreriam, portanto, transformações formais.
os livros Os cinco sentidos Seus resultados serão denominados “mapas
(Editora Artenova, 1973); topológicos” (LOPES, 2013, pp. 79-80)41.
Tremor de mão (Editora Nova
Fronteira, 1982); Caixa casa É possível considerar que o Centro Cultural
corpo (1984); Fachadas Candido Mendes, naquele momento, ocupa
– contos e textos (Editora um vazio deixado pelo incêndio (desconfia-se
Nova Fronteira, 1994) e Vai que proposital) que, em 1978, destruiu grande
e vem vem e vai – passagens parte do acervo do MAM (Duarte, citado em
(Editora Garamond, 2004), REINALDIM, 2010, p. 132). Aliás, Anna Bella
segundo consta no seu Geiger contou-me que foi durante um curso
obituário no site da Academia oferecido por ela, com colaboração de Frederico
Brasileira de Letras (2008). Morais, no MAM-RJ, que conheceu Maria de
Não foi possível confirmar Lourdes Mendes de Almeida(GEIGER, 2022a),
seu local de nascimento e recebendo dela, anos mais tarde, o convite para
data que estão no obituário a montagem de O pão nosso de cada dia, em
do jornal Folha de S.Paulo Ipanema.
(VIEIRA, 2008).
No espaço carioca estava sendo exibido, de
39 Noto que as informações acordo com Roberto Pontual, o vídeo Mapas
sobre Rute Gusmão e Maria elementares III (1976), no qual a artista desenha
Carmen Albernaz não são quatro formas, que nomeia, nessa ordem,
abundantes, tendo sido “Amuleto”, “A mulata”, “A muleta” e “Am.
consultados para a definição Latina”. “Pouco a pouco”, diz o crítico, “vamos
de local e data de nascimento percebendo que essas quatro formas intituladas
os verbetes “Rute Gusmão têm todas as mesmas configurações do mapa da
Pereira Azevedo” no site do América Latina. Fecha-se, então, de novo todo
Arquivo Nacional (Diabrarq) o circuito que a mostra quis acionar: região
e “Maria Carmen Albernaz” geográfica & produção de linguagem, o mapa da
na Enciclopédia Itaú Cultural mina da arte” (PONTUAL, 1979b, grifos meus).
[on-line] na qual não há mais
informações bibliográficas. A descrição de Roberto Pontual apresenta
uma imprecisão, uma vez que, como sublinha
365
Dária Jaremtchuk, os mapas, na verdade, são 40 ver pp. 173-183
da América do Sul (JAREMTCHUK, 2007, p.
130). Para a autora, em Mapas elementares 41 Informações encontradas
III, “além da semelhança entre os termos, na carta de Anna Bella Geiger
todos os desenhos tratam de imagens para o MAM, 12 jan. 1978,
clichês, de identidades impostas, conceitos/ e recuperadas por Fernanda
imagens estabelecidas pelo colonizador para o Lopes (2013).
colonizado” (JAREMTCHUK, 2007, p. 130).
366
imagens 61, 62,63, 64 e 65
frames do vídeo Mapas
elementares III
1976
367
“latinité”). A noção embasa suas justificativas
em uma raiz comum das línguas francesa,
portuguesa e espanhola e da tradição partilhada
do catolicismo romano, sendo traduzidas como
traços para a construção de uma raça latina
(PHELAN, 1979, p. 6).
368
alguns casos, à América como totalidade do
continente, tendo a intenção de aproximação
aos Estados Unidos (BETHELL, 2009, p. 293).
369
completamente uma simbologia de crítica e
liberdade aportada pela ideia (JAREMTCHUK,
2007, p. 134).
imagens 66 e 67
frames do vídeo Mapas
elementares III
1976
370
redutoramente como uma figura “birracial”
(LONDON, 2010, p. 360).
371
e estava com cabeça e corpo separados. Batizada
de Aparecida, teria trazido para o rio sem peixes
a abundância, escreve Emanuel Araújo42 (Santo 42 Emanoel Araújo (Santo
Amaro da Purificação, 1940 – São Paulo,2022), Amaro da Purificação, 1940) é
curador da exposição Aparecida: virgem mãe do artista, curador e museólogo.
Brasil (2012/2013), exibida no Museu Afro Brasil Filho de uma tradicional
(ARAÚJO, 2013, p. 19). família de ouríves, trabalhou
como diretor do Museu de
De acordo com Araújo, não é a terracota paulis- Arte da Bahia (1981-1983), da
ta, que o tempo torna naturalmente mais escu- Pinacoteca do Estado de São
ra que a faz negra, mas toda uma iconografia Paulo (1922- 2002) e fundador
erudita e popular. Ele sublinha, ainda, que “não do Museu Afro Brasil (2004).
deixa de ser um fenômeno extraordinário num Em 1963, foi premiado na
país racista”, que o “o inconsciente coletivo” II Exposição Jovem Gravura
tenha identificado como negra sua padroeira Nacional (MAC) e, em 1972,
(ARAÚJO, 2013, pp. 20-21). Artistas como Tarsi- ganhou a medalha de ouro na 3ª
la do Amaral (Capivari, 1986 – São Paulo, 1973), Bienal Gráfica de Florença.
Djanira (Avaré, 1914 – Rio de Janeiro, 1979) e
Tereza D’Amico (São Paulo, 1914-1965), criam
trabalhos com o tema da Virgem, como consta
no catálogo da mostra organizada por Araújo.
imagem 68
frame do vídeo Mapas
elementares III
1976
372
de Anna Bella Geiger, cujos pais – Jacob Icek
e Golda Waldman – migram para o Brasil na
década de 1920.
373
abre passagens para discussões que não
cessam de se atualizar, diante de perspectivas
críticas ao colonialismo, imperialismo, racismo,
sexismo, em suas diversas articulações. De uma
perspectiva crítica, tem-se que esses territórios
servem de suporte material e simbólico para a
construção das cartografias, desenho do mundo.
As delimitações territoriais traçadas em mapas
são definidoras de certas identificações, o que
absolutamente significa que elas não possam ser
rearticuladas, borradas ou apagadas.
374
imagem 69
Anna Bella Geiger segurando
edição da revista Marie Claire, na
qual a matéria “Além de Tarsila
e Anita: conheça as mulheres
da Semana de Arte Moderna de
1922” traz publicado um registro
de O pão nosso de cada dia na
mesma página em que está
Fayga Ostrower.
fevereiro de 2022
Rio de Janeiro
fotografia de João Mascaro
375
376
Antropofagia: outros lados
imagem 70
matéria do Jornal do Brasil
27 de maio de 1980
377
Paulo Roberto Leal (Rio de Janeiro, 1946 –
1991), Carlos Vergara (Santa Maria, 1941), sendo
Roberto Pontual o responsável pela seleção. A
XXXIX Bienal de Veneza, explica Pontual, tem
como “seu tema básico [...] a arte no mundo
desde 1968, tratado simultaneamente como 45 O texto de curadoria escrito
tentativa de balanço histórico-crítico e como por Pontual para o catálogo da
demonstrativo da produção atual de artistas Bienal italiana tem uma versão
em destaque no período” (PONTUAL, 1980b). em português publicada no
O crítico rememora que, entre os efeitos das Jornal do Brasil, sob o título
revoltas estudantis e operárias de 1968, a própria de “39ª Bienal de Veneza”
Bienal de Veneza é posta em xeque, com uma (1980). Nele o crítico inicia
série de artistas colocando suas obras voltadas as considerações realizando
contra as paredes dos pavilhões, abandonando análises comparativas entre a
a cidade e chocando-se diretamente contra a situação do artista europeu e a
polícia (PONTUAL, 1980a). do artista brasileiro desde 1968.
378
mar e areia ao fundo, vestindo uma camisa de
manga comprida. Ela segura o microfone e, num
movimento semelhante ao de Declaração em
retrato I, entre grandes intervalos de silêncio
pronuncia palavras sobre temas relacionados
ao sistema das artes. Na segunda parte, ela está
de costas para o público e permanece por mais
ou menos 3 minutos praticamente parada e em
silêncio. Ao fim, Geiger tira seu corpo de cena, e
um papel pautado com textos escritos à caneta
preta surge. Leem-se, traduzidas para o inglês,
as ideias que ela havia explicitado, por meio da
fala em português, na praia:
culture doesn´t
exist apart from our
talking together
what is art?
or:
I have this concept
of art, how does my
concept match yours?
thus us the other
side of
anthropophagic!
this is the western
condition
379
A palavra “antropofagia” é pouco mobilizada
por Anna Bella Geiger, sendo interessante pensar
que ela diz ser “outro lado do antropofágico”
a conversa, a possibilidad de compreensão de
diferentes significados que uma mesma palavra,
ideia, conceito podem assumir, dependendo do
sujeito que a utiliza. Os avessos, os sentidos
dúbios, os tempos estendidos e silenciosos,
característicos de outros vídeos, como Passagens
e Centerminal.
380
Os temas apontados por Herkenhoff surgem,
como característicos das práticas de Anna Bella
Geiger, em versões de seus cadernos/livros.
Zanna Gilbert, escrevendo sobre eles, destaca um
elo entre o “Manifesto antropófago” (1928), de
Oswald de Andrade (São Paulo, 1890 – 1954), e
46 ver pp. 220-223 o caderno Nearer (1974)46. Publicado na Revista
Antropofágica47, o “Manifesto” cria suas origens
47 Para Ivan Marques, autor mitológicas com base na história da Deglutição
do livro Modernismo em do Bispo Sardinha, comido pelos Caeté, no
revista: estética e ideologia nos Ceará. O texto é concebido como um ato
periódicos dos anos 1920, “as fundador da nova era, que procura a liberdade
revistas modernistas, não só no existente nessas terras até o 11 de outubro
Brasil, foram um dos principais de 1492 (SCHWARTZ, 1998, p. 62), antes da
veículos de atuação das invasão colonizadora e do processo de invenção
vanguardas, que normalmente da América (O’GORMAN, 1992).
são associadas com a destruição
– da velha arte, dos velhos
conceitos. Mas aqui elas tiveram
um papel diferente. Desde
Klaxon, que foi a mais ousada,
lançada logo depois da Semana
de 1922, as revistas tiveram
um papel construtor. Foram
mais um espaço de debate e de
autocrítica do modernismo do
que propriamente de ataque das
convenções” (MARQUES, 2013).
imagem 79
Manifesto Antrpófago
1928
381
Com as pesquisas que realizei, pude verificar no
trabalho a presença de um mandacaru, cacto
nativo do Brasil, nos versos das folhas, bem
como em Sobre a arte (1975) e O novo atlas I
(1977). A planta é um dos três elementos que
compõem a pintura de Amaral, sendo os outros
um sol e a figura de Abaporu, ser comedor de
gente.
imagem 80
Tarsila do Amaral
Abaporu
1928
382
simultaneamente com os problemas de ordem
interna, tais quais aqueles sobre o modernismo,
e externa, relativa à situação de dependência
cultural nacional.
383
Ana Paula Simioni, em “Modernismo brasileiro:
entre a consagração e a contestação”, tensiona
esse tipo de perspectiva e apresenta como
práticas discursivas críticas, historiográficas,
curatoriais, mercadológicas e institucionais
engendram a “glorificação do modernismo no imagem 83
Brasil”, num processo que se tornou histórico Anna Bella Geiger
(SIMIONI, 2013, p.1). De acordo com a cientista página de caderninho com
social, há três momentos principais: 1917-1940, carimbo de mandacaru
quando os próprios integrantes do movimento
constroem uma história da arte moderna
brasileira; 1940-1970, momento de consagração
no âmbito institucional, com aquisição de obras
para importantes acervos e chancela no sistema
universitário; final da década de 1970, com
matizações a respeito do alcance do movimento,
bem como pensamentos sobre os limites do
caráter efetivamente moderno do movimento,
dos aspectos formais, da centralidade de grupos
e regiões, da procura de formulação de um
discurso canônico (SIMIONI, 2013, p.2).
384
quais são criadas contraposições falsas, na ânsia
de estabelecer a superação de uma “situação
cultural” (FABRIS, 1994, p. 9).
385
O explícito distanciamento da mitológica que
mobilizam é adensando se tomarmos as palavras
de Galciani Neves, para quem, com o Abaporu,
Tarsila do Amaral transforma o clima de frescor
e otimismo de “uma sala de jantar domingueira”,
trazido pelo “Manifesto Pau Brasil” (1924), de
Oswald, em algo mais canibal, amarrado em
uma “selvageria ainda mais nativa” (NEVES,
2016, p. 43). As considerações da autora
reforçam a suposição de que os protagonistas
do modernismo nacional tinham sobretudo uma
preconcepção otimista do que Neves nomeia
“qualidades bárbaras e rudes do brasileiro
provenientes da cultura indígena e africana”
(NEVES, 2016, p. 43).
386
Do mesmo modo, no caso das “modernidades
periféricas”(SARLO,2010) tais discursos
parecem ter força para a produção de uma
ação libertadora, tornando agentes periféricos
(de uma perspectiva planetária) atuantes nos
consagrados como grandes centros de produção
de arte – notadamente os Estados Unidos e
países do continente europeu, como a França
– com base em estratégias e valores próprios
(SIMIONI, 2013, p. 5).
387
pudessem lutar melhor, tornando-se melhores
guerreiras. O outro era mantido para amamentar
os filhos, em um movimento de reconciliação
da “atuação nos espaços da vida doméstica e imagem 86
pública” (BITTENCOURT, 2019, p. 70). Do mesmo Tarsila do Amaral
modo, de acordo com a pesquisadora, o seio A negra
volumoso e pendente traz pensamentos sobre 1923
“questões concretas da vida das mulheres negras
no contexto da diáspora negra, ama de leite ou
nutrizes em outros sentidos” (BITTENCOURT, 52 O texto instigante de Renata
2019, p. 72). Bittencourt traz relações da obra
de Amaral à de outras artistas.
Ao falar as mitológicas Ama-
zonas, está traçando paralelos
entre A negra (1923) e Portrait
d’une femme noire (Retrato de
uma mulher negra, 1800), feito
por Marie-Guillemine Benoist
(Paris, 1768 – 1826). A obra de
Benoist leva também o nome de
Portrait de Madeleine (Retrato
de Madeleine) (HARDIVILLIER,
2019), sendo a figura Madeleine,
vinda de Guadalupe, naquele
momento colônia francesa. No
contexto do decreto de 1874 que
aboliu a escravidão nas colônias
francesas, Madaleine vai à Fran-
ça com o cunhado de Benoist
para trabalhar como serviçal da
família (BITTENCOURT, 2019, p.
69). A respeito dos significados
relativos às mulheres negras
como nutridoras no contexto
escravagista, Bittencourt traz o
trabalho A subtlety, or marvelous
Como sublinha a autora, submetidas à sugar baby (Sutileza, ou mara-
escravização, às mulheres negras era imposto vilhoso bebezinho de açúcar,
o cuidado de outros filhos que não os seus ou 2014), construído por Kara Wa-
de sua comunidade. Amaral busca inspiração lker (Stockton, 1969). Feita com
para sua pintura nas memórias e imagens de isopor e açúcar, a escultura de
mulheres negras, trabalhadoras, que na sua Walker tem 10 metros de altura
história pessoal foram propriedade da fazenda e 22 de comprimento, inspirada
familiar, situada no interior paulista cafeeiro em figuras esfíngicas egípcias.
(BITTENCOURT, 2019, p. 72)52. “A ideia de primitivo, associada
historicamente à África, seus
Como outros artistas trabalhando globalmente corpos e suas artes, é evocada
nos marcos do modernismo, Amaral explora o pela máscara que traduz o
388
rosto de Tarsila, em Walker, pela número sem erotismo, sendo um indício disso
alusão a percepções históricas a ausência dos cabelos, recurso de “sedução
que estigmatizam as mulheres na tradição pictórica”, inserindo a pintura
negras, projetando sobre elas “na tradição de recusa à idealização do corpo
uma presumida voracidade sexu- feminino” de artistas mulheres de vanguarda
al exacerbada, sugerida também (SIMIONI, 2022, p. 134). Geométrica figurativa,
no sabor doce imposto no corpo
modelado” (BITTENCOURT, 2019, A negra de Tarsila do Amaral articula-se com
p. 71). “o léxico pós-cubista em voga em Paris”, cidade
na qual ela, bem como outras artistas brasilei-
53 Walter Zanini lembra: “boa ras, tem parte de sua formação modernista53. No
parte dos artistas da Semana de entanto, é particular a representação realizada
Arte Moderna mudava-se pelos em A negra, diz Simioni, “pois feita por uma
anos 20 para Paris à procura mulher, artista, brasileira que aborda um as-
de sua aragem universal. Isto sunto ‘seu’” (SIMIONI, 2022, p. 135). Seja pela
era prova de que permaneciam escolha dos temas ou pelo modo de abordá-los,
sólidos os vínculos artísticos Tarsila do Amaral agrada a cena artística pari-
com a Europa e especialmente siense – interessada no “exotismo (ou localismo,
com a França. Victor Brecheret nativismo, primitivismo)” –, simultaneamente
e Vicente do Rego Monteiro satisfazendo às expectativas do círculo brasileiro
partiram em 1921; Di Cavalcanti ao qual pertencia (SIMIONI, 2022, p. 135).
e Anita Malfatti, em 1923. Como
uma espécie de compensação,
neste último ano, Lasar Segall
radicava-se definitivamente
em São Paulo, e, em 1924, era
a vez de Tarsila do Amaral,
de formação acadêmica,
regressada havia pouco de Paris,
iniciar atividade consequente
na capital paulista. Também
em 1924, no Rio de Janeiro,
Osvaldo Goeldi descobria sua
forma essencial de expressão
na gravura. Acrescente-se que a
partir de 1923 Joaquim do Rego
Monteiro, retornando de Paris,
onde se encontrava desde os
anos de pós-guerra, teria aqui
uma permanência até 1925 (...)”
(ZANINI, 1983, p. 547)
.imagem 87
Tarsila do Amaral
Autorretrato
1923 Tornar-se moderna para Amaral envolve uma
série de estratégias, muitas delas possibilitadas
por sua fortuna familiar. Ela, em Paris, passa a
389
comprar modelos desenhados pelo costureiro
Paul Poiret (PARIS, 1879 – 1944) (SIMIONI,
2022, p. 159), conhecido por criar trajes com
silhuetas menos rígidas para as mulheres, e
lembrado por liberá-las do espartilho. Usa
referências “orientalistas” como quimonos e cria
peças inspiradas no ballet russo (PACCE, 2018).
390
redobram-se os sentidos de Mapas elementares
III. Associo a ação de Anna Bella Geiger, mulher
latino-americana, construindo a figura da
mulata, à de Amaral criando A negra.
imagem 88
frame do vídeo Mapas
elementares III
1976
391
debates externos ao território nacional, em
especial, com aqueles da capital francesa, Paris,
imprimindo-lhes seu caráter antropofágico
brasileiro.
imagens 89 e 90
Anna Bella Geiger
Fôrmas do Brasil e Américalatina
(título constante no arquivo
enviado pela artista)
1974-1975
392
do jantar para os filhos, ocorreu-lhe a ideia de
cortar fôrmas de metal feitas como mapas do
Brasil e da América do Sul. No espaço do museu
elas seriam preenchidas com massa de biscoito.
Em sua casa, seriam levadas ao forno, e, no dia
seguinte, os biscoitos seriam levados em bande-
jas para serem comidos pelo público da expo-
sição. A artista conta que cortar metal para a
produção de fôrmas era uma ideia que permeava
seu imaginário doméstico desde a infância. O pai
costumava utilizar latas de aveia Quaker para
produzir fôrmas que a mãe usaria para assar
biscoitos (GEIGER, 2018f, pp. 313-314).
393
Tomando as palavras de Cocchiarale e saindo 54 Gabriela Cristina Lodo, na
da discussão da brasilidade, passo a algumas dissertação I Bienal Latino-
considerações que retomam o problema da Americana de São Paulo (2014),
América Latina, tratado nas páginas anteriores. faz um extenso levantamento
Considerando a década de 1970 e o estado do a respeito dos debates sobre
debate no circuito artístico no Brasil, o tema américa-latinidade nos debates
da latino-americanidade estava muito presente. envolvendo o sistema das artes,
Destaco que em 1978 ocorre a organização da I naquele momento. Reproduzo
Bienal Latino-Americana, com o tema dos Mitos a extensa citação para ampliar
e Magias, pela própria Fundação Bienal de São a compreensão das discussões
Paulo (LODO, 2014; SOUZA, 2021)54. trazidas nestas linhas. “A
realização da I Bienal Latino-
Frederico Morais (1978), no dia da abertura da Americana de São Paulo, no ano
Bienal Latino-Americana, escreve, para o jornal de 1978, coincide com uma série
O Globo, considerar o evento uma versão do já de eventos dedicados à mesma
“carcomido certame” das bienais de São Paulo. temática. O contexto artístico do
O tema é, de acordo com ele, considerado por período, principalmente ao longo
muitos “amplo e sem precisão conceitual”, e da década de 1970, discutiu e
para muitos seria sua organização de “visível valorizou de modo crescente a
má-fé, de nacionalismo xenófobo, de arianismo produção artística do continente,
artístico” (MORAIS, 1978). realizando conferências, eventos,
simpósios e mostras de artes
Exageradamente polêmica, a oposição à Bienal plásticas em diversos países da
Latino-Americana impulsionou manifestos, América Latina e Estados Unidos.
protestos, happenings, como destaca Morais Podem-se enumerar alguns
no mesmo artigo – “América Latina em debate, eventos significativos do período
a partir de hoje, em São Paulo” (1978). Entre que contribuíram para o debate
eles, Mitos vadios, organizado pelo artista Ivald acerca da arte latino-americana,
Granato (Campos, 1949 – São Paulo,2016), como o Encontro da UNESCO,
aconteceria dali a dois dias, domingo (seria em Quito, Equador, em 1970;
uma homenagem aos Domingos de criação?) e a publicação em 1973 do livro
contava, naquela altura, com a adesão de Hélio Dos décadas vulnerables en las
Oiticica e Lygia Pape (MORAIS, 1978). artes plásticas latinoamericanas
– 1950-1970, de autoria da
Curioso que, logo acima da coluna de Frederico historiadora e crítica de arte
Morais em O Globo, há uma foto de Ney argentina radicada na Colômbia
Matogrosso para anunciar um show que o Marta Traba, com publicação no
cantor faria no Colégio Stella Maris, na favela Brasil em 1977; a edição de 1974
do Vidigal, Rio de Janeiro, para pessoas que da Bienal de Veneza dedicada ao
estavam prestes a ser despejadas de “seu morro- Chile, em protesto à ditadura de
lar” (MOTTA, 1978). Cinco anos antes, Ney Augusto Pinochet; o Simpósio
havia ficado nacionalmente conhecido como de Artes Plásticas e Literatura,
vocalista da banda Secos & Molhados, com realizado na Universidade do
João Ricardo e Gerson Conrad. O LP tinha Texas em parceria com a revista
como primeira música “Sangue latino” (1973), mexicana Plural, em Austin, EUA,
de autoria de João Ricardo, músico português em 1975; o primeiro Colóquio
radicado no Brasil, e Paulinho Mendonça Internacional de História da Arte
(BARCINSKI, 2014, p. 33). no México, também em 1975;
394
as polêmicas envolvendo arte Lançado em agosto de 1973, sua capa foi uma
latino-americana protagonizadas das escolhidas para aparecer na abertura da
pela revista mexicana Artes estreia do programa dominical Fantástico,
Visuales, em 1976; e a edição da Rede Globo de televisão. Prensadas
de 1977 da Bienal de Paris e a originalmente 1.500 cópias pela gravadora
numerosa acolhida de artistas Continental, o LP vendeu, em 3 meses, 300
latino-americanos. É possível mil exemplares. Diante da demanda e da grave
mencionar ainda os inúmeros situação ocasionada pela crise do petróleo no
eventos concretizados em 1978, mesmo ano, a gravadora acaba por derreter
como: as Jornadas Artísticas discos parados para produzir outros do Secos &
ou Jornadas Internacionais Molhados (BARCINSKI, 2014, pp. 33-34).
da Crítica, realizadas em
Buenos Aires, Argentina (com Aberta pelo baixo do argentino Willy Verdaguer,
sua primeira edição naquele “Sangue latino” fala sobre como “os ventos
ano); o I Encontro Ibero- do norte não movem moinhos”, sobre “mortos
Americano de Críticos de e caminhos tortos”, sobre “o sangue latino”,
Arte e Artistas Plásticos, em cantadas comoventemente por Ney Matogrosso.
Caracas, Venezuela; a I Bienal A capa do disco trazia decepadas sobre uma
Ibero-Americana de Pintura e mesa as cabeças dos três integrantes da banda e
a I Mostra Latino-Americana do baterista argentino Marcelo Frias.
de Fotografia Contemporânea,
ambas realizadas no México; Com uma estética hippie, estranha e
a mostra América Latina: imaginativa, a imagem é provavelmente,
Geometria Sensível, no MAM- diz o pesquisador André Barcinski, um dos
RJ, Brasil, curada pelo crítico motivadores de sucesso do LP, em um país
de arte e jornalista brasileiro “controlado por uma ditadura militar e
Roberto Pontual; a criação onde discos eram censurados aos montes”
do Centro de Documentação (BARCINSKI, 2014, p. 34). A imagem de cabeças
de Arte e Arquitetura para a decepadas à mesa, correlatas às palavras sobre
América Latina no Centro de
Arte y Comunicación – CAYC, na
Argentina; a criação da União de
Museus da América Latina e do
Caribe, pelos representantes dos
principais museus e entidades
similares da região, com sede
no Museu de Arte Moderna de
Bogotá, Colômbia; a criação da
Associação para Arte Latino-
Americana (ALAA), ligada à
Universidade do Texas; e, por
fim, a I Bienal Latino-Americana
de São Paulo, que contou,
além da exposição de artes
plásticas, com um Simpósio
que reuniu inúmeros críticos de
arte, historiadores, sociólogos e
estudiosos do tema. E, abrindo
395
a latinidade, tem no âmbito cultural extrema a década seguinte, a realização
importância e adensa as camadas de sentido do Encontro de Artes Visuais e
para os trabalhos de Anna Bella Geiger. Identidade na América Latina,
organizado pelo Foro de Arte
Retomando 1978 e a I Bienal Latino-americana, Contemporáneo do México,
Aracy Amaral (1978), incentivadora da mostra, em 1981” (LODO, 2014, pp.
ao lado de nomes como Roberto Pontual 69-70).
e Heloisa Lustosa, participa de um de seus
eventos prévios, no Centro de Investigaciones, imagem 91
Documentación y Difusión de las Artes Plásticas capa do álbum Secos e
de América Latina, no Museu de Belas Artes de Molhados, fotografada por
Caracas, Venezuela (AMARAL, 2013b, p. 462). Antônio Carlos Rodrigues
1973
No texto “Um roteiro da arte latino-americana
que precede a Bienal” (1978) ela enfatiza que
“pela primeira vez os artistas e intelectuais da
América Latina testemunham o início de um
trabalho de abordagem das artes no continente a
partir de uma entidade latino-americana, e não
por parte da UNESCO, ou dos Estados Unidos”
(AMARAL, 2013b, p. 462).
396
397
e vídeo macios. Os mapas/manchas ganham
outros sentidos, considerando essas questões.
Os contornos geográficos, da América do
Sul, por exemplo, podem ser subscritos em
contornos sociopolíticos, que extrapolam suas
próprias formas. Os mapas da América Latina
de Geiger – ela própria os nomeia muitas
vezes assim – são sempre mapas da América
do Sul, de uma perspectiva da geografia física.
Mapas são manchas porque seus sentidos são
mutáveis, tanto de uma perspectiva de alterações
resultantes de guerras e conflitos, por exemplo,
quanto pela organização de imaginários
culturais, políticos, sociais, econômicos:
América Latina.
imagem 93
página do jornal Folha de S.Paulo
sobre o Ato contra a carestia.
28 de agosto de 1978.
398
Com fortes preocupações sociais (AMARAL,
2003, p.19), a arte desenvolvida na América
Latina apresenta, nos anos 1970, uma série
de trabalhos sobre o problema da fome – que
também poderia ser considerado um outro
lado da antropofagia. Nessa perspectiva, Guy
55 No Brasil muitos Brett entende que O pão nosso de cada dia fala
movimentos sociais tinham daquilo que é mais elementar na vida brasileira,
apoio de organizações ligadas às a fome (BRETT, 2007, p. 45). A materialidade da
parcelas de esquerda da Igreja fome no país, em 1978, é algo incontornável. De
Católica. Como é possível ler acordo o IBGE, a situação, que era grave, havia
na notícia da Folha de S. Paulo, piorado nos últimos três anos, com a queda nos
em 28 de agosto de 1978, D. níveis de nutrição no país, e em todas as regiões
Angélico Sândalo, responsável o consumo de calorias era inferior ao nível
pela Catedral da Sé, onde se estabelecido internacionalmente (ALVIM, 2016,
realizava o Ato contra a carestia, p. 36).
disse que não permititia a
entrada da polícia, resistindo à Vale lembrar que, no Brasil, os movimentos de
pressão do coronel responsável mulheres organizaram uma série de protestos
pela repressão do ato. contra a fome. Em 1978, o Movimento Custo
de Vida, idealizado por grupos de bairros e de
imagem 94 clubes formados por donas de casa e mães,
Anna Maria Maiolino organizou em São Paulo um grande protesto.
Arroz & feijão Na Praça da Sé55, as manifestantes recolheram
1979 assinaturas para serem entregues ao presidente
vídeo no monitor 1/3 + 2/3 Ernesto Geisel, criticando a carestia e o
vista da exposição Anna Maria autoritarismo. Esse não foi o único protesto
Maiolino - psssiiiuuu... organizado por mulheres contra a fome naquele
curadoria de Paulo Myada. final de década. As Marchas das Panelas Vazias
Instituto Tomie Ohtake acontecem pelo país, com organização das
2022 Federações de Mulheres, chamando atenção para
fotografia de Gabriela a fome e para “agonia do milagre econômico”
De Laurentiis (ALVIM, 2016, p.20).
399
No Brasil há uma correspondência interessante
entre O pão nosso de cada dia e a instalação
de Anna Maria Maiolino Arroz & feijão (1979),
realizada na Aliança Francesa de Botafogo, Rio
de Janeiro. Sementes desses dois alimentos,
tão corriqueiros na culinária brasileira,
são plantadas dentro de pratos brancos,
cuidadosamente arrumados para que um
banquete seja realizado em uma mesa principal
de 6 lugares e outras mesas de 4 lugares. Criada
em 1979, o ano da anistia no Brasil, a obra
traz à mesa de jantar sementes que germinam.
Obra-viva em resistência à morte que a ditadura
civil-militar impunha (Memorial poético Arroz
& feijão, citada em MYADA, 2022, p. 221).
Sobre o tema, no ano anterior, Maiolino havia
apresentado o Monumento à fome (1978), na
mostra crítica à Bienal Latino-Americana, Mitos
vadios.
imagem 95
Anna Maria Maiolino
Monumento à fome
1978
400
ZANATTA, 2019, s.p.). A obra é elaborada
para a exibição Arte e ideología CAYC al aire
libre (1972), que foi fechada pela polícia após
denúncia. A censura baseava-se na compreensão
pelas autoridades policiais de que aquilo exibido
na praça não era arte, diz a pesquisadora Luiza
Mader Paladino (2019, p. 336).
imagem 96
Victor Grippo, Jorge Gamarra e
Atilio Rossi
Construcción de un horno
popular para hacer pan
Buenos Aires
1972
401
O Centro de Arte y Comunicación (CAYA) foi
criado pelo artista Jorge Glusberg (Buenos Aires,
1932-2012), em 1968. A instituição privada
ganha importância na Argentina, articulando
pensamentos e práticas sobre poéticas conceitu-
ais latino-americanas, com base nos vetores arte,
comunicação e arquitetura (PALADINO, 2019,
p. 333). Após o fechamento de Arte e ideolo-
gía, Glusberg organizou uma movimentação
internacional a favor da possibilidade de livre
expressão dos artistas. O evento é idealizado
com o intuito de tratar a “problemática nacio-
nal”, promovendo obras na rua, local em que há
“transeuntes”, onde há “casais que fazem amor”
e “grupos de estudantes e crianças que brincam
na praça”. Trata-se de um distanciamento dos
“âmbitos elitistas de Museus e Galerias” (Glus-
berg, citado em PALADINO, 2019, p. 334).
imagens 97 e 98
CADA
Para no morir de hambre en el
arte
Santiago
1979
402
Em cima da caixa lia-se o texto: “Para permane-
cer até que nosso povo aceda a seus consumos
básicos de alimentos. Para permanecer como o
negativo de um corpo carente, invertido e plu-
ral” (NEUSTADT, 2001, p. 138).
403
protagonista de uma outra ação de Para
no morir de hambre en el arte, na qual dez
caminhões de leite transitam pela cidade, indo
de “um centro produtor de leite (a indústria)
até um centro conservador de arte (o Museu de
Belas Artes) oferecendo ao transeunte o referente
da fome – por meio do leite” (RICHARD, 2018,
p.195). Na parada final, o CADA bloqueia,
simbolicamente, com um lenço branco, a
entrada do Museu de Belas Artes57. Segundo 57 Outras fontes nomeiam a
Nelly Richard, o coletivo promove uma crítica intervenção como Inversión de
à censura em duas vertentes: a primeira à escena, considerada algo à parte
instituição museu, que sacraliza e estanca a obra de Para no morir de hambre en
de arte; a segunda ao museu chileno, símbolo el arte.
do oficialismo da cultura ditatorial no país
(RICHARD, 1994, p. 41).
imagens 99 e 100
CADA
Inversión de escena
Santiago
1979
404
O branco como censura está presente nos mapas
desenhados no guardanapo de O pão nosso
de cada dia. Na ação do CADA, essa ideia é
reforçada pela intervenção – parte ainda de
Para no morir de hambre en el arte. Na página
da revista Hoy se lê: “Imaginar esta página
completamente branca/imaginar esta página
branca como o leite diário a consumir/imaginar
cada canto do Chile privado do consumo diário
de leite como páginas brancas para serem
preenchidas” (RICHARD, 2018, p. 195).
imagem 101
Anna Bella Geiger
O pão nosso de cada dia
1978
As imagens compõem o
catálogo produzido por ocasião
da Bienal de Veneza
1980
405
imagem 102
Anna Bella Geiger na 1ª Bienal
do Mercosul
Porto Alegre
1997
fotografia de Vera Chaves
Barcellos
406
imagens 103, 104 e 105
Anna Bella Geiger segurando
um folder com imagens de O
pão nosso de cada dia, ao lado
do vídeo Declaração em retrato
I, na abertura da exposição
Mulheres radicais
Pinacoteca de Sâo Paulo
2018
fotografias de Gabriela
De Laurentiis
407
408
Local da ação: cartografias
409
O espaço construído a partir de questões de imagem 109
uma geografia social e psíquica elabora-se Anna Bella Geiger
como território poético-crítico nos trabalhos frame do vídeo Local da ação
de Anna Bella. E seus mapas configuram-se, 1979
nesse aspecto, como ponto privilegiado para vista da exposição Anna Bella
a expansão da noção de crítica instaurada Geiger. Native Brazil/alien Brazil
por sua prática artística. São construídos com Museu Frans Hals
técnicas variadas, sendo algumas muito pouco 2022
ortodoxas naquele contexto artístico, tais como fotografia de João Mascaro
xerox, impressos e vídeo (ASHTON, 1996, pp.
50-51). Em densidades e movimentos variáveis,
os primeiros surgem no início dos anos 1970 e
multiplicam-se durante seu percurso artístico.
410
todas essas movimentações políticas e sociais
que as representações de mapas são recorrentes
na mídia e povoam os imaginários da época
(JAREMTCHUK, 2007, pp. 100-101).
imagem 110
Anna Bella Geiger
Local da ação
1979
411
pode ser considerada como incluindo todos os
tipos de mapas, plantas, cartas e seções, modelos
tridimensionais e globos representando a Terra
ou qualquer corpo celeste, em qualquer escala
(SLUTER, 2004, p. X).
imagem 111
Anna Bella Geiger
frame do vídeo
Local da ação
1979
412
artísticas|educacionais em aproximação com
as práticas cartográficas. Ao criar mapas,
Anna Bella Geiger produz um movimento em
espiral no qual práticas e objetos artísticos se
ressignificam mutuamente em um movimento
contínuo. Anna Bella Geiger, diferentemente
do cartógrafo idealizado por Rolnik, não é uma
antropófaga, mas trabalha nos avessos, vazios,
imagens 112 e 113 contrários, outros lados da figura.
Anna Bella Geiger
O novo atlas 2 Um movimento faz do seu Local da ação
1977 recolocável, transitório e nem por isso menos
influente nos processos de criação. Na imagem
repetida no vídeo, no caderno O novo atlas 2 e
na gravura n.1 da série, a projeção afilática –
em que as proporções não são respeitadas com
precisão, porém, no todo do mapa as distorções
são menos acentuadas – traz a América do
Sul com um recorte ortogonal, causando
visualmente um destaque.
413
desse modo, é como se essa porção do mundo
não tivesse lugar nas representações globais.
414
ficando sob seu domínio até 2002. Em 1975,
também ocorre a primeira eleição livre em
Portugal em 50 anos, como efeito da Revolução
dos Cravos (1974), que botava fim ao Estado
Novo, cuja principal figura foi António de
Oliveira Salazar (Vimieiro, 1889 – Lisboa, 1970),
chefe de Estado entre 1933 e 1968.
415
Cartografia brasílis ou: esta história está mal
contada é a dissertação de mestrado de Norma
Telles, publicada pela primeira vez na Coleção
Espaço, da Edições Loyola (1984), que aborda
tais questões considerando os livros didáticos
no ensino de história. Como afirma Telles,
“no domínio da escola, o livro didático, ao
lado do professor, é um instrumento poderoso,
obrigatório para todos os alunos, e com
autoridade suplementar de ser uma obra escrita”
(TELLES, 1996, p. 21).
416
e silenciamento de outros espaços, pela
centralização em um determinado grupo e
minimização das críticas em relação ao tal grupo
(TELLES, 1996, p. 48).
417
meio a uma série de textos não exatamente
legíveis, surgem palavras sobre a escravização,
o lugar social da arte, América, entre muitas
outras. Um dos mapas está identificado como “O
Brasil se prevalecesse o limite de Tordesilhas”.
imagem 119
Anna Bella Geiger
friso tal qual da instalação
O pão nosso de cada dia
1975
Nesse ponto, vale uma
observação: consultando um
vídeo do Pavilhão do Brasil,
produzido pela Bienal de
Veneza (1980), as imagens que
Mapas em meio a textos compõem, também, os compõem o friso surgem apenas
frisos da montagem de O pão nosso de cada dia em uma versão em papel (xérox,
e surgem, anteriormente, no caderninho O novo provavelmente) dispostas lado
atlas (1977). A conjugação entre as palavras a lado na parede. Analisando o
e as imagens dos mapas, em um pensamento registro de Ana Vitória Musse
sobre a arte e a educação, trazem para os (imagem 120) parece ser o
trabalhos de Anna Bella Geiger a potência de um caso da versão do Candido
pensamento crítico aos processos de colonização Mendes, sendo possível supor
e suas atualizações. Faz lembrar aquilo que se que a peça em tecido foi criada
narra e se silencia nos livros e, nas palavras de posteriormente. Informações
Norma Telles, constrói os espaços considerados que ainda precisam de outras
importantes na história. verificações e pesquisas.
418
imagem 120 Nesse sentido, é interessante mencionar que
Anna Bella Geiger no mesmo ano da instalação O pão nosso de
O pão nosso de cada dia cada dia, na Candido Mendes, Judy Chicago
Candido Mendes conclui The dinner party (1979), exibida pela
1975 primeira vez no Museu de Arte Moderna de
fotografia de Ana Vitória Musse São Francisco. Trabalho cujos processos de
construção envolveram mais de 400 pessoas,
marcados pela liderança de Chicago, bastante
criticada à época. São postos 39 lugares em uma
mesa triangular, na qual há cálices e talheres
com um ar kitsch e suntuoso, passadeiras
bordadas e pratos em forma de vulva. Em
cada lugar lê-se nome dos convidados para o
419
jantar entre os quais estão figuras como Mary
Wollstonecraft, Virginia Woolf e Artemisia
Gentileschi (BARROS, 2016).
imagem 121
The dinner party
1979
420
aquilo que vemos é construído historicamente.
As manchas são resultado de manipulações em
fotos p&b, realizadas pela NASA, conseguidas
pela artista no Consulado estadunidense. Ela
pede para que Davi, seu filho, no laboratório
fotográfico que tinham em casa, transforme
o negativo em positivo, porque se interessava
pelos espaços entre as nuvens, resultando nas
manchas utilizadas em uma série de trabalhos,
entre os quais está Mesa, friso e vídeo macios
(GEIGER, 2022d).
421
and the moving image (‘Lugar-vendo’: arquite-
tura e imagem em movimento) diz que o espaço
do cinema “move” uma cartografia. Camadas de
espaço cultural, densidades de histórias híbridas
são abrigadas pela prática espacial da cogni-
ção do filme. Um meio de habitação-viagem, o
cinema desenha a (i)mobilidade das travessias
e transições culturais. Seu espaço narrativizado
oferece tomadas de rastreamento para culturas
itinerantes e veículos para atividades psicoespa-
ciais (BRUNO, 1997, p. 23).
422
em trânsito e um complexo passeio de
identificações, o local de visão que o filme
estabelece e a partir do qual se estabelece o
próprio filme é um meio real, constitui-se como
uma habitação e um passeio pela narrativa e
geografia de alguém (BRUNO, 1997, p. 23).
423
estabelecem um “transporte para uma realidade
concreta de profundidade e volumetria” (BARJA,
2007, p. 58), considerando que a palavra fala
sobre suavidade, e não apenas remete ao tato,
mas também à audição, à visão, ao paladar
(Dicionário Oxford Online).
424
imagens 124, 125 e 126
Anna Bella Geiger
frame do vídeo
Local da ação
1979
425
426
Referências bibliográficas
427
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441
442
Finalizações – sobre o riso ou histórias,
histórias, histórias, histórias…
443
até achava essa cena engraçada. Porém, mais tarde,
o Homem voltava de costas e, de um golpe forte,
com sua espada ereta, sem nem mesmo olhar o que
fazia, cortava a cabeça dessa infeliz. Fim do mito
(CIXOUS, 2022, p. 27).
444
Referências bibliográficas
imagem 4
Anna Bella Geiger em frente ao
Museu Frans Hals
2022
fotografia de João Mascaro
445
446
447
448
449
imagens 5, 6 e 7
Anna Bella Geiger
Rio de Janeiro
2022
fotografias de João Mascaro
imagem 8
Anna Bella Geiger com a obra
Circa
Istambul
2018
fotografia de Gabriela
De Laurentiis
450
ERRATA Agradecimentos
451
A Renata Gomes, Eliane Rocha e Rodrigo
Cardoso, pelas revisões dos relatórios e das
versões parciais da tese. A José Teixeira, o
comprometimento na revisão da bibliografia e
do texto final. Zeca, muito obrigada!
452
potencializaram as forças para a conclusão deste
trabalho. A Fernando, o entusiasmo contagiante.
A Thais, a paixão vívida.
453
454
Lista de Imagens
Introdução
p. 12
imagem 1
Anna Bella Geiger em sua casa/ateliê
2018
foto de Gabriela De Laurentiis
Capítulo 01
p. 25
imagem 1
Anna Bella Geiger conversando com o público
na exposição Circumambulatio
MAM-RJ
1972
p. 26
imagens 2 e 3
vistas da exposição Aqui é o centro
MAM-RJ
2018
fotos de Paulo Jabur
p. 27
imagem 4
vista da exposição Circumambulatio
MAM-RJ
1972
foto de Thomas Michel
p. 30
imagem 5
vista da exposição Circumambulatio
MAM-RJ
1972
p. 31
imagem 6
registro das ações na lagoa de Marapendi
utilizado no audiovisual apresentado em
Circumambulatio
1972
fotografia de Thomas Lewinsohn
p. 34
imagem 7
cartaz I Exposição Nacional de Arte Abstrata
455
p. 39
imagem 8
vista da exposição Circumambulatio
MAM-RJ
1972
fotografia de Thomas Michel
p. 41-42
imagem 9
Anna Bella Geiger conversando com o público na
exposição Circumambulatio
MAM-RJ
1972
p. 40
imagem 10
registros das ações realizadas durante os cursos de
Geiger no MAM-RJ
1970/1971
p. 44
imagens 11 e 12
registros das ações realizadas durante os cursos de Geiger
no MAM-RJ
1970/1971
p. 45
imagem 13
matéria do Jornal O Globo
20 jan. 1970
p. 46
imagem 14
registros das ações realizadas durante os cursos de Geiger
no MAM-RJ
1970/1971
p. 47
imagem 15
ativação da obra Ovos de Lygia Pape sendo rompidos
frames do vídeo Apocalipopótese – Guerra e Paz (1968)
feito por Raymundo Amado
p. 49
imagem 16
ativação da obra Ovos de Lygia Pape sendo rompidos
frames do vídeo Apocalipopótese – Guerra e Paz (1968)
feito por Raymundo Amado
456
p. 51
imagem 17
capa do Jornal Correio da Manhã
30 mar. 1968
a edição traz registros das manifestações ocorridas
no dia anterior, que lembrava o assassinato do
estudante secundarista Edson Luís de Lima Souto
p. 52
imagem 18
matéria do Jornal O Globo
2 ago. 1967
p. 54
imagem 19
Correio da Manhã
30 mar. 1968
p. 55
imagens 20 e 21
ação do grupo Poema/Processo, durante o Arte no
Aterro
jul. 1968
fotografias de Roberto Moriconi
p. 57
imagens 22, 23 e 24
Ronaldo Duarte e seu Dog's act
frames do vídeo Apocalipopótese – Guerra e paz
(1968), feito por Raymundo Amado
p. 59
imagens 25 e 26
ativação da obra Ovos de Lygia Pape sendo
rompidos
frames do vídeo Apocalipopótese – Guerra e paz
(1968), feito por Raymundo Amado
p. 64
imagem 27
matéria do Jornal Correio da Manhã
15 set. 1967
p. 67
imagem 28
Boletim n. 13
1955
fotografia que acompanha notícias sobre a
457
construção do MAM-RJ
p. 68
imagem 29
fotografia que acompanha notícias sobre a
construção do MAM-RJ.
Boletim n. 14, 1956
p. 69
imagem 30
fotografia que acompanha notícias sobre a
construção do MAM-RJ
Boletim n. 15, 1957
p. 71
imagem 31
registro das ações de Marapendi, exibida em
Circumambulatio
fotografia de Thomas Lewinsohn
p. 71
imagem 32
Matéria no Jornal do Brasil sobre programação
do MAM-RJ, incluindo Atividade/Criatividade e
Domingos de criação. 11 jan. 1971.
p. 72
imagem 33
vista da montagem de Circumambulatio, no
SESC-Paulista, como parte da exposição Brasil
Nativo/Brasil Alienígena
2019/2020
fotografia de Gean Carlo Seno
p. 74
imagem 34
registro das ações de Marapendi, exibida em
Circumambulatio
fotografia de Thomas Lewinsohn
p. 75
imagem 35
registro das ações de Marapendi, exibida em
Circumambulatio
fotografia de Thomas Lewinsohn
p. 76
imagem 36
458
Ana Mendieta
Silueta (trabalhos no México)
1973-1977
p. 77
imagem 37
folder Arquivo Circumambulatio publicado pelo
MAM-RJ
2012
p. 78
imagem 38
Mary Beth Edelson
Goddess head
1975
p. 79
imagem 39
Anna Bella Geiger exposição Aqui é o centro
MAM-RJ
2018
fotografia de Paulo Jabur
p. 79
imagem 40
vista da exposição Aqui é o centro
MAM-RJ
2018
p. 84
imagem 41
Robert Smithson
Spiral jetty
1970
fotografia de Gianfranco Gorgoni
p. 85
imagem 42
Anna Bella Geiger, extraído do audiovisual de
Circumambulatio
1972
fotografia de Thomas Lewinsohn
p. 87
imagem 43
Nancy Holt
(Al Poynter, Dannis Siroky, Gregg Tillman e Rick
Westby)
459
Enclosure: Rock rings
1977-1978
fotografia de Matthew Anderson
p. 88
imagens 44 e 45
Nancy Holt
(Al Poynter, Dannis Siroky, Gregg Tillman e Rick
Westby)
Enclosure: Rock rings
1977-1978
fotografia de Matthew Anderson
p. 91
imagem 46
Vito Acconci
frame do vídeo Centers
1971
p. 92
imagens 47, 48 e 49
Anna Bella Geiger
frames do vídeo Centerminal
1974
p. 93
imagem 50
registro das ações de Marapendi exibida em
Circumambulatio
fotografia de Thomas Lewinsohn
p. 95
imagem 51
registro das ações de Marapendi exibida em
Circumambulatio
fotografia de Thomas Lewinsohn
p. 96-99
imagens 52, 53, 54 e 55
Anna Bella Geiger
Circa
2019
Bienal de Istambul
fotografias de Gabriela De Laurentiis
p. 99
imagem 56
páginas da matéria “O pão nosso de cada dia” (2018-
460
2019), de Bernardo Mosqueira, publicada junto com
ensaio de Renato Mangolin da montagem de Circa
Solar dos Abacaxis
2018
p. 100
imagens 57, 58, 59 e 60
Anna Bella Geiger
Circa
2019
Bienal de Istambul
Fotografia de Gabriela De Laurentiis
p. 102
imagens 61, 62 e 63
Anna Bella Geiger
Circa
2019
Bienal de Istambul
Fotografia de Gabriela De Laurentiis
p. 105
imagem 64
apropriações de A confusão das línguas (ca. 1865-1868)
de Paul Gustave Doré
frame do audiovisual de Circumambulatio
p. 106
imagem 65
apropriações de A confusão das línguas (ca. 1865-1868),
de Paul Gustave Doré
folder Arquivo Circumambulatio publicado pelo MAM-RJ
2012
p. 108
imagem 66
frame do audiovisual de Circumambulatio
p. 111
imagem 67
vistas da exposição Aqui é o Centro
2018
MAM-RJ
fotografia de Paulo Jabur
p. 113
imagem 68
capa do catálogo de Circumambulatio produzido pelo
461
MAC-USP
1973
p. 116-117
imagem 69
páginas do catálogo de Circumambulatio produzido pelo
MAC-USP
1973
p. 118
imagem 70
Apropriação de A Torre de Babel (c.1563) de Pieter Bruegel
frame audiovisual Circumambulatio
p. 119
imagem 71
Anna Bella Geiger e Ana Hortides montagem de Circa
2019
Bienal de Istambul
fotografia de Gabriela De Laurentiis
p. 120
imagem 72
Anna Bella Geiger montagem de Circa
2019
Bienal de Istambul
fotografia de Gabriela De Laurentiis
publicado no catálogo da exposição Anna Bella Geiger:
Brasil Nativo/Brasil Alienígena
p. 121
imagem 73
Anna Bella Geiger montagem de Circa
2019
Bienal de Istambul
fotografia de Gabriela De Laurentiis
p. 123
imagem 74
Texto de Anna Bella Geiger para revista Paper
Búzios
2016
p. 124
imagem 75
página do catálogo de Circumambulatio produzido pelo
MAC-USP
1973
462
p. 130
imagens 76, 77 e 78
Lygia Clark
A casa é corpo
MAM-RJ
1968
p. 136
imagem 79
Anna Bella Geiger
As vísceras mergulham no profundo azul do mar
1968
p. 139
imagem 80
Anna Bella Geiger
Masculino- feminino
1968
p. 140
imagem 81
Maria Martins
O Impossível
Gravura pertencente ao catálogo numerado da exposição
realizada na Valentine Gallery
Nova York
1946
p. 141
imagem 82
trabalhos Viscerais
vista da exposição Anna Bella Geiger. Brazilian Art Pioneer
Museu Frans Hals, Haarlem
2022
fotografia de João Mascaro
p. 142
imagem 83
Anna Bella Geiger
Fígados conversando
1968
p. 144
imagem 84
Anna Bella Geiger
Coração e outras coisas
1966
463
p. 146
imagem 85
Anna Bella Geiger
Sem título
segunda metade da década de 1960
p. 147
imagem 86
Anna Maria Maiolino
Glu, glu, glu
1966
p. 149
imagem 87
Artur Barrio
Situação...Orhhh...ou...5.000...T.E. ...em N. Y. ... City…
Instalação no MAM-RJ
1969
fotografia de César Carneiro
p. 149
imagem 88
cartaz do Salão da Bússola
1969
p. 151
imagem 89
Anna Bella Geiger
Carne na tábua
1968
p. 152
imagem 90
vista da exposição AI-5 50 ANOS – Ainda não terminou de
acabar
Cur. de Paulo Miyada
Instituto Tomie Ohtake
2018
fotografia de Ricardo Miyada
p. 154
imagem 91
exposição Circumambulatio
MAM-RJ
1972
fotografia de David Usurpator
464
Capítulo 02
p. 174
imagem 1
Anna Bella Geiger
Série Passagens (fotografia)
1975
p. 176
imagens 2 e 3
folder (frente e verso) da exposição Situações limites
MAM – RJ
1975
p. 178
imagem 4
documento Setor Integração Cultural
MAM-RJ
1972
p. 182
imagem 5
capa da revista Malasartes n.º 3
1976
p. 187
imagem 6
Anna Bella Geiger
série Situações-limites
1974
vista da exposição AI-5 50 ANOS – Ainda não terminou de
acabar
Instituto Tomie Ohtake
2018
fotografia de Ricardo Miyada
p. 188
imagem 7
Lygia Pape
Poema Xilogravura
1957
p. 193
imagem 8
Anna Bella Geiger
Situações limite 3 (série)
1974
465
p. 199
imagem 9
Lygia Clark
Camihando
1963
p. 202-203
imagem 10
Anna Bella Geiger
Nearer
1975
p. 204
imagem 11
Anna Bella Geiger
Lixo no aterro
MAM-RJ
1973
p. 206
imagens 12 e 13
Anna Bella Geiger
Indagação sobre a natureza, significado e função da obra de
arte (série)
1973
p.207
imagens 12 e 13
Anna Bella Geiger
Indagação sobre a natureza, significado e função da obra de
arte (série)
1973
p. 208
imagem 14
Anna Bella Geiger
Situações-limites (passagens)
1975
fotografia de Paula Gerson
p. 210
imagem 15
Anna Bella Geiger
série Situações-limites
1974
Instituto Tomie Ohtake
2018
fotografia de Ricardo Miyada
466
p. 218
imagens 16, 17, 18 e 19
Anna Bella Geiger
frames de Declaração em retrato I
1974
p. 221
imagem 20
capa do catálogo da exposição Video Art
org.e Suzanna Delehanty
Instituto de Arte Contemporânea da Pensilvânia
1975
p. 223
imagem 21
Anna Bella Geiger
Indagação sobre a natureza, significado e função da obra de
arte
1973
p. 224
imagem 22
Anna Bella Geiger
Nearer (montagem)
1975
p. 225
imagem 23
Anna Bella Geiger
Nearer (detalhe)
1975
p. 229
imagem 24
Anna Bella Geiger
Brasil Nativo/Brasil alienígena
1977
p. 233
imagem 25
Anna Bella Geiger
Histórias do Brasil – Little boys and girls
1975
p. 234
imagem 26
Anna Bella Geiger
Histórias do Brasil – Little boys and girls (detalhe)
467
1975
p. 236
imagem 27
Jaider Esbell
Cartas ao velho mundo (página do livro)
2018-2019
p. 238
imagens 28, 29 e 30
Anna Bella Geiger
Frames de Passagens I
1974
vídeo P&B, fita magnética, 9′
filmado por Jom Tob Azulay
p. 239
imagens 31, 32 e 33
Peter Greenway
frames de Intervalos
1974
p. 240
imagem 34
página do catálogo da exposição Video Art
org. de Suzanna Delehanty
Instituto de Arte Contemporânea da Pensilvânia
1975
p. 241
imagens 35 e 36
Valie Export
Frames de Vendo e ouvindo espaço
1974
p. 241
imagem 37
Valie Export
Alongamento
série Configurações Corporais
1972
p. 245
imagem 38
capa do catálogo da exposição Expoprojeção
org. de Aracy Amaral
1973
468
p. 246
imagem 39
página do catálogo da exposição Expoprojeção
org. de Aracy Amaral
sede GRIFE
1973
p. 247
imagem 40
matéria de Roberto Pontual
Jornal do Brasil, Caderno B
Rio de Janeiro
7 jan. 1975
p. 252
imagem 41
Anna Bella Geiger
Situações limite 2 (série)
1974
p. 253
imagem 42
página do verbete Espaço, escrito por Bataille na Revista
Documents
Paris
1930
p. 256
imagem 43
Anna Bella Geiger
Situações limite 4 (série)
1974
p. 258
imagem 44
capa catálogo JAC
MAC-USP
1974
org. de Walter Zanini
p. 259
imagem 45
página do catálogo JAC
MAC-USP
1974
org. de Walter Zanini
469
p. 264
imagem 46
Cindy Sherman
Sem título (film still) #17
1978
p. 264
imagem 47
Cindy Sherman
Sem título (film still) #21
1978
p. 266
imagens 48, 49, 50 e 51
Anna Bella Geiger
frames de Passagens II
1974
vídeo P&B, fita magnética, 5′
filmado por Jom Tob Azulay
p. 267
imagem 52
Nancy Holt e Richard Serra
frame de Boomerang
1974
p. 268
imagem 53
Anna Bella Geiger
frames de Passagens I
1974
filmado por Jom Tob Azulay
p. 270
imagem 54
Anna Bella Geiger
série Passagens (fotografia)
1975
p. 272
imagens 55, 56, 57, 58 e 59
Lygia Pape
frames do material exibido em Eat me: A gula ou a luxúria?
MAM-RJ
1976
p. 274
imagem 60
470
capa do folder da exposição Eat me: A gula ou a luxúria?
MAM-RJ
1976
p. 275
imagem 61
registro da exposição Eat me: A gula ou a luxúria?
MAM-RJ
1976
p. 276
imagem 62
Lygia Pape
frames de Eat me: A gula ou a luxúria?
1975
p. 277
imagem 63
matéria de Francisco Bittencourt
Tribuna da Imprensa
Rio de Janeiro
21/22 ago. 1976
p. 280 e 281
imagem 64, 65 e 66
capa e páginas, respectivamente, do livro Mulher, objeto de
cama e mesa
Heloneida Studart
Edição 1980
p. 286
imagens 67, 68, 69 e 70
páginas do catálogo de Eat me: A gula ou a luxúria?
MAM-RJ
1976
p. 287
imagem 71
Anna Bella Geiger
obras sob o título Burocracia
vista da exposição Anna Bella & Lygia & Mira & Wanda
MAC-Niterói
2018
p. 288
imagem 72
Sobre a arte (caderno)
1976
471
p. 288
imagem 73
propaganda do creme Lugolina
Jornal das Moças, n. 1263
Rio de Janeiro
1939
p. 289
imagem 74
propaganda do creme Lugolina: Jornal das Moças
Rio de Janeiro
31 out. 1939
p. 290
imagens 75, 76 e 77
Letícia Parente
frames de Preparação I
1976
p. 291
imagem 78
matéria O Fluminense
16 jun. 1976
p. 291
imagens 79 e 80
catálogo da exposição Medidas
MAM-RJ
1976
p. 292
imagem 81
Anna Bella Geiger
obras sob o título Burocracia
vista da exposição Anna Bella & Lygia & Mira & Wanda
cur. de Pablo Leon de La Barra & Raphael Fonseca
MAC-Niterói
2018
fotografia de João Mascaro
p. 294
imagem 82
Anna Bella Geiger
obras sob o título Burocracia
vista da exposição Anna Bella & Lygia & Mira & Wanda
cur. de Pablo Leon de La Barra & Raphael Fonseca
MAC-Niterói
2018
472
Capítulo 03
p. 313
imagem 1
registro da fotografia de Mesa, friso e vídeo macios na
Bienal de São Paulo, que esteve colocada na entrada da
versão de Anna Bella Geiger. Brasil Nativo/Brasil Alienígena
2022
Museu Frans Hals
Haarlem, Holanda
p. 314
imagem 2
página do catálogo da XVI Bienal de São Paulo com Mesa,
friso e vídeo macios
p. 314
imagem 3
desenho para Mesa, friso e vídeo macios constante no acervo
do MAC-USP
p. 314
imagem 4
capa do catálogo da XVI Bienal de São Paulo
p. 316
imagem 5
matéria do Jornal A Tribuna
22 jul. 1973
p. 316
imagens 6 e 7
páginas do projeto de Anna Bella Geiger para Bolsa Vitae de
Artes
p. 319
imagem 8
capa do catálogo da exposição AI-5 50 ANOS – Ainda não
terminou de acabar
cur. de P. Miyada
2019
p. 319
imagem 9
dossiê Non a la Biennale de São Paulo
1969
p. 319
imagem 10
473
charge por Biganti no Jornal O Estado de S. Paulo
13 nov. 1969
p. 319
imagem 11
charge de Mino no Jornal A Tribuna
7 out. 1969
p. 320
imagem 12
Cybèle Varela
O presente
1967 – 2018
técnica mista
fotografia de Ricardo Miyada
p. 322
imagem 13
cartaz da 1ª Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo
Autoria: Antônio Maluf
1951
p. 324
imagem 14
fachada da construção onde foi realizada a 1ª Bienal
1951
p. 324
imagem 15
sede da 2ª Bienal, o Palácio das Nações (atual Pavilhão Padre
Manoel da Nóbrega, hoje abriga o Museu Afro Brasil)
p. 324
imagem 16
abertura da 4ª Bienal com as presenças de Jânio Quadros,
Juscelino Kubitschek e Yolanda Penteado
1957
p. 324
imagem 17
Francisco Matarazzo Sobrinho e Juscelino Kubitschek visitam
Guernica de Picasso, durante a 2ª Bienal de São Paulo
1953-1954
fotografia de autoria não identificada
p. 324
imagem 18
montagem da Sala Especial Maria Martins na 1ª Bienal
474
fotografia de Peter Scheier
1951
p. 325
imagem 19
público aguarda a abertura da 2ª Bienal
1953-954
p. 327
imagem 20
notícia Jornal do Brasil
14 out. 1981
p. 328
imagem 21
cartaz 16ª Bienal de São Paulo
Cláudio Moschella
p. 330
imagens 22, 23 e 24
Anna Bella Geiger com Mesa, friso e vídeo macios
Museu Frans Hals
Haarlem
2022
fotografia de João Mascaro
p. 333
imagem 25
Anna Bella Geiger
Mesa, friso e vídeo macios
exposição Anna Bella Geiger. Brasil nativo/Brasil alienígena
SESC-Paulista
2019-2020
fotografias de Alexandre Nunis
p. 334
imagem 26
Anna Bella Geiger
Mesa, friso e vídeo macios
SESC-Paulista
2019-2020
fotografias de Gean Carlo Seno
p. 335
imagem 27
Anna Bella Geiger
Camouflage
1980
475
p. 337
imagem 28
Anna Bella Geiger
Camouflage
1980
vista da exposição Anna Bella Geiger. Native
Brazil / alien Brazil
Museu Frans Hals, Haarlem
2022
fotografia de João Mascaro
p. 338
imagem 29
Anna Bella Geiger
Diário de um artista brasileiro
montagem com Barnett Newman
1975
p. 339
imagem 30
Claes Oldenburg e Patty Muncha, com a obra
Floor burguer (1962)
Nova York
1964
fotografia de Ugo Mulas Heirs
p. 339
imagem 31
Anna Bella Geiger
Diário de um artista brasileiro
montagem com Claes Oldenburg
1975
p. 339
imagem 32
Anna Bella Geiger
Diário de um artista brasileiro
montagem com Marcel Duchamp
1975
p. 340
imagem 33
Anna Bella Geiger
Diário de um artista brasileiro
montagem com Roy Lichtenstein
1975
476
p. 342
imagem 34
Anna Bella Geiger
Diário de um artista brasileiro.
montagem com Andy Warhol
1975
p. 343
imagem 35
Henry Matisse no Hotel Régina
Nice
1952
fotografia de Lydia Delectorskaya
p. 343
imagem 36
Anna Bella Geiger
Diário de um artista brasileiro
montagem com Henry Matisse
1975
p. 344
imagem 37
Anna Bella Geiger
Diário de um artista brasileiro
1975
p. 344
imagem 38
vista da exposição Anna Bella Geiger. Native
Brazil/Alien Brazil
Museu Frans Hals
2022
fotografia de João Mascaro
p. 345
imagem 39
vista da exposição Anna Bella Geiger. Brasil
Nativo/Brasil Alienígena
MASP
2019-2020
p. 346
imagem 40
Anna Bella Geiger
Mesa, friso e vídeo macios
SESC-Paulista
fotografia de Alexandre Nunis
477
p. 347
imagem 41
Anna Bella Geiger trabalhando na cozinha de
sua casa/ateliê
Rio de Janeiro
2022
fotografia de Gabriela De Laurentiis
p. 347
imagens 42 e 43
Anna Bella Geiger trabalhando na cozinha de
sua casa/ateliê
Rio de Janeiro
2022
fotografia de João Mascaro
p. 348
imagem 44
Robin Weltsch, Vick Hodgetts e Susan Frazier
Nurturant Kitchen
Projeto Coletivo Womanhouse
1975
p. 348
imagem 45
capa do catálogo da exposição Womanhouse
que mostra Judy Chicago e Miriam Schapiro em
frente ao espaço de exibição
fotografia de Donald Woodman
p. 349
imagem 46
Martha Rosler
Semiotics of the Kitchen
1975
p. 350
imagem 47
Carrie Mae Weems
série The kitchen table
1990
p. 351
imagem 48
Carrie Mae Weems
série The kitchen table
1990
478
p. 353
imagem 49
Anna Bella Geiger
Mesa, friso e vídeo macios
Museu Frans Hals, Haarlem
2022
fotografia de João Mascaro
p. 354
imagem 50
Anna Bella Geiger na cozinha de sua casa/ateliê
Rio de Janeiro
2022
fotografia de Gabriela De Laurentiis
p. 355
imagem 51
Anna Bella e Pedro Geiger trabalhando na
cozinha de sua casa/ateliê
Rio de Janeiro
2022
fotografia de João Mascaro
p. 355
imagem 52
Anna Bella e Pedro Geiger na cozinha de sua
casa/ateliê
Rio de Janeiro
2022
fotografia de Gabriela De Laurentiis
p. 357
imagem 53
Anna Bella Geiger
O pão nosso de cada dia
Centro Cultural Candido Mendes
1979
fotografias de Ana Vitória Musse
as imagens compõem o catálogo produzido por
ocasião da Bienal de Veneza
1980
p. 358
imagens 54 e 55
Anna Bella Geiger
O pão nosso de cada dia
Centro Cultural Candido Mendes
1979
479
fotografias de Ana Vitória Musse
as imagens compõem o catálogo produzido por
ocasião da Bienal de Veneza
1980
p. 359
imagens 56 e 57
Anna Bella Geiger
O Novo Atlas I
1977
p. 360
imagem 58
matéria do Jornal O Globo
19 out. 1979
p. 362
imagem 59
matéria do Jornal do Brasil
27 out. 1979
p. 363
imagem 60
Anna Bella Geiger
O pão nosso de cada dia
1978
p. 366 e 367
imagens 61, 62, 63, 64 e 65
frames do vídeo Mapas elementares III
1976
p. 370 e 371
imagens 66 e 67
frames do vídeo Mapas elementares III
1976
p. 372
imagem 68
frame do vídeo Mapas elementares III
1976
p. 375
imagem 69
Anna Bella Geiger segurando edição da revista
Marie Claire, na qual a matéria “Além de Tarsila
e Anita: conheça as mulheres da Semana de Arte
Moderna de 1922”, traz publicado um registro
480
de O pão nosso de cada dia na mesma página
em que está Fayga Ostrower
fevereiro de 2022
Rio de Janeiro
fotografia de João Mascaro
p. 377
imagem 70
matéria do Jornal do Brasil
27 mai. 1980
p. 378 e 329
imagens 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77 e 78
frames do vídeo Declaração em retrato II
1976
p. 381
imagem 79
Manifesto Antropófago
1928
p. 382
imagem 80
Tarsila do Amaral
Abaporu
1928
p. 383
imagens 81 e 82
Anna Bella Geiger
Nearer
1974
p. 384
imagem 83
Anna Bella Geiger
página de caderninho com carimbo de
mandacaru
p. 384
imagem 84
Anna Bella Geiger
Sobre a arte
1975
p. 385
imagem 85
Anna Bella Geiger
481
Sobre a arte
1975
p. 388
imagem 86
Tarsila do Amaral
A negra
1923
p. 389
imagem 87
Tarsila do Amaral
Autorretrato
1923
p. 391
imagem 88
frame do vídeo Mapas elementares III
1976
p. 392
imagens 89 e 90
Anna Bella Geiger
Fôrmas do Brasil e América Latina (título
constante no arquivo enviado pela artista)
1974-1975
p. 395
imagem 91
capa do álbum Secos e Molhados
1973
fotografia de Antônio Carlos Rodrigues
p. 397
imagem 92
página do Jornal O Globo (Cultura, p. 24) na
qual está publicado o artigo “América Latina
em debate, a partir de hoje, em São Paulo”, de
F. Morais, bem como a notícia do show de Ney
Matogrosso, na coluna de Nelson Motta
Rio de Janeiro
3 nov. 1978
p. 398
imagem 93
página do Jornal Folha de São Paulo sobre o Ato
contra a carestia
28 ago. 1978
482
p. 399
imagem 94
Anna Maria Maiolino
Arroz & feijão (1979)
vídeo no monitor 1/3 + 2/3
vista da exposição Anna Maria Maiolino -
psssiiiuuu...
Instituto Tomie Ohtake
2022
fotografia de Gabriela De Laurentiis
p. 400
imagem 95
Anna Maria Maiolino
Monumento à fome
1978
p. 401
imagem 96
Victor Grippo, Jorge Gamarra e Atílio Rossi
Construcción de un horno popular para hacer
pan
Buenos Aires
1972
p. 402 e 403
imagem 97 e 98
CADA
Para no morir de hambre en el arte
Santiago
1979
p. 404
imagem 99 e 100
CADA
Inversión de escena
Santiago
1979
p. 405
imagem 101
Anna Bella Geiger
O pão nosso de cada dia
1978
as imagens compõem o catálogo produzido por
ocasião da Bienal de Veneza
1980
483
p. 406
imagem 102
Anna Bella Geiger na 1ª Bienal do Mercosul
Porto Alegre
1997
fotografia de Vera Chaves Barcellos
p. 405
imagens 103, 104 e 105
Anna Bella Geiger segurando um folder com
imagens de O pão nosso de cada dia, ao lado do
vídeo Declaração em retrato I, na abertura da
exposição Mulheres Radicais
Pinacoteca de São Paulo
2018
fotografia de Gabriela De Laurentiis
p. 408
imagens 106, 107 e 108
Anna Bella Geiger com a projeção de Local da
ação (1979)
Museu Frans Hals
2022
fotografias de João Mascaro
p. 410
imagem 109
Anna Bella Geiger
frame do vídeo Local da ação
1979
vista da exposição Anna Bella Geiger. Native
Brazil / Alien Brazil
Museu Frans Hals
2022
fotografia de João Mascaro
p. 411
imagem 110
Anna Bella Geiger
Local da ação
1979
p. 412
imagem 111
Anna Bella Geiger
frame do vídeo Local da ação
1979
484
p. 413
imagens 112 e 113
Anna Bella Geiger
O novo atlas 2
1977
p. 414
imagem 114
contracapa do catálogo produzido para Bienal de
Veneza
p. 417
imagens 115 e 116
Anna Bella Geiger
História do Brasil
1975
p. 418
imagens 117 e 118
Anna Bella Geiger
Admissão
1975
p. 419
imagem 119
Anna Bella Geiger.
friso tal qual da instalação O pão nosso de cada
dia
Candido Mendes
1975
p. 419
imagem 120
Anna Bella Geiger.
O pão nosso de cada dia
Candido Mendes
1975
fotografia de Ana Vitória Musse
p. 420
imagem 121
Judy Chicago
The dinner party
1979
p. 421
imagem 122
Anna Bella Geiger
485
Mesa, friso e vídeo macios.
Museu Frans Hals
2022
fotografia de João Mascaro
p. 422
imagem 123
Anna Bella Geiger
Mesa, friso e vídeo macios
Museu Frans Hals
2022
fotografia de João Mascaro
p. 425
imagens 124, 125 e 126
Anna Bella Geiger
frame do vídeo Local da ação
1979
p. 428
imagem 127
Anna Bella Geiger com a projeção de Local da
ação (1979)
Museu Frans Hals
2022
fotografia de João Mascaro
Finalizações
p. 442
imagens 1, 2 e 3
Anna Bella Geiger com globo
Rio de Janeiro
2022
fotografias de João Mascaro
p.443 e 444
imagens 2 e 3
Anna Bella Geiger com globo
Rio de Janeiro
2022
fotografias de João Mascaro
p. 446-447
imagem 4
Anna Bella Geiger em frente ao Museu Frans
Hals
2022
fotografia de João Mascaro
486
p. 448-449
imagens 5, 6 e 7
Anna Bella Geiger
Rio de Janeiro
2022
fotografias de João Mascaro
p.450
imagem 8
Anna Bella Geiger com a obra Circa
Istambul
2018
fotografia de Gabriela De Laurentiis
Capa
fotomontagem a partir de registros de vídeos de
Anna Bella Geiger
Contracapa
Anna Bella Geiger
Museu Frans Hals
2022
fotografia de João Mascaro
487
488
489
490