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Anais 17º Seminário da

História da Cidade e do
Urbanismo • 1822-2022:
futuros, demolição &
progresso
Anais 17º Seminário da História da
Cidade e do Urbanismo • 1822-
2022: futuros, demolição &
progresso. Anais...Belo
Horizonte(MG) Escola de
Arquitetura da UFMG, 2022
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

AN532 Anais 17º Seminário da História da Cidade e do Urbanismo • 1822-2022:


futuros, demolição & progresso. Anais...Belo Horizonte(MG) Escola de
Arquitetura da UFMG, 2022

Disponível em <www.even3.com.br/anais/shcu2022>

ISBN: 978-85-5722-941-9

1. Arquitetura

Escola de Arquitetura da CDD - 370


UFMG

Ficha catalográfica elaborada por Even3 – Sistema de Gestão de Eventos


CORPO EDITORAL

COMISSÃO ORGANIZADORA

RITA VELLOSO (UFMG) - COORDENAÇÃO GERAL


THIAGO CANETTIERI (UFMG) - COORDENAÇÃO GERAL
ELISÂNGELA DE ALMEIDA CHIQUITO (UFMG) - COORDENAÇÃO
CLARISSA CAMPOS (UFMG)
LAURA CASTRO (UFMG)
LEONARDO IZOTON BRAGA (UFMG)
PHILIPPE URVOY (UFMG)
ARLETE SOARES DE OLIVEIRA
VALÉRIA TOMÉ FRANÇA (UFMG)

COMISSÃO CIENTÍFICA
ELISÂNGELA DE ALMEIDA CHIQUITO (UFMG) - COORDENADORA
THIAGO CANETTIERI (UFMG) - COORDENADOR
ANA CLAUDIA SCAGLIONE VEIGA DE CASTRO (FAU-USP)
CELINA BORGES LEMOS (UFMG)
CLARISSA CORDEIRO DE CAMPOS (UFSJ)
FLÁVIA BRITO (FAU-USP)
GABRIEL LEOPOLDINO PAULO DE MEDEIROS (UFERSA)
GEORGE ALEXANDRE FERREIRA DANTAS (UFRN)
HELOISA SOARES DE MOURA COSTA (UFMG)
JEFERSON CRISTIANO TAVARES (IAU-USP)
JOSÉ CARLOS HUAPAYA ESPINOZA (UFBA)
JOSIANNE CERASOLI (UNICAMP)
MARIANA BORGHOSIAN (ESCOLA DA CIDADE)
MATEUS ROSADA (UFMG)
NILCE ARAVECCHIA (FAU-USP)
RICARDO TREVISAN (UNB)
RITA VELLOSO (UFMG)
RODRIGO SANTOS DE FARIA (UNB)
VANESSA BORGES BRASILEIRO (UFMG)
A FUNDAÇÃO DO NÚCLEO URBANO INICIAL DE CATAGUASES
(MG)
Influências, normativos urbanísticos e ideários
FOUNDATION OF THE INITIAL URBAN NUCLEUS OF CATAGUASES
(Minas Gerais - Brazil)
Influences, Urban Regulations and Principles

Historiografia, ideários e regimes de historicidade

ALONSO, Paulo Henrique


Arquiteto e urbanista; doutorando em Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável,
Universidade Federal de Minas Gerais
paulohalonso@hotmail.com
RESUMO

Algumas cidades brasileiras foram fundadas no contexto da colonização


portuguesa da época de Marquês de Pombal. Criavam-se povoados e vilas,
com traçado urbano uniforme e regular, como estratégias de colonização,
dominação e controle do território. Ideários e normativos regiam a fundação
desses novos núcleos. Este artigo tem por objetivo apresentar como ocorreu
a fundação de Cataguases, em Minas Gerais, neste contexto. A criação do
povoado inicial da cidade insere-se nas políticas de exploração e ocupação da
Zona da Mata mineira, com dominação e anulação da cultura dos povos
indígenas, a partir do final do século XVIII. Para a fundação do núcleo inicial
foram utilizados como instrumentos o Diretório dos Índios, ideários e outros
normativos urbanísticos vigentes à época e anteriormente. Verificou-se que
localização, escolha do sítio e traçado urbano seguiram diretrizes do Diretório
dos Índios, mas tiveram influências do Regimento Geral de Tomé de Souza,
Lei das Índias, Constituição Primeira do Arcebispado da Bahia, além de
princípios de traçado urbano uniforme e regular. Verifica-se ainda que esses
normativos e ideários foram se sobrepondo ao longo do tempo estabelecendo
uma interlocução de regras.

PALAVRAS CHAVE Povoados; Colonização; Traçado Urbano; Cataguases.

ABSTRACT

Some Brazilian cities were founded in the context of the Portuguese


colonization at the time of the Pombal Marquis. Towns and villages were
created, with a uniform and regular urban layout, as strategies for
colonization, domination and control of the territory. Principles and
regulations governed the foundation of these new population centers. This
article aims to present how the foundation of Cataguases, in the State of
Minas Gerais, took place in this context. The creation of the initial village is
part of the policies of exploration and occupation of the Zona da Mata area in
Minas Gerais, with the domination and annulment of the indigenous peoples’
culture, from the end of the 18th century. For the foundation of the initial
nucleus, the Directory of Indians, principles and other urban regulations in
force at the time or previously were used as instruments. It was verified that
the location, choice of site and urban layout followed guidelines from the
Directory of Indians, but have suffered the influence of the General Regiment
by Tomé de Souza, the Laws of the Indies, the First Constitution of the
Archbishopric of Bahia, in addition to principles of uniform and regular urban
layout. It is also verified that these regulations and principles were
overlapping over time, establishing an interlocution with each other.

KEYWORDS: Villages; Colonization; Urban Layout; Cataguases.

• 2
INTRODUÇÃO
Cataguases surge no início do século XIX, no contexto do declínio da extração de ouro
em Minas Gerais e pela consequente expansão da fronteira a leste da Capitania, por
incentivo da Coroa Portuguesa. A cidade localiza-se no vale do rio Pomba, na
denominada Zona da Mata de Minas Gerais. A região está, aproximadamente, entre o
rio Doce ao norte; o rio Paraíba do Sul ao sul; as fronteiras dos estados do Espírito
Santo e Rio de Janeiro a leste; e a zona mineradora, Mariana, Ouro Preto, São João Del
Rei e Tiradentes, a oeste conforme ilustra a Figura 1 abaixo.

Figura 1 – Localização de Cataguases na Zona da Mata de Minas Gerais Fonte: INSTITUTO BRASILEIRO
DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2016. Elaborado pelo autor.

Nessa região, com densa mata Atlântica, no final do século XVIII, são abertos
caminhos, concedidas sesmarias, implantados povoamentos e aldeamentos em áreas
indígenas, bem como, iniciada a catequese e dominação indígena, no contexto da
política de colonização do território sob o governo de Marquês de Pombal.
Anteriormente, havia uma política imposta pela Coroa Portuguesa em não ocupar a
Zona da Mata, proibindo a sua penetração e abertura de caminhos para impedir o
contrabando e descaminho do ouro, o que foi permitido somente com a decadência da
exploração nas regiões minerárias (VALVERDE, 1958, p. 25).

No início do século XIX as terras vão ser ocupadas por grandes fazendeiros, vindos de
outras regiões da Capitania, que as adquirem por concessão de sesmarias ou compra,
estabelecendo uma disputa com tribos indígenas que começam a ser aldeadas. Os

• 3
índios da região, os chamados Botocudos concentrados mais ao norte e Coroados,
Coropós e Puris no restante, resistiam à ocupação do homem branco com constantes
ataques, o que fez com que a Coroa implementasse a política de aldeamentos e
catequese desses povos. Dessa forma, foram construídos postos denominados presídios
e quartéis e sete divisões militares em lugares estratégicos coordenados por uma Junta
de Civilização, Colonização e Navegação do Rio Doce subordinada ao governador da
Capitania (AGUIAR, 2006, p. 38-39;47).

Cataguases está inserida numa parte mais central da Zona da Mata, compreendida onde
hoje se encontram as cidades de Rio Pomba, Visconde do Rio Branco e Ubá que,
ocupada a partir da política pombalina de integração das populações indígenas, foi
povoada por franciscanos pacificadores dos índios, além de pequenos comerciantes e
mineradores (OLIVEIRA; SIMÕES, 2006, p. 19). Assim, a cidade surge num local
denominado Porto dos Diamantes.

Dessa região central, em 1767, São Manoel da Pomba, atual cidade de Rio Pomba, foi o
primeiro aldeamento a surgir para catequização e dominação pelos colonizadores de
índios Coropós, Coroados e Puris (CARRARA, 1999, p. 16). Em seguida, em 1787, surge
São João Batista dos Coroados e que, em 1805, pela instalação de cadeia, posto militar
e cargo de direção dos índios para defesa dos colonos contra os ataques indígenas,
passa a se chamar São João Batista do Presídio, onde hoje se encontra a cidade de
Visconde do Rio Branco. Um terceiro aldeamento, desta vez de Puris, que já possuía
capela em 1810, é a atual cidade de São João Nepomuceno. Seguem-se assim a
instalação de outros aldeamentos, como por exemplo, em 1815, São Januário de Ubá,
atual cidade de Ubá, de índios Coroados; em 1819, São Paulo do Manoel Burgo,
aldeamento de índios Puris, onde hoje se encontra a cidade de Muriaé (BARBOSA, 1995;
MOREIRA, 2013, p. 33-38).

Em 1811, como alternativa ao Caminho Novo, é concluída uma estrada mais curta
ligando São João Batista do Presídio a Campos dos Goitacazes, litoral do Rio de Janeiro.
Segundo Capella (2013, p. 7), no intuito de povoar o território, foram distribuídas
sesmarias ao longo da estrada que se torna rota de comércio de madeira, poaia (erva
medicinal), gado, fumo, toucinho, queijos, doces e gêneros diversos. Dessa forma, essa
estrada contribuiu para a ocupação de parte da Zona da Mata com a criação de
quartéis, capelas e aldeamentos indígenas, que eram os embriões dos primeiros
povoados.

Na figura 2 a seguir, recorte de um mapa de 1831, verifica-se, dentre outros, a


concentração de aldeamentos nos arredores de São João Batista do Presídio, bem como
a localização de aldeias Puris a nordeste do rio Pomba, conforme registrado na imagem:
“Índios Puris Aldeiados”; “Índios Puris Brabos”; e “Sertão Povoado pelos Índios Puris”,

• 4
onde atualmente são os arredores das cidades de Miraí, Muriaé, Eugenópolis, Tombos e
Carangola e ainda a localização de Porto dos Diamantes.

Figura 2 – Localização de aldeias e aldeamentos indígenas na Zona da Mata. Fonte: ESCHWEGE E


MARTIUS, 1831. Elaborado pelo autor a partir de recorte de mapa citado na fonte

A Figura 3 abaixo, ilustra a localização e período de surgimento dos povoados na região.


Observa-se a forte relação de proximidade deles com os cursos d´água, bem como com
o do traçado dos caminhos-troncos que segue boa parte do leito dos rios 1. Observa-se
ainda que as primeiras ocupações da Zona da Mata se deram no sentido oeste-leste e
norte-sul, seguindo um primeiro momento as proximidades da zona minerária entre os
dois caminhos troncos, e depois se dirigindo para leste.

1
O Regimento Geral de Tomé de Souza de 1549, bem como, a Lei das Índias de 1573 já possuíam
instruções neste sentido (REGIMENTO..., 1548, § 7 e 39; RECOPILACION..., 1841, Título Quinto, De las
poblaciones, ley II).

• 5
Figura 3 – Localização e período de origem dos povoados da Zona da Mata. Fonte: BARBOSA, 1995;
BRASIL, [1874?]; CAPELLA, 2013; INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2016;
INSTITUTO Estrada Real, 2015. Elaborado pelo autor.

• 6
INFLUÊNCIAS NA FUNDAÇÃO DO NÚCLEO URBANO INICIAL E DO SEU
TRAÇADO
O núcleo urbano inicial de Cataguases surge às margens do rio Pomba e da estrada que
estava sendo aberta pela 3ª Divisão Militar do Rio Doce, ligando São João Batista do
Presídio a Campos dos Goitacazes. O local, Porto dos Diamantes, era onde aquela
divisão se aquartelava e onde, por volta de 1810, teriam aportado “Dignidades
Eclesiásticas e seculares de Mariana”, pela notícia da existência de jazidas de
diamantes, cujas buscas posteriores não se mostraram bem-sucedidas (UNIVERSAL,
1828).

É a partir da inspeção da estrada entre São João Batista do Presídio e Campos dos
Goitacazes, que Guido Thomaz Marlière2 fará, em 1828, o primeiro traçado do povoado,
fundando oficialmente o núcleo urbano inicial de Cataguases.

O povoado que dá origem a Cataguases, apesar de ter surgido em 1828, já no Brasil


Império, têm na sua fundação influência de uma série de normativos urbanísticos
anteriores do período do Brasil colonial. O principal deles é o Diretório dos Índios de
1758 e seus derivativos aplicados em todo o país. Mas, verificam-se também influências
do Regimento Geral de Tomé de Souza aplicado a Salvador em 1549; a Lei das Índias3
de 1573 e a Constituição Primeira do Arcebispado da Bahia de 1707. Além disso, há
uma tendência de regularidade e uniformidade no traçado das ruas obedecendo-se as
condicionantes topográficas do sítio, relacionado ao modo de fazer cidades dos
portugueses em suas colônias.

Diretório dos Índios


As instruções que vigiam no Brasil colônia a respeito de aldeamentos indígenas, a partir
de 1758, foram estabelecidas pelo “Diretório que se deve observar nas povoações dos

2
Guido Thomaz Marlière foi um importante personagem da história da Zona da Mata mineira. Nasce na
França, em 1769, e morre no Brasil, em 1836. Estudou humanidades e filosofia, tendo se dedicado à
ocupação militar desde os 18 anos. Emigra para Portugal fugindo das dificuldades impostas pela
Revolução Francesa; é contratado pelo exército português e vem para o Brasil, em 1808, com a família
Real Portuguesa. A partir de 1813, quando é designado para averiguar ocorrências de usurpação de
terras e abusos entre portugueses e indígenas em São João Batista do Presídio, irá galgar vários postos
militares na Zona da Mata mineira nas funções de pacificação, civilização e aldeamento de índios,
inspeção de divisões militares, fundação de povoados, entre outras, até chegar, em 1824, a Comandante
das Divisões Militares do Rio Doce, Diretor Geral dos Índios e Inspetor da Estrada de Minas aos Campos
dos Goitacazes. (AGUIAR, 2008; JOSÉ, 1958).
3
A Lei das Índias, cujas regras para ordenação espacial possuem relação com o espírito da “regularidade
geométrica” e que “se tornou um hábito comum e uma exigência primária na técnica produtiva”, se
direciona especificamente às novas cidades da América Espanhola (BENÉVOLO, 1983, P. 488). No
entanto, parece que algumas de suas instruções também vão influenciar a fundação nos novos povoados
planejados no Brasil, principalmente os instalados a partir da administração de Marquês de Pombal.

• 7
Índios do Pará e Maranhão” (DIRETÓRIO..., 1758), mais conhecido como o Diretório dos
Índios de 17584.

Marlière menciona, em documento registrado em cartório para a fundação do povoado


de Cataguases, que ele delineou a nova povoação conforme o “Diretório de 7 de
dezembro de 1767, dado pelo governador da Província Luiz Diogo Lobo da Silva” e,
mais à frente, nesse mesmo documento, refere-se a tal Diretório como o “para a criação
dos arraiais em terras de índios” (MARLIÈRE, [1928] 1971). Cabe lembrar que Marlière
vinha exercendo papel importante em relação à tutela dos índios na região. Já em 1813,
até 1819, ele ocupa o cargo de Diretor Geral dos Índios da Freguesia de São Manoel do
Pomba, São João Batista e aldeias anexas (JOSÉ, 1958), cargo que foi inaugurado pelo
Diretório dos Índios de 1758. Em 1826, ele chega a escrever recomendações em como
lidar com os indígenas em “Reflexões sobre os índios da Província de Minas Gerais”
(MARLIÉRE, 1906). Assim, em 1828, ao estabelecer o traçado inicial de Cataguases,
Marlière parece ter uma experiência já consolidada, seguindo instruções relativas a
aldeamentos e trato com os índios advindos de instâncias superiores.

No decorrer da colonização e na esteira da política indígena para a colônia, dos conflitos


e resistências entre os diversos atores, vão surgindo variadas instruções e
regulamentos para o relacionamento com os índios, nos quais se inserem as dos
aldeamentos. Padre Antônio Vieira elabora, em 1658, o Plano das Aldeias que resulta
mais à frente, em 1686, no Regimento das Missões do Grão Pará e Maranhão,
estabelecendo que os aldeamentos fossem submetidos à tutela de religiosos, em sua
maioria, jesuítas. Com a expulsão dessa ordem religiosa da colônia e aliados à política
pombalina - entre 1750 e 1777 - surgem novas instruções, essas agora de caráter laico,
cujo marco será o Diretório dos Índios de 1758, que irá substituir o Regimento das
Missões de 1686 (VAINFAS, 2001).

Dentre as várias instruções do Diretório dos Índios, destacam-se a retirada da tutela


religiosa dos índios nos aldeamentos passando-a para a administração de diretores,
nomeados pelo Governador e Capitão Geral do Estado; incentiva-se a prática da
agricultura e do comércio como meios civilizatórios, o uso da língua portuguesa, a
introdução de povos brancos nas aldeias, estimulando o seu casamento com os índios,
como forma de trazer e sobrepor o modo de vida dos brancos sobre o dos indígenas5, a
edificação de novos povoados e manutenção dos existentes, remanescentes da tutela
religiosa6.

4
O Diretório dos Índios foi assinado em 3 de maio de 1757; teve suas diretrizes aprovadas pelo alvará
de 17 de agosto de 1758 e foi instituído por Francisco Xavier de Mendonça Furtado, governador do Grão-
Pará e Maranhão (1751-1759), irmão de Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal; foi
extinto pela Carta Régia de 12 de maio de 1798.
5
O Regimento das Missões, diferentemente do Diretório dos Índios, não permitia que outros povos que
não os índios habitassem os aldeamentos (Regimento das Missões... [1686], 2012).
6
As instruções do Diretório dos Índios de 1758 que dizem respeito diretamente à organização espacial
nos aldeamentos são: a instalação de duas escolas públicas - uma masculina e outra feminina - para se

• 8
O Diretório dos Índios, apesar de trazer diferenças em relação às instruções anteriores,
ancora-se nelas; baseia-se em “um conceito de civilização associado a uma ação a
realizar-se em espaços planejados” no “constituir povoações organizadas à imitação dos
modelos de administração de cidades e municípios trazidos pelos colonizadores
portugueses”; abrange a pretensão de construir uma nova ordem social; vinha atender
ao problema da força de trabalho para a colonização e para a categoria social de origem
europeia que a requeriam e organizar a economia (ALMEIDA, 1997, 46-47;19;162).

Se inicialmente o Diretório dos Índios era um documento direcionado especificamente à


região amazônica – capitanias do Pará e Maranhão - posteriormente, ele se estende às
demais capitanias, em alguns casos com acréscimos e alterações que vão atender
especificidades locais. Neste sentido, parece que o “Diretório de 7 de dezembro de
1767” dado pelo governador da província de Minas Gerais, Luiz Diogo Lobo da Silva, do
qual Marlière cita em documento lavrado em cartório, para se basear na fundação do
povoado de Cataguases, é uma dessas instruções derivadas do Diretório dos Índios de
1758. Entretanto, apesar de exaustivas buscas e pesquisas, não foi localizado esse
documento que poderia auxiliar no melhor entendimento da formação do povoado inicial
de Cataguases. Será utilizado, portanto, outras bases documentais.

Chama a atenção algumas coincidências existentes no Diretório de Pernambuco 7, em


relação à fundação de Cataguases. Esse Diretório é instituído pelo mesmo governante,
Luiz Diogo Lobo da Silva, coincidentemente citado por Marlière, que depois de ser
governador daquela Capitania, entre 1756 e 1763, o será na de Minas Gerais, entre
1763 e 1768. Provavelmente, Lobo da Silva traz as mesmas experiências de gestão em

garantir o ensino como se “pratica em todas as Nações Civilizadas”; a garantia de que os índios façam
as suas casas à imitação dos brancos, com repartições internas e de forma que as famílias vivam em
separado para, no entender dos portugueses, evitar-se a promiscuidade – aqui, chama atenção a
desqualificação das habitações indígenas tradicionais denominando-as de “choupanas” comparando os
índios aos “bárbaros que habitam o inculto centro dos Sertões”. O Diretório instrui que toda povoação
deve ter pelo menos 150 habitantes, por se entender que a quantidade de habitantes favorece e possui
relação com a civilidade e comércio e que o aumento populacional “concorre para a nobreza dos
edifícios”; que devem ser erigidas casas de câmara com “possível grandeza” e cadeia pública “com toda
segurança”; que toda povoação deve ter um armazém para guarda e controle, pelos diretores, de
gêneros da agricultura e para facilitação de cobrança de dízimos de forma a se evitar desvios e
corrupção; que as povoações que ficaram em ruínas, em função do abandono da tutela religiosa dos
jesuítas, devem ser reestabelecidas (DIRETÓRIO..., 1758, § 7º; § 12; § 74).
7
No Diretório de Pernambuco o conceito original do Diretório dos Índios de 1758 foi mantido, com a
repetição de boa parte das instruções e alguns acréscimos. As principais mudanças dizem respeito à
inclusão da distribuição de terras. Sob o aspecto da organização espacial, além das instruções trazidas
do Diretório anterior, diz que deveriam ser selecionados índios para aprenderem determinados ofícios de
forma a incutirem neles um modo de civilização europeia e garantir mão de obra para a manutenção e
construção dos aldeamentos - pedreiros, carpinteiros, ferreiro, serralheiro e, ainda, alfaiate e barbeiro;
e, na esteira da formação dessas profissões, os diretores deveriam estabelecer fornos de cal, fábrica de
telhas e tijolos, materiais necessários para a “fundação dos edifícios indispensáveis para a formosura e
ornato das vilas e lugares, além da maior comodidade dos seus habitantes”. Os diretores deveriam
persuadir os índios a fazerem casas “decentes” reguladas pela “simetria nas frontarias e alturas”; deixar
praças e ruas “direitas” o que “concorre muito para o ornato da vila ou lugar e comodidade de seus
habitantes” (DIREÇÃO... 1759, § 15, § 78).

• 9
Pernambuco para Minas Gerais. O Diretório de Pernambuco institui, de novidade,
instruções quanto à divisão territorial por hierarquia social, similar à que Marlière faz no
povoado de Cataguases. Essas coincidências - mesmo governante e divisão territorial –
indicam que o Diretório citado por Marlière poderia ser parecido com o de Pernambuco,
uma vez que muitas instruções desses diretórios eram repetidas, acrescidas ou
adaptadas à Capitania à qual estava sendo implantado.

O Diretório de Pernambuco traz normatização de unidades de medida, subsidiárias a


repartição dos lotes a serem concedidos nas povoações, que será feita de acordo com “a
graduação e postos, que ocupam os moradores de cada vila ou lugar” (DIREÇÃO...
1759, § 102-115)8.

No seu conjunto de instruções, no que diz respeito às questões espaciais, percebe-se


clara preocupação com a regulação e embelezamento do espaço urbano, bem como a
explicitação da hierarquia social demonstrada na distribuição dos lotes.

No caso de Minas Gerais, há um documento não datado denominado “Diretório que se


deve observar nas povoações dos índios da capitania de Minas Gerais, enquanto sua
Alteza Real não mandar o contrário” (DIRECTORIO, 1897). Entretanto, não se conseguiu
apurar se esse Diretório foi colocado em prática e parece que não é o mesmo do qual
Marlière utiliza como referência para a fundação de Cataguases. Marlière faz uma
divisão de lotes com detalhamento de medidas conforme a hierarquia social de cada
morador. No entanto, o Diretório de Minas Gerais não diz sobre distribuição de lotes; é
basicamente uma cópia do Diretório do Pará e Maranhão trazendo de novidade somente
a indicação da abertura da estrada para Campo dos Goitacazes e instruções para a
pacificação dos índios que transitavam nas vias de comunicação e rotas de comércio de
Minas Gerais.

Chama a atenção que os Diretórios aqui citados, desde o do Pará e Maranhão, passando
pelo de Pernambuco e este último, o de Minas Gerais, veem os índios como seres
inferiores aos povos dominadores - os europeus. Tais documentos são redigidos em
uma linguagem que coloca o índio como um ser estranho, que não corresponde às
expectativas de comportamento dos dominadores e, por isso, precisa ser modificado
para “ser útil a si e ao Estado” (DIRECTORIO..., 1897). Neste sentido, é curioso o uso
dos adjetivos depreciativos presentes naqueles documentos para designar os índios:

8
As unidades de medida definidas pelo Diretório de Pernambuco são: 1 palmo = 8 polegadas; 1 braça =
10 palmos; e 1 légua = 2.800 braças. A divisão de lotes segue um tipo de categorização e hierarquia
sociais do mais alto para o mais baixo, de lotes maiores para menores: Vigário, Coajutor, Capitão-mor,
Sargento-mor, Capitão, Alferes, Oficial, Sargentos e Cabos de esquadra, Escrivães do público, meirinhos
e seus escrivães Soldados, Morador ou índio que assistir ou se agregar às vilas. O lote maior mede 100 x
100 braças e o menor, 40 x 100. Na divisão dos lotes não estão incluídas as áreas para caminhos,
igrejas, casas de câmara, cadeia, de assistência de moradores e ruas públicas, “que todas devem ser
direitas e cordeadas”, que se devem ter quintais para criações e lugar destinado a recolher o gado
vacum, cavalar de serviço, e miúdo (DIREÇÃO... 1759, § 101; § 113).

• 10
bárbaros, praticantes de péssimos e abomináveis costumes, infelizes, miseráveis,
rústicos, ignorantes, ociosos, incultos, indisciplinados, desobedientes, frouxos,
negligentes, entre outros. Dessa forma, as instruções para lida com os índios são
explicitamente no sentido de apagar a cultura daqueles povos; elas são de dominação e
violentas.

Traçado urbano uniforme e regular


A regularidade e uniformidade no traçado das ruas obedecendo-se as condicionantes
topográficas do sítio são observadas tanto na fundação de Cataguases, presente nos
documentos de Marlière, como posteriormente quando o povoado vai estendendo sua
mancha urbana e se desenvolvendo até, aproximadamente a década de 1940.

Reis Filho (1968, p. 166-187) contextualiza a fundação e regulação de novas vilas e


povoados, para o maior controle administrativo da coroa portuguesa sobre a colônia,
com a decadência da monocultura do açúcar a partir de meados do século XVII. A
queda de preço dessa mercadoria internacionalmente induz e faz com que os colonos se
interessem por outras atividades econômicas e se dispersem pelo território,
enfraquecendo a economia de exportação, importante para a metrópole, e se voltem
para uma economia de subsistência. A Coroa Portuguesa proíbe a produção
manufatureira na colônia, de forma que o comércio de vulto fique reservado às
companhias privilegiadas e aos comerciantes portugueses. O maior controle
administrativo começa a ser exercido com a transferência para o Brasil de grupos de
administradores em substituição aos grandes proprietários rurais. Dessa forma, o
controle da população dispersa no território será feito com a fundação de novas vilas,
que abrigarão os novos administradores e terão maior regulação em seus espaços.

Para Delson (1997), a necessidade de maior controle por parte da Coroa Portuguesa
relaciona-se, ainda, à descoberta do ouro nos anos de 1690 que, aliada à decadência da
cultura do açúcar, também atrai e dispersa a população pelo território em busca de
novas atividades exploratórias. A descoberta do ouro induz e faz surgir espontânea e
desordenadamente novas povoações ao redor dos locais de mineração. Surge, então, a
necessidade de melhor controlar o escoamento do ouro, a distribuição de terras, a
manutenção da lei e ordem e as ameaças dos interesses espanhóis.

Para conter o crescimento independente e sem o controle do território pela Coroa foi
instituída a regulação na distribuição de terras combinado com a construção de novas
vilas planejadas. Assim, criar ou mesmo transformar os povoados que surgiram
espontaneamente em vilas era uma forma de impor o domínio de um modo de vida
europeu e levar administradores e a burocracia de controle pelo território.

• 11
É a partir do governo de Marquês de Pombal, influenciado pelas ideias do iluminismo,
que vai se intensificar a construção dessas novas comunidades planejadas em regiões
remotas do Brasil9. O desenho dessas povoações com malha urbana em xadrez,
uniformidade dos quarteirões, praças regulares, ruas retas, fachadas uniformes,
alinhamento e regularidade das construções refletiam o pensamento iluminista da
época. O desenho, racional e ordenado, deveria ser o exemplo e modelo de civilização a
ser seguido pelos índios, considerados não civilizados pelos colonizadores; é o modelo
que deveria representar a racionalidade no comportamento; a aspiração ou imposição
de um modo de vida europeu. Essas ideias eram caras ao governo de Marquês de
Pombal e seguidas e colocadas em práticas pelos governadores das capitanias
(DELSON, 1997, p. 49-68).

Moreira (2003, p. 11) aprofunda e traz um panorama do modo de fazer cidades dos
portugueses, na época colonial, que ajuda a clarear a questão da regularidade do
traçado urbano. Vem desde a Baixa Idade Média a configuração do tipo de traçado no
qual se destaca um detalhe importante: procuram-se manter as ruas paralelas e
perpendiculares acompanhando as condicionantes do relevo,

não havia a obsessão pelo ângulo reto nem da geometria abstrata, mas a necessidade
prática (e o gosto) de abrir ruas tanto quanto possível paralelas, adaptando-se ao relevo
do terreno – à linha da costa, curso de um rio, nível da cota de uma encosta abrigada da
intempérie.

Segundo Moreira (2003, p. 15), esse modelo vai se consolidando no decorrer da


colonização portuguesa, passando pelo período manuelino, entre os anos de 1495 e
1521, através de regulamentação por legislação e posturas municipais. Neste período
parece “afirmar-se a virtude do retilíneo na vida da cidade: estruturantes, higiênicas,
defensivas, estéticas”.

No período que vai de 1540 a 1620, parece estabilizar-se um tipo clássico de cidade
portuguesa ou define-se uma metodologia de desenho urbano pela síntese de diversas
influências que vêm do pensamento urbanístico italiano, do modelo de metrópole indo-
mulçumana e da tradição manuelina. Nesse período, há um esforço de organização
profissional onde o arquiteto é visto como cientista, a especialização se torna cada vez
mais uma necessidade com contratação de técnicos italianos no Reino e criação de
cargos de alto nível nas colônias – fortificador, engenheiro e engenheiro-mor. Ao
mesmo tempo em que se triunfa o conceito “científico”, erudito, da cidade utópica à
italiana com seu purismo geométrico,

9
Delson (1997) faz uma minuciosa pesquisa sobre a construção de arraiais e vilas planejadas no Brasil
no período colonial. Sua pesquisa contrapõe à ideia de que as cidades brasileiras se originaram apenas
de povoações espontâneas, não regulares e não planejadas, diferentemente de cidades de malha
ortogonal da América Espanhola. Em seu estudo é dado destaque ao governo de Marquês de Pombal
(1750-1777) quando, segundo essa autora, foram construídas pelo menos 35 vilas ou arraiais
planejados com malha urbana em xadrez e traçado regular.

• 12
anonimamente, vai se definindo o tipo de vila ou de cidade colonial portuguesa10 que se
molda às condições do relevo e procura tirar partido dele, que se defende com uma cerca
abaluartada – que condiciona o traçado urbano por um conjunto de regras bem sabidas.
As ruas são determinadas pelo sítio [...]
O seu traçado ‘tendencialmente regular’ torna-se cada vez mais regular, sem chegar à
esquadria: procura-se um alinhamento retilíneo com quadras proporcionadas, o que nem
sempre é possível pela natureza do terreno ou edifícios preexistentes; mas a intenção de
regularidade é tão indiscutível quanto o recurso a desenhos prévios no papel, uma atitude
de projeto e medida obedecendo a princípios e a hábitos e normas mais do que modelos
fixos e a regras legais, concretizadas com grande estilo de pragmatismo pelos velhos
métodos de cardeação com uso da bússola, compasso, marcos e cordas enceradas em
vez de régua e do esquadro (MOREIRA, 2003, p. 22).

Aproximadamente entre 1620 e 1750, deslocam-se os eixos dos acontecimentos para o


Brasil, onde as ideias do iluminismo e da idade da razão terão oportunidade de se
realizar. Evidencia-se em primeiro plano a criatividade dos práticos, cuja experiência
agora é enriquecida pela síntese entre o saber erudito e livresco e o tradicional
empirismo.

Além dos engenheiros militares, habituados a abrir caminhos e a traçar novas povoações
já perfeitamente regulares, os agentes do urbanismo regular sistemático serão os
anônimos ocupantes do cargo igual ao ‘medidor’ metropolitano.
[...] a esses humildes funcionários municipais deve-se a aparência moderna das cidades
brasileiras, mais regulares que as da metrópole e do Oriente; e sua prática profissional, a
arte da ruação11, marca a entrada na era moderna. (MOREIRA, 2003, p. 23-24).

Moreira (2003) informa que havia o cargo camarário do ruador que em alguns lugares
eram chamados de medidores. Verifica-se, no entanto, que a partir da independência do
Brasil, nos códigos de posturas municipais surge o cargo de alinhador que nos parece
são os profissionais que assumem a função anterior de ruador ou medidor.

No que diz respeito aos engenheiros militares que “abriam caminhos e traçavam novas
povoações” cabe dizer que havia no Brasil as aulas de arquitetura militar que surgem da
necessidade de criação de novos quadros técnicos em função da fundação das novas
vilas e povoados para domínio e controle do território (REIS FILHO, 1968, p. 186).

Bueno (2004, P. 95) informa que as aulas de arquitetura militar foram as primeiras no
Brasil destinadas ao ensino da arquitetura e que além de serem destinadas
prioritariamente a membros do exército o eram também a civis interessados na
matéria, sem o benefício de uma bolsa. A autora chama a atenção para o fato de que

10
Moreira (2003) cita, como exemplos, Olinda, Salvador, Rio, Santos, Luanda, Chaul, Baçaim, Colombo
e Gale, Macau, dentre outras.
11
Moreira (2003) cita a publicação “Tratado de Ruação” de José de Figueiredo Seixas, oferecido em
1763 ao ministro Marquês de Pombal, como melhor testemunho dessa prática urbanística naquele
momento, “cujo objetivo era fundar uma disciplina nova: a Ruação, tendo por matéria o estudo científico
e rigoroso da forma, o desenho e o crescimento das cidades, sua função histórica, tipologia etc.: o
fenômeno urbano autônomo”.

• 13
muitos profissionais formados nesses cursos irão atuar como agentes das Câmaras
locais “na concepção de projetos, supervisão das arrematações e vistorias de obras
públicas”

O NÚCLEO URBANO INICIAL DE CATAGUASES


Os limites municipais atuais de Cataguases encontram-se entre as cotas topográficas
140 e 1.140 metros e a malha urbana de sua sede entre 149 e 345 metros. O sítio onde
foi implantado o núcleo inicial está numa parte elevada de terreno em relação ao seu
entorno, na margem esquerda do rio Pomba, em área não inundável, entre as cotas 175
e 180 metros. O entorno imediato é mais baixo, em cota média de 160 a 174 metros,
está na várzea cortada pelo ribeirão Meia Pataca e córrego Lava-pés e é inundável pelas
suas condições naturais (Figuras 4 e 5 abaixo).

Figura 4 – Localização do povoado de Cataguases em relação à topografia do sítio. Fonte: CAPELLA,


2013; INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2020; NASA Earth Science Data and
Information System, 2011. Elaborado pelo autor.

• 14
Figura 5 – Localização do povoado de Cataguases em relação ao traçado urbano atual. Fonte: CAPELLA,
2013; INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2020. Elaborado pelo autor

Durante boa parte de sua existência, até o início da década de 1940, quando só então a
malha urbana começa a se estender pelas encostas, esse núcleo inicial foi a parte mais
alta da cidade. Ele surge em torno de uma capela que é o referencial para a
implantação de uma praça e duas ruas; corresponde atualmente à localização da igreja
e praça Santa Rita e às ruas Alferes Henrique de Azevedo, Doutor Lobo Filho, Major
Vieira e Coronel Vieira. A malha urbana foi definida inicialmente de forma ortogonal e foi
se replicando no entorno, dessa mesma forma, à medida que o núcleo foi se
expandindo, conformando em sua maior parte por quadras retangulares ou
trapezoidais, não necessariamente do mesmo tamanho (Figura 5).

A localização e a implantação desse núcleo inicial parecem que foram escolhidas pelo
grupo de eclesiásticos que se deslocaram de Mariana e outros sítios para o local em
busca de diamantes e foi sendo também ocupado pelos militares que abriam a nova
estrada de São Joao Batista do Presídio a Campos dos Goitacazes. Essa percepção é
corroborada pelo fato de que, quando Marlière funda o povoado já havia ali “outros mais
moradores”, “povoado de brasileiros e índios” (MARLIÈRE, [1928] 1971) e “38 fogos de
brasileiros” (UNIVERSAL, 1828). Da mesma forma, parece que já existia ou acabara de
ser erigida uma capela conforme relatou Marlière: “a nova povoação deste lugar se acha
ereta com a permissão do Ordinário uma capela debaixo da invocação de Santa Rita”; e
cita o jornal O Universal: “se acaba de erigir com licença do Ordinário huma Capella
debaixo da invocação de Santa Rita”.

• 15
Na escolha do sítio, o protagonismo dos primeiros eclesiásticos que ali chegaram
também é corroborado pela relação de localização da capela ali instalada com a
Constituição Primeira do Arcebispado da Bahia. Essa legislação instruía que as Igrejas
deveriam ser fundadas e edificadas em lugares “decentes” e acomodadas em sítio alto,
livre da umidade, desviando-se de lugares “imundos e de casas particulares”
(CONSTITUIÇÕES..., 1753, § 687-688). No povoado de Cataguases, a primeira capela
foi implantada seguindo essa localização, em sítio mais elevado.

Neste sentido, apesar de Marlière ter em mente a escolha do sítio para a implantação
de povoados, conforme colocado em suas Reflexões sobre os Índios e das prováveis
instruções do Diretório a que faz menção, parece que ele apenas ratifica a escolha do
sítio, cuja ocupação precedente coincide com suas intenções.

Verifica-se que a escolha inicial do povoado também se relaciona com as instruções do


Regimento Geral de Tomé de Souza e com a Lei das Índias no que diz respeito às
instruções de salubridade, presença de água abundante, facilidade de comunicação por
água e terra (REGIMENTO..., 1548; RECOPILACION...,1841). Em relação à facilidade de
comunicação e de deslocamentos, exercem esse papel tanto o rio Pomba, como a
estrada que liga São João Batista do Presídio a Campos dos Goitacazes. E, para
Marlière, o rio Pomba ainda tinha importância não só pelo seu papel de facilitador na
comunicação, mas também para a pesca, banho dos índios e como possibilidade para
escola de canoeiro (MARLIÉRE, 1906).

Novamente a Igreja vai ter papel preponderante. É a partir do local escolhido para a
capela que se inicia o núcleo urbano e se articula o traçado urbano inicial. Marlière
utiliza a implantação do primeiro templo religioso como referência para o traçado das
duas ruas e a localização da praça do novo povoado: “Delineei as ruas na distância de
cinquenta passos de um e outro ângulo da Igreja” (MARLIÈRE, [1928] 1971, grifo
nosso)

Parece, ainda, que a ideia de regularidade foi aplicada no traçado inicial do povoado
tanto pelo uso sutil ou subliminar de algumas palavras dos registros encontrados, como
pelo próprio traçado em si.

Marlière no registro cartorial diz: “[...] a fim de que se forme uma Povoação bem
regular para qual convida a sua bela localidade” (MARLIÈRE, [1928] 1971, grifo nosso).
Já o jornal O Universal (1828) noticia: “A Estrada nova atravessa o Arraial em linha
recta. O Inspector delineou as ruas paralelas à estrada distantes 50 passos de um, e
outro ângulo da Capella, a qual fica no meio de uma Praça espaçosa, que não tem a
menor desigualdade” (grifo nosso, mantida a grafia original). Vê-se que as palavras
grifadas nestas citações remetem à regularidade do traçado urbano.

• 16
No que diz respeito ao traçado executado, além do templo religioso, a praça também foi
protagonista na formação do núcleo inicial. Ela é um dos primeiros elementos a serem
definidos. Nisso, parece, portanto, ter havido influência da Lei das Índias, cujas
instruções davam à praça grande importância como referencial inicial, articuladora e
definidora do restante do traçado dos novos núcleos urbanos.

Além disso, mesmo que na descrição de Marlière não estarem claras as medidas da
futura praça, é curiosa a proporcionalidade que ela possui atualmente com as definidas
pela Lei das Índias, apesar das prováveis modificações ao longo do tempo. A Lei das
Índias definia que as praças deveriam ser retangulares com medidas ideais cujo
tamanho mínimo seria de 200 por 300 pés; tamanho médio de 400 por 600 pés; e
máximo de 500 por 800 pés, sempre levando em consideração a relação do tamanho
com a possibilidade de crescimento do futuro núcleo urbano (RECOPILACION..., 1841,
p. 105). A praça Santa Rita é retangular com medidas aproximadas de 184 por 301 pés
(56 x 96 metros), formato similar e proporcionalidade bem próximos aos definidos em
tamanho mínimo na Lei das Índias.

Marlière ainda se preocupa com a ocorrência de incêndios não somente quando


estabelece as serventias públicas – espaços de sete palmos entre uma casa e outra –
mas também quando não permite casas cobertas de capim (MARLIÈRE, [1928] 1971). A
preocupação com a cobertura das casas aparece também nas suas Reflexões sobre os
Índios (MARLIÉRE, 1906) quando diz que as telhas são artigos de primeira necessidade
que, por sua vez, vêm ao encontro do Diretório de Pernambuco. Este Diretório
recomenda, na esteira da formação das profissões de carpinteiro e pedreiro, que os
diretores estabeleçam fornos de cal, fábrica de telhas e tijolos, materiais necessários
para a “fundação dos edifícios indispensáveis para a formosura e ornato das vilas e
lugares, além da maior comodidade dos seus habitantes” (DIREÇÃO... 1759, § 15;
grifo nosso). Aqui, pode-se inferir que essa opção por cobertura em telhas cerâmicas,
pode ter uma relação com a prevenção de incêndios e, neste sentido, cabe lembrar os
ocorridos em Lisboa em função do terremoto de 1755 12, provavelmente colocando na
pauta da construção das cidades a prevenção de incêndios. Mas, a escolha da telha
pode, também, como sugere o Diretório de Pernambuco, ser uma opção por materiais
da cultura europeia que se pretendia impor, que traz “formosura e ornato”, se sobrepõe
aos materiais utilizados pelos índios e, consequentemente, à sua cultura.

12
A destruição de cidades por incêndios dava oportunidade à reconstrução com traçado regular e
uniforme. Delson (1997, p. 29) cita, por exemplo, que a destruição de uma parte de Ouro Preto, em
1714, foi oportunidade e pretexto para o estabelecimento de um arruamento alinhado e regular do
traçado urbano. Foi o que ocorreu também em Lisboa em 1755, aproveitou-se da destruição da cidade
para a implantação de um traçado urbano uniforme e regular dentro do espírito das políticas
pombalinas, em substituição ao anterior, medieval.

• 17
Marlière propunha também a divisão e distribuição dos lotes no novo povoado por
hierarquia social, assim como definia o Diretório de Pernambuco, porém de uma forma
mais simplificada. No novo povoado de Cataguases são definidos somente três
tamanhos de lotes: para o reverendo capelão, o comandante e as pessoas graduadas
seriam destinados os de maior dimensão: 60 palmos de frente por 100 de fundos; para
as de classe média: 50 por 80 palmos; e os demais habitantes: 40 por 70 palmos.
(MARLIÈRE, [1928] 1971). A não ser o reverendo capelão e o comandante, não há uma
definição clara das outras categorizações sociais, ou seja, as pessoas graduadas, de
classe média e demais habitantes não foram categorizados detalhadamente como o fez
o Diretório de Pernambuco. Assim, não se sabe, portanto, se os índios estavam
incluídos na categoria social de “demais habitantes”. No entanto, chama a atenção a
recomendação que Marlière faz em suas Reflexões sobre os índios no item “16. casas”
quando diz que “em cada aldeia deve-se erigir ruas espaçosas e sobretudo ranchos
abertos anexos a elas para o alojamento dos índios” (MARLIÈRE, 1906, grifo nosso).

O Diretório dos Índios e seus derivados instruíam que as casas dos índios fossem feitas
à imitação dos brancos, com repartições internas e de forma que as famílias vivessem
em separado, em clara intenção de sobreposição de cultura do branco sobre a do índio e
para se evitar promiscuidade que o colonizador imaginava ocorrer nas moradias típicas
indígenas. Se em Cataguases os lotes e casas destinados aos índios se referem à
categoria “demais habitantes”, poderiam estar submetidas a essas instruções de
moradia com repartições internas. Em suas Reflexões sobre os Índios, Marlière, no
entanto, pode ter optado por “ranchos abertos” pela falta de adaptação do índio ao
modo de morar dos brancos. Imagina-se que os ranchos abertos ofereciam uma forma
de adaptabilidade mais próxima da moradia original à indígena. O que chama a atenção
é que as duas opções são uma forma de anulação da cultura indígena. E mesmo que a
intenção do colonizador fosse a de incluir o indígena na sociedade brasileira, isso era
feito de forma excludente; ou se submete ao tipo de moradia à imitação do colonizador
ou lhe é destinado um “anexo”.

Por fim, ao chegar ao local para fundação do povoado, Marlière encontra as terras já
expropriadas dos indígenas. Os 400 índios Puris, que ali existiam, eram, conforme os
relatos, jornaleiros dos fazendeiros e se ocupavam da agricultura e venda de poaia e
outras drogas. Já tinha havido, portanto, a aculturação daqueles povos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Verificou-se que o núcleo urbano inicial de Cataguases foi fundado no contexto da
criação de povoados e vilas, com traçado urbano e regular, como estratégias de
colonização, dominação e controle do território, herdadas principalmente da época de
Marquês de Pombal. Apesar de a fundação do povoado ter ocorrido oficialmente em
1828, portanto posterior à gestão de Pombal, ela terá influências de ideários e

• 18
normativos vigentes naquela gestão e de outros aplicados desde o início da colonização
portuguesa e até mesmo dos normativos de colonização espanhola como visto, por
exemplo, com a Lei das Índias.

O povoado inicial foi fundado dentro dos princípios da criação de aldeamentos


indígenas. O principal normativo utilizado foi o Diretório dos Índios e seus derivativos,
que pressupunha que a cultura indígena precisava ser anulada e modificada, de forma a
incorporar essa etnia a um tipo de sociedade idealizada pelos colonizadores, para se
atingir interesses econômicos e de conquista. Aliava-se a este normativo um modo de
fazer cidades dos portugueses nos países colonizados, cujo traçado urbano, uniforme e
regular, seguia as condicionantes do sítio, fazendo parte também das estratégias de
dominação e incorporação dos indígenas à cultura europeia. A localização, implantação
e escolha do sítio do povoado tiveram também influências do Regimento Geral de Tomé
de Souza, Lei das Índias e Constituição Primeira do Arcebispado da Bahia.

Verificou-se ainda que esse rol de normativos, que influenciaram na fundação da cidade
de Cataguases, foram, ao longo do tempo, se sobrepondo, foram sendo copiados com
algumas modificações e se repetindo em alguns aspectos.

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• 19
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• 20
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• 21
AMERICANISMOS E NACIONALISMOS NA REARGENTINIZAÇÃO
EDILÍCIA PELO URBANISMO DE ANGEL GUIDO, 1940
AMERICANISMOS Y NACIONALISMOS EN LA REARGENTINIZACIÓN
EDILICIA POR EL URBANISMO DE ANGEL GUIDO, 1940
Eixo temático 1: Historiografia, ideários e regimes de historicidade

NOVO, Leonardo
Doutorando; Programa de Pós-graduação em História, UNICAMP
leo.novo7@gmail.com
RESUMO

O presente trabalho parte da tese “Reargentinização edilícia pelo urbanismo”


apresentada pelo arquiteto, urbanista e engenheiro argentino Angel Guido no
V Congresso Pan-Americano de Arquitetos, sediado em Montevidéu no ano de
1940, para articular as dimensões nacionalistas e pan-americanistas de seus
projetos urbanísticos e arquitetônicos elaborados entre as décadas de 1920 e
1940. As reflexões de Guido são interpretadas a partir de sua relação
profissional e pessoal com o literato Ricardo Rojas, autor das obras “Euríndia”
e “La restauración nacionalista”, mobilizadas como bases teóricas para os
trabalhos do arquiteto. Argumenta-se sobre os deslocamentos operados por
Guido sobre a noção de nacionalismo de Rojas para uma escala continental.
Com isso, é enfatizada a centralidade das cidades e suas arquiteturas para a
implementação dos projetos políticos modernos em pauta na primeira metade
do século XX, sobretudo entre intelectuais sul-americanos, bem como a
importância da política para os debates arquitetônicos e urbanísticos colocados
em pauta nos Congressos Pan-Americanos de Arquitetos.

PALAVRAS CHAVE Angel Guido; Ricardo Rojas; Pan-Americanismo;


Nacionalismo; Congressos Pan-Americanos de Arquitetos.

RESUMEN

El presente trabajo se basa en la tesis “Reargentinización edilicia por el


urbanismo” presentada por el arquitecto, urbanista e ingeniero argentino Angel
Guido en el V Congreso Panamericano de Arquitectos, realizado en Montevideo
en 1940, para articular los discursos nacionalista y panameño. -Dimensión
americanista de sus obras, proyectos urbanos y arquitectónicos desarrollados
entre las décadas de 1920 y 1940. Las reflexiones de Guido se interpretan
desde su relación profesional y personal con el literato Ricardo Rojas, autor de
las obras “Euríndia” y “La restauración nacionalista”, movilizado como bases
teóricas para el trabajo del arquitecto. Se argumenta sobre los
desplazamientos operados por Guido sobre la noción de nacionalismo de Rojas
a escala continental. Con esto, se enfatiza la centralidad de las ciudades y sus
arquitecturas para la implementación de proyectos políticos modernos en la
agenda de la primera mitad del siglo XX, especialmente entre los intelectuales
sudamericanos, así como la importancia de la política para los debates
arquitectónicos y urbanos en la agenda de los Congresos Panamericanos de
Arquitectos.

PALABRAS-CLAVE Angel Guido; Ricardo Rojas; Panamericanismo;


Nacionalismo; Congresos Panamericanos de Arquitectos.

• 2
INTRODUÇÃO1
Rosario, 24 dezembro de 1954
Ricardo Rojas, meu querido mestre.
Com irregular fortuna tenho tratado de ser útil à cidade onde nasci, não importa a ingratidão
com que em ocasiões foram estimados meus esforços.
Como urbanista, projetei para Rosário o primeiro Plan Regulador do país; como
universitário, fui seu Reitor durante três anos; como arquiteto, levantei algumas residências
e edifícios em estilo da América, de acordo com a Doutrina do Maestro da Euríndia; como
historiador da arte americana, no Museu Histórico Provincial de Rosário está presente minha
obra de afirmação euríndica na arte mestiza (...); finalmente, como artista, criei o
Monumento a la Bandeira, que está próximo de ser terminado. Mas há alguns anos tenho
desejado escrever um romance sobre minha cidade. Aquelas obras deixavam em branco
uma página romântica que pontualmente denunciava sua presença entre os resquícios do
ofício técnico ou da plástica estética. Romantismo incorruptível aprendido com você, de sua
conduta exemplar de homem argentino e de artista, meu querido mestre.
Pois bem, desde esse viés romântico (...) escrevi esse romance, ou pretensão de romance.
Ainda não o publiquei. O primeiro volume é para você - perdoe-me pelos erros. Somente
digo que são sinceras suas fraudes. A amargura exaltada de seu desenlace deve ter relação
com a dor que sofremos ante a lástima da Pátria nestas duras horas que vivemos.
Advirto o risco que significa ele ser lido pelo príncipe das letras argentinas. Mas sei também
o calibre e afeto que professa o mestre ao discípulo, autor desta obra. E o sentimentalismo
muitas vezes trai, em mais de algumas ocasiões, o rigor da censura. Esta é minha
esperança.
Afetuosamente,
seu eterno discípulo,
Angel Guido2

O A relação do arquiteto Angel Guido (1896-1960) com o literato Ricardo Rojas (1882-
1957) foi registrada de diferentes maneiras ao longo do século XX por meio da produção
de ambos. Ao longo da década de 1920, muitos dos trabalhos publicados por Guido
desenvolviam as ideias de uma das obras mais famosas de Rojas, Euríndia (1951 [1924]).
Fusión hispano-indígena en la arquitectura colonial (1925), La arquitectura
hispanoamericana a través de Wölfflin (1927) e Orientación espiritual de la arquitectura
en América (1927), os dois últimos apresentados como tese no III Congresso Pan-
Americano de Arquitetos (CPA), são alguns títulos que indicam como o arquiteto
buscavam propor um caminho estético por meio da arquitetura e das cidades para
recuperar o sentido americanista da nacionalidade.
Além das referências teóricas, a relação entre os dois tornou-se de arquiteto e cliente por
meio da contratação de Guido para construir a casa de Rojas e sua família na cidade de
Buenos Aires durante a década de 1930. Desde 1958 transformada um museu, o Museo

1
Este trabalho é fruto da pesquisa de doutorado em desenvolvimento intitulada “Articulações Pan-
Americanas: lugares da América e do arquiteto no Entreguerras a partir dos Congressos Pan-Americanos
de Arquitetos” financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP, processo
n. 2018/16408-2).
2
O epistolário de Guido a Rojas está depositado no arquivo da Casa Museo Ricardo Rojas, localizado na
cidade de Buenos Aires. A instituição preservou e catalogou esse corpus documental por meio de uma
organização própria que atribui a essa carta de 1954 o código G0772. A tradução desse e dos demais
trechos da documentação e da historiografia em outras línguas citados no presente artigo foi feita
livremente pelo autor.

• 3
Casa Ricardo Rojas é encarado como um manifesto estético das ideias do escritor e uma
materialização do conceito de Euríndia e da desejada fusão entre a estética indígena e
europeia. Para além das relações acadêmicas e projetuais, a intimidade entre os dois
argentinos, mestre e seu discípulo, foi documentada em uma longa de série de
correspondências. O epistolário está atualmente salvaguardado no arquivo do museu e é
composto por setenta e sete cartas escritas por Angel Guido endereçadas a Ricardo Rojas
entre os anos de 1925 e 1955.
Por meio das cartas, como argumenta Antequera (2019) e Montini (2011), é possível
identificar um ideário comum atravessado pela pergunta sobre o americano e sua
expressão nas artes que conformam um projeto intelectual compartilhado pelos dois.
Guido, o “arquiteto da Euríndia”, manifestava o desejo de implementar a doutrina
euríndica elaborada por Rojas a nível continental por meio de suas viagens, desde aquelas
feitas pela América do Sul em função da participação nas primeiras edições dos
Congressos Pan-Americanos de Arquitetos (Montevidéu, 1920; Santiago do Chile, 1923;
Buenos Aires, 1927; Rio de Janeiro, 1930; Montevidéu, 1940) , até o período que passou
nos Estados Unidos financiado por uma bolsa da Fundação Guggenheim e algumas idas
ao México para realizar expedições arqueológicas auspiciado pela University of Southern
California (1931-1933).
A trajetória de Guido não é estranha à historiografia argentina. Seja por sua ampla
produção teórica, ou por ser autor de projetos de certa relevância nas narrativas nacionais
– como o Monumento à Bandeira, em Rosario –, seu nome é relacionado ao momento de
transição entre o que seria uma tradição clássica para os preceitos defendidos e
consolidados pelo Movimento Moderno na arquitetura. O verbete dedicado ao arquiteto é
um dos maiores publicados no Diccionario de Arquitectura en la Argentina organizado por
Fernando Aliata e Jorge Liernur (2004), que nos oferecem uma visada panorâmica sobre
sua múltipla trajetória. É enfatizado o destino continental projetado para a América a
partir do conhecimento sobre a cultura de maneira a identificar sua especificidade. Mais
do que um projeto disciplinar, Guido estava engajado em um projeto cultural que
articulava por meio da política diferentes campos e saberes.
A redescoberta da América proposta por ele era embasada por uma revisão historiográfica
em prol da recuperação crítica de uma tradição artística colonial na qual o mestizo
identificado no século XVIII americano era tomado como uma atitude de resistência
cultural americana frente a imposições artísticas e técnicas da Europa (NOVO, 2019). Das
interpretações sobre a trajetória do arquiteto, poucas buscam articular o elemento
regional de sua produção a seus projetos continentais de integração e interpretação da
história da América como faz Ana María Rigotti (2011). Sua análise sobre a construção
do Monumento a la Bandeira, em Rosário, sublinha como Guido respondia aos
questionamentos nacionalistas por meio de seu resgate de um passado pré-colombiano e
colonial idealizado para projetar o futuro do continente.
Se tomada parcialmente, sua atuação pode parecer local, mas suas intenções e a difusão
de seu trabalho eram, certamente, transnacionais. O arquiteto não mediu esforços para

• 4
viajar, publicar em diferentes línguas, conhecer e trocar correspondências com arquitetos,
artistas e literatos de outros países.
Na carta datada de 24 de dezembro de 1954, a qual inicia o presente artigo, Guido
recupera um histórico de sua atuação multifacetada: urbanista, professor e reitor
universitário, historiador da arte, artista, escritor, discípulo. Baseado em teorias estéticas
que elegiam a arquitetura como a arte social mais capaz de sintetizar as culturas e
expressar o grau de civilização de um povo, ele a entendia a partir de um campo ampliado
e por meio de suas inescapáveis relações com a decoração, a escultura, a pintura e a
cidade.
Por meio dessas múltiplas linguagens, o arquiteto se empenhou em elaborar uma sintaxe
euríndica capaz de imaginar e recuperar um passado idealizado que pudesse denunciar
os efeitos fragmentários do cosmopolitismo. Nesse projeto moderno, a fusão euríndica
cumpria um tríplice papel: tornava-se dispositivo teórico que explicava e encadeava um
processo histórico, materializava esse processo e postulava um horizonte de expectativa
a ser alcançado (ANTEQUERA, 2019).
Dentre esses muitos textos, obras e arestas do projeto euríndico compartilhado por Guido
e Rojas, o presente artigo concentra-se na atuação do arquiteto como delegado argentino
do V Congresso Pan-Americano de Arquiteto (Montevidéu, 1940). A análise de um dos
trabalhos apresentados por ele no evento, “Reargentinização edilícia pelo urbanismo”,
nos permite sublinhar aspectos importantes de seu diálogo com Ricardo Rojas e entender
como ele ampliava a escala das reflexões do literato da Argentina para o continente
americano.

MOTES PAN-AMERICANISTAS PARA UMA APROXIMAÇÃO SUL-AMERICANA


Angel Guido foi inscrito como delegado argentino no V Congresso Pan-Americano de
Arquitetos e apresentou dois trabalhos no evento. O arquiteto era presença constante nos
CPAs desde a sua primeira edição, em 1920, quando se reuniram em Montevidéu
profissionais de diferentes países americanos. A iniciativa partiu de arquitetos uruguaios
reunidos em torno da Sociedad de Arquitectutos del Uruguay (SAU) motivados em difundir
suas funções, deveres e obrigações profissionais. Essa vontade de tornar público o debate
profissional é o que justificou, em 1916, a formação de um Comitê Permanente
internacional responsável por organizar essa série de congressos e publicar, ao final de
cada encontro, as atas e uma síntese dos debates. Eles previam a realização do primeiro
congresso em 1917, o que não ocorreu em razão da Primeira Guerra Mundial. Uma das
primeiras iniciativas do Comitê foi elaborar dois regulamentos que previam a realização
trienal dos CPAs, a serem sediados em diferentes capitais americanas, e a realização de
uma Exposição Pan-Americana de Arquitetura em todas as edições do evento
(ARQUITECTURA, 1916).3

3
Os CPAs não mantiveram a regularidade e são comuns longos hiatos entre suas edições, como é o caso
da década de 1930, marcada pelo IV CPA (Rio de Janeiro, 1930) e o V CPA (Montevidéu, 1940).

• 5
As primeiras décadas do século XX demarcam a intensificação do movimento de circulação
de ideias, pessoas e projetos urbanos entre os países americanos. A conformação dessa
cultura urbanística continental (GOMES, 2009) foi tributária desse processo de trocas no
qual problemas comuns eram identificados em diferentes cidades por meio de
diagnósticos que formulavam e fixavam a imagem de um rápido e desordenado
crescimento, o que exigia novas soluções por parte do corpo técnico. As experiências,
distintas em suas geografias, nacionalidades, temporalidades e escalas, apontam para a
necessidade de se considerar o campo profissional e disciplinar da arquitetura e do
urbanismo como repositório de saberes e práticas plurais onde importa menos a origem
e nacionalidade da proposta do que sua capacidade de solucionar – ou, por vezes,
convencer os pares de que pode solucionar – os problemas identificados no e pelo campo.
Esse parece ter sido o ponto de partida para a tessitura dessa trama profissional
transnacional.
À essa aparente e pretendida dimensão continental, contrasta-se a efetiva e restrita
presença de determinados países que atenderam ao congresso em suas primeiras
edições. Ao longo das sete edições ocorridas na primeira metade do século XX, vinte
países foram representados por meio de profissionais agrupados em delegações cuja
participação era inconstante.4 Frente a esse quadro heterogêneo, é possível identificar
um forte engajamento de cinco países: Argentina, Chile, Estados Unidos, Uruguai e Brasil
(que só não participou da edição de 1923). Apesar de terem se debruçado sobre muitos
temas, os arquitetos reunidos nesses fóruns sublinhavam a arquitetura como mãe de
todas as artes e se empenhavam em legitimar sua atuação profissional por meio da busca
por uma arquitetura americana que articulasse modernidade e tradição por meio do pan-
americanismo e pela busca da unidade em meio a diversidade identificada nos diferentes
países do continente.5 Esse processo culminou, como afirma Santiago Medero, em uma
geração de “arquitetos de Estado” entre os anos 1920 e 1940 nos quatro países sul-
americanos que mais se engajaram nos CPAs (MEDERO, 2018).6
É necessário destacar alguns aspectos da estrutura desses congressos, que em muito se
distanciam das práticas vigentes, apesar de guardar algumas aproximações. Os
arquitetos inscritos como delegados deveriam representar ao menos uma instituição
nacional. No caso de Guido, ele foi inscrito como membro titular, ou seja, com direito a
voto nas sessões de debate do evento, e como representante de duas instituições: a
Universidad Nacional del Litoral, localizada na província de Santa Fé, e a Municipalidade

4
Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Estados Unidos, Equador, Guatemala, Haiti,
Honduras, México, Peru, Paraguai, República Dominicana, Panamá, Porto Rico, Uruguai e Venezuela.
5
Os temários das edições realizadas entre 1920 e 2000 foram elencados por Gutiérrez, Tartarini, Stagno
(2007).
6
O caso uruguaio é, como afirma o autor, representativo. No ano em que Alfredo Baldomir foi eleito
presidente do país, tanto o Partido Colorado, vencedor das eleições, quanto o Partido Nacional, eram
representados nas urnas por arquitetos: Alfredo Baldomir e Juan José de Arteaga Herrera. A
municipalidade de Montevidéu também era disputada por dois arquitetos: Jacobo Vásquez Varela e Horacio
Acosta y Lara, eleito. Essa geração, nascida entre os anos 1875 e 1890, esteve empenhada em criar as
associações profissionais, como a própria SAU, da qual eram membros ativos, bem como tomar parte nos
CPAs.

• 6
da cidade de Salta, localizada na província homônima. A representação regional, ou seja,
de instituição não localizadas em Buenos Aires, é um dado relevante para entender e
situar algumas propostas apresentadas por ele longo do evento.
Cada um dos seis temas eleitos pelo comitê organizador para compor a pauta do
congresso de 1940 recebeu trabalhos divididos entre oficiais e especiais.7 Os trabalhos
oficiais, em menor número, elaboravam o tema a partir das diretrizes fornecidas pelo
comitê e eram intitulados de forma homônima a eles. Os trabalhos considerados
especiais, em maior número, abordavam questões específicas, ainda que fossem
circunscritos a cada tema. Guido submeteu “Reargentinização edilícia pelo urbanismo”
como trabalho especial do tema 1, “Os problemas atuais de crescimento das cidades
americanas”. Os dois trabalhos oficiais desse tema foram de autoria de seu colega
argentino Delfín Conway e da delegação uruguaia, Mauricio Cravotto, Eduardo Defey e
Carlos Gómez Gavazzo. Os trabalhos especiais também se concentravam entre delegados
sul-americanos. Três deles eram de autoria da Direção Geral de Obras Públicas do Chile
e sua atuação em diferentes regiões do país, como a zona entre Linares e Bío-Bío, e de
sua Seção de Urbanismo. Além do Chile, a Argentina foi representada por Guido e por
seu colega Fermín. H. Bereterbide, autor de um trabalho sobre o retraçado de quadrículas
para residências e lotes pequenas.
Além do tema dedicado ao crescimento das cidades americanas, Guido submeteu outro
trabalho para o tema 6, dedicado a sistematização do estudo de história da arquitetura
americana, que era debatido a partir de dois eixos: os centros locais de estudos e sua
vinculação permanente, e as orientações e métodos de estudo. A esse tema foram
submetidos dois trabalhos oficiais – dos argentinos Héctor Greslebin e Mario Buschiazzo
e o de autoria dos uruguaios Román Berro, Juan Giuria, Elzeario Boix e Roque Garcia
Blixen. Além deles, foram submetidos mais sete trabalhos inscritos como especiais,
dedicados a questões específicas circunscritas ao tema e considerados pela comissão de
delegados responsável por elaborar as conclusões que constam nas atas, dentre os quais
“Sistematização dos estudos de história da arquitetura”, de Guido.8
Ainda que o foco do presente trabalho seja suas reflexões acerca da articulação entre
urbanismo e nacionalismo a partir do trabalho sobre a reargentinização, os debates sobre
a história da arquitetura americana não são encarados como um tema a parte, mas
entendidos como parte da pauta implementada e disputada nos Congressos Pan-

7
Os seis temas eleitos para o debate em 1940 foram: tema 1: Problemas atuais do crescimento das
cidades americanas; tema 2: A habitação da classe média; tema 3: Concursos públicos; tema 4: Auxiliares
especialistas nas obras de arquitetura; tema 5: Estudos complementares nas escolas de arquitetura; tema
6: Sistematização do estudo da história da arquitetura americana. Além deles, havia um sétimo tema
dedicado a “temas livres” e que reuniu trabalhos diversos sobre a profissão de arquiteto, o ensino de
arquitetura, habitação rural, urbanismo e a relação entre arquitetura e arte (V CONGRESO, 1940).
8
Os demais trabalhos especiais do tema 6 foram: “La restauración del Cabildo de Buenos Aires” e “La
conservación de monumentos historicos y artísticos en América” de Mario J. Buschiazzo (Argentina);
“Arqueografia de la Tambería del Inca (Chilecito, La Rioja, República Argentina)” de Héctor Greslebin
(Argentina); “Reconstrucciones arquitectónicas de monumentos pré-históricos” de Arturo Posnansky
(Bolívia); “El sentido actual de la Arquitectura en el Perú” e “Dos aspectos originales den la Arquitectura
del Perú” de Héctor Velarde (Perú); e “Razón de una moderna Arquitectura hispanoamericana de
inspiración tradicional” de Luis Miró Quesada G. (Perú) (V CONGRESO, 1940, p.422-478).

• 7
Americanos de Arquitetos desde 1920 até, ao menos, a edição de 1940. O interesse em
debater, em um mesmo evento, o crescimento das cidades americanas e o estudo da
história indica como, para Angel Guido, a disciplina histórica embasava os projetos
arquitetônicos e urbanísticos, bem como lhe forneciam repertório para formular suas
visões de futuro para o continente americano.

MONUMENTALIZAÇÃO COMO ESTRATÉGIA NACIONALISTA


Esse enlace entre passado e futuro é explícito em “Reargentinização edilícia pelo
urbanismo”. Guido projeta uma ideia de futuro sobre as cidades do norte argentino a
partir da história do país e da comparação entre essas cidades e a capital, Buenos Aires.
A relação entre as diferentes cidades argentinas e a nação era metaforizada a partir da
imagem da moeda e de seus dois lados. Se Buenos Aires conformava um verso dessa
moeda, talvez o mais conhecido, seu reverso seriam as cidades do norte do país,
notadamente aquelas das províncias em que Guido atuava – Salta, Santa Fé – e onde
nascera – Rosário. Sua análise sobre as cidades argentinas pretende enfatizar as
diferenças entre essas faces da moeda, pontuando os diferentes efeitos que o
cosmopolitismo tem sobre elas: “O anverso, ótimo, magnífico, lógico. O reverso,
desastroso e até fatal.” (V CONGRESO, 1940, p.181).
O cosmopolitismo assumia figurações urbanas em sua crítica por meio do porto,
infraestrutura que materializava o desejo do progresso e um olhar que se colocava
somente para o futuro, deixando de lado o passado, a tradição e a história. Nessa
perspectiva, o porto era definido como não-histórico, uma materialização do mito do
progresso e das imposições internacionalistas pautadas pela economia e pelo progresso,
em detrimento das vontades do espírito e do sonho. A crítica ao progresso cosmopolita,
entretanto, não era feita de maneira universalista, mas direcionada às cidades
consideradas densas em tradição e cultura.
Portanto, diferente de outros trabalhos submetidos ao tema 1 do congresso de 1940, o
arquiteto não buscava delinear uma ideia genérica de “cidade americana”, mas considerar
singularidades entre os diferentes países do continente, bem como as peculiaridades das
cidades argentinas. Buenos Aires conseguira alcançar um perfil pessoal e uma beleza
singular a partir da absorção e superação da “invasão portuária”. A natureza portenha da
cidade conformou o que ele entendia como destino estético imposto pelo geográfico,
etnográfico e histórico: “uma triunfal e graciosa contenda estético-urbana” (V
CONGRESO, 1940, p.185).
Guido se preocupava em demarcar os outros destinos, outras histórias, outras etnografias
e outras geografias. Cidades como Salta, Jujuy, Catamarca, Tucumán, Santiago não eram
cidades portuárias como Buenos Aires e, por isso, não tinham o cosmopolitismo como
índice etnográfico. Os costumes identificados em seus citadinos não eram
internacionalizados, mas pautados pelo telúrico e pela atmosfera espiritual do pampa e
da serra, motivo pelo qual a invasão portuária significava uma violência contra essas

• 8
cidades e ocasionava um profundo prejuízo que sangrava as tradicionais e belas cidades
do norte do país.
Como em outros trabalhos submetidos a outras edições do CPAs, notadamente
Orientación espiritual de la arquitectura en América (III CPA, Buenos Aires, 1927), o autor
mobilizava a história para elaborar sua crítica e delinear seu projeto de futuro ao narrar
e encadear em um processo histórico, um esboço de teoria, para escrever a história
urbana argentina. Os marcos de inflexão seriam a implementação de uma série de
elementos infra estruturais e técnicos a partir dos quais ele prescreve um método de
escrever a história da crise de energia do país pela influência da estrada de ferro. A
“invasão dos trilhos” se iniciara em 1870 em Tucumán, 1870 em Córdoba e em 1889 em
Salta a partir do desejo de progresso pautado pela técnica, símbolo de uma nova ordem
norteada pelo interesse comercial alheio, majoritariamente estrangeiro pelo capital das
empresas estrangeiras, e das transformações urbanas sem qualquer previsão de futuro.
Diferente de Buenos Aires, as cidades do norte argentino não suportaram essa colisão,
que as dividiu em um processo de descolamento da paisagem em relação à história.
A formação histórica dessas cidades divididas pela técnica caracterizava-se pelo avesso
do porto, uma “modelação espontânea” ajustada ao geográfico – ou, em suas palavras,
ao “telúrico-mágico”. A ditadura da técnica motivou a descaracterização desse estilo
considerado regional e destruiu a estética edilícia sui generes do norte do país – “muito
fina, muito melodiosa, com recovas amplas, muros branqueados, com teto de telhas,
pátios sombreados” (V CONGRESO, 1940, p.183) – em nome de uma modernização
uniforme que passava a atribuir valor negativo ao ser provinciano.
Interessa pontuar as diferenças esboçadas no trabalho entre esse processo de
modernização imposto pela equivalência entre técnica e progresso e o caráter moderno
das cidades argentinas e suas arquiteturas. Guido, por meio de seu diagnóstico e projeto
de futuro para as cidades do norte argentino, disputava os significados do moderno e do
funcional. Para ele, as casas coloniais características de Salta e Tucumán seriam
certamente mais frescas, confortáveis e autenticamente mais funcionais do que os
projetos modernistas ou ecléticos defendidos por alguns de seus colegas pan-americanos
nos congressos.9 As casas coloniais previam abrigo às condições locais, enquanto as
demais fracassava sob o sol de 45 graus na sombra. As recovas protegiam o pedestre do
sol e das chuvas tropicais, assim como os tetos de telhas se provavam antitérmicos,
elásticos e econômicos em regiões onde esse material era abundante, como a América do
Sul.
O barateamento das construções se relacionava diretamente aos materiais empregados
para essa finalidade e o sentido regional das habitações e das cidades americanas. A
funcionalidade das casas coloniais estava diretamente relacionada a economia dos
materiais utilizados e da mão de obra empregada: “o teto de telha é regional, com
tradição de séculos. Os trabalhadores são criollos”, situação oposta ao “cinza portland”

9
A arquitetura eclética representava, para ele, o triunfo da fragmentação cosmopolita e o mote para
disputas e uma ferrenha oposição às teses defendidas por seu colega argentino Alejandro Christophersen
(1866-1946) nos CPAs.

• 9
advindo do cimento armado empregado nas construções feitas por trabalhadores
estrangeiros (tchecoslovacos ou alemães) (V CONGRESO, 1940, p.183). Em suma, sua
proposta era deslocar o conceito de funcionalidade e atrelá-lo aos aspectos telúricos,
geográficos, históricos e estéticos identificados nessas cidades.
As mudanças na estética edilícia das cidades argentinas eram sentidas, inclusive, em suas
cores, pela substituição do branco das fachadas pelo “cinza Portland”, fixado como norma
até mesmo em regimentos municipais.10: “O muro cinza portland substituiu a cal branca
das paredes. O parapeito e os telhados de mansarda substituíram o teto de telhas
vermelhas e os arcos protetores de sol e da chuva.” (V CONGRESO, 1940, p.183). Em
síntese, as cidades do norte tinham rompido com seu caráter sumamente interessante,
que bem poderia ter orgulhado os argentinos. Essa ruptura havia incidido sobre valores
históricos, geográficos e espirituais em homenagem a um mal entendido conceito de
progresso.
Todos esses problemas de urbanismo, cuja base estava justamente nas diferentes
formações históricas das cidades do país, seriam sanados por sua proposta de
“reargentinização edilícia progressiva” em prol do patrimônio tradicional e contra os
avanços do cosmopolitismo do porto. Guido se posicionava, mais uma vez, em defesa do
que considerava uma estética tradicional, aplicada, nesse caso à Argentina, mas cuja
potencialidade seria continental.
Sua proposta, apesar de confrontar as posições hegemônicas encontradas nos debates
dos CPAs, ia de encontro às conclusões votadas desde a primeira edição dos eventos ao
eleger o plano como estratégia para remodelação e transformação urbana, ainda que
deslocasse seus sentidos. Encarado de maneira ampliada, o plano de transformação para
as cidades americanas proposta por Guido tinha como objetivo reajustar a arquitetura à
tradição por meio de um programa amplo de ações e intervenções urbanas e
arquitetônicas que iam desde o emprego do estilo neocolonial ou californiano, até a
reabilitação de monumentos históricos de transcendência nacional e remodelação de
praças centrais e centros urbanos. Ainda que entendesse a necessidade de abertura de
novas e grandes avenidas e da remodelação e extensão da cidade com novos bairros para
trabalhadores, ele previa essas transformações de maneira a garantir a manutenção da
fisionomia tradicional das cidades. Essas intervenções deveriam rearticular o tecido
urbano aos elementos geográficos e orgânicos tributários de sua evolução espontânea. O
objetivo final dessa remodelação deveria ser o de tornar a cidade independente das
empresas, do capital e da estética estrangeiras, conformando um nacionalismo edilício
que deveria ser compartilhado pelos países americanos.
Seu projeto moderno não desprezava os pressupostos técnicos, base para as intervenções
propostas, ainda que os aplicasse a uma busca por uma argentinidade e um urbanismo

10
Sem ser específico quanto a essa norma, ele menciona o artigo 85 do Código Municipal de Buenos Aires
que proibia “branquear ou pintar de branco a frente ou as laterais dos edifícios, devendo ser sempre de
cor com tintas esmaecidas”. Guido comenta em parágrafos posteriores que foi obtida a revogação desse
artigo, bem como sancionadas medidas em sentido oposto que garantissem a imposição "estilo neocolonial
ou californiano" em algumas cidades do país (V CONGRESO, 1940, p.182).

• 10
nacionalista ajustado aos materiais e exigências típicas e locais. A nacionalidade era
entendida por ele como construção histórica, mais do que inata ou consanguínea:

Filhos de homens europeus, de sangue diverso, crescem na América em um só espírito, à


mercê da mágica influência do solo e a não menos mágica influência da história. O telúrico
e o histórico, pois, são valores do espírito e, portanto, decisivos na formação do homem.
(V CONGRESO, 1940, p.188).

Era a aposta na história que sanaria os problemas identificados em decorrência da


prevalência de valores materiais internacionais, notadamente o comércio, as indústrias e
o “econômico”. Daí a necessidade de nortear a transformação das cidades pela
organização e hierarquização dos feitos históricos considerados fundamentais à nação,
mobilizados como pressupostos para a criação de uma arte própria e uma política
personalista. Esse deveria ser o sentido da dita monumentalização de edificações
históricas, avenidas e monumentos. Monumentalizar, portanto, seria

colocar no eixo da história autêntica, verdadeira e intergiversável (...). O povo, sem


disciplina histórica (...) deve receber objetivamente a certeira e exata lição da história
pátria ao enfrentar-se com a Casa Histórica de Tucumán. (V CONGRESO, 1940, p.187).

O referido edifício histórico, situado na cidade de San Miguel de Tucumán, ocupa um lugar
de destaque na hierarquia dos fatos históricos relevantes para a nação proposta por
Guido. De maneira simplificada, a casa foi construída em 1760 e é considerada
historicamente relevante por ter reunido delegados de diferentes províncias no episódio
conhecido como Congresso de Tucumán, posteriormente transferido para Buenos Aires
em um processo que culminou na independência argentina em 1816. Guido denunciava
o abandono da edificação histórica e advogada por uma transformação que deveria ir
além de um “melhoramento parcial estético”: “a transformação deve ser enérgica e com
larga visão da justiça histórica a ser dignificada. O tamanho da dita magnificação deve
ser o da dimensão histórica que tem para os argentinos o 9 de julho de 1816” (V
CONGRESO, 1940, p.189).
A monumentalização do edifício histórico deveria ser realizada de maneira articulada ao
urbanismo, especificamente prevendo uma monumentalização da Avenida Central, criada
a partir das disposições do Plan Regulador de Tucumán. Ou seja, Guido previa uma
transformação urbano-edilícia e não entendia a arquitetura de maneira apartada do
desenho urbano. A cidade de Tucumán, ainda segundo ele, não era uma cidade bonita
nem romântica devido as invasões pseudo-modernistas que desviaram seu caráter
tradicional expresso pelas antigas casas brancas de telhados avermelhados e pátios com
vinhas e flores tropicais.
As reflexões de Guido parecem ter tido efeito nos debates e deliberações sobre o tema 1
do V CPA. Nas atas do evento, antes de serem publicadas as conclusões de cada tema, a
comissão fazia considerações que indicavam o percurso dos debates e seus pressupostos.
As considerações sobre o tema do crescimento das cidades americanas pontuavam que
elas eram entendidas como fenômenos que conformam a vida coletiva e o bem estar
espiritual e material dos indivíduos cuja expressão tornava-se fator de ligação entre ele
e a coletividade. As transformações e o urbanismo, portanto, deveriam priorizar um

• 11
equilíbrio econômico, social e cultural ausente na maioria dos países. O diagnóstico local
elaborado por Guido parece ter ganhado relevância e maior amplitude na constatação da
comissão de que devido a perda de harmonia observada nas cidades americanas, tornou-
se latente o problema de composição que descolava as funções materiais e espirituais dos
equipamentos urbanos de uma plástica que se ajustasse as imposições geográficas e
realidades locais. As conclusões, por sua vez, previam a fundação de Institutos Oficiais
Autônomos de Urbanismo e Urbanística para implementar ações coordenadas de
pesquisa, docência e divulgação dos problemas levantados pelos trabalhos a partir do que
consideravam uma visão conjunta de país e região, ou seja, articulando as diferentes
escalas e considerando os problemas locais notadamente enfatizados por Guido. As
demais conclusões visavam fomentar o debate permanente do tema do urbanismo a partir
de reuniões nacionais e de uma Conferência Pan-americana de Urbanismo auspiciada pelo
CPA dada a necessidade de criar uma consciência e cultura urbanística (V CONGRESO,
1940, p.190).
A Casa de Tucumán foi declarada Monumento Histórico Nacional no ano de 1941, um após
o V CPA. Não há bases para afirmar que o trabalho ou a atuação de Guido tenham tido
efeitos para as políticas patrimoniais em relação ao edifício. Mas nesse mesmo ano de
1941, o arquiteto proferiu uma conferência no Salão de Atos do Conselho Deliberativo de
Buenos Aires onde continuou a pautar o tema da monumentalização. A conferência foi
organizada pela sociedade Los Amigos de la Cuidad no dia 25 de abril e na plateia estavam
autoridades municipais e profissionais reunidas em torno de associações como a Sociedad
Central de Arquitectos. O tema, dessa vez, foi a monumentalização da Avenida 9 de Julho,
uma das principais vias da cidade de Buenos Aires.
A fala de Guido é iniciada a partir de um relato de viagens empreendidas por ele ao longo
das décadas de 1920 e 1930 por cidades europeias e estadunidenses, ao passo que o
arquiteto argumentava sobre o efeito dessas viagens em suas concepções urbanas, em
muito alteradas pelas “impressões urbanísticas” de diferentes experiências e pela
formação de um repertório visual que o permitisse cotejar diferentes soluções, projetos
e realidades. As cidades na Europa eram caracterizadas como maduras, fruto de uma
lenta evolução e densa cultura expressa na plástica harmoniosa dos edifícios, no equilíbrio
dos espaços livres, na espontaneidade dos monumentos, nas modernas avenidas. Ele
propõe um contraste entre essas cidades e as cidades (latino)americanas a partir do
estudo de Buenos Aires, jovem e de formação apressada, ausente em tradição
urbanística. Mas, apesar do diagnóstico, o estudo de Buenos Aires não assume tons de
“nostalgia desesperançada”,

antes, ao contrário, é construtiva, estimulante (...). Aquela nostalgia de não possuir as


citadas sistematizações monumentais europeias constituíram o indubitável estímulo que,
teimosamente, me obstina na busca de uma solução monumental digna de Buenos Aires
(GUIDO, 1941, p.9).

Ele se remete a uma série de trabalhos e reflexões elaborados em décadas anteriores,


dentre os quais aquele submetido ao V CPA sobre a Casa de Tucumán, para avançar sobre
o tema e abordar especificamente a Avenida 9 de Julho. Essa gran arteria, segundo ele,

• 12
tem papel central para as dinâmicas urbanas da cidade por condicionar toda a estrutura
edilícia e urbanística da zona central de Buenos Aires. Para entender a formação histórica
da avenida e seu impacto urbanístico, Guido recupera de maneira crítica os debates em
torno da Lei n.8855, aprovada pelo Congresso Nacional em janeiro de 1912 e que criava
a avenida, retomados em 1937 ao ser iniciado o processo de ampliação da via.11 Para ele,
a referida lei não resolvia os problemas técnicos, estéticos, higiênicos nem econômicos,
mas complicava o tráfego de veículos e os nós de congestionamento, bem como a
circulação ao redor da Praça da República. Seu único acerto teria sido prever os
estacionamentos de veículos nas praças subterrâneas. Aos problemas técnicos, somam-
se os problemas estéticos, julgados por Guido de mais difícil solução, que tornam "a maior
avenida do mundo" na “avenida mais feia do mundo”.
Constatados os persistentes problemas, ele propunha sua solução, tal qual no caso da
Casa de Tucumán, em prol de obter eficácia funcional no aspecto técnico;
monumentalização e embelezamento no estético e acomodação legal e ajuste financeiro,
até então não resolvidos. A solução formal seria a de uma avenida em três plantas. A
primeira, no nível mais alto, seria exclusivamente destinada a pedestres, “uma grande
promenade de 33 metros de largura” (GUIDO, 1941, p.12). A segunda, intermediária e a
nível da atual via, destinada aos estacionamentos então situados no subsolo. E a terceira,
no nível inferior, a grande artéria para o trânsito rápido de grandes massas e que
cumpriria a ligação do eixo norte-sul da cidade. Essa inversão que rebaixava o trânsito
para o nível do subsolo e subia o estacionamento para o nível da rua, era justificada em
termos técnicos e modernos pelo menor peso a ser sustentado pelo estacionamento: não
o de veículos pesados, mas o de pedestres e citadinos.
O projeto era defendido pelos pressupostos embasados nas concepções modernas de
urbanismo – trânsito, estética, zooning, economia e financeirização – e pela viabilidade
de sua execução. As soluções advindas dessa concepção moderna foram explicitadas por
ele na conferência. O ‘zooning monumental dirigido” era privilegiado no projeto de Guido,
que critica a ausência desse preceito no Plan Regulador da cidade de Buenos Aires até
então. A separação dos fluxos entre veículos e pedestres, bem como a previsão de
avenidas secundárias, garantiria a solução do trânsito e o tornaria mais ágil e rápido, de
maneira a desafogar a grande massa de veículos que congestionava a principal via da
cidade. A promenade ainda garantiria um “generoso refúgio de paz que bem merece a
população de Buenos Aires enquanto realiza suas tarefas cotidianas” (GUIDO, 1941,
p.11). Essa preocupação com o pedestre seguia a percepção do arquiteto de que o homem
da cidade buscava, cada vez mais, o silêncio e a contemplação. Essa visão romântica do
citadino era anunciadamente inspirada nas ruas e praças de Veneza, aos quais o autor

11
Apesar de não ser o foco do presente artigo, importa pontuar que os debates sobre a promulgação da
referida lei, bem como aqueles sobre as reformas da Avenida 9 de Julho, foram centrais para a elaboração
e disputa em torno das concepções urbanísticas na Argentina na primeira metade do século XX, como
exploram Ramon Gutierrez (2007), Adrián Gorelik (2016) e Adriana Guevara (2019).

• 13
conhecera em suas viagens pela Europa, que resistiam à “força avassaladora e impositiva
da máquina no cotidiano”. Romântica, mas não utópica, como argumentava o arquiteto:

Não se trata de um projeto, nem técnica nem economicamente, utópico. (...) o urbanismo
argentino realizou já o primeiro caminho, o das grandes teorizações. Hoje, é urgente iniciar
o das realizações. Esta Avenida 9 de Julho, moderna, bonita e funcional - e ainda assim
financiável - poderia ser o princípio de uma nova etapa de nosso incipiente urbanismo.
Compreensão, boa vontade e patriotismo seriam as únicas virtudes que deveriam ser
invocadas para que seja uma realidade a tão esperada remodelação urbanística digna de
Buenos Aires (GUIDO, 1941, p.19).

A dignidade do projeto estaria em sua estratégia de hierarquizar e sintetizar a malha


urbana de Buenos Aires, preceito estético que embasava o projeto e iria garantir o futuro
monumental da cidade pautado nas referências sobre a cidade barroca, suas surpresas e
imprevistos, a qual nominalmente Guido traz ao debate.
Havia, no projeto, um destaque para os jogos de água e para esse elemento como um
fator de construção urbanística que articulava estética e higiene. Guido destacava os
efeitos médicos da água, tranquilizante e sedativo, mobilizada no emprego de estruturas
como caídas de água e espelhos d'agua. Ela era entendida como motivo de euforia para
as crianças, meditação espiritual para os homens cultos, evasão para os poetas e refúgio
para os homens da rua”. Por fim, mas não menos importante, ele previa a construção de
quatro arranha-céus que ajudariam a construir uma verdadeira “plástica monumental em
expansão vertical” (GUIDO, 1941, p.28). Mais uma vez, eram entendidas como distintas
as necessidades de Buenos Aires e as demais cidades da Argentina, posto que tal plástica
monumental apoiada na verticalidade não era recomendada ou prevista para Tucumán,
que obtinha sua monumentalidade por outras estratégias e aspectos do projeto urbano.

A RESTAURAÇÃO NACIONALISTA POR MEIO DAS CIDADES


A “monumentalização funcional da avenida 9 de julho”, como era descrita, era entendida
por Angel Guido como o ponto de partida de uma nova política urbanística de
características modernas. Cotejar o projeto para a avenida 9 de julho e o da casa de
Tucumán nos indica como, a partir das mesmas bases teóricas e de maneira a dar relevo
a história nas intervenções urbanas, ele considerava particularidades e diferenças entre
as duas cidades e delineava uma teoria urbanística pautada na monumentalidade
considerada em uma acepção específica.
Suas reflexões e teorias urbanas ganham sentido na medida em que são colocadas em
diálogo com as obras de Ricardo Rojas. Além da centralidade de Euríndia (1924), já
destacada e explorada por María Florencia Antequera em mais de uma ocasião (2017,
2019, 2020), chamo a atenção para como os postulados de La restauración nacionalista
(1922 [1909]) são importantes para a compreensão dos projetos de Angel Guido. Na
obra, também tributária das viagens de Ricardo Rojas a países europeus, há um apelo
para a reestruturação do regime de educação histórica na Argentina em prol do caráter
nacionalista. A restauração proposta pelo literato era traduzida como a solução para o
problema das humanidades modernas e o sistema docente do país em prol de uma

• 14
educação mais cívica (ROJAS, 1922, p.15). Em sua “teoria das humanidades modernas”,
a história teria o papel educativo de promover o exercício da memória, da imaginação e
do juízo, bem como fornecer sugestões éticas e morais para a construção de um futuro,
aspecto aproveitado por Guido nas monumentalizações propostas para as cidades
argentinas.
Rojas nos fornece as chaves para interpretar de que maneiras o nacionalismo era
elaborado nos projetos urbanos e arquitetônicos de Angel Guido. Em La restauración
nacionalista, o literato já valorizava os monumentos por sua capacidade de perpetuar e
materializar a tradição, a ser preservada e passada para as próximas gerações. No livro,
ele toma como exemplos a Casa de Sarmiento e a Avenida de Mayo – índices análogos à
Casa de Tucumán e à Avenida 9 de Julho, trabalhados por Guido – para argumentar em
prol da necessidade de serem produzidas sínteses cívicas por meio da estética
arquitetônica e urbanística (ROJAS, 1922, p.56).
Em seu projeto intelectual, a história deveria ser ampliada em seus alcances e articulada
a diferentes áreas do conhecimento. Nesse sentido, a arquitetura era eleita, tal qual
interpretada por Guido, como arte social capaz de sintetizar emoções e o espírito coletivo
e materializar as formas de uma civilização por seu poder de evocação. Com isso, Rojas
propunha um sistema de ensino que se valia de exigências modernas técnicas, didáticas
e políticas em prol de uma “reação da consciência nacional” frente a sujeição argentina
ao cosmopolitismo que destituía a nação de seu espírito (ROJAS, 1922, p.85).
A busca por uma argentinidade por meio das humanidades era um projeto que deve ser
analisado frente aos debates em voga nas primeiras décadas do século XX. Patricia Funes
(2003) sintetiza algumas dessas balizas ao indicar como o conceito de nação, sobretudo
na década de 1920, deixava de ser um mero adjetivo e passava a ser encarado por seu
conteúdo identitário, idiossincrático e, muitas vezes, essencialista. Rojas encadeia a
literatura, e de maneira geral as artes, a partir de ênfases da história política argentina
em prol da construção de um sistema que legitima uma ideia de tradição calcada em três
momentos de sensibilidades culturais chave para a formação nacional – classicismo do
século XVII, romantismo do século XIX e modernismo do século XX – de maneira a criar
uma chave explicativa moderna para a nação, transformada em conceito que conjuga o
particular e o universal. Guido se vale dessa prática para pensar a arquitetura e as cidades
e, ao publicar sua coletânea Redescubriminento de la América en el Arte (1944) enfatiza
esses mesmos momentos como pontos de inflexão em relação a história da América
(NOVO, 2019). Há, portanto, uma ampliação da ideia nacionalista de Rojas para desenhar
uma geopolítica americana por meio da articulação das diferentes nacionalidades do
continente: “Não se trata mais apenas da Argentina (...), mas de toda a América (...),
considerada como uma pan-nação nascida da mestizaje cultural” (ROJAS, 1951).
Menos do que uma modernidade adjetivada, como propõe Antequera (2019) ao
caracterizar essas propostas como uma “modernidade anti-moderna”, Rojas e Guido
elaboraram e se engajaram em um projeto intelectual moderno situado em seu tempo.
As propostas e projetos para uma orientação espiritual da arquitetura e das cidades
americanas colocada em pauta na primeira metade do século XX indicam as disputas e

• 15
questionamentos plurais, como caracterizou Josianne Cerasoli (2013), sobre o lugar dos
regionalismos e interpretações locais por meio de diferentes linguagens e impulsos
universalizantes dos modernismos nas artes e do repertório técnico-científico expresso
nos diferentes modos de modernização. As tensões produzidas entre essa perspectiva
tradicionalista e outras visões de futuro para a América, menos do que indicar
incongruências ou contradições, reforçam a necessidade do debate como garantia de
difusão dessa pauta em diferentes geografias e latitudes. Como nos lembro Silvia Arango
(2004), entre colonialismos, espanholismos, tradicionalismos e outros “ismos”, eram
todos projetos modernos de se refundar a nação para projetar seu futuro.

• 16
REFERÊNCIAS
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• 17
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ROJAS, Ricardo. Euríndia. Ensayo de estética de las culturas americanas. Buenos Aires:
Losada, 1951 [1924].

• 18
APAGAMENTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO NO CENTRO DA
CIDADE DE PAU DOS FERROS-RN
Relatos do esquecimento da história pau-ferrense
ERASURE OF HISTORIC HERITAGE IN THE CENTER OF PAU DOS
FERROS-RN CITY/ BORRADO DEL PATRIMONIO HISTÓRICO EN EL
CENTRO URBANÍSTICO DE LA CIUDAD PAU DOS FERROS-RN
Historiografia, ideários e regimes de historicidade

LIMA, Lívia Danielle P.


Graduanda; CAU/UFERSA
livia.lima98236@alunos.ufersa.edu.br
MOURA, Marina Cordeiro de
Graduanda; CAU/UFERSA
marina.moura@alunos.ufersa.edu.br
SILVA, Sebastiana Jaqueline Ferreira
Graduanda; CAU/UFERSA
sebastiana.silva@alunos.ufersa.edu.br
RESUMO

Neste artigo objetiva-se apresentar reflexões acerca do apagamento ao longo


dos anos, do patrimônio histórico e cultural do Bairro Central, da cidade de Pau
dos Ferros, localizada no interior do estado Rio Grande do Norte, na região do
Alto Oeste Potiguar. Isso ocorrerá com base no conceito de historiografia, com
foco nos estudos acerca da cultura local e seus cidadãos à partir de relatos,
além da pesquisa voltada para as edificações e todo o contexto urbano de vias
e praças do Centro pau-ferrense, além de destacar o cenário do passado da
cidade e os costumes exercidos por sua crescente população. Dessa forma, foi
utilizado como meio de estudo, em primeiro foco, um apanhado de relatos
populares sobre como se constituíam os edifícios antes das mudanças e como
se deram essas mudanças, assim como, buscar abranger toda a importância
do passado local, pois, é através dele que se encontra a identidade e origens
de uma sociedade.

PALAVRAS CHAVE historiografia; Pau dos Ferros; relatos; origens;


patrimônio.

ABSTRACT

This article aims to present reflections on the erasure over the years, of the
historical and cultural heritage of the central neighborhood of the of Pau dos
Ferros city, located in the interior of the state of Rio Grande do Norte, in the
region of Alto Oeste Potiguar. This will be based on the concept of
historiography, focusing on studies about local culture and its citizens from
their narratives, as well as research focused on buildings and the entire urban
context of roads and squares in the pau-ferrense center, also highlighting the
scenario of the city's past and the customs exercised by your growing
population. In this way, it was used as a means of study, in first focus, a
collection of popular narratives about how buildings were constituted before
the changes and how these changes took place, as well as seeking to cover all
the importance of the local past, because it is through it that the identity and
origins of a society are found.

KEY-WORDS historiography; Pau dos Ferros; narratives; origins; heritage.

• 2
INTRODUÇÃO
A cidade de Pau Dos Ferros, localizada no Rio Grande do Norte, atualmente conta com
uma área territorial de 259,959 km² e uma população estimada de 30.802 pessoas (IBGE,
2021). É uma cidade que desempenha um papel de extrema importância para a região
devido sua localização, definida como “cidade polo” interiorizada, devido a exercer uma
função de intermediação regional, entre as cidades de Juazeiro do Norte - CE e Mossoró
- RN e Campina Grande – PB.
É nesse contexto que o presente artigo insere a análise de como se deu o desenvolvimento
histórico da cidade, e como a falta de ações de preservação patrimonial, aliada a um
constante crescimento da especulação imobiliária, tem contribuído para a
descaracterização de uma das ruas mais antigas da cidade. A urgência do progresso tem
alterado de forma definitiva as características físicas da cidade, sobretudo no que diz
respeito ao seu conjunto edilício, fato que acarreta, em muitos casos, em um apagamento
da história da cidade, que passa por um processo de desconfiguração e demolição de seus
exemplares de edificações históricas.

Historiografia, um breve relato de sua importância


Torres (1996, p. 56-59) define o conceito da historiografia como o registro escrito da
história, englobando atividades de especificação de trabalhos históricos e verificação,
tanto da precisão, quanto da legibilidade desses trabalhos e partindo disso, têm como
principal objetivo produzir o conhecimento histórico de forma fidedigna e estruturada.
Bem como, analisar e contar a história que os seres humanos fizeram ao decorrer do
tempo, além de estudar as mais variadas épocas e estados buscando a compreensão
exata dos fatos ocorridos.
Alguns autores se distinguem ao tentar conceitualizar a historiografia, para Francisco
Iglésias (1972, p. 22-23), funciona como uma produção intelectual, enquanto José
Roberto do Amaral Lapa (1981, p. 18-19) a considera como uma análise crítica do
conhecimento histórico. Sendo assim, ao observar essas diferenças de posicionamento,
podemos notar o englobamento de abordagens para conceituar a história e a
historiografia, além de se evidenciar uma certa atenção dos autores em diferenciar ou
equiparar a história enquanto processo humano e a historiografia, dessa forma, entende-
se que esses dois termos tendem a se diferirem em seus significados, sendo o primeiro
termo, de forma geral, tudo aquilo que está escrito sobre o passado afim de aproxima-lo
com o que realmente aconteceu e o segundo termo, a averiguação das mais apropriadas
maneiras de interpretação de fontes históricas e de como a história foi escrita.

Historiografia: a prática e o discurso historiográfico, isto é, a prática intelectual


especializada (mediada pelo instrumental teórico-metodológico da ciência histórica) que
tem como objeto específico a realidade histórica, em sua integridade estrutural e
superestrutural e seu produto: o conhecimento histórico (ALMEIDA, 1983, p.22).

• 3
Para que a historiografia seja entendida, é imprescindível destacar o passado cultural,
sendo essa a base na qual se molda e parte rumo ao conhecimento estrutural. Desta
forma, é importante evidenciar que existe uma releitura a partir do elo da
contemporaneidade de gerações atuais, ou seja, seres humanos atualizam
cotidianamente a história tomando como partida o dia a dia de uma sociedade, e
consequentemente “reescrevem” a historiografia, destinando novos rumos ao presente e
reformulando o que será criado nas gerações futuras. Levando isso em consideração,
podemos atrelar estes acontecimentos, ao fato do apagamento histórico de patrimônios
históricos, cujo, colabora com o aniquilamento de milhares de edifícios e construções
históricas ao passar dos anos.
É comum que no processo de urbanização das cidades, ocorra a demolição ou modificação
de construções mais antigas, consideradas desatualizadas, com a justificativa de
modernização das cidades. No entanto, atividades como essas, acabam por ocasionar o
apagamento da memória de uma cidade e sua população, além do desaparecimento de
sua cultura popular, onde a mesma, pode se manter viva apenas em relatos e histórias
de moradores sobre como esses lugares se caracterizavam incialmente.

Pau dos Ferros, A Princesinha do Oeste


Devido sua centralidade, Pau dos Ferros, popularmente chamada de a Princesinha do
Oeste, atua influenciando no desenvolvimento das pequenas cidades vizinhas, auxiliando-
as com seu comércio, saúde e educação, e a partir do momento que a cidade nega seu
valor histórico, é temível que as outras cidades próximas também façam o mesmo. Por
este motivo, o presente trabalho possui como ponto focal descrever a historicidade da
cidade por meio de relatos populares, a fim de reafirmar a importância de se manter a
história do passado viva, para que as próximas gerações possam também entender como
se deu o desenvolvimento histórico, urbano, econômico e cultural da cidade. Segundo
Barreto (1987, p. 36-37), o nome Pau dos Ferros, provém de uma grande árvore, que
servia para oferecer sombra aos vaqueiros de passagem pelo local e aproveitavam para
repousa, e acabavam por sua vez à marcar com ferro quente o tronco desta árvore, a
história em todos os relatos é sempre a mesma, tem como divergência apenas se era
uma oiticica ou um jucá.

A data da Sesmaria de Pau dos Ferros foi doada, no ano de 1733, a Luiz da Rocha Pita
Deusdará, Francisco da Rocha Pita, Simão da Fonseca Pita e a Dona Maria Joana, filhos e
herdeiros do Cel. Antonio da Rocha Pita; ditos sesmeiros eram baianos e grandes
latifundiários no Rio Grande do Norte e Ceará. (AQUINO, 2018 - p.7-8)

De acordo com dados da Prefeitura Municipal de Pau dos Ferros, os momentos iniciais, da
civilização pau-ferrense, ocorreram no final do século XVII e início do século XVIII, nas
proximidades dos rios Piranhas e Apodi, e inicialmente o município foi povoado por
indígenas da tribo Cariris/Panatis, vindo das Paraíba, e o desbravamento do território

• 4
aconteceu por meio de sesmeiros, bandeirantes e vaqueiros. Pode-se dizer então que foi
a pecuária um dos principais motivos para a fixação dos viajantes na cidade.
Segundo Holanda (2006, p. 15-17), a evolução de Pau dos Ferros, deu-se desde o início
dos anos 1930, quando era apenas uma pacata cidade interiorana. Já nos anos 40,
começou a receber carroças e automóveis motorizados, assim como, também iniciou
interações econômicas com as cidades ao seu entorno. Obteve seu centenário no ano de
1956, onde foi houve uma grande comemoração local e a criação do seu obelisco, grande
marco da cidade, localizado no centro da Praça Matriz. Atualmente, a Princesinha do Oeste
se caracteriza como um polo urbano para cidades vizinhas no Alto Oeste Potiguar,
concentrando grandes fontes de educação, cultura, comércio e saúde.

O CENTRO DE PAU DOS FERROS, UMA HISTÓRIA QUE SE PERDE


A maior parte do Centro de Pau dos Ferros se caracteriza como um centro comercial, mas
também é o local onde se deu o surgimento da sua história, como relatou Francisca Morais
de Aquino, em seu livro Memória Vivas Memórias:

[...] o grande pioneiro da história do povoado do munício de Pau dos Ferros foi o fazendeiro
FRANCISCO MARÇAL, que, ao ocupar a região em 1733, fundou uma fazenda destinada à
criação de gado e à sua própria moradia.
Assim, em 1738 foi edificada uma capela [...], a capela foi elevada à categoria de matriz
em 19 de dezembro de 1756, com a criação da freguesia de “Nossa Senhora da Conceição”
[...] (AQUINO, 2018, p. 316)

Podemos observar, que o atual centro comercial pau-ferrense tem uma história com mais
de 200 anos, porém como poderá ser observado no decorrer deste tópico, muito já se
perdeu de suas características originais.

A Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição


A ocupação inicial de Pau dos Ferros se deu com a construção de sua primeira capela,
que em 1756 tornar-se-ia matriz da cidade, porém mesmo uma das primeiras edificações
da cidade, teve sua história modificada por diversas vezes, como relata José Edimilson
de Holanda, um dos ex-prefeitos da cidade de como desde sua infância ele presenciou
diversas reformas e “melhoramentos” da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição.

Dos meus tempos de criança até o presente, guardo na lembrança seu primeiro
melhoramento: a construção do seu primeiro forro nos idos de 1936, aproximadamente,
feito de madeira, o qual não resistiu á ação do tempo e a ganância dos cupins.
Outra mudança muito importante realizado nessa mesma época foi a demolição do velho
patamar, [...].
O novo patamar construído é menor e mais baixo, facilitando sensivelmente o acesso tanto
para a matriz como para a rua.
Em frente ao antigo patamar havia também uma grande cruzeiro de alvenaria, [...]. Na sua
demolição foram encontradas algumas ossadas humanas, supostamente pertencentes a

• 5
devotos que foram atendidos nos seus últimos desejos e pedidos: serem sepultados no
patamar da igreja. (HOLANDA, 2006, p. 37)

Figura 1: Fachada Frontal da Igreja


Matriz, na década de 1950. Fonte:
Francisca Morais de Aquino (2018,
p.320)

Figura 2: Fachada Lateral da Igreja Matriz, na década de 1950.


Fonte: Francisca Morais de Aquino (2018, p.320)

A primeira lembrança de modificações de José Edimilson de Holanda, data de 1936, tendo


assim uma lacuna de 180 anos de história da matriz, então levanta-se o questionamento
se durante esses 180 anos não tiveram outras modificações e quais foram elas. Mesmo
assim, a partir de 1936 Holanda não recorda de apenas uma modificação na igreja, mas
sim de diversas, que mudaram drasticamente a sua arquitetura. No ano de 1939, Holanda
recorda da construção dos jardins que circundam as laterais da matriz, feitos com o intuito
de melhorar o visual externo da igreja e seu acesso pelas portas laterais. Já nos anos de
1940 “foi feito o reboco externo das paredes laterais, construídas de tijolos e grandes
blocos de pedra [...]”. (HOLANDA, 2006, p.37), porém foi apenas nos anos de 1960 que
ocorreu uma obra de grande porte, que mudaria de maneira drástica a fachada e interior
da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, sendo a construção de uma das torres,
e também a um erro de interpretação de reformas autorizadas pelo Vaticano que levou a
demolição do altar da igreja:

• 6
Em 1963, uma interpretação errônea das reformas autorizadas pelo Concílio Vaticano II,
levou algumas paróquias, inclusive a nossa, a dilapidar o patrimônio sacro, histórico,
artística e cultural de suas igrejas, demolindo altares seculares, verdadeiras obras de arte
de valor inestimável. (HOLANDA, 2006, p. 39)

Figura 3: Altar-Mor da
Igreja Matriz, demolido em
1969. Fonte: Francisca
Morais de Aquino (2018,
p.320)

Figura 4: Fachada frontal da Igreja da


Matriz, década de 1960. Fonte: Francisca
Morais de Aquino (2018, p. 321)

Mesmo após estas radicais mudança na fachada e interior, os relatos sobre a sua
descaracterização continuam, pois no ano de 1976, José Edimilson de Holanda discorre
sobre outras reformas como a construção de um novo forro e a troca de todo o piso de
cimento “feito em blocos de duas cores, natural e vermelho, com exceção da Sacristia,
[...] cortado em formas de desenhos” (HOLANDA, 2006, p. 38), o piso que o substituiu
eram em mosaico, doado pelo empresário Antônio Florêncio de Queiroz. Neste mesmo
ano, também relata Holanda outra demolição nas dependências da igreja:

[...] foi demolido o coro, local elevado e encravado acima da porta principal, como se fosse
um primeiro andar, que tinha a finalidade de reunir o coral das cantoras que animavam as
missas dominicais e festivais e demais atos litúrgicos com suas músicas sacras, auxiliadas
apenas pelo som de um velho órgão, sem microfones, mas que, no entanto, enchia de
alegria e contrição os corações dos fiéis que ali se encontravam. (HOLANDA, 2006, p. 39)

• 7
Mesmo com todas as mudanças na igreja, a maior reforma teve início no ano de 2012,
por conta dos diversos problemas estruturais, e assim a igreja de distanciou, ainda mais,
das feições que possuía em seus primeiros respiros como Igreja Matriz, com a
inauguração desta grande reforma no dia 09 de novembro de 2015.

Em 09 de novembro de 2015, aconteceu o rito solene de dedicação do novo templo, com


missa presidida pelo Bispo Diocesano, Dom Mariano Manzana. Com essa reforma, o antigo
altar-mor da Igreja Matriz, construído em 1999, foi demolido em 2012, sendo substituído
por ícones litúrgicos, com o “Pantocrator” ao centro. Além da construção da segunda torre
da Igreja [...]. (AQUINO, 2018, p. 321)

Figura 5: Obras e Reformas na Igreja da Matriz.


Fonte: Francisca Morais de Aquino (2018, p.322)

Figura 6: Fachada da Igreja da Matriz, após conclusão das


obras em 2015. Fonte: Francisca Morais de Aquino (2018, p.
322)

• 8
Assim, pode-se notar que apesar do claro carinho da comunidade pela sua igreja matriz,
esta não possui um apego histórico pelo edifício, e entende a maioria de suas reformas
como melhoramentos.

Mercado Público Municipal Antônio Soares de Holanda


O mercado público municipal, que tem o nome oficial de Mercado Público Municipal
Antônio Soares de Holanda, foi construído no ano de 1868, como relata Aquino:

Em 1868 foi construído o mercado municipal, representando, naquele dado contexto


histórico, a modernização do comércio. A construção desse equipamento urbano se
justificou, dentre outros aspectos, pela necessidade de um maior controle sobre os preços
das mercadorias comercializadas, possibilitando o poder público municipal maior
arrecadação de impostos. Além de ponto de comércio, o mercado servia para socialização,
pois à noite funcionava um clube com tertúlias.” (AQUINO, 2018, p. 336)

Figura 7: Mercado Público Municipal, antes da


descaracterização. Fonte: Antônio Medeiros de Dutra (2014)

Figura 8: Interior do Mercado Público, antes


da descaracterização. Fonte: Victor Mendes
(2014)

• 9
Figura 9: Pátio no interior do Mercado
Público, antes da descaracterização. Fonte:
Victor Mendes (2014)

O autor José Jacomé Barreto, explica em seu livro Pau dos Ferros: História, tradição e
realidade (1987, p. 43), que a construção do mercado municipal se deu para desenvolver
comercio no município que antes tinha sua principal economia baseada na agropecuária.
Holanda explica que “naquela época, a nossa feira era pequena, mas já se destacava
como a maior da Região. Limitava-se apenas à área interna do Mercado Municipal [...].
O açougue funcionava aquele local, no lado correspondente à travessa Teófilo Rego”. E
bem como relatado por Aquino (2018, p. 336), o mercado público tinha um viés no lazer
da cidade, principalmente durante as festividades de Natal, Ano Novo e São João:

[...] Na década de 30, época da minha infância, a noite de Natal era uma noite diferente,
de muita alegria e animação. O mercado público (barracão) permanecia aberto durante
toda a noite, destinado à reunião e ao encontro dos amigos, compadres, parentes, jovens,
namorados, casais e até mesmo dos idosos, principalmente as pessoas vindas de zona
rural, desejosas de assistirem à missa do galo, celebrada sempre à meia noite (hora em
que os galos cantam) daí seu nome.
[...] Neste local, o povo aguardava a hora da missa, se divertindo com os entretenimentos
e novidades que apareciam, proporcionando momento de lazer como jogos de azar, roletas,
bancas para vender: miçangas, predas, lanches como café, bolos diversificados, caldo de
cana, aluás e refrescos [...] considerados os refrigerantes da época, além de cachaça e da
cerveja refrigeras em jarras de barro, pois naquela época o gelo e a geladeira não existiam
na cidade. (HOLANDA, 2011, p.25)

As festas do Ano Novo seguiam as mesmas regras do Natal, com o mercado público aberto
durante toda a noite, com entretenimento principalmente para as pessoas da zona rural,
além das festividades dentro do mercado público as ruas pau-ferrenses se enchiam de
alegria quando chegava o horário da meia noite:

Essa era a hora das comemorações: nas igrejas os sinos repicavam; nas ruas, o barulho do
adeus do povo ao ano velho e saudação à chegada do novo ano; no céu, fogos de artificio
cintilavam, misturando a sua claridade com as luzes das estrelas em explosões luminosas,
enchendo de alegria e deslumbramento os corações dos expectadores; (HOLANDA, 2011,
p.26)

• 10
Na época das festas juninas de São João e São Pedro, o mercado tinha grande muita
importância na comemoração, sendo palco de diversos costumes nordestinos, segundo
Holanda (2011, p. 26), a festa muitas vezes era patrocinada por fazendeiros que com o
intuito de homenagear um dos santos, doava uma quantia para que a confraternização
fosse feita e assim uma comissão se encarregava dos preparativos para que o mercado
fosse palco da festa.

Começavam com a celebração do casamento matuto, uma espécie de peça teatral de estilo
jocoso, na qual os participantes usavam roupas e linguajar caipira usados por nossos
antepassados, senhores de engenho e coronéis de outrora, que defendiam com coragem e
valentia o valor da família, seus costumes e preconceitos [...].
Após o casamento havia a dança da quadrilha, muito em voga na antiguidade, hoje
desaparecida. [...] Finalizada a dança o forró tomava conta da festa e durava até o dia
amanhecer. Durante o forró eram servidas as comidas típicas como canjica, pamonha,
milho verde assado na fogueira, cozido, bolo de milho e o pé de moleque e outros, além
dos aluás, que não faltavam, da cachaça e da cerveja para animarem os dançarinos.
(HOLANDA, 2011, p. 27)

Atualmente no Mercado Público Municipal Antônio Soares de Holanda, não se tem mais
festas em seu interior, não se tem mais feira, os costumes mudaram e hoje o mesmo
funciona como local de vendas de itens diversificados, desde roupas até pequenas
lanchonetes, porém estes fecham todos os dias ao fim do horário comercial. Além desta
triste quebra de costume tão bonito de festejar dentro do Mercado Público, o mesmo
passou por uma descaracterização interna e externa, perdendo o seu telhado que era o
responsável pelo seu carinhoso apelido de barracão.

O último grande evento sediado pelo Mercado foi a campanha de vacinação, onde a
prefeitura arranjou todo uma estrutura para atender a população pau-ferrense nesse
angustiante momento de pandemia.

Figura 10: Obra de reforma no interior do Mercado


Público, ano de 2017. Fonte: Francisca Morais de Aquino
(2018, p. 336)

• 11
Figura 11: Fachada do Mercado Público, no ano de 2020. Fonte:
Acervo Memória do Sertão (2022)

Figura 12: Campanha Vacina PDF, no interior do Mercado Público


Municipal, no ano de 2021. Fonte: Prefeitura de Pau dos Ferros
(disponível in: https://www.instagram.com/p/CREm9eHB1OV/)

Grupo Escolar Joaquim Correia


A atual Casa de Cultura Popular Joaquim Correia, outrora conhecido como Grupo Escolar
Joaquim Correia, a primeira escola pública na cidade de Pau dos Ferros, um marco
relatado com beleza pelo poeta Marcelo Cavalcante:

Mil Novecentos e Oito


Começou a construção,
Dois anos depois nasceu
Decreto de criação
E sem ter placa de bronze,
Mil Novecentos e Onze
Houve a inauguração.

Assim o famoso “Grupo


Escolar Joaquim Correia”

• 12
Ganhou o nome de quem
Lutou sem ter cara feia

Pra no seu prédio erguer


O futuro do saber
Por mil gerações e meia. (CAVALCANTE, 2013, p.49-50)

Joaquim José Correia (1848-1928), foi um importante personagem da história da cidade


de Pau dos Ferros, além de ter sido o idealizador da construção da primeira escola da
cidade, foi responsável também pelo Açude 25 de Março, obra de grande importância
para a cidade, dada as secas da época. O Grupo Escolar Joaquim Correia foi uma parte
importante na vida de diversos moradores da cidade, “muitas gerações do século passado
encontraram as luzes do saber, com primeiros passos na educação, geradora de grandes
profissionais corretos espalhados por este país” (FERNANDES, 2002, p. 33)

Grande foi o esforço, o trabalho, a luta de Joaquim Correia para conseguir o seu objetivo,
em virtude das dificuldades e da escassez de recursos da Prefeitura. Teve então de fazer
uma campanha na comunidade, andando de casa em casa, angariando donativos para
terminar a obra, que concluída recebeu o eu nome, como uma homenagem de
reconhecimento pelos grande e relevantes serviços prestados a nossa comunidade.
(HOLANDA, 2011, p. 50)

Figura 13: Grupo Escolar Joaquim Correia, na década de


1950. Fonte: João Bosco Queiroz Fernandes (2002)

O edifício “contava com quatro salas amplas e arejadas e um conjunto de mobílias como
carteiras, birôs e quadros-negros. Anos mais tarde, em 1938, seria instalada uma
biblioteca que continha 800 volumes doados pelo Instituto Nacional do Livro” (NETA,
2011, p.6). O Grupo Escolar Joaquim Correia ofertava inicialmente, no ano de 1911, o
ensino elementar masculino e feminino, tendo como corpo docente os professores:
Orlando Correia e Idalina Curjão, sendo o primeiro também diretor do grupo escolar, em
setembro do mesmo ano foi instalado o ensino infantil misto, porém este deixou de ser
ofertado no ano de 1915.

Em 12 de janeiro de 1915, foi suprimida a modalidade escolar “infantil mista”, passando o


estabelecimento a funcionar sob o regime de escolas isoladas ou escolas reunidas. Em 24

• 13
de junho de 1936 e em 26 de novembro de 1937, foram criados a escola noturna e o curso
complementar, respectivamente, sendo que este último somente foi instalado em 07 de
fevereiro de 1938, e o seu primeiro professor foi o Sr. Manoel Jácome de Lima. (AQUINO,
2018, p.340)

O Grupo Escolar Joaquim Correia, foi onde José Edimilson de Holanda estudou em sua
adolescência e ele relata, que “nos anos trinta, o aluno para ser matriculado no Grupo
Escolar Joaquim Correia, [...] tinha que saber ler, no dizer da época estar desasnado.”
(HOLANDA, 2006, p.73). O mesmo também comenta sobre sua adolescência, já
estudante do grupo escolar, os castigos aplicados aos alunos problemáticos que lá
estudavam, ele discorre que “não existia palmatória, mas vigorava o castigo, aplicado ao
aluno pela professora, sem causar revolta, como ficar de pé com os braços abertos em
cruz ou de joelhos, por um determinado tempo.” (HOLANDA, 2011, p. 18). Relatos como
este mostram o quanto o pensamento foi mudado com o passar dos anos, em diversos
âmbitos inclusive na educação. Apesar destas lembranças, José Edimilson de Holanda
sempre mostra a grande importância que o Grupo Escolar Joaquim Correia teve para o
desenvolvimento educacional do município:

O Grupo escolar Joaquim Correia foi baluarte do desenvolvimento e do progresso da


educação de nossa cidade, palco de aulas brilhantes, cenário de eventos inesquecíveis,
teatro de grandes acontecimentos que marcaram a sua história através dos tempos. Nele
funcionaram vários cursos que projetaram a educação em nosso Município como a criação
na década de 1950 da Escola Normal Rural que preparava professores para as nossas
escolas. Na década de 1960 foi extinta, sendo criado o Colégio Normal de Pau dos Ferros,
o primeiro curso de 2º grau (hoje ensino médio) de nossa cidade. No começo da década de
1980 abrigou o Campus Avançado de Pau dos Ferros da Universidade do Rio Grande do
Norte. Com a modernização e mudança do ensino, o velho prédio perdeu a suas condições
de funcionar como escola. Aproveitaram então a idéia do Padre Sátiro Dantas e do professor
João Bosco Fernandes, transformando o tradicional educandário em Centro Cultural
Joaquim Correia [...]. (HOLANDA, 2011, p. 51)

Figura 14: Atual fachada do Centro Cultural


Joaquim Correia, ano de 2020. Fonte: Victor
Mendes (2020)

O Grupo Escolar Joaquim Correia, não teve apenas importância de ser a primeira escola
pública da cidade de Pau dos Ferros, mas a de ser o precursor em vários âmbitos

• 14
educacionais, e hoje mantém o seu objetivo de educar as gerações futuras, mas agora
na forma de Casa de Cultura do seu município.

A Prefeitura de Pau dos Ferros


O edifício da Prefeitura de Pau dos Ferros, é um dos poucos que ainda conserva suas
feições estéticas originais, desde a época de sua construção, tendo passado por apenas
alguns projetos de revitalização. A mesma foi construída no ano de 1929, pelo primeiro
prefeito eleito na cidade de Pau dos Ferros, o Sr. Francisco Dantas, prefeito este muito
prestigiado em diversos relatos, pela sua luta e amor pela cidade de Pau dos Ferros, um
dos feitos mais conhecidos deste prefeito é citado por Holanda, um fato que ocorreu no
dia da inauguração da primeira praça da matriz, no ano de 1941:

[...] entre as autoridades presentes se encontrava o primeiro prefeito do nosso Município,


eleito em 1929, o Sr. Francisco Dantas de Araújo. Em seu discurso falou das dificuldades
da Prefeitura no seu tempo e lembrou, como marco de sua administração, a construção da
atual sede de nossa Prefeitura, que ainda hoje enfeita a Av. Getúlio Vargas com a
imponência e a beleza do seu estilo arquitetônico. Disse na sua fala que o referido prédio
tinha sido construído com recursos próprios do Municipio e que para termina-lo teve de
investir dinheiro do seu próprio bolso, porque os recursos de que dispunha a Prefeitura
eram insuficientes para a conclusão da obra. (HOLANDA, 2011, p. 57)

Figura 15: Prefeitura de Pau dos Ferros, no ano


de 1929. Fonte: Francisca Morais de Aquino
(2018, p. 359)

A prefeitura pau-ferrense foi palco de eventos políticos, e também de lazer para a


população no século passado, quando a realidade de entretenimento da cidade era
escassa para a população, que segundo Holanda (2011, p. 29) é antes do ano de 1956.

Antes de 1956, as festas sociai locais limitavam-se a realização dos tradicionais bailes
familiares, que ocorriam nas residências das nossas melhores famílias [...].

• 15
Em se tratando de festas mais populares cujo universo fosse mais abrangente, eram
realizadas no barracão do Mercado Público Municipal ou nos salões da Prefeitura Municipal.
(HOLANDA, 2011, p.29)

Figura 16: Fachada da Prefeitura de Pau dos Ferros no ano de 2019. Fonte:
Prefeitura de Pau dos Ferros (disponível in:
https://paudosferros.rn.gov.br/index.php)

Atualmente a mesma perdeu esse antigo costume de anfitriã das festas populares, mas
segue imponente com a mesma fachada que tinha em seu ano de inauguração recebendo
apenas, quando necessário, pequenas reformas de manutenção.

A Praça da Matriz, uma praça, muitos nomes e formas


A Praça da Matriz, possui atualmente o nome oficial de Praça Monsenhor Caminha, mas
este mesmo local, está enraizado na história do município desde muito cedo, segundo
Holanda (2011, p. 57), até o final da década de 1930 o termo Praça da Matriz se referia
ao o nome da principal rua da cidade, onde se situavam comércios e diversas residências.

No final da década de 1930 a principal rua de nossa cidade, chamada Praça da Matriz,
embora não existisse praça, era uma rua ampla, sem calçamento, arborizada na época do
inverno com vegetação natural, muçambê e velame. (HOLANDA, 2011, p. 57)

Foi apenas no ano de 1941, na gestão do então prefeito Sr. Francisco Fernandes de Sena,
que a ideia de construção de uma praça surgiu, está praça inserida ao lado do Mercado
Público Municipal, porém Holanda (2011, p.57) explica que a mesma era apenas uma
pequena praça, que se estendia nas adjacências do mercado, entre duas travessas, com
uma dúzia de bancos e sem vegetação, porém mesmo assim, a singela praça não deixou
de atrair a população.

[...] Neste local singelo, todas as noites, se reuniam amigos, os casais, os namorados, até
mesmo o idosos que gostavam de assistirem às tradicionais retretas, nos finais de semana,
tocadas pela banda de música municipal, no horário de 19:00 às 21:00 horas, pois, naquele
tempo a energia elétrica era a motor e funcionava das 18:00 às 21:30 horas. (HOLANDA,
2011, p.57)

• 16
Após a inauguração a praça passou a fazer parte da rotina da população e seus festejos
e por conta disto no final da década de 1940, o então prefeito Licurgo Nunes, adicionou
ao local um novo e importante equipamento, o Pavilhão Municipal, porém o mesmo só
entrou em funcionamento na gestão seguinte do prefeito Dr. José Fernandes de Melo, que
continuou os melhoramentos da praça.

[...] Nessa época foi feita a arborização da Praça com o plantio de aproximadamente uma
dúzia de árvores, chamadas fícus-benjamim, que também foi usada para fazer a primeira
arborização geral das ruas de nossa cidade. Este trabalho se deveu à dedicação e à
persistência do vice-prefeito da época, o Sr. José Guedes do Rego, que cuidou ele próprio
de preparar as mudas para a realização da campanha de arborização. (HOLANDA, 2011,
p.57-58)

Figura 17: Pavilhão Municipal, na década de


1960. Fonte: Antônio Medeiros de Dutra

O professor Victor Mendes relata os locais que aparecem na imagem acima, Figura 17,
assim como a história por trás do registro deste momento:

Centralizado na foto, está o Pavilhão Cônego Caminha, na Praça da Igreja da Matriz. No


lado direito da fotografia, está o Mercado Público Municipal Antônio Soares de Holanda. Ao
fundo da fotografia, o prédio que tem o primeiro andar (o único da rua em 60-70) era o
Cine São João. Para conseguir o registro, Toinho Dutra precisou pagar uma “rodada” na
Roda Gigante, que estava no período das festividades da Padroeira em dezembro.
(MENDES, 2020)

Após a construção do Pavilhão Cônego Caminha, um outro acontecimento ocorreu no


terreno onde hoje encontra-se a Praça da Matriz, em 1956, ano do centenário da cidade
e bicentenário da paróquia, foi inaugurado o Obelisco, um monumento comemorativo da
história pau-ferrense até os dias atuais.

O ano de 56,

• 17
Era de festividade,
Neste mesmo ano foi
Feito em genialidade
Uma obra do divino,
O lindo e perfeito hino
De nossa simples cidade.
[...]
Neste belo ano aqui,
Aconteceu grande glória,
Que para sempre o município,
Marcou na sua memória,
Sem remover nem um trisco,
Pois nosso grande Obelisco
Nasceu qual marco na história. (CAVALCANTE, 2013, p. 78)

Segundo Holanda (2006, p. 23), o Obelisco foi inaugurado no dia 14 de dezembro de


1956, projetado pelo o arquiteto Souza Lelles na cidade de Natal, a sua forma e tamanho
transformaram a obra feita por José Florêncio de Queiroz, mestre de obras pau-ferrense,
em um marco do centenária do município e bicentenário da paróquia, a construção desse
importante Obelisco foi feita sem cobrança pela a mão de obra, o local onde o mesmo foi
construído no ano de 1956 não possuía o atual empraçamento, era apenas o largo da
praça da Matriz, porém a comemoração desse acontecimento deixou o largo conhecido
como largo do centenário.

Figura 18: Festa do Bicentenário da Paróquia de


Pau dos Ferros e inauguração do Obelisco, no dia
14 de dezembro de 1956. Fonte: Francisca Morais
de Aquino (2018, p. 329)

Após a inauguração do Obelisco na Praça da Matriz, Holanda (2011, p. 58) relata que não
houve outras reformas ou melhoras significativas no espaço até a década de 1970 e que
com o crescimento da cidade surgiram novos problemas estruturais nos arredores da
praça, como trânsito e falta de espaços de estacionamento. Assim, no ano 1972, o então
prefeito Zé Holanda decidiu construir uma nova praça, que comportasse o crescimento
urbano da cidade, sendo chamada de Praça do Centenário.

• 18
[...] O projeto foi executado pelo arquiteto, Assis Amorim, atualmente juiz de Direito
aposentado, que aqui exerceu por alguns anos, o cargo de juiz de Direito de nossa Comarca.
A nova Praça, grande, bonita, moderna, bem arborizada com canteiros de flores e de rosas,
além de árvores de grande porte, entre elas uma muda de Pau Brasil, chamava a atenção
de todos. (HOLANDA, 2011, p. 58)

A ideia da praça de José Edimilson de Holanda não tinha importância apenas para o
crescimento da cidade, mas segundo Cavalcante (2013, p. 81) a mesma quando
inaugurada tinha gravado em seu palco uma frase de luta e repúdio a ditadura, e esta
frase mostra qual corajoso foi o Sr. Zé Holanda, pois ele foi o único em todo Rio Grande
do Norte, se opôs a ditadura.

Os anos se passaram e a bonita e grande Praça do Centenário teve o mesmo destino da


pequena e singela Praça do Prefeito Francisco Fernandes de Sena. Os prefeitos que
sucederam não cuidaram, não conservaram a sua beleza, transformaram-na em ponto
comercial, cheio de barracos, cigarreiras e botecos, onde dominavam a desorganização e a
sujeira, retirando dela a função e a finalidade de oferecer e promover o lazer para o povo.
(HOLANDA, 2011, p. 59)

Figura 19: Palco da Praça do Centenário, ano


desconhecido. Fonte: Francisca Morais de Aquino
(2018, p. 330)

O relato de José Edimilson de Holanda apresenta uma, de certa forma, emocionada visão
do que a praça se tornou com o passar dos anos, porém o professor Victor Mendes relata
sentimentos bem distintos em relação as suas memórias da já não existente Praça do
Centenário. Mendes (2020) explica que importantes monumentos, tanto naturais quanto
artificiais, foram apagados da história do centro do município com a modernização da
antiga Praça do Centenário, um destes exemplares sendo o importante palco que tinha,
em aço inox, a frase do poeta Castro Alves, “A praça é do povo, como o céu é do condor”,
que representava o repudio do governo do ex-prefeito José Edimilson de Holanda, à
ditadura, este pequeno palco era local de várias atividade comunitárias, que iam de
atividades religiosas à políticas. Mendes (2020), ainda relembra do que era conhecida
como “pracinha dos taxistas”, local onde, os mesmos, ficavam aguardando por algum
passageiro, “descansando em cadeiro de ferro e fitilho embaixo de árvores
cinquentenárias (que foram derrubadas)” (MENDES, 2020). O professor Victor Mendes
lembra a Praça do Centenário como o cenário típico de uma cidade interiorana, com seus

• 19
ladrilhos hidráulicos coloridos, barzinhos populares e com grandes árvores antigas, que
chamavam a população para usufruir o seu espaço.
Esse é um ponto importante na forma como a população vê a sua cidade e como os
políticos a veem. Porém as modificações na praça não pararam, pois no ano de 2009 o
então prefeito Leonardo Rêgo, teve a iniciativa de criar uma nova praça, esta que seria
denominada como Praça Monsenhor Caminha, com a configuração espacial que se
mantem até os dias de hoje.

O projeto da mesma foi executado pela Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal


do Rio Grande do Norte, através de seu Reitor Dr. José Ivonildo do Rego, pauferrense que
muito vem ajudando a sua terra natal.
Em 27 de junho de 2009 o Prefeito Leonardo Rêgo, entregou aos pauferrenses a nova e
bonita Praça, com a realização de uma grande festa. (HOLANDA, 2011, p. 59)

Atualmente a Praça Monsenhor Caminha continua sendo conhecida como Praça da Matriz
por seus moradores, dada a importância que a área desde seus primórdios, e hoje
apresenta canteiros com vegetação, seus pequenos quiosques complementam o
mobiliário urbano, junto com os bancos, lixeiras, postes, e o obelisco. A noite a praça se
torna local de prática de atividade física, com moradores caminhando ao seu redor, mas
sem nenhum atrativo que faça a população a utilizar como local de encontro como
antigamente. O antigo palco com sua frase de luta contra a ditadura, já não existe, o
pavilhão está lá sem estar, pois o mesmo foi desconfigurado e transformado em banheiros
públicos, e esta é a realidade da atual Praça da Matriz.

Figura 20: Imagem aérea da Praça Monsenhor Caminha, 2015.


Fonte: Franskin Leite (2015)

A cidade de Pau dos Ferros, possui uma história rica em diversos aspectos, tanto culturais,
como arquitetônicos, por mais que estes em sua maioria estejam apenas na lembrança
dos mais antigos moradores. Porém, a cultura sertaneja, mesmo que com as diferenças
da modernidade permanecem de alguma maneira no subconsciente da população, o amor
pela padroeira da cidade e sua paróquia permanecem, mesmo que este carinho não se

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estenda a história do edifício da Igreja de Nossa Senhora da Conceição. A cultura de ir à
praça permanece, mesmo que não seja na praça que foi ponto de encontro de toda a
população em seu passado, as festas sociais já não acontecem no Mercado Público ou nos
salões da Prefeitura, mas ainda acontece em suas vias, seja durante a FINECAP (Feira
Intermunicipal de Educação, Cultura, Turismo e Negócios do Alto Oeste Potiguar), ou nas
festas em homenagem a Nossa Senhora da Conceição. A cultura permanece enraizada
no povo, porém o entendimento de onde veio estes costumes, se perdem na história.

CONCLUSÃO
O município de pau dos ferros, tem uma história de mais de 250 anos, onde muitas
memórias foram criadas e esquecidas, fazendo com que seja reafirmada a importância e
a necessidade urgente de se manter a história do passado da Princesinha do Oeste viva,
para que as próximas gerações saibam como ocorreu seu desenvolvimento histórico.
Muitos exemplares arquitetônicos foram perdidos com o tempo, e hoje se tem apenas
relatos das suas feições e dos seus usos, porém por mais que a perda arquitetônica seja
dolorosa, é imprescindível pontuar que estas não foram as únicas e maiores perdas, pois
costumes e acontecimentos também foram sendo apagados na atualidade.
Realidade que é ainda mais visível no bairro Central do município, que foi o palco do
nascimento da cidade e também de muitas memórias para a comunidade, a corrida pelo
progresso é o principal responsável pelo apagamento histórico no centro pau-ferrense,
pois locais importantes, com histórias e lembranças, foram esquecidos e as novas
gerações as vezes acabam por não terem sequer conhecimento de sua anterior existência,
como é o caso do primeiro e único cinema da cidade, o Cine São João, que existe apenas
na memória das pessoas que viveram naquela época, o mesmo ocorreu com o famoso
CCP (Clube Centenário Pau-ferrense), que foi palco de grandes carnavais e festas na
juventude dos moradores, entre as décadas de 1960 e 1970. Não são apenas edifícios
que se perdem, alguns acontecimentos importantes que moldaram a comunidade pau-
ferrense também hoje está presente apenas nos relatos, sejam eles acontecimentos
políticos, violentos ou engraçados na história da comunidade, já não há festa no salão da
prefeitura ou no antigo “barracão”, a praça já não é do povo, como o céu é do condor,
não se tem seresta no pavilhão, ou muito menos uma pequena Igreja Matriz, que já
deixava o povo feliz, o progresso apagou todas essas memórias. E é por tais ocorrências
que o registro da historiografia tem a importância de guardar estes momentos, fazendo
assim que as gerações futuras, tenham a oportunidade de entender e apreciar a história
que os antecederam e moldaram a sua cidade.

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REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Marlene Medaglia. Introdução ao estudo da Historiografia Sul-Rio-
Grandense: inovações e recorrências do discurso oficial (1920-1935). Porto Alegre:
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1983. Dissertação de Mestrado.
AQUINO, Francisca Morais de. et al. Memórias... Vivas Memórias: Genealogia.
Autobiografia. Pau dos Ferros/RN. Pau dos Ferros/RN: Queima-Bucho, 2018. Cap. 10. p.
311-379.
BARRETO, José Jácome. Pau dos Ferros: História, tradição e realidade. Pau dos Ferros/RN.
1987.
CASCUDO, Luís da C. Nomes da Terra: Geografia, História e Toponímia do Rio Grande do
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CAVALCANTE, Marcelo. Pau dos Ferros à sombra da oiticica. Natal: Offset, 2013. 140 p.
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https://anpuh.org.br/index.php/documentos/anais/items/1-anais-simposios-anpuh.

• 22
APONTAMENTOS SOBRE URBANISMOS INSURGENTES E O DES-
PENSAR A HISTORIOGRAFIA DO ESPAÇO
NOTES ON INSURGENT URBANISM AND UN-THINKING THE
HISTORIOGRAPHY OF SPACE
NOTAS SOBRE EL URBANISMO INSURGENTE Y EL DES-
PENSAMIENTO DE LA HISTORIOGRAFÍA DEL ESPACIO
Indicação do artigo a um dos 4 eixos temáticos: Cidade, política e
cultura

OLIVEIRA, Chrys de Araújo


Mestranda em Arquitetura e Urbanismo; Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e
Urbanismo da Universidade Federal da Bahia – PPGAU/UFBA
chrysoliveira@ufba.br

—ELIMINE AS INFORMAÇÕES ACIMA E QUEBRE ESTA PÁGINA—


RESUMO

Este artigo se propõe a compreender que o pensar ocidentalizado, baseado


em experiências eurocentradas de validar as ciências e filosofias, acaba por
distanciar uma visão poética sobre o espaço urbano, de modo que, nesse
campo de discussão, se faz perder o imaginário poético de subjetividades
diferentes que se encontram em territórios distintos. Isto é, se aposta que a
construção historiográfica da arquitetura e urbanismo que, via de regra, é
ensinada de forma a legitimar alguns espaços, relega à pontualidade a
discussão de urbanismos insurgentes e de resistências territoriais. Nesse
sentido, por meio de uma revisão teórica sobre como se constrói uma
epistemologia do pensar e sobre a colonialidade do poder que hierarquiza
diferentes sociedades, conjuntamente com uma análise de campo de um
território insurgente – o ribeirinho da Amazônia – este artigo tem como
objetivo vislumbrar como as urbanidades não-hegemônicas são colocadas a
margem na discussão do urbano, sobretudo por não se encaixarem no ideal
do planejamento urbano formalizado. A pesquisa de campo contribuiu para
demonstrar que as cidades podem ter diferentes imagens, principalmente
quando se pensa uma urbanidade amazônica. Ademais, a conceituação de
uma poética urbana contribui a olhar estes espaços insurgentes com mais
cuidado e tensionar o debate que visa des-pensar o urbano que secularmente
é discutido pela historiografia da arquitetura.

PALAVRAS CHAVE Amazônia ribeirinha; Urbanidade amazônica; urbanismo


insurgente; urbanismo decolonial; historiografia urbana.

ABSTRACT OU RESUMEN

This article intent to understand that the westernized thinking, based on


Eurocentric experiences of validating sciences and philosophies, ends up
distancing a poetic view of urban space, so that, in this field of discussion,
makes the poetic imagination of subjectivities that are found in different
territories to be lost. That is, it is believed that the historiographical
construction of architecture and urbanism, which, as a rule, is taught in order
to legitimize some spaces, relegates the discussion of insurgent urbanism
and territorial resistance to punctuality. In this sense, through a theoretical
review on how to build an epistemology of thinking and on the coloniality of
power that hierarchizes different societies, together with a field analysis of an
insurgent territory - the riverside of the Amazon - this article aims to glimpse
how non-hegemonic urbanities are placed on the sidelines in the urban
discussion, above all because they do not fit into the ideal of formalized
urban planning. The field research contributed to demonstrate that cities can
have different images, especially when considering an Amazonian urbanity.
Furthermore, the conceptualization of an urban poetics helps to look at these

• 2
insurgent spaces with more care and tensionate the debate that aims to un-
think the urban that has been discussed for centuries by the historiography of
architecture.

KEY-WORDS OU PALABRAS-CLAVE Amazon Riverside; Amazon Urbanity;


Insurgent urbanism; Decolonial urbanism; Urban historiography.

—QUEBRE ESTA PÁGINA—

• 3
INTRODUÇÃO
Dividido em duas partes, este artigo visa tensionar como os saberes, ciências e
filosofias são construídos até os dias atuais por uma compreensão de mundo baseada
na centralidade europeia. Isto é, considerando Europa como centro de um
conhecimento hegemônico, outros modos de vida, outras formas de pensar e, por
consequência, outras territorialidades, são relegadas à margem de determinadas
discussões.
Para delinear esta compreensão, entende-se então que há uma necessidade de des-
pensar a historiografia construída até o presente momento, não negando o que foi
levantando até aqui, mas sim tensionando a forma como esse conhecimento de mundo
foi absorvido e validado pelas mentes colonizadas, sobretudo por meio das
hierarquizações geopolíticas e históricas coloniais que destituíram territórios de suas
próprias subjetividades para assimilar uma percepção de mundo eurocentrada.
Portanto, o desdobramento proposto por este artigo pretende costurar ideias sobre um
saber consolidado por essas bases coloniais com suas ferramentas de manutenção
cotidiana e, sobretudo, científica, e entender como isso influencia na construção de uma
historiografia que afasta a discussão de espaços insurgentes no campo do urbano.
Nesse sentido, o des-pensar surge como forma de organizar uma descolonização do
letramento tido sobre o mundo, tensionando a historiografia na forma como foi
construída e consolidada. Compreende-se aqui que é salutar ”desaprender” a lógica que
comumente se pensa as subjetividades, vislumbrando que o des-pensar não é rejeitar
tudo o que foi construído de saber no mundo, mas de encontrar no processo do pensar
poético, linhas que narram esta outra forma de pensar. Para isso, utiliza-se de Denise
Ferreira da Silva (2019) como ponto de partida, juntamente com Humberto Maturana
(2001) que explicam como funciona a cognição humana no sistema-mundo moderno em
que vivemos, assim como apontam o que fundamenta as ciências e suas validades.
Dito isto, percebe-se que a colonialidade faz a manutenção de uma compreensão
moderna de mundo e que, por meio de ferramentas de violência epistêmica, como a
categorização de raça e de identificações dos sujeitos no mundo, ignora determinados
indivíduos e anula suas subjetividades, colocando o sujeito europeu como centralidade
do mundo e colocando às margens sociedades que se constroem fora do campo de
cognição ocidental, que tem seus modos de vida dentro de outra cosmopercepção.
Ainda, como aponta Ailton Krenak (2020, p. 11) “a ideia de que os brancos europeus
podiam sair colonizando o resto do mundo estava sustentada na premissa de que havia
uma humanidade esclarecida que precisava ir ao encontro da humanidade obscurecida”.
Nesse sentido, se sustenta, então, a ideia de que os lugares fora da Europa precisavam
ser colonizados e adentrar o âmbito do desenvolvimento legítimo.
As compreensões da colonialidade e colonização epistêmica são trazidas neste estudo
para se colocar em pauta as urbanidades insurgentes existentes, mas ignoradas dentro
da historiografia urbana. Pensa-se então uma comunidade ribeirinha da região norte do
país, a fim de se enxergar que há diferentes modos de vida e arquitetura que pouco são

• 4
discutidos no campo do urbano, uma vez que não se encaixam nas concepções formais
de planejamento do espaço.
É por essa lógica que se encontram, também, nas perspectivas indígenas os fios que
contribuem a tecer a ideia do des-pensar. Com Ailton Krenak (2020) e Davi Kopenawa
(2015), vislumbra-se a possibilidade de outras comunicações no mundo em que
vivemos, potencializando outras formas de observar o mundo e cria-lo, colocando em
foco uma noção de vida para além das compreensões modernas desenvolvimentistas e,
sobretudo, criticando as concepções do “povo da mercadoria, como aponta Kopenawa.
Seguindo essa ideia, pretende-se chegar às vivências de beira de rio, onde encontro
potência para des-pensar o mundo moderno hegemônico e compreender como os
corpos ribeirinhos do extremo norte do Brasil se movimentam, ou não, em conjunto
com a natureza e com a construção cotidiana de um espaço não hegemônico.
Destarte, a intenção deste estudo não se encontra na proposição de respostas aos
problemas historiográficos do urbanismo, mas, sim, é pautado na necessidade de
vislumbrar uma cosmopercepção de mundo que se aproxime mais de epistemologias do
sul e das urbanidades não-hegemônicas brasileiras.

DES-PENSAR O URBANO E VISUALIZAR O SENSÍVEL


Para des-pensar a história do urbano, precisa-se, primeiramente, se ter em mente que
a construção do espaço como hoje conhecemos perpassa o pensar de um planejamento
pragmático que se enraizou na teoria e história do urbanismo e se consolidou nas
cidades com conceitos do que seria ideal para uma estruturação urbana. Em
contrapartida, essas concepções arraigadas sobre um modo “correto” de fazer cidades
destituíram o urbano de seu aspecto sensível e subjetivo, uma vez que a prática do
planejamento se consolidou com seus modos de fazer considerados válidos,
principalmente a partir do período moderno com a Carta de Atenas 1.
Visando então ampliar o campo de discussão do urbano para uma prática sensível de
fazer cidades, empresta-se de Denise Ferreira da Silva (2019) o que ela compreende
como uma concepção de poética, negra e feminista2 do discurso moderno, em uma
tentativa de diluir, neste trabalho, a constante percepção de um sistema-mundo
baseado em lógicas racionalistas, e até cartesianas, que diluem a validade de outros
modos de pensar a existência humana e que, por consequência, se engendram também
na natureza e no espaço.
Isto é, utiliza-se a autora como ponto de partida para entender a necessidade de des-
pensar as formas pelas quais se enxerga o sistema de aprendizado sobre o mundo e

1A Carta de Atenas foi um manifesto produzido no IV Congresso Internacional de Arquitetura


Moderna em que discutia as funções básicas para uma cidade, o que ocasionou uma
generalização nos modos de produzir o espaço urbano.

2 Utiliza-se nesta pesquisa apenas a concepção de poética, uma vez que o artigo não tem a
intenção de se aprofundar em uma temática racial e feminista propriamente dita.

• 5
vislumbrar que as subjetividades e diferentes culturas geram distintas formas de
experimentação no espaço urbano, tornando necessária uma visão sensível do espaço.
Junto a isto, é essencial apreender que o apagamento de subjetividades tem sua base
fundante no colonialismo e em suas imposições hierárquicas sobre os sujeitos, a
natureza e os modos de vida, de modo que o urbano também se consolida sobre esta
estrutura de imposições de um indivíduo sobre o outro.
É neste sentido que em seu texto Em Estado Bruto, Denise Ferreira da Silva busca na
arte o ponto de partida em sua discussão, criticando a forma kantiana de conceber e
avaliar o mundo. Ressalta-se que a autora constrói sua crítica visando a arte como
campo de análise, porém o movimento pertinente se encontra na descolonização do
letramento que nos faz enxergar o mundo sob lentes colonizadas. Ao investir em uma
poética negra e feminista, a autora faz, também, uma reflexão sobre o corpo que se
coloca no mundo frente a concepções hegemônicas (SILVA, 2019).
O que isso tem a ver com o urbano se encontra, então, no des-pensar dos moldes
coloniais de construção das cidades. Em outras palavras, pensar diferentes
subjetividades urbanas é vislumbrar o equívoco colonial e historiográfico de tentar
encontrar um denominador comum para o planejamento urbano de diferentes
territórios, com diferentes sensibilidades culturais, com distintas características. A
homogeneização dos espaços é esta ferramenta que tensiona e faz perder de vista,
portanto, as potencialidades de territórios construídos sob lógicas contra-hegemônicas;
como exemplo, atualmente muito se fala sobre comunidades periféricas, quilombolas,
tradicionais e ribeirinhas que existem de modo insurgente frente às noções
modernizadoras do espaço (HAESBAERT, 2004).
Seguindo este pensamento, o que torna esses espaços insurgentes é, sobretudo, a
capacidade de resistir e re-existir, como coloca Haesbaert (2004), às dinâmicas de
poder e dominação que tangem a leitura que legitima espaços formais, pautados nas
concepções do ideal, e o que não é adequado enquanto produção territorial, construindo
espaços que são preteridos e permeados, principalmente, por uma colonialidade
epistemológica existente no campo do urbanismo, constituída fundamentalmente no
norte global e erigida sob uma ótica europeia de se fazer arquitetura e urbanismo.
Portanto, a crítica em questão mira na construção ideológica de mundo que é
constantemente pautada em uma experiência eurocêntrica, colocando às margens
determinados territórios, saberes e modos de vida (LANDER, 2005).
Ao dizer isso, não se pretende ignorar as relevantes contribuições do lócus do
conhecimento moderno que é a Europa, mas pretende-se aqui apontar que o olhar
eurocentrado, e colonizado, gera um distanciamento na discussão sobre outros
territórios e formas de viver além das formalidades urbanas disseminadas pelas
experiências europeias, de cunho moderno, o que remete a um cotidiano colonial e
hierárquico de formas de existir. Como aponta Aníbal Quijano (2005) é sob este
prospecto da colonialidade, enquanto ferramenta de manutenção de um poder
hegemônico que se criaram bases fundantes para que determinadas comunidades e
povos passassem a ser vistos sob um viés de rejeição ou estigmatização. Sobretudo, a

• 6
lógica de progresso, como desenvolvimento linear, vinculada a uma construção social
civilizatória, se criou bases para consolidar ideias de “atraso” de diferentes sociedades e
urbanidades.
Nesse sentido, Denise Ferreira da Silva (2019) propõe a decomposição, o esquecimento,
que visa à diluição da compreensão de mundo colonial que constantemente rejeita
essas subjetividades e, com isso, também se mantém escravizando corpos e,
sobretudo, subjugando outras noções de mundo, principalmente de uma forma racial
que se engendra para além do corpo, mas também adentra o campo do simbólico de
uma vivência racializada que pode se transpor para o urbano. O des-pensar o mundo
colonial, para além do campo da arte é, para a autora, questionar as ferramentas
jurídicas de manutenção de poder e o letramento, ou forma de pensar, do sistema-
mundo colonial. A autora aponta, então, a descolonização desse imaginário dizendo
que:

Em outras palavras, a matéria torna-se disponível a interpretações poéticas, ao tipo de


re/de/composição que não mobiliza os pilares onto-epistemológicos do pensamento
moderno, a saber, a separabilidade, a determinabilidade e a sequencialidade (SILVA,
2019, p. 47).

Com essa ideia em vista, a autora critica o ideal de humanidade em Kant, que situou a
racialidade, uma ferramenta colonial, fora do campo do ideal e, por isso mesmo, Silva
(2019) aposta na poética negra e feminista, visando sair de lógicas universalizadas,
utilizando-se da potência do “desfazer” a história como ferramenta para transpassar as
noções coloniais de mundo. É uma mudança do ponto de vista e quebra de paradigma.
Nesse sentido, Humberto Maturana (2001) contribui na crítica que se pode fazer à
historiografia, tanto do mundo quanto do urbano, ao se entender que as formas de
pensar, para além dos imaginários colonizados, são balizadas e validadas por uma série
de fatores, sobretudo com as teorias científicas e filosóficas que apontam o que é uma
verdade e o que não é, ou o que pode ser lido como verdade.
Essa validação científica constante pode ser vista como contraponto aos saberes e
vivências ditas tradicionais – que, de alguma forma, não são balizadas pelas
compreensões ocidentais de mundo, como as cosmopercepções indígenas, por exemplo
–, uma vez que esses saberes não tem o “rigor teórico” considerado necessário para
serem válidos. No mais, esta validade segue uma construção epistemológica ocidental,
sobretudo, margeada pela Europa (MATURANA, 2001).
Como aponta o autor, as explicações para as questões do mundo, muito longe de uma
visão poética, como coloca Denise Ferreira da Silva (2019), são formuladas a partir da
experiência de alguém e seus critérios de aceitabilidades que diluem o sentido de corpo
desse interlocutor. Dessa maneira, concepções diferentes não são aceitas, visto que os
critérios de aceitabilidade de uma experiência/visão de mundo constantemente se
encontram na compreensão ocidental e eurocentrada, sobretudo colonial, e o que está
fora disso não é válido (MATURANA, 2001).

• 7
Destarte, essa noção parte também da questão da diferenciação do outro. Isto é, a
Europa, como colonizadora, incorporou em seu discurso a criação de um sujeito ideal,
categorizando os diferentes indivíduos no mundo, de modo a colocar a si mesma em
posição central ou mais elevada que povos que, sobretudo, foram colonizados,
violentados e dizimados (QUIJANO, 2005). Ao mesmo tempo em que Europa se coloca
como corpo válido frente ao mundo, corpos outros, ou considerados diferentes,
passaram a ser categorizados, generificados e racializados, visando sua subalternização
ou, como outra opção, o descarte. Assim, nesse processo de validação de corpos, a
ciência também contribuiu para o apagamento dessas outras percepções de mundo.
Assim, quando Maturana (2001, p. 165) aponta que "o objetivo constitutivo de uma
teoria científica é explicar, e não resguardar ou proteger, qualquer princípio ou valor, ou
obter qualquer resultado desejado", ele demonstra que a parcialidade é uma falha da
ciência.
Considerando, então, que a imparcialidade homogeneíza e padroniza as compreensões
de mundo e determinados modos de vida, quando se pensa em cidades, nota-se que no
campo do urbanismo e da história urbana se tem uma ideia consolidada sobre os modos
de planejamento e construção das cidades, assim como uma imagem ideal ou esperada
para este espaço materializado. A problemática em questão é que a imagem
consolidada não perpassa o imaginário de urbanidades que não são hegemônicas e é
neste ponto que, para dar corpo à ideia trazida até aqui, utiliza-se do espaço ribeirinho
(figura 1) como local de uma urbanidade insurgente, um lugar em que a historiografia
urbana não se debruça e que torna salutar o des-pensar sobre o que foi erigido até o
momento pelas disciplinas da arquitetura.

Figura 1: Palafitas sobre o Rio Amazonas no Bairro do Elesbão, município de Santana, no Amapá. Fonte:
acervo pessoal, 2021.

O des-pensar se torna pertinente a partir do momento que se pretende enxergar o


mundo por outros olhos, por outros corpos que não pertencem ao hegemônico. Traz-se

• 8
a urbanidade ribeirinha como esse lugar que comporta subjetividades outras que não
são dos corpos hegemônicos brancos, que vivenciam a urbanidade trazida e perpetuada
pela modernidade, e coloca-se aqui a morada da beira do rio (figura 1) ponto central
visto que as percepções indígenas, ribeirinhas ou amazônicas, de modo geral, tendem a
ser apagadas na discussão do urbano, sobretudo por sua materialidade ser de uma
tecnologia construtiva, geralmente vernácula e palafítica, que a discussão da
arquitetura moderna, formal, desenvolvimentista, não comporta.
Velada ou não, essa forma de ignorar as urbanidades ribeirinhas tudo tem a ver com a
forma com que Maturana (2001, p. 167) discute o fazer científico que é,
fundamentalmente, pautado em uma construção de saberes é baseada em teorias
ocidentais. Logo, tendo isso como perspectiva, o autor compreende que essas "teorias
filosóficas não abrem um espaço para a reflexão sobre as noções básicas ou princípios,
mas abrem espaço para reflexões sobre procedimentos e métodos". Isto é, pensar
apenas os procedimentos e métodos não necessariamente abre espaço para outras
compreensões de mundo, com cosmopercepções poéticas, tradicionais ou ancestrais,
que englobem outros saberes e, inclusive, outras tecnologias construtivas, se
pensarmos o campo do urbanismo. Ademais, o autor aponta que:

O que é uma fonte de problemas nas relações humanas é nosso uso de teorias filosóficas
ou científicas para justificar nossa tentativa de forçar os outros a fazerem o que eles não
querem fazer, sob a alegação de que nossas teorias provam que estamos corretos ou que
conhecemos a verdade, enquanto eles estão errados ou são ignorantes (MATURANA,
2001, p. 169).

Isso se costura ao que Silva (2019) coloca sobre a teoria ocidental se desenvolver de
forma linear, sequencial e determinista, sem muito espaço para outras concepções, o
que corrobora para a construção de uma perspectiva de única de mundo.
Assim, quando Silva (2019) observa a mentalidade kantiana, baseada em uma
construção “ideal” de humanidade que criou, também, um senso coletivo estético, ela
aponta a racialidade como um fator chave, pois daí se tem a construção de “tipos
específicos de seres humanos – sujeitos de culturas “tradicionais” ou “primitivas” – mas,
(2) também, como sujeitos afetáveis, aqueles cujas mentes não têm acesso à Razão”
(SILVA, 2019, p. 51). Esta ideia corrobora com o que aponta Maturana (2001) sobre a
validação de conhecimentos ou, pelo contrário, o que não é validado, visto que o
“primitivo” não seria capaz de criar ciência.
É pertinente ressaltar que não apenas a racialidade/racialização dos sujeitos foi
construída para hierarquizar os indivíduos e povos no momento de colonização, com
dicotomias como branco x negro ou colonizador x colonizado; para além, houve uma re-
identificação histórica que resultou em novas identidades geoculturais. Como resultado,
tem-se a assimilação da cultura europeia como crucial para o apagamento de culturas
outras e suas subjetividades, como aponta Aníbal Quijano (2005), sendo útil às
perspectivas colonizadoras no campo cultural, material, tecnológico, religioso e, pode-se
dizer, que também o urbano.

• 9
Nesse sentido, é por meio da colonialidade que se mantém a gestão dos modelos
civilizatórios que, comumente, são pautados na experiência ocidental de viver e
constituir sociedade; principalmente quando se considera a experiência europeia e do
norte global. Em justaponto, entende-se, também, a ideia de “desenvolvimento”
humano como um progresso homogêneo, contínuo e único, pontuado ainda por essas
centralidades hegemônicas coloniais. Isto é, colocam-se pressupostos sociais como se
todas as sociedades devessem seguir determinado modelo de vida, ocidental, visto a
forma que se criou historicamente a ideia de que seria o melhor e único modelo a ser
seguido: o da modernidade (LANDER, 2005).
A criação dessa ordem social eurocentrada propõe, seja simbolicamente ou em uma
forma materializada, o sentido de um modelo civilizatório único e globalizado, diluindo
outras possibilidades de existência e modos de vida, como aponta Edgard Lander
(2005). Essa ideia, dito de forma clara, surge por organizações de poderes hegemônicos
que disseminam e legitimam, para além das formas discursivas, formas de poder dentro
do sistema-mundo. Assim, ao legitimar, por meio da força, características que tornam
“melhor” o modelo eurocentrado de vida, outras formas de vida passam a ser
desconsideradas e percebidas como “atrasadas” ou menos desenvolvidas, necessitando,
assim, de “mudanças modernizadoras”.

Aqui se traz, então, um exemplo da região norte do Brasil, localizado no município de


Santana, no Amapá, que constantemente é ignorado na discussão do campo urbano,
visto que não adentra o ideal de um espaço urbano moderno. O bairro do Elesbão, tanto
quanto os outros bairros do município, é regido pelo plano diretor que determina os
modos de lidar com as diferentes áreas da cidade. Entretanto, em seu sentido
imagético, o bairro não adentra as noções de urbanismo formal de planejamento, visto
sua consolidação palafítica, com tecnologia construtiva das residências em madeira,
sendo casas suspensas sobre as águas do Rio Amazonas. Nesse sentido, o bairro acaba
por ser considerado periférico e é marginalizado no sentido de afastamento com os
outros bairros, visto o preconceito com sua tipologia e modo de vida local, sendo um
local constantemente deslegitimado até mesmo pelo poder público, que pouco dá
assistência ao lugar.

• 10
Figura 2: Vista aérea do Bairro do Elesbão. Urbanidade fora dos âmbitos modernos (?). Fonte: acervo
pessoal, 2022.

A intenção de vislumbrar um bairro ribeirinho se encontra no princípio de que


constantemente esse espaço é ignorado por não adentrar as lógicas formais de
concepção do espaço. Entretanto, entende-se que esse espaço existe por décadas, em
diferentes locais dentro e fora da Amazônia, mas pouco se é discutido pela historiografia
da arquitetura e do urbano. É nesse sentido que se costura a compreensão das
urbanidades válidas e as que não são, por meio de concepções epistemológicas que não
agregam a vivência de lugares não-hegemônicos, sobretudo porque outras formas de
vida que não são consideradas modernas ou desenvolvidas, sob esta lógica colonial da
construção dos saberes e ciências, se constituem desde o período iluminista da história,
demarcado por uma divisão entre corpo e mente em que não mais se tem “abstrações”
do ser; os sujeitos no mundo agora devem ser objetivos e des-subjetivados, ou seja,
universal e, portanto, moderno (LANDER, 2005) e é desta forma que comunidades
ribeirinhas são relegadas à margem das discussões urbanas.
Portanto, é nesse ponto que Davi Kopenawa e Bruce Albert (2015) contribuem no des-
pensar a historiografia e apontam uma cosmopercepção sobre um mundo em que não
há essa separação de corpo e mente, mas um mundo em que a coexistência é a força
motriz, sobretudo compreendendo que o mundo não é feito apenas pelos humanos, mas
cada unidade da natureza se comunica.
Kopenawa e Albert apontam que, dentro da sociedade colonizada em que vivemos, o
mundo gira em torno de um desenvolvimentismo e, sobretudo, em torno da
mercadoria. Ademais, os autores dissertam sobre a compreensão exploratória do
mundo branco colonizado, em que a extração de matéria-prima é a base do movimento
e compreensão de mundo, e isto faz com que essa sociedade branca não enxergue a
forma como diferentes sujeitos existem no mundo. O interlocutor indígena debate que a
sociedade branca enxerga o mundo apenas de forma linear, constante e violenta, de
modo que o colonizador pensa apenas no domínio do que está ao seu redor. Sobretudo,
“Os brancos não pensam muito adiante no futuro. Sempre estão preocupados demais
com as coisas do momento” (KOPENAWAY; ALBERT, 2015, p. 64).
É nesse sentido que, com tudo que foi dito até então, se compreende que a natureza,
seguindo concepções do que é ideal no sistema-mundo hegemônico, é moldada, e
domesticada, para fazer sentido aos seres humanos, de modo a rejeitar o que aparenta
ser "selvagem" ou “fora do controle”, o que pode ser transposto para as urbanidades
ribeirinhas e seus modos de vida fora do âmbito moderno. Pensa-se também que há
uma ideia de cidade e de paisagem que é construída de forma a ser aceita e que acaba
por não agregar um espaço ribeirinho como um urbano legítimo, uma vez que a
compreensão de cidade urbana traz concepções de um espaço moderno.
Isto é, na cultura ocidental, mediada pelas imagens e pela concepção kantiana do ideal,
criticada por Silva (2019), cria "cenários" de natureza, um enquadramento do natural e

• 11
uma modulação da natureza de forma a construir a paisagem ideal, um ambiente físico
moldado (CAUQUELIN, 2000). Assim, como discorre Anne Cauquelin:

Parece, então, que a proposição segundo a qual a noção de paisagem e sua realidade
percebida são justamente uma invenção, um objeto cultural patenteado, cuja função
própria é reassegurar permanentemente os quadros da percepção do tempo e do espaço,
é, na atualidade, fortemente evocada e preside a todas as tentativas de "repensar" o
planeta como eco-sócio-sistema (CAUQUELIN, 2000, p. 12).

Pensando estes cenários de cidades modernas, vislumbra-se que, dentro da cultura


ocidental, a percepção visual é elemento essencial para construção da ideia de
paisagem, principalmente por meio das noções pictóricas vinculadas às pinturas, fotos e
imagens (CAUQUELIN, 2000). É dessa forma que, ao longo deste estudo, ao se pontuar
imagens de uma Amazônia ribeirinha, pretende-se diluir as compreensões de urbano.
Isto é, é imprescindível perceber que a imagem do urbano, construída pela
historiografia, vai muito além dos prédios modernos, as revoluções industriais ocorridos
para que determinados materiais fossem utilizados hoje na arquitetura, e sobretudo, a
imagem de uma Amazônia urbana é trazida, aqui, para relembrar seu constante
esquecimento dentro da construção epistêmica da arquitetura e da potência de se
pensar estes espaços.

URBANIDADES DA BEIRA DO RIO


Por meio do que foi costurado até aqui, é indiscutível a necessidade de pensar e des-
pensar os corpos e territorialidades que são atingidos por este movimento colonial e de
dominação sobre as diferentes formas de pensar e viver o mundo, sobretudo como
estes afetamentos transpõem o espaço urbano.
Parte-se da ideia para vislumbrar outra cosmopercepção sobre o mundo em que
vivemos e sobre uma ancestralidade, tanto de modo de vida quanto em relação às
tecnologias construtivas que compõem a vivência urbana ribeirinha, que tendem a ser
constantemente apagadas e colocadas fora das discussões sobre o planejamento das
cidades. Entende-se que essas diferentes sociabilidades e culturas contribuem na
construção do espaço materializado que é a cidade, portanto é nesse ponto que se
encontra descontruir a compreensão epistemológica das cidades construídas dentro
desse sistema-mundo colonial-moderno vigente.
Para entender essa urbanidade que nasce da beira do Rio Amazonas, é necessário ter
em mente que a construção do espaço urbano como conhecemos, dentro das
formalidades construtivas de planejamento, apreende uma domesticação e domínio da
paisagem. Em especial a partir do período moderno, no século XX, as revoluções
tecnológicas e construtivas perpassaram a vontade humana de ter controle sobre o
espaço e tempo. Isto é, na materialidade, isso se traduz nas longas vias de transporte,
os arranha-céus e suas pretensões de densidade verticalizada, a higienização – também

• 12
necessária – das cidades, mas que tinham como intenção de acabar com os chamados
cortiços e aglomerados considerados sujos (BENEVOLO, 2001).

[...] a atenção dos reformistas limita-se a alguns setores e sua ação volta-se para a
eliminação de alguns determinados males: a insuficiência de esgotos, de água potável, a
difusão das epidemias. Se, ao se intervir sobre um problema, outros problemas vêm à
tona, isso ocorre, por assim dizer, involuntariamente. A construção dos esgotos e dos
aquedutos exige um mínimo de regularidade, planimétrica e altimétrica, nas novas
construções; a manutenção das instalações urbanas comporta um novo arranjo dos
órgãos técnicos da comunidade e a faculdade de obrigar os proprietários a determinadas
prestações. A execução de algumas obras públicas, como estradas, ruas e ferrovias, exige
novos processos de expropriação do solo, e uma série de novos instrumentos técnicos,
entre os quais uma cartografia precisa (BENEVOLO, 2001, p. 91).

Nesse sentido, é compreensível a necessidade de modificações do espaço urbano


moderno, sobretudo para que fosse possível a melhoria da qualidade de vida das
pessoas que era, comumente, precária, como coloca Benevolo (2001). Entretanto,
aponta-se que estas melhorias foram direcionadas apenas à alguns espaços nas
cidades, não dando conta de dialogar com a precariedade encontrada para além dos
centros urbanos.
Isto é, quando se visa entender uma Amazônia urbana, nota-se que o espaço ribeirinho
não se agrega à discussão, tanto no sentido de pensar as melhorias das condições de
vida das pessoas que existem nestes espaços quanto também não se pensa no
potencial dessas territorialidades, com as subjetividades que as compõem.
Dessa forma, entende-se que, contraditoriamente, o corpo e território que nascem da
beira do rio entram no campo de uma urbanidade e sociabilidade contra-hegemônica,
de modo que é uma resistência que os faz se manter em determinados locais, visto a
forma como são espaços desassistidos pelos planejadores urbanos.
Como dito anteriormente, o bairro do Elesbão, território localizado às margens do Rio
Amazonas, se encontra no município de Santana, no Amapá, extremo norte do Brasil e,
como paisagem, o bairro caminha entre o vernáculo e as pequenas inserções do dito
“moderno”. As casas palafíticas suspensas sobre os rios são, majoritariamente, de
madeira, retirada de madeireiras não tão distantes da localidade. A mesma madeira que
chega ali é utilizada, também, para a construção de barcos de diversos portes que são
utilizados como meio de transporte onde a água é o chão mais comum. As pontes que
fazem caminhos no local também são em madeira, ainda que as pontes de concreto
estejam chegando, com muita dificuldade, no lugar.

• 13
Figura 3: Moradias em palafita no Bairro do Elesbão. Fonte: acervo pessoal, 2021.

O céu, quando não chove, é azul e permeado pelo verde da floresta que faz parte do
lugar. Que contribui para diminuir o calor em excesso, já que a temperatura comum é
36 graus, cotidianamente. Esse calor todo intensifica as chuvas locais, que comunicam
recados a quem sabe ouvir, uma vez que a água tangencia o cotidiano dos moradores
do Elesbão em diversos aspectos. Pelo rio, alguns moradores atravessam o Amazonas
para algumas das ilhas na margem do outro lado para garantir o alimento do dia a dia,
seja o camarão ou o açaí; alimentos indispensáveis na dieta local.
A mesma água que transporta o morador em busca de seu alimento, também seca.
Assim, quando a maré do rio está baixa, os barcos nos estaleiros existentes no bairro
continuam sendo construídos, porém só são retirados e levados novamente à água
quando a maré enche. Em pesquisa de campo, Sr. Guinho, um senhor nos seus
sessenta e tantos anos, construtor de barcos durante toda vida se tornou um
interlocutor pertinente para explicar o funcionamento de seu estaleiro e é acionado aqui
para explicar o que Silva (2019) aponta como poética.
Em meio ao diálogo da pesquisa de campo, Sr. Guinho registrou que a conexão com a
natureza é o limiar para a compreensão cotidiana local de quem trabalha com a
fabricação de barcos. Disse, então, que sempre olha para o céu e que, se durante a
noite a lua aparecer, principalmente quando é lua cheia, é porque no dia seguinte a
maré vai encher e ele vai conseguir levar o barco construído para a beira do rio. É nesse
sentido que compreender as subjetividades e sociabilidades que se materializam no
urbano se torna salutar. O des-pensar o urbano como conhecemos, perpassa a poética
decolonial que Denise Ferreira da Silva (2019) intenta construir.
É possível, também, retornar a Ailton Krenak (2020, p. 49) quando o autor fala que:

Quando nós falamos que o nosso rio é sagrado, as pessoas dizem: “Isso é algum folclore
deles”; quando dizemos que a montanha está mostrando que vai chover e que esse dia
vai ser um dia próspero, um dia bom, eles dizem: “Não, uma montanha não fala nada”.

• 14
Quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos,
considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos, nós liberamos esses lugares
para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista.

É nesse sentido que se encontra potência na cosmopercepção indígena e que também


pode ser enxergada nas vivências ribeirinhas. É esse ponto de encontro, entre Sr.
Guinho e Krenak (2020) que se vislumbra o des-pensar do mundo que conhecemos e
que talvez se possa, nesse ponto de inflexão, se encontrar respostas que desafiem o as
questões que o sistema-mundo hegemônico coloca no cotidiano. Ademais, é na
paisagem ribeirinha que também é possível encontrar uma coexistência mais próxima
entre o ser humano e a natureza, de modo que, como coloca Kopenawa e Albert
(2015), estes povos são protetores das florestas.
Entende-se, também, que ainda existem falhas. Por exemplo, ao mesmo tempo em que
a água no bairro do Elesbão é fonte de alimento, também se tem os dejetos que são
jogados nela para serem levados com a maré. Ou até mesmo como as sociabilidades do
local entram em conflito quando uma parte dos moradores não permitem que
encanamentos cheguem a uma parte do território, mostrando um enfrentamento que
também ocorre com as forças externas que chegam ao local.
Nesse sentido, por fim, des-pensar o mundo que vivemos não é romantizar diferentes
cosmologias, mas refletir sobre potencialidades que já estão neste mundo e, sobretudo,
que vem se comunicando de diferentes formas ao longo dos tempos, mas que acabam
por ficar nebulosas em vista das concepções hegemônicas de existir e a historiografia
que pouco se atentou, até o momento, a estes modos de vida e seus territórios.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo teve como pretensão principal deslocar o entendimento epistemológico do
mundo de uma compreensão eurocentrada e compreender de onde estes pressupostos
partem, a fim de des-pensar os modos de enxergar determinadas territorialidades, uma
vez que existem diferentes formas de existir dentro do sistema-mundo hegemônico em
que vivemos. Entende-se que o des-pensar é uma potência para visualizar um mundo
em devir.
Não se nega, dessa forma, o que a historiografia construiu até o presente momento em
relação à arquitetura e ao urbano, entretanto, buscou-se uma crítica a forma como o
sistema-mundo mantem-se colonizado e reproduzindo uma forma ocidental de pensar
que não contempla outros mundos, corpos outros e cosmopercepções que não esbarram
no sentido de mundo eurocentrado.
Encontra-se nos territórios ribeirinhos uma forma de pensar a potência de
transformação dos territórios, de modo a pensa-los não sob uma ótica
desenvolvimentista e capitalista, sobretudo da mercadoria – como indica Kopenawa e
Albert (2015), mas de vislumbrar por meio de uma poética, como apontado por Silva
(2019), que as diferentes subjetividades existentes no mundo conseguem materializar
diferentes territórios, por isto é de irrevogável necessidade de as disciplinas da

• 15
arquitetura e urbanismo passem a discutir sobre estas urbanidades insurgentes, que
resistem de seu modo ao sistema-mundo desenvolvimentista.
A resistência em questão não provém da ideia de não deixar “o desenvolvimento”
chegar a estes locais, mas sim no sentido de que estas comunidades, como as
ribeirinhas palafíticas, se encontram na Amazônia de modo secular, porém não são
discutidas como uma arquitetura legítima ou como uma urbanidade que tem potencial.
Desta forma, o artigo em questão pensa nessa lacuna da historiografia que
constantemente dá destaque a uma história europeia, provinda da colonização e que
mantém suas raízes por meio de epistemologias violentas que apagam da discussão os
territórios não-hegemônicos, deixando pouco espaço para pensar urbanidades
divergentes, sobretudo os que nascem dentro da América Latina e no Sul global de
modo geral.
Des-pensar a historiografia do urbano e se atentar ao poético e subjetivo do espaço é,
finalmente, dar atenção às dobras que ficam escondidas nos debates. No mais, é salutar
pensar estas outras territorialidades para que se possa, talvez, impedir que o mundo
atinja o fim de sua queda.

REFERÊNCIAS
BENEVOLO, Leonardo. História da Arquitetura Moderna. São Paulo: Editora Perspectiva, 3ª
edição, 2001.
CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
HAESBAERT, Rogério. De categoria de análise a categoria da prática: a multiplicidade do
território numa perspectiva latino-americana. In: Fridman, Fania; Gennari, Luciana Alem;
Lencioni, Sandra (Orgs.). Políticas públicas e territórios: onze estudos latino-americanos.
1a ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO, 2018.
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu. Palavras de um xamã Yanomami.
Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras,
2020.
LANDER, Edgardo. Ciências sociais: saberes coloniais e eurocêntricos In: LANDER, Edgardo
(org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Ciudad Autónoma de
Buenos Aires: CLACSO, 2005. p. 21-53. Disponível em:
<http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/lander/pt/Lander.rtf>. Acesso em: 11
ago. 2020.
MATURANA, H. Cognição, ciência e vida cotidiana. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.
QUIJANO, Aníbal. A colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER,
Edgardo (org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências 31 sociais. Perspectivas
latino americanas. Buenos Aires: CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales,
2005. p. 227-278. Disponível em:
<http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/lander/pt/Quijano.rtf>. Acesso em: 28
ago. 2020.
SILVA, Denise Ferreira da.; OTOCH, Janaina Nagata. Em estado bruto. ARS (São Paulo). São
Paulo: Universidade de São Paulo (USP), vol.17, n.36, p. 45-56, 2019.

• 16
BRASÍLIA, O BRASIL COLONIAL E A INDEPENDÊNCIA:
relações literárias
BRASÍLIA, COLONIAL BRAZIL AND INDEPENDENCE: LITERARY
RELATIONS/ BRASILIA, BRASIL COLONIAL E INDEPENDENCIA:
RELACIONES LITERARIAS
Historiografia, ideários e regimes de historicidade

MONTEIRO, Chico
Mestrando; PPG-FAUUnB
chicociccone@gmail.com
DERNTL, Maria Fernanda
Doutora em Arquitetura e Urbanismo; Professora no PPG-FAUUnB
mariafernanda_d@yahoo.com.br
RESUMO

Enquanto um esforço de legitimação histórica de Brasília — empreendido por


JK e outros protagonistas da fundação da cidade — buscou na Independência
do Brasil um dos seus principais referenciais, no âmbito do imaginário social,
são imagens, alegorias e símbolos do Brasil colonial que ganham maior
espaço nas representações que emergem de algumas das primeiras obras
literárias sobre a nova capital. Esta comunicação busca mostrar como
algumas figuras discursivas são recorrentes, como as que aludem à certa
imagem dos bandeirantes, na intenção de relacionar a construção de Brasília
a um novo capítulo da conquista dos territórios no interior do Brasil iniciada
pelas entradas e bandeiras nos séculos XVI e XVII. Buscamos mostrar ainda
como nesses textos literários, tal como na historiografia corrente à época, a
figura dos bandeirantes e outros elementos do Brasil colonial jamais são
problematizadas pelos autores. Ao contrário, na maioria das vezes, são
celebradas como símbolos de heroísmo, da expansão territorial e da
modernização do país tal qual a nova capital que surgia então no Planalto
Central.

PALAVRAS CHAVE Brasília; Brasil colonial; Independência; Literatura;


História.

ABSTRACT OU RESUMEN

Si bien un esfuerzo de legitimación de la historia de Brasilia —emprendido


por JK y otros protagonistas de la fundación de la ciudad— buscó en la
Independencia de Brasil una de sus principales referencias, en el ámbito de
los imaginarios sociales, imágenes, alegorías y símbolos del Brasil colonial
que ganan mayor espacio en las representaciones que emergen de algunas
de las primeras obras literarias sobre la nueva capital. Esta comunicación
busca mostrar cómo algunas figuras discursivas son recurrentes, como
aquellas que aluden a cierta imagen de los bandeirantes, con la intención de
relacionar la construcción de Brasilia con un nuevo capítulo en la conquista de
territorios en el interior de Brasil, iniciada por las entradas y banderas en los
siglos XVI y XVI XVII. También buscamos mostrar cómo en estos textos
literarios, como en la historiografía vigente en la época, la figura de los
bandeirantes y otros elementos del Brasil colonial nunca son problematizados
por los autores. Por el contrario, la mayoría de las veces son celebradas
como símbolos del heroísmo, la expansión territorial y la modernización del
país, al igual que la nueva capital que apareció entonces en la Meseta
Central.

KEY-WORDS OU PALABRAS-CLAVE Brasília; Brasil colonial;


Independencia; Literatura; Historia.

• 2
INTRODUÇÃO
São muitas as ligações discursivas entre a Independência do Brasil em 1822 e a
inauguração de Brasília em 1960. Nas primeiras linhas de seu relatório do Plano Piloto
de Brasília, Lucio Costa (1957) faz menção a José Bonifácio de Andrada e Silva,
indicando que tal personagem histórico, conhecido como Patriarca da Independência do
Brasil, teria sugerido a transferência da capital para o interior do país e a batizado com
o nome Brasília. A Inconfidência Mineira, outro evento histórico marcado pelo anseio à
independência – ainda que em dimensão local - inspirou a escolha da data da
inauguração da cidade: 21 de abril, feriado do Dia de Tiradentes, que remete à morte
de Joaquim José da Silva Xavier, líder da Inconfidência Mineira depois alçado a mártir
do sonho da libertação política do Brasil. Além disso, antes ainda da definição precisa do
sítio onde a futura capital seria construída, em 7 de setembro de 1922 foi inaugurada a
Pedra Fundamental em Planaltina (DF), evento que integrou as comemorações do
centenário da emancipação e emergência do Brasil como nação em 1822.
Esses são apenas alguns elementos que nos levam a pensar que a Independência, como
destaca o historiador Laurent Vidal (2009), representa um dos principais componentes
do mito no qual Juscelino Kubitschek e seu grupo político buscaram envolver a
construção e legitimação histórica da nova capital. No entanto, como pretendemos
mostrar nesta comunicação, no âmbito do imaginário social, são imagens, alegorias e
símbolos do Brasil ainda colonial que ganham maior espaço nas representações que
emergem de algumas das primeiras obras literárias sobre Brasília. Notamos como
algumas figuras discursivas são recorrentes, como as que aludem à certa imagem dos
bandeirantes, na intenção de relacionar a construção de Brasília a um novo capítulo da
conquista dos territórios no interior do Brasil iniciada pelas entradas e bandeiras nos
séculos XVI e XVII, que jamais são problematizadas pelos autores. Ao contrário, são
celebradas como símbolos de heroísmo, da expansão territorial e da modernização do
país.
Esses elementos aparecem em representações de Brasília em poemas de autores
consagrados pelo modernismo brasileiro como Guilherme de Almeida, Vinicius de
Moraes e Cassiano Ricardo. Ao mesmo tempo, fazem-se presentes em narrativas de
autores pouco conhecidos que escreveram as primeiras crônicas e romances que tomam
a cidade como tema ou mote, como são os casos de Clemente Luz e Jayme Martins. Já
em poemas de João Cabral de Melo Neto, podemos ver outra abordagem, com certa
crítica a essa articulação entre a modernidade e o passado colonial.
Este artigo busca analisar tais representações, com ênfase em referências extraídas do
passado luso-brasileiro ou colonial, que nelas aparecem em concomitância com certos
paradigmas modernistas e nacional desenvolvimentistas que orientaram a concepção
material e simbólica da nova capital. Daí o paradoxo, pois tal ideário projetava Brasília
como instrumento de superação justamente de um Brasil ainda de feição colonial,
arcaico e subdesenvolvido que vigoraria até então. O texto aqui apresentado é parte da
pesquisa de mestrado em andamento no PPG FAU-UnB acerca das representações de
Brasília em textos literários produzidos na primeira década da nascente capital. A

• 3
pesquisa também é resultado dos trabalhos do grupo Capital e Periferia (UnB/ CNPq) 1,
cujo objetivo é abordar a concepção, a formação e as representações sociais de Brasília,
buscando ir além do Plano Piloto para tratar de seu amplo e complexo território.
Partindo do campo da História Cultural do Urbano, tendo o trabalho da historiadora
Sandra Pesavento (2014) como principal referência teórica, entendemos a literatura
como uma chave possível de estudar a cidade e suas relações, revelando de modo
singular nuances e sensibilidades. Tal abordagem exige interdisciplinaridade, somando
contribuições de vários campos das ciências humanas para lidar com o fenômeno tão
complexo que é cidade. Essa cidade, aqui a capital, é analisada nem tanto em seu
aspecto concreto e tangível, mas sobretudo em sua dimensão imaginária, a qual não
necessariamente se desassocia da realidade, já que é fruto de uma construção coletiva
de sentidos de quem nela vive ou de quem a observa e narra.

PÁTINA COLONIAL NA LITERATURA MODERNA


Em outro evento que fez parte da celebração do centenário da Independência, em
1922, a Semana de Arte Moderna, Guilherme de Almeida subiu ao palco do Teatro
Municipal de São Paulo e leu alguns de seus poemas durante a conferência de abertura
proferida por Graça Aranha. Ainda que, ao longo dos anos, o caráter modernista da sua
obra tenha sido colocado em xeque por parte da crítica que apontou nela aspectos
“passadistas” (BOSI, 1972), o poeta entrou para a história reconhecido como um dos
principais articuladores do evento que se tornaria um dos grandes marcos do
movimento moderno no Brasil. Foi nessa condição de escritor consagrado, membro da
Academia Brasileira de Letras, e não mais um jovem com ímpetos de renovar a poesia
brasileira, que quase 40 anos depois, Guilherme participaria, de maneira destacada, de
outro acontecimento histórico. Em 21 de abril de 1960, protagonizou um dos muitos
ritos de inauguração de Brasília, outro marco do modernismo brasileiro, lendo a Prece
Natalícia de Brasília, poema de sua autoria escrito especialmente para a cerimônia. Fato
que levou outro poeta ligado à Semana de 22, Plínio Salgado, a escrever em suas
memórias — nas quais se refere a Almeida como mestre da heráldica e criador do
brasão e da bandeira de Brasília — que “a cidade magnífica erguida no Planalto Central,
nasceu e tem vivido ao sopro da Poesia” (SALGADO, 1973, p. 141).
Como era esperado de uma obra dessa natureza, no longo poema forjado por
Guilherme de Almeida em homenagem ao nascimento da capital, o autor tece uma
pungente apologia à nova capital. O autor celebra alguns marcos históricos e os associa
a Brasília, como forma de demonstrar a importância da construção da cidade para a
história do Brasil. Tais marcos caracterizados por ele como “ciclos de ação” são a
Independência, a integração territorial, a “descoberta” do Brasil, que hoje também é
chamada de invasão, em um processo de ressignificação histórica, e o bandeirismo que
também passaria a ser revisto nos anos seguintes. A década de 1950 representa um
ponto alto da valorização da figura do bandeirante, justamente em razão da construção
de Brasília. Logo em seguida, na década de 1960, iniciou-se uma revisão histórica, a

1
Ver http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/645727

• 4
partir da qual começam a deixar de ser vistos como símbolos de uma “superioridade
racial, social e psicológica” (ABUD, 2019), e passam a ser caracterizados como
genocidas, escravizadores e violentadores dos povos originários brasileiros.
Mas apesar de evocar esse passado grandioso de grandes acontecimentos, o poema
também mira o futuro, enfatizando o caráter inovador e esperançoso da cidade que,
como já mencionamos, era vista como fator de superação do atraso do Brasil. O trecho
a seguir evidencia alguns desses aspectos:

Aí estás Brasília do olhar de menina! Menina-dos-olhos


olhando' sem mágoa o Passado e sem medo o Futuro,
sem ver horizontes na terra e no céu porque eles recuam
ao impacto impetuoso das tuas pupilas;
com teu meridiano que foi Tordesilhas :
corda torcida que os teus ancestrais distenderam
para que aos quatro ventos soltasse agora o teu gesto de setas
- és tu, juvenília, "non urbs sed civitas",
o centro da Cruz Tempo-Espaço,
plantada no teu Quadrilátero,
com suas quatro hastes que são quatro séculos,
e são quatro pontos cardiais,
e são quatro ciclos de ação :
o da Descoberta, o do Bandeirismo,
o da Independência e o da Integração.
Feita do fluxo e refluxo das forças que dão o poder,
centrípeta para tornar-se centrífuga,
Brasília, é a tua Cruz da Quarta Dimensão, e Tetragrama
do Milagre Novíssimo que és tu;
a que dirá "Presente!", impávida, ao chamado
elo fasto e elo nefasto; a que é o Marco Zero
das vias todas, da mais ínvia à mais viável;
o ímã para a limalha de aço do Trabalho;
(ALMEIDA, 1960, p. 20)

Vemos que o poema reúne diversos elementos que sintetizam o que Laurent Vidal
(2009) denominou princípios estruturantes do mito de Brasília: a celebração de um
passado glorioso da nação, racionalidade científica e a fé católica. Esta última, bastante
evidente, destaca-se tanto no título como em todo o corpo do texto lírico. É interessante
observar a maneira como o bandeirismo é articulado com nacional desenvolvimentismo,
principal eixo do programa de Juscelino Kubitschek que, por sua vez, frequentemente
evocava a figura dos bandeirantes para se referir a si mesmo e aos protagonistas de
Brasília. No poema, tais “heróis” emanados da paulistânia colonial aparecem como
responsáveis por “distenderem” a linha do Tratado de Tordesilhas, ampliando as
fronteiras do Brasil, uma forma bastante comum de serem representados pela
historiografia corrente na época (ABUD, 2019). Em seu livro de memórias, Por que
construí Brasília, Kubitschek corrobora essa ideia de expansão territorial para o oeste. O
presidente escreve que, após reler a história dos bandeirantes, anotou os “os roteiros
desses desbravadores que, arrostando perigos e privações, haviam levado as fronteiras
do Brasil até o mais recuado oeste. Foi uma saga de heroísmo, expressa na demarcação
de um país, grande como um continente.” (KUBITSCHEK, 2000 [1975], p. 83) Essa
passagem expõe de forma clara aquilo que Laurent Vidal (2009) e James Holston

• 5
(1993) apontaram. Recentemente isso foi também corroborado pelo arquiteto Paulo
Tavares (2021) em ensaio sobre aspectos coloniais de Brasília: JK, ainda mais que
Getúlio Vargas e sua Marcha para o Oeste, “mobilizou o mito da fronteira” e modelou
“sua própria persona presidencial na imagem de um bandeirante moderno”. (TAVARES,
2021, p. 31) Esse apreço do presidente pelos bandeirantes aparece inclusive na ficção
produzida na época da construção inicial de Brasília. Num romance voltado para o
público infanto-juvenil editado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística)
em 1959, Tia Margarida vai a Brasília, de Jayme Martins, a ideia é apresentada em um
discurso de Juscelino proferido na capital durante a viagem da personagem principal à
cidade ainda em construção. “Estamos dando realidade física à velha linha do Tratado
de Tordesilhas e convocando todos os brasileiros para reviver, conosco, as epopeias e
os sacrifícios de Raposo Tavares, Fernão Dias e Bartolomeu Bueno”, proclama, no
romance, o personagem do presidente, que prossegue dizendo que o objetivo dessas
figuras — cujos nomes hoje evocam imediatamente as violências que praticaram — foi
“entregar ao Brasil uma situação econômica correspondente à nossa grandeza territorial
e histórica” (MARTINS, 1959, p. 146).
Na Prece Natalícia, Brasília é descrita como corolário da ampliação do território nacional
que teria sido obra dos bandeirantes. Com sua construção, chegara o momento “para
que aos quatro ventos soltasse agora o teu gesto de setas” (ALMEIDA, 1960, p. 20),
tema que ele usaria na criação do brasão e da bandeira do Distrito Federal que seriam
oficializados, respectivamente, por decretos em setembro de 1960 e agosto de 19692.
Ao descrever essa imagem das setas, o autor parece também aludir a um diagrama que
tanto circulou, à época, do mapa do Brasil com a marcação do quadrilátero do Distrito
Federal, de onde se irradiam diversas setas para as demais capitais do País. O propósito
da ilustração é mostrar uma certa equidistância em relação às outras capitais, além de
representar Brasília como epicentro de desenvolvimento e grande propulsora da
integração nacional. A nova capital seria, por si só, um fator de desenvolvimento de
todas as regiões do país e resolveria finalmente o problema do “caranguejismo”, termo
cuja origem remonta ao século XVII a partir da constatação de Frei Vicente do Salvador,
popularizada por Sérgio Buarque de Holanda (2014 [1936]), de uma desigual
concentração de desenvolvimento apenas no litoral do Brasil.
“Hoje todos os caminhos conduzem a Brasília” (LUZ, 1968, p. 211). Essa aparente
reiteração do diagrama das setas e da ideia de integração nacional é a frase que abre a
crônica O Caminho das Caravanas, de Clemente Luz, consagrado pela historiografia
como o primeiro jornalista e um dos primeiros cronistas de Brasília (NASCIMENTO,
2020). No entanto, Luz escreve da perspectiva do candango, aquele que migra para
Brasília. O texto foi publicado no livro Invenção da Cidade, editado em 1958, com
crônicas que o autor escreveu entre 1958 e os primeiros anos após a inauguração da
cidade. Na crônica em questão, o jornalista trata do evento que ficou conhecido como
Caravanas de Integração, realizadas em janeiro de 1960, envolvendo a partida de
comboios das cinco regiões do Brasil rumo ao Planalto Central, com encontro marcado

2
Decreto n.º 11, de 12 de setembro de 1960 e Decreto nº 1090, de 25 de agosto de 1969.

• 6
no dia 31 daquele mês nas colunas da Catedral ainda em construção na Esplanada dos
Ministérios. Clemente Luz remete ao ideário do plano de governo de JK ao denominar a
reunião final das caravanas “encontro das metas”, além de incluir o detalhe de ressaltar
que todos os veículos que participaram da empreitada nas estradas recém-abertas
seriam de marcas nacionais, endossando a ideia de um o projeto de industrialização
voltado para a indústria automobilística brasileira. Numa nova referência ao tópico do
bandeirismo, o autor descreve o evento como uma “nova Bandeira montada sobre
rodas” e escreve que as “partidas foram preparadas e festejadas como nos velhos e
heroicos tempos dos Bandeirantes” (LUZ, 1968, p. 212). Nesse clima de celebração,
termina seu texto qualificando a construção de Brasília como sonho realizado “de
séculos e de gerações”, corroborando uma vertente historiográfica de que a
transferência da capital seria um sonho acalentado há séculos, na qual Juscelino
Kubitschek emerge como o personagem heroico que finalmente pôde torna-lo uma
realidade (CEBALOS, 2005; DERNTL, 2021; VIDAL, 2008).
Tal como no mencionado texto de Clemente Luz, o famoso plano de metas de JK
também se faz presente na já analisada Prece Natalícia de 1960, na qual Brasília é
referenciada como “Meta das metas”. A alusão é feita na parte final do poema, que
ganha um tom quase épico e um ritmo acelerado, tal qual o trabalho dos canteiros de
obras da cidade. Ritmo esse sempre idealizado, muitas vezes celebrado como “Marcha
de Brasília, em outros textos de protagonistas da fundação da cidade ou em narrativas
literárias de caráter apologético comprometidas com o grupo, nas quais jamais vêm à
tona conflitos, a violência laboral e nem a super exploração da mão-de-obra que
caracterizaram aquele período de construção da capital.
Essa postura de atenuar violências e conflitos ou coloca-los como parte de uma epopeia
heroica também é compartilhada por Guilherme de Almeida no trecho a seguir ainda da
Prece Natalícia:

Crucifixo foi a arma que, nas selvas,


contra as flechas ervadas empunharam
“ad maiorem Dei Gloriam” as missões.
Signo heroico daqueles que partiam do
cruzeiro dos adros aos sertões, foi o gesto,
na gesta das Bandeiras do que elevou
a mão para benzer-se e levou-a depois à cruz da espada.
Presidiu o ansioso cruzamento
dos três sangues que as redes e
as esteiras conchegaram nas ocas e senzalas.
(ALMEIDA, 1960, p. 20)

Como podemos ver, apesar de buscar representar as bandeiras como ato de heroísmo
civilizatório, ainda aparece de maneira explícita a violência dos bandeirantes contra os
indígenas que buscavam resistir ao apresamento praticado pelos aventureiros paulistas.
Concomitante a essa construção narrativa, notamos um reforço do falacioso mito das
três raças, isto é, o suposto harmônico “cruzamento dos três sangues” de pessoas
brancas, negras e indígenas que teria resultado na formação do povo brasileiro.
Miscigenação que é tratada acrítica e positivamente, possivelmente um reflexo do

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amplamente propagado, à época, mito da democracia racial, que começa a ganhar força
no chamado “pensamento social brasileiro”, ainda no século XIX e atinge o ápice de
aceitação na década de 1930 com a publicação de Casa Grande e Senzala [1933], de
Gilberto Freyre (DOMINGUES, 2013). Até o símbolo da cruz — que também é descrita
como arma ou escudo contra os indígenas — é mobilizado nesse trecho para abençoar o
que hoje vemos como violência sexual dos colonizadores contra as mulheres negras e
indígenas. No entanto, no poema, essa prática é romantizada como “cruzamento dos
três sangues que as redes e as esteiras conchegaram nas ocas e senzalas”.
Ainda que representados dessa forma problemática, a menção aos indígenas no poema
de Guilherme Almeida foi a maneira que os indígenas se fizeram presentes na cerimônia
de inauguração da capital, já que lá não estiveram presencialmente. Se, como salienta
o historiador Laurent Vidal (2009), eles tiveram papel de destaque em outro rito
fundacional, quando foram recrutados para reencenar na capital, em 1957, a Primeira
Missa do Brasil — buscando imagética e simbolicamente se aproximar ao máximo da
representação da pintura histórica de Victor Meirelles — para cerimônia de 1960 sequer
foram convidados. Isso porque, como enfatiza Vidal, se na missa “sua presença era
necessária para fundar a cidade num espírito de conciliação com os habitantes míticos
do lugar”, agora na inauguração, “ela não é mais desejada para lançar as bases de uma
mentalidade nova, desejosa de eliminar os estigmas de um país atrasado e arcaico.”
(VIDAL, 2009, p. 263)
Essa mentalidade nova a que Vidal se refere também se relaciona a outro trecho do
poema em que a imagem da cruz é mobilizada por Guilherme de Almeida, mas dessa
vez relacionada à prancheta de Lucio Costa, onde foram traçados os croquis que o
arquiteto submeteu ao concurso que escolheu o plano urbanístico da cidade. O poeta
cita parte do relatório do urbanista no qual o símbolo da fé católica se faz presente, mas
omite o aceno ao passado colonial brasileiro, quando o Lucio Costa se refere à capital
como um território de que se toma posse:

E, um dia augural, num alvo papel pregado à prancheta


a cruz sempiterna pousou sua sombra e –
um traço, outro traço – “do gesto primário
de quem assinala um lugar” dois riscos
cortando-se em ângulo reto, e, pois, de uma cruz nascente, Brasília!
E, sublimação do “gesto primário”,
ponto de encontro das fundas raízes do
Tempo e do Espaço, emergentes da Terra em forma de cruz.
(ALMEIDA, 1960, p. 20)

Relendo o texto de Almeida, salta à vista que, a despeito da radical modernidade que
envolvia Brasília, tenha sido escolhido para a inauguração da capital um poema de
feições tradicionais, considerando sua linguagem, retórica e os temas abordados.
Características que o crítico literário Alfredo Bosi chama de aspecto “passadista” da
produção do poeta, na qual seria possível perceber “um natural pendor pelo heráldico,
traço que seria pura e belamente romântico se não fosse a pátina parnasiana de que
jamais conseguiria libertar-se” (BOSI, 1972, p. 420). Na Prece Natalícia, poderíamos

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verificar, essa “pátina parnasiana” se levarmos em conta o tom épico, as citações em
latim e a linguagem rebuscada.
Características semelhantes também podem ser notadas nos poemas apologéticos
publicados na seção Brasília na Literatura da revista Brasília, periódico editado pela
Novacap (Companhia Urbanizadora da Nova Capital) com o intuito de divulgar e
defender a transferência da capital, apresentar o dia a dia das obras e reafirmar seus
paradigmas modernistas e as vantagens da opção por tal modelo de cidade. Pela leitura
da coluna, considerando as edições entre novembro de 1957 e dezembro de 1959,
podemos constatar que a noção de literatura, para a revista, é essencialmente poesia.
Esta, nas páginas do periódico, é representada por poemas que nos parecem guardar
uma certa pátina parnasiana, usando o termo de Alfredo Bosi, uma vez que, muitos
deles, apresentam linguagem hiperbólica, de tom épico e, não raro, formas fixas pouco
usuais na poesia moderna, como odes e sonetos. Aspectos conservadores que
contrastam com o frescor do projeto gráfico modernista e com as expressivas imagens
das maquetes e das construções dos edifícios projetados por Oscar Niemeyer.
Ainda sobre a revista Brasília, vale mencionar que outros escritores ligados à Semana
de 22 foram escalados pelo periódico para defender Brasília e a ideia da mudança da
capital para o interior do País. Em texto publicado na edição de novembro de 1957, Raul
Bopp (1957), considerado um dos maiores poetas modernistas dessa geração, escreve,
em um artigo, que a fundação da cidade, nas suas palavras, “mexe” com a história e
coloca o Brasil em novas bases, encerrando o ciclo político do litoral. Defende os
aspectos geográficos do Planalto Central e, assim como a ideia do poema de Guilherme
de Almeida, vê a cidade como grande fator de integração nacional. Além disso, acredita
ser possível “com o deslocamento do centro administrativo do país para o interior,
alcançar soluções estupendas: fazer a metrópole da vida mais barata do mundo.”
(BOPP, 1957, p. 15) Já Menotti Del Picchia (1960), que abre a mesma edição de maio
de 1960 em que é publicada a Prece Natalícia de Brasília, também defende similares
princípios presentes no poema fundacional de Almeida. Em texto intitulado são paulo e
brasília, Del Picchia se diz convencido de que a nova capital seria “um ponto de partida
para uma urgente revisão de todos os valores da vida nacional”. Ademais, para o poeta,
com a construção de Brasília “o sonho dos revolucionários da Semana de Arte Moderna
de 22 - Marcha para o Oeste - se realiza numa real tomada de posse do país, quer
fisicamente por uma violenta expansão geográfica, quer pela ação de uma mentalidade
autenticamente nacionalista”, e mais adiante afirma que o dinamismo nacional pelo qual
a cidade seria responsável é “o espírito das bandeiras que ressurge em toda a sua
plenitude.” (DEL PICCHIA, 1960, p. 1)
Como se vê. É recorrente a intenção de fazer ressurgir tal espírito das bandeiras
mencionado por Del Picchia, relacionando-o a Brasília. É o caso de Cassiano Ricardo
que, ao lado de Plínio Salgado e Cândido de Motta Filho e do próprio Del Picchia, fundou
o Verde-amarelismo, movimento nacionalista de inclinação fascista “cheio de apelos à
Terra, à Raça e ao Sangue” (BOSI, 1972, p. 385). Cassiano Ricardo é autor do livro
Marcha para Oeste: a influência da bandeira na formação social e política do Brasil e

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compartilhava “a visão de que a modernização do país estava associada à ‘conquista do
oeste’, mas, através dos imaginários de modernidade nacional que propagavam,
também vieram a fornecer a legitimidade ideológica para que esse projeto fosse
realizado.” (TAVARES, 2021, p. 24) Não é de se surpreender, portanto, que ele recorra
ao tema no poema Toada para se ir a Brasília, publicado pouco antes da inauguração da
cidade, em março de 1960:

Vou-me embora pra Brasília,


por determinação celeste.
Pouco me importa a distância,
lá encontrarei minha infância.

(Não foi lá que meu avô,


pra encantar crianças grandes,
num misto de magia e mágoa,
um dia pôs fogo na água?)
(RICARDO, 1982 [1960], p. 57)

No trecho, que começa com uma possível alusão ao poema Vou-me embora pra
Pasárgada, de Manuel Bandeira (2008 [1930]), o eu-lírico recupera a história do mito
fundador de Goiás, a partir do episódio em que Bartolomeu Bueno teria botado fogo em
uma cuia de aguardente para ameaçar os indígenas com seus supostos poderes
mágicos que seriam usados para incendiar os rios da região caso eles não revelassem a
localização das jazidas de ouro que o bandeirante buscava. Segundo a mesmo mito—
também contada na revista em quadrinho Epopeia, que dedicou em 1959 uma edição
especial à história de Brasília — teria sido nessa ocasião que os indígenas deram ao
bandeirante a alcunha de Anhanguera, o mesmo que diabo velho (QUADROS, 2017).
Anhanguera, por sua vez, aparece também na obra em homenagem a Brasília do
diplomata e poeta moderno da chamada Geração de 30, Vinicius de Moraes, um dos
responsáveis por renovar a poesia da música popular brasileira com o advento da Bossa
Nova, movimento bastante relacionado pela historiografia aos “anos dourados” do
governo de Juscelino Kubitschek. Em Brasília Sinfonia da Alvorada, poema sinfônico
feito em parceria com Tom Jobim, a pedido de Oscar Niemeyer e de JK, como revela em
crônica de 1961 (MORAES, 2008), a forma dos versos é menos conservadora do que a
de Cassiano Ricardo, mas o tom épico e grandiloquente, e até mesmo as escolhas
temáticas são similares ao poema de Guilherme de Almeida. O poema é dividido em
cinco movimentos que contam a história de Brasília em uma evolução linear e
cronológica que parte de uma ilusória imagem do Planalto Central desabitado antes do
início das obras da capital e termina com a cidade já construída. Para enfatizar a
suposta condição de sítio ermo sobre o qual a capital teria sido fundada, os
bandeirantes são mencionados como figuras que apenas passaram pela região e a
abandonaram, assim como teriam feito os indígenas e os animais ferozes.

Das grandes extensões, dos fundões crepusculares


Nem parecia mais ouvir os passos
Dos velhos bandeirantes, os rudes pioneiros
Que, em busca de ouro e diamantes,

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Ecoando as quebradas com o tiro de suas armas,
A tristeza de seus gritos e o tropel
De sua violência contra o índio, estendiam
As fronteiras da pátria muito além do limite dos tratados.
- Fernão Dias, Anhanguera, Borba Gato,
Vós fostes os heróis das primeiras marchas para o oeste,
Da conquista do agreste
E da grande planície ensimesmada!
(MORAES, 1983 [1960])

Vinicius de Moraes não celebra a violência contra os indígenas, como o fez Guilherme de
Almeida, mas não deixa de representar os bandeirantes como heróis e até cita alguns
deles nominalmente, incluindo o Anhanguera. Além de referências ao Brasil colonial,
outra aproximação entre os poemas é inclusão de partes do texto de Lucio Costa no
relatório do Plano Piloto de Brasília. Porém, diferentemente de Almeida, Vinicius não o
parafraseia, mas cita literalmente o trecho acerca do “gesto primário” de quem “toma
posse” de um território e dos dois eixos que se cruzam como uma cruz. A reiterada
citação das palavras de Lucio Costa nos leva a refletir sobre esse reconhecimento por
parte dos autores da força poética do texto apresentado ao concurso pelo urbanista e
anteriormente submetido a seu colega de Sphan (Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional), Carlos Drummond de Andrade, como revela o poeta em crônica
publicada no Jornal do Brasil (1982). Para o antropólogo James Holston, “foi a
extraordinária qualidade literária do documento de Lucio Costa que persuadiu de
imediato o júri; havia ali uma poesia adequada à tarefa épica de fundar a capital de um
país” (1993, p. 70). E, para comprovar sua tese, cita Willian Holford, um dos jurados,
para quem as palavras do urbanista brasileiro mostraram-se impactantes e líricas
(HOLFORD, 1957, apud HOLSTON, 1993, p. 70).
E além das palavras de Lucio Costa, Oscar Niemeyer também é citado literalmente no
texto de Vinicius, com transcrições de frases poéticas do arquiteto sobre Brasília, como
a que ele compara a cidade a “uma flor naquela terra agreste e solitária…” na qual “a
arquitetura se destacasse branca, como que flutuando na imensa escuridão do
planalto...” Dessa mesma forma, é incorporado ao poema um trecho do célebre discurso
de JK durante a visita de reconhecimento ao sítio da futura capital no dia 2 de outubro
de 1956: “Deste planalto central, desta solidão que em breve se transformará em
cérebro das altas decisões nacionais…”. Tais citações literais evidenciam, portanto, o
quanto a narrativa poética de Vinicius de Moraes é consonante aos discursos dos
protagonistas políticos da fundação de Brasília e à maneira como eles buscavam
historicizar a cidade (DERNTL, 2021). Ao mesmo tempo, a intertextualidade observada
em versos poéticos, discursos políticos e registros de arquitetos mostra como a criação
literária perpassou vários escritos produzidos à época inicial de construção de Brasília.
A arquitetura de Oscar Niemeyer, combinada a imagens do Brasil colonial, também é
tema de outro poeta moderno, este da chamada Terceira Fase Modernista ou Geração
de 45: João Cabral de Melo Neto. Essa combinação aparece em pelo menos três poemas
do autor: Uma mineira em Brasília e Mesma mineira em Brasília, publicados no livro A
educação pela pedra, em 1966; e À Brasília de Oscar Niemeyer, do livro Museu de tudo,

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de 1975, que também apresenta outro poema sobre Brasília, Acompanhando Max
Bense.
O que primeiro chama a atenção na leitura conjunta de Uma mineira em Brasília e
Mesma mineira em Brasília são as semelhanças entre os dois poemas, que não ocorrem
apenas no título. Conforme analisa a professora Thaís Toshimitsu (2009), há uma
relação especular entre eles: a primeira estrofe do primeiro é refletida na segunda
estrofe do segundo, com pequenas variações semânticas e lexicais. Vejamos essas
estrofes dos dois poemas respectivamente:

No cimento de Brasília se resguarda


maneiras de casa antiga de fazenda,
de copiar, de casa-grande de engenho,
enfim, das casaronas de alma fêmea.
Com os palácios daqui (casas-grandes)
por isso a presença dela assim combina:
dela, que guarda no jeito o feminino
e o envolvimento de alpendre de Minas.
(MELO NETO, 1996, p. 30)

No cimento duro, de aço e de cimento,


Brasília, enxertou-se, e guarda vivo,
esse poroso quase carnal da alvenaria
da casa de fazenda do Brasil antigo.
Com os palácios daqui (casas-grandes)
por isso a presença dela assim combina:
dela, que guarda no corpo o receptivo
e o absorvimento de alpendre de Minas.
(MELO NETO, 1996, p. 40)

Em ambos os poemas, as imagens das “casas-grandes” ganham espaço de destaque e


evocam para Brasília aspectos arquitetônicos e sociais do “Brasil antigo” e colonial, ou
seja, aquela ideia de país arcaico e atrasado que a capital, portanto, não lograra
superar (TOSHIMITSU, 2009). Mais do que associar a arquitetura de Niemeyer ao
barroco mineiro, com a intenção de forjar uma identidade verdadeiramente brasileira
para o movimento moderno carioca, ou uma continuidade entre tradição e
modernidade, como era fundamental para Lucio Costa, podemos ver no poema de João
Cabral de Melo Neto um aspecto de modernização conservadora pela qual passava o
Brasil. Na análise de Toshimitsu, há ainda nos poemas um embaçamento das fronteiras
das imagens do Brasil moderno e arcaico, que se sobrepõem ou se misturam:

Tanto faz a cruz colonizadora ou o avião, o sentido continua o mesmo. Não é à toa,
assim, que os poemas da mineira em Brasília portam imagem semelhante: o otimismo de
Brasília é a repetição do gesto fundador de nossa condição colonial e atrasada.
(TOSHIMITSU, 2009, p. 197)

Interessante a alusão que a autora faz ao avião, que ao longo do tempo, no imaginário
da cidade, se sobrepôs à “cruz colonizadora”. Mais uma vez o símbolo religioso é
destacado, o que reforça quão forte é esse elemento para a construção imagética da
cidade. Recorrência que confirma a tese de James Holston (1993) de que a intenção de

• 12
Costa em relacionar a fundação de Brasília a símbolos sagrados foi um “fato
amplamente percebido por urbanistas, arquitetos, poetas, historiadores e jornalistas”.
Para o antropólogo, “essa associação formal, icônica, evoca a ideia de um sítio sagrado
para a cidade de Brasília e uma bênção divina para a fundação da capital, em uma
evocação baseada na associação convencional no mundo cristão entre cruzes e coisas
sagradas.” (HOLSTON, 1993, p. 77) Com esse mesmo sentido, podemos lembrar o
mitológico do sonho do padre italiano João Bosco, canonizado como Dom Bosco, que
teria profetizado em 1883 o surgimento de uma grande civilização entre os paralelos 15
e 20, a beira de um lago, uma terra prometida de onde jorraria leite e mel. A profecia
foi publicada em 1935 em um dos volumes de memórias do religioso, mas só foi
interpretada como Brasília a partir de 1957, quando um assessor de JK foi informado
sobre ela por um apoiador do presidente. A partir de então, passou a ser mobilizada
como mais um instrumento de legitimação da construção da cidade (VIDAL, 2009). Um
argumento de forte apelo popular por forjar, em um país eminentemente católico, mais
um mito de origem à cidade, agora relacionado a uma anunciação divina feita por um
santo.

Em outro poema de João Cabral de Melo Neto, À Brasília de Oscar Niemeyer, vemos
uma relação entre as casas-grandes e os prédios residenciais modernistas de Brasília:

Eis casas-grandes de engenho,


horizontais, escancaradas,
onde se existe em extensão
e a alma todo aberta se espraia.

Não se sabe é se o arquiteto


as quis símbolos ou ginástica:
símbolos do que chamou Vinicius
"imensos limites da pátria"

ou ginástica, para ensinar


quem for viver naquelas salas
um deixar-se, um deixar viver
de alma arejada, não fanática.
(MELO NETO, 1975, p. 64)

Dessa vez, ao relacionar tais edificações de Brasília ao passado colonial das “casas-
grandes de engenho”, o poeta chama atenção para a horizontalidade e a longa extensão
dos edifícios modernos da capital e parece sugerir uma sensação de liberdade e de
bem-estar para quem as habita. No entanto, também indaga se o arquiteto “as quis
símbolos ou ginástica”, sendo os símbolos o que Vinicius de Moraes teria chamado de
“imensos limites da pátria”. Uma provável referência de João Cabral ao poema
Solilóquio (1938), de Vinicius, no qual o verso citado aparece e que, transposto ao
contexto semântico do texto do poeta pernambucano sobre Brasília, podemos
interpretar como vazio e solidão. Já a “ginástica” poderia ser o esforço que os
habitantes dos edifícios modernos teriam de fazer para se adaptar ao estilo
arquitetônico dos edifícios da capital. É nesse ponto que acionamos Holston novamente,

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e sua afirmação de que “os modernistas propõem que as pessoas que venham ocupar
suas obras sejam forçadas a adotar as novas formas de associação e os novos hábitos
pessoais que a arquitetura está a representar.” (1993, p. 69) Ou seja, segundo o
poema, poderia ser intenção do arquiteto e de sua obra ensinar esses novos hábitos
pessoais aos quais se refere o antropólogo. Na interpretação de pesquisador do campo
dos estudos literários, Renan Nuernberger, o poema ainda sugere a existência de um
“desejo de adequação entre as potencialidades emancipadoras de Brasília, cujo
espelhamento no passado colonial mantém as contradições já expostas, e a necessidade
de uma ‘alma arejada’ àqueles que ocupam as ‘salas’ de Brasília” (2016, p. 96).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se, nos textos literários analisados, observamos tantas imagens e referências a um
passado glorioso, retomando tópicos centrais da historiografia brasileira como o
bandeirismo e a independência do Brasil, podemos refletir sobre o impacto que
representou a construção da nova capital no imaginário dos brasileiros daquele tempo.
Com deliberada intenção ou não, essa maneira de representar a cidade corroborou o
esforço que os chamados protagonistas da fundação empenharam nade legitimação de
Brasília. Uma construção histórica que — como vimos também se reflete na literatura —
projeta um futuro também cheio de glórias e promessas, mas sempre em conciliação
com o passado, que jamais é problematizado.

Notamos, nas obras literárias aqui apresentadas, não apenas a convivência da tradição
e modernidade, como também a ausência de conflitos e contradições que, pensamos
hoje, a evocação desses tópicos e símbolos do Brasil deveria trazer à tona. Essa
articulação moderno/arcaico aparece em todos os casos aqui apresentados. No entanto,
apesar da aproximação temática, é importante ressaltar uma distinção entre os poemas
de João Cabral de Melo Neto e os demais textos analisados resultado não apenas de
uma diferença geracional, mas, principalmente, da sensibilidade do poeta. Isto é, ao
contrário dos outros autores, na poesia do pernambucano, jamais são reforçadas as
violências e feridas da colonização.

Diversidade de abordagens que evidencia como a literatura opera em muitas nuances


na representação ou construção simbólica da cidade, com enorme variação de olhares e
fragmentos destacados por cada obra analisada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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VIDAL, Laurent. De Nova Lisboa a Brasília: a invenção de uma capital (séculos XIX-XX).
Trad. Florence Marie Dravet. Brasília: UnB, 2009.

• 15
CURITIBA
A cidade reimaginada e o urbanismo pós-moderno
CURITIBA/CURITIBA
Historiografia, ideários e regimes de historicidade

REGO, Renato Leão


Professor titular; Universidade Estadual de Maringá
rlrego@uem.br
RESUMO

Este trabalho explora a mudança de paradigma notada nos projetos urbanos


que transformaram Curitiba a partir de meados dos anos 1960. Planejamento
ambiental, pensamento ecológico, preservação, revitalização, reciclagem, e
questões como pertencimento e identidade cultural foram fundamentais para
a construção da cidade então reimaginada – e posteriormente propagada
internacionalmente como modelo urbanístico. Ao contextualizar projetos
icônicos da capital paranaense, este trabalho sustenta que ideias pós-
modernas em circulação global, junto com a revisão crítica da arquitetura e do
urbanismo modernos, foram a base do urbanismo praticado naquela cidade. O
trabalho contribui não apenas para a narrativa da história recente do
urbanismo no Brasil, mas também para o entendimento de uma estratégia
projetual que priorizou o contexto sociocultural e o entorno físico. Esta
estratégia promoveu o desenho urbano amparado no vernacular, a partir de
suas referências fundamentais, a saber o passado (historicismo) e o lugar
(regionalismo), em detrimento da idealização da cidade funcional e da
arquitetura de caráter universal.

PALAVRAS CHAVE Circulação de ideias; arquitetura moderna; difusão do


urbanismo; planejamento ambiental; desenho urbano.

ABSTRACT

This paper explores the paradigm change noticed in the urban projects that
have transformed Curitiba since mid-1960s. Environmental planning,
ecological thinking, preservation, revitalization, recycle, and issues such as
belonging and cultural identity, were fundamental to the construction of the
reimagined city – later disseminated worldwide as an urban model. By
contextualizing iconic projects of the Parana state capital city, this paper states
that post-modern ideas in global circulation, along with the critical review of
the modern architecture and urbanism, were the basis for the urbanism put
into practice in that city. The paper contributes not only to the narrative of the
recent history of urbanism in Brazil but also to the understanding of a design
strategy that prioritized sociocultural context and physical environment. This
strategy promoted urban design based on the vernacular, considering its
fundamental references, namely the past (historicism) and the place
(regionalism), rather than the idealization of the functional city and the
universal character of architecture.

KEY-WORDS OU PALABRAS-CLAVE Circulation of ideas; modern


architecture; town planning diffusion; environmental planning; urban design.
INTRODUÇÃO
Jaime Lerner, engenheiro, arquiteto, ex-presidente do Instituto de Pesquisa e
Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC) e ex-prefeito da capital paranaense, costumava
tratar com ironia o post-modern. Contava que em muitas construções públicas de Curitiba
“o material básico usado são os postes de madeira reciclados - que estavam sendo
substituídos na iluminação pública por postes de concreto”. A decisão era de “reaproveitar
esses postes e até comprar grandes lotes de outras cidades do Brasil”. Havia uma
“disposição inicial de nossa parte, de ordem estética, para trabalhar com madeira. Depois,
aliamos o interesse em reciclar os postes que estavam saindo de linha para evitar que
virassem lenha na fogueira”. Assim, zombava Lerner, “o que acabou vingando mesmo,
pelo menos em Curitiba, foi o ‘poste moderno’” (LERNER, 2011 p. 61).
Por trás desta ironia, entretanto, desponta uma proposição pós-moderna,
inequivocamente anunciada pelo prefixo re-: reciclar, reaproveitar, reutilizar (ELLIN,
1996 p. 04). Mais que isso, as transformações pelas quais passou a cidade de Curitiba
nos anos 1960 e 1970 – com Lerner ao comando de boa parte delas – decorrem do
planejamento ambiental, ecologicamente sustentável, e do desenho urbano que se
ampara no vernacular em suas duas referências fundamentais: o passado (historicismo)
e o lugar ou sítio (regionalismo).
Há, entretanto, uma lacuna na historiografia da cidade e do urbanismo na medida em que
são negligenciados os fundamentos pós-modernos dos projetos que reimaginaram
Curitiba e contribuíram para que a capital paranaense se transformasse em “cidade-
modelo” e “capital ecológica” (ver DUDEQUE, 2001; MACEDO, 2004; IRAZÁBAL, 2009;
DUDEQUE, 2010; MACEDO, 2013; WARD, 2013.
As transformações de Curitiba acabaram obscurecidas pela ditadura e pela repercussão
da construção de Brasília. Além disso, o primeiro Seminário de Desenho Urbano (SEDUR),
realizado em 1984, apresentou uma agenda para a consolidação do desenho urbano no
país, propondo uma mudança nas premissas da intervenção na forma das cidades (LEME
et al, 2021). Em grande medida esta mudança já podia então ser notada em Curitiba,
porém nas quatro edições do Seminário (1984, 1986, 1988 e 1991) não há menção sobre
a transformações na capital paranaense (ver TURKIENICZ, 1984a; TURKIENICZ, 1984b;
TURKIENICZ; MALTA, 1986; HOLANDA; KOHLSDORF, 1995).
Do mesmo modo, nos estudos apresentados nas dezesseis edições do Seminário de
História da Cidade e do Urbanismo (SHCU) a Curitiba reimaginada a partir dos anos 1960
nunca foi tratada. A Curitiba flagrada nos estudos apresentados no SHCU ao longo de
trinta anos (1990-2021) é a cidade setecentista ou da belle époque; é o sítio da presença
negra; o foco de febre tifoide; é também o centro da dinâmica socioeconômica regional;
é ainda a urbanidade observada através das representações literárias e das celebrações
da arte moderna (ver OLIVEIRA, 1996; NICOLAZZI, 2000; PEREIRA, 2000; DUDEQUE,
2006; JAZAR; ULTRAMARI, 2021; KOENTOPP; JABUR, 2021; e PESSATTI e MAZIVIERO,
2021).

● 1
Nos anos 1980, a arquitetura produzida em Curitiba nas décadas anteriores foi tratada
como “dialeto” e “matéria segunda” da arquitetura paulista (SEGAWA, 1986 p. 32; ZEIN,
1986 p. 29), por conta formação paulistana de alguns dos seus projetistas que acabaram
migrando para o Paraná.1 Mas esta explicação simplificadora já está sendo revista e
reformulada (ver REGO e JANUÁRIO, 2022). Entretanto, o urbanismo pós-moderno que
pronto se implantou em Curitiba está por ser contextualizado e discutido. Este é o objetivo
deste trabalho.
Este trabalho se fundamenta na circulação das ideias e na noção de “zonas de contato
arquitetônicas” (AVERMEATE; NUIJSINK, 2021), ciente das “histórias conectadas”
(SUBRAHMANYAM, 1997) dos vários profissionais atuando em trabalho colaborativo e
conjuntamente no IPPUC, no jovem curso de arquitetura e urbanismo da Universidade
Federal do Paraná e na formação de equipes variadas para a participação em concursos
nacionais e internacionais (SANTOS; ZEIN, 2009). A partir deste fundamento, e diante de
‘cartões postais’ da “cidade-modelo”, serão analisadas propostas paradigmáticas de
desenho urbano e do planejamento ambiental em Curitiba, contextualizando-as.
Este trabalho contribui, portanto, para a narrativa da história recente do urbanismo no
Brasil e para o entendimento, com sentido prospectivo, de uma estratégia projetual que
priorizou o contexto social e o entorno físico reais, em detrimento da idealização da cidade
funcional e da arquitetura de caráter universal.

ZONAS DE CONTATO ARQUITETÔNICAS, HISTÓRIAS CONECTADAS, E O ‘BRASIL GRANDE’


Até os anos 1960 Curitiba era uma cidade provinciana, um centro industrial incipiente. A
arquitetura moderna apareceu na capital paranaense em meados do século XX de modo
acanhado, se comparado com as construções de Artigas e Cascaldi no rico norte do estado
no final dos anos 40. O café era o principal produto da região norte-paranaense, que
passou a ser o centro da produção nacional na metade do século XX. Em 1955, a saca de
café atingiu o valor mais alto até então registrado, com repercussões econômico-sociais
de impacto (CANCIAN, 1981). A prosperidade econômica impulsionou o rápido
desenvolvimento regional e contribuiu para o crescimento demográfico acelerado naquela
região (REGO, 2012; REGO, 2019). Mas a cafeicultura e o comércio internacional do café
acabaram favorecendo também as finanças do estado do Paraná, que em 1953
comemorou o centenário da emancipação da província de São Paulo e uma década antes
havia celebrado os 250 anos de sua cidade capital. As comemorações destas datas
incluíram uma série de investimentos na capital do estado, que almejava tornar-se uma
capital moderna. Desse modo, recursos financeiros e um ambiente favorável
impulsionaram transformações em Curitiba.
A capital do Paraná tem uma história de décadas de planejamento urbano até alcançar o
status de cidade-modelo (IRAZÁBAL, 2009 p. 203). A cidade investiu em planos
urbanísticos que passaram a fomentar o desenvolvimento e orientar as intervenções na

1
Luiz Forte Netto e José Maria Gandolfi graduaram-se pelo Mackenzie em 1958; Joel Ramalho Júnior e
Roberto Luiz Gandolfi graduaram-se pela mesma instituição, respectivamente em 1959 e 1961.

● 2
forma urbana. Foi assim com o plano desenvolvido por Alfred Agache em 1943 – nas
comemorações dos 250 anos de fundação da cidade – e depois, em 1965, com o Plano
Preliminar de Urbanismo, elaborado pelo arquiteto Jorge Wilheim com uma equipe local.
Anos depois, em 1972, Wilheim organizou em Curitiba um encontro da União
Internacional de Arquitetos, que aproximou o IPPUC de colegas oriundos de vários países.
O Plano Preliminar de Urbanismo tratava da transformação do perfil econômico do
município e do desenvolvimento de uma área industrial. O Plano propôs a criação do
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano da cidade (IPPUC), no encalço da abertura
do primeiro curso de arquitetura e urbanismo do estado, na Universidade Federal do
Paraná em Curitiba, em 1962. A abertura deste curso atraiu para Curitiba profissionais
formados em São Paulo, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Rio de Janeiro.2 É importante
notar, para a contextualização que aqui se descortina, que os acervos das bibliotecas da
universidade e do IPPUC naquele momento atestam a circulação global de ideias de
arquitetura e urbanismo (VIANNA, 2017; MEDEIROS, 2021).
Muitos dos professores da Universidade Federal, incluindo alguns ex-alunos, atuaram no
IPPUC e em escritórios privados.3 Em trabalho colaborativo e em equipes com formações
diversas, estes profissionais – conhecidos como Grupo do Paraná – participaram de
inúmeros concursos de arquitetura, obtendo destaque internacional. Foram
aproximadamente quarenta projetos classificados em concursos nacionais nos anos 1970;
entre o final dos anos 1950 e meados de 1970 foram mais de oitenta premiações
concedidas às equipes paranaenses. Somam-se aproximadamente dezessete primeiros
prêmios nas décadas de 1960 e 1970 (GNOATO, 2002; PACHECO, 2004; PACHECO, 2010;
JANUÁRIO, 2018).
Lerner é certamente o nome mais conhecido deste grupo de arquitetos. De fato, ele tem
um papel preponderante na história das transformações curitibanas da segunda metade
do século passado – não apenas como político, mas também na academia, no instituto
de planejamento e na prática profissional privada, como articulador dos colegas. Recém-
graduado em engenharia civil em 1961, Lerner trabalhou no escritório paulistano do
arquiteto conterrâneo David Libeskind, que acabara de concluir a obra do Conjunto
Nacional, na Avenida Paulista. Naquele ano, os projetos de Lerner para a Casa do
Estudante Secundário e para uma Residência no Alto de Pinheiros foram publicados pela
revista ACRÓPOLE (1961). No ano seguinte, Lerner trabalhou no escritório parisiense do
trio Georges Candilis, Alexis Josic e Shadrach Woods. Candilis e Woods integravam o

2
Dentre os docentes pioneiros do curso de arquitetura e urbanismo da UFPR, Marcos Prado e Armando
Strambi graduaram-se em Minas Gerais, e Gustavo Gama Monteiro e Cyro Corrêa Lira, no Rio de Janeiro;
Léo Grossman se formou no Rio Grande do Sul. Dentre os egressos das primeiras turmas deste curso que
entraram para o quadro docente da instituição estão: Alfredo Jacobowisc, Jaime Wassermann, Lineu
Borges de Macedo, Onaldo Oliveira, Alfred Willer, Henrique Panek, Lubomir Ficinski Dunin, Jaime Lerner,
Domingos Bongestabs, Manoel Coelho, Abrão Assad, José Sanchotene e Leonardo Oba.

3
Dentre estes profissionais estão Luiz Forte Netto, José Maria Gandolfi, Roberto Luiz Gandolfi, Lubomir
Ficinski, Domingos Bongestabs, Marcos Prado, Vicente de Castro Neto, Alfred Willer, Abrão Assad, José
Hermeto Palma Sanchotene, Oscar Mueller, Joel Ramalho Junior, Leonardo Oba, Guilherme Zamoner,
Rubens Sanchotene, Ariel Stelle, Aldo Matsuda, Renato Mueller, Orlando e Dilva Busarello, e Jaime Lerner.

● 3
Team 10, o grupo que instigou mudanças nos Congressos Internacionais de Arquitetura
Moderna (CIAMs) com a revisão crítica dos seus princípios. Grosso modo, o Team 10
buscava conceitos e estratégias projetuais que expressassem a identidade social, o que
tornaria os lugares capazes de serem apropriados por seus residentes e usuários (ver
http://www.team10online.org/team10/introduction.html; REGO; JANUÁRIO; AVANCI,
2020).
De volta a Curitiba, Lerner estabeleceu seu escritório de arquitetura em sociedade com o
arquiteto Domingos Bongestabs em 1963, graduou-se em arquitetura e urbanismo em
1964 e no ano seguinte tornou-se professor do mesmo curso. Em 1968, Lerner e os
colegas Lubomir Ficinski, Luiz Forte Netto, Marcos Prado e Roberto Gandolfi ministraram
aulas na UnB, em substituição aos professores afastados, depois que o campus na capital
federal fora invadido por policiais e militares.4 Neste ano, Lerner ganhou o concurso para
o projeto da Sede da Polícia Federal em Brasília, em coautoria com Bongestabs e Marcos
Prado. Participou também da equipe que trabalhou com Wilheim na elaboração do Plano
Preliminar de Urbanismo em 1965 e chegou a exercer a presidência do IPPUC entre 1968
e 1969. Em 1969, Lerner e a equipe formada junto com José Maria Gandolfi, Roberto
Gandolfi, Forte Netto e Ficinski desenvolveram o projeto do Eurokursaal na cidade de Sán
Sebastián, Espanha, depois de terem sido premiados no concurso internacional realizado
para este fim. Tornou-se presidente do IAB em 1970 e foi nomeado prefeito da capital
paranaense em duas ocasiões: em 1971, depois de filiar-se à ARENA, e em 1979; e foi
eleito para o cargo em 1989.
O que trato de apontar nesta trajetória são as “histórias conectadas” formando uma rede
de colaboração e conexões que perpassam serviço público, docência, iniciativa privada e
entidade de classe. Pode-se notar aí a circulação de ideias e a interação de atores de
diferentes situações geográficas e culturais, em experiências de trabalho, em concursos
internacionais, em reuniões técnicas.
Em um intercâmbio multidirecional de conhecimento, essas relações remetem ao que
Avermaete e Nuijsink chamaram de zonas de contato arquitetônicas: encontros de
diferentes culturas arquitetônicas, frequentemente em situações de relações de poder
assimétricas, nas quais ideias, abordagens e ferramentas são negociadas, seletivamente
emprestadas, parcialmente adaptadas ou rejeitadas. Este conceito (decolonial) permite
“iluminar os processos complexos de troca de conhecimento que estão no coração do
caráter multiautoral da arquitetura” e do urbanismo, extrapolando a questão da
‘influência’ entre diferentes arquitetos, do ‘ensinamento’ entre mestres e pupilos, e da
‘importação’ e ‘exportação’ de ideias. Este conceito dá uma noção do desenvolvimento
arquitetônico que é baseada na troca multidirecional e global do conhecimento e
reconfigura a história da arquitetura – neste caso, a história da arquitetura e do
urbanismo em Curitiba – como conteúdo intercultural, multiautoral e policonceitual
(AVERMAETE; NUIJSINK, 2021 p. 3 e 9; FERNANDES, 2021).

4
Lerner não menciona a invasão do campus da UnB; de acordo com ele, os alunos entraram em greve e
os próprios alunos expulsaram os professores. Cf. BERRIEL e SUZUKI, 2012 p. 114.

● 4
ARQUITETURA E URBANISMO EM TEMPOS DE DITADURA
Brasília foi inaugurada em 1961, no começo da ‘década do desenvolvimento’, como
declarou as Nações Unidas (LIERNUR, 2015 p. 71). A transformação do ambiente físico
como manifestação de desenvolvimento, então materializada na nova capital federal, foi
retomada no regime militar (1964-1985). E, para construir um ‘Brasil Grande’, o governo
da ditadura estimulou o crescimento econômico e o desenvolvimento regional, e
implementou grandes obras de infraestrutura, que em certa medida fizeram reviver a
euforia dos tempos de Brasília. Os anos 1970 são lembrados como o tempo do ‘milagre
econômico’, quando o PIB saltou de 9.8% em 1960 para 14% em 1973 e a população
urbana ultrapassou a população rural (embora isso tenha implicado em concentração de
renda, inflação, contas públicas desequilibradas e desigualdade social. ALMANDOZ, 2015
p. 115; DEL PRIORE; VENANCIO, 2010 p. 284).

Figura 1. Monumento moderno à Transamazônica, em Altamira, c.1970. Fonte: IBGE.

Através do INCRA, em 1972 o governo federal pôs em marcha um projeto de colonização


ao longo da recém-criada rodovia Transamazônica (Figuras 1 e 2). Foram planejadas
dezenas de novas cidades traçadas a partir do urbanismo funcionalista, impositivo,
inflexível e ignorante às questões locais, configurando uma vida urbana radicalmente
diferente, tão idealizada quanto utópica (REGO, 2015). As cidades satélites em construção
no Distrito Federal também reproduziam o esquema geométrico e padronizado da unidade
de vizinhança disseminada pelos CIAMs (Figura 3). Acreditava-se que a transformação do
meio físico levaria a uma nova ordem social, tendo a arquitetura e o urbanismo modernos
como seus símbolos mais emblemáticos (HOLSTON, 1989; GORELIK, 2005).

● 5
Figura 2. Placa comemorativa instalada em um tronco no monumento à Transamazônica. Nela lê-se:
“Nestas margens do Xingú, em plena selva amazônica, o senhor Presidente da República dá início à
construção da Transamazônica, numa arrancada histórica para conquista e colonização deste gigantesco
mundo verde. Altamira, 9 de outubro de 1970”. Fonte: IBGE.

Figura 3. Imagem de cidade satélite no Distrito Federal. Fonte: IBGE, s.d.

A técnica do concreto armado e a expressividade plástica da escola brutalista paulista


marcaram a arquitetura brasileira deste período. Assim como o pavilhão brasileiro
desenhado por Lucio Costa e Oscar Niemeyer para a feira mundial de Nova York em 1939,
o edifício projetado por Paulo Mendes da Rocha e equipe para a feira internacional de

● 6
Osaka em 1970 exprimia a estética contemporânea vigente – mas não mais que o edifício
da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo na Universidade de São Paulo.
Porém esta arquitetura,

“caracterizada pelo uso extensivo do concreto armado deixado aparente, pela exploração
plástica do desenho estrutural e por uma paleta reduzida de materiais, começou a ser
criticada por sua improbidade econômica, sua inadequação climática – em razão da baixa
inércia térmica do concreto-, suas linhas abstratas de pouco significado para a maioria da
população brasileira, sua fidelidade à ideia de cidade funcional” (BASTOS; ZEIN, 2010 p.
205).

Em contrapartida, a arquitetura (premiada) coproduzida pelos referidos arquitetos


curitibanos se mostrou híbrida, já que sua composição era menos restritiva, menos
uniforme, e menos dogmática do que a arquitetura brutalista paulista. Distantes da crítica
social e do ambiente metropolitano que marcaram a escola brutalista paulista, o grupo
de arquitetos de Curitiba não expressava vinculação ideológica categórica – apesar do
papel político de Lerner. Sua postura pragmática e seu ‘compromisso com a realidade’
podem ser notados na tomada de decisões em cada projeto, de modo a adotar estratégias
específicas e variadas (REGO; JANUÁRIO, 2022; REGO; JANUÁRIO, 2019).5
É certo que os fundamentos da arquitetura e do urbanismo modernos estavam sob revisão
crítica desde o pós-guerra, em tentativas heterogêneas de se libertar das amarras
funcionalistas. Recusava-se a uniformidade, a generalidade, a estandardização, a
calculada simplicidade, a redução da vida a um denominador comum, enquanto se
buscava a ‘cor local’, a individualidade, a identidade, a imaginação que distinguia a vida
das pessoas e sua condição sociocultural.
A reação ao racionalismo moderno enfatizava a imagem expressiva das edificações e o
modo com que elas se comunicam com as pessoas nas ruas para proporcionar um sentido
de pertencimento e de identidade (ELLIN, 1996; GIAMARELOS, 2022). Esta reação ia
desde o historicismo acadêmico, passando pela interpretação paródica do passado, até a
inspiração encontrada no sítio, no contexto social e na cultura de massa.
Pois a falta de legibilidade das paisagens urbanas erigidas na Europa do pós-guerra incitou
o desejo pelo familiar e por se projetar ‘contextualmente’. Muitas vezes, isso significou
projetar ‘com o vernacular’, o que, nos Estados Unidos, estava associado a edificações
ordinárias. Mesmo o Team 10, descontente com o CIAM, se referenciou no passado e no
vernacular, ainda que suas referências fossem traduzidas em termos modernos para
evitar a imitação direta e o pastiche (ELLIN, 1996 p. 275). Colocado de outro modo, o
Team 10 tratou de contextualizar a arquitetura moderna, como se pode perceber no seu
projeto no Marrocos, com a conformação da morada atenta aos hábitos singulares de
europeus, muçulmanos e judeus (JOEDICKE, 1968).
No conjunto, o pós-modernismo reuniu expressões do pensamento e intenções projetuais
que se ‘despediam da modernidade’, na medida em que fugiam das suas lógicas de
desenvolvimento, colocando-se “não apenas como novidade em relação ao moderno mas

5
TAFURI (1976 p. IX) tratou da arquitetura do começo dos anos 1970 como “forma sem utopia”.

● 7
também como dissolução da categoria do novo” (VATTIMO, 1996 p. VII e IX). Estas
expressões se manifestaram, como bem notou Ellin (1996 p. 04), por meio de um “re-
tudo”: reabilitar, revitalizar, restaurar, renovar, reciclar, etc.
O urbanismo e a arquitetura que apareceram em Curitiba entre o final dos anos 1960 e
início da década de 1970 estão imbuídos destas atitudes. Isso veremos a seguir, com a
análise de estudos de caso exemplares: a Praça 29 de Março (1966), o esquema do ônibus
Ligeirinho (1969), o parque São Lourenço (1971), o Teatro Paiol (1971) e a Rua XV de
Novembro (1972).

PROJETOS, DESENHO URBANO E PLANEJAMENTO AMBIENTAL EM CURITIBA


Os projetos então implementados em Curitiba revelam uma visão estratégica de
crescimento, planejamento ambiental, valorização da memória e da identidade,
compromisso com os recursos públicos. Esses projetos, desenhados para a cidade real,
com seus problemas e potenciais, envolveram transporte público, preservação histórica
e cultural, revitalização e pedestrianização do centro da cidade, e criação de espaços
livres, e se mostraram atraentes, inovadores, baratos (IARAZÁBAL, 2009).

Figura 4. Parque São Lourenço, 2021. Fonte: o autor.

Depois de analisar diferentes tecnologias e sistemas de transporte público de massa em


mais de trinta cidades ao redor do mundo, o IPPUC propôs em 1969 um sistema de ‘metrô
a céu aberto’ para Curitiba, ciente de que as condições físicas, econômicas e sociais da

● 8
cidade não eram compatíveis com um sistema de transporte subterrâneo. Deixando de
lado o custoso metrô, o Instituto desenvolveu um sistema de transporte em ônibus que
integrava a estrutura urbana de eixos lineares implementada pelo Plano Urbanístico de
1966. Era um protótipo do futuro BRT (Bus Rapid Transport), associando o sistema
rodoviário às vantagens operacionais do metrô (VIANNA, 2017 p. 447-449).
O IPPUC implementou também uma abordagem de planejamento ambiental, divergindo
da prática dominante de solucionar a drenagem urbana isoladamente. Uma visão
integrada e global dos problemas ambientais levou ao projeto de um sistema de parques
multifuncionais que trataria conjuntamente das cheias dos rios urbanos e da criação de
áreas de lazer. No começo dos anos 1970, quatro parques urbanos foram criados: Barigui,
Barreirinha, São Lourenço e Iguaçu. Nestes parques alagáveis, pequenas barragens foram
construídas para acomodar as enchentes sazonais. No parque São Lourenço, um velho
edifício industrial foi transformado em centro cultural (Figura 4).

Figura 5. Teatro Paiol. Fonte: Wikicommons, s.d.

Em 1971, um depósito de pólvora, construído pelo exército no final do século XIX e


desativado no início do século XX, foi transformado em teatro, aproveitando sua planta
circular (Figura 5). Desse modo, o IPPUC trabalhou para revitalizar o passado, ativando
a memória local e valorizando o patrimônio cultural. Curitiba possuía então poucos
edifícios relevantes em termos arquitetônicos e históricos, e se notava uma necessidade
de símbolos urbanos afirmativos na cidade. O IPPUC se dedicou à preservação de Curitiba
e ao fortalecimento da sua identidade, estabelecendo um plano de preservação de sítios

● 9
históricos, criando instalações culturais e reabilitando edifícios antigos. O plano de
preservação proposto pelo IPPUC em 1970 e implementado na administração Lerner
(1971-1974) reconheceu e delimitou o centro histórico da cidade como patrimônio
cultural, destacando seus edifícios coloniais, ecléticos e art déco, ressoando a Carta de
Veneza publicada em 1964.
A questão do ‘Coração da cidade’ havia sido discutida no VIII CIAM, em 1951, quando
Candilis foi eleito membro do conselho. Embora as opiniões então não fossem
convergentes, o evento, segundo Mumford (2000 p. 215), tornou-se um ponto de
referência para novas formas do espaço público, incluindo a revitalização de centros
urbanos, que vieram a caracterizar o urbanismo nos anos 1950 e depois – fazendo
portanto uma revisão de certos preceitos do urbanismo funcionalista. Esta revisão já
despontara em evento anterior, no CIAM VI, quando se tratou de “transcender a
esterilidade abstrata da 'cidade funcional', afirmando que 'o objetivo dos CIAM consiste
em trabalhar para a criação de um entorno físico que satisfaça as necessidades
emocionais e materiais do homem” (Frampton, 1994 p. 275). Mas, como nota Frampton
(1994 p. 275) a insatisfação com ‘o funcionalismo modificado da velha guarda’, levou
membros do grupo que viria a ser conhecido como Team 10 a afirmar, após o CIAM IX,
em 1953, que “o homem pode identificar-se facilmente com seu próprio lar, mas também
com o povoado onde ele se encontra. ‘Pertencer’ é uma necessidade básica emocional e
suas associações são da ordem mais simples. De ‘pertencer’ – identidade – provém o
sentido enriquecedor de vizinhança. A rua curta e estreita do bairro pobre triunfa onde
uma redistribuição espaçosa fracassa”.

Figura 6. Mural na Praça 29 de Março, 2021. Fonte: o autor.

● 10
Estas questões de identidade e pertencimento são centrais no desenho urbano curitibano.
A construção da Praça 29 de Março, em 1966, celebrou a fundação de Curitiba e seu
desenho se assenta sobre o sentido de pertencimento. Lerner, Bongestabs e Onaldo Pinto
de Oliveira são coautores deste projeto que conta como o trabalho do artista plástico
Potty Lazzaroto. O desnível do terreno da praça foi trabalhado de modo a abrir uma
esplanada com um espelho d’água no nível inferior, abastecido por uma cascata no nível
superior. O desnível foi resolvido com um muro de concreto aparente com relevos
figurativos criados por Potty. O mural mass-media conta a história da cidade com
palavras, frases e imagens (Figuras 6 e 7). Ali estão registrados o encontro entre
indígenas e colonizadores, os fundadores da vila, a chegada dos imigrantes, os ciclos
econômicos e seus produtos, o progresso urbano e suas máquinas, a construção da
catedral, a vida urbana contemporânea. O pinheiro Araucária e suas sementes também
estão presentes como símbolos regionais.

Figura 7. Arrimo com relevos na Praça 29 de Março, 2021. Fonte: o autor.

Embora relevo artístico e texturas no concreto aparente tenham aparecido,


respectivamente, na obra de Le Corbusier e de Paul Rudolph, e murais figurativos e
abstratos tenham estampado a arquitetura brasileira, o caráter simbólico do mural de
Poty é digno de nota. A imagem comumente difundida da obra de Poty retrata a paisagem
urbana de Curitiba e valoriza aspectos locais e símbolos culturais e, depois deste mural,

● 11
Poty passou a ser recorrentemente indicado por arquitetos para incluir em seus projetos
arquitetônicos painéis e vitrais com motivos paranaenses.
Estes motivos figurativos, assim como motivos geométricos, tatuaram diversas empenas
de concreto aparente em edifícios curitibanos. Eram uma concessão ao ornamento banido
pela arquitetura moderna (REGO E JANUÁRIO, 2022; SANTOS, 2011). DUDEQUE (2001
p. 241) percebeu que, desde o final dos anos 1950 esquemas e composições derivados
do pinheiro eram um motivo artístico relativamente banal em Curitiba, emplastrados
em vários locais como um atestado de reverência às grandezas do Paraná.

Figura 8. Rua XV de Novembro ou Rua das Flores, s.d. Fonte: Wikicommons.

É que a celebração da emancipação do Paraná e as comemorações dos 250 anos da


fundação de Curitiba fizeram ressurgir o Paranismo. O Paranismo foi um movimento
cultural dos anos 1920 que pretendia dignificar o Paraná perante os demais estados da
federação através da valorização de sua flora e fauna e da reelaboração de lendas
indígenas. Na segunda metade do século XX, essa exaltação reapareceu na valorização
das identidades dos vários grupos imigrantes estabelecidos em Curitiba – alemães,
poloneses, ucranianos, italianos – e suas tradições, assim como das lendas indígenas e
das referências à paisagem natural da capital, à araucária – sua espécie mais

● 12
característica, e à erva mate – produto que marcou a economia urbana local no século
XIX (Figura 8).
No seu livro Acupuntura Urbana, Lerner (2205 p. 13) reforçou a necessidade de
“manutenção ou o resgate da identidade cultural de um local ou de uma comunidade”.
De acordo com ele,

“a identidade é um dos componentes mais importantes da qualidade de vida. Mais do


que boa infraestrutura, bons equipamentos, é muito importante a pessoa se sentir
parte, fazer parte, eu acho que isso é um componente fundamental da identidade
curitibana, da identidade de qualquer pessoa numa cidade” (Lerner apud FARIA
JUNIOR, 2016 p. 137).

A ideia de pedestrianizar ruas centrais de Curitiba havia sido lançada pela equipe de
Wilheim no Plano Preliminar de Urbanismo e foi implementada pelo prefeito Lerner (Figura
8). A valorização da rua tradicional como expressão da vida urbana, notada na prática e
no discurso críticos do urbanismo moderno, fomentou a discussão da pedestrianização e
da valorização de áreas centrais da cidade entre os arquitetos do IPPUC desde meados
dos anos 1960 (REGO; JANUÁRIO, 2022 p. 208). O começo da revitalização da rua, já
liberada do tráfego de automóveis, coincidiu com o encontro da UIA na cidade em 1972.
Delegados internacionais elogiaram a iniciativa, relembrando exemplos europeus bem-
sucedidos. Jornais locais se referiram ao lugar como um misto de praça e rua, jardim e
avenida (DUDEQUE, 2010 p. 203-232). Retomando a tradição colonial portuguesa, as
ruas de pedestres de Curitiba foram pavimentadas com mosaicos de pedras, e lá aparece
novamente, estilizado, o pinhão da Araucária como ornamento simbólico.
O interesse de Lerner pela rua tradicional parece ter emergido na Europa, quando, diz
ele, “trabalhei no projeto de Toulouse [no escritório de Candilis, Josic e Woods] e comecei
cada vez mais me apaixonar pela rua, não a rua nova, mas as ruas que eu estava vendo,
estava sentindo que começavam a desaparecer do país, de todos os países” (BERRIEL;
SUZUKI, 2012 p. 111).

CONCLUSÕES
Os arquitetos curitibanos admiravam os mestres modernos; não romperam efetivamente
com a arquitetura que herdaram deles. Do mesmo modo, não se posicionaram
frontalmente contra a ditadura militar. Diante de um posicionamento ideológico, se
voltaram para a cidade real e suas questões prementes; diante de uma expressão
arquitetônica cristalizada – o brutalismo paulista, se voltaram para o desafio da
criatividade. Recolheram e retomaram valores e práticas descartados pela modernidade
utópica.
As propostas de desenho urbano, arquitetura e planejamento em Curitiba nos anos 1970
revelam ideias e temas então debatidos pelos profissionais locais, como a abordagem
ecológica, a história urbana e da cidade e as políticas identitárias. Os projetos curitibanos
não deixam de refletir a virada pós-moderna rumo a questões socioculturais e ambientais.
Como outras formas de expressão pós-moderna, os projetos urbanos de Curitiba se
inspiraram no lugar, no contexto social e na cultura de massa. Diferentemente dos

● 13
projetistas da jovem Brasília, ele se fixaram na ideia de projetar contextualmente e ‘no
vernacular’. Símbolos regionais, materiais tradicionais e uma admiração pelo passado
contribuíram para um valioso senso de lugar.
Estes projetos descartaram princípios racionalistas e demonstraram interesse por temas
como preservação, renovação e reciclagem. Desviando de modelos urbanísticos
preconcebidos ou estilo arquitetônico específico, demonstraram uma nova abordagem ao
espaço público, envolvendo o apreço pela comunidade. Estes temas seriam mais tarde
reivindicados no Seminário de Desenho Urbano, embora nenhum arquiteto do IPPUC ou
de Curitiba tenha participado do evento. Lerner seguiu recomendando intervenções em
pequena escala na forma urbana, em contraste com a macro análise e o planejamento
tecnocrático predominante no Brasil dos anos 1970, e enfatizando a arquitetura de cada
cidade. Para ele, toda cidade deveria ter um sonho.

● 14
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● 17
DE BONS ARES À NATUREZA ÁSPERA: REPRESENTAÇÕES
URBANÍSTICAS PARA A CIDADE DE MACAPÁ
Olhar sobre a estrutura da malha urbana e os substratos natural

FROM GOOD AIRS TO ROUGH NATURE: URBAN REPRESENTATIONS


FOR THE CITY OF MACAPÁ
Look at the structure of the urban fabric and the substrates
Indicação do artigo aos eixos temáticos: Historiografia, ideários e
regimes de historicidade;

TAKAMATSU, Patrícia Helena Turola


Doutora em Urbanismo pela UFRJ; docente efetiva da UNIFAP
patricia.takamatsu@unifap.br
RESUMO

Uma relação histórica com o urbanismo em Macapá-AP ainda é de vertente


recente, onde revisitar relatos históricos e confrontá-los ainda demanda
revisar os processos metodológicos e propor alternativas as visões
estabelecidas. Dessa forma, a partir da análise da fundação da cidade,
buscou-se meios para avançar no exame dos processos históricos para a
identificação do espaço urbano no contexto amazônico, considerando a
vertente de produção do espaço pela sua malha urbana e seu substrato
natural. Dentro do universo da pesquisa temática, o levantamento
exploratório das referências para suporte do estudo de Macapá, ´pode-se
constatar as bases das políticas de crescimento urbano do município,
tiveram seus princípios de relação com o meio ambiente associados à lógica
de cada época.

PALAVRAS-CHAVE malha urbana, substrato natural, urbanização


amazônica, Macapá.

ABSTRACT

A historical relationship with urbanism in Macapá-AP is still recent, where


revisiting historical reports and confronting them still requires reviewing the
methodological processes and proposing alternatives to the established
views. Thus, based on the analysis of the city's foundation, ways were sought
to advance the examination of historical processes for the identification of
urban space in the Amazonian context, considering the aspect of space
production by its urban fabric and its natural substrate. Within the universe
of thematic research, the exploratory survey of references to support the
study of Macapá, ´you can see the bases of urban growth policies of the
municipality, had their principles of relationship with the environment
associated with the logic of each time.

KEY-WORDS: urban fabric, natural substrate, Amazon urbanization, Macapá.

• 2
INTRODUÇÃO

A Amazônia foi sendo construída através de diversos discursos e representações.


Algumas abordagens trazem a especificidade que provém da forte afinidade da vida
amazônica com as águas, de tal forma que a apreensão natural e empírica a conjuga
em um fato simbólico (TOCANTINS, 2000; COSTA, 2007) e a transporta, por diversas
vezes, para campos idílicos, em que a percepção dessas relações, por mais simbióticas
que pareçam à vida humana, dá o tom da falta de conexão da realidade urbana com o
meio natural.

Por essa razão, esse artigo busca focar na contribuição de novos entendimentos para os
processos de urbanização da cidade amazônica e, mais especificamente, em Macapá,
visando trazer à luz os aspectos relacionados com o estado da arte desses processos. A
importância de investigar essas questões tem, assim, conexão com a necessidade de
uma análise sobre a associação entre traçado urbano e meio natural numa perspectiva
que seja capaz de incluir os diferentes tempos dessa relação.

De fato, ainda há escasso material específico relacionado ao urbanismo das cidades


amazônicas. No que diz respeito ao caso mais específico de Macapá sobre o qual nos
debruçamos, os temas de pesquisa acabam tratando de pontos recorrentes, como a
necessária ampliação da importância geográfica do Amapá, de sua capital, ou a
necessidade de um resgate das caracterizações históricas e patrimônios culturais (em
especial da Fortaleza de São José de Macapá), dentre os exemplos de estudos mais
comuns.

Visa-se, assim, contribuir com a superação da atual carência de pesquisas capazes de


ajudar a orientar, ou mesmo reorientar as decisões de planejamento urbano e demais
políticas públicas associadas à produção do espaço urbano na Amazônia. Há de se
destacar também a análise as mudanças na relação entre os diferentes processos de
produção da malha urbana regular ao longo do tempo e o substrato natural; e, a busca
pela identificação dos agentes responsáveis pela produção do espaço urbano da cidade
amazônica, em especial da cidade de Macapá, assim como as lógicas que governam
essa produção.

A partir da análise da fundação da cidade, buscou-se meios para avançar no exame dos
processos históricos para a identificação do espaço urbano no contexto amazônico.
Dessa forma, e devido ao fato de se tratar de fundação colonial caracterizada pelo uso
de malha ortogonal regular desde sua criação – procedimento que se tornaria
recorrente da adoção futura nos traçados dos demais núcleos urbanos amazônicos –,
optou-se pelo estudo de caso específico, mas representativo, da cidade de Macapá.

• 3
Dentro do universo da pesquisa temática, realizou-se um levantamento bibliográfico
exploratório para suporte do estudo de Macapá. Foram, então, elencadas diversas
referências para contextualizar a urbanização da cidade, em um arcabouço de
produções acadêmicas, tais como artigos, dissertações e teses, que foram puderam ser
encontradas, devido, principalmente, ao desenvolvimento da pesquisa científica sobre o
tema nos últimos 20 anos, sistematizados em base de dados específica.

Com as informações selecionadas, procedeu-se ao agrupamento das referências em que


se abarcou sete categorias de temas: 1) cidades na Amazônia, ocupação e urbanização;
2) formação histórica/cultural do Amapá; 3) relações geopolíticas da/ na Amazônia; 4)
planejamento urbano e os seus efeitos na urbanização; 5) caracterizações dos
processos de urbanização; 6) problemas ambientais no espaço urbano; e, 7)
precarização da urbanização em Macapá.

ORIGENS HISTÓRICAS

Na busca pelo entendimento da formação das cidades e de seus significados de origem,


nota-se que os termos “cidade” e “urbe” não eram sinônimos entre os antigos. A cidade
consistia na associação religiosa e política das famílias e das tribos, enquanto a urbe era
o lugar de reunião ou domicílio e, sobretudo, o santuário dessa sociedade.

Segundo Lefebvre (1999), quando a humanidade lê a cidade como urbe, urge buscar
seus significados e apreensões para tentar abarcar a sua complexidade e a solução de
problemas. Assim, analisar a apropriação da forma, para além de um exercício
epistemológico de raiz da conformação das cidades, é também buscar entender as
apropriações e como estas geram consequências.

Portanto, é comum que as propostas para a cidade contemplem propostas de avanço


para o futuro acompanhadas por releituras do passado. Nesse sentido, Brandão (2008)
destaca que a leitura do passado à luz do presente é impregnada pela busca de valores
que tenham significância atual, o que ressignifica o passado transformando-o em uma
reinterpretação.

Em seus estudos, Rykwert (2006) dá importância ao papel assumido pelos


agrimensores e seus arados no processo de urbanização, dando luz às origens do
planejamento ortogonal, impossível de ser executado sem o recurso de alguma técnica
de agrimensura. Segundo o autor, a marcação dos templos inaugurais, através das
linhas mestras, está alinhada aos pontos cardeais, além de seu papel mítico ligado aos
augures que celebravam os ritos de fundação da cidade. Os agrimensores possuíam a
função de execução do desenho do diagrama fundador, da distribuição das delimitações
e mapas, além de deter a autoridade definitiva em todo litígio sobre a posse da terra.

• 4
Contudo, o recurso técnico instrumental ofereceu certo pragmatismo à importância do
papel assumido pelos arados, transportando-o do universo rural para a fundação das
formas urbanas, lançando, desse modo, luz às origens do planejamento ortogonal
conforme Figura 1, impossível de ser executado sem a agrimensura (RYKWERT, 2006).

Figura 1: Ilustração do trabalho de um agrimensor romano organizando a terra,


conforme demarcações ortogonais e exemplo de aplicação na região entre
Montélimar e Orange . Fonte: RYKWERT (2006, p. 42, 57).

Assim sendo, a orientação cardial, relacionada aos pontos de referência de


posicionamento do augure, tornou-se discurso comum de referência na utilização dos
termos relacionados à direção, como para frente e para trás, esquerda e direita, muito
destacado principalmente no período do Império Romano.

Assim, a origem de fundação da malha obtém com o traçado xadrez seu papel de
controle instrumental, regulando a organização social de ampliação de tomada de
territórios, seguindo as regras aperfeiçoadas tecnicamente por meio da agrimensura e,
posteriormente, aprimoradas pelo próprio engajamento militar.

A CRÍTICA DA GÊNESE DA URBANIZAÇÃO A PARTIR DA MALHA

Para Aureli (2011), o descolamento da malha do entendimento do tecido urbano abre-


se como um conflito entre seus aspetos formais e políticos. Tal compreensão surge da
maneira como as cidades passaram a ser entendidas, mediante a utilização do termo
urbanização, cunhado, no século XIX, por Idelfonso Cerdá (1995). Esse autor destaca
que o entendimento de grelha do planejador de Barcelona foi concebido como

• 5
potencialmente infinito e se destinava a ocupar o vazio entre a cidade velha e os
povoados circunvizinhos.

Sobre a cidade, Aureli (2011) defende que o plano de Cerdá para Barcelona confronta
os princípios de Haussmann de distinta visão da reformulação de cidades modernas
sobre cidades existentes. Para Cerdá (1995), haveria o compromisso de distribuir
serviços, com base em uma reforma estratégica, para melhorar as condições de vida da
classe operária por meio do controle social. Entendia, ainda, que as novas maneiras de
habitar não poderiam estar nos centros com seus monumentos compostos por ruas e
edifícios privados, mas sim nos subúrbios, que trariam melhores condições de vida para
os moradores, considerando a oferta de infraestrutura de qualidade. Nesse sentido, o
processo de urbanização tratar-se-ia de ruralizar a cidade e urbanizar o campo, sendo,
assim, uma dupla agenda.

Segundo Aureli (2011), a coincidência entre o formal e o político não significa


literalmente formalizar a cidade contra a fluidez da urbanização, mas sim aproximar-se
criticamente do político e, com isso, definir uma possibilidade para o formal. Essa
possibilidade só pode ocorrer se houver uma forma de referência que pode reconstruir
criticamente a ideia do todo – a integridade da cidade como uma manifestação contra,
mas também de dentro da urbanização. Para o autor, não há caminho de volta da
urbanização, e a procura pela ágora contemporânea é uma coisa patética que só
demonstra como o nosso entendimento político da cidade é fraco.

Considerando-se tal linha de pensamento, é preciso construir a integridade formal e


política da cidade de modo que não seja uma reconstrução nostálgica idílica, mas sim
função de novos critérios de referência. Nesse sentido, se não recorremos às imagens,
como aquelas que a urbanização prevê de globalização e de governança de mercado,
fica difícil sintetizar as aspirações e ideias que constituem a evolução daquilo que
chamamos cidade contemporânea numa forma simples de referência.

Conforme Rykwert (2006, p. 41), “as cidades são erguidas gradativamente por seus
habitantes, ou numa escala maior, por obra dos especuladores ou das autoridades”. A
formação dos traçados das cidades é considerada como um fenômeno regido por forças
de mercado.

MACAPÁ, HISTÓRICO, ETAPAS E AGENTES DA URBANIZAÇÃO

O povoamento inicial do Brasil e a consequente fundação da cidade de Macapá, de


urbanização portuguesa, ocorrem após o esforço de conquista inicial da orla marítima
atlântica, de fundação de cidades e proteções litorâneas que visavam o domínio
territorial. Sobre isso, Risério (2013) destaca, ao contrário do senso comum, que não se

• 6
pode simplificadamente confrontar o modelo espanhol de ocupação das áreas da
América Latina com a realidade e o contexto de colonização do Brasil pelos portugueses,
desde o descobrimento, bem como com as peculiaridades impostas por uma ampla
extensão territorial e localização da área geográfica das terras brasileiras. A ocupação
tardia das terras hoje compreendidas como região Amazônica ocorreu em 1755 através
do Marques de Pombal.

Inicialmente denominadas como Terras do Cabo Norte, as terras do Amapá foram, até
1713, alvo de disputa internacional entre portugueses, ingleses, holandeses e
franceses, até que a disputa foi parcialmente pacificada pelo tratado de Utrecht, tendo a
região sido assim ocupada dentro de um contexto de proteção militar (SARNEY; COSTA,
1999; SILVA, 2010). Por essa razão, somente a partir do século XVIII, com o
apaziguamento do conflito externo, se afirmou o momento propício para a primazia de
Portugal sobre a descoberta das riquezas que poderiam existir nas terras amazônicas.

Entre 1700 e 1750, a população do Brasil sofreu sua primeira grande expansão
populacional, fundamentalmente devido à imigração. Risério (2013) aponta as
peculiaridades que os dois momentos produziam e a primeira diferenciação entre
cidades planejadas e não planejadas. O autor destaca que, com a floração colonial de
núcleos urbanos, a coexistência de modelos citadinos distintos ganharia visibilidade
maior. Se por um lado vilas não planejadas se formaram nas Minas Gerais, por outro
lado assentamentos conduzidos pela lógica geométrica foram implantados na Amazônia,
em Mato Grosso e nos campos das Goiás.

Segundo Silva (2010), foi apenas durante o século XVIII que os investimentos
sistemáticos no povoamento, na colonização e na urbanização da região começaram a
ser observados pelo Estado português. Em especial, tal atenção se deu durante o que,
por convenção, passou a ser reconhecido como Período pombalino (1750-1808).

O interesse pelas terras amazônicas e por suas riquezas foi correlacionado com a crise
do modelo inicial de colonização português, o qual foi posto em dúvida diante das
significativas perdas das principais possessões ultramarinas na Ásia. Por essa razão, em
1751, o governador enviou a primeira expedição para o povoamento do Amapá,
comandada pelo capitão João Baptista Oliveira, com o intuito de fundar a nova
povoação e fortaleza de Macapá. Essa expedição contou com o destacamento de
agrupamento inicial de 68 pessoas, advindas dos ilhéus açorianos para a promoção da
agricultura no local (Araújo, 1998 [1992]).

Conforme comunicação enviada ao governador em 25 de janeiro de 1752, o traslado


dos açorianos já havia sido concluído, de modo que a região já podia abarcar cerca de
600 “pessoas brancas”. Em fevereiro, foi relatado que "a povoação está muito bem
estruturada num sítio pouco eminente com larguíssima vista, excelentes ares e iguais

• 7
águas" (ARAÚJO, 1998 [1992]). O relato da primeira viagem dá conta das dificuldades
do trajeto entre Belém (povoado já existente) e o destino, trajeto que atualmente é
feito em menos de 12 horas atravessando-se o Rio Marajó por meios modernos, como
barco motorizado ou lancha. Esse relato destaca as dificuldades enfrentadas tanto na
tarefa de “encontrar índios nas aldeias”, quanto na “proporção do tempo que as canoas
gastavam” (ARAÚJO, 1998 [1992]).

Remetendo a escolha do local de implantação da vila como relevante posse da foz do


Amazonas, Silva (2017),

“destaca o papel capital da rede hidrográfica amazônica para o predomínio da presença


portuguesa na região - da qual o rio Amazonas é um dos principais componentes,
podendo juntar-se a este, em território amapaense, o rio Araguari (fronteira sul) e o rio
Oiapoque (fronteira norte)” (SILVA, 2017 pag. 65)

Coube a ele, portanto, a escolha do sítio para a instalação do novo povoado, indicando a
ciência de pré-existências e a ocupação anterior, mas realizando a colonização e a
fundação da vila com o predomínio da imigração, da seleção e da função étnico-social,
além da determinação econômica que se esperava vingar. Segundo Araújo (1998
[1992]):

“Note-se a postura clara do governador delimitando e diferenciando seu investimento


urbano do dos missionários. Desde já avança razões por que terá feito de Macapá uma
eleita entre as vilas que fundou na Amazônia, pretendendo ver naquela urbe, que ele
gostaria que fosse uma cidade e não apenas uma vila, uma representação mais cuidada
do seu projeto de "restauração'' da terra amazônica” (ARAÚJO, 1998 [1992], p. 49).

As primeiras plantas de Macapá das quais se tem conhecimento aparecem nas cartas
dirigidas por Mendonça Furtado ao bispo do Pará. Segundo Araújo (1998[1992]), as
plantas “são remetidas em um desenho tosco, mas, na essência representam o que de
facto será o embrião da vila” (ARAÚJO, 1998 [1992], p.150). Assim, os desenhos
identificam-se como "Mapa da Povoação Antiga do Macapá e da nova que se há de
fazer", e "Planta de Macapá". Tais plantas indicam que foi realizada nova povoação
mais para o norte, após o lago. No local, onde seria sediado o núcleo inicial formado
pelo capitão João Baptista de Oliveira, foram instalados os militares, assumindo o que o
próprio ouvidor diz na carta ao bispo, que apartava dos povoadores o corpo militar para
evitar desordens. Assim, o assentamento da nova povoação foi feito após o lago,
livrando-se do impedimento de crescimento que este representava para o se aumentar
o espaço da vila (ARAÚJO, 1998 [1992]).

Outra marcante observação que se aprofunda sobre as características do urbanismo


pombalino, defendida por Araújo (1998 [1992]), está na definição das duas grandes
praças do traçado implantado, as quais foram orientadas para, respectivamente, se

• 8
instalar na primeira a paróquia e a casa de câmara e cadeia e, na segunda, para
receber o Pelourinho.

Outra característica, segundo Araújo (1998 [1992], p.151), dos lotes utilizados, das
“dez braças de largo por trinta de fundo”, consiste na maior escala do quadro
hierárquico das proporções urbanas utilizadas no Brasil. Este é, de fato, o primeiro
investimento urbano da administração de Mendonça Furtado, o qual alude a outras
questões simbólicas da escolha do sítio ligadas ao poder, em ideias como a de
apresentar uma vasta baía que para que o rio se pareça com o mar, ou na de que desde
o século XVII havia essa intenção de construir uma cidade na boca do grande Rio
Amazonas. Soma-se a tais ideias as relações geográficas intencionais do simbolismo
simultâneo da “Vila do Amazonas” "e da "Vila no Equador".

Assim, ao final do período da administração de Tomas Rodrigues da Costa ficam


definidas as bases espaciais da vila, do traçado das quadras e as duas praças centrais.
A partir daí, o processo encaminha-se para o crescimento da povoação e para a
concretização do projeto da fortaleza determinada nos planos do rei. Essa fase de
"fundamentação" da vila corresponde também ao próprio período de permanência de
Mendonça Furtado no Estado.

Com a saída de Tomas Rodrigues, passa-se à atuação de Manuel Bernardo de Melo e


Castro, tanto em Macapá quanto em todo o Estado, dando continuidade ao projeto
pombalino com as premissas estabelecidas por Furtado, mas balizadas pela
característica peculiar de uma forte noção de controle do trabalho ainda a ser feito e
dos custos dos investimentos que eram necessários fazer.

O governador também cuidou pessoalmente da expansão da cidade. Em missão de


viagem à cidade, levou em sua companhia o engenheiro Gaspar João Geraldo de
Gronsfeld, para cuidar do que ainda haveria de ser feito quanto à igreja e à fortaleza.
Paralela a esta intervenção física na cidade, o governador atuou como forte mediador de
uma ação legislativa, cirando uma série de regramentos, os quais deram origem ao
texto norteador das posturas dos cidadãos e do ouvidor quanto à vila. Observa-se que a
construção de tais posturas reforçou o caráter regulador e normatizador do projeto,
fundamentando o funcionamento urbano e garantido o aumento e o progresso da
povoação.

Do momento considerado já fundamentado pelas bases da vila, as preocupações se


voltaram para a construção da fortaleza, que se colocou com uma série de empecilhos.
Inicialmente, essa construção é iniciada por Gronsfeld, mas como um reduto
temporário, o qual exigia um projeto de fortificação definitivo. Porém, apenas em 1762
o governador envia para Macapá, com o fim específico de projetar e executar a
fortificação da vila, os engenheiros Henrique João Wilkens e Henrique Antônio Galluzzi.

• 9
O projeto apresentado não é um polígono regular, mas uma linha de fortificação que
cobriria toda a parte de terra onde fora instalado primeiramente o povoado, ao sul de
um lago, seguindo aproximadamente a sua forma natural (Figura 2).

Em setembro de 1763, Fernando da Costa de Ataíde Teive assume o governo do estado


no lugar de Mendonça Furtado, que regressa a Portugal. Teive acompanha o estado das
obras da fortaleza junto a Galuzzi e constata que apenas tinham sido construídos os
parapeitos a leste e a sul, além de uma bateria baixa em meia-lua, diante do parapeito
leste. “O pouco adiantamento dos trabalhos e a própria postura do novo governador,
mais afeito as grandes obras, devem ter sido as causas para que este encomendasse
novo projeto ao engenheiro” (ARAUJO, 1998[1992], p. 190).

Figura 2: Planta e Praça da Vila de S. José de Macapá como se chama no ano de


1763. Fonte: AHE. RJ. M8.G2.I02.F.6.5
A Figura 3, a seguir, mostra a sobreposição do Mapa, da Figura 2, com a cidade atual.
Através da sobreposição do Mapa, do reenquadramento da ilustração junto à imagem
da área e mantidas as devidas proporções, é possível observar a distância que a antiga
vila tinha relativamente à Fortaleza de São José de Macapá, além de sua última forma,
que mais se aproxima da atualidade, do grande lago do entorno e da localização da
embocadura de entrada fluvial dele.

• 10
Figura 3: Sobreposição do Mapa de 1973 à cidade atual.
Fonte: Adaptado de AHE. RJ. M8.G2.I02.F.6.5, a autora, 2018

DA CONSTRUÇÃO DE UMA MALHA URBANA À NEGAÇÃO DO MEIO NATURAL

É preciso destacar o contexto da fundação da cidade. De urbanização portuguesa


pombalina, essa fundação consistia, antes de tudo, em um projeto de ocupação.
Contrapondo-se à perspectiva comum, Risério (2013) aponta que há uma falsa
impressão da ausência de civilizações indígenas desenvolvidas e da falta de
planejamento português, mas não se pode ser simplista em comparações com o
planejamento espanhol.

Desde o Descobrimento, a realidade brasileira já demonstrava as peculiaridades


impostas por uma ampla extensão territorial e localização da área geográfica de suas
terras. Apenas a partir do descobrimento do ouro e do período do apogeu de sua
exploração, entre 1730 e 1750, de uma ocupação quase que espontânea das Minas
Gerais, é que se conforma, para Portugal, o ressurgimento de um maior interesse
colonizador que garantiria não só a posse das terras, como também o controle do
monopólio das riquezas encontradas (CARVALHO, 1998).

As regiões do Amapá foram, até 1713, alvo de disputa internacional entre portugueses,
ingleses, holandeses e franceses. A questão foi parcialmente pacificada pelo Tratado de
Utrecht, tornando-se, assim, apta a ser ocupada, em um contexto de proteção militar.
Portanto, foi apenas a partir do século XVIII, com o apaziguamento do conflito externo,
que se conciliou o momento propício para a primazia sobre a descoberta das riquezas
que poderiam existir nas terras amazônicas (ARAÚJO; CARVALHO, 1998).

As primeiras intervenções colonizadoras no Amapá foram, desde o início, incipientes e


demandadas pelo governo central. Eram delegadas às missões jesuítas dos capuchinhos

• 11
de Santo Antônio e aos militares portugueses, com base em acordos vigentes entre as
nações soberanas. Assim, as primeiras iniciativas de povoamento ocorreram de fato
apenas a partir da gestão do governador Francisco Xavier de Mendonça Furtado, já
como gestor geral do estado do Grão-Pará e Maranhão, prendendo-se às ordens régias
recebidas (ARAÚJO; CARVALHO, 1998).

Segundo Silva (2010, p.223), foi somente no século XVIII que “investimentos
sistemáticos no povoamento, na colonização e na urbanização da região passaram a ser
operacionalizados pelo Estado português”. O interesse pelas terras amazônicas estavam
correlacionados com a crise do modelo inicial de colonização portuguesa, o qual foi
questionado em razão das significativas perdas das principais possessões ultramarinas
na Ásia. Assim, a partir de uma mera ocupação territorial, surge um urbanismo
característico pombalino como oposição ao estilo pelo qual as missões jesuítas eram
realizadas.

Assim, a comunicação enviada ao governador João Batipsta Oliveira, em 25 de janeiro


de 1752, informava a conclusão do translado dos açorianos, o qual já podia “deter perto
de 600 pessoas brancas” instaladas no local escolhido (ARAÚJO, 1998, p.149). Em
fevereiro do mesmo ano, o relato da primeira viagem dava conta de que "a povoação
está muito bem estruturada num sítio pouco eminente com larguíssima vista,
excelentes ares e iguaes águas”, além de elucidar as dificuldades do trajeto entre Belém
(povoado já existente) e o destino, trajeto que atualmente é feito atravessando-se o Rio
Marajó. Destacava, ainda, as dificuldades de “encontrar índios nas aldeias”, pela
“proporção do tempo que as canoas gastavam”. Como destaca Carvalho (1998), há
aplicação das políticas de resgate dos índios e, claro, de incentivo à mestiçagem entre
colonos e indígenas, visando à ampliação dos povoamentos.

No que tange à implantação da cidade no sítio, Mergulhão (2018, p. 68-69) argumenta


que tal plano se colocou em um recuo do rio Amazonas, sobre a parte elevada, de modo
que possibilitasse, “em contiguidade, a conciliação da cidade com os elementos físicos
da paisagem”. Desse modo, ao se ocupar as áreas de terra firme, respeitavam-se os
elementos hídricos do sítio, para evitar a coexistência com as áreas alagadas.

Pode-se destacar a presença marcante em dimensão do lago, próximo ao povoado


fundado, em Araújo (1998), identificado como “Lagoa Seca”, cuja representatividade
marca também a sazonalidade comum das alterações de elevação com a variação do
nível do mar, ao qual o Rio Amazonas está sujeito. Destaca-se, no entorno da Fortaleza,
uma forte presença de barro, em um período anterior ao aterramento, da área
apontada anteriormente na Figura 03.

A urbanização de Macapá insere-se em uma conformação territorial de traçado rígido e


abstrato inicial. Por essa razão, o posicionamento de ocupação das terras trouxe o

• 12
instrumento da malha, que se sobrepôs ao tecido urbano, mas que, como levantado,
não diretamente confrontou o meio natural. A lógica colonialista aplicada ao meio militar
é a mesma da implantada nos latifúndios do nordeste. A aplicação da malha isotrópica
torna mais fácil o controle do território e sua expansão, desconsiderando qualquer base
natural e prevalecendo a necessidade de implantação do poderio militar de defesa das
terras conquistadas.

Apesar da estagnação da vila, após sua implantação e o fim do período Pombalino, seu
planejamento urbano sofreu alterações que a conduziram ao mesmo rumo do
Iluminismo europeu. As revoltas em prol da necessidade de mudanças políticas
estiveram presentes entre 1841 e 1900 submersas em conflitos que envolviam questões
fronteiriças e descobertas de ouro. As mudanças bruscas desencadearam rupturas da
permanência da região como: domínio de Contestado Franco-brasileiro; tentativa de
emancipação por intermédio de uma nova província, “Oyapókia” (1853); manutenção
da região como um território neutro (1862); e experiência da criação do Império do
Brasil da República de Cunani (1886-1891), hoje, região da cidade de Calçoene/AP. O
único fruto bem-sucedido das revoltas foi a elevação da vila de Macapá à categoria de
cidade, em 1856. Apenas com a Proclamação da República, em 1889, é que o Brasil
tratou de solucionar as demarcações do território do Amapá (LOBATO, 2014).

Observou-se, contudo, a permanência das relações iniciais do período colonial, da


percepção como inóspita do ambiente e de suas águas perigosas. Dados de Lobato
(2014, p. 275) sobre a Oiapóquia dão conta que a oposição paraense alegava que as
terras “apresentavam diversos perigos à saúde, como as frequentes febres palustres,
águas paradas em pântanos e lagos, córregos e igarapés contaminados por plantas
venenosas”. Já os apoiadores da emancipação defendiam que não possuía pântanos
nem áreas pantanosas nem plantas venenosas, mas que era cortada por dois igarapés e
campos de várzeas e argumentaram que “as causas da endemia de febre palustre era a
falta de higiene das casas (feitas na maioria de taipa) e a inexistência de um serviço
regular de coleta do lixo urbano” (LOBATO, 2014, p. 276).

Para além dos ideais ascendentes da salubridade necessária à vila, o discurso estava
impregnado de visões progressistas e de um questionamento higienista do qual,
conforme esclarece Choay (1992 [1965], p.8), sobressaía o pensamento de “certo
racionalismo, ciência, [em que] a técnica deve possibilitar resolver problemas colocados
pela relação dos homens com o meio e entre si. Esse pensamento otimista é orientado
para o futuro, dominado pela ideia de progresso” e prepara terreno para o saber do
homem moderno.

Choay (1992 [1965]) destaca que o campo do urbanismo foi ampliado e estudado
cientificamente e marcadamente contido na “Revolução Cultural”, que também
impregnou as novas percepções sobre as formas urbanas. Se na Europa o período entre

• 13
os séculos XIX e XX foi marcado pelo florescimento iluminista, coerente com os efeitos
democráticos e políticos da Revolução Francesa e pela alteração dos meios de produção
e crescimento advindos da Revolução Industrial, na América Latina vigorou ainda o
projeto português, do Reino do Brasil ao fim do Brasil Império, ligados à vinda da Coroa
portuguesa, e, em seguida, às disputas que nortearam a Independência do Brasil até a
Primeira República.

Se no início do descobrimento do Brasil, o colonizador e os delegados da coroa eram os


únicos capazes de indicar as melhores diretrizes para a conformação da cidade, a partir
do fim do período colonial e início da Primeira República, foram os políticos e
administradores locais que passaram a atuar como planejadores, não mais sob juízo do
desejo único do monarca. A pluralidade de vozes que a República possibilitou acendeu a
necessidade de buscar uma relevância nacional e começou a engatinhar a necessidade
de adaptar-se às características vigentes de um pensamento pré-urbanístico, o qual,
coerente com tal, não gerou efetivamente proposições ou ações sobre os espaços e as
formas urbanas. Conforme Silva (2010), foram poucas as marcas desse período que
restaram no tecido urbano, restringindo-se ao cemitério (com jazigos deste período) e à
edificação da Intendência Municipal, inaugurada em 1895, em linhas neoclássicas.

NASCENTES VISÕES PROGRESSISTAS NO AMAPÁ

Se a Proclamação da República não trouxe tantas alterações nas dinâmicas e nos


conflitos locais, o mesmo não pode ser dito em relação ao contexto nacional.
Permaneceu o interesse da região do Amapá pela autonomia política em relação ao
Pará. Apesar disso, somente em 1920 aparece a primeira manifestação local pela
implantação do Território Federal, sendo, com a Constituição de 1937, adicionado como
território do espaço nacional e submetido diretamente à União (PORTO, 2002, p.
11.989). Apenas em 1943, foi que o governo de Getúlio Vargas, dentro do Estado Novo,
criou os territórios federais, dentre eles o do Amapá (LOBATO, 2014)

Para Porto (2005), os territórios federais são lembrados pela gestão da União, envoltas
em alterações das relações políticas, econômicas e sociais, cuja evolução enquadra em
três etapas históricas: centralização (1904-1969), descentralização (1969-1988) e
estadualização (1962, 1981, 1988). Na primeira etapa, caracteriza a elevada
participação do governo central sobre os territórios e “as diretrizes se originavam na
Capital Federal, via Ministério do Interior, e implantadas pelo Governador, que era
nomeado pelo Presidente da República, justificando a visão dos Territórios como uma
extensão da organização federal.” (PORTO, 2005, p. 119)

A centralidade e o controle inicial marcam a transição do pensamento urbanístico de


uma base progressista para a aplicação da ciência do Urbanismo e toda a sua vertente

• 14
modernista, relevante para o entendimento deste período para Macapá. Conforme
Choay (1992 [1965]), o urbanismo é despolitizado, na medida em que, ao invés de
utopias, passa-se a se ter a aplicação de teorias. Na medida em que a ideia de
modernidade surge, os interesses passam a ser as estruturas técnicas e estéticas, ao
invés das estruturas econômicas e sociais.

Segundo Tostes e Weiser (2018), foi a partir de 1943 que a cidade se transformou em
um polo de atração imigratório local e regional Tal movimento teve ampla repercussão
no urbanismo brasileiro modernista, tendo como notável a implantação da Vila de Serra
do Navio projetada por Oswaldo Bratke. Com o foco em um desenvolvimento no
município de Serra do Navio-AP baseou-se em cessão a um consórcio particular, Macapá
foi destinada a ser o centro político do território.

ENSAIOS DE PENSAMENTOS PROGRESSISTAS DO ESTADO NOVO AO


TERRITÓRIO

Apesar de ser retomada como polo principal, segundo Weiser e Tostes (2018) a cidade
de Macapá, desde sua fundação, em 1758, até a criação do Território Federal do
Amapá, viveu um apagão demográfico e urbanístico. O fluxo migratório ocorre
concomitante com a transformação da colônia em Território do Amapá a partir da
exploração do minério de Manganês, em Serra do Navio, por meio da empresa ICOMI,
de 1943 a 2000 (DRUMMOND et al., 2007). Enquanto se colocou o foco no
desenvolvimento industrial no município de Serra do Navio — AP, Macapá foi destinada
a ser o centro político do território, já que Serra do Navio seria cedida a um consórcio
particular, vistos todas suas terras e subsolos, a partir do momento que se tornou
Território, tornaram-se pertencentes à União.

Segundo Bastos (1947) citado por Lobato (2013), a cidade ainda era uma vila abalada
pela crise da borracha amazônica do início do século XX. Porém, por meio da ação do
governo territorial se buscou remover os sinais de decadência da cidade, da
precariedade de ainda caracterizar-se como uma vila, contra âmbito de uma ideia de
uma “Macapá Moderna”.

Construindo prédios novos para abrigar os funcionários da nova administração, limpando


o mato das ruas e praças, comprando toneladas e mais toneladas de cimento, tijolos,
telhas, madeiras, ferramentas, máquinas e tudo mais que seria preciso para transformar
numa capital apresentável uma velha e atrasada cidade (BASTOS, 1947 p. 13).

Ainda segundo Lobato (2013), a modernização foi feita de maneira draconiana, com
novos padrões de gestão do espaço, do tempo e das relações sociais, em geral,
fomentada pelos agentes do Estado. Macapá, então, sofreu um boom demográfico,
passando de quase 2 mil habitantes em 1940 para quase 40 mil em 1964. Nesse

• 15
período, a cidade recebeu fluxos migratórios de trabalho, promovendo a atração dos
moradores das ilhas paraenses vizinhas e de nordestinos.

Nesse contexto, da visão modernizante, fundaram-se as premissas de uma ideia de


Amazônia subdesenvolvida, que vive à margem da racionalidade técnica, carente da
ordem de recursos advindos externamente, necessários ao bem-estar individual e
coletivo. O agente do caboclo, homem rude e primitivo amazônico, nasce desse
pensamento nacionalista. O pensamento corrente era manifestado assim pelo
governador nomeado para gerir o Território, Janary Nunes: “O baixo padrão de vida do
caboclo é uma consequência direta de falta de técnica no aproveitamento da terra. O
caboclo tem batalhado sem os meios necessários para vencer a natureza áspera”
(Janary Nunes, 1947, p. 16).

A construção desta “Macapá Moderna” era apresentada como símbolo máximo da vitória
do homem sobre a natureza aparentemente indomável. Segundo as prédicas do governo
territorial, a ordem humana teria sobrepujado a natural e o homem, até então submisso
aos humores da floresta, teria finalmente imposto a sua marca nestas paragens (LOBATO,
2013, p. 13).

Para Weiser e Tostes (2018), foi esse período territorial (1943-1955), marcado
fortemente como a “gestão janarista”, que ocorreu a gênese da evolução urbana da
cidade de Macapá, responsável pela formação dos espaços públicos na área central da
cidade. Segundo Amaral (2010), a partir de 1964 iniciou-se um novo momento de
crescimento da cidade. Nesse momento, ocorreu o estabelecimento do regime
autoritário, e a ocupação das terras da Amazônia se tornou meta prioritária para o novo
regime político da Ditadura Militar. A malha urbana em grelha ortogonal passou, então,
a ser gerida novamente em um contexto geopolítico de estruturas de entrelaçamento
regional, voltando a ser entendida como a rede técnica territorial de estratégia de
proteção das terras amazônicas.

Tostes (2006, p. 46), ao analisar a estruturação dos planos diretores para o estado do
Amapá, considera o Plano Grunbilf, de 1959, o primeiro Plano Diretor para Macapá.
Entretanto, o primeiro documento formal de gestão elaborado após a criação do
Território Federal foi o relatório do governador Janary Nunes, de 1946. Redigido pelo
próprio governador-nomeado, no formato de um memorial técnico-político da situação,
tal qual assumiu a partir de 1944, descrevia seus interesses de encaminhamentos
administrativos e planejamentos para os anos subsequentes (TFA, 1946).

O relatório do governador pode ser considerado um dos expoentes da visão


positivista/progressista que o período pós-guerra possibilitou para as gestões do
território amapaense, pois é coerente com a visão de uma maior integração nacional, do
Estado Novo. Suas premissas cumprem o ideal de um urbanismo modernista, apesar de
não ser exatamente um plano urbanístico. Sua gestão é atualmente mais reconhecida

• 16
pela herança do patrimônio arquitetônico edificado, relevante pela expressão
protomoderna e as políticas educacionais que deixou.

O governador ainda alardeava a situação precária da estagnação do Estado, culpando o


fim do período de crescimento econômico e a decadência decorrente do encerramento
da relevância do lugar como praça de guerra. Contudo, fundamentalmente, realizou um
diagnóstico técnico da precariedade encontrada acreditando ser transitória a situação de
insalubridade geral do Estado, marcada por endemias tropicais e verminoses que
corroíam a saúde da população e projetava suas metas a alçar o mesmo status que já
dispunha outras regiões (TFA, 1946).

Marcaria, também, a percepção das ausências que atrasavam o progresso do Estado,


traduzida pela falta em todas as cidades ou vilas de luz elétrica, água encanada,
esgotos e outros serviços públicos necessários à higiene. O documento tornaria célere a
afirmação: “Tudo ainda está por fazer” (TFA, 1946, p.8). Cabe destacar que essa frase
recorrentemente expressa a visão modernista apontada em signos da falta de
planejamento, da necessidade de recomeço e da necessidade do mito do novo. Tal
situação desalinha a realidade das falhas dos planejamentos vigentes ou das intenções
subjacentes à não realização dos planejamentos.

Na análise do relatório, revela-se que, dentre as apreensões do governador, não se


incluíam as preocupações quanto ao arruamento de Macapá, visto que a malha urbana
se encaixava nos preceitos progressistas a que se propunha o desenvolvimento do
Estado. Segundo Lobato (2017), as preocupações quanto ao progresso se consolidavam
no discurso hegemônico nacionalista através da espera por integração rodoviarista
como forma mais apropriada do que o sistema fluvial. Não havia indícios da necessidade
de remodelamento das ruas. Conclui-se daí que os ideais do período se apropriaram da
malha já lançada colonialmente e perpetuaram a negação ao substrato no qual já
estavam implantadas.

Janary governou até 1955, mas apenas em 1959 a cidade receberia seu primeiro Plano
Urbanístico, também conhecido como “Plano Grunbilf (1959-60)”, representa mais um
expoente do pensamento modernista. Todavia, diferentemente do relatório de Janary,
elaborado pelo próprio agente político, foi concebido como o primeiro plano de
urbanização, a pedido da Companhia de Energia do Amapá (CEA), como uma peça
técnico-administrativa que propunha uma abordagem voltada para evitar retrabalho e
ações antieconômicas para a infraestrutura elétrica.

O plano demarcaria a realidade entre 1959 e 1960, diagnosticada com um rápido e


desordenado crescimento. Avançaria nas propostas com o viés do urbanismo
modernista, concebendo várias vias e com amplo detalhamento arquitetônico de
edificações elencadas como essenciais para o progresso da cidade (Figura 4).

• 17
Figura 4: Restauração foto-retificada do Plano Urbanístico de Grunbilf 1959-60 –
Planejamento de edificações para a atual Rua Leopoldo Machado não totalmente
executado. Fonte: Plano Urbanístico de Grunbilf 1959-60, adaptado pela autora,
2019.

O plano alargou as institucionalidades de uma cidade funcional, ampliando o escopo do


programa de necessidades, diante do imperativo da capital de se adequar às realidades
modernistas.

Segundo Weiser e Tostes (2018, p.37), ocorreria a remodelação com a adoção de “um
novo traçado urbano para a cidade, inspirados nas características da cidade moderna:
ruas e avenidas largas, espaços públicos ampliados para atender atividades trabalho e
de lazer”. Mas, como mostra a Figura 5, as considerações em nome de uma
administração pública de saber tecnicista e da remodelação preservaria a malha urbana
regular incluída em um único plano ao nível da rua e preceituava da regulação das
funções da cidade e distinções entre as esferas públicas versus privadas (calçadas,
lotes), etc.

• 18
Figura 5: Perspectiva do Plano Urbanístico de Grunbilf 1959-60 com destaque
entre o predomínio da malha e, ao fundo, o substrato. Fonte: Plano Urbanístico
de Grunbilf 1959-60, adaptado pela autora, 2019.

AGENTES PRODUTORES DO ESPAÇO QUE AINDA TEM MUITO O QUE FAZER

O privilégio da situação topográfica não é novidade no período moderno. Foi um dos


parâmetros para o assentamento português. A relação com o meio ambiente também é
comparável à percepção colonizadora das boas águas, só que agora a denominação
recebe o caráter técnico já abordado pelo termo ressaca. O relatório não peca ao situar
a relação entre a malha consolidada e o substrato lado a lado, com uma visão
progressista nascida em Janary, e evita atrelar a imagem de subdesenvolvimento às
áreas alagáveis, mas a tratam como empecilho, na medida em que constata a
privilegiada situação do traçado reticulado regular.

A relação que o governador constrói de separação da cidade e do campo, como


separação do espaço urbanizado e da natureza, inicia a cisão de entendimento entre a
malha urbana e o substrato natural, já que suas funções passam a ser diferenciadas. O
espaço da cidade (e, por consequência, da malha) é aquele institucional e
administrativo. Os agentes relevantes são apenas aqueles que possuem papel
determinante nestas duas esferas. Excluem-se aqui os trabalhadores comuns e os
migrantes, dentre outros. A natureza, a ser domada e controlada, deveria servir aos
propósitos de uma vida rural desenvolvimentista. As partes funcionais apartadas
passam a coexistir independentemente.

• 19
Figura 6: Restauração foto-retificada do Plano Urbanístico de Grunbilf 1959-60. Fonte: Fonte: Grupo
Memórias Urbanas, 2006, adaptado pela autora 2019

A separação entre o urbano e o rural acabam por coadunar com a dicotomia das áreas
“ajardinadas” sob um ideal de áreas de águas límpidas e que os regimes pluviais se
assemelhariam a quase uma artificialização das áreas alagadas. A que não se aludisse
se tratar de um plano modernista para Macapá, poderia ser facilmente confundido com
o plano de criação de Brasília-DF e sua integração com a criação artificial do Lago
Paranoá (DF) ou a construção da região da Lagoa da Pampulha (BH/MG), aos auspícios
de Oscar Niemeyer. No detalhe da Figura 7, além do fundo idílico do Lago (hoje lago do
Pacoval), ainda ter-se-iam a implantação de escolas em terrenos aplainados para além
de um paisagismo em destaque contornado por espécimes semelhantes a palmeiras
(em verde escuro).

• 20
Figura 7: Restauração foto-retificada do Plano Urbanístico de Grunbilf 1959-60 –
Rua Leopoldo Machado até próximo do aeroporto e Lago do Pacoval. Fonte:
Plano Urbanístico de Grunbilf 1959-60, adaptado pela autora, 2019.

TUDO FICOU POR SE AINDA A FAZER

Os agentes sociais da população foram, nos dois momentos, convidados a participar dos
projetos e a ocupar a estrutura lançada. No segundo momento, ao contrário do que se
pode inicialmente imaginar, houve um forte fluxo migratório, com o senso de
organização pragmática de se estabelecer sobre as bases já assentadas desde o século
XVII e com uma maior apreensão negativa quanto ao meio natural como empecilho ao
desenvolvimento. A malha urbana, como elemento estruturador, passou a ditar as
bases para que a evolução urbana sobre o tecido pudesse vigorar.

Analisando a forma como o poder público lidava com as embarcações (regatões) e suas
relações de modo de vida ribeirinho, entre os anos de 1945 e 1970, nos rios do
Território do Amapá, COSTA (2007, p.156) questionou qual foi a verdade imprimida
pelos discursos que tentaram insistentemente desqualificar a cultura e o modo de vida
local. Ao mesmo tempo, como o mesmo autor ilustra, a realidade urbana relacionada às
águas foi transformada rapidamente diante deste novo discurso, conforme pode ser
observado nas Figuras 8 e 9, com a transformação do Canal do Igarapé da Fortaleza
dentre 1960 e 1968 em sua canalização com revestimento de concreto.

Para o autor, a transposição do caboclo para o homem moderno foi de tamanha


aceleração quando da criação do Território em 1943, que a sensação é de que a história
dos homens do Amapá só foi iniciada a partir desta época. O autor ainda instiga a
reflexão da impressão do quão grande foi a impressão das pessoas comuns que

• 21
estiveram passivamente ao lado então aplaudindo essas transformações promovidas
pelos Governadores do Amapá e de que maneira o homem ribeirinho não pôde ser
incluído nesses processos.

Figura 8: Canal do Igarapé da Fortaleza, nas décadas de 1950 e 1960. Fonte:


Arquivo pessoal de Alcir Jackson IN: COSTA, 2007

Figura 9: Realização do revestimento de concreto do canal do Igarapé da


Fortaleza (1968). Fonte: Jornal Amapá. Ano 22 – Macapá, 25 de fevereiro de
1967, T.F.A., n. 1417. (COSTA, 2007)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesse artigo foi possível verificar que a criação do espaço urbano de Macapá seguiu as
características de malha em grid, implantado pelos portugueses, até aproximadamente
1968, no qual pode se ampliar as observações das características do urbanismo colonial
(pombalino) e do período moderno, mas ainda tentar entrelaçar os dois no período pré-
moderno, de maneira a vislumbrar a mudança das formas de ver a urbanidade, mas
não o meio ambiente.

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Pode se concluir que até aproximadamente 1964/1968, houve dois momentos históricos
interpretativos da malha e do substrato para Macapá. O primeiro relacionado ao
lançamento inicial da malha ortogonal regular conforme o projeto pombalino, no qual se
tem a extensão e utilização dos melhores terrenos (as terras secas), o segundo, como
observado: a distensão desse tipo de tecido, com base no projeto de ocupação
territorial. Essa malha urbana assume, nesse contexto, a condição de instrumento de
ação dos agentes de poder político. Assim, em um primeiro momento, tem-se o
deslocamento do substrato natural a segundo plano, o que, em um segundo momento,
faz com que ele se torne um sério obstáculo ao desenvolvimento “modernista” da
cidade. Este segundo momento inicia-se com o governador Janary Nunes

Pode-se constatar que o resgate o histórico dos diversos momentos da urbanização


levantados até o momento, na busca por fundamentar as políticas de crescimento
urbano do município, tiveram seus princípios de relação com o meio ambiente
associados à lógica de cada época. A característica da ocupação não formal foi
considerada a causa grande problemas à população que ocupa tais regiões, como
doenças (cólera, desinteria etc.), A ocupação dessas áreas alagadas teve relação com
um valor de terra mais barato que considerou a terra firme como uma única
possibilidade aceitável de território urbanizável. Os demais territórios deveriam ser
drenados, dotadas da infraestrutura de saneamento e demais redes, para em se
transformarem em terra firme, implicando com isso em custos elevados que acabaram
dificultando a ocupação formal das terras alagadas.

REFERENCIAS

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• 24
DISCURSOS DE UMA MODERNIDADE EM CIRCULAÇÃO

Os reflexos da presença dos Estados Unidos em Belém/Amazônia


MODERNITY DISCOURSES IN CIRCULATION: REFLECTIONS OF THE
UNITED STATES' PRESENCE IN BELÉM-PA/AMAZÔNIA
Eixo temático 1: Historiografia, ideários e regimes de historicidade

CHAVES, Celma
Professora Associada IV; Instituto de Tecnologia
celma_chaves@hotmail.com
MORAES, Ronaldo
Graduando; Instituto de Tecnologia
ronaldonunesmoraes@gmail.com
COSTA, Igor
Graduando; Instituto de Tecnologia
igorac0701@gmail.com
RESUMO

O presente trabalho compreende os fatores da relação entre Brasil e Estados


Unidos, intensificada a partir da Segunda Guerra, que repercutiram na
modernização da cidade de Belém nos aspectos da arquitetura, dos
equipamentos públicos e na infraestrutura. Tal conexão foi motivada em razão
da demanda da borracha amazônica, de um plano de cooperação entre EUA e
os países da América Latina e pela tentativa de levar o desenvolvimentismo
estadunidense aos seus vizinhos do continente, incluindo o Brasil. Em
consonância, as ideias progressistas e modernizantes do, então, governo
Varguista incidiram igualmente sobre as principais capitais brasileiras, a
exemplo de Belém. Assim, ao longo da pesquisa, as investigações foram
realizadas através de levantamento bibliográfico, documental e iconográfico,
buscando evidências em fotografias e jornais antigos. A pesquisa objetiva,
portanto, identificar indícios da disseminação de ideais modernizadores sob o
intuito de promover transformações na capital paraense, com base nas suas
aproximações com os EUA entre as décadas 1940 e 1960.

PALAVRAS CHAVE Belém, Modernização, Brasil, Estados Unidos da América,


Atlas.

ABSTRACT

The current work encompasses the factors of the relationship between Brazil
and the United States, intensified after the World War II, that reverberated in
the modernization of the city of Belém through the aspects of its architecture,
the public equipments and the infrastructure. Such connection was motivated
by the demand of the amazon rubber, of a cooperation plan between the USA
and Latin America and by the attempt to bring the US' developmentalism to its
continent neighboors, including Brazil. Accordingly, the progressive and
modernizing ideas of the Vargas' government included equally also focused on
the main brazilian capitals, like Belém. Thus, throughout the research, the
investigations were carried out through bibliogrphic, documentary and
iconographic survey, seeking for evidence in photographs and old newpapers.
The research aims, therefore, to identify signs of the dissemination of
modernizing ideals in order to promote transformations in the capital of Pará,
based on its approximations with the USA between the 1940s ans 1960s.

KEY-WORDS OU PALABRAS-CLAVE Belém, Modernization, Brazil, United


States of America, Atlas.

• 2
INTRODUÇÃO

A investigação sobre os processos de modernização difundidos na região amazônica ao


longo da primeira metade do século XX demanda um aprofundamento no extenso campo
articulado entre arquitetura, cidade e as noções de modernização correntes no decurso
do período. Para tanto, com base na averiguação das ações implementadas ou designadas
a estes espaços urbanos, foram constatados discursos que aproximavam os distintos
ideais sobre a modernidade com o progresso econômico, financeiro e tecnológico
disseminado ao redor mundo (WEINSTEIN, 2007). Não obstante o Brasil abrigasse uma
gestão administrativa intervencionista e centralizadora, orientada à aplicação de políticas
de desenvolvimento nacional, o governo central brasileiro não deixou de consentir com
práticas de subordinação ao controle de suas relações externas por potências
internacionais. Especialmente a partir do período de transcurso da Segunda Guerra
Mundial (1939-1945), as aproximações com os Estados Unidos da América, instauradas
desde o final do século XIX, foram intensificadas por favorecimento de práticas
diplomáticas e ações cooperativas, intermediadas pelo comércio de matérias primas
estratégicas situadas predominantemente na Amazônia (GALDIOLI, 2008).
Adicionalmente, essa região já sediava um projeto nacional de ocupação e exploração
potencializado pela disponibilidade da borracha enquanto recurso mediador de trocas
entre Brasil e EUA, fato que repercutiu em muitas de suas cidades e capitais
circunvizinhas, tal como Belém do Pará, através de notáveis transformações territoriais,
materiais, econômicas e, da mesma forma, culturais.
A disseminação de tais noções de modernidade era comumente articulada à idealização
de uma cidade integrada ao modelo de desenvolvimento difundido globalmente, tendo
como principal plataforma de exposição a mídia impressa enquanto ferramenta
propagandística de comunicação e trocas em múltiplas esferas, seja de caráter ideológico
e histórico como principalmente cultural. Nesse aspecto, o presente artigo explora a
documentação e a investigação dos ideais modernizadores que permeavam o imaginário
local no que diz respeito à construção de um projeto de cidade moderna, reflexionando
sobre os discursos e perspectivas vigentes na Amazônia, oriundos de sua aproximação
com os Estados Unidos; e conciliando, da mesma forma, com leituras que atravessam
uma compreensão dialógica entre o passado e o presente através da leitura do documento
(LE GOFF, 1990).
Como procedimentos metodológicos, adotou-se a estratégia combinada em pesquisa
histórico-interpretativa quantitativa e qualitativa (GROAT; WANG, 2002), levantando
dados em fontes hemerográficas e iconográficas, o construto de produtos narrativos
mediante o entendimento de um estudo enfocado sobre a história urbano-arquitetônica,
com alicerces igualmente fundados em demais campos interdisciplinares
correspondentes, como economia, antropologia, filosofia, geografia, geopolítica e relações
internacionais.

• 3
UM MECANISMO LEITURA GRÁFICO-ESPACIAL: ATLAS DA MODERNIZAÇÃO

Para adequada verificação e análise dos fragmentos do conhecimento levantados,


considerando suas devidas perspectivas da realidade histórica, realizou-se não somente
a acumulação de um aparato quantitativo bibliográfico, documental e iconográfico, mas
também a validação do escopo analítico metodológico enquanto mecanismo de exibição
visual, na condição de integrar componentes como textos e imagens à espacialidade de
mapas temáticos. Assim, acumulou-se subsídios necessários para a construção de um
“Atlas da Modernização em Belém”, produto central.
Ainda que o projeto de Atlas articule a associação de um conjunto de fontes de linguagem
dessemelhantes, a integração da cartografia, na qualidade de mecanismo de
representação da realidade, caracterizado pelo denso valor simbólico e figurativo, dispõe
de critérios técnicos fundamentais para a sistematização de dados e sua leitura,
empregando recursos da estratégia discursiva (CICUTTI, 2014). Na perspectiva da análise
de uma “dimensão espacial socialmente produzida” (ARAÚJO; SERRA, 2019, p. 185) a
cartografia histórica pode exercer um papel ativo na apropriação do espaço, favorecendo
desde procedimentos de (re)construção de sentidos até mesmo a concepção de novos
projetos. De maneira geral, a leitura crítica de mapas históricos permite desvendar e
compreender, em seus recortes intencionais, a constituição de diferentes formas de
ordenação do espaço, apontando para conjecturas de uma cidade do futuro, segundo uma
perspectiva proveniente das demandas do passado (COLLADO; BERTUZZI; BARCO,
2019).
Para a apropriação dos conceitos e sentidos mais significativos à fundamentação simbólica
e epistemológica do entendimento de Atlas, foi adotada a perspectiva de Georges Didi-
Huberman sobre a obra Atlas Mnemosyne, do historiador alemão Aby Warburg. A
interpretação proposta por Didi-Huberman se fez relevante por salientar os sentidos que
perpassam pela figura emblemática de Atlas: o titã submetido a suportar o peso do mundo
inteiro, assim como de todos os saberes em potencial abarcados pela sua própria
universalidade (DIDI-HUBERMAN, 2018). Amparado sobre o artifício das metáforas, o
modo de pensar e fazer por Atlas assinala um recurso argumentativo instável e difuso,
sem omitir sua natureza singular e extensiva. Através da assimilação de pensamentos
oscilantes e voláteis, são constituídas figuras de pouca nitidez e objetividade, delineadas
por um saber lacunar, provisório e consciente de suas limitações, o qual, ainda assim,
reconhece a verdadeira densidade das questões que o atravessam, seja através de
respostas ou de novas perguntas (PEREIRA, 2018). Para tanto, Warburg propôs uma
abordagem apoiada nas complexas e profundas interpretações conferidas por meio da
exibição gráfica comparativa possibilitada pelas artes visuais (DIDI-HUBERMAN, 2018).
Em uma valorosa correlação entre imaginação e razão, a leitura do Atlas compreende um
processo de assimilação pelos diferentes arranjos e montagens dos componentes nele
dispostos, estabelecendo condições para que novas constatações, igualmente complexas,
assim como efêmeras, sejam compreendidas. Nesse sentido, o campo de atuação do Atlas
pode ser percebido tanto pelo seu valor semântico, como metodológico, na medida em
que assume uma qualidade instrumental ativa de “dispositivo-motriz” capaz de propiciar

• 4
a revelação de novos sentidos incomuns aos objetos. A partir de encontros em livre
disposição, permitindo o desmembramento e redistribuição dos elementos no Atlas,
torna-se possível, por consequência, a (re)composição de novas narrativas em
reconfiguração e ressignificação (DIDI-HUBERMAN, 2018; TREVISAN, 2018).
Neste trabalho, a fundamentação obtida pela referência do Atlas warburguiano se faz
apropriada em razão de suas postulações epistemológicas e de suas estratégias como
mecanismo de “pensar por”. No contexto das transformações de cunho modernizante,
disseminadas em meio à arquitetura e cidade de Belém, a articulação dos dados
documentais – fotografias históricas, jornais antigos, documentos oficiais – compreende
o delineamento de um dos possíveis percursos que contemplam uma leitura parcial dos
processos urbanos locais. Para tanto, o produto deste artigo corresponde à representação
gráfica em uma nebulosa do pensamento (PEREIRA, 2018), do percurso adotado
mediante as associações e analogias entre a amostragem recolhida ao longo da pesquisa.

Figura 1: Nebulosa do pensamento sobre as aproximações entre Brasil e EUA. Elaboração: MORAES, R
(2022).

• 5
A CONSOLIDAÇÃO DE UMA RELAÇÃO BRASIL-EUA

As transformações modernizadoras decorrentes das relações entre o Brasil e Estados


Unidos durante a primeira metade do século XX estiveram intrinsecamente ligadas ao
governo do presidente Getúlio Vargas. De acordo com Atique (2007), por mais que a
historiografia brasileira tenha cristalizado a ideia de que o processo de “americanização
do Brasil” tenha ocorrido a partir de 1930, com a explícita “Política da Boa Vizinhança”,
idealizada por Franklin Delano Roosevelt e posta em prática por Nelson Rockefeller, a
conexão e o processo de americanização tiveram início ainda no século XIX, perdurando
até os dias atuais. Dessa maneira, é possível reconhecer a pré-existência de uma rede de
apoio para trocas e alianças entre as Américas, potencializada a partir da década de 1930
com o advento da Segunda Guerra Mundial, momento em que países latino americanos,
como o Brasil, atraíram as potências envolvidas no confronto primordialmente em razão
da sua extensa disponibilidade de produtos estratégicos, como o caso da borracha
(COSTA, 2007).
Ao longo de seu estabelecimento como nação, os Estados Unidos adotaram diferentes
posicionamentos a respeito de suas políticas externas. Dessa forma, no início do século
XX, com as investidas de caráter expansionista por parte das potências europeias, os EUA
passaram a apreender estratégias de contato que ansiavam por relações mais próximas
da América Latina (GALDIOLI, 2008). Com a articulação de ideologias como a Doutrina
Monroe, para barrar a “ameaça” de interferências externas do Velho Mundo, caberia ao
país estadunidense a “incumbência” de proteger os seus vizinhos de continente (ATIQUE,
2009). Portanto, havendo essa necessidade de constituir relações de aproximação com
as Américas, foi implementada a chamada Política de Boa Vizinhança, que consistiu na
tentativa de criar uma convivência amistosa e diplomática. Nesse sentido, a retórica pan-
americanista ofereceu subsídios ideológicos às intervenções realizadas posteriormente.
Assim, no contexto da Segunda Grande Guerra, em razão da elevada demanda pela
borracha e da dificuldade de obter sua matéria prima através de entrepostos concentrados
no leste asiático; sucessivos acordos políticos e econômicos com o Brasil foram
concretizados sob a finalidade de propiciar a comercialização do produto, incentivando
programas de desenvolvimento para a região amazônica – visionada enquanto um
mercado alternativo para os EUA (GARDIELD, 2009).
No corolário do estreitamento das relações externas entre Brasil e Estados Unidos,
concretizaram-se, em março de 1942, iniciativas como os Acordos de Washington,
responsáveis por efetivar os investimentos para o desenvolvimento da produção da
borracha, atingindo, também a estrutura de suas áreas produtoras, como a capital
paraense. A difusão de tal ideário de exploração, somado ao discurso de fraternidade
entre os países americanos, contribuiu para encobrir o propósito principal dos EUA: o
estabelecimento da sua condição de figura exemplar de desenvolvimento e superioridade
bélica (ATIQUE, 2007). Para mais, na consolidação dessa aliança, a percepção
hegemônica propagada sobre a imagem da Amazônia a expôs como uma região pronta
para se desenvolver, entretanto, desprovida de “estímulo do capital e de tecnologia
estrangeiros” (WEINSTEIM, 2007, p. 156). Em apoio à continuidade dessas aproximações,

• 6
o poder central brasileiro acreditava que os acontecimentos referentes à guerra
reativariam a produção em larga escala da borracha e o capital externo poderia
proporcionar o desenvolvimento da Amazônia, incorporando-a efetivamente ao território
brasileiro (CHAVES, 2016, p. 50). Por sua vez, os EUA viam o Brasil não somente como
parceiro comercial, como também um “ponto estratégico de resistência à ofensivas
nazistas, devido a abundância de recursos naturais, influência política na América do Sul,
grande população, ascendência alemã e proximidade geográfica da África Ocidental”
(GARFIELD, 2009, p. 22).

Figura 2: Clube de oficiais no aeroporto de Val de Cães em Belém. Fonte: Sixtant (1943).

Outro meio de constatar a relação entre as nações foi mediante a trocas culturais.
Segundo Cavalcanti (2006), foi notado um certo empecilho entre a população sul e norte
americana: as apreensões antagônicas que os respectivos países possuíam uns dos
outros. Por consequência, Galdioli (2008) ressalta a ampla dimensão das diplomacias
culturais como recursos para alcançar relações consensuais e cooperativas em esfera
global. Para o estabelecimento de uma hegemonia pelos EUA, era necessário o incremento
de estratégias de hard power - recursos do poder que compreendem práticas coercitivas,
por meio dos âmbitos militar e econômico, em forma de influência direta -, como também
de soft power – espectros do poder fundados em táticas de atração, através das relações
culturais e políticas, incorporadas à composição de políticas externas (GALDIOLI, 2008).
Diante disso, para minimizar as divergências entre os pontos de vista populares, os EUA
optaram pelo incentivo às transferências de práticas culturais, implicando na introdução
de meios de comunicação como revistas, programas de rádio e produções

• 7
cinematográficas estadunidenses no Brasil, ocasionando a inserção do imaginário cultural
estadunidense ao cotidiano brasileiro (CAVALCANTI, 2006).

A REPRESENTAÇÃO DA RELAÇÃO BRASIL-EUA NA MÍDIA


A procura dos EUA pela implantação de um projeto de cooperação diplomática amistosa
era identificada e representada pelos meios de comunicação. Assim,
[...] enquanto divulgaram, venderam e disponibilizaram mercadoria e tecnologias, os
Estados Unidos foram criando laços econômicos que se transformaram, também, em laços
sociais, os quais, por sua vez, permitiram a criação de representações positivas acerca do
“mundo americano.” (ATIQUE, 2007, p. 6)
De acordo com Atique (2007), este processo de aproximação efetivado por meio do
rádio, imprensa, filmes, ciência e educação, facilitou a introdução de distintos elementos
culturais estadunidenses, bem como disseminou seus ideais, posicionamentos e
costumes. Assim, a presença dos EUA era verificada regularmente, tanto através de
referências mais diretas, como por menções análogas ao seu imaginário popular. A
exemplo disto, nos jornais eram frequentemente publicados anúncios de viagens de
cruzeiro e de avião com destino aos Estados Unidos, assim como notas comunicando
suas datas comemorativas – algumas escritas na língua inglesa (CHAVES et al, 2020, no
prelo). Era perceptível o empenho em naturalizar o conhecimento cultural, e mesmo
linguístico, estadunidense no contexto local. Observou-se também outros artifícios de
aproximação com o Brasil, como promover celebrações de festividades tipicamente
estadunidenses, a exemplo do Independence Day e do Thanksgiving Day, e prestar à
nação aliada homenagens simbólicas, nomeando equipamentos e edificações públicas
locais com designações alusivas à história dos Estados Unidos.

Figura 3: a) Notícia a respeito da chegada do embaixador dos EUA; b) Nota sobre a paisagem de Nova
Iorque; c) Notícia sobre posicionamento do Governo Brasileiro em relação ao falecimento do ex-
presidente Roosevelt; d) Propaganda de filme Estadunidense em cartaz na cidade de Belém. Fontes:
Folha do Norte, 1945; Folha do Norte, 1967, Folha do Norte, 1945; Folha do Norte, 1945.

A partir desses dados, é possível levantar uma contraposição entre as perspectivas sobre
o contato pretendido entre Brasil e EUA e a relação de fato consolidada em meio aos
dessemelhantes estratos sociais, especialmente na capital paraense. Além da influência
política e econômica exercida pela nação estadunidense ao Brasil, tais posturas
diplomáticas impactariam sobre o comportamento e aspirações do cidadão médio de

• 8
Belém, que passaria a ser cada vez mais atraído pelo “mundo” americano, suas
possibilidades, seus produtos e seu idioma, refletindo no desejo de alcançar e se equiparar
ao american way of life. Com isso, é lançado ao público um discurso que aproxima um
estilo de vida importado do exterior, caracterizado pela posse de veículos,
eletrodomésticos e pelo domínio do idioma estrangeiro, com ideais de modernidade
preteridos à sociedade local, enquadrando, da mesma forma, um propósito de
transformação e integração do território amazônico ao resto do mundo.

AÇÕES CONSOLIDADAS EM BELÉM A PARTIR DA RELAÇÃO BRASIL-EUA


Desde o início do século XX, a circunstância em que a capital paraense se encontra é a
de crise econômica. O fim da gestão do intendente Antônio Lemos (1897-1911), culmina
para o desfecho do ciclo econômico da borracha, além de acompanhar sucessivas dívidas
contraídas à custa dos empréstimos arrecadados de bancos estrangeiros, resultando em
uma crise financeira que atingiu a administração pública e limitou os investimentos do
setor de obras civis arquitetônicas, urbanísticas e de infraestrutura em Belém. Somado a
isso, a Grande Depressão de 1929 aprofunda a crise vigente na capital paraense
(CHAVES; LIMA, 2018). Assim, com a instauração do Governo autoritário de Getúlio
Vargas, apresenta-se a tarefa de resistir a essa crise, resultando em uma postura
centralizadora “desde o âmbito da estrutura administrativa das instituições até as políticas
públicas em saúde, trabalho e ensino” (CHAVES, 2008, p. 02). No estado paraense, as
medidas modernizadoras empregadas pelo Presidente Vargas, foram levadas adiante pelo
interventor nomeado, Magalhães Barata.
No decurso da década de 1930, providências modernizadoras foram compactadas em
atuações no âmbito de infraestrutura pública e espacializadas no centro da cidade, sem
que houvesse uma devida atenção voltada à estrutura social básica (CHAVES; LIMA,
2018). À vista disso, por conta de sua localização próxima ao porto e por sua designação
como um eixo de expansão que conecta os bairros em crescimento (Nazaré e Batista
Campos) ao centro comercial, a Avenida 15 de Agosto – atual Avenida Presidente Vargas
– foi o local optado para a implantação de medidas efetivadas segundo as diretrizes de
modernização estipuladas no período. Desse modo, com o objetivo de constituir um “Novo
Centro” para Belém, o poder público determinou ações como o alinhamento da via, a
doação de terrenos adjacentes, para que neles fossem construídas edificações conforme
os padrões estéticos exigidos na época. A localidade tornou-se atrativa para a instalação
de edifícios de serviço, como: hotéis e escritórios, o que estimulou a verticalização da via.
O ímpeto pela verticalização por parte do Governo de Vargas estava relacionado à
tentativa de corresponder ao signo da modernidade que os prédios altos manifestavam
nas cidades modernas ao redor do mundo, como Nova Iorque, por exemplo. Através, dos
edifícios estadunidenses, os ideais transmitidos pelo Estilo Internacional passaram a ser
relacionados a modernas formas de habitar, logo ao progresso e qualidade no emprego
de técnicas construtivas, tecnologias e materiais (CHAVES; SILVA, 2013). Dessa forma,
com a intenção de assemelhar as características físicas de Belém com as edificações

• 9
verticais dos EUA, foram criados marcos regulamentadores para projetos arquitetônicos.
Por meio do Decreto-lei Nº 166, de 03 de novembro, com autoria do engenheiro Jerônimo
Cavalcanti, através da Lei 3450, 06 de outubro de 1956, edificações localizadas na Av.
15 de Agosto, necessitariam apresentar, no mínimo, 12 pavimentos, ao passo que as
edificações situadas próximas à via, no mínimo 10 pavimentos (CHAVES; SILVA, 2013).
Como forma de difundir uma imagem de unidade pelo Governo Varguista, foi designada
a predileção pelo estilo arquitetônico Art Déco (CHAVES; LIMA, 2018), estilo relacionado
a uma transformação cultural, onde, os países tidos como desenvolvidos, utilizavam tal
segmento. Nos EUA, o estilo foi apropriado condizendo às características manifestas de
acordo com a produção europeia, porém, as construções estadunidenses se distinguiram
pelos seus “arranha-céus”.
Assim como aconteceu nos EUA no século XIX, no Brasil, o governo de Vargas impulsionou
os ideais de modernização com objetivo de se equiparar à condição semelhante, gerando
transformações no espaço urbano, baseadas em um "desejo de modernidade” (BARTHEL,
2015). Logo, em Belém, o estilo Art Déco foi introduzido na idealização de novos edifícios
que pudessem retratar o anseio modernizante pelo Estado, compreendendo as ações de
renovação da arquitetura pública e institucional e de transformações na cidade. Assim,
ao longo da Avenida 15 de Agosto, edifícios que representavam o estilo Art Déco foram
construídos, como: o Central Hotel (1938), projetado pelo proprietário Salvador Souza, o
Avenida Hotel (início da década de 40), o prédio sede do Instituto de Aposentadorias e
Pensões (IAPI), em 1958, projetado pelo arquiteto Edmar Penna de Carvalho (CHAVES;
SILVA, 2013); e a agência dos Correios e Telégrafos, inaugurada no início dos anos 40,
projetado pelo engenheiro Archimedes Memória (CHAVES, 2008).
Em relação aos projetos residenciais engendrados por profissionais como Camilo Porto,
conceitos próprios da produção arquitetônica estadunidense se manifestaram na capital
paraense, como o piso intermediário, split level, encontrados em projetos como as casas
Chalú Pacheco (1963) e Chamié (1950) (CHAVES et al, 2020, no prelo). Outro conceito
empregado foi o de telhado quonset, derivado de das cabanas construídas durante a
Segunda Guerra, segundo Carvalho (2013 apud CHAVES et al, 2020, no prelo).

Os procedimentos de transformação do espaço urbano da capital paraense também


sofreram influência dos Estados Unidos, refletindo essa em seus equipamentos públicos.
Logo, o sistema de transporte coletivo de Belém também foi atingido pelas mudanças
ocorridas na época. As antigas linhas de bonde foram substituídas por novos abrigos aos
passageiros, em razão do estabelecimento de empresas terceirizadas. Esses pontos de
ônibus compreendiam pequenos estabelecimentos comerciais e até postos de gasolina e,
ainda exibiam em sua composição arquitetônica os elementos compositivos do estilo Art
Déco. Ainda, de acordo com Chaves (2016), a semelhança estética desses equipamentos
com os modelos de avião da Pan Air do Brasil (companhia aérea subsidiária de uma
empresa estadunidense), designou o termo popular “clipper”. Essas paradas de
transporte coletivo e os ônibus, chamados Zeppelins, eram alusivos à referência
estadunidense tanto em função do design apresentado, uma variante do Déco, a
Streamline Moderne, quanto por relacionar a ideia de progresso e velocidade mediante

• 10
os avanços tecnológicos do início do século XX, identificados nos modelos de veículos de
transportes como os automóveis, navios, trens e aviões (BARTHEL, 2015). Essas linhas
de ônibus conectavam os bairros em crescimento e os bairros emergentes até o Ver-o-
Peso, local de afluência dos primeiros clippers da cidade, localizados em vias como Av.
Portugal, Av. Boulevard Castilhos França e no Largo das Mercês (CHAVES, 2016), além
disso, tem-se o clipper de Nazaré, situado próximo a Basílica de Nazaré, na antiga Praça
Justo Chermont (BALEIXE, 2014).

Figura 4: Clipper da Av. Portugal; Clipper da Av. Boulevard Castilhos França; Clipper do Largo da
Mercês; Clipper da Av. Nazaré. Fonte: https://fauufpa.org/2012/05/17/clippers-da-memoria-de-belem/;
https://fauufpa.org/2019/06/24/clipper[1]no2-por-jose-maria-coelho-bassalo/;
https://fauufpa.org/2014/07/30/o-clipper-de-nazare/.

Outro ponto é a repercussão sobre o espaço de circulação para pedestres, em que se


pôde observar mudanças na configuração de ambientes públicos como largos e jardins.
Em conformidade com a vanguarda estadunidense, foi evidente no paisagismo moderno
brasileiro a eminência de um preceito de “lazer ativo” (OLIVEIRA; LONGO, 2018, p.6),
associado na constituição de praças públicas compostas de equipamentos recreativos.
Diante disso, para a realidade da capital paraense, situada em um antigo terreno contíguo
à Av. Marechal Hermes e a Av. Boulevard Castilhos França, evidencia-se a referência à
Praça Kennedy, atual Praça Waldemar Henrique, inaugurada na década de 60, com o
antigo nome em alusão ao 35º presidente dos EUA. O equipamento também demonstrava
outros modos de se alcançar os EUA, como através de seus padrões estéticos, onde o
projeto tem forte influência do país vizinho:
“[...] representado por um partido minimalista, que se desenvolve a partir de um terreno
plano de predominância linear, configurado no desenho geométrico, identificado através do
uso das linhas de formas puras, divididos em canteiros gramados, espelhos d'água, espaços

• 11
ao lazer, e pisos em concreto, inseridos em larga escala com pouca variação de formas,
tonalidades e materiais.” (OLIVEIRA; LONGO, 2018, p. 13).
É também importante evidenciar a existência de alguns componentes como os aparelhos
de lazer para as crianças, assim como um elemento escultórico do busto do presidente
Kennedy, além de superfícies circulares pensadas para comportar a prática de
aeromodelismo (BALEIXE, 2012).
As melhorias realizadas em parte da infraestrutura de Belém também são referentes às
implicações das relações diplomáticas entre cidade – e por efeito, o Brasil – e os Estados
Unidos. Após o Brasil assumir posição contra os países do Eixo, em 1942, motivo
averiguado por conta do ataque alemão às embarcações brasileiras, e o fortalecimento
da aproximação nacional com os EUA, pelos Acordos de Washington, foi financiada a
construção da base aérea de Val de Cães em Belém, equipada pela abertura de novas
vias entre a localidade e o centro da cidade, sob a condição do consentimento de seu uso
pelo exército estadunidense. No período, também foi propagado o argumento de que o
empreendimento possibilitaria por meio de viagens comerciais, maiores conexões com o
exterior, ainda podendo colaborar para o desenvolvimento do setor turístico da região.
Assim, a grande presença de militares estadunidenses na cidade proporcionou o aumento
de sua população e favoreceu a movimentação do comércio (CHAVES, 2016).
As relações de caráter econômico entre Brasil e EUA oportunizaram o saneamento básico,
compreendendo obras de drenagem na cidade. Logo, é evidenciado ações como “a
elevação da Travessa Padre Eutíquio e a canalização do córrego resultante do aterro do
alagado do Piry na Avenida Almirante Tamandaré” (BELÉM, 1945 apud LIMA, 2018, p.11).
Ainda, na capital paraense, foi empreendida através de uma parceria entre a SESP
(Serviço Especial de Saúde pública) e a Fundação Norte-Americana, a construção de um
Dique Seco ao longo da bacia da Estrada Nova (CRUZ, 2012).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base no trabalho exposto, averiguou-se a forte presença e influência dos EUA no
Brasil, logo, na cidade de Belém, influência essa que reverberou de modo abrangente na
sociedade, na política e também nos campos da arquitetura, dos equipamentos públicos
e da infraestrutura. Diante disso, observou-se que a ligação entre Brasil e EUA fora
intensificada por diversos fatores, como a necessidade da borracha amazônica por parte
do país estadunidense, o contexto da Segunda Grande Guerra, a tentativa de criar
ligações diplomáticas entre os EUA e os países da américa latina, além do país
estadunidense tomar para si, a categoria de líder e levar o desenvolvimentismo para os
países vizinhos, incluindo o Brasil. Tal relação pôde ser observada, por meio de políticas
mais diretas, mas também através de medidas indiretas, principalmente pela utilização
da mídia, como a divulgação em jornais da época, dos serviços, produtos, política,
empresas e estilo de vida estadunidense, além de notícias e propagandas sobre o próprio
EUA. Desse modo, é nítido que as intervenções ocorridas compreendiam a conquista de
relações diplomáticas com o Brasil e também de um propósito de correspondência

• 12
sociocultural entre as duas nações. Além disso, obras consequentes dessa conexão
puderam ser averiguadas na capital paraense, espacializadas em bairros diferentes,
percebendo-se que essas obras empreendiam alusões a história e cultura estadunidense,
por meio da estética e forma que referenciava de modo mais direto essa condição de
contiguidade.

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• 14
É POSSÍVEL UMA HISTÓRIA URBANA DA SAÚDE? notas para a
compreensão do sistema de saúde e a cidade do Rio de Janeiro entre
1922-2022

IS AN URBAN HISTORY OF HEALTH POSSIBLE? notes for


understanding the health system and the city of Rio de
Janeiro between 1922-2022

Historiografia, ideários e regimes de historicidade

CHALO, Guilherme.
Doutorando do Instituto de Planejamento Urbano e Regional
guilhermechalo@gmail.com
RESUMO

Que novas questões podemos pensar sobre a história urbana tendo a saúde
pública como fonte de reflexão? Afinal, quais são as temporalidades do adoecer
e do curar que estão materializadas na cidade? Observamos que o espaço
urbano carrega esse tempo complexo, assim quais são as temporalidades que
envolvem a cidade quando o assunto é saúde? Sem dúvida o tempo do Estado
é uma força na produção da cidade, mas não só. Estamos falando aqui de
sujeitos que mobilizam os mais diversos saberes e práticas ao ato de curar e
a explicação do adoecer. Esses tempos entram em conflito com ritmo de
acumulação da cidade capitalista moderna. No Brasil o campo da história da
saúde tem se desenvolvido desde o período de redemocratização, com novos
sujeitos de pesquisa, novos arquivos e principalmente novas perguntas. o
nosso objetivo com este trabalho é lançar reflexões para uma periodização da
relação entre saúde coletiva e espaço urbano, através da cidade do Rio de
Janeiro. Compreendendo as distintas temporalidades que as concepções de
saúde pública legaram ao espaço urbano carioca. Refletindo como os debates
sobre saúde pública tem um papel fundamental para a compreensão o
processo de modernização brasileira e suas contradições.

PALAVRAS CHAVE Saúde Pública; Rio de Janeiro; SUS; Modernização.

ABSTRACT

What new questions can we think about urban history with public health as a
source of reflection? After all, what are the temporalities of getting sick and
healing that are materialized in the city? We observe that the urban space
carries this complex time, so what are the temporalities that involve the city
when the subject is health? No doubt the time of the State is a force in the
production of the city, but not only. We are talking here about subjects that
mobilize the most diverse knowledge and practices to the act of healing and
the explanation of getting sick. These times conflict with the rhythm of
accumulation of the modern capitalist city. In Brazil, the field of health history
has been developed since the redemocratization period, with new research
subjects, new archives, and especially new questions. Understanding the
distinct temporalities that the conceptions of public health bequeathed to the
urban space of Rio de Janeiro. Reflecting how the debates on public health
have a fundamental role the Brazilian modernization process comprehension
and its contradictions.

KEY-WORDS Public health; Rio de Janeiro; SUS; modernization.


“desde o último quartel do século XIX a saúde tem frequentado a agenda
intelectual e política brasileira menos pela sua afirmação e muito mais pelo seu
avesso, ou seja, pela doença”.
G. Hochman, saúde pública e os males do brasil (2011)

“nossas deficiências epistemológicas e epidemiológicas podem, em sua base, ser as


mesmas”.
Rob Wallace, pandemia e agronegócio (2021)

INTRODUÇÃO

A frase do professor Gilberto Hochman publicada no ensaio “Saúde pública e os males


do Brasil” (2011) carrega um subtexto muito importante para a nossa reflexão; as
práticas e os discursos sobre saúde têm participado ativamente no debate público
brasileiro. Em última instância não podemos contar a história da modernização
brasileira, aqui tomamos como modernidade o avanço das relações sociais
capitalistas e suas contradições, sem pensar como os serviços de saúde foram sendo
articulados e construídos no Brasil nos últimos cem anos.

Mais do que participar da agenda política e intelectual no Brasil, a saúde pública


participou – e participa – da agenda urbana brasileira e sua construção. Podemos
marcar aqui como os discursos sobre a higiene urbana teviram um papel fundamental
na modernização da cidade capitalista europeia nos fins do século XIX,
nomeadamente em Londres e Paris. (HARVEY,2015; HALL,1988) E como essas ideias
aterrizaram nos trópicos, sendo a cidade do Rio de Janeiro - em franco processo de
transformação - um laboratório para as novíssimas práticas urbanas importadas.

Topalov (1996, p.27) sintetiza esse momento de modernização do capitalismo e de


suas cidades e de como o discurso sobre o progresso é hegemônico, ele aponta, que
epopeia progressista foi escrita pelos próprios reformadores e atribui a estes a
iniciativa: “nessa epopeia, os reformadores, ilustrados pela ciência, travam um
combate justo contra a ignorância e os interesses criados, e tornam possíveis as
mudanças necessárias para a modernização da sociedade”.

Esse momento que teve o discurso médico um nexo explicativo fundamental e


organizador da vida social é o momento do nascimento das grandes cidades
modernas, que já se assustavam com os arroubos da multidão da primeira cidade
industrial (BRESCIANI,1982). As reflexões de Michel Foucault têm um papel central
a reconhecer as transformações no pensamento médico como coletivas, nesse
contexto de modernização.

• 1
O autor reconhece como a moderna medicina se transforma em uma tecnologia sobre o
corpo social, portanto urbano, começando na escala do indivíduo o controle “não se opera
pela consciência ou pela ideologia, mas começa pelo corpo, com o corpo. Foi no biológico,
no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é
uma realidade biopolítica. A medicina é uma estratégia biopolítica” (FOUCAULT, 2014,
p.144) A cidade é uma construção biopolítica.

O espaço urbano vai passar, a partir do saber médico, por um conjunto de normatizações,
posturas, códigos de comportamento e de construções, criando a fórceps a modernidade.
Nós trópicos isso não será diferente sob a luz da saúde pública as elites urbanas vão
criando um espaço a sua imagem e semelhança, já demostrando as marcas da
segregação e da desigualdade que são frutos da nossa formação social. Como argumenta
Sevcenko (2018, p.78):

as vítimas são fácies de identificar: toda a multidão de humildes, dos mais variados
matizes éticos, que constituíam a massa trabalhadora, os desempregados, os
subempregados e os aflitos de toda espécie. A ação do governo não se faz somente
contra os seus alojamentos: suas roupas, seus pertences, sua família, suas relações
vicinais, seu cotidiano, seus hábitos, seus animais, suas formas de subsistência e
sobrevivência, sua cultura. Tudo enfim, é atingido pela nova disciplina espacial, física,
social, ética e cultural imposta pelo gesto reformador

O Rio de Janeiro é palco da modernização do capitalismo brasileiro e o higienismo, como


utopia urbana das elites, tem um papel fundamental nesse processo de modernização,
com a formação de uma cidade e da moral de um trabalhador para um novo momento
de expansão do capitalismo. A lógica da violência policial contra as classes perigosas nos
cortiços, legitimada pelo pensamento médico foi fundamental para transformar a cidade
do Rio para esse novo momento, como observa Maurício de Abreu,

A partir do saber médico que a cidade se transformou, na Europa e no final do século


XVIII, em objeto privilegiado de análise e de reflexão. Será também baseado nesse
saber que o pensamento urbanístico moderno vai se estruturar no decorrer do século
XIX, justificando, em nome das teorias higienistas, as inúmeras intervenções que serão
realizadas nos mais diversos contextos urbanos (ABREU, 1996 p.163).

Desde o século XIX a cidade capitalista tem chamado atenção dos seus observadores pelo
efeito da multidão que a vida urbana apresentava às classes abastadas das cidades. Os
mais variados expedientes terapêuticos para a cidade pestilenta e miasmática vão dando
forma às primeiras práticas de urbanismo moderno como conhecemos hoje. O urbanismo
é tributário do pensamento sobre a saúde nas cidades, em outras palavras, o “urbanismo
é filho da peste”.

Esse momento, comumente chamado de higienismo, mobilizou variados grupos, classes


sociais e diversos estudiosos e planejadores das cidades, principalmente em crítica às

• 2
mazelas da cidade industrial, onde a higiene entra no léxico discursivo para criticar a
desordem urbana e propor, baseado na ideia positivista de ordem, a cidade saneada.

O primeiro passo, para pensarmos uma história da saúde urbana, é buscar uma definição
de fenômeno urbano que ofereça as bases para a nossa reflexão. Milton Santos em seu
texto “a forma e o tempo: a história da cidade e do urbanismo” (2008), nos alimenta com
algumas inquietações metodológicas sobre o tema. Começando com um levantamento
das dificuldades de interrogar o passado e como essa paisagem urbana pretérita tem
morada no presente, assim o autor observa:

nenhum estudo de geografia urbana que se respeitasse podia começar sem alusão à
história da cidade, às vezes até de forma abusiva. Sem essa preocupação de contar o
que foi o seu passado, era impossível abordar esta ou aquela cidade. Hoje, porém,
fazemos frequentemente uma geografia urbana que já não tem base no urbanismo. É
uma pena, porque praticamente já não ensinamos como as cidades se criam, apenas
criticamos as cidades do presente. Isso fez com que a disciplina “história da cidade”
ficasse órfã. Torna-se, pois, salutar essa retomada, sobretudo porque se faz segundo
um enfoque multidisciplinar. (SANTOS, 2008, p.99)

Nesse sentido, Milton Santos propõe uma definição e ao mesmo tempo uma diferença
entre a cidade e o urbano. Assim, o “urbano é frequentemente o abstrato, o geral, o
externo. A cidade é o particular, o concreto, o interno. Não há o que confundir. Por isso,
há histórias do urbano e histórias da cidade” (2008, p. 99). Portanto, o urbano é o
processo geral, é o desenvolvimento da lógica capitalista no espaço e a cidade é a sua
materialização; apontando uma diferenciação e assumindo que devemos contar duas
histórias.

A partir de uma primeira definição entre a cidade e urbano, outra pergunta é necessária
para pensar a relação entre a saúde e o urbano: qual é o nosso conceito de tempo? Ou
melhor, quais são os tempos em jogo na complexa relação entre saúde pública e a cidade?

Bernard Lepetit em seu ensaio “é possível uma hermenêutica urbana?” (2016), nos
apresenta algumas questões que inauguram uma visão crítica sobre como contar as
histórias do fenômeno urbano. Essa crítica parte da definição de tempo, basilar no
pensamento historiográfico, o autor aponta: “Em contraste com o tempo monótono da
mecânica clássica e do urbanismo funcionalista, o tempo das teorias da auto-organização
caracteriza-se tanto rumo inesperado de algumas de suas evoluções quanto pela
complexidade" (2016, p. 173). Esse tempo complexo propõe uma variação e pluralidade
de tempos que compõem o espaço urbano, tempos "descompassados cujas modalidades
de combinação geram mudança a cada instante” (2016, p.174). É por uma definição
desse tempo complexo que o historiador francês nos chama à reflexão e nos encoraja a
trocar “as bifurcações pelos descompassos, o rumo das trajetórias pela pluralidade das
temporalidades” (ibidem).

• 3
Essas temporalidades se materializam no espaço urbano, “na escala das grandes
intervenções do urbanismo, mas também na das mil pequenas mutações repetidas que
modificam o tecido urbano, os tempos da cidade são fortemente demarcados” (ibidem,
p. 175). São essas demarcações que constroem as cidades no cotidiano e aqui não
podemos perder de vista que essas temporalidades podem ser conflitantes, podem se
materializar a partir de ritmos contraditórios e conflituosos. O espaço urbano se produz a
partir do conflito de diferentes ritmos em diferentes escalas.

As questões que Lepetit apresenta sobre a complexidade dos tempos na cidade, nos
remete ao provocativo ensaio de Walter Benjamin sobre o conceito de história (2012) um
texto que propõe uma concepção renovada de história que, nas palavras do autor, tenta
"estabelecer uma cisão inevitável entre nossa forma de ver as sobrevivências do
positivismo” (LÖWY, p.33, 2005).

A partir de suas teses podemos vislumbrar uma concepção de tempo, que nos mostra o
conflito entre as diferentes temporalidades na modernização capitalista. Suas teses são
um chamado a uma visão crítica sobre o progresso capitalista, levando em consideração
que “Não há documento de cultura que não seja também documento de barbárie” e nos
lega uma tarefa de compreensão desse processo de modernização e assim “escovar a
história a contrapelo” (BENJAMIN, 2012, p.13). Ou seja, uma tarefa de identificar o papel
do conflito como componente fundamental da história e de rememorar seus ritmos e seus
lugares no espaço urbano.

Reconhecendo que este processo de modernização é profundamente desigual e lega


marcas à nossa cidade hoje, o nosso desafio é afirmar do ponto de vista da saúde pública
e do espaço urbano que “articular historicamente o passado não significa reconhecê-lo
‘tal como ele foi’. Significa apoderarmo-nos de uma recordação quando ela surge como
um clarão em um momento de perigo” (BENJAMIN, 2012, p.11).

Portanto, que novas questões podemos pensar sobre a história urbana tendo a saúde
pública como fonte de reflexão? Afinal, quais são as temporalidades do adoecer e do curar
que estão materializadas na cidade? Observamos que o espaço urbano carrega esse
tempo complexo, assim quais são as temporalidades que envolvem a cidade quando o
assunto é saúde? Sem dúvida o tempo do Estado é uma força na produção da cidade,
mas não só. Estamos falando aqui de sujeitos que mobilizam os mais diversos saberes e
práticas ao ato de curar e a explicação do adoecer. Esses tempos entram em conflito com
ritmo de acumulação da cidade capitalista moderna.

No Brasil o campo da história da saúde tem se desenvolvido desde o período de


redemocratização, com novos sujeitos de pesquisa, novos arquivos e principalmente

• 4
novas perguntas. Hochman, Teixeira e Pimenta (2018) projetam um balanço deste campo
da história no Brasil, mostrando a sua complexidade, multidisciplinaridade e demonstram
também o seu processo de institucionalização e vivacidade contemporânea.

Segundo os autores a

percepção de que a história é um lugar de disputa e que o passado narrado é


constatável gera incompreensões de outros campos profissionais sedutoras ao encanto
de Clio. No Brasil o acolhimento da narrativa histórica no campo da saúde tem sido
mais positivo uma vez que esta tem ocupado um lugar importante no debate da
reforma sanitária (2018, p. 10).

Esse contexto de renovação crítica do campo da história da saúde é fundamental para


levantarmos a atualidade deste campo e interrogar como o urbanismo e o planejamento
urbano tem refletido sobre a relação entre história, espaço urbano e saúde/doença.

Ao passo que reconhecemos a importância da reflexão oriunda desse contexto para os


trabalhos que estão na interseção entre urbanismo e saúde pública, novas perguntas
ainda estão por vir. Como nos ensina Roberto Schawarz (2014, p.199) “as perguntas que
dirigimos ao passado têm fundamento no presente”, o nosso presente é de ataque a
direitos conquistados e a Constituição de 1988, nosso presente é de retração de políticas
sociais que interferem diretamente na determinação da saúde em várias cidades
brasileiras, nosso presente é de ataque ao Sistema Único de Saúde (SUS) como sistema
universal de saúde e o nosso presente de um evento global de saúde pública sem
precedentes da nossa história que urge por uma reflexão sobre suas raízes urbanas
(BARCELLOS, 2008).

Portanto, o nosso objetivo com este trabalho é lançar reflexões para uma periodização da
relação entre saúde coletiva e espaço urbano, através da cidade do Rio de Janeiro.
Compreendendo as distintas temporalidades que as concepções de saúde pública legaram
ao espaço urbano carioca. Refletindo como os debates sobre saúde pública tem um papel
fundamental para a compreensão o processo de modernização brasileira e suas
contradições.

O RIO DE JANEIRO NOS ANOS 1920

Os primeiros vinte anos do século no distrito federal, foram um laboratório para as


principais concepções de saúde pública vinculantes no debate científico da época, a cidade

• 5
do Rio acabará de sair do regime escravista, era um dos principais portos mercantis da
América do Sul, fruto do som do chicote que estalou por 388 anos.

Na cidade colonial, os escravos coloriam as ruas com seus pregões e cantos de trabalho.
No começo do século XX, eram homens juridicamente livres – “escravos, agora, de suas
necessidades: meninos vendendo jornais, negros fabricando cestas na calçada, o
português que toca perus com a cara comprida, o italiano do peixe, o turco dos fósforos,
o vassoureiro, o garrafeiro, a negra da canjica. Cada qual contribuía com seus sons para
a polifonia das ruas” (BENCHIMOL, 2018, p.259).

Essa cidade palco do desenvolvimento da economia brasileira, desde sua fundação sofria
com surtos e epidemias de doenças infeciosas, que foram se agravando com o passar do
tempo dentre elas: “o cólera atingiu o Brasil em 1855-56, na cauda da terceira pandemia
do século XIX, e nos anos 1890, pouco tempo antes da peste bubônica. A tuberculose, as
disenterias, a malária e febres chamadas por dezenas de nomes crepitavam no capital e
nas províncias” (BENCHIMOL, 2018, p.225).

Essas doenças eram fruto de grande debate na sociedade carioca desde o império, com
a criação das primeiras instituições médicas em Salvador e no Rio de Janeiro como a
Academia Imperial de Medicina e as Faculdades de Medicina, a saúde pública era assunto
da crônica; são vários os relatos, gravuras, opiniões e caricaturas onde as epidemias
figuram como assunto, sintetizando visões sobre o espaço público, seus problemas e
possíveis soluções.

A explicação desses agravos passara pela configuração do solo, pelo regime de ventos,
pelo clima, pelo relevo e por todo um conjunto de observações ambientais que geravam
os maus ares provedores de doenças, comummente conhecido por miasmas.

A consolidação da revolução industrial, o declínio do tráfico, a expansão das ferrovias e


dos navios a vapor manteve a centralidade da acumulação em mãos inglesas ao mesmo
tempo que consolidou os Estados nacionais e as economias agroexportadoras na periferia
do capitalismo, com as cidades portuárias como centros nervosos desse modelo de
acumulação que já se mundializada.

Esse novo padrão de acumulação moderno constituiu uma nova conjuntura sanitária para
a cidade do Rio de Janeiro, os pântanos e os morros eram reconhecidos como os principais
focos de doenças na cidade, visto que lançavam miasmas e impediam a circulação dos
ares. Em conjunto com os cortiços, hospedarias e casas de cômodos em que se
aglomeravam a pobreza e as doenças. Desde o final do século XIX, onde em 1876 uma
grande epidemia de febre amarela assolou a cidade, já circulava pelas elites citadinas a

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visão da necessidade de reformas urbanas capazes de deter as epidemias que assolavam
a cidade.

A passagem do século na cidade do Rio de Janeiro será placo de duas interpretações


conflitantes que modelariam as estratégias de saúde pública na cidade, de um lado a
teoria miasmática na explicação das doenças e de outro a teoria dos germes de Pasteur.
Que neste momento vão coexistir em conflito no debate científico no Brasil.

A Teoria miasmática vai inspirar o conjunto de melhoramentos que sob a batuta de Pereira
Passos e Lauro Muller iria irromper a cidade nos primeiros anos do século XX. Rodrigues
Alves então Presidente da recém instaurada República, em um manifesto a nação indica
que “a capital da República não pode continuar a ser apontada como sede de vida difícil,
quanto tem fartos elementos para constituir o mais notável centro de atração de braços,
de atividades e de capitais nesta parte do mundo” (Documentos Parlamentares, 1978,
p.307 apud BENCHIMOL, 2018, p. 258). Os melhoramentos da região portuária e a
abertura da Avenida Central vão rasgar a cidade colonial modificando significativamente
o a urbe carioca, tentando dar ares modernos a cidade colonial, como demostrou o
discurso do presidente. A cidade ganharia um Boulevard ao estilo parisiense ao passo que
atraia novos capitais para o porto renovado.

Da teoria pasteuriana resultou a saúde pública de campanha, que teve um dos seus
principais nomes Oswaldo Cruz, neste momento discípulo de Pasteur formado em Paris,
que comandava a Diretoria Geral de Saúde Pública do Distrito Federal. E assumiu o
desafio de combater a febre amarela e a varíola na cidade, com campanhas que já vinham
sendo estimuladas pela municipalidade. E neste contexto que a vacinação obrigatória é
executada e a cidade entre e convulsão, no episódio conhecido como Revolta da Vacina.
Esse contexto, vai marcar um movimento da cidade do Rio de Janeiro para a separação
dos corpos na cidade, tendo como ferramenta o discurso da higiene pública
(SEVCENKO,2018).

Mas é no final dos anos 20 em 1918 que a cidade do Rio de Janeiro enfrentará mais um
grande desafio em saúde pública, só que desta vez global: a pandemia de Gripe
Espanhola. Demostrando que mesmo com todo o esforço higienista com a exaltação da

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moderna ciência e da “civilização” que foi construída na capital da república, a cidade do
Rio de Janeiro ainda ia se revelar marcada pelas epidemias.

A espanhola chega ao Brasil de navio, inicialmente as cidades portuárias foram as


principais afetadas pela doença em franca expansão global, em um mundo marcado pelos
esforços de guerra e seus impactos socais, até aquele momento nunca antes vistos.

A República que significara um tempo novo marcado pelas ideologias positivistas da época
em várias partes do mundo, no Brasil carrega traços conservadores e excludentes,
marcando um movimento que vamos rever em nossa história, “a mudança para continuar
tudo igual”, visto que a Proclamação da República não consistiu em um aumento da
participação democrática no espaço público. O processo constituinte de 1891 é excludente
e não cria uma política de saúde pública em âmbito da união. São Diretorias de Saúde
Pública em nível estadual que vão se encarregar das políticas públicas de saúde em
âmbito geral.

No distrito federal a Diretoria Geral de Saúde Pública figurava como um importante


laboratório de novas práticas, muitas importadas dos higienistas europeus e
principalmente da moderna medicina em construção entre Paris e Berlin. Em conjunto
com o Instituto Oswaldo Cruz vão fazer a vigilância portuária e a profilaxia de várias
doenças urbanas e rurais, que seria marca dos primeiros anos do Instituto sob o comando
de Oswaldo Cruz.

A gripe espanhola, calcula-se, que atingiu direta ou indiretamente 50% da população


mundial, atingiu a cidade do Rio de Janeiro fortemente,

As mortes no Brasil, ao longo do período pandêmico, chegaram à triste marca de 35


mil vítimas. O Rio de Janeiro mais núcleo urbano nacional, apresentou o número de
óbitos mais elevado. Em dois meses, faleceram em torno de 12. 700 pessoas, por
volta, de um terço do total registrado no país, para uma população de quase 1 milhão
de habitantes. O momento crítico deu-se em meados de outubro, quando a Diretoria
Geral de Saúde Pública, por meio do seu titular Carlos Sidl, admitiu a impossibilidade
de a gripe ser controlada. (SCHWARCZ; STARLING, 2020, p.65)

A cidade parou, apesar da negação inicial até outubro daquele ano, a campanha de
combate à doença ficou a cargo do sanitarista Carlos Chagas que contou uma campanha
de 27 pontos de atendimento na capital federal.

O mundo moderno que se descortinava em velocidade na cidade do Rio de Janeiro, sofreu


um dos primeiros golpes com a pandemia de Espanhola revelando uma contradição
fundamental para a sociedade brasileira e sua capital federal. Quanto maior a integração

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nos mercados mundiais e a ascensão ao mundo das mercadorias, maiores os riscos sociais
e sanitários para aquela sociedade.

A SAÚDE NA ERA VARGAS

O governo Vargas amplia a fórceps as políticas de saúde que estavam sendo geridas e
gestadas no âmbito federal desde os anos 20. Se antes a ideia de nação estava vinculada
ao espaço público da capital federal como uma espécie de representação do poder
republicano. Agora sob Vargas a política de saúde vai representar a própria ideia de nação
na constituição de um trabalhador novo. Criando um arcabouço institucional e burocrático
capaz de acelerar reformas atrelando a saúde pública a categorias profissionais e
avançando o poder do Estado sob espaços antes dominado por elites locais (SANTOS,
1985).

Esse processo de reformulação institucional vai criar o Ministério da Educação e Saúde


Pública (MESP) e o Ministério do Trabalho, Industria e Comércio (MTIC). Duas vertentes
institucionais com dois modelos de políticas de saúde pública que vão se acomodar e de
alguma forma entrar em conflito no período (FONSECA, 2007).

No âmbito do MTIC vamos ter um modelo de assistência pautado pela previdência por
meio das Caixas de Aposentadorias e Pensões e dos Institutos de Aposentadorias e
Pensões. Garantidos pela recente legislação trabalhista a determinadas categorias
laborais, com dever do Estado e dos empregadores. Sendo uma das marcas da cidadania
regulada que marcou o espaço urbano no período, não só pela política de saúde pública,
mas por um conjunto de política sociais atrelado a carteira de trabalho. Dentre elas a
habitação. No âmbito do MESP vamos ter um passo na garantia da universalidade de
atenção a saúde pública, como um direito social adquirido por toda a população e dever
do Estado. Para que este processo se materializasse necessitaríamos de um pacto entre
entes da federação que garantissem esse novo modelo de saúde pública. Entretanto,

No contexto dos anos 30, com a configuração política existente o governo Vargas foi
incapaz de gerar um pacto federativo que possibilitasse o enquadramento dessas
atribuições e, por conseguinte, assegurasse os serviços de saúde como um direto social.
O arranjo se mostrou inviável, devido à grande diversidade regional e partidária e à
histórica divisão desigual do poder entre os entes federativos. Para garantir a viabilidade
da institucionalização e a consolidação de um sistema público de saúde, os conflitos de
interesses foram solucionados através de mecanismos centralizadores e autoritários, que

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fortaleceram o papel da União, mas não lhe conferiam o dever pela execução (FONSECA,
2007, p.261)

No plano do Distrito Federal, a atuação de Pedro Ernesto nos primeiros anos da década
será de estrema importância para consolidar

assistência médica como um dos focos privilegiados de atuação pública, fortalecendo


institucionalmente um modelo de prestação de serviços na área da saúde como
atribuição do Estado, com ênfase na ação curativa, que se destinava à população em
geral, sem restrições de acesso. A esse perfil de intervenção pública que formalizava
a obrigação do governo de assegurar assistência médica a toda a população da cidade,
contrapunham-se por outro lado os Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPSs),
que, vinculados ao MTIC e inseridos no âmbito da previdência, iam também criando
na cidade os seus hospitais destinados a prestar assistência médica aos seus segurados
(FONSECA, 2008, p.103)

Esse contexto marcou fortemente a história da saúde pública e consequentemente as


realidades urbanas que se caracterizavam nesse segundo processo modernizador da
realidade brasileira, agora franco processo industrializante. Se por um lado a esfera do
trabalho passa por um processo de racionalização onde a saúde tem um papel
fundamental. Agora a saúde pública também se transforma em pauta de grupos de
trabalhadores organizados. Em um processo contraditório, visto que a universalização
dos serviços de saúde que se colocava no horizonte ainda era um processo longo que
tardaria a se institucionalizar na realidade brasileira só em 1988.

Interessante é marcar que este período fecha um processo de longa duração na história
brasileira onde a saúde pública tem um papel fundamental no processo de modernização
do capitalismo brasileiro, dando forma as categorias laborais que seriam aptas a usufruir
do parco sistema institucional que se constituía no Brasil. Ao mesmo tempo que a cidade
brasileira se modificava neste longo processo biolítico onde os espaço da casa e do
trabalho vão passando por transformações significativas que observamos até os dias de
hoje.

A CRIAÇÃO DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE E SUA AMPLIAÇÃO NO ESPAÇO


URBANO

A história do que convencionamos chamar de atenção básica no âmbito do SUS, vem de


uma longa trajetória dos sistemas de atenção à saúde na cidade do Rio de Janeiro.

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Já em 1924 no âmbito do ll Congresso Brasileiro de Higiene debate-se a ideia de um
modelo dos Centros de Saúde (CS), quebrando a ideia das grandes campanhas contra
agravos específicos, segundo Campos et al (2016, p.1355), a intenção dos centros de
saúde era que se tornassem unidade de referência, instaladas em núcleos urbanos e
realizando reformas de cunho modernizante. Em 1925, Paula Souza instalou os CS do
Brás, do Bom Retiro e do Instituto de Hygiene. A posse de Clementino Fraga no DNSP,
em 1926, viabilizou a implantação do primeiro CS no Distrito Federal. Juntamente com
Barros Barreto e José Paranhos Fontenelle, inauguraram, com a presença do Presidente
Washington Luís, no dia 1º de janeiro de 1927, o CS de Pilares. As vantagens enaltecidas
por Clementino Fraga, quando da sua inauguração, eram principalmente de natureza
gerencial: ao invés da divisão por funções, em que cada uma das repartições era
especializada em uma doença, fazia-se imprescindível, especialmente em uma grande
cidade como o RJ, um sistema de divisão por tarefas, centralizadas todas em um mesmo
distrito sanitário. Esse trabalho foi organizado em Centros de Saúde, distribuídos em
regiões estratégicas da cidade

Sob essa perspectiva as cidades deveriam ser divididas em distritos e casa deveria ser
chefiado por um médico sanitarista, sendo assim, todas as antigas inspetorias de higiene
foram aglutinadas em uma só, assim “O município foi dividido em 12 Distritos Sanitários,
entre 110 mil e 150 mil habitantes cada” (CAMPOS at al, 2016, p.1356).

Na década de 1940 em diante, a então capital da república deixa de ser prioridade frente
a necessidade de se consolidar serviços de saúde no âmbito do Estado Nacional, portanto
houve uma forte tendência de “cunho campanhista e vertical. A partir de 1940 foram
criados os Serviços Nacionais de Febre Amarela, Lepra, Tuberculose, Malária, Peste,
Câncer, Doenças Mentais, Educação Sanitária, Fiscalização da Medicina, Portos, Águas e
Esgotos e Bioestatística” (CAMPOS et al, 2016, p.1356).

Mesmo assim a rede dos centros municipais de saúde continuou a ser uma referência no
nível federal, e permaneceram como referências para a organização do sistema de saúde
por todo o país. Umas das principais preocupações deste período era

mapear a rede sanitária e também em estabelecer o princípio da divisão distrital


e monitorar o seu desenvolvimento em todo o território brasileiro. A Divisão de
Organização Sanitária encarregava-se ainda de classificar as unidades segundo o
seu porte e complexidade, determinando que as capitais e as grandes cidades
brasileiras deveriam ter, no mínimo, um centro de saúde (CAMPOS et al, 2016,
p.1356).

A partir da década de 1970, precisamente a partir de 1978, como resultado da


Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde realizada em Alma-Ata no

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Cazaquistão, que teve como resultado prático uma declaração onde enfatizava e ampliava
o conceito de saúde e doença como um esforço de várias entidades da sociedade civil em
todo o mundo.

A política de atenção primaria no Brasil, principalmente no Rio de Janeiro começa a sofrer


uma mudança neste período inspirados nos preceitos da conferência. Assim temos uma
grande ampliação dos serviços de atenção primária por toda a cidade.

Um dos grandes ganhos deste período e a tentativa de incorporar o fundamento da


integralidade nos serviços de saúde. Na década de 1980 tivemos uma nova ampliação da
atenção básica na cidade, com uma nova rede de “27 Postos de Saúde e concentrou-se,
novamente, na zona oeste da cidade” (CAMPOS et al, 2016, p.1358).

Em 1988 nós temos um marco fundamental que é a criação do SUS, e temos neste
momento a descentralização da gestão da atenção primária para os municípios segundo
Campos et al (2016) dando uma maior ênfase na atenção primária as ações de promoção
e prevenção em saúde.

No Rio de Janeiro neste período, a cidade tinha um conflito entre a antiga saúde
previdenciária e seus antigos Postos de Atendimento Médico da Previdência Social e o
Programa Saúde da Família criado em 1993. Que só no final da década irá ser reconhecido
como uma estratégia de atuação do SUS depois de muitos conflitos.

Isso significou uma, “mudança na prática de saúde e configurou-se numa proposta de


reorganização para todo o sistema. A partir de então o número de equipes de Agentes
Comunitários de Saúde e de Saúde da Família se elevou em todo país” (CAMPOS et al,
2016, p.1359).

No início dos anos 2000 há uma expansão da estratégia, mas ainda com um forte viés de
programas específicos, “limitando a assistência médica para os usuários do serviço que
se enquadrava em alguns dos programas, como hipertensão, tuberculose, saúde da
mulher, etc” (CAMPOS et al, 2016, p.1359).

Nos últimos anos vimos um aumento significativo dos serviços de saúde – principalmente
da atenção primária - na cidade do Rio de Janeiro, esse aumento acompanha o ritmo de
preparação da cidade para os megaeventos da última década.

A questão que nos move, é qual o formato dessa expansão? Sobre que modelo de gestão
essa ampliação se deu? E qual é o modelo de atendimento praticado e consequentemente
que concepção de saúde pública essa política de atenção básica apresenta.

• 12
A atenção primária em saúde tem um papel fundamental nesse processo, neste contexto
surge as Organizações Sociais braços administrativos e burocráticos para a gestão dos
serviços da atenção básica. A tese de Daniel Soranz (2017) nos ajuda a compreender
essa expansão, do ponto de vista do gestor e nos ajuda a delimitar o discurso oficial sobre
o que ele denominou de “reforma dos cuidados em atenção primária à saúde”.

No Plano Estratégico da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro 2009 a 2012, apresentou-


se formalmente o programa Saúde Presente, com diretrizes para toda a administração
municipal. Sua primeira diretriz se enunciava em: “Ampliar a cobertura e melhorar o
atendimento assistencial dos serviços de atenção primária a partir de uma nova
estratégia de saúde da família.” (SORANZ, 2017, p,23),

Um fato decisivo segundo o autor foi a reforma administrativa, um dos seus pontos foi o

pagamento por desempenho aos profissionais de atenção primária atrelado a um


conjunto de indicadores de acesso, desempenho assistencial, eficiência e coordenação
do cuidado, utilizando como principal referencial e influência a Reforma dos Cuidados
Primários de Portugal. Com os incentivos financeiros pagos por desempenho, buscou-
se uma maior harmonização entre os objetivos organizacionais e os profissionais de
saúde (SORANZ, 2017, p.26).

Não só esse ponto foi importante, segundo o autor a câmara de vereadores da cidade
pactuou sobre um importante fator para essa nova forma de gestão dos serviços de saúde
que se iniciava na cidade, assim

o novo arcabouço jurídico aprovado pela Câmara de Vereadores da Cidade, em abril


de 2009, e posteriormente regulamentado, que se refere à proposta apresentada de
um novo modelo organizacional, tendo apoio à gestão de organizações sociais para a
saúde. Este modelo permitiu que se reduzisse os tempos de compra de material
permanente e de consumo, assim como viabilizou a contratação dos profissionais das
Equipes de Saúde da Família por CLT, eliminando-se os vínculos precários existentes
e o tempo de realização dos processos seletivos de pessoal. Desde meados de 1980,
as transformações geradas pela globalização econômica mundial impulsionaram a
formulação e a implementação de Reformas Administrativas, inspiradas na “Nova
Gestão Pública”. No Brasil, essa agenda gerou, na década de 1990, a elaboração do
Plano Diretor da Reforma do Aparelho de Estado – PDRAE. No que tange à dimensão
gerencial, o PDRAE se valeu de três pontos centrais: construção de um modelo
organizacional mais flexível ou pluralismo institucional – o modelo das organizações
sociais; gestão para resultados e novas formas de accountability (SORANZ, 2017,
p.39)

• 13
Segundo a antiga Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) – que foi modificada em
2017 - as esquipes de saúde da família são compostas por no mínimo um médico da
família, um enfermeiro, uma auxiliar de enfermagens e seis agentes comunitários de
saúde, que mapeavam os determinantes sociais e a situação de saúde do território que
trabalham. Assim, nós tivemos um significativo aumento da política de saúde focada na
atenção básica por toda a cidade, e a política de saúde participou cada vez mais da vida
urbana ao longo dos últimos anos.

No entanto, importantes críticas ao modelo de gestão por OS foram feitas por


trabalhadores, usuários e comunidade acadêmica, principalmente em relação aos
recursos públicos repassados as entidades privadas que não são obrigadas a fazer
licitações para compras e contratação de serviços; e a precarização dos vínculos dos
trabalhadores a partir da contratação via CLT.

Isto posto, é fundamental discutirmos sob que preceitos essa expansão dos serviços está
colocada e quais questão do ponto de vista da política na cidade do Rio de Janeiro isso
nos levanta.

A história das organizações sociais na saúde vem de um longo caminho das ideias
neoliberais no Brasil, principalmente na década de 90 com o governo de Fernando
Henrique Cardoso que opera uma reforma no Estado brasileiro a partir do Plano Diretor
da Reforma do Aparelho do Estado.

Esse documento dá o ponta pé inicial a uma série de mudanças de cunho gerencial e


parte do diagnóstico que o Estado não tem a capacidade de fazer investimentos em áreas
chave, ele descreve quais áreas são exclusivas da atuação do Estado e que outras áreas
não são exclusivas e, portanto, podem ser reguladas, mas executadas serviços prestados
por outros.

A área da saúde, segundo o Plano, não está dentro dos serviços exclusivos do Estado,
para ser mais eficiente deveria ter a sua execução por entidades públicas não estatais
entidades de direito privado que, por iniciativa do poder executivo, obtêm autorização
legislativa para celebrar contrato de gestão com esse poder, e assim ter direito a dotação
orçamentária.

Apesar do amplo apoio político desta medida a efetivação dos projetos de organizações
sociais da área da saúde não foram imediatos, “tendo somente alguns estados e mesmo
hospitais isoladamente aderindo ao modelo logo após a edição da medida provisória que
cria as OS em 1998” (FONSECA, 2013, p. 27).

• 14
A partir daí nos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) nós tivemos uma batalha
constante entre o movimento da reforma sanitária defendendo uma ampliação dos
serviços de saúde a partir dos seus pressupostos de reforma do Estado por investimentos
públicos. A outra corrente privatista, baseadas em novos modelos jurídicos institucionais
para financiar mudanças na política de saúde, profundamente associadas ao receituário
neoliberal (BRAVO; MENEZES 2011).

E a cidade do Rio de janeiro expande seus serviços de atenção básica como vimos
anteriormente sob esse modelo, a partir de maio de 2009 “a prefeitura do Rio de Janeiro
passou a poder firmar contrato com pessoas jurídicas de direito privado, qualificadas
como Organizações Sociais” (FONSECA, 2013, p.30).

Podemos tecer dois conjuntos de críticas a essa expansão e o que ela significou para os
serviços, um primeiro fator é a precarização dos serviços de atenção básica. O modelo de
não estabilidade empregatícia garantida pelo formato das OS, segundo seus defensores,
significaria aumento da produtividade dos trabalhadores.

Mas o que observamos foi um aumento da rotatividade já que os trabalhadores perdem


o plano de cargos e salários somado a lógica do produtivismo focado em resultados, o
que claramente precariza os serviços prestados à população. Embora o discurso oficial
sempre foi o de melhora na qualidade de serviços, ampliação dos serviços principalmente
da atenção básica tendo a saúde da família como eixo norteador a escolha pelo modelo
das OS traz importantes questionamentos sobre a qualidade do acesso aos serviços de
saúde.

A expansão por utilização das OS tem se mostrado antagônico aos próprios princípios do
SUS e da Reforma Sanitária, porque restringe a atuação do Estado como mero regulador
das políticas nas nossas cidades, e a lógica de metas de produtividade por procedimentos
médicos reafirma o modelo centrado no indivíduo e na doença e não na determinação
social da saúde um dos pilares da Reforma Sanitária.

In - Conclusões

O Sistema Único de Saúde brasileiro é um sistema complexo, que envolve diariamente


milhares de pessoas diretamente, entre usuários, agentes, trabalhadores e prestadores
de serviços e indiretamente, com a atuação das vigilâncias, vacinação, da atuação com
políticas de educação em saúde e a prevenção de várias doenças.

• 15
Esse sistema complexo mobiliza diversos trabalhadores em uma rede territorializada
organizada entre os três entes federativos, com múltiplas escalas de atuação e com
profunda conexão com as realidades urbanas das cidades brasileiras. O SUS faz parte da
rede de atuação do Estado em diversos espaços e é fundamental para garantir acesso à
saúde e a qualidade de vida de vários territórios historicamente excluídos da produção da
cidade, portanto, a atuação dos agentes do sistema e a sua própria estrutura pode
impactar positivamente na qualidade de vida e na determinação social da saúde e da
doença dos territórios.

Toda essa estrutura parte de um movimento social construído no seio da resistência à


ditadura e que se fortalece com a redemocratização brasileira, formado por um amplo
espectro da sociedade que tem como uma reivindicação a garantia pelo Estado do acesso
à saúde; marcando a saúde como pública dever do estado e fundamental para a
construção de uma sociedade justa e igualitária.

Nos últimos 20 anos agentes do SUS te se baseado cada vez mais nas categorias espaciais
para buscar explicações e conexões entre a situação de saúde de determinadas
populações e condições sociais de moradia, trabalho etc. o que se convencionou
denominar de Determinantes Sociais em Saúde (DSS).

Como determinantes sociais em saúde, compreendemos as condições socioeconômicas e


ambientais mais gerais que determinam porque alguns grupos são mais suscetíveis a
algumas doenças do que outros, ou seja, como habitação, trabalho, educação,
alimentação serviços de saúde etc.

Como aponta Gomdim et ali (2008, p.238),

Uma cidade é capaz de produzir o lugar dos ricos e o lugar dos pobres, das
indústrias e do comércio, dos fluxos e circulação de mercadorias, bens e serviços,
e também produzir riscos diferenciados para cada indivíduo ou grupo social. Sua
estrutura espacial é necessariamente heterogênea, resultado da permanente ação
da sociedade sobre a natureza.

Portanto, a determinação da saúde está vinculada diretamente com os processos


espaciais de organização do território, porém, é também pensando o conceito de território
que o sistema de saúde se organiza para alterar positivamente esses determinantes.

A partir de um diagnóstico feito pelo movimento da reforma sanitária do contexto da


realidade brasileira anterior ao SUS, onde havia um quadro de desigualdade de acesso
aos serviços e aos recursos em saúde fruto e aprofundando o quadro geral da marcante
desigualdade social brasileira.

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São nas cidades que ocorre a disputa pelos diferentes sentidos do SUS e do direito à
saúde, pois, a relação entre direitos e cidadania no Brasil é um campo aberto e de disputa,
atualmente vivemos um momento de inflexão neoliberal profunda onde a disputa pelo
SUS está no palco principal.

Nos últimos anos no Brasil o pensamento neoliberal tomou conta dos debates políticos e
estratégicos na sociedade, se transformando em um pensamento único sobre quais os
caminhos que o estado tem que tomar na gestão da coisa pública, onde o mercado e o
indivíduo funcionam como dois mitos fundadores. Contraditoriamente, ao longo dos
últimos anos o SUS tem se afirmado como um dos maiores sistemas públicos de
seguridade social, garantindo o acesso de pessoas pobres e de grupos sociais
vulnerabilizados a serviços de saúde.

A razão neoliberal está cada vez mais expressa nas nossas cidades, em um processo que
Harvey denominou de empresariamento urbano onde as parcerias públicas privadas e as
privatizações vão cerceando cada vez mais as pessoas do acesso a bens fundamentais
para a produção de saúde, com por exemplo, as parcerias público privadas com as
organizações de saúde (OS´s).

A privatização, terceirização, parceria público-privada, descentralização com


desregulamentação e fragmentação da rede de atenção, fim da gratuidade apontam para
uma trajetória de ataques ao SUS e um movimento de contrarreforma sanitária, ao
mesmo tempo que reforça um conceito de saúde que nega os determinantes sociais e
reforça a dimensão individual como aquela fundamentam para as políticas de saúde que
se restringem ao acesso a medicina e a fármacos.

A aposta do movimento da reforma sanitária em fazer uma luta pelo direito a saúde
dentro do Estado brasileiro coloca em questão o constante aparelhamento pelo do Estado
por grupos políticos e esses grupos são produtos e produtores da latente crise de
representatividade que a sociedade enfrenta.

É fundamental reconstruir o SUS e o seu caráter público dentro das instituições


democráticas, continuar propondo uma reforma do estado, com um bloco político que
reafirme o caráter público e universal do SUS, que garanta o sistema não só como uma
política federal, mas que sua gestão e financiamento tenha fundamento nos três entes da
federação.

Entretanto André Dantas (2018, p.1715) nos levanta uma questão fundamental para
pensar o atual momento de crise do capital e o SUS,

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Ainda acreditamos que é possível preservar ou mesmo fortalecer o SUS (público e
universal) através de uma luta que se esgota nele mesmo? Queremos a mesma
democracia que reivindicamos na luta contra a ditadura, porque com elas teríamos
garantidas as regras do jogo que franqueariam a possibilidade, institucional de domar
o capital e controlar o Estado?

Com os constantes ataques ao sistema público de várias formas só há uma saída,


reafirmar nossas pautas de maneira mais abrangente e acredito que o SUS tem que
pensar a sua relação com a urbanização capitalista. Pensado que o direito a saúde é
também o direito a cidade. Necessitamos cada vez mais pensar uma agenda comum, que
busque pensar a cidade como o lugar da determinação social da saúde e
consequentemente a cidade como lugar do SUS.

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Janeiro, 2017.

• 19
FORMAÇÃO DO CAMPO DOS
ESTUDOS URBANOS BRASILEIROS
fragmentos e entradas possíveis

FORMATION OF THE
BRAZILIAN URBAN STUDIES FIELD
fragments and possible entries
Historiografia, ideários e regimes de historicidade

ZANATTA, Lucas Yuri Alves


Graduado em Arquitetura e Urbanismo pela EA/UFMG;
Mestrando em Arquitetura e Urbanismo do NPGAU/UFMG
y.lucasalves@gmail.com
RESUMO

Foi ao longo do arco temporal tematizado por esta edição do SHCU — 1822 a
2022 — que ocorreu a maior parte das dinâmicas mais significativas para a
formação do espaço urbano e regional brasileiro como o conhecemos. Porém,
é apenas durante o último quartil deste período que a formação de um
campo de estudos urbanos brasileiro ocorre de maneira mais estruturada.
Alguns indícios que refletem essa consolidação são, por exemplo, a criação
de cursos e programas em nível de pós-graduação e a fundação de uma
associação a nível nacional de tais programas, além de uma série de eventos,
encontros e seminários para discussão dos temas e pesquisas urbanas
brasileiras, bem como a criação de revistas e periódicos de referência para
este campo de estudos. Sendo assim, pretende-se apresentar com este texto
um rastreamento breve de alguns nomes, datas, eventos e ideias que
contribuíram de maneira significativa para os movimentos iniciais da
formação do campo de estudos urbanos que reflete sobre os problemas
próprios do espaço e do planejamento regional brasileiro e que, também,
forma urbanistas, planejadores e pesquisadores urbanos.

PALAVRAS CHAVE Estudos urbanos; Estudos brasileiros.

ABSTRACT

It was along the time span thematized by this edition of SHCU — 1822 to
2022 — that most of the most significant dynamics for the formation of
Brazilian urban and regional space as we know it took place. However, it is
only during the last quartile of this period that the formation of a field of
Brazilian urban studies occurs in a more structured way. Some indications
that reflect this consolidation are, for example, the creation of courses and
programs at the postgraduate level and the foundation of a national
association of such programs, in addition to a series of events, meetings and
seminars to discuss the topics and Brazilian urban research, as well as the
creation of reference journals and periodicals for this field of study.
Therefore, this text intends to present a brief tracing of some names, dates,
events and ideas that contributed significantly to the initial movements of the
formation of the field of urban studies that reflects on the specific problems
of space and regional planning. and which also trains urban planners,
planners and urban researchers.

KEY-WORDS Urban Studies; Brazilian Studies.

• 2
INTRODUÇÃO

Ao tematizar o campo dos estudos urbanos em uma investigação acerca de sua


formação, assumiremos aqui que o urbano e a cidade não são termos idênticos — pois
caso partíssemos deste entendimento de senso comum que toma por ‘urbano’ apenas
aquilo que é relativo à cidade poderíamos atribuir um significado bastante mais amplo
para o termo ‘estudos urbanos’ e, deste modo, um rastreamento histórico da formação
deste campo poderia remeter à obras milenares como A república, de Platão e A
política, de Aristóteles, por exemplo. Essa distinção redireciona o contexto inicial de
pesquisa para meados do século XIX, quando um estudo sistemático sobre as cidades e
suas dinâmicas próprias encontra um momento peculiar de elaboração há cerca de 200
anos, fazendo um paralelo com o marco temporal que orienta esta edição do SHCU.
Uma série de eventos condicionaram esse momento histórico e contextualizam tal
produção de textos e reflexões sobre a cidade, exemplos disso são os desdobramentos
relacionados à Revolução Industrial e o que isso representou para a organização
produtiva e social da época, implicando no redesenho das relações políticas em
reestruturação desde o marco da Revolução Francesa.
Em suma, inaugura-se uma nova fase de estruturação do capitalismo e é certo que a
estrutura econômica dessa nova sociedade capitalista, agora industrial, só pôde
encontrar suas condições materiais de realização a partir dos arranjos societários que
vinham sendo construídos desde o século XVI — desde a consolidação de processos de
acumulação primitiva até a expansão mercantil que projeta as relações comerciais a
nível global, movimentos fundantes da modernidade que inequivocamente estão
lastreados pelo colonialismo. Com isso, localizamos a posição e o papel que o espaço
brasileiro desempenharia na lógica capitalista industrial do xix, afinal, “na América
Latina a colonização fundava-se na expansão agrícola e na explotação minerária”
(Santos, 2017 p.11) e esse quadro que não se encerra com a independência de 1822.
Contudo, com a acentuação dos processos de industrialização, as grandes cidades
europeias tornaram-se palco de grandes transformações e novas dinâmicas sociais que
serão objetos de reflexão privilegiados de novas áreas do conhecimento científico — por
exemplo, a Sociologia, que surge enquanto uma das manifestações do pensamento
moderno e tratará com atenção particular de fenômenos como o aumento da população
citadina, o surgimento do operariado, refletindo também sobre as mudanças na
estrutura física e na gestão do espaço por meio de planos, além das novas experiências
no cotidiano dos habitantes das grandes cidades. Com isso observamos a gênese de um
corpus teórico instigado a investigar esse novo modelo de vida cotidiana, de ocupação
territorial e de relação social que ocorrem nos grandes centros urbano-industriais à
época. Estes pioneiros da sociologia elegem a cidade enquanto objeto de estudo
principal:

“As cidades são a grande novidade do século xix. O espetáculo da multidão nas ruas, a
concentração da população em um mesmo espaço, a moradia precária e super-habitada,
a faina obsessiva das fábricas e o movimento alucinante de pessoas e mercadorias”
(Pechman, 1994 apud Véras, 2000 p.14).

• 3
No século xix, o acelerado ritmo de crescimento das cidades se dá em conjunto com a
multiplicação das indústrias, a multiplicação das instalações ferroviárias e do número de
metrópoles — um desenvolvimento insuflado por certo otimismo baseado no progresso
técnico (Zucconi, 2015 p.16), prolongamento do secular imaginário iluminista que deu
base ao cientificismo e que contrasta com a precariedade das condições de vida das
massas de trabalhadores. Esse contexto de expansão e consolidação da atividade
industrial na Europa que faz com que as elites dominantes começassem a mostrar seu
interesse em colocar o planejamento urbano em bases científicas e institucionais
(Velloso, 2020 p.155).
No entanto, se por um lado os estudos e as práticas profissionais ligadas aos novos
desafios urbanos revelam uma face que se alinha politicamente com os interesses da
burguesia industrial, isso contrasta com outra vertente de estudos que empreendem
análises críticas das duras realidades urbanas vividas neste mesmo momento. Uma obra
exemplar que pode ser considerada um estudo “pioneiro de sociologia urbana” (Bensaid,
2013 p.16) é A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, 1845, de Friedrich Engels
— estudo inédito e inovador quanto aos métodos de investigação empregados e a forma
de exposição, entre jornalismo investigativo, denúncia política e crítica social.
Este momento histórico de consolidação das dinâmicas da industrialização-urbanização,
a grande cidade enquanto lugar-objeto de estudo e as investigações e relatos de Engels
compõem um arranjo inaugural do que se consolidaria enquanto pesquisa urbana
crítica. Uma série de obras, autores, grupos e escolas pode ser somado a este conjunto
e compor uma espécie de constelação preliminar que lastreia a criação de cursos e
revistas intitulados propriamente enquanto “Urban Studies”.
Numa breve retomada de alguns títulos que compõem essa história destacaremos, além
de Engels: W.E.B. du Bois e The Philadelphia Negro: a social study, de 1899; Georg
Simmel, A metrópole e a vida mental, de 1903; A Escola de Sociologia de Chicago,
particularmente a obra The City, de 1925; Le Corbusier e O urbanismo, também de
1925 e que ganharia ampla repercussão nos CIAMs, contexto em que são produzidos
outros textos paradigmáticos que nos dão medida da discussão sobre as cidades, o
fenômeno urbano e as ações de planejamento à época como a Carta de Atenas (1933) e
a Carta do Habitat (1956) — por fim, diante da organização e propagação de princípios
urbanismo funcionalista, cabe destacar a contribuição da crítica irônica, marginal e
radical dos Situacionistas, suas derivas e a ideia de urbanismo unitário.
Estes fragmentos reunidos aqui brevemente demonstram que a denominação formal e o
reconhecimento acadêmico institucional do campo dos estudos urbanos que ocorre ao
final da década de 1960 não se trata de um evento isolado, mas responde a um
momento crítico de ênfase do processo de urbanização planetário e dialoga com vasta
tradição de pensamento e estudos sobre as cidades, sobre o urbano e sobre o
planejamento. Neste sentido, no início da década subsequente, obras como A revolução
urbana (1970), de Henri Lefebvre, A questão urbana (1972), de Manuel Castells e
Justiça social e a cidade (1972), de David Harvey são publicadas e conquistam o
reconhecimento do campo no âmbito acadêmico.

• 4
FORMAÇÃO DO CAMPO DOS ESTUDOS URBANOS BRASILEIROS

Nesta breve introdução, tentamos identificar de maneira aproximada a gênese do


campo dos estudos urbanos a partir de uma montagem particular, um dentre os muitos
possíveis caminhos a serem percorridos no campo da história das ideias. Foram
destacados alguns textos e correntes de pensamento paradigmáticos, porém estes
movimentos e momentos reunidos até aqui concentraram-se exclusivamente em
literaturas e nomes vinculados ao território europeu e norte americano — o que acaba
por constituir uma imagem no mínimo parcial e tendenciosa do contexto histórico em
que surgem os estudos urbanos na década de 1960, como visto anteriormente.
Ainda que seja inegável a herança e influência do pensamento e produções dos países
centrais para a gênese dos estudos urbanos, como também o são para o urbanismo e a
sociologia urbana, ao não considerar o contexto periférico latino-americano
prolongaríamos uma certa cegueira e silêncio sobre a história próxima, local. Assim,
também contra isso se dá a intenção de investigar essa gênese do campo acadêmico
dos estudos urbanos no Brasil, a fim de reconhecermos e nos apropriarmos dos debates
estruturadores iniciais desse campo de pesquisas urbanas. Não podemos ignorar que na
América Latina temos uma rica tradição de pesquisas fundamentais para interpretar o
urbano que não fica atrás das pesquisas dos países centrais, afinal a década de 1960
“inaugurou também a reflexão latino-americana sobre a cidade pelos estudos sobre
urbanização e desenvolvimento em países periféricos” (Valladares et al., 2001 p. 66).
Portanto, o pensamento latino-americano sobre questões urbanas é contemporâneo da
fundação desse campo de estudos nos centros acadêmicos nas metrópoles de países
centrais do sistema-mundo capitalista. Aqui, neste momento particular dos anos 60,
constituiu-se um amplo debate que elencou como centrais para a reflexão sobre o
desenvolvimento territorial e os processos de urbanização os conceitos de
marginalidade e dependência 1.
Tal período fora também marcado por críticas ao urbanismo e planejamento moderno
elaboradas desde aqui na América Latina e, particularmente, no Brasil foi o momento de
produção de uma sociologia da dependência que “teve que se haver com uma situação
que não era completamente explicada pelos modelos teóricos mais gerais de origem
europeia” (Canettieri, 2020 p.45). Com isso, a partir desses esforços teóricos era
possível iniciar uma série de estudos destinados a interpretar criticamente a situação de
“precariedade constitutiva da produção do espaço e da vida cotidiana numa situação
periférica” (ibidem p.45) — reconhecendo a condição compartilhada pelos países latino-
americanos: “periféricos, subdesenvolvidos, dependentes e imperializados” (Fernandes,
Florestan, 1972 apud Brandão, Carlos, 2022 p. 02).

1
Ver CASTRO; ARAVECCHIA-BOTAS. Urbanização, marginalidade e dependência: Manuel Castells e Aníbal
Quijano entre Europa e América Latina (1950-1970), 2016.

• 5
Nesse contexto, destacamos aqui o pensamento de Aníbal Quijano 2, as elaborações e
posições da CEPAL 3 e o grupo vinculado à Teoria Marxista da Dependência (como Ruy
Mauro Marini, Vânia Bambirra, Theotônio dos Santos, por exemplo), que construiu
análises fundamentais expressando em tom crítico as discussões político-econômicas
que se desenrolavam em tal contexto agitado, antes que a série de golpes militares se
instaurar e consolidar o giro ditatorial que marcaria profundamente a América Latina
entre 1960 e 70.
As contribuições das análises sociológicas destes autores denunciam o modo como os
países periféricos seriam incorporados à dinâmica sistêmica do capitalismo rumo à
globalização 4. São estudos fundamentais para interpretar as expressões territoriais
características e as formas particulares que a urbanização assumia e os problemas do
crescimento urbano ligados à condição periférica do espaço latino-americano, que
formata de modo particular os aspectos da “crise urbana” 5 desde o sul: pobreza urbana
e má distribuição de renda, subemprego e desemprego, endividamento, habitações
precárias e amontoadas, baixo acesso à serviços públicos básicos, problemas de
nutrição e saúde precária, isolamento, insegurança e violência.

“A cidade, sobretudo a grande cidade, é uma máquina trituradora, na qual o indivíduo,


imerso e perdido na massa, aliena-se” (Santos, 2017 p. 173).

Soma-se a esse corpus de estudos urbanos latino-americanos inaugurais os trabalhos


do emblemático e pioneiro geógrafo brasileiro Milton Santos, que já na década de 1950
publicara estudos tematizando as relações entre cidade e região, reflexões sobre o
centro da cidade de Salvador e a rede urbana da região do Recôncavo 6. Refletindo os
debates sobre subdesenvolvimento que marcaram a década de 60, seu livro A cidade
nos países subdesenvolvidos, de 1965, é uma referência deste período ainda anterior à
estruturação formal do campo dos estudos urbanos no âmbito acadêmico brasileiro,
instituição que ocorreria apenas na década seguinte.
Se os debates econômicos latino-americanos e as primeiras análises geográficas
empreendidas por Milton Santos em seus anos de formação dialogam com aspectos
estruturantes da problemática urbana a nível regional, na década de 1960 também

2
“Em sua atividade na CEPAL, desempenhada entre 1966 e 1971, o pensamento de Quijano se encontra
com o de Castells e desse movimento teórico-empírico resultaria o conceito de urbanização
dependente.” (VELLOSO, 2020, p.158).
3
Comissão Econômica para América Latina e Caribe — é uma instituição das Nações Unidas fundada
para contribuir ao desenvolvimento econômico e social da América Latina e coordenar as ações
encaminhadas à sua promoção propondo políticas para lidar com os problemas do subdesenvolvimento.
4
Ver Canettieri, T. Cap. 03 - Vistas para as saídas de emergência. 2020. (p.45)
5
Ver Santos, M. Cap. 09 - Alguns aspectos da crise urbana na América Latina. [1982] 2017. (p.151)
6
Estes títulos e a série completa das obras de Milton Santos pode ser consultada em:
<http://miltonsantos.com.br/site/livros/>

• 6
serão produzidos textos que denunciaram os problemas urbanos de maneira mais direta
e implicada, tratando das realidades periféricas desde relatos de vivências pessoais,
nesse sentido, Maria Carolina de Jesus é autora de uma obra pioneira e seu livro Quarto
de despejo (1960) é um documento de relevância maior para os estudos urbanos
brasileiros 7, como bem observado por Arantes, Fix (2021):

“O primeiro e mais impactante relato sobre a condição das classes subalternas no Brasil
urbano e industrializado em meados do século xx não foi escrito por um intelectual que
desceu aos “porões” da sociedade, como fez Engels na Inglaterra; A pioneira que iniciou
os estudos urbanos avant la lettre no Brasil, com seu diário pessoal, foi Maria Carolina de
Jesus (1960), uma mulher negra vivendo em uma favela na várzea do Rio Tietê em São
Paulo — ela tomou notas em seu diário durante os anos de 1950 que depois, em 1960
foram publicadas” (Arantes; Fix, 2021, p.04) 8

Urbanismo no Brasil

Ainda que os debates em torno das condições urbanas dos territórios latino-americanos
ganhem expressividade e temas como desenvolvimento, subdesenvolvimento,
marginalidade e dependência orientam produções notórias na década de 1960, a
discussão sobre o fenômeno urbano de modo mais amplo na América Latina é mais
antiga. No Brasil temos, por exemplo, projetos e planos urbanos como o da concepção
da planta inaugural de Belo Horizonte por Aarão Reis que datam da última década do
século xix (1895) 9. Poderíamos relembrar também a atuação do engenheiro Saturnino
de Brito no plano de saneamento de Santos (1905-1912) e o Plano Agache para o Rio
de Janeiro (1926-1930) como exemplos de estudos e atuações de planejadores
desenvolvidas no início do século xx. A Semana de Urbanismo de 1935 10 é outro desses
afloramentos que vão construindo ao longo do tempo as condições de possibilidade para
que a emergência do campo acadêmico dos estudos urbanos ocorra na década de
1970 11.

7
Para aprofundamento das reflexões e importância da autora para o campo da Arquitetura e do
Urbanismo ver Corpo, discurso e território: cidade em disputa nas dobras da narrativa de Carolina Maria de
Jesus (2019) de Gabriela Leandro Pereira, tese premiada pela ANPUR.
8
Tradução nossa.
9
“O projeto de Belo Horizonte é um marco importante. Delimita de forma precisa uma nova etapa de
concepção de cidade moderna, planejada enquanto desenho e funcionalidade. É o início de uma série
de projetos de transformações das velhas estruturas urbanas herdadas de uma economia colonial”
(Leme, 1999, p. 16)
10
Ver FERNANDES, A; FIGUEIREDO, G. C.; REBOUÇAS, T. (orgs). Semana de Urbanismo de 1935. Reflexões
contemporâneas, Salvador: Assembleia Legislativa, 2015.

11
Sobre esse panorama histórico anterior a década de 1970 a coletânea Urbanismo no
Brasil 1895-1965 (1999) organizada por Maria Cristina da Silva Leme, reúne análises e
pesquisas documentais que subsidiam amplamente reflexões sobre a formação e
evolução do urbanismo brasileiro e é uma referência indispensável.

• 7
Não foram poucos os desdobramentos que o urbanismo moderno teve em território
nacional, simultâneo ao desenvolvimento dos conceitos do urbanismo funcionalista no
âmbito dos CIAMs, por aqui temos sua influência sentida e difundida pela vinda de
urbanistas e planejadores como consultores de planos urbanos, professores,
palestrantes em cursos e eventos, desse modo, a partir da década de 1930, “temos o
início de um ciclo de institucionalização do urbanismo e do planejamento urbano no
Brasil que se completa nos anos 1970” (Feldman, 2007 p.09).

“Consolidou-se, a partir dos anos 1930, a concepção do urbanismo como um processo


abrangente de todos os aspectos da vida urbana e de múltiplas escalas territoriais, que
exigia conhecimentos de diferentes campos disciplinares e que tinha o Estado como seu
principal agente. Nesse alargamento do escopo do urbanismo, não apenas os problemas
das cidades capitais, como vinha ocorrendo desde o final do século xix, mas os de todo o
território urbano passaram a ser reconhecidos como objetos de atuação de urbanistas.”
(Feldman, 2021 p.12)

Se a partir de certa interpretação pode-se entender que o Brasil “nasceu urbano” 12, é
certo notar então que desde muito as questões urbanas se apresentam como desafios
irresolutos de modo que assumiram um caráter central na formação do tecido espacial e
do tecido social brasileiro, requisitando constantemente a atenção da sociedade e o
Estado e convocando projetistas e planejadores urbanos a fim de encontrar e construir
respostas à tais questões-problema, sobretudo em momentos de acirramento das
desigualdades socioeconômicas e reestruturação das formas de gestão e produção do
espaço e da vida cotidiana. Assim como os problemas urbanos são vários e de longa
data, poderíamos então estender a investigação neste ponto e levantar ainda tantos
outros momentos históricos e instituições que têm seu papel na história da evolução da
questão urbana brasileira e comprovam a densidade da história do urbanismo e do
planejamento urbano 13 nacional.
Como mais um pedaço dessa breve montagem apresentada aqui, destacaremos ainda a
atuação da SAGMACS (Sociedade para a Análise Gráfica e Mecanográfica Aplicada aos
Complexos Sociais), liderada pelo padre e economista Louis-Joseph Lebret, fundador do
movimento Economia e Humanismo — “uma economia voltada para as necessidades
básicas do ser humano em sociedade” (Bosi, 2012 p.255). No período de 1950 a 64, os
planos e estudos urbanos regionais emergem enquanto novidades no campo do
urbanismo por influência do raciocínio compreensivo de planejamento das equipes
multidisciplinares nos escritórios da SAGMACS (Figueiredo, 2013 p. 421).
Como dito, iniciativas como a supracitada ajudam a compor o quadro das atividades
institucionais durante esse ciclo de consolidação e formação do urbanismo brasileiro. No

12
Ver Risério, A. A cidade no Brasil - capítulo 01: pontos de partida. 2012. (p.13)
13
Muitas vezes esses termos se confundem, não parece haver um limiar claro — “Trata-se de um
processo de natureza circular: a incerteza terminológica-conceitual reflete-se no trabalho dos
urbanistas/planejadores; e as múltiplas atividades que desenvolvem dificultam o enquadramento
teórico-conceitual dos termos.” (Rovati, 2013, p.33).

• 8
entanto, aqui nos interessa, sobretudo, aproximarmo-nos do momento de consolidação
do campo acadêmico dos estudos urbanos brasileiros. Entende-se que as histórias das
práticas de planejamento são de fato indispensáveis para tal compreensão uma vez que
essas atuações dialogam e contextualizam a “gênese” do campo acadêmico em questão,
por assim dizer, bem como refletem e reagem a momentos e mudanças do próprio
processo territorial de urbanização do espaço brasileiro.

Práticas de planejamento urbano brasileiro

A década de 60 é inaugurada com o marco simbólico do concurso e construção de


Brasília, um plano que se instaura como um eco tardio das propostas funcionalistas do
urbanismo moderno desenvolvido nos primeiros CIAMs que à época já demonstravam
sinais de sua decadência enquanto movimento arquitetônico: “Brasília começou com
uma simplificação final de ruínas, a hera ainda não cresceu” 14.
Em forte contraste a esse projeto urbano emblemático, representação da racionalidade
e crença no progresso moderno, as duras condições vividas que compunham o quadro
da realidade urbana brasileira de então se impunham, de certo modo, tratava-se de
consequências dos processos de urbanização e metropolização acelerados desde 1940,
o forte processo migratório do campo para as cidades é uma expressão das dinâmicas
que contribuíram para o inchaço e expansão periférica dos centros urbanos.
Deste momento, cabe destacar aqui as diversas mobilizações de profissionais do
urbanismo e de movimentos sociais que se reuniram em luta pela reforma urbana —
tratava-se de questionar a estrutura fundiária brasileira, reivindicar a ampliação do
acesso à terra urbana e debater a questão da habitação. O Seminário Nacional de
Habitação e Reforma Urbana, também conhecido como “Seminário de Quitandinha”,
ocorrido em 1963, é um marco histórico da luta pela reforma urbana no Brasil e merece
destaque pela contribuição na construção do papel social de arquitetos-urbanistas nas
disputas e construção de propostas políticas, defendendo e dando o exemplo da
possibilidade de atuação para além de uma ênfase estritamente técnica (Koury, 2013).
Porém, seria também na década de 1960 que viria a ocorrer "a institucionalização do
planejamento urbano e regional no Brasil, a partir do golpe militar de 1964” (Monte-
mór, 2006a p. 72). Sob esses “tempos de chumbo” foi criado o Serviço Federal de
Habitação e Urbanismo (SERFHAU), âmbito no qual será desenvolvido o Sistema
Nacional de Planejamento do Desenvolvimento Local Integrado, importante ponto de
inflexão na trajetória do urbanismo com reflexos na trajetória da urbanização.
Assim, se até início da década de 1950 os urbanistas e planejadores urbanos,
mobilizaram uma metodologia progressista-racionalista, entendendo a cidade como um
problema técnico (Monte-mór, 1981 p.15), o período de 1950 e 60 será marcado pela
construção de um novo paradigma teórico para analisar as condições urbanas —

14
Brasília:1962. Crônica de Clarice Lispector.

• 9
começa-se a dizer sobre um planejamento territorial compreensivo, do qual, conforme
destacamos anteriormente aqui, os trabalhos desenvolvidos pela SAGMACS são o
principal exemplo, no entanto:

“A abordagem multidisciplinar e supostamente integrada na análise urbana só tem início


de fato a partir de 1964, quando se institucionaliza o processo de elaboração de planos
locais com base na metodologia de planejamento compreensivo adaptada pelo SERFHAU.”
(Costa, 2008 p.68)

Então, contemporâneo das discussões e gênese de uma tradição crítica do pensamento


latino-americano sobre questões como desenvolvimento e subdesenvolvimento,
marginalidade e dependência, esse é o momento em que podemos observar nova fase
da análise urbana no Brasil, que “passou de uma perspectiva funcional intra-sistêmica
especial do ‘progressismo’ — habitação, lazer, trabalho e circulação — para a ótica
multidisciplinar — economia, sociologia, engenharia, etc.” (Monte-Mór, 1981 p.28).
Essa mudança acompanha a guinada desenvolvimentista promovida pelos governos
militares através de ações de planejamento vertical cujo exemplo mais nítido seriam os
Planos Nacionais de Desenvolvimento (PNDs) 15 — neles a intenção de estruturação do
espaço e economia regionais desde a implantação de grandes empreendimentos é
nítida. Resulta desse movimento a criação de grandes projetos urbanos e de
infraestrutura como, por exemplo, a Transamazônica, ação que visava efetivar a
integração territorial visando garantir as “condições gerais de produção” 16 da região
amazônica de forma subsidiária às demais demandas regionais, do Sudeste
principalmente.
No entanto, para a efetivação e mesmo para a elaboração desses planos era necessário
formar planejadores urbanos das diversas áreas e o quadro geral da formação
universitária brasileira nesse período de transição da década de 60 e início dos 70 era
bastante incipiente, havia pouquíssimos cursos mesmo em nível de graduação.
Disso decorre que, se o urbanismo havia iniciado seu ciclo de institucionalização por
volta de 1930, como apontado por Feldman (2007; 2021), a institucionalização do
ensino e formação de urbanistas e demais planejadores urbanos ainda se apresentava
enquanto uma demanda a ser atendida e só foi atendida mais propriamente no
momento em que esse fator se apresentou como necessidade para realização e
implantação do planejamento urbano vertical a nível nacional:

“Os primeiros programas de pós-graduação em planejamento urbano e regional foram


criados no início da década de 1970 (...) com a finalidade de formar quadros qualificados
tanto para a formulação como para a implementação de políticas urbanas e regionais que
o então regime militar vigente idealizava.” (CAPES, 2013 p.01)

Nesse sentido, a reforma universitária de 1968, que “foi, sem dúvida, uma medida
autoritária, começou a vigorar poucos dias antes do Ato Institucional 5 (AI-5), principal

15
Em 1971 é publicado o I PND, em 1974 o II PND.
16
Ver MONTE-MÓR, 2015 (p.67); 2006 (p.08)

• 10
instrumento da fase mais repressiva da ditadura”(UFMG, 2018), também foi uma
medida que permitiu uma reestruturação da universidade brasileira, “promovendo a
expansão do sistema de pós-graduação, com investimentos em modernização e
infraestrutura” (ibidem), tomando como modelo muito do arranjo que estruturava o
ensino superior estadunidense. Com isso, ocorreu a extinção das cátedras, a criação dos
departamentos e, uma vez implementado esse desenho institucional, estavam dadas as
condições que garantiram a criação de programas de pós-graduação mais amplamente.

Cursos e programas de pós-graduação

A reivindicação do reconhecimento de qual seria o curso pioneiro dos cursos de pós-


graduação que estudam propriamente a questão urbana é dúbia. Elegendo o critério de
área de conhecimento (ou “área de avaliação”) da CAPES, temos que o título de
“primeiro mestrado nacional em planejamento urbano” seria atribuído ao Programa de
Planejamento Urbano e Regional da Faculdade de Arquitetura da UFRGS
(PROPUR/UFRGS) cuja criação em 1970 “corresponde ao surgimento do sistema de
mestrados e doutorados que, no final dos anos 60, é adotado no Brasil e à questão
urbana como tema dominante devido ao tsunami que, nos anos 50, 60 e 70,
transformou a paisagem urbana brasileira.” (Francisconi, 2020 p.01).
É válido fazer aqui a ressalva que pouco antes, em 1967, é criado na UFMG o Centro de
Desenvolvimento e Planejamento Regional (CEDEPLAR) abrigando um Programa de Pós-
graduação em Economia — ainda que “urbano” não conste no título do programa
propriamente, as questões as quais o planejamento da economia regional precisava
lidar eram propriamente “questões urbanas”, por assim dizer. Considerando que o
campo dos estudos urbanos necessariamente incorpora áreas para além da arquitetura
e urbanismo, talvez seria possível reivindicar certo pioneirismo pro forma do CEDEPLAR
dentre os programas de pós-graduação cinquentenários.
Esse grupo de programas inauguradores dos estudos urbanos a nível de pós-graduação
no Brasil também é composto pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e
Urbanismo do Instituto de Arquitetura e Urbanismo (PPGAU-IAU/USP), criado em 1971,
e o Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAUUSP (PPGAU-
FAU/USP), criado em 1972. Além desses, compondo o eixo Rio-São Paulo que abrigava
a maior parte dos cursos de graduação do país à época, é inaugurado o Programa de
Pós Graduação em Planejamento Urbano e Regional (PPG-PUR) da UFRJ, também em
1972 — inicialmente foi alocado na Coordenação de Programas de Pós-Graduação em
Engenharia (COPPE) e que viria a se tornar o que hoje conhecemos como IPPUR. Por
fim, fora do nicho Sudeste-Sul, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) foi
criado em 1975 o Mestrado em Desenvolvimento Urbano (MDU), que mais tarde seria
estruturado propriamente enquanto um programa de pós-graduação dedicado ao
desenvolvimento urbano e regional pelo diálogo e apoio da SUDENE.
Esses cinco programas iniciais representam um marco no processo institucionalização
da pesquisa urbana no país e, como dito anteriormente, à essa história das instituições

• 11
de âmbito acadêmico corresponde uma história das instituições de planejamento
propriamente ditas — não apenas pelo trânsito entre os agentes formados e formadores
em ambos os contextos, mas também pelas questões que as dinâmicas da urbanização
brasileira em fase de intensa metropolização colocavam, desafiando o ensino e a
prática, formação e a atuação.
Os desafios são motores do pensamento crítico — não é à toa que esse momento de
intensificação dos problemas urbanos coincide com a elaboração fundante de uma teoria
crítica do urbano brasileiro que não se restringe necessariamente ao urbanismo
acadêmico ou profissional, crise e crítica se apresentam como um duplo indissociável
neste caso também.
Considerando que “a partir dos anos setenta, a urbanização se estendeu virtualmente
ao território nacional integrando os diversos espaços regionais à centralidade urbano-
industrial que emanava de São Paulo” (Monte-mór, 2006). É essa extensão das
condições espaciais urbano-industriais que, de certo modo, embasa a integração do
espaço regional brasileiro a partir de suas lógicas — de forma resumida, essa seria uma
faceta do processo identificado por Monte-Mór como “urbanização extensiva” 17.
Somente nesse momento da urbanização brasileira, em paralelo aos movimentos que
fundaram um quadro da pós-graduação que lidasse com os desafios urbanos, que “as
primeiras construções verdadeiramente teóricas e críticas sobre a problemática urbana
brasileira começaram” (Costa, 2015). Para tanto, a fundação do Cebrap é um ponto de
inflexão crucial dessa história, uma vez que é de lá e do rico grupo de pesquisadores lá
reunidos que contribuições indispensáveis para a reflexão crítica sobre o Brasil urbano
surgem.
Fundado em 1969 como um ato estratégico de resistência diante da recente reforma
universitária que antecede a organização dos programas de pós-graduação e o
endurecimento explícito da linha política do regime militar com o decreto do AI-5, o
Cebrap:

“congregava intelectuais de esquerda que permaneceram no Brasil durante grande parte


do regime militar e realizavam pesquisas pioneiras em diversos campos das ciências
humanas, foi também o lugar de onde foi enunciada a primeira tentativa marxista de
explicação do fenômeno da urbanização acelerada da maior cidade da América do Sul,
São Paulo” (Arantes, 2009 p.10)

Em paralelo à inauguração dos primeiros programas de pós-graduação aqui destacados


são publicadas três interpretações críticas de pesquisadores fundadores do Cebrap que
versam sobre alguns aspectos da problemática urbana brasileira. A partir de pesquisas
sobre a cidade, refletem e questionam as condições particulares da urbanização como
essa se deu no território brasileiro, elaborando análises sobre temas como crescimento,
pobreza, cultura de massas e movimentos populares urbanos. Essa tríade de obras e
nomes cruciais para os nossos estudos urbanos são, portanto: Francisco de Oliveira e a
Crítica à razão dualista, originalmente publicado em 1972; Paul Singer e o livro

17
Ver MONTE-MÓR (1994).

• 12
Economia Política da Urbanização, de 1973, e, de 1975, o livro São Paulo 1975:
crescimento e pobreza, uma síntese de diversos estudos que foram coordenados por
Lúcio Kowarick e Vinícius Caldeira Brant em ocasião da encomenda feita pela Comissão
de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo liderada pelo arcebispo Dom Paulo
Evaristo Arns.
Importante ressaltar que estes pensadores, seus estudos, os temas e formas de
abordagem e investigação, bem como o próprio Cebrap enquanto instituição fizeram
escola no campo das ciências sociais e dos estudos urbanos brasileiros. Essa herança
crítica reconhecida amplamente e que deu o tom para as gerações seguintes de
pesquisadores que vieram a compor o quadro do Centro, curiosamente, não fazia parte
diretamente da estrutura de departamentos, programas e pesquisas que se iniciava
simultaneamente dentro da universidade.

Consolidação do campo

Podemos assumir, então, considerando o quadro estabelecido na década de 70, que as


bases estruturadoras do campo acadêmico dos estudos urbanos brasileiros estavam
lançadas:

-Fundação de instituições e seus agentes: notadamente a universidade com seus


departamentos, programas e pesquisas, professores e estudantes e profissionais
em formação — mas também outros centros de pesquisa independentes, além
de setores técnicos nos órgãos de planejamento investidos em elaborar planos e
políticas urbanas;
-Temas de pesquisa relevantes para o contexto brasileiro começaram a se
pronunciar, mais nitidamente: habitação, acesso à moradia e a pauta da reforma
urbana; a região como problema macroeconômico e os desafios do
subdesenvolvimento (ou desafios para o desenvolvimento); demais aspectos da
crise urbana brasileira como a pobreza urbana e sua relação com as dinâmicas
de crescimento urbano;
-Corpus acadêmico aumentava e começava a circular: artigos, ensaios, estudos
e livros compondo um marco de referências teóricas — com destaque para as
obras produzidas pelo Cebrap, mas também outros trabalhos já citados
anteriormente como os estudos iniciais de Milton Santos e obras de Maria
Carolina de Jesus — de forma mais indireta, talvez, as obras produzidas no
contexto do debate latino-americano entre “cepalinos” e teóricos marxistas da
dependência. Além dessas, as bibliografias dos cursos de formação nos
programas de graduação e pós também compõem essa categoria.

Além da relativa expansão das estruturas já destacadas, sobretudo do volume de textos


e livros, uma vez que não se abriu nenhum novo curso de mestrado e doutorado na
subárea de planejamento urbano e regional durante a década de 1980 (CAPES, 2013),

• 13
os desdobramentos ocorridos neste período contribuíram para confirmar e consolidar a
criação desse campo de estudos. Disso, temos que a fundação de revistas e periódicos
acadêmicos é um dos acontecimentos que confirmam e documentam esse período de
consolidação do campo e destacaremos aqui o lançamento da revista Espaço & Debates
cujo primeiro volume veio a público em janeiro de 1981. Organizada pelo Núcleo de
Estudos Regionais e Urbanos (NERU), a publicação tornou-se, sem dúvida, um dos
principais veículos de difusão de ideias, debates e estudos sobre as questões urbanas.
Enquanto esteve em circulação (até 2005), manteve-se um importante espaço de
reflexão do campo e sobre o próprio campo, principalmente na vertente do
planejamento urbano quando do período da redemocratização e (re)construção de uma
agenda para política urbana brasileira. (Novais et al., 2009).
Reafirmando um novo estatuto do campo dos estudos urbanos em uma fase mais
consolidada, podemos citar a criação e institucionalização da ANPUR em 1983:

“No início da década de 1980, estava-se promovendo a aglutinação das instituições de


ensino, pesquisa e prestação de serviços à comunidade, tentando resolver conjuntamente
toda uma gama de dificuldades, particularmente as de caráter financeiro. Faziam-se
também necessárias, em âmbito nacional, a ampliação do diálogo e a divulgação das
experiências realizadas” (Grinover, 2015 p.24)

A ampliação do diálogo e divulgação das produções do campo, além dos periódicos,


também se efetiva em outros formatos institucionais, como é o caso da fundação da
ANPUR, mas também pelos eventos acadêmicos que passam a adquirir uma dinâmica
própria que se desdobra, posteriormente, em diversos formatos — encontros,
seminários, simpósios e fóruns. Ainda que outros momentos de reunião sejam
marcantes para a história do urbanismo e do planejamento, como o Seminário de
Quitandinha, no contexto de uma história do campo acadêmico dos estudos urbanos o I
ENANPUR, que ocorreu em 1986, ocupa esse lugar simbólico.

“Diante da extensa produção científica então existente, muitas delas pulverizadas e


desconhecidas dos programas, a primeira iniciativa da Anpur foi encomendar pesquisas
para identificar o perfil quantitativo e qualitativo dos estudos, consoante as três subáreas
– planejamento urbano, regional e habitacional –, a partir das quais foi organizado o seu
primeiro encontro nacional, realizado em 1986.” (Fernandes et al., 2015 p.15)

Assim, considerando o marco institucional da fundação dos primeiros programas de pós-


graduação e o marco teórico das publicações vinculadas ao Cebrap como início da
formação de um campo de estudos urbanos propriamente dito, veremos que a primeira
década, entre 1972 e 1982, é crucial para a consolidação de estruturas desse campo.
Neste período observamos a concatenação de: cursos e programas de pós-graduação;
marcos teóricos que com sucesso deflagraram tradições de pesquisas; centros e núcleos
de estudo e uma associação a nível nacional; eventos acadêmicos; revistas e periódicos
dedicadas à constelação de temas que, por um lado são os temas de interesse dos
pesquisadores e estudiosos afeitos a esse campo de estudos, mas também são temas
exigidos pela realidade urbana brasileira e pelos desafios práticos, teóricos e
profissionais que ela impõe aos agentes, ao espaço, territórios e ao cotidiano vivido.

• 14
Uma trajetória de 50 anos

Sendo estas as considerações sobre a formação inicial do campo dos estudos urbanos
no âmbito acadêmico no Brasil, também hoje comemoramos 50 anos desse ciclo
formação (1972–2022) e o xix ENANPUR, realizado em junho deste ano, reconhecendo
esse marco temporal e confirmando a vitalidade do campo, abriu suas atividades com a
mesa-redonda “50 anos de pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional no
Brasil” 18.
Neste intervalo de tempo as estruturas que compõem esse campo, listadas nas chaves
interpretativas elencadas neste breve sobrevoo pela história apresentado aqui, foram
ampliadas de modo significativo. Comprovando essa ampliação, contamos com
pesquisas que se dedicam a levantar a produção acadêmica nacional recente e extrair
disso análises que possam nos indicar, dentre outras informações, os temas que
compõem o universo da pesquisa urbana no Brasil — esse é o caso do UrbanData 19,
banco de dados sobre o brasil urbano, derivado de um projeto idealizado pela socióloga
Lícia do Prado Valladares há pelo menos 30 anos e que continua atualizando sua
biblioteca, cumprindo um importante papel como ferramenta auxiliar de pesquisa, bem
como divulgador científico.
O esforço bibliométrico de rastreamento, levantamento e categorização da produção de
50 anos das pesquisas urbanas brasileiras é uma das maneiras de lidar com o grande
volume de documentos e textos que formam essa vasta constelação da pesquisa urbana
brasileira. Aqui, o exercício de montagem de uma história pretendia visualizar entradas
possíveis para se aproximar desse campo de estudos para, com isso, em
desenvolvimento posterior, poder interpretar de maneira crítica os rumos que os
debates tomaram. Disso, a potência crítica parece residir em dotar de sentido o
caminho de como chegamos aos temas emergentes e urgentes que configuram o
debate atual, mas, também, reside em atentar aos temas que poderiam ter sido
centrais, mas não o foram em outros momentos anteriores e, portanto, são capazes de
subsidiar um outro modo de narrar 20 essa história.
Para tanto, o fazer dessa narrativa histórica também pode se dar de muitos modos 21,
podemos partir de muitas entradas: a biografias dos agentes; partir das instituições em
que aqueles documentos foram produzidos, dos temas de pesquisa e outras tantas
maneiras de lidar com os fragmentos dessa história da pesquisa urbana. Cabe, no
momento, estar ciente do caráter lacunar dessa breve retomada histórica apresentada
aqui. Com este texto não se pretende construir encerrar o debate historiográfico
apresentando “a” história de formação do campo, mas apenas recolhe fragmentos de
“uma” história possível e, assim, contém aberturas e possibilidades para muitos outros

18
Disponível no canal do YouTube “XIX ENANPUR”: < https://youtu.be/A2iPt-O_IAs>.
19
Acesso disponível no endereço: <urbandatabrasil.fflch.usp.br>.
20
Ver Nebulosas do pensamento urbanístico : tomo III – modos de narrar / Paola Berenstein; Jacques,
Margareth da Silva Pereira; Josianne Francia Cerasoli (organizadoras). – Salvador : EDUFBA, 2020.
21
Ver Nebulosas do pensamento urbanístico : tomo II – modos de fazer / Paola Berenstein; Jacques,
Margareth da Silva Pereira (organizadoras). – Salvador : EDUFBA, 2019.

• 15
modos de pensar 22 — um primeiro teste para o exercício contínuo, ainda que não
constante, de montar, remontar e desmontar (por que não?) a(s) história(s)
brasileira(s) dos estudos urbanos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho parte de um exercício de investigação em que são testadas possibilidades


de montagens históricas a respeito da formação do campo dos estudos urbanos. Assim,
ao reunir eventos, nomes, obras e outros mais fragmentos a fim de se aproximar da
gênese desse campo de estudos, algumas direções para a continuidade dessa pesquisa
se esboçam. Dentre as possibilidades latentes, fica sugerida uma investigação que
cubra o período que se estende entre a formação do campo acadêmico brasileiro e o
momento atual. Assim como Cibele Rizek aponta ao comentar sobre Seminário de
História da Cidade e do Urbanismo (SHCU) 23, reconhecendo que o evento “sempre teve
um caráter de cartografar, uma espécie de radar: para onde é que está indo a pesquisa,
que tipo de reflexão está aparecendo?” — essa é uma possível pergunta orientadora
para continuidade da pesquisa iniciada de forma primária e experimental aqui, uma vez
que até então lidamos com um cartografar retrospectivo: “de onde veio a pesquisa que
está indo? Quais reflexões precederam e informaram as reflexões que estão
aparecendo?”.
No mesmo depoimento, Rizek nos faz um convite: “fazer um esforço de trazer essa
dimensão da reflexão tão rica, que a História e a historiografia nos dão, para o
presente, para fazer uma história do presente” — o que parece ser um movimento
crucial para entender o que está acontecendo, afinal, as urgências e emergências
urbanas se somam diante e em torno de nós abundantemente e, se assim o é de fato,
soma-se a esse convite uma observação incomodamente atual e necessária:

“Articular o passado historicamente não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’.
Significa apoderar-se de uma recordação, tal como ela relampeja num instante de perigo.
(...) O perigo ameaça tanto a sobrevivência da tradição quanto os seus destinatários. (...)
Apenas tem o dom de atiçar no passado aquelas centelhas de esperança o historiógrafo
atravessado por esta certeza: nem os mortos estarão em segurança se o inimigo vencer.
E esse inimigo não tem cessado de vencer.” (Benjamin, 2020 p.25).

Olhar para a tradição de pesquisa urbana brasileira tem um caráter formativo, enquanto
apropriação de uma história próxima, história da qual nomes fundamentais são hoje
sentidos como perdas: Ana Clara Torres Ribeiro (–2011); Jorge Wilheim (–2014);
Rodrigo Simões (–2016); Paul Singer (–2018); Francisco de Oliveira (–2019); Lúcio

22
Ver Nebulosas do pensamento urbanístico: tomo I – modos de pensar / Paola Berenstein; Jacques,
Margareth da Silva Pereira (organizadoras). – Salvador: EDUFBA, 2018.
23
Trechos da entrevista realizada em 09 de dezembro de 2019, com Cibele Rizek (IAU/USP – São
Carlos), professora da Escola de Engenharia de São Carlos da USP em 1990 e participante do I SHCU.
Disponível em: <http://xvishcu.arq.ufba.br/atualizacao-critica/>.

• 16
Kowarick (–2020); Wilson Cano (–2020); Flávio Villaça (–2021); Lícia do Prado
Valladares (–2021) — em apenas em uma retomada breve da última década, o que
demonstra o estado crítico que marca a atualidade dos estudos urbanos brasileiros e
convida urgentemente nós, estudantes e estudiosos, a nos apropriarmos dessa tradição
neste momento atual de perigo, mas também reivindicar uma outra montagem dessa
herança histórica que incorpore ao momento de origem como ao momento presente
outros lugares, ideias e nomes que têm ficado a margem (quando não fora) das
narrativas historiográficas canônicas e tradicionais.

• 17
REFERÊNCIAS

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• 19
FUTURO E FUTURABILIDADE
Da modernidade à abertura dos possíveis
FUTURE AND FUTURABILITY/FUTURO Y FUTURABILIDAD
Historiografia, ideários e regimes de historicidade

MIRANDA, Clara Luiza


Doutorado em Comunicação e Semiótica; Profa. Associada no PPGAU-UFES
claravix50@gmail.com
MARGOTTO, Mário Victor Marques
Mestrado em Arquitetura e Urbanismo; Doutorando no PPGAU-UFES
mvmmargotto@gmail.com
RESUMO

O artigo relaciona dimensões temporais, historicidades, crítica de arquitetura


e setores relacionados. Buscamos compreender as modulações de
temporalidades coexistentes, que designam posições distintas nas disputas no
campo historiográfico, tanto na modernidade como na contemporaneidade.
Duas inflexões no regime de historicidade vigente motivaram essa reflexão. A
primeira denominamos historicista, com franco contraste ao ímpeto futurista
anterior. A segunda inflexão está em disputa no campo, seria: presentismo?
atualismo? ou futurabilidade? Mostramos uma coexistência de historicidades
na modernidade, predominando um presente-futuro ou uma iminência do
futuro, que persiste no período contemporâneo de modo pluriversal,
intercultural e pró comum. Observamos uma possível transição do regime de
historicidade da Modernidade, derivada de sua evidente crise, aliada à
irracionalidade do capitalismo. Tais processos propiciam a abertura dos
possíveis da futurabilidade, pois é justamente a indissociabilidade entre
Modernidade/Capitalismo e Colonialidade que se expressa por meios
desfuturizantes, sendo um obstáculo ao reconhecimento de cronologias
plurais.

PALAVRAS-CHAVE Futuro; Futurabilidade; Historicidades; Desfuturização;


Decolonialidade.

ABSTRACT

This paper relates temporal dimensions, historicities, architectural criticism,


among other related subjects. Seeks to comprehend the modulations of
coexisting temporalities, which designate different standpoints within the
historiographical field — both in modernity and contemporaneity. It is
motivated by two inflections in the current historicity regime. The first one is
the historicist, in contrast to the previous futurist impetus. The second one is
at debate, would it be: presentism? updatism? or futurability? The study shows
a coexistence of historicities in modernity, predominating a present-future or
an imminence of the future, which persists nowadays in a pluriversal,
intercultural and pro-commons way. Thus, it points out a possible transition
from the historicity regime of Modernity, derived from its evident crisis linked
with the irrationality of capitalism. These processes provide the condition for
opening up the possibilities of futurability, since it is precisely the inseparability
between Modernity/Capitalism and Coloniality that is expressed by defuturing
means, being an obstacle for recognizing plural chronologies.

KEY-WORDS Future; Futurability; Historicities; Defuturing; Decoloniality.


INTRODUÇÃO
“O desafio é habitar vários mundos e formas diversas de inteligibilidade ao mesmo
tempo, num gesto [...] de vai e vem que autoriza um pensamento da travessia e da
circulação. [...] Reconhecer que existem cronologias plurais do mundo que habitamos e
que a tarefa do pensamento é atravessar todos esses feixes [...]” — Achille Mbembe

Esta reflexão, que relaciona dimensões temporais, historicidades, crítica de arquitetura e


da cultura, foi motivada por duas inflexões recentes, no regime de historicidade, que
provocaram transformações na estrutura de percepção do mundo, na sua leitura, mesmo
na relação com ele. Tais eventos delinearam trajetórias 1 com durações próprias e
consequências de alcance distinto. A primeira inflexão chamaremos de historicista, a qual
interrompe o ímpeto em direção ao futuro, já no fim do luto com o declínio das vanguardas
e podemos dizer que se encontra em processo de expiração. A segunda inflexão está
vigente e em disputa: presentismo? atualismo? futurabilidade?
A inflexão historicista se plasma com a emergência de uma nostalgia da história, que nos
anos 1980, desabrocham numa grande onda da memória. Sendo o patrimônio, “seu alter
ego, mais visível e tangível”, a ser “protegido, repertoriado, valorizado, mas também
repensado” (HARTOG, 2013, p. 24).
Nesse contexto historicista, o desconstrutivismo posiciona-se de modo distinto em relação
ao passado, pois “a desconstrução não se ocupa do novo, mas do familiar, do velho”.
Trata-se de localizar “as divisões, rupturas e quebras dentro do sistema, os elementos
instáveis que organizam a estrutura a partir de dentro”, como recurso discursivo ou
projetual (WIGLEY, 1996, p. 196). De certo modo, o desconstrutivismo, como um reverso
do historicismo do século XX, acerca-se da noção de “estranhamente familiar” (VIDLER,
2006), próximo ao conceito de unheimlich de Freud.
Pode-se dizer que tanto o historicismo quanto o desconstrutivismo geraram filiações e
posicionamentos nos debates sobre sua relação com o passado imediato (o Modernismo,
a Arquitetura Moderna, a Modernidade). O período operativo destas tendências converge
com mudanças significativas na forma de acumulação do capitalismo global, com a
crescente hegemonia do capital financeiro, o declínio do Estado do Bem-estar Social, a
revanche a maio de 1968, aos avanços das tecnologias da comunicação e da informação.
Tais eventos e fatos geraram expressões culturais em torno do questionamento sobre o
futuro, “algo que era óbvio nos séculos XIX e [meados do século] XX, ou seja, que futuro
e progresso são equivalentes” (BERARDI, 2019, p. 18), seguido por um diagnóstico de
um futuro catastrófico.
Massey (2008, p. 100) repara que a espacialização da globalização acarreta
deslocamentos da compreensão da modernidade, para ela há uma “ruptura decisiva” na

1
“Trajetória e estória significam, simplesmente, enfatizar o processo de mudança em um fenômeno. Os
termos são, assim, temporais em sua ênfase, apesar de que, eu defenderia, sua necessária espacialidade
[...]” (MASSEY, 2008, p. 33).

• 1
narrativa da Modernidade, que conduz ao reenquadramento do termo, realizada por
autores do Pós-Colonial, incluímos os autores da Decolonialidade. Os autores dessa
corrente demonstram a indissociabilidade entre Modernidade e Colonialidade, sendo a
Decolonialidade uma “resposta necessária tanto às falácias e ficções das promessas de
progresso e desenvolvimento que a modernidade contempla, como à violência da
Colonialidade” (MIGNOLO, 2008). Essa ruptura decisiva é uma das condições de
possibilidade da abertura dos possíveis, da “futurabilidade” (BERARDI, 2019). No quadro
de referência da Decolonialidade, Dussel (2005) designa um projeto de coexistência e co-
realização de trajetórias múltiplas e de afirmação da interculturalidade.
Não faz parte do escopo deste artigo verificar que as crises contemporâneas consistem
num novo regime de historicidade, porém buscamos compreender a engrenagem entre
passado, presente e futuro na análise desses discursos e conceitos, que são termos da
definição de um regime de historicidade. Abordaremos as temporalidades como
coexistentes, apontando que o modo como são moduladas constituem um diferencial no
posicionamento nas disputas no campo historiográfico, com repercussão na crítica. No
entanto, assinalamos que pode haver o comando de alguma dimensão temporal,
conforme o discurso, corrente ou período histórico.
Por exemplo, no movimento moderno há momentos em que o futuro comanda — no
Futurismo e na difusão dos lemas do projeto moderno: emancipação, inovação, progresso
e desenvolvimento. De fato, a compreensão da Modernidade foi realizada no registro da
temporalidade, conforme Habermas (2000), observamos que a modernidade é conotada
como “uma época”, frequentemente um Zeitgeist. Nesta concepção, verificamos uma
evidência do presente atravessando o continuum da história, como transição para o futuro
— um presente-futuro. Este advém como uma “aurora”, uma revelação de um período de
realização, de liberdade, de progresso da consciência e de promessas. Habermas (2000,
p. 10) constata que Hegel compreende a

[...] simultaneidade cronológica de desenvolvimentos historicamente não simultâneos.


Constitui-se então a representação da história como um processo homogêneo, [...]. O
espírito do tempo (Zeitgeist), [...], caracteriza o presente como uma transição que se
consome na consciência da aceleração e na expectativa da heterogeneidade do futuro.

Por fim, as modulações de temporalidades hegelianas convergem com observação sobre


a “co-presença de historicidades heterogêneas” na Modernidade. Rancière assinala que é
no regime anterior que o antigo se opõe à Modernidade (RANCIÈRE, 2005, p. 35). Na
discussão da modulação temporal do Movimento Moderno, abordaremos Sigfried Giedion,
Reyner Banham e Manfredo Tafuri. Ainda, apostamos na perspectiva de que essa
coexistência de historicidades heterogêneas persiste, contudo, de modo pleno, no período
contemporâneo desde uma perspectiva pluriversal, intercultural e pró comum, ainda
virtual.
Neste artigo, interessa-nos pensar as concepções de futuro no âmbito de expectativas
catastróficas e escatológicas evidenciadas no contexto de uma crise sanitária e climática,
de um controle psicopolítico do futuro (HAN, 2014) e do “presente hegemônico” (AUGÉ,

• 2
2012). Registramos, ainda, enunciados como o “presentismo” (HARTOG, 2013) e o
“atualismo” (PEREIRA e ARAÚJO, 2016; 2019). Notadamente, abordaremos alternativas
como a “futurabilidade”, ou seja: “a intrínseca pluralidade de futuros possíveis inscritos
no presente” Berardi (2019). Consideramos tal pluralidade mediante contra-enunciados
— outros modos de conhecer e de fazer mundo — ao hegemônico programa único da
“humanidade”.

REGIME DE HISTORICIDADE, ENGRENAGENS PASSADO-PRESENTE-FUTURO


DA MODERNIDADE
Um regime de historicidade é uma maneira de “engrenar passado, presente e futuro”,
conforme Hartog (2013). O autor se inspira no historiador alemão Reinhart Koselleck que
aborda as experiências temporais da história, buscando “como, em cada presente, as
dimensões temporais do passado e do futuro haviam sido correlacionadas” (KOSELLECK
apud HARTOG, 2013, p. 28). Nesse quadro, Hartog (2013, p. 13) interessa-se em
investigar as tensões existentes entre campo de experiência e horizonte de expectativa,
atento aos modos de articulação do presente, do passado e do futuro.
O termo “historicidade” expressa a forma da condição histórica e a relação com o tempo
de diferentes sociedades, coletividades e até mesmo indivíduos, enfatizando
particularmente os momentos de crise do tempo e suas expressões, visando produzir
mais inteligibilidade (HARTOG, 2013, p. 13). Ainda, a operacionalidade do termo “regime”
consiste no seu entendimento como “mescla, composto e equilíbrio sempre provisório ou
instável” (HARTOG, 2013, p. 11). Confere ao regime de historicidade o potencial de captar
a diversidade de historicidades configuradas desde um “conjunto de experiências
estratificadas e difusas” (ARGAN, 1992b), podendo também ser empregado em diversas
escalas.
No entanto, Rancière (2005, p. 27) adverte que “uma coisa é a historicidade própria a
um regime das artes em geral. Outra são as decisões de ruptura ou antecipação que se
operam no interior desse regime”. Conforme Rancière, o regime poético das Belas Artes
ou representativo, que hierarquiza maneiras de fazer e apreciar artes, é contraposto pelo
regime estético que opera a simultaneidade entre a autonomia da arte e a indistinção da
arte das outras práticas sociais — trata-se de uma nova maneira de lidar com a arte, de
fazer arte e de sua relação com a experiência da vida coletiva e cotidiana, uma nova
maneira de lidar com o “antigo” (RANCIÈRE, 2005, p. 34).
Latour (1994) está certo quando diz “a modernidade possui tantos sentidos quantos forem
os pensadores”. Para ele,

Quando as palavras “moderno”, “modernização” e “modernidade” aparecem, definimos, por


contraste, um passado arcaico e estável. Além disso, a palavra encontra-se sempre
colocada em meio a uma polêmica, em uma briga onde há ganhadores e perdedores, os
Antigos e os Modernos (LATOUR, 1994, p. 15).

• 3
No entanto, o moderno não estabelece uma relação “antropoêmica” com o antigo, mas
“antropofágica” (LÉVI-STRAUSS apud BAUMAN, 2001), ou seja, não efetua uma
estratégia de aniquilação do antigo, porém sua suspensão ou assimilação. Conforme
Rancière, o regime estético (a modernidade) é justamente “um novo regime de relação
com o antigo”, as revoluções e rupturas são encetadas simultaneamente ao advento dos
museus, a ideia de patrimônio e a criação da história da arte. Ainda para Rancière
(RANCIÈRE, 2005, p. 37): “A modernidade [também] gostaria que houvesse um sentido
único, quando a temporalidade própria ao regime estético das artes é a da co-presença
de historicidades heterogêneas”.
É fato que há uma modulação de coexistência de historicidades na modernidade, embora
se destaque o futuro, melhor dizendo, a iminência do futuro no âmbito das vanguardas
artísticas. Conforme Habermas (2000), as vanguardas sancionam a consciência histórica
moderna, sua relação com o passado que se orienta para empresas futuras e para um
progresso indefinido. As vanguardas artísticas se colocaram como um dispositivo de
antecipação estética das transformações da sociedade industrial, “revolucionando
radicalmente as modalidades e finalidades da arte”, ao atuar diretamente na realidade
histórica, mediante aspectos programáticos, que conduzem uma “política própria”
(ARGAN, 1992a).
Rancière (2005, p. 43) enfatiza especificamente o sentido das vanguardas de “invenção
de formas sensíveis e dos limites materiais de uma vida por vir”. Outro fator destacado
por Rancière é a atribuição de visibilidade a “qualquer um”, a emergência de um novo
tipo de sensorium comum, um senso comum paradoxal. Este “é político na medida em
que ele é sede de uma indiferença radical”, também consiste na denúncia de uma
estrutura de distribuição de ocupações (esfaceladas, como a do trabalhador sem os meios
de produção) e de posições de classe.
São inúmeros os motivos do declínio do regime estético, da insustentabilidade do modelo
teleológico da modernidade. Nesse contexto, Rancière (2005) enuncia o regime pós-
moderno que converge cronologicamente com a inflexão historicista referida no início do
artigo. Contudo reiteramos que o interesse do artigo se coloca na “engrenagem” entre
passado, presente e futuro, enfatizando, sobretudo a modulação do futuro, no discurso
dos historiadores e críticos da arquitetura: Banham, Giedion e Tafuri pelos modernos; e
os contemporâneos: Berardi (futurabilidade), Escobar (pluriversalidade) e Fry
(desfuturação). Assinalamos também que o campo da arquitetura, nomeadamente, o
segmento da crítica de arquitetura, inclusive a crítica operativa, manifesta regimes de
historicidade singulares, senão, procede suas próprias modulações ou hibridações de
historicidades, nem sempre sincrônicas com a história geral.
Mais do que isso, conforme Pallasmaa (2017, n.p.), a arquitetura e outros artefatos
funcionam como mediações entre o espaço e o curso do tempo, conferindo medidas
humanas às escalas temporais que excedem nossas capacidades de percepção e de
compreensão como tempo cósmico e geológico, por exemplo. Quer dizer: “vivemos no
espaço, também habitamos o tempo”. Para Pallasmaa, a ideia é de que a aceleração afeta
as noções e experiências com o tempo, substituindo-as pelas de espaço. A sentença nos

• 4
parece um fator adicional na dificuldade de pensar o tempo. Hartog (2013, p. 26) elenca
outras dificuldades: não pensamos o tempo ou não “pensamos nele”; a naturalização e a
instrumentalização do tempo pelo hábito. Entre as dimensões temporais, a do futuro
apresenta-se como a mais inacessível à mente humana, por outro lado, constituímos o
futuro como uma modalidade de percepção e de imaginação, de espera e de avanço,
como diz Berardi (2019). Como veremos, tal modalidade se forma e se transforma no
curso da história, mesmo no curto período aqui considerado.
O primeiro Manifesto Futurista publicado em 1909 por Filippo Tommaso Marinetti,
conforme Berardi (2019), pode ser considerado a primeira manifestação “consciente” do
“século que acreditou no futuro”. Em seus manifestos, “os futuristas bradam com
arrogância o advento do reino da máquina, da velocidade e da guerra”.
Contudo, os futuristas são uma exceção de uma regra geral, conforme Banham (apud
WHITELEY, 1990). Pois, para ele, os arquitetos pioneiros do Movimento Moderno são tão
classicizantes como os seus predecessores da Academia e o estágio tecnológico deles era
“superficial, simbólico e estilístico”. Para Banham (apud WHITELEY, 1990, p. 208, trad.
nossa), os futuristas tanto consideraram a condição fundamental da tecnologia como
perceberam que “a única constante era a mudança”, ao contrário dos demais
modernistas. Por isso, os historiadores modernistas, como Giedion, excluíram e
esconderam o Futurismo do público. Na interpretação de Whiteley (1990), Banham
compreende os Futuristas como um autre do Modernismo. Enquanto “os modernistas
sachlichkeit [objetividade] ajustam a tecnologia à estética clássica, os futuristas buscam
uma nova estética baseada na condição tecnológica” (BANHAM apud WHITELEY, 1990, p.
208-209, trad. nossa).
Após a passagem do Futurismo, ocorre a Primeira Guerra Mundial, como relatou Walter
Benjamin em Experiência e Pobreza (1933): a geração que viveu entre 1914 e 1918
passou por uma das mais terríveis experiências da história europeia e o testemunho deste
terror empobrece as pessoas de “experiência comunicável”. Conforme Benjamin, isso
decorre da guerra de trincheiras, da experiência econômica pela inflação, da experiência
do corpo pela fome, da experiência moral pelos governantes e do abandono (falta de
condições básicas de vida).
No entanto, o Primeiro Pós-guerra foi prolífico em experiências vanguardistas: artísticas,
arquitetônicas, urbanísticas e no design — destacamos o Construtivismo Russo e a
Bauhaus e as experiências de moradia social na Alemanha, Holanda, Áustria. Estas são
debatidas e divulgadas nos segundo e terceiro CIAMs, focados em melhorias das
condições de vida da população.
Registra-se, no imediato Segundo Pós-guerra, um “estado de instabilidade definitiva”
(FEBVRE, 1946, apud HARTOG, 2013, p. 21) que repercute na crítica de arte e de
arquitetura moderna via de regra. Nos anos de 1960, Giedion (2014) reitera um estado
de “confusão e fastio” no campo da arquitetura, “uma espécie de pausa, de esgotamento”
e de incerteza.
O livro de Giedion, “Espaço, Tempo e Arquitetura, o desenvolvimento de uma nova
tradição” (1941), é uma narrativa legitimadora do movimento moderno, apresentada

• 5
como uma tendência inelutável, conforme Nobre (2014). Tal discurso dispõe-se com a
finalidade de estabelecer uma determinada moralidade, como a seguir: “A arquitetura
contemporânea, digna de ser chamada como tal, entende ser sua tarefa principal a
interpretação de um modo de vida válido para a nossa época” (GIEDION, 2014, p. 5). Ele
reitera que os esforços devem ser dirigidos com prioridade “para a questão do
desenvolvimento de uma nova tradição”, ele visualiza “vários indícios que isso já está em
curso” (GIEDION, 2014, p. 4). O intuito de forjar “uma nova tradição” incide na
designação de um sentido único (linear, estável), uma trajetória unívoca.
O quadro de referência conceitual de Giedion (apud MOLELLA, 2002, p. 379, trad. nossa)
é fundado na resiliente tradição hegeliana na Europa de língua alemã, da qual Giedion
herda o conceito do Zeitgeist como um princípio cultural unificador, desenvolvendo a
história como uma “sucessão de Zeitgeists, cada um centrado em uma grande ideia
constituinte”.
Tafuri, em 1972, assevera a recorrência do quadro de instabilidade no campo e declara
que “tal como a arquitetura, a crítica é solicitada a revolucionar-se continuamente” para
adequar os seus parâmetros à conjuntura (TAFURI, 1979, p. 25). Tafuri ressalta que as
tarefas da crítica mudam, porém os problemas mantêm-se “incipientes e confusamente
considerados”. Um dos motivos consiste na evidência da “multiformidade” do movimento
moderno que “desanima perante essa descoberta” (TAFURI, 1979, p. 25).
O trabalho de Tafuri rejeita a noção de ordem temporal, causal e linear, provendo
evoluções do tipo causa-efeito na realidade. Para ele, este é um recurso historiográfico
construído em chave cronológica, mediante uma narrativa teleológica de base hegeliana
e historicista da qual visa demarcar distância. Aliás, a história e a realidade são entes
separados para Tafuri (CASERO, 2012, trad. nossa).
Casero (2012, p. 179, trad. nossa) diz que o discurso de Tafuri se propõe a “construir o
conceito marxista de tempo histórico a partir da concepção marxista de totalidade social”.
Conforme Casero, O Capital é a base teórica de Tafuri ao tratar do tempo da produção
econômica de modo não linear. Em suma: “um tempo de tempos, um tempo complexo
que não pode ser lido na continuidade do tempo da vida ou das reflexões, mas deve ser
construído a partir das estruturas de produção”. A temporalidade não cronológica operada
por Tafuri não é simplesmente uma ”superposição de diferentes ritmos e velocidades”,
“uma vez que história e realidade são separadas” e que ele nega “as relações teleológicas
ou lineares”. Enfim, Tafuri elabora inter-relações temporais que quebram a causalidade
passado-presente-futuro. (TAFURI apud CASERO, 2012, p. 181, trad. nossa).
Devido ao confronto com a historiografia cronológica, Casero (2012, p. 185, trad. nossa)
identifica uma “historiografia aiônica” em Tafuri que, portanto, se propõe como “a
identificação dos momentos de abertura máxima, de indeterminação máxima do
acontecimento”. Além disso, essa característica estabelece uma “indeterminação causal
e não-lógica” da história para que não se converta numa “mera reificação do que existe
ou guardiã dos espólios dos vencedores”, camuflando as contradições socioeconômicas
dos períodos.

• 6
Tafuri (apud CASERO, 2012, p. 181, trad. nossa) pondera que não é tarefa da história

[...] reconstruir o que está quebrado, mas também não lhe é lícito identificar-se com os
vencedores, defeito ainda ativo, complementar à apologia do presente. Em vez disso, seria
possível emprestar sua voz a uma dialética que não tomasse como certo o sucesso das
batalhas descritas, com o resultado de manter os veredictos em suspense. Nada é, desta
forma, dado como certo. O tempo da história é híbrido por constituição.2

DES-FUTURIZAÇÃO E FUTURABILIDADE
No decorrer do século XX, as vanguardas artísticas sucumbem com o avanço da
industrialização e da urbanização. Argan (1993) conjectura que a tecnologia, nesse
período, compete com a imaginação — esta, convertida em atividade receptora —,
prescindindo de projetos e de utopias. Não obstante, a humanidade começa a duvidar
que futuro e progresso sejam equivalentes após confrontar-se, em especial a partir da
década de 1970, com as crises econômicas e ambientais, com a finitude dos recursos e
com a falibilidade da tecnologia. Berardi (2019) estabelece como ponto de inflexão o ano
de 1977 expresso no slogan No Future do movimento punk britânico, ao simbolizar o
esgotamento das grandes narrativas e das utopias modernas, bem como a crise do
fordismo e o surgimento de um modo de produção pós-fordista, de acumulação flexível
(HARVEY, 1992).
Entre o início e o final do Século XX, há uma inversão entre a população rural e urbana,
que é 56,2% em 20203. Identifica-se “o desaparecimento da cidade tradicional”
substituída por uma “não-cidade”, de acordo com Choay (2008, p. 9), para a qual os
“quadros mentais” para compreendê-la são inadequados. Já para Lefebvre (2008), a
leitura dessa fase (1970) comporta um vazio ou um momento sombrio que ele designa
um “campo cego”. “Não se trata apenas de uma ausência de educação, mas de ocultação”
(LEFEBVRE, 2008, p. 38).
Conforme Lefebvre (2008), ocorre a implosão-explosão: uma enorme concentração
(pessoas, atividades, riquezas, coisas, objetos, instrumentos, meios, pensamentos) na
realidade urbana e imensa explosão, projeção de fragmentos múltiplos e disjuntos:
periferias, subúrbios, cidades satélites. A cidade, ou o que dela resta, serve mais do que
nunca à formação de capital, isto é, à realização e à distribuição de mais-valia (LEFEBVRE,
2008, p. 43). Sob uma ordem repressiva, a segregação é o processo anti-urbano mais
recorrente no modelo de urbanização capitalista da segunda metade do século XX
(COLOSSO, 2014, p. 83).

2
Casero utiliza um texto a que não tivemos acesso: M. Tafuri, La dignità dell’attimo. Trascrizione
multimediale di Le forme del tempo. Venezia e la modernità, IUAV, 1994. (Prolusione letta il 22 Febbraio
1993 per l’inaugurazione dell’anno accademico 1992-93 dell’Istituto Universitario di Architettura di
Venezia).

3
Fonte: World Population Prospects (2019), da ONU (Organização das Nações Unidas).

• 7
Nesse cenário, a metrópole moderna ocidental converte-se, dentro do imaginário urbano,
no amálgama de uma distopia em curso e de um apocalipse no futuro próximo, “invadindo
progressivamente o território antes ocupado pelos lugares gratificantes e inovadores
imaginados pela utopia positiva” (LIPPOLIS, 2016, p. 18-22). A crise do movimento
moderno, com o advento do pós-modernismo, representou uma espécie de “libertação da
arquitetura do papel pedagógico que lhe fora imposto pelo funcionalismo do segundo pós-
guerra e a sua adaptação à época do triunfo do capitalismo pós-fordista e pós-moderno”
(LIPPOLIS, 2016, p. 11), como sintetiza David Harvey:

O modernismo perdera qualquer aspecto de crítica social. O seu programa pré-político e


utópico, baseado na transformação de toda a vida social através da transformação do
espaço, falhara, e o estilo moderno acabara por se encontrar estreitamente ligado à
acumulação do capital, num projecto de modernização fordista caracterizado por
racionalidade, funcionalidade e eficiência. Em 1972 [...] a arquitectura modernista estava
sufocada e bloqueada, exactamente como o poder das grandes empresas multinacionais
que representava. A estagnação-inflação na arquitectura avançava paralelamente à do
capitalismo: não foi por acaso que Venturi, Scott-Brown e Izenour publicaram Learning
from Las Vegas precisamente em 1972. Na realidade, os críticos do moderno estavam em
circulação havia anos [...] e de certo modo o movimento revolucionário e cultural dos anos
60 representara uma crítica à racionalidade, à funcionalidade e à eficiência. Mas foi
necessário que a crise de 1973 abalasse a relação entre arte e sociedade, para que o pós-
moderno fosse aceite e institucionalizado (HARVEY apud LIPPOLIS, 2016, p. 13).

Fry (2020), por sua vez, argumenta sobre os “efeitos desfuturizantes” do design
moderno, devido à sua contribuição para as “condições sistêmicas de insustentabilidade
estrutural, que elimina outros futuros possíveis” (apud ESCOBAR, 2016, p. 40), sob a
ideologia seja do plano, seja do desenvolvimento.
“Defuturing” (des-futurização), termo enunciado por Fry, desde uma perspectiva
ontológica do design4, seria, em termos gerais, “o próprio terreno pelo qual o futuro é
negado” (trad. nossa), compreendendo-se, portanto, que a atividade do design “futura”
ou “des-futura”, ou seja, que os objetos e o conjunto de técnicas que conformam a cultura
nos “enquadram” em modos de ser e habitar o mundo, sendo estes fatores que
condicionam um certo tipo de sustain-ability, ou simplesmente, da habilidade mesmo de
sustentar o pleno desenvolvimento humano (e não-humano) e das diversas naturezas-
culturas possíveis. Daí surge a crítica ao design moderno e ao caráter ubíquo dessa
temporalização cultural, segundo o autor, pelo qual criou-se uma

[...] cultura funcional em nível mundial — uma cultura na qual as pessoas ao redor do
mundo podem realizar as mesmas tarefas, da mesma maneira e pelas mesmas razões
econômicas, [...] [e, conclui o autor ao indicar o caráter ubíquo da modernidade capitalista]

4
Para Escobar (2016, p. 47-58), “el diseño es ontológico porque cada objeto, herramienta, servicio o
incluso relato en el que está involucrado crea formas particulares de ser, conocer y hacer” [...], “el diseño
genera las estructuras de la posibilidad humana”. E, segundo Fry (2020, p. 5): "designers design in a
design world, which arrives by design, that designs their actions and objects, or more simply: we design
our world, while our world designs us". Quer dizer, a cultura dos objetos (FLUSSER, 2007) conformada
pelo design direcionam e orientam, em certa medida, nossa forma de habitar e ser no mundo.

• 8
esta “cultura mundial” opera sem qualquer habilidade construída das pessoas para entender
cada outras visões de mundo, para comunicar ou compartilhar valores. O anti-humanismo
do instrumentalismo do funcionalismo tecnológico na verdade agiu para ocultar a diferença
pelo caráter ontológico das coisas que faz (FRY, 2020, p. 29, trad. nossa).

Flusser (2007, p. 194) adverte: quando o design estorva — “um obstáculo para a remoção
de obstáculos?” —, na medida em que torna a cultura mais “objetiva, objetal e
problemática”, ou seja, mais complexa, logo encolhe o espaço da liberdade na cultura.

O futuro possível [da Modernidade] sempre esteve atrelado ao projeto do humanismo, de


um “eu posso”, de uma colocação do homem como centro do mundo. Um futuro não mais
conjugado de múltiplos tempos como havia outrora, mas de um tempo único universal que
se impõe como controle. Não só de um tempo dominador, mas também de um espaço
dominador, disciplinar e de controle que se disseminou por todas as cidades do mundo
(FUÃO e BECKER, 2014, p. 37).

Recorrendo a Escobar (2016, p. 11-17, trad. nossa), podemos assimilar a crise


contemporânea enquanto a crise de um modelo civilizatório: o da modernidade capitalista
ocidental. E, sendo assim, os modos de desenhar ou projetar da cultura apresentam-se
como componentes indissociáveis desta crise. Segundo o autor, poderíamos afirmar, de
um ponto de vista ontológico, “que as políticas públicas e o planejamento do
desenvolvimento, bem como [o] design, são tecnologias políticas fundamentais da
modernidade e elementos-chave na constituição moderna de um mundo único
globalizado”. Não obstante, além de constituir uma cultura dentro dos limites do próprio
sistema ou modo de produção capitalista e de reforçá-lo, já nos alertava Papanek (1995)
há algumas décadas a respeito da crise ambiental e sanitária ocasionada pela atividade
de arquitetos, urbanistas e designers. Em suma, se o futuro já não é mais o que
costumava ser (NOVAES, 2013), convém retomar a perspectiva proposta por Fry (2020,
p. 10) na medida em que o autor nos recorda que o futuro nunca é um espaço em branco
— uma tábula rasa —, um vazio ilimitado a ser preenchido pelos objetos da atividade
humana. Pelo contrário, e, por habitualmente conseguirmos apenas visualizar implicações
a curto prazo, esquecemos que habitamos um mundo já colonizado pelas ações do
passado e por aquelas que estão ocorrendo agora.
Não obstante, derivado dos processos mundializados de aceleração e de disjunção,
vivencia-se hoje, como “único horizonte”, a experiência ubíqua de um presente imposto,
atualizado continuamente (PEREIRA e ARAÚJO, 2019). Ademais, a realidade em formação
configura-se em uma inacessível complexidade, na qual “não sabemos ver a desordem
do mundo atual” (NOVAES, 2013, p. 17), convergindo na imagem apresentada por Wisnik
(2018): a do “nosso aprisionamento num nevoeiro à espera de sua dissipação”.
Esse enclausuramento ideológico — devido aos processos de globalização e
planetarização a partir do final do século XX — desdobra-se em uma espécie de
confinamento temporal da experiência espaço-tempo. O presente, agora tornado
hegemônico (AUGÉ, 2012), prolonga-se continuamente, visando a suprimir quaisquer
possibilidades de alteridade radical. A imaginação é debilitada, nos sugerindo que “não
há alternativas”. Será que não há alternativa? Os trabalhadores estão condenados à
improvisação e à precarização? Estarão como a família pobre do filme Parasita (2019),

• 9
de Bong Joon Ho, imersa em situações-limite, impedida de planejar? Aliás, a
“sobrevivência depende, hoje, do grau de inserção do sujeito na dinâmica acelerada
imposta pela união de tecnociência e capital global” (WISNIK, 2018). Também depende
de antecipação, de “um saque no futuro” (SANTOS apud WISNIK, 2018).
Frente ao tempo – e, consequentemente, à memória, ao agora e ao por vir –, uma vez
imersos em uma cultura permeada por imagens técnicas e por suportes eletrônicos que
as veiculam e as armazenam em um fluxo contínuo e incessante, a nossa própria relação
com aquilo que entendemos por passado, presente e futuro, parece se alterar. A sensação
é de vivermos em uma situação de enclausuramento, fechada e global, saturando a
imaginação sobre o horizonte de possibilidades. Na realidade, se há algum horizonte, este
seria um por vir do capitalismo, segundo Lapoujade (2013, p. 237): “[é] que as mutações
tecnológicas nunca fazem senão reforçar um único e mesmo sistema, o do capitalismo,
sempre mais triunfante. O futuro está inteiramente encerrado no interior dos limites do
capitalismo, que captura todas as suas possibilidades para estender-se, propagar-se”.
Emerge, dessa forma, a imagem de um mundo colonizado pela extensão das redes
tecnológicas de informação e comunicação e pelo mercado liberal globalizadas — marcado
pela instantaneidade da circulação de dados e imagens. Han (2014) observa que a nova
concepção de poder consiste no controle psicopolítico do futuro. A técnica de poder do
regime neoliberal é prospectiva, permissiva e projetiva. Seu aparato técnico-ideológico é
(re)formulado pela transparência do espaço virtual em rede e pela tirania do dataísmo.
Projetam-se objetos (design), condicionam-se e controlam-se as vidas, mas não se
resolvem questões básicas do bem viver.
O futuro, encerrado nos limites circunscritos pelo aparato técnico e pela ideologia
neoliberal, é operado “em função do que a axiomática [capitalística] permite, prevê,
favorece, torna possível para uma dada classe de indivíduos”, reforçando um processo de
“seleção que a axiomática opera no seio de uma massa qualquer para distribuir
eletivamente, hierarquicamente, suas potências e direitos” (LAPOUJADE, 2017, p. 269).
Diante de um passado em disputa, do presentismo (HARTOG, 2013), ou atualismo
(PEREIRA e ARAÚJO, 2019), e da hipótese de suspensão ou cancelamento do futuro
(BERARDI, 2019), as expectativas que se apresentam são catastróficas, escatológicas.
“[O] futuro já não é mais percebido (tal qual no século passado) como fonte de esperança,
como promessa de expansão e de crescimento” (BERARDI, 2019, p. 5). Na hipótese
presentista, “o tempo urge e o presente manda”, um presente onipresente, “Mais uma
vez, uma experiência de tempo desorientado”:

Longe de ser uniforme e unívoco, este presente presentista é vivenciado de forma muito
diferente conforme o lugar ocupado na sociedade [como sempre]. De um lado, um tempo
dos fluxos, da aceleração e uma mobilidade valorizada e valorizante; do outro, aquilo que
Robert Castel chamou de précaríat, isto é, a permanência do transitório (HARTOG, 2013,
p. 14).

Para exemplificar a condição presentista, Hartog (2013) recorre aos conceitos de Rem
Koolhaas: “Junkspace” e “Cidade Genérica”, pois a cidade genérica não tem história e o
junkspace obsoleta sem envelhecer. De acordo com Hartog, tais procedimentos impedem

• 10
a formação da lembrança, pois, “sua recusa em se cristalizar lhe garante uma amnésia
instantânea”. “Mas [ele pergunta] pode-se viver em uma cidade presentista?” (HARTOG,
2013, p. 15-16).
Pereira e Araújo consideram a condição atualista, para se diferenciar da hipótese do
presentismo, como uma produção incessante de dados/informações, além da atual
economia midiática que protela o amanhã (PEREIRA, 2022, p. 92). Entre outras coisas,
Pereira e Araújo afirmam que: “essa forma de presente como atualidade não está
destituída de futuro ou passado, mas estabelece com eles relações ‘impróprias’. [...] Essa
atualidade se vê em toda a história, seja do presente, seja do futuro, mas é uma
identificação como uma variedade do mesmo, que se ‘atualiza em função da atualidade”.
Como acontece com as “atualizações automáticas que emergem nos smartphones”, por
exemplo (apud Pereira, 2022, p. 82).
No mesmo contexto, apresenta-se a obsolescência, como o outro lado do que os autores
colocam como updatism (atualismo): de software, de hardware, a necessidade de possuir
os produtos da última geração, de estar com o antivírus em dia, mas também de estar
atualizado de maneira integral, caso contrário estaríamos habitando uma espécie de lugar
anacrônico, inseguro, obsoleto, desatualizado e, por que não, precarizado: “Atualizar
opõe-se não apenas ao inatual, mas ao desatualizado como obsoleto. A obsolescência
programada está profundamente enraizada na cultura capitalista, constituindo até, como
diz Harvey (2016), num aspecto fraudulento do capitalismo contemporâneo.
Retornando à discussão da historicidade: presentismo ou atualismo? Para Pereira, a
condição temporal presentista não caracteriza um novo regime de historicidade, mas de
“um falso reconhecimento que oculta o que está realmente se repetindo”. Dessa forma,
a experiência que eles definem “como atualista produz a ilusão de que a realidade se
reproduz automaticamente, sem ação e atenção à vida”. Os filósofos dizem que seu
objetivo é proporcionar a concepção de “possibilidades de quebra da atual desatenção à
vida” (PEREIRA e ARAÚJO apud PEREIRA, 2022, p. 101).
Nesse cenário, aparecem como contraponto algumas “ideias para adiar o fim do mundo”
(KRENAK, 2019) ou, pelo menos, para dispor de um outro fim de mundo possível. Berardi
(2019) propõe que pensemos em termos de “futurabilidade”, quer dizer, sobre a própria
“multidimensionalidade do futuro”; ou ainda, sobre “a intrínseca pluralidade de futuros
possíveis inscritos no presente”. Exercício de como colocar o autor, de interpretar as
possibilidades inscritas no presente, enquanto conteúdo imanente na constituição do
nosso próprio espaço-tempo: possibilidades plurais, um “campo de bifurcações”, um
“rizoma de possibilidades”. Nessa linha, o slogan No Future de 1977 poderia ser
reelaborado em outros termos, segundo o autor: Not One Future, But Many, ou seja, “não
apenas um futuro, mas tantos futuros quantos foram possíveis” (trad. nossa). Inscrição
deslocar-se-ia semanticamente, por conseguinte, de ação de prescrição ou programa pré-
inscrito ao qual seríamos obrigados a nos submeter, ou como prevenção, imaginação
antecipatória, espera ou premonição, para aquilo que ainda não vemos, mas é conteúdo
latente no presente.

• 11
Compreende-se que este reenquadramento de programas e de possibilidades translada a
temporalidade ubíqua do moderno para a ancoragem do espaço-tempo em uma
possibilidade pluriversal (ESCOBAR, 2016), de múltiplas trajetórias e estórias (MASSEY,
2008), inserida na articulação entre passado, presente e futuro, ou seja, no
(re)agenciamento e (re)distribuição das potências e multiplicidades. Tal proposição
direciona para um tensionamento e abandono do programa único da “humanidade”,
conduzindo-nos, portanto, a agenciar a pluralidade de possibilidades inscritas no
presente.
Perante a grande narrativa da temporalização moderna aliada ao desenvolvimento do
capitalismo, do progresso e da flecha do tempo (que passa), nos lembra Latour (1994, p.
75) que é “a seleção que fez o tempo, e não o tempo que faz a seleção”, quer dizer, é a
multiplicidade de agenciamentos dos possíveis que produzem outros espaços-tempos —
quando no moderno, essa seleção era “feita por alguns poucos em nome de muitos”.
Dessa maneira, poderiam sobrevir outros modos de conhecer e de fazer mundo, por
exemplo, “pela reclamação e legitimidade de outros mundos que foram negligenciados e
diminuídos” (NATÁLIO, 2016, on-line).
Dussel (2005, p. 31) preconiza que este contingente de mundos “sacrificados” pelo
empreendimento colonial moderno, de humanos e não-humanos, enquanto a “outra-face”
oculta e essencial da Modernidade, ou seja, a alteridade negada pelo grande projeto de
conquista e expansão do capitalismo moderno ocidental: “o mundo periférico colonial, o
índio sacrificado, o negro escravizado, a mulher oprimida, a criança e a cultura popular
alienadas etc. (as ‘vítimas’ da ‘Modernidade’) como vítimas de um ato irracional (como
contradição do ideal racional da própria ‘Modernidade’)”. Logo, revela-se a possibilidade
de uma “trans-modernidade”, enquanto um “projeto mundial de libertação em que a
Alteridade, que era coessencial à Modernidade, igualmente se realize”, quer dizer, “na
qual a Modernidade e sua Alteridade negada (as vítimas) se co-realizariam por mútua
fecundidade criadora”.
Essa perspectiva, no nosso entendimento, poderia desdobrar-se em ao menos duas
contingências concomitantes acerca da nossa relação com as diversas temporalidades (e
espacialidades) do porvir e a arquitetura, o urbanismo e o design: por um lado, a de um
futuro menos programável, mais aberto e flexível5 — contudo, não menos ativo ou dotado
de alguma passividade, e, portanto, atento à indeterminação, à imprevisibilidade e à
entropia do nosso tempo, bem como à pluralidade de possibilidades de agenciamento; e,
por outro lado, a oportunidade de abarcar a heterogeneidade de espaços-tempos que
habitam — ou podem vir a habitar — o mundo.

5
Fuão e Becker conjecturam: “[...] o porvir não pode ser arquitetado, planejado, projetado representado,
mas ele pode entrar na arquitetura, na medida em que ela é uma URA, arquitetura é arte e, portanto, é
abertura, diferente da somente objetiva arquitetura-racionalista” (FUÃO e BECKER, 2014, p. 45).

• 12
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“[...] ainda não sabemos como o tempo funciona de fato. A natureza do tempo talvez
continue sendo o maior mistério de todos. [...], possivelmente, o mistério do tempo diz
respeito mais ao que somos do que ao cosmos” — Carlo Rovelli

As modulações de temporalidades designam posições distintas nas disputas no campo


historiográfico, tanto na modernidade como na contemporaneidade. Na Modernidade, o
projeto de uma trajetória unívoca e a instrumentalização de uma temporalidade universal
perpassa a historiografia, seja da mutação contínua de Banham, seja dos modernistas
hegelianos ou da Objetividade; designa uma história única, moldando a temporalidade
linear e cronológica, tergiversando sobre a simultaneidade do não simultâneo, ou seja, a
interdependência entre subdesenvolvimento e desenvolvimento, como partes de um
mesmo processo de exploração econômica e de acumulação do capital. A historiografia
aiônica de Tafuri oferece uma distinta abertura de possibilidades, no entanto, é
eurocentrada, refletindo a “crise da arte como ciência europeia” identificada por Argan
(1992a) no período da Guerra Fria.
A confusão, o desânimo, a incerteza e a incipiência no campo da arquitetura tendo como
um dos motivos a “multiformidade” do movimento moderno corroboram com o revés da
pretensão de um sentido único e do princípio cultural unificador. Isso também indica que
as fronteiras do mundo moderno-colonial são epistêmicas e ontológicas. Ainda, um dos
efeitos da temporalidade universal é o desaparecimento do lugar como âmbito da
construção cultural das relações sociais, políticas e econômicas (ESCOBAR, 2005).
Além disso, o tecnologismo de Banham não é menos parcial do que os demais
modernistas, na compreensão do contexto em sua totalidade, uma ambição hegeliana é
entender o sistema como um todo. As tecnologias são socialmente estruturadas,
territorializadas e indissociáveis da forma como a sociedade produz, reproduz a vida e
cria espaço, configurando um dado incontornável do mundo contemporâneo. Não
obstante, o discurso ufanista, tendo como chave a inovação tecnológica, oblitera que tal
inovação constitui um “negócio” desde o Século XIX, que opera pelo favorecimento de
estratégias para o capital extrapolar as barreiras de circulação e acelerar o “tempo de
rotação” (HARVEY, 2016, p. 106). Harvey (2016, p. 130) explica que as inovações
proporcionam possibilidades mutáveis para incrementar a lucratividade do capital,
concentrando riqueza e criando desigualdade. O seu crescimento incremental e
exponencial efetua uma colonização planetária, avançando sobre a natureza de tal modo
que é um dos fatores da crise sanitária e climática que presenciamos no Século XXI.
Finalmente, “a inovação tecnológica se tornou um objeto de fetiche do desejo capitalista”
(HARVEY, 2016, p. 131), promovendo uma “ética impudente” de “inovação pela inovação”
que, frequentemente, não passa de fraude ou estorvo.
No campo da arquitetura e urbanismo, reiteramos que as políticas públicas e o
planejamento do desenvolvimento e o design são “elementos-chave na constituição
moderna de um mundo único globalizado” (ESCOBAR, 2016). De modo que, as mutações
tecnológicas reforçam o sistema hegemônico, genérico do capitalismo triunfante que

• 13
encerra inteiramente o futuro, capturando as suas possibilidades de abertura e
pluralidade. E, neste contexto, “o futuro não precisa mais de nós” (BERARDI, 2019).
A espacialização da globalização conduz ao reenquadramento da Modernidade, conforme
Massey (2008, p. 100). Se podemos contestar a ruptura decisiva, concomitantemente,
podemos reconhecer a deliberação de ruptura pela Decolonialidade, por sua vez, posição
distinta da compreensão dos adeptos do Atualismo. Assinalamos que há pelo menos uma
crise efetiva da narrativa da Modernidade no Sul Global, que designa processos de
transição, de abertura e de indeterminação.
Após a nostalgia historicista, a emergência da discussão sobre o futuro é bem-vinda,
enseja a retomada da imaginação e poderia ressignificar a espera. Questionamos, por
isso, a consternação com a dificuldade de previsão ou de antecipação, plasmada na
expressão “Não sabemos mais pensar no futuro” (VALÉRY apud NOVAES, 2013). Se
perdemos nossos “meios tradicionais de pensar e prever”, não poderíamos criar meios
condizentes com “hibridismo do tempo da história”, e compreendendo componentes
necessários da pluralidade, da diversidade e “abertura”? (retomando Tafuri).
Solnit (2017, n.p.), citando Virginia Wolf, celebra justamente ignorar o futuro: “O futuro
é a escuridão, e essa é a melhor coisa que o futuro pode ser, [...]. É uma declaração
extraordinária, afirmando que o desconhecido não precisa ser transformado em conhecido
por meio [...] da projeção de sinistras narrativas políticas ou ideológicas”.
Para escapar da nebulosidade contemporânea, que satura e bloqueia a imaginação sobre
o horizonte de possibilidades indicamos: atenção ao presente, desprogramação do futuro
e reflexão sobre os termos da futurabilidade e da pluriversalidade.
Escobar (2016) nos convida a imaginar, por meio do design, uma transição deste mundo
circunscrito pela modernidade capitalista ocidental para um mundo pluriversal, quer dizer,
por meio de um design atento para a multiplicidade de trajetórias e dos possíveis inscritos
no presente. No atual contexto “pós-futurista”, na espécie de “prisão do presente” nos
quais se encontram, atualmente, os campos da arquitetura, urbanismo e design e,
tomando de empréstimo as palavras de Bogéa (2014, p. 109), talvez possamos imaginar
uma espécie de reconciliação “com a espessura do tempo de onde se pode vislumbrar o
traço coletivo da cultura”, ademais, “[s]em promessa de futuro, mas atentos ao presente
naquilo que ele configura e que por algum tempo perdurará”.
No quadro de referência da Decolonialidade, Dussel (2005) designa um projeto de
coexistência e co-realização de trajetórias múltiplas e de afirmação da interculturalidade.
Esta postura se coaduna com o “pensamento crítico de fronteira” como uma crítica da
modernidade, com vista a um mundo transmoderno pluriversal de múltiplos e diversos
projetos ético-políticos que viabilizem o diálogo e uma comunicação verdadeiramente
horizontais entre os povos.

• 14
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• 15
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• 16
POR UMA HISTORIOGRAFIA DA ARQUITETURA PARA ALÉM
DOS RÓTULOS:
a formação da paisagem urbana complexa e plural através da
experiência de pesquisa documental no acervo do Arquivo Público e
Histórico de Ribeirão Preto.

FOR A HISTORIOGRAPHY OF ARCHITECTURE BEYOND


LABELS: the formation of the complex and plural urban
landscape through the experience of documentary
research in the collection of the Public and Historical
Archive of Ribeirão Preto.

Historiografia, ideários e regimes de historicidade

GLERIA LIMA, Ana Carolina


Pós-doutoranda; FAU-USP
anacarolinagleria@hotmail.com
RESUMO

Objetiva contribuir para a historiografia da arquitetura e da cidade através de


metodologia baseada na pesquisa documental do acervo de Obras Particulares
do Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto (APHRP), Alicerça a
argumentação na tese de doutoramento defendida em dezembro de 2020 que
digitalizou, sistematizou e analisou 4.565 desenhos do período entre 1910 e
1933, discutindo no presente artigo os conceitos da paisagem urbana edificada
e as representações da cidade na virada do Século XX através das publicações
oficiais propondo outras possibilidades de narrativas baseada na leitura de
projetos residenciais. Busca assim, revelar inovações através de novos
repertórios formais vinculados ao bangalô, ao neocolonial, à linguagem eclética
e ao art déco sustentando uma arquitetura para além dos rótulos e
representações oficiais pautadas nas grandes obras – como aquelas
institucionais – de feições ecléticas, que ilustravam a paisagem da cidade.
Desta maneira mostra a cidade de Ribeirão nas primeiras décadas do Século
XX, como detentora de paisagem urbana complexa e plural, projetada por
agentes profissionais diversos, até então desconhecidos pela historiografia –
dentre eles imigrantes, titulados pela Escola Politécnica e práticos, que viriam
ser licenciados após a regulamentação da profissão.

PALAVRAS CHAVE Historiografia; Pesquisa Documental; Paisagem Urbana;


Representações; Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto (APHRP).

ABSTRACT

Aims to contribute to the historiography of architecture and the city through a


methodology based on documentary research of the collection of Private Works
of the Public and Historical Archive of Ribeirão Preto (APHRP), It bases the
argumentation in the doctoral thesis defended in December 2020 that digitized,
systematized and analyzed 4,565 drawings from the period between 1910 and
1933, discussing in this article the concepts of the built urban landscape and
the representations of the city at the turn of the 20th century through official
publications, proposing other possibilities of narratives based on the reading
of residential projects. Thus, it seeks to reveal innovations through new formal
repertoires linked to the bungalow, to the neocolonial, to the eclectic language
and to art déco, sustaining an architecture that goes beyond the official labels
and representations based on the great works - such as institutional ones -
with eclectic features, which illustrated the city landscape. In this way, it shows
the city of Ribeirão in the first decades of the 20th century, as holder of a
complex and plural urban landscape, designed by different professional agents,
until then unknown by historiography - among them immigrants, titled by the

• 1
Polytechnic School and practical, who would become graduates. after the
regulation of the profession.

KEY-WORDS Historiography; Documentary Research; Urban landscape;


Representations; Public and Historical Archive of Ribeirão Preto (APHRP).

• 2
INTRODUÇÃO
Como um acervo de projetos poderia contribuir para a narrativa da historiografia da
arquitetura? Com este questionamento iniciamos a pesquisa de doutorado que alicerça a
investigação aqui exposta, que se apoiou nos processos de aprovação para construção,
ampliação e reforma, hoje disponíveis no acervo de Obras Particulares do Arquivo Público
e Histórico de Ribeirão Preto (APHRP) – instituição criada na década de 1990 pela
Secretaria Municipal de Cultura, tendo sob sua guarda materiais dos departamentos
oficiais e diversos documentos históricos primários. Em seu acervo estão os projetos da
cidade de Ribeirão Preto entre os anos de 1910 e 1979, arquivados por ano e por ordem
cronológica de aprovação, parcialmente catalogados – apenas numerados manualmente
– pela instituição até 1951, contendo 10.169 processos. Destes, a referida pesquisa
digitalizou e sistematizou 4.565 processos entre o ano de 1910 e 1933 – ano em que
passou a ser adotado para o Município de Ribeirão Preto o Código de Posturas Arthur
Saboya, e ainda, ano em que ocorre a regulamentação do exercício das profissões de
engenheiro e arquiteto em todo o país com a criação dos órgãos fiscalizadores –
analisando em especial os projetos de habitação e uso misto.

Com base em pesquisa de farta documentação primária, analisadas à luz dos objetivos
propostos, foi possível mostrar na referida tese, ao longo de toda a argumentação
desenvolvida, de que maneira as características arquitetônicas estiveram vinculadas aos
fatores econômicos, políticos e às questões sociais, comprovando a hipótese de que, no
início do século XX, a arquitetura residencial urbana de Ribeirão Preto coexistiu de
maneira compatível com o cenário arquitetônico das grandes capitais — em especial, São
Paulo. Destacamos o aparecimento de novos programas edilícios, alterações nas
implantações como o afastamento da casa das divisas do lote e inovações no repertório
formal vinculadas ao bangalô, ao neocolonial, à linguagem eclética em sua maioria, e ao
art déco em caráter de novidade decorrente do incremento no processo de
industrialização e no uso de novos materiais construtivos.

A referida tese nos permitiu revelar ainda na cidade de Ribeirão Preto uma arquitetura
que se estende muito além do conhecido Quadrilátero Central, do Quarteirão Paulista ou
das grandes edificações institucionais, detentores até os dias atuais de uma exclusividade
na representação simbólica da passagem da cidade pelo final do século XIX e início do
século XX. Com o estudo da habitação, através da documentação primária, evidenciamos
que este período foi muito além de expressões cunhadas como “pequena Paris”, “Belle
Époque caipira” e “época áurea”. A visitação por casas e bairros da cidade nos colocou
diante de evidências que estão muito além dos rótulos e dos estilos arquitetônicos e que
se impõem como testemunho dos personagens que fizeram a história material da cidade.

Desta maneira, no presente artigo desvelamos a paisagem urbana de Ribeirão Preto do


início do século XX de maneira complexa e plural, com a presença de agentes até então
desconhecidos pela historiografia da arquitetura, assinando autoria de projetos e

• 3
reponsabilidade técnica de obras diversas, visando descortinar novas narrativas para
além dos rótulos conhecidos, construídos pela bibliografia existe e pelas representações
do período.

A CONSTRUÇÃO DA PAISAGEM URBANA


Para Santos (2004, p.66) paisagem e espaço não são sinônimos, uma vez que a paisagem
se refere ao conjunto de formas, que exprime heranças enquanto o espaço são essas
formas mais a vida que o anima. Portanto, para o autor a paisagem seria imutável (se
tratando de uma combinação de vários tempos presentes) enquanto o espaço está em
constante transformação. Santos (2004, p.91) aponta as “rugosidades”, como o que “fica
do passado como forma, espaço construído, paisagem, o que resta do processo de
supressão, acumulação, superposição”, afirmando que através das “rugosidades” é
possível retratar as divisões do trabalho, os tipos do capital e as combinações técnicas e
sociais com o trabalho. Sobre espaço e lugar Certeau (2021, p.184) conclui que “em
suma, o espaço é um lugar praticado” ao afirmar:

Inicialmente, entre espaço e lugar, coloco uma distinção que delimitará um campo. Um
lugar é a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas relações de
coexistência. Aí se acha portanto excluída a possibilidade, para duas coisas, de ocuparem
o mesmo lugar. (...) Existe espaço sempre que se tomam em conta vetores de direção
quantidades de velocidade e a variável tempo. O espaço é um cruzamento de móveis.
(CERTEAU, 2021, p. 184)

Menezes (2005, p.36) mostra a importância de discutir a paisagem como fato cultural,
considerando todas as dimensões do fenômeno, ponderando ainda sobre as historicidades
da paisagem, uma vez que a paisagem sofre “constantes processos de transformação”,
sendo dinâmica e não instável.

A paisagem, portanto, deve ser considerada como objetivo de apropriação estética,


sensorial. Consequentemente, não se pode negar que ela tenha uma natureza objetiva,
que seja um objeto. É, sem dúvida, uma forma, mas não se define por esse caminho. É
material, real, que se dá à percepção. Porém, considerá-la antes de mais nada como objeto
(portanto um dado, um a priori) é ainda permanecer em um horizonte restrito, que não
seria suficiente para dar conta de todas as dimensões do fenômeno. (MENEZES, 2005,
p.32)

Outro ponto importante trazido por Menezes (2005, p.41-49) é o do uso da paisagem
mobilizada no campo das identidades sociais e dos processos identitários, uma vez que o
autor afirma ser “indiscutível o papel que ela desempenhou como componente na fixação
das identidades nacionais”, e ainda nas vinculações entre a paisagem e o patrimônio
cultural. Sobre as representações coletivas e as identidades sociais Chartier (1999, p.182-
183) pontua diversas premissas sendo que:

A primeira alimenta a esperança de levantar os falsos debates em torno da divisão, dada


como universal, entre as objetividades das estruturas (que seria o território da história
mais segura, que, ao manipular documentos maciços, seriais, quantificáveis, reconstrói as

• 4
sociedades tais como verdadeiramente eram) e a subjetividade das representações (a que
se ligaria uma outra história dedicada aos discursos e situada à distância do real).
(CHARTIER, 1991, p.182-183)

Ao se utilizar dos conceitos de paisagem na metodologia de pesquisa Bueno (2016, p.100)


afirma que “a paisagem é um precioso instrumento de trabalho”, trazendo dentre outros
autores Braudel (1949, apud BUENO, 2016, p.100) e a analogia de como nossa pele
carrega cicatrizes do passado, da mesma maneira como a cidade acumula diversas
camadas de historicidade. Sandeville Jr. (2004, p.3) ao estudar a metodologia de análise
da paisagem urbana aponta que a melhor maneira de iniciar esta análise “não está no
esforço quantitativo ou descritivo de seus elementos e arranjos e sim no
reconhecimento”, advertindo ainda que a paisagem se trata de uma experiência, não
podendo ser “apenas um objeto material ou apenas uma representação”. Sendo assim
Sandeville Jr. (2004, p.5) recomenda a priori o entendimento do problema, com a
formulação de questões a respeito da paisagem que se deseja estudar. No nosso caso,
além do questionamento inicial sobre o alcance da metodologia em acervos documentais,
ao olhar para esta documentação lançamos as seguintes perguntas neste artigo: quais as
características dos projetos aprovados no acervo de Obras Particulares do APHRP? Como
estes dialogam com as narrativas da época e com a paisagem urbana? E como podemos
contribuir para a historiografia da arquitetura através da análise destes projetos?

AS REPRESENTAÇÕES DE RIBEIRÃO PRETO NA VIRADA DO SÉCULO XX


Buscando explorar o cruzamento das fontes documentais1, além do nosso material
principal (os projetos do acervo de Obras Particulares do APHRP) investigamos também
publicações que pudessem representar a paisagem construída da cidade de Ribeirão Preto
nas primeiras décadas do século XX, que estavam armazenados na mesma instituição.

Cronologicamente, iniciamos com a leitura do Almanach Ilustrado de Ribeirão Preto de


1913 – volume organizado em quatro partes: dados históricos e geográficos de Ribeirão
preto; nomenclatura comercial, industrial e agrícola e história do Bispado da cidade;
descrição de algumas fazendas2; literatura e variedades – onde, encontramos uma
descrição das edificações que compunham essa paisagem urbana, destacando algumas
construções institucionais, religiosas, comerciais e industriais como “maior valor” da

1 Castro (2008, p.57) reitera a importância de observar os documentos várias vezes ao longo
do processo, podendo “alterar o entendimento” do objeto e afirma que “a densidade do
material obtido numa determinada fonte arquivística aumenta à medida que se cruzam essas
informações com dados obtidos em outras fontes ou que se consultam outros arquivos”

2 Ainda que tenha um item destinado apenas as fazendas cafeeiras a publicação não tem
ênfase na cultura do café em Ribeirão Preto como outros periódicos, por exemplo Brazil
Magazine (1911) e Impressões do Brasil no Século XX (1913).

• 5
arquitetura da cidade, e apontando a existência de várias edificações particulares de
“construção moderna”. Ao longo da publicação o Almanaque traz imagens sob o título
“moderna architectura” incluindo do palacete de Domingos de Andrade – com a legenda:
“é um verdadeiro primor architectonico, contribuindo para a belleza da Praça 13 de maio”
–; do palacete do engenheiro residente da Companhia Mogiana Edgar Shaldrs; do prédio
da Associação dos Amigos dos Pobres, nos demonstrando como a arquitetura e a cidade
eram importantes ferramentas para a formação do ideário moderno.

Existem no município mais de 10.225 prédios, sendo 3.104 na cidade, 199 compreendidos
na área suburbana, 165 em Villa Bomfim e 6.757 exclusivamente ruraes (...) As recentes
construções obedecem aos moldes duma architectura de apurado gosto esthetico (...)
Dentres as constucções de mais valor são dignas de notas as seguintes: (...) Teatro Carlos
Gomes, Catedral, Mercado Municipal, Companhia Antarctica Paulista, Sede da Sociedade
Recreativa (...) são numerosos os predios particulares de construcção moderna. (Almanach
1913, s/p)

Figura 1: Teatro Carlos Gomes e Mercado Municipal em Ribeirão Preto, edificações destacadas pela
Almanaque de 1913, e ambas demolidas ainda no século XX. Fonte: Almanach Illustrado de Ribeirão
Preto, 1913.

Figura 2: Sociedade Amigos dos Pobres e Palacete Iria Alves Ferreira em Ribeirão Preto, edificações com
frontão eclético. Fonte: Almanach Illustrado de Ribeirão Preto, 1913.

O Almanack de Ribeirão Preto de 1927 tem um volume mais enxuto que o citado
anteriormente, trazendo alguns pontos em comum, como a descrição da formação da
cidade e a instalação da igreja – bem como sua organização religiosa e seus agentes
atuantes no bispado – trazendo imagens da Catedral e do Palácio Episcopal. No que
desrespeito a cidade e às edificações o foco da publicação se concentra mais no urbano,

• 6
enfatizando a importância da agricultura, comércio e indústria e ainda a “belleza da
cidade” que seria considerada depois de São Paulo a terceira mais importante do Estado.
Rico em ilustrações (infelizmente o exemplar localizado no APHRP se trata de uma cópia,
não tendo boa qualidade nas imagens) trazendo ilustrações das ruas: General Osório,
Rua Saldanha Marinho e Tibiriça. Das edificações mostra dentre as imagens o projeto de
Ramos de Azevedo para a Compainha Mogiana – que nunca chegou a ser executado –,
de instituições de ensino (Escola de Farmácia, Grupo Escolar e o Ginásio do Estado, esse
também projeto de Ramos de Azevedo) e outros que já haviam aparecido na publicação
anterior, como o Teatro Carlos Gomes, a Sede da Sociedade Recreativa e a Companhia
Antarctica Paulista.

Figura 3: Ginásio do Estado, atualmente E. E. Otoniel Motal na rua Pudente de Morais. Fonte: Almanack
de Ribeirão Preto, 1927 e Arquivo Pessoal.

Figura 4: Sociedade Recreativa, atualmente Museu de Arte de Ribeirão Preto – MARP na rua Barão do
Amazonas. Fonte: Almanack de Ribeirão Preto, 1927 e Arquivo Pessoal.

Outras publicações consultadas foram os Relatórios anuais apresentados pela Câmara e


pela Prefeitura Municipal, totalizando sete volumes entre os anos de 1913 e 1930. Os
relatórios apresentam conteúdo diversificado de acordo com as atividades anuais,
trazendo frequentemente dados da população, escolaridade, falecimentos, balanços
financeiros de arrecadação e despesas, realização de obras públicas, número de novas
construções, entre outros. Praticamente todas essas publicações enfatizam a
grandiosidade do município, afirmando Ribeirão Preto ser “incontestavelmente uma das
mais belas e ricas cidades do Estado de São Paulo” (Ribeirão Preto, 1930, p.4). As
questões do “embelezamento e progresso da cidade” aparecem e vários volumes, como
no Relatório correspondente ao ano de 1925 onde o presidente da Câmara Municipal,
Fábio de Sá Barreto afirma que (RIBEIRÃO PRETO, 1926, p.9-10) “outros problemas

• 7
vinculados ao progresso e a grandeza de Ribeirão Preto absorveram igualmente a nossa
atividade” apontando ser o mais importante “sem dúvida o do embellezamento da
cidade”, uma vez que tenha sido realizada a “maravilhosa transformação da antiga,
desgraciosa e empoeirada povoação que surgira nos sertões do Oeste cafeeiro, na
esplendida, confortável e grande cidade que é hoje Ribeirão Preto”. Dentre as obras
citadas está a remodelação das praças 15 de Novembro, Antônio Honório, 13 de maio, o
grande parque da praça 7 de Setembro, e o embelezamento do Bosque Municipal. Sobre
as edificações particulares, pontua-se a reorganização da repartição de obras sendo
“evidente que o plano das construções particulares e sua execução estão estreitamente
vinculados ao embellezamento da cidade e a segurança da vida de seus habitantes”. Os
relatórios não são ilustrados.

Na nossa investigação sobre as narrativas da paisagem urbana, localizamos apenas 20


anos depois uma publicação que enfatiza além das grandes obras, também a arquitetura
residencial como relevante no discurso do “progresso” na paisagem da cidade. Se trata
da publicação vinculada à Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto, de 1951, onde o
engenheiro Galileu Frateschi escreve um texto intitulado “Ribeirão Preto – Cidade do
Progresso”, onde enfatiza as realizações no campo da engenharia e da arquitetura,
seguindo por uma coletânea de imagens que coloca luz à questão nas residências sob a
legenda e o crescimento da cidade: “cada dia quatro casas construídas em Ribeirão Preto”
e “Ribeirão Preto não para; é uma forja contínua de trabalho construtivo”, do Prefeito
José de Magalhães.

Uma, se evidenciam por suas indústrias e comércio; outras, pelas suas belezas naturais, e,
ainda outras, por apresentarem um complexo de realizações no campo da engenharia e
arquitetura. Ribeirão Preto, sem nenhum favor, é uma dessas cidades. (...) São raros os
exemplos dos nossos casarões antigos e da repetição da arquitetura tipo colonial,
substituindo-se pela arquitetura moderna a qual foi bem compreendida, no seu aspecto,
visto que, antes de se atender os efeitos arquitetônicos de embelezamento, meramente
decorativos, atende-se à função e à racionalização do projeto. (FRATESCHI, 1951, s/p)

• 8
Figura 5: Residências em Ribeirão Preto na década de 1950. Fonte: Ribeirão Preto, 1951.

Nos Alamanaques e nos Relatórios podemos notar que são as obras institucionais e
urbanas que ganham destaque na representação da paisagem construída da cidade – e
de que maneira esse discurso aparece como instrumento para da visão progressista de
modernidade. Levando em consideração a natureza das publicações que objetivam
divulgar os trabalhos realizados pelas esferas políticas, e se propagar para a sociedade
civil e ainda que as obras monumentais (como praças, escolas, comércios de grande porte
entre outros) tenham destaque nesta paisagem, é importante analisarmos os projetos
para aprovação de edificações de uso residencial – neste caso, em especial aqui aqueles
sob a guarda atual do APHRP – e a formação da paisagem urbana construída de uma
maneira ampla, considerando a representatividade dos projetos de uso residencial e misto
que somam mais de 70% do acervo de Obras Particulares.

OUTRAS POSSIBILIDADES DE NARRATIVAS HISTORIOGRÁFICAS


Além das representações da cidade no período, as bibliografias sobre a história de
Ribeirão Preto, trazem frequentemente a questão da riqueza do café na virada do século
XX e de que maneira a cultura cafeeira influenciou a cidade. Cione (1987) retrata o início
do povoado em 1863, a chegada do café, da linha ferroviária da Mogiana em 1883, e das
transformações no panorama urbano da cidade ao longo do século XIX, e no início do
século XX. Assim como em muitas publicações retrata (1987, p.208-209) a cidade como
o “Eldorado Paulista” devido ao dinheiro do café que circulava também na área urbana, e
as viagem para Paris, onde os ribeirão-pretanos traziam a “belle époque” para Ribeirão
Preto.

Nossos grandes senhores, vez por outras, iam para a Europa. A Europa naqueles tempos,
era a França. E a França, Paris. Paris, menos que o centro da cultura, era a champanha, as
mulheres, o sensacional “can can”, enfim a “belle époque”. E eles, com algum atraso,
transportaram, posteriormente, a “belle époque” para Ribeirão Preto. (CIONE, 1987, p.208)

No início da década de 1930, mesmo após a crise de 1929, a cidade contou com
inauguração do Theatro Pedro II, bem como a construção do edifício Meira Júnior e a

• 9
reforma do Hotel Central – que juntos formavam o Quarteirão Paulista, sendo na época
considerado marco arquitetônico da cidade e símbolo de progresso e riqueza de Ribeirão
Preto3 – tornando mais intensivo a escrita da narrativa historiográfica da arquitetura do
período em torno da influência europeia e eclética.

No entanto, para além da bibliografia e das representações através dos periódicos e


relatórios oficiais, recentemente uma nova geração de pesquisadores – Luciana Suarez
Galvão Pinto (2000), Adriana Capretz Borges da Silva (2002), Rodrigo dos Santos Faria
(2003), Karla Sanches (2003), Elaine Caun (2010), Valéria Garcia (2013) e Fernando
Gobbo (2017) – vem construindo outras possibilidades de narrativas historiográficas,
mostrando a cidade e arquitetura de Ribeirão Preto. E aqui se insere a referida pesquisa
de doutorado que alicerça esse artigo, enfim, o que nos dizem os projetos do acervo de
Obras Particulares do APHRP? O que estava sendo construído em Ribeirão Preto, na virada
do século XX?

As obras institucionais e o predomínio da arquitetura eclética


Como vimos, a referida tese que embasa este artigo teve como objetivo o estudo das
habitações de uso residencial, no entanto todo o acervo de obras particulares do APHRP
no período entre 1910 e 1933 foi digitalizado nos possibilitando analisar edificações de
outros usos, como por exemplo os projetos de uso institucional, comercial e de serviços.
Como era esperado ao longo do início de nosso levantamento documental fomos
afortunadas com inúmeras fachadas de edificações com ornamentação eclética4 na
década de 1910 – dos diversos tipos de uso –, marcadas pelo trabalho nos gradis
metálicos, faixas e apliques de ornatos na platibanda e/ou nas molduras.
Muitos desses projetos eram assinados por imigrantes italianos que assinavam a
responsabilidade técnica dos projetos, seja como construtor, desenhista ou arquiteto –
Vicente Lo Giudice, Carlos Barberi, Anunciato Gallo, Thomaz Terreri, Aristides Finotti 5 e

3 Para maiores informações sobre as edificações deste período consultar Gleria (2013).

4 Patetta (2007, p. 7) em seu livro L’architettura dell ́Ecletismo, publicado pela primeira vez
em 1975, inicia suas considerações sobre o ecletismo com a simples definição de ser uma
produção arquitetônica em que os arquitetos adotavam diversos estilos, ou utilizavam os
estilos de maneira a criar uma composição, e posteriormente Patetta (1987, p. 13) afirma que
“os arquitetos frente ao aparente caos das múltiplas pesquisas estilísticas com a preocupação
de encontrar o próprio estilo, não perceberam que o estilo do século XIX era o próprio
ecletismo”. Pontuando o ecletismo ser “a cultura arquitetônica própria de uma classe burguesa
que dava primazia ao conforto, amava o progresso (especialmente quando melhorava suas
condições de vida), amava as novidades, mas rebaixava a produção artística e arquitetônica
ao nível da moda e do gosto”.

5 Para biografia destes profissionais italianos verificar: Gleria Lima (2020).

• 10
diversos outros – e se destacavam ainda como proprietários pelos seus reconhecíveis
sobrenomes – Trigotti, Sartori, Pistelli, Vinci, Floretti, Comellini, Barozzi, Andreotti, etc.
Macambira (1981, p.9) afirma que os ornatos nas edificações em São Paulo no século
XIX, foram “trazidos, arranjados e aplicados pelas mãos dos imigrantes artesão,
principalmente os de origem italiana”, iniciando assim um “processo de modelagem e
escultura das fachadas e prédios públicos na capital de São Paulo”. Pontua o uso do
neoclássico e do ecletismo6 nas feições dos novos bairros de famílias ricas – e nas zonas
populares – e ainda, nas grandes obras públicas. Em Ribeirão Preto na virada do século
XX encontramos um panorama semelhante, além dos inúmeros processos de aprovação
para a construção de casas de italianos, localizamos também grande quantidade de obras
institucionais, como o próprio projeto para a Sociedade Italiana e a sede para os Jovens
Turcos, como podemos ver na Figura 6 com ornamentação que remete ao neoclássico e
ao ecletismo. Ambos os projetos não possuem identificação de autoria e não foram
localizados atualmente na cidade, tendo sido possivelmente demolidos ou remodelados.

Figura 6: Fachadas dos projetos para a Sociedade Italiana na rua Florêncio de Abreu e para a sede dos
Jovens Turcos na rua Saldanha Marinho. Fonte: Processo n 78 e n108, ambos de 1912 do Acervo
APHRP.

E o ecletismo não chegou apenas pelos imigrantes italianos, durante toda nossa
investigação no acervo de projetos, localizamos assinaturas de profissionais – sejam
titulados, ou não – que não residiam na cidade. Nomes de paulistanos pipocavam entre
um projeto e outro, dentre eles Francisco di Pace, José Saachetini, Arnaldo Maia Lello,

6 Rocha-Peixoto (2000, p.7) define as diferenças entre o neoclassicismo e o ecletismo a partir


da caracterização do neoclássico como: “expressão de ordem, disciplina, contenção, equilíbrio,
razão e nobreza”; e do eclético como: “dramaticidade, conforto, expressividade, luxo, emoção
e exuberância”. Sendo essas coexistentes no tempo, bem como a engenharia, que se
caracterizava com uma resposta pragmática a resolver os problemas com instrumentos da
indústria, e se que partilham característica arquitetônicas em comum sendo: simetria,
composição, proporção, “arquitetura falante” e ornamentação.

• 11
Júlio Micheli, Evaristo de Vincenzo, Florimond Colpaert, Carlos Rosencrantz, Hippolyto
Pujol Junior e Ramos de Azevedo.
Para Carvalho (2000, p.15) Francisco de Paula Ramos de Azevedo teve “um papel
significativo em seu tempo para a arquitetura paulista”, uma vez que a autora afirma que
sua arquitetura “pode ser compreendida como um ramo da arquitetura europeia no Novo
Mundo”. Além do projeto não executado da estação ferroviária mencionado
anteriormente, localizamos no referido acervo pesquisado dois projetos de Ramos de
Azevedo, o Banco do Comércio e da Indústria (Figura 7) – a edificação demolida hoje
dá lugar a um prédio verticalizado de uso misto com comércio e habitação de quatorze
pavimentos – e o Banco do Brasil (Figura 8). Ambos os projetos são de 1922, situados
na rua General Osório e tem como característica o uso misto por serem assobradados e
apresentar habitação no pavimento superior7.
Além destes dois projetos assinados pelo escritório de Ramos de Azevedo localizamos no
nosso recorte temporal mais quatro projetos para casas bancárias – dentre eles a Banca
Francese-Italiana assinado pelo arquiteto paulistano Júlio Micheli8 – nos quais todas as
fachadas se destacam pelo ritmo constante das aberturas, uso de platibanda
ornamentada com motivos de folhagens, colunas, balaustradas, frisos e aplicação de
ornatos característicos do ecletismo.

n
Figura 7: Projeto para o Banco do Comércio e da Indústria na rua General Osório. Fonte: Processo n 36
de 1922 do Acervo APHRP.

7 Bueno (2015, p.198) ao escrever sobre o escritório técnico Ramos de Azevedo, Severo 
Villares, chama a atenção para a pluralidade dos projetos uma vez que a firma chegou a contar
com 500 colaboradores.

8 Implantado na esquina entre as ruas Álvares Cabral e General Osório, no terreno que
posteriormente seria ocupado pelo edifício Diederichsen, construído entre os anos 1934 e 1936
– considerada um marco na historiografia da arquitetura ribeirão-pretana, por ser o primeiro
edifício multiplano em concreto armado na cidade.

• 12
Figura 8: Fachada do projeto para o Banco do Brasil e edificação atualmente na rua General Osório.
Fonte: Processo n 277 de 1922 do Acervo APHRP e acervo pessoal.

Os hotéis aprovados nestas primeiras décadas do século XX em Ribeirão Preto, também


são destaque na questão da ornamentação eclética de suas fachadas. Localizamos oito
projetos no período, onde se destacam além do conhecido Hotel Brasil – projetado por
Antônio Soares Romeu para Vicente Viccari na rua Jerônimo Gonçalves a edificação
atualmente aguarda processo de restauração – o Hotel Aurora e Hotel de propriedade de
Antônio Bergamini (Figura 9). O projeto para o Hotel Aurora de propriedade de Joaquim
Marques na rua Gerônimo Gonçalves foi assinado pelo arquiteto espanhol residente na
cidade Baudílio Domingues9 e se trata de uma ampliação e remodelação de fachada e
previa ainda um pequeno comércio no pavimento inferior, enquanto o projeto para
Antônio Bergamini na rua Duque de Caxias era de uso exclusivo para o hotel e conta com
a assinatura do construtor Ernesto Terreri10.

9Baudílio Domingues representa 23% da totalidade dos processos estudados, assinando mais
de 700 projetos entre 1910 e 1933 e se constituindo como o profissional mais atuante do
período. Domingues assina a maioria dos processos como arquiteto e construtor e, em alguns
outros, apenas como arquiteto, aparecendo, nesses casos, a assinatura de outros profissionais
se identificando como construtor. Notamos também que, no início da década de 1920, ele
assinou alguns projetos como B. Domingues e Co., ou ainda, B. Domingues e Cia., fato que,
somado ao número de projetos assinados, nos faz acreditar que o profissional contava com a
colaboração de outros colegas. O profissional não teve titulação de arquiteto reconhecida pelo
CREA, e foi registrado no órgão somente como projetista e construtor, no ano de 1933. Para
mais informações consultar Gleria Lima (2020).

10 O professional foi licenciado pelo CREA como projetista e construtor, no ano de 1933.

• 13
Figura 9: Fachadas dos projetos para o Hotel Aurora na rua Jerônimo Gonçalves e Hotel (sem
identificação de nome) na rua Duque de Caxias. Fonte: Processo n 66 de 1928 e n165 de 1928 do
Acervo APHRP.

Entretanto embora houvesse o predomínio de fachadas com ornamentação eclética nas


obras institucionais – e também nas edificações comercias e de uso misto assobradadas
localizadas no quadrilátero central11 –, localizamos no período alguns projetos
institucionais com simplificação dos ornatos, tendendo ao art déco – como o caso da
Empresa de Água e Luz e do Ginásio Progresso12 (Figura 10) – e com elementos do
neocolonial – como o cinema de Augusto de Loyolla e o edifício de Assistência à Infância
(Figura 11).

Figura 10: Fachadas do Ginásio Progresso, e edificação construída na Avenida 9 de Julho, sem data.
Fonte: Processo n 91 de 1933 do Acervo APHRP e fotografia PhotoSport.

11O quadrilátero central pode ser delimitado aqui pelas atuais avenidas: Francisco Junqueira,
Independência, Nove de Julho e Jerônimo Gonçalves.

12 Atualmente a edificação abriga a Diretoria de Ensino da região de Ribeirão Preto.

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Figura 11: Fachadas do cinema de Augusto Loyolla na rua Florêncio de Abreu e do edifício da
Assistência à Infância na rua Barão do Amazonas. Fonte: Processo n 205 de 1928 e n 221
de 1927 do Acervo APHRP.

A formação da paisagem complexa e plural: a caracterização da arquitetura


residencial

É evidente que as grandes obras, como aquelas institucionais que vimos anteriormente,
são destaque na paisagem urbana construída em uma cidade, mas como vimos o acervo
de Obras Particulares é composto por mais de 70% de edificações com uso residencial e
misto, sendo sua caracterização essencial para a compreensão da paisagem urbana de
maneira complexa e plural.

Nossa primeira leitura dos 3.275 processos de uso residencial e misto na referida tese13
nos indicou uma primeira sistematização dos projetos em dois períodos temporais sendo
1910-1921 e 1922-1933, quando as características das residências aprovadas
apresentam uma ruptura, mudando sua implantação, planta e intenção plástica nas
diversas tipologias programáticas. É evidente que cada projeto traz as particularidades
do terreno onde está implantada, do profissional que assina, da família que atende – isso
que queremos mostrar aqui, uma paisagem urbana composta pela diversidade – mas
para isso vamos começar apontando as constantes, e mostrar os projetos que se diferem
dos demais.

Em linhas gerais os projetos da década de 1910 são casas populares predominantemente


terras, implantadas com um recuo lateral ou geminadas, projetadas no alinhamento da
rua e com uso de ornatos na fachada, com feições da arquitetura eclética – podendo ser
observado características do chalé até 1916 – para serem construídas principalmente no
quadrilátero central da cidade, e nos bairros Campos Elíseos e Vila Tibério. A

13Para consultar metodologia de pesquisa, sistematização e análise de obras consultar referida


tese.

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ornamentação das fachadas nesta primeira década do século XX, de fato, era mais
carregada, mesmo nas casas com programa reduzido como podemos observar no projeto
para duas casas geminadas de propriedade de João Pistelli, que conta com três cômodos
encarreirados e uma profusa ornamentação em sua fachada projetada no alinhamento da
rua, como podemos observar na Figura 12.

Figura 12: Projeto de duas casas de propriedade de João Pistelli, sem endereço. Fonte: Processo n 16
de 1918 do Acervo APHRP.

Saindo do voo de pássaro e analisando os processos individualmente notamos que


embora as casas populares estivessem concentradas principalmente nos bairros foi
possível mapear grande quantidade de habitações das classes mais desfavorecidas no
Centro — ainda que seja uma região da cidade sempre valorizada pela historiografia como
concentradora da riqueza —, fato que nos confirma a importância da análise sistemática
e documental. O projeto para Domingos Milani, na Figura 13, é assinado pelo engenheiro
Antônio Soares e prevê duas casas geminadas com três cômodos encarreirados a ser
construída na rua Sete de Setembro.

Figura 13: Projeto de duas casas de propriedade de Domingos Milani na rua Sete de Setembro. Fonte:
Processo n 43 de 1914 do Acervo APHRP.

• 16
Nesse panorama é necessário também considerar as particularidades das tipologias
programáticas. As características das casas de classe média e alta de 1910, se
diferenciam das mencionadas anteriormente e anunciam as modificações que serão
consolidadas na próxima década. A começar da implantação, de predomínio de dois
recuos laterais que passa a abrigar com frequência pequenas áreas ajardinadas – que
mostra a casa se soltando das divisas do lote – a ornamentação destas fachadas também
apresenta modificações ao longo da década de 1910, evidenciando a tendência de
simplificação e geometrização dos ornamentos e sinalizando a chegada das novas
expressões – ainda assim é possível localizar casas de alto padrão construídas
aproveitando o alinhamento das esquinas e com ornamentação eclética, como podemos
ver no projeto assinado pelo arquiteto residente na capital paulista José Saachetini para
Vicente Lo Giudice na esquina entre as ruas São Sebastião e Liberdade, onde aproveita o
alinhamento do lote propõe um jardim chanfrado (Figura 14).

Figura 14: Projeto da casa de Vicente Lo Giudice na rua São Sebastião. Fonte: Processo n 53 de 1915
do Acervo APHRP.

Na década de 1920, as casas se soltam dos recuos chegando até 1930


predominantemente soltas no lote em todas as tipologias programáticas. Os programas
se tornam mais complexos, e o número de casas de padrão alto e palacetes aumentam
expressivamente. Surgem as vilas e os grandes terrenos com casas construídas em série14
– frutos de um mercado rentista em ascensão na cidade, que via surgir a demanda
habitacional a crescente da industrialização na cidade. Para além do quadrilátero central,

14Até o ano de 1921, sistematizamos 26 processos de casas construídas em série – projetos


com três casas ou mais – e nenhum projeto de vila. Entre 1922 e 1933, sistematizamos 33
processos de casas construídas em série e doze vilas operárias, somando 45 projetos.

• 17
e os bairros adjacentes, os pedidos de aprovação agora se estende para novos
loteamentos – como mostramos na Figura 15 – é a expansão da cidade, que cresce e se
adensa, e mudam a feição da paisagem urbana construída. As fachadas se modificam,
simplificando a ornamentação e surgindo novas intenções plásticas, dentre elas,
principalmente elementos do neocolonial, do bangalô e do arts and crafts, e em menor
presença do art déco.

Figura 15: Identificação do crescimento urbano, em especial da construção de habitações, segundo os


processos do APHRP. Referência: Mapa Geral da Diretoria de Obras da Prefeitura Municipal de Ribeirão
Preto, 1949, Esc. 1:10.000 (GLERIA LIMA, 2020).

• 18
Nas casas populares observa-se uma novidade nos projetos aprovados pela Diretoria de
Obras a serem construídos na área urbana e que se tornará recorrente em meados da
década de 1920: o telhado de águas aparente sem platibanda que somado às casas com
o alpendre frontal, inserido no espaço do volume recortado das casas, com uso frequente
de tijolo aparente, floreiras e embasamento de pedra serão os modelos mais usuais de
casa popular – aparecendo também com frequência nas casas de padrão médio.

A casa de três cômodos encarreirados, projetada pelo engenheiro Antônio Soares Romeu
em 1926 para ser construída na rua Quintino Bocaíuva (Figura 16) nos mostra essas
novas fachadas livres de platibandas, com telhado de águas aparentes, projetadas soltas
no lote – e mais uma vez uma casa com programa reduzido localizada no quadrilátero
central da cidade. E ainda na Figura 16, a casa projetada por Cícero Martins Brandão na
rua Campos Salles, também área central, recuada do alinhamento é um exemplo do uso
de alpendre frontal, e sua fachada conta com o uso das floreiras e de pedras aparentes
no seu embasamento, elementos que remetem às características do bangalô 15 e do
neocolonial simplificado16.

15Janjulio (2009, p.123) pesquisa a habitação na década de 1920 e afirma que o bangalô não
pode ser considerado um estilo, mas sim uma maneira de morar que leva em consideração
principalmente o conforto e a adequação do morador ao entorno. Segundo Lancaster (1985,
p.19), a origem da palavra bungalow remete à habitação colonial do Leste da Índia, que se
caracterizava pelo hall central e varandas em todos os lados da edificação para arejar os
cômodos internos. Ribeiro (2019, p.85) corrobora com a origem da palavra bangalô e
acrescenta que a denominação tem sido atribuída a casas de “diferentes estilos, gerando uma
enorme variedade de soluções para as fachadas”, mas prevalecendo o “caráter pitoresco”,
“sobretudo pela recorrência do telhado aparente que é mantido, independentemente da
ornamentação empregada”.

16 Lemos (1989, p.183-184) atribui a difusão do estilo neocolonial na cidade de São Paulo à
Primeira Guerra Mundial, sendo determinante para o estabelecimento de alguns dos graves
problemas que afetaram o ritmo da construção no início do século XX, como crise financeira,
desemprego e escassez de materiais importados, criando condições favoráveis para que o
“neocolonial simplificado”, assim chamado por ele, se difundisse entre as camadas mais
populares. Desse modo, ele usa esta expressão para definir “as primeiras adaptações
populares” que teriam como características os profundos beirais, uso de tijolo aparente,
presença de varandas, guardacorpos ornamentados com meia-lua, faixa contínua na altura
das janelas com relevos decorativos, jardineiras em balanço na parte inferior das janelas e o
uso de vitrais.

• 19
Figura 16: Projeto de casa de José Diogo na rua Quintino Bocaíuva e de Maria da Glória Barreto Costa na
rua Campos Salles. Fonte: Processo n 26 de 1926 e n 69 de 1923 do Acervo APHRP.

Através da cronologia dos processos sistematizados constatamos que, assim como


indicado pela bibliografia, em Ribeirão Preto, estas expressões ligadas ao bangalô tiveram
início nas casas de classe média e alta —os primeiros processos em que registramos estes
elementos são do ano de 1922, localizados no Centro, e foram assinados pelos titulados
Antônio Soares Romeu e Dário Guedes — sendo que, pouco tempo depois, alcançaram os
projetos de casas populares e mínimas, e se espalharam principalmente nos bairros
Campos Elíseos e Vila Tibério. No ano de 1923, identificamos um projeto de casa popular
com as características típicas do bangalô na Vila Tibério, com assinatura de profissional
ilegível, mas foi a partir de 1924 que os exemplares se disseminaram rapidamente pela
cidade, sendo frequente até a o final da década como os projetos da Figura 17 e Figura
18, ambos projetados no ano de 1929 respectivamente por Baudílio Domingues e pelo
engenheiro Raphael Schettini17.

17O profissional era de origem italiana, assinava como engenheiro civil e foi licenciado pelo
CREA em 1933 como projetista, constructor e agrimensor.

• 20
Figura 17: Projeto da casa de João Pontim na rua dos Italianos, atual rua Camilo de Matos. Fonte:
Processo n 105 de 1929 do Acervo APHRP.

Figura 18: Projeto da casa de Antônio Gir na rua Padre Euclides. Fonte: Processo n 80 de 1929 do
Acervo APHRP.

Mesmo a casa se soltando no lote na maioria dos projetos, ainda é possível observar
desenhos em que a casa se encontra na divisa do terreno vizinho, ou no alinhamento da
rua, podendo ter um ou dois recuos laterais, ou ainda geminada. Foram identificadas
apenas quatro casas de padrão alto geminadas neste período, mesmo assim, advertimos
a importância de evidenciar a existência, ainda que pequena, dessa solução arquitetônica
nessa categoria de projeto mostrando a diversidade de soluções – como a casa geminada
de propriedade de Bento Arruda, aprovada na rua Cerqueira César e assinada por Álvaro
Costa Couto na Figura 19.

• 21
Figura 19: Projeto de duas casas de propriedade de Bento Arruda na rua Cerqueira César. Fonte:
Processo n 114 de 1922 do Acervo APHRP.

No período entre 1922-1933 são aprovados 25 palacetes para construção em Ribeirão


Preto e dentre os exemplares do período está a casa projetada para o fazendeiro e político
Américo Batista, na esquina entre as ruas Lafaiete e Visconde de Inhaúma – onde
atualmente está construído o Ed. dos Bancários de habitação vertical – no ano de 1922,
como podemos ver na Figura 20. O projeto conta com uma extensa compartimentação
da planta para atender aos diversos usos, não dando margem para a sobreposição de
funções: visitas, jantar, música, saleta e escritório, cada ambiente uma função, uma
figura e um papel dentro da habitação. O próprio nome conferido ao projeto na prancha
induz a pensar no “morar à francesa”: “Projeto para uma Villa, propriedade de Ilmo. Sr.
Américo Batista”.

• 22
Figura 20: Projeto da casa de Américo Batista na rua Lafaiete. Fonte: Processo n 163 de 1922 do
Acervo APHRP.

Sua sofisticação se faz notar, não apenas pela compartimentação e pela extensão dos
programas, mas também pelo requinte na ornamentação das fachadas, que prova ser
mais uma confirmação de como a habitação burguesa sofreu modificações em relação
aos anos anteriores do final do século XIX, quando predominavam os estilemas ecléticos
e classicizantes. Podemos observar que esse projeto não conta com a platibanda
ornamentada dos projetos ecléticos, ao invés, permite que seja visto o telhado
movimentado, com beirais, resultante da volumetria assimétrica da edificação. Chama a
atenção também que as paredes externas estejam desenhadas com textura, provável
representação de tijolos à vista que, juntamente com as floreiras, podem ser consideradas
características dos movimentos em voga como o bangalô e o neocolonial. Notamos ainda
que a fachada apresenta uma variedade de esquadrias, com verga reta ou em arco, de
materiais de acabamento e de guarda-corpos ornamentados, indicando uma liberdade
compositiva.

A casa da rua Lafaiete de propriedade de Américo Batista tem a assinatura dos


“engenheiros- arquitetos” Carlos Rosencrantz e Carlos Simões, agentes que, como atesta
o carimbo em planta, atuavam na cidade de São Paulo. Além destes profissionais citados,
outro escritório técnico — Salles Oliveira e Valle Ltda. — assina dois projetos de palacetes
na cidade de Ribeirão Preto. Ambos para a família Junqueira. Uma das casas projetadas,
para ser construída na rua Tibiriçá, esquina da rua Campos Salles, é de propriedade de
outro cafeicultor, Manoel M. Junqueira (Figura 21), que assim como Américo Batista
também exerceu cargos políticos na cidade.

• 23
Figura 21: Projeto da casa de Manoel Junqueira na rua Tibiriçá. Fonte: Processo nº 127, de 1923 do
acervo APHRP.

Na casa de Manoel Junqueira é possível observar a presença de tijolo aparente e base de


pedra, elementos presentes no arts and crafts, junto ao uso da bay-window na sala de
música, que compõe a volumetria externa. Nesse projeto, e também no outro de autoria
do escritório Salles Oliveira e Valle Ltda de propriedade de José da Cunha Junqueira, foi
possível levantar – além das pranchas de plantas, cortes e fachadas – os desenhos da
fundação e detalhamento das vigas de concreto armado, bem como memoriais de cálculo
estruturais e descritivos, com todos os materiais a serem usados na obra, desde a

• 24
estrutura até os acabamentos de paredes e pisos – com extenso detalhamento de mais
de trinta páginas, em comparação a outros palacetes aprovados somente a partir de três
ou quatro pranchas de desenhos. Estes projetos datam onze anos antes da construção
do Edifício Diederichsen, considerado um marco na historiografia da arquitetura ribeirão-
pretana, por ser o primeiro edifício multiplano em concreto armado na cidade18.

Dentre os palacetes deste período destaca-se também a presença de desenhos com


elementos do neocolonial19 em vários processos no acervo de projetos do APHRP, como
a planta da casa de Abílio Sampaio e da casa de Emílio Moço (Figura 22), aprovadas
para serem construídas na rua Campos Salles, esquina da rua Barão do Amazonas e da
avenida Independência, onde podemos observar elementos neocoloniais luso-brasileiros,
como varanda inferior com o fechamento em colunas e arcos, a varanda superior com o
guarda-corpo ornamentado com meias-luas, o grande frontão barroco da fachada lateral,
possivelmente revestido com azulejos e os telhados aparentes, movimentados e com as
extremidades levantadas “à moda chinesa”.

Figura 22: Projeto de casa de Abílio Sampaio na rua Campos Salles e de Emílio Moço na avenida
Independência. Fonte: Processo n 35 de 1922 e n 234 de 1925 do Acervo APHRP.

18 Gaspar e Correia (2017, p.12) sinalizam a importância e modernidade do Diederichsen,


acrescentando ao uso de novos materiais, o pioneirismo da proposta de moradia coletiva
verticalizada em Ribeirão Preto.

19 Sobre a arquitetura neocolonial em Ribeirão Preto a partir de 1922 através da análise de


projetos residenciais assinados por profissionais titulados pela Escola Politécnica como os
engenheiros Antônio Soares Romeu e Dário Cordovil Guedes, e ainda por profissionais
licenciados como os construtores Baudilio Domingues e Cícero Martins Brandão consultar Gleria
(2017).

• 25
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que gera a paisagem urbana construída são suas edificações e a experiência humana
vivida nessa cidade – cidade essa em constante transformação e com diversas camadas
sedimentadas ao longo do tempo. Não surpreende, portanto, que as representações desta
paisagem tenham em caráter interpretativo algum recorte, sendo improvável seu registro
na íntegra. Vimos – através dos Almanaques e dos relatórios oficiais – de que modo era
representada Ribeirão Preto nas primeiras décadas do Século XX, dando ênfase às
grandes obras vinculadas ao ecletismo e de que maneira isso se consolidou na bibliografia,
frequentemente atrelando o período na cidade à “Belle Époque”, à influência da
arquitetura europeia e à riqueza cafeeira que trouxe transformações no panorama urbano
da cidade – ou pelo menos em parte dela.
Afinal, seria Ribeirão Preto neste período uma cidade formada na sua totalidade por
edificações de frontões ornamentados, construções ricas e opulentas construídas ao redor
da então recém erguida Catedral e Praça XV? Mostramos aqui, através de pesquisa
documental baseada no acervo de Obras Particulares do APHRP, que não e evidenciamos
uma paisagem urbana complexa e plural para além destas representações. Mostramos
que a cidade contava com diversas edificações de feições ecléticas sejam institucionais
ou residências – principalmente na década de 1910 – mas que ia para além desta leitura,
revelando inovações através de novos repertórios formais vinculados ao bangalô, ao
neocolonial, e ao art déco. Sendo assim, o estudo coloca luz em novos pontos da
historiografia da arquitetura – incluindo a inserção de Ribeirão Preto na discussão da
arquitetura paulistana em voga – contribuindo, ainda, para a história do urbano, ao
mostrar o crescimento da cidade para além do quadrilátero central na década de 1920, e
a evidente presença de casas populares nesta área considerada exclusiva das camadas
sociais mais rica.
A pesquisa documental fez emergir nomes até então desconhecidos pela historiografia,
mostrando que a paisagem estava sendo construída por diversas mãos, cada qual
carregando sua história e sua bagagem, que se manifestava na arquitetura. Imigrantes,
escritórios paulistanos, engenheiros formados pela Escola Politécnica e profissionais que
viriam a ser licenciados como projetistas e/ou construtores com a regulamentação da
profissão, aprovando para todas as classes sociais projetos na área urbana da cidade.
Por fim, cabe ressaltar mais uma vez, que os argumentos sustentados aqui são frutos de
ampla pesquisa de doutoramento que ao longo de cinco anos se debruçou sob os mais de
4 mil projetos do acervo de Obras Particulares – e de outras documentações primárias –
principalmente em suas características arquitetônicas e atualmente tem se desdobrado
em um olhar mais amplo, especializando esse acervo através do georreferenciamento em
projeto de pós-doutoramento, procurando assim, novas contribuições para o campo da
historiografia do urbanismo.

REFERÊNCIAS
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ALMANACK DE RIBEIRÃO PRETO. Edictor: Antônio Dias de Mello. Ribeirão Preto, 1927.

• 26
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Illustrada d’Arte e Actualidades, ano V, Rio de Janeiro no 57, 1911.
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• 27
RIBEIRÃO PRETO. Câmara Municipal. Relatório correspondente ao exercício de 1929.
Apresentado à Câmara pelo Prefeito Municipal Dr. Joaquim Camillo de Moraes Mattos. Ribeirão
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SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço. Técnica e tempo. Razão e emoção. 3a. ed. São
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• 28
URBANIZAÇÃO E INFRAESTRUTURA NO INTERIOR DO BRASIL:
Um estudo sobre Anápolis, Goiás, no início do Século XX.

URBANIZATION AND INFRAESTRUCTURE IN THE INTERIOR OF


BRASIL: A STUDY ON ANÁPOLIS, GOIÁS, IN THE EARLY 20TH
CENTURY.
Historiografia, ideários e regimes de historicidade

VARGAS, Lucas Gabriel Corrêa


Mestre em Projeto e Cidade; Universidade de Brasília
lucascvargas@hotmail.com
PESCATORI, Carolina
Doutora em Arquitetura e Urbanismo; Universidade de Brasília
pescatori@unb.br

—ELIMINE AS INFORMAÇÕES ACIMA E QUEBRE ESTA PÁGINA—


RESUMO

Este artigo tem como objetivo realizar uma leitura histórica do processo de
urbanização de uma cidade do interior do Brasil, Anápolis, no estado de Goiás,
no início do século XX. Sabendo-se que a historiografia do urbanismo do Brasil
focou de forma excessiva na análise do processo de urbanização da região
litorânea e das capitais, o presente trabalho traz como contribuição a
problematização da urbanização da hinterlândia brasileira a partir do caso de
Anápolis, procurando destacar suas especificidades e limitações. A pesquisa
utilizou-se da historiografia urbana de Anápolis, além de extensa pesquisa no
Acervo Físico e Digital do Museu Histórico de Anápolis, além do Centro de
Pesquisa e Documentação da Câmara Municipal, incluindo registros de projetos
e obras de infraestrutura urbana, além de jornais locais.

PALAVRAS CHAVE Urbanização, Infraestrutura, Interior, Brasil, Anápolis.

ABSTRACT

This article aims to carry out a historical reading of the urbanization process of
a city in the interior of Brazil, Anápolis, in the state of Goiás, at the beginning
of the 20th century. Knowing that the historiography of urbanism in Brazil has
focused excessively on the analysis of the urbanization process of the coastal
region and capitals, the present work brings as a contribution the
problematization of the urbanization of the Brazilian hinterland from the case
of Anápolis, seeking to highlight its specifics and limitations. The research used
the urban historiography of Anápolis, as well as extensive research in the
Physical and Digital Collection of the Historical Museum of Anápolis, in addition
to the Research and Documentation Center of the City Council, including
records of urban infrastructure projects and works, in addition to newspapers.

KEY-WORDS: Urbanization; Infraestructure; Interior; Brazil; Anápolis.

—QUEBRE ESTA PÁGINA—

• 3
• 4
INTRODUÇÃO
Este capítulo tem como objetivo realizar uma leitura do processo de urbanização de uma
cidade do interior do Brasil, Anápolis, no estado de Goiás, durante o início do século XX.
Sabendo-se que a historiografia do urbanismo do Brasil possui uma vasta bibliografia a
respeito da urbanização e das práticas urbanísticas da região litorânea e das capitais
(LEME, 1999), o presente trabalho traz como contribuição uma leitura histórica do
processo de urbanização da hinterlândia brasileira a partir do caso de Anápolis, hoje uma
cidade média de grande relevância regional localizada entre Brasília, capital nacional, e
Goiânia, capital do estado de Goiás. Para tanto, a pesquisa utilizou-se de publicações da
historiografia urbana de Anápolis, além da pesquisa nos Acervos Públicos da cidade,
incluindo registros de projetos e obras de infraestrutura urbana, além de jornais locais.

Em Anápolis, assim como em diversas cidades médias do Centro-Oeste brasileiro, a


urbanização foi uma consequência do aumento populacional ocorrido de forma paulatina
desde o início do século XX. O êxodo rural contribuiu para que a população rural se fixasse
na cidade, além do crescente número de imigrantes de outros estados e países e, havendo
um número maior de habitantes na porção urbana, as demandas decorrentes desses
aumentos impactaram o núcleo urbano.

Diferentemente das grandes cidades que buscaram soluções técnicas para a expansão
urbana através dos Planos Urbanos, nos quais permeavam as questões de salubridade e
saneamento, além da implementação de infraestruturas e ajardinamento de parques e
praças, nas cidades do interior, como era o caso de Anápolis a organização do espaço
ainda era foco das ações.

A divisão tradicional de quadras, lotes e vias foi utilizada para organizar e trazer feições
urbanas, porém a sensação de urbanidade era pouco atingida, visto que não haviam
condições de alcançar a mesma qualidade das obras executadas nas capitais, além da
própria vida e rotina urbana serem distintas. As obras buscavam, além do ordenamento
do espaço, um embelezamento dessas feições, com a intenção de alcançar os
melhoramentos, de acordo com o capital disponível, sendo muitas vezes a iniciativa
privada a provedora de tais recursos.

A OCUPAÇÃO DO INTERIOR DO BRASIL E A INTENSIFICAÇÃO DA


URBANIZAÇÃO EM ANÁPOLIS

• 5
O final do século XIX e o início do século XX foram marcados por processos de ampliação
da ocupação territorial da hinterlândia brasileira por meio de importantes políticas
públicas de dinamização e consolidação territorial, marcadamente a partir da proclamação
da República (1889), mas especialmente a partir de meados do século XX. Naquele
momento, a urbanização ainda se concentrava excessivamente no litoral e regiões
próximas, o que levou o recém-instituído governo federal a incentivar planos e estratégias
de ocupação, estimulando “ações de colonização e ocupação territorial e pelas economias
agrárias da pequena propriedade no sul do país, e do café, no sudeste” (TREVISAN,
SABOIA, PESCATORI et. al., 2019), com o consequente fortalecimento de núcleos
existentes, como é o caso de Anápolis, mas também com a criação de novos núcleos
urbanos e cidades novas.

Figura 1: Mapa da população do Brasil conforme censo de 1920. Fundação Rockefeller.


Fonte: Casa de Oswaldo Cruz, 2022. Disponível em:
<http://basearch.coc.fiocruz.br/index.php/ujc8e>

A ocupação do Centro-Oeste brasileiro esteve ligada à mineração, que ali ocorreu desde
o século XVIII até o início do século XIX, com destaque para os estados de Goiás e Mato
Grosso. No entanto, foi muito menos intensa e qualificada do que em Minas Gerais, sendo
majoritariamente de ouro de aluvião, que tinha baixa produtividade e demandava
frequentes deslocamentos para novas áreas, dispersas pelo território.

Assim, a mineração nesses estados atraiu menos pessoas, que se fixaram em núcleos
espalhados (GUIMARÃES; LEME, 2002, p.27). A atividade de mineração era acompanhada
pela pecuária e pela lavoura de subsistência. A pecuária acabou por estimular a ocupação
do território por fazendas ligadas aos núcleos mineradores e, segundo Roberto Simonsen

• 6
(apud GUIMARÃES; LEME, 2002), apoiou a ocupação do território e estimulou a formação
de importantes rotas de comércio no interior do país, como foi o caso de Anápolis.

Anápolis, localizada a cerca de 150 Km de Brasília, tem, historicamente, a função de


entreposto comercial e centro de distribuição de mercadorias, justamente devido à sua
localização geográfica. Entretanto, há cerca de um século assemelhava-se a qualquer
outra cidade do interior do Brasil. Emancipada em 19071 surgiu a partir da intenção de
um pequeno grupo de devotos de Nossa Senhora de Santana, cuja doação de terras para
a construção de uma capela, atraiu paulatinamente moradores e comerciantes, que
tornaram a localidade a cada ano mais atrativa para o comércio. A estreita relação entre
o comércio e a ocupação urbana de Anápolis foi relatada pelos autores que descrevem a
história da cidade, sempre se dando destaque para atuação dos comerciantes locais no
financiamento das melhorias urbanas necessárias.

O interior de Goiás foi historicamente considerado como um inóspito e atrasado sertão.


CHAUL (2001) afirma que o estigma da decadência-atraso atribuído ao sertão goiano teria
se iniciado a partir dos relatos dos viajantes naturalistas que atravessaram essa região
no início do século XVIII e a consideraram inóspita. De fato, a região teve pouca dinâmica
econômica e populacional depois de findado o ciclo de ouro (MONTAGNHANI, LIMA, 2011).
No entanto, o isolamento dos arraiais de mineração começou a ser superado no início do
século XX com a chegada da Estrada de Ferro Goyaz (EFG) nas cidades do Sul do estado.
A EFG começou a ser construída em 1912 e viria a conectar a cidade mineira de Araguary,
ponto final das importantes ferrovias da Companhia Mogiana de Estrada de Ferro (CMEF)
e da Estrada de Ferro Oeste de Minas (EFOM), até Anápolis (MARINHO, DANTAS, 2017).
No entanto, a tão esperada ferrovia só chegou em Anápolis em 1935, enquanto seu
crescimento populacional e consolidação como entreposto comercial regional já havia se
consolidado.

1
O Arraial de Santana das Antas, como era conhecida a cidade de Anápolis, foi emancipado em 1907
através do desmembramento de parte do território de Pirenópolis, anteriormente denominada Arraial de
Meia Ponte.

• 7
Figura 2: Mapa da Estrada de Ferro Goyaz.
Fonte: Centro-Oeste, 2022. Disponível em: <http://vfco.brazilia.jor.br/ferrovias/mapas/1927-Estrada-
Ferro-Goias.shtml>

A imigração, que vinha ocorrendo desde o final do século XIX, se intensificou nas três
primeiras décadas do século XX. Primeiro, com a vinda dos migrantes de Minas Gerais e
do Nordeste, e depois com estrangeiros, principalmente do Líbano. A relação dos
libaneses com o comércio local é muito forte, visto que a colônia síria fundou a maior
parte das casas comerciais de Anápolis entre as décadas de 1910 a 1930. É certo que
desde o século XIX haviam estabelecimentos comerciais no arraial, como descrito por
Borges (1975) e Ferreira (1979). Machado (2009) acrescenta que a comercialização dos
produtos ocorria dentro das casas. Geralmente os ambientes voltados para a rua
funcionavam como armazéns e os demais ambientes funcionavam como residências. Na
década de 1910 é que seriam construídas as primeiras edificações efetivamente
comerciais.

Nesse período, ainda não havia um departamento especificamente voltado às questões


urbanas, que eram tratadas de forma geral pela própria Intendência Municipal. Ferreira
(1979) e Borges (1975) afirmam que até a década de 1920 a Intendência Municipal
realizou poucas melhorias urbanas, como eram chamadas as obras de infraestrutura. A
maior parte das obras relacionava-se à arborização de praças, aberturas de vias ou
pequenos serviços de tapa buracos e correção de valas. Nesse período muito próximo do
início do século o saber técnico urbanístico era pouco difundido nas cidades do interior,
sendo que havia muitas dificuldades para a execução de qualquer obra, devido à falta de
mão de obra com experiência, ferramentas e maquinários. As obras de aberturas de vias,
por exemplo, eram executadas com ajuda de animais e carroças.

• 8
Os autores ainda afirmam que foi a partir da década de 1920 que se iniciaram as primeiras
obras de maior alcance, tais como o abaulamento das vias e a construção de sarjetas nas
calçadas. A Intendência executava a macadamização das ruas principais, processo que
assentava camadas sobrepostas de pedra, utilizadas como pavimento das vias, havendo
também a construção dos passeios elevados. Mesmo assim, relata-se que a poeira era
intensa na época da seca, visto que a maioria das ruas ainda não dispunha de
pavimentação (figura 3).2

Figura 3. Rua Desembargador Jayme, centro de Anápolis.


Por volta da década de 1920.
Fonte: Anápolis, 2022.

Na década de 1920, a gestão do prefeito Graciano Antônio da Silva teria sido a primeira
a realizar obras significativas de pavimentação (figuras 4 e 5). Em um primeiro momento
foram executadas as calçadas em pavimentos rígidos de cimento, cujos meio fio eram
executados com forma de madeira moldadas in loco. Entre o meio fio e a via era
executado o leito carroçável, também de cimento, levemente inclinado, a fim de conduzir
a água da chuva, porém, as vias continuavam com a superfície de terra batida. A atuação
da Intendência era restrita às intervenções pontuais. Semelhante aos Planos de
Embelezamento executados no século XVIII nas capitais, as ações visavam
prioritariamente melhorar a aparência local, sem, no entanto, resolver questões como a
insalubridade e a falta de moradia. Concentravam-se na região central da cidade e em
sua maioria atendiam as questões relacionadas às vias de circulação.

2 Capital da poeira ou cidade suja. Essas foram algumas das alcunhas utilizadas em sátiras à
cidade de Anápolis devido à falta de pavimentação que acometia a maior parte das ruas,
principalmente quando comparada à Goiânia, cujas vias eram em sua maioria pavimentadas.

• 9
Figura 4 e 5: Obras de pavimentação de ruas e calçadas, por volta da década de 1920.
Fonte: Anápolis, 2022.

Nessa década, graças às iniciativas e parcerias do capital privado com o município é que
a infraestrutura urbana começa a ser executada em maior escala. Em 1924 ocorre a
instalação das primeiras linhas de energia elétrica e do telégrafo em 1926, sendo esses
alguns exemplos da parceria entre empresários locais e intendência municipal, na
tentativa de melhorar as condições de moradia e também impulsionar o comércio.

A oferta desses serviços também estava restrita à região central. Cerca de metade da
população que morava em áreas rurais não tinha acesso a elas. Em relação ao
saneamento e ao abastecimento de água, o mesmo ainda era feito por cisternas e sem
coleta de esgoto. Apesar dessa aparente precariedade, o comércio ganhava fôlego com a
construção de armazéns pelos imigrantes libaneses, consolidando na cidade um pequeno
centro comercial ainda no final dessa década.

França (1973) afirma que entre 1910 e 1930 a população urbana teve um acréscimo
significativo, iniciando a década de 1930 com mais de 20 mil habitantes. É importante
considerar que o território de Anápolis possuía limites mais amplos 3 dos que os atuais,
sendo que alguns distritos urbanos considerados na contagem dessa população, distava
cerca de 20 a 50 km da sede urbana.

AS PRIMEIRAS REFORMAS URBANAS

3Durante as primeiras décadas do século XX, a emancipação de distritos urbanos fez com
que o território de Anápolis tivesse uma redução de quase metade da área.

• 10
Com a atração populacional no início do século XX, houve uma consequente expansão
urbana ocupando áreas próximas ao núcleo original da cidade (figura 6). O desenho
urbano da área expandida se difere da ocupação inicial que margeava a encosta do
córrego e se compunha por vias diagonais, uma vez que os novos bairros foram
projetados em quadrículas, tendo regularidade nas quadras e nas vias, promovendo assim
a extensão das principais vias de circulação existentes, utilizando ainda as estradas de
ligação com as outras cidades como vias principais. As rupturas no traçado ocorrem
devido aos limites de fazendas não urbanizadas ou limites geográficos, como morros ou
cursos de água.

Figura 6. Levantamento Cadastral de 1935, apresentando em azul a ocupação inicial ocorrida entre
1870 a 1907, em verde a expansão entre as décadas de 1910 e 1930, em amarelo a partir de 1930, em
vermelho a localização da Estação Ferroviária e em lilás as áreas de ocupação irregular.
Fonte: França (1973), editado pelo autor.
A figura 6 apresenta também o traçado da Estrada de Ferro Goiaz, que em projeto
margearia a cidade, sem adentrar no núcleo urbano consolidado. No início do século XX
a expectativa da chegada dos trilhos permeia algumas cidades de Goiás, incluindo
Anápolis, que estavam inseridas na rota divulgada inicialmente4. O desenvolvimento que

4Marcada por muitos atrasos e mudanças, a Estrada de Ferro Goiaz, projetada para percorrer
o trecho entre Araguari/MG até Imperatriz/MA foi reduzida drasticamente; no seu último

• 11
ocorria nas cidades onde havia uma estação ferroviária em funcionamento era bastante
evidente, concentrando-se as atenções sempre para a próxima cidade a receber os trilhos.

Sabendo-se desse fato, a Intendência, em 1933, pleiteou junto a Companhia da Estrada


de Ferro Goiaz a alteração do traçado, ampliando o trecho final em cerca de 5km para
que a Estação ferroviária fosse construída mais próxima, evitando a travessia do vale do
ribeirão das Antas que se constituía como uma barreira geográfica, por ser uma área
sujeita a alagamentos. Sem condições para custear essa extensão, a pedido da
Intendência, os comerciantes locais reuniram recursos para a construção de um pontilhão
(figura 7) na travessia do córrego, viabilizando assim a conclusão do trecho.

A precariedade das condições de trabalho foi responsável por uma série de acidentes com
os trabalhadores (figura 8), que não dispunham de formação técnica ou ferramentas
adequadas para o serviço. A maior parte era formada por trabalhadores rurais da região,
que executavam os serviços sob orientação da reduzida equipe técnica da companhia
residente na cidade.

Figuras 7 e 8. Obras do Pontilhão sobre o córrego das Antas com a equipe técnica e registro dos
operários na obra da ferrovia, no início da década de 1930.
Fonte: Anápolis, 2022.
Para a equipe técnica, que era composta por engenheiros e agrimensores e deslocava-se
junto aos trechos das obras, eram oferecidas hospedagens nas pensões e hotéis das
cidades. No entanto, para os trabalhadores braçais, os alojamentos se resumiam a tendas
e barracões improvisados, concentrados nas proximidades da Estação ferroviária.

Essa região atraiu também uma população migrante, que sem acesso à moradia e sem
condições de adquirir os lotes em bairros mais próximos da região central, se viu relegada
à periferia da cidade, aglomerando-se nas proximidades da estação, nas encostas dos
morros e na lateral não urbanizada da rodovia que ligava Anápolis a Pirenópolis (figura
9).

projeto deveria chegar até a Cidade de Goiás, as obras foram interrompidas, tendo sido
Anápolis uma das últimas cidades a receber os trilhos.

• 12
A imagem aérea, datada do início da década de 1940, apresenta a demarcação das
mesmas regiões descritas na figura 6, com destaque para a área do polígono em lilás que
concentrava as moradias da população de baixa renda. É nítida a diferença entre o
desenho urbano regular executado na área ocupada no polígono amarelo e a ausência de
regularidade no polígono lilás, além da densidade, visto que os lotes dessa região
resultaram em porções menores e abrigam uma maior quantidade de habitações.

Figura 9. Vista aérea da cidade, por volta da década de 1940.


Fonte: Anápolis, 2022.

Antes da construção da Estação Ferroviária, foi discutida a necessidade da remoção do


cemitério municipal5, que se localizava logo em frente à estação; o novo terreno possuía
uma área três vezes maior e distava a mais de 1 km do limite da cidade, estando no final
do polígono lilás representado na figura 5. A reforma urbana que se seguiu promoveu
uma valorização da região mesmo antes da inauguração da Estação, havendo
concomitantemente a substituição das casas por edifícios comerciais, processo inverso ao
ocorrido na região do novo cemitério.

5A primeira remoção do cemitério municipal de Anápolis, ocorreu no ano de 1882, por medidas
sanitárias. Os sepultamentos eram realizados no largo de Santana, em cemitério improvisado
ao lado da Capela de Santana. Haviam problemas devido à falta de cercamento os limites do
cemitério, tais como invasão de animais e

• 13
Na região da Praça da Estação6 (Praça Americano do Brasil) houve com parte do capital
da Companhia da Estrada de Ferro Goiaz, a urbanização das vias, com a instalação de
pavimentação e calçadas (figuras 10 e 11), além da construção da Estação e dos
equipamentos de suporte à ferrovia, enquanto o entorno do cemitério foi sendo ocupado
de forma irregular pela população de baixa renda.

Figuras 10 e 11. Vista da Praça da Estação e do entorno. 1935.


Fonte: Anápolis, 2022.

5
0
4 3
4 2
1

2
3
2

Figuras 12 a 15. Vista Aérea da cidade de Anápolis, Vista do Largo do Bom Jesus, do
Largo de Santana e da Praça João Pessoa, por volta do final da década de 1930.
Fonte: Anápolis, 2022.

6 Os jardins da Praça tinham nítida inspiração nos jardins franceses, com separação do passeio
público para caminhadas e da vegetação, incluindo topiaria nos arbustos, além da iluminação
decorativa.

• 14
Em conjunto com as obras de urbanização da Praça da Estação, foram executadas
reformas em outras praças, tais como a Praça João Pessoa (figura 15) e a Praça Moisés
Santana, localizadas no núcleo original. No entanto, os Largos da Igrejas Santana (figura
14) e Igreja Bom Jesus (figura 13) continuariam tendo seu espaço vazio, sem nenhuma
intervenção, visto que os terrenos pertenciam à Diocese e não à municipalidade.

A ausência de intervenções nos Largos das Igrejas fez com que não houvesse interesse
do comércio local na construção de edifícios. Os Largos eram utilizados esporadicamente
para as romarias e as festas religiosas, mas mantinham-se vazias durante todo o resto
do ano.7 O entorno do Largo de Santana e do Largo de Bom Jesus compunha-se
predominantemente residências, em contraponto com as outras praças que concentravam
edifícios comerciais.

A função urbana desses largos não possuía uma característica específica, visto que a falta
de urbanização não contribuía para que se aglutinassem ao seu redor outras atividades,
sendo que as descrições na historiografia urbana de Anápolis tratam esses locais como
espaços livres de uso religioso, palco das romarias e atividades ligadas à Igreja.

Em contraponto, a Praça João Pessoa, que possuía um coreto central ou a Praça da


Estação com seu jardim decorativo, foram descritas na historiografia como palco de
eventos, apresentações e encontros. Após a construção da sede da Prefeitura e do Fórum
na extremidade oposta à Igreja (figura 16), o Largo de Bom Jesus no início da década de

Figura 16. Romaria de Santana no Largo do Bom Jesus, em


meados da década de 1940.
Fonte: Anápolis, 2022.

7A Romaria do Senhor Bom Jesus da Lapa iniciada em 1915, chegou a ser considerada a maior
romaria do Estado de Goiás, atraindo cerca de 20 a 30 mil pessoas.

• 15
1940 começou a atrair comerciantes locais tendo durante essa década as residências dado
lugar para a construção de edifícios comerciais.

Essa situação perdurou até a década de 1950, quando na comemoração do cinquentenário


da cidade, a prefeitura promoveu uma série de reformas urbanas8, contemplando projetos
de arborização e urbanização de praças, incluindo-se os largos das igrejas, projetos
contemplaram a segregação de vagas para veículos em estacionamentos e/ou recuos,
além da iluminação pública. (figuras 17 e 18).

Figuras 17 e 18. Praça Bom Jesus. Vista a partir do Cine Santana, em obras e vista a partir da
Igreja Bom Jesuse, final da década de 1950.
Fonte: Anápolis, 2022.

Após a reforma, o Largo do Bom Jesus passou a ser denominado Praça Bom Jesus, no
centro da praça, uma fonte luminosa e sonora foi instalada. Após as últimas residências
do entorno serem demolidas para dar lugar ao Cine Santana e a sede do Clube Recreativo,
a praça que antes esteve relegada a segundo plano tornava-se palco de destaque para
os eventos culturais e as festas noturnas, consolidado pela oferta de comércio e serviços.

URBANIZAÇÃO E A ATUAÇÃO DA INICIATIVA PRIVADA

A década de 1940 foi marcada pela mudança nos agentes envolvidos nas ações de
infraestruturação e na expansão urbana de Anápolis, que passou a incorporar a atuação
de empresários e empresas urbanizadoras, responsáveis pelo loteamento, capitalização
e urbanização dos terrenos, além da elaboração de relatórios e projetos para o legislativo
municipal, quando este ainda não dispunha de equipe técnica capaz de elaborar todos os
planos necessários.

8
Os projetos de reformas urbanas, incluíam-se as obras de pavimentação asfáltica em vários
bairros da cidade, além das obras de saneamento: abastecimento de água, esgoto e captação
pluvial. Um dos projetos previa o alargamento da Avenida Goiás, com a criação de Boulevard
que ligaria a Praça Bom Jesus ao novo bairro em construção, no entanto, devido ao grande
número de desapropriações, o projeto foi executado apenas de forma parcial.

• 16
Em 1943, (figura 19) a contratação da Companhia de Serviços de Engenharia, com sede
no Rio de Janeiro, para a organização de um Plano Diretor seria uma das soluções
encontradas para o enfrentamento dos problemas de infraestrutura, que impossibilitaram
a execução de novos bairros pleiteados pelas Companhias Urbanizadoras e Imobiliárias.

Figura 19. Divulgação oficial da assinatura do Contrato de


Prestação de serviços entre a Companhia de Serviços de
Engenharia e a Prefeitura Municipal.
Fonte: Jornal o Anápolis, 17 de outubro de 1943, folha 2.

No que tange a infraestrutura urbana, o abastecimento de água insuficiente e a ausência


de esgotamento sanitário eram as duas principais demandas que impediam a expansão
urbana adequada. Ao longo da década de 1940 esses dois sistemas foram implantados
de forma gradativa, porém com uma oferta pequena e centralizada apenas na região
central da cidade. Os bairros que foram sendo projetados no entorno do centro
começaram a ser ocupados na década de 1940 com habitações que utilizavam água de
cisternas e esgoto recolhido através de fossas sépticas, antes da execução de um sistema
mais amplo.

No ano de 1946 foi inaugurado o primeiro ramal de abastecimento de água que servia
apenas uma pequena porção da região central, utilizando-se os recursos municipais do
Departamento de Obras, em conjunto com os do Departamento Estadual de Saneamento
(DES).

O reservatório (figura 20), que ainda é utilizado até os dias que hoje, foi construído na
Avenida 24 de Outubro, atualmente denominada de Avenida Pedro Ludovico, em uma
cota mais alta que a região central, aproveitando assim a gravidade para a distribuição

• 17
da água. A captação era realizada em um lago construído (figura 21) na chácara9do Dr.
James Fanstone, que foi doada à prefeitura para tal finalidade.

Figuras 20 e 21. Reservatório e lago de captação.


Fonte: Autor (2022)

No início da década de 1950, apesar da Microbacia do Rio da Antas possuir vazão


suficiente para a captação de água, a topografia da cidade tornou-se um problema,
havendo a necessidade de novos reservatórios (figura 22) uma vez que os novos bairros
estavam em cotas acima da região central. O aumento populacional da cidade continuava
ao ritmo de 2% ao ano, havendo sempre uma demanda reprimida para novas ligações de
água e esgoto. Foram então construídos dois reservatórios, interligados à rede de
captação principal: um localizado no bairro Jundiaí e outro no bairro Maracanã.

2
1

4
Figura 22. Levantamento Cadastral de Anápolis 1950, Localização dos Equipamentos relacionados ao
abastecimento. 01, Lago de Captação. 02 a 04, reservatórios.
Até 1976 o córrego das Fonte: FRIEDMANN
Antas (1955),
serviu como editado
fonte pelo Autorde
de captação (2022)
água. No entanto, devido
à poluição do curso d'água que ocorria em trechos anteriores ao lago de captação, optou-

9O lago e um trecho da Chácara atualmente fazem parte da área do Parque Senador Onofre
Quinan.

• 18
se por utilizar uma nova fonte, a Micro Bacia do Piancó, que se encontrava em área rural,
distante cerca de 15 km da Região central, fonte esta que é utilizada até os dias atuais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através da pesquisa realizada, percebeu-se que as infraestruturas urbanas na cidade de


Anápolis inicialmente foram fruto de parcerias público privadas, até que a municipalidade
tivesse condições de executar obras de maior porte. A atuação das companhias públicas
e privadas de caráter federativo ou estadual e do seu capital foi decisiva para que a
administração municipal promovesse reformas urbanas e atendesse às demandas,
principalmente na questão do abastecimento.

No entanto, as mesmas reformas que contribuíram para a expansão urbana foram


indutoras da periferização da cidade, demonstrando que as regiões centralizadas e com
concentração de renda foram privilegiadas na oferta de serviços públicos desde as
primeiras obras.

BIBLIOGRAFIA
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___________. Acervo Físico, Acervo físico do Jornal “O ANÁPOLIS” Entre os anos de 1940 a
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1973.

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estrutura produtiva do Centro-Oeste. In: HOGAN, D. J. et al. (orgs.). Migração e ambiente no
Centro-Oeste. Campinas: UNICAMP, 2002.

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da Universidade Católica de Goiás. Goiânia, 2009, 183p.

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Goiânia-GO, v. 11, n. 3, dez./2017, p. 213-234.

• 19
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Centro-Oeste e a Economia Brasileira. Revista de Estudos Sociais - Ano 2011, No. 26, Vol. 13.
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; PEREIRA, L. B. ; CORREIA, L. A. ; PEREIRA, P. H. M. ; FIGUEIREDO, A. R. B. ; FIGUEIRA, A.
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VILLAÇA, Flávio. “Uma contribuição para a história do planejamento urbano”. In: O processo
de urbanização no Brasil (1999) p. 171-242.

• 20
A PRODUÇÃO DA CIDADE BRASILEIRA NO SÉCULO XX:
e o caso da instrumentalização do “progresso” em Natal/RN a partir
dos anos de 1960

THE PRODUCTION OF THE BRAZILIAN CITY IN THE 20TH CENTURY:


and the case of the instrumentalization of “progress” in Natal/RN
from the 1960s/ LA PRODUCCIÓN DE LA CIUDAD BRASILEÑA EN EL
SIGLO XX:
y el caso de la instrumentalización del “progreso” en Natal/RN a partir
de la década de 1960
Eixos temático: Práticas, processos e institucionalidades;

MACEDO, Stephanie
Mestranda em história urbana; UFRN
stephaniemacedo.moreira@gmail.com
RESUMO

Considerando a ideia de produção da cidade como um contexto de


planejamento através de planos urbanos, retomamos as fases dessa produção
ao longo do século XX buscando sua herança nos planos de embelezamento e
avançando até um contexto de transição para a urbanização que localiza-se
aqui como a partir dos anos de 1960. Este processo todo é marcado por uma
busca pelo progresso através do planejamento. Em relação a cidade de Natal,
recorte desse estudo, entre fins dos anos 1950 e o Plano Diretor de 1984, há
um largo processo de reorganização das balizas legais para o planejamento
urbano da cidade com um esforço de organização de novos marcos
institucionais de organização das questões urbanas. Assim, entre os anos de
1967 (com os estudos do escritório Serete) e 1974 (promulgação da Lei
2.211/74) tem-se os primeiros passos para a elaboração de Planos Diretores
para o município. O objetivo deste artigo, parte de uma pesquisa mais ampla,
é organizar as primeiras hipóteses para investigar, à luz da história cultural
urbana, os debates e formulações que secundam a elaboração desses
instrumentos, vendo-os como uma saída síntese de debates mais amplos.
Busca-se então reconstruir os atores e conflitos que marcariam o início desse
novo momento de urbanização de Natal e relacioná-los a ideologia de
progresso dominante à época.

PALAVRAS CHAVE Planejamento urbano; Natal; Planos diretores; Progresso;


História urbana.
ABSTRACT
Considering the idea of production of the city as a context of planning through
urban plans, we resume the phases of this production throughout the 20th
century, seeking its heritage in the beautification plans and advancing to a
context of transition to urbanization that is located here as from the 1960s
onwards. This whole process is marked by a search for progress through
planning. In relation to the city of Natal, part of this study, between the late
1950s and the Master Plan of 1984, there is a long process of reorganization
of the legal guidelines for the urban planning of the city with an effort to
organize new institutional frameworks for the organization of issues urban.
Thus, between 1967 (with the studies of the Serete office) and 1974
(enactment of Law 2,211/74) the first steps were taken towards the
elaboration of Master Plans for the municipality. The objective of this article,
part of a broader research, is to organize the first hypotheses to investigate,
in the light of urban cultural history, the debates and formulations that support
the elaboration of these instruments, seeing them as a synthesis output of
broader debates. It is then sought to reconstruct the actors and conflicts that
would mark the beginning of this new moment of urbanization in Natal and
relate them to the ideology of progress dominant at the time.

KEY-WORDS: Urban planning; Natal; Master plans; Progress; Urban history.


INTRODUÇÃO

Ao longo do século XX vemos emergir um novo cenário de construção e reconstrução


de cidades, o qual acompanha o tal fenômeno urbano que está surgindo, não só
materialmente, mas que vai aos poucos se inserindo nas discussões teóricas
acadêmicas e se consolidando no que conhecemos hoje como estudos urbanos. Dos
anos iniciais do século passado para cá evoluímos o suficiente nesse campo do
conhecimento para compreender historicamente como se dá o processo de produção
dessa cidade brasileira, pode-se dizer moderna, e depois, inclusive, pós-moderna,
que culmina na realidade urbana atual.

Este artigo se insere nestas discussões sobre a produção da cidade, no sentido do


planejamento e intervenções urbanísticas, retomando algum contexto e periodização
a nível nacional e aprofundando-se no caso da cidade de Natal/RN. Embora o estudo
de caso a que refere-se o artigo e a pesquisa mais ampla de mestrado a qual ele está
vinculado tratem de um aprofundamento de contexto e de diagnósticos sobre a
segunda metade do século, mais precisamente a partir dos anos de 1960, propõe-
se, primeiramente, um resgate histórico do início do século, que servirá de base para
entender como se constrói um contexto conflitivo e de questões que vão se tornando
demanda urbana e se localizarão posteriormente como um impulso à necessidade de
instrumentalizar o planejamento da cidade.

Para além das questões e/ou conflitos urbanos também nos deparamos com uma
demanda do dito “progresso”, ideia amplamente difundida nesse contexto de
modernização das cidades no século XX. Mais do que um conceito, podemos
considerar o progresso como uma “linha discursiva” (SILVA, 2006) com uma força
simbólica que será comum e servirá de norte para a elaboração e montagem dos
planos interventores ao longo do século. Nos deparamos com um certo modelo
integrador, que podemos ler como a junção entre a construção de uma modernidade
atrelada a um discurso ideológico, representativo das elites locais. A cidade
produzida, a que estamos nos referindo aqui, é a manifestação material de um
discurso progressista.

Identificamos que a cidade de Natal levou os primeiros planos e/ou traçados


planejadores do início do século, Traçado Polidrelli (1901-1904) e Plano Palumbo
(1929), como balizadores legais até pouco mais dos anos iniciais da década de 60.
No entanto, é exatamente pelo agravante do contexto de urbanização de crescimento
demográfico da cidade (os dados brutos da série histórica do IBGE indicam que a
cidade passou de 103 mil habitantes em 1950 para mais de 416 mil no Censo de
1980), em meio à consolidação do mercado formal de terras, ao financiamento e
produção estatal dos primeiros conjuntos, à conjuntura autoritária da ditadura civil e
à emergência de novas questões urbanas - dentre as quais a pressão por habitação
e ordenamento das “favelas”, que surge a necessidade de ordenamento e
planejamento e mesmo a criação de novas balizas legais para o futuro da cidade.

Esse esforço levaria à criação de novas secretarias, conselhos e institutos para dar
conta dessas questões. Assim, entre os anos de 1967 (com os estudos do escritório
Serete, coordenado pelo arquiteto Jorge Wilheim) e 1974 (promulgação da Lei
2.217/74 ) tem-se os primeiros passos para a elaboração de Planos Diretores para o
município, atravessados também pelo quadro de regulação e planejamento
administrativo, econômico e territorial fomentados pelo governo federal. Esses são
alguns dos elementos básicos que ajudam a compreender esse processo, que
culminaria tanto no Plano Diretor de 1974 quanto, principalmente, no de 1984.

O objetivo deste artigo, como parte de uma pesquisa mais ampla, busca organizar
as primeiras notas e hipóteses para investigar, reconstruir e problematizar, à luz das
perspectivas da história cultural urbana e de uma história intelectual do
planejamento, os debates, formulações, tradições e filiações teóricas e de prática
urbanística que secundam a elaboração desses instrumentos e marcos legais.
Podemos analisar assim os planos diretores também como uma saída síntese de
debates mais amplos.

Para tanto, busca-se cruzar também as questões mais contextuais locais com a
dimensão nacional das questões urbanas que foram emergindo desde o início do
século e evoluindo de forma que tornaram-se problemas a serem enfrentados e
documentados nestes planos que farão parte de uma outra fase do planejamento
urbano. Retoma-se então, num primeiro momento, uma periodização geral, cruzando
os estudos de Villaça (1999) com Leme (1999), clássicos neste esforço de organizar
as fases do planejamento urbano no Brasil. Junto a estas fases discutiremos os
rebatimentos da circulação das ideias de modernização na cidade de Natal até chegar
na década de 1960, na qual aprofunda-se o contexto de transição para a urbanização
e apresentando em seguida o estudo de caso com os planos SERETE (1967) E PLANO
DIRETOR DA CIDADE DE NATAL (1974). Nesses entremeios discutiremos também
como a ideia e necessidade de progresso influenciou a história do nosso
planejamento.
OS PRIMEIROS PASSOS DO PLANEJAMENTO URBANO NO BRASIL: DO
EMBELEZAMENTO AOS SUPERPLANOS

Villaça (199) em um conhecido artigo intitulado “Uma contribuição para a história do


planejamento urbano no Brasil” faz uma síntese das fases pelas quais passaram os
“planos urbanos” brasileiros desde 1897 até os anos 90. Ele vai trabalhar neste
estudo com a ideia de Planejamento strictu sensu, cuja definição está relacionada
exatamente à elaboração de planos. O conceito ampliado deste seria o Planejamento
urbano latu sensu que englobaria: planejamento strictu sensu, o zoneamento, o
planejamento de cidades novas e o urbanismo sanitarista. Se cruzarmos o texto de
Villaça com textos do livro “A formação do pensamento urbanístico no Brasil: 1895-
1965”, de Maria Cristina da Silva Leme, é possível esboçar uma divisão geral (e
aproximada) das etapas pelas quais o planejamento urbano passou no Brasil, seriam
elas:

● 1ª fase – planos de embelezamento (1875 – 1930)


● 2ª fase – planos de conjunto (1930 – 1965)
● 3ª fase – planos de desenvolvimento integrado (1965 – 1971) <
nossa ênfase
● 4ª fase – planos sem mapas (1971 – 1992)

A primeira fase, denominada “Planos de embelezamento” tem seu início localizado


no ano de 1875 quando a então comissão de melhoramentos da cidade do RJ
apresenta seu primeiro relatório, no qual são utilizados pela primeira vez dois
conceitos-chave: o de plano e de conjunto-geral associados ao espaço urbano. Esta
fase tem como ideias chave: melhoramento e embelezamento, as quais são baseadas
nas intervenções urbanas com pretensões científicas que se iniciaram no final do séc
XIX nas grandes metrópoles europeias, com o plano de extensão de Barcelona e o
Plano Haussmann, em Paris. Eram planos que consistiam basicamente no:
alargamento de vias, erradicação de ocupações de baixa renda nas áreas mais
centrais, implementação de infra-estrutura, especialmente de saneamento, e
ajardinamento de parques e praças (VILLAÇA, 1999; LEME, 1999). Leme (1999)
também cita a criação de uma legislação urbanística nesses planos, bem como a
reforma e reurbanização das áreas portuárias. Além disso, geralmente se limitavam
a intervenções pontuais em áreas específicas, na maioria das vezes o Centro da
cidade.
Em Natal: de Polidrelli à Palumbo

Em Natal, marcam esta primeira fase dois importantes momentos na articulação do


planejamento no início do século, são eles: O traçado Polidrelli (1901-1904) e o Plano
Palumbo (1929).
Pela resolução nº 55 em 30 de dezembro de 1901 foi criado o terceiro bairro de Natal:
denominado Cidade Nova. Num discurso afinado com as regras de higiene e
sanitarismo que dominava à epoca, a lei municipal providenciou uma nova orientação
para as ruas, dando-lhes novos nomes e ordenação, grande largura das avenidas e
ruas transversais, separação das casas, dentre outras medidas sempre justificadas
com base na ideia de limpeza e higienização da cidade. A elite, antes monarquista
agora republicana, buscava consolidar seu poder político e econômico adaptando-se
à nova realidade brasileira, sendo assim, o modelo de cidade desejado era aquele
que melhor expressasse os novos tempos 1.
Além de superar o traçado irregular da antiga cidade colonial, a cidade nova traria
o benefício da auto-segregação para as classes dominantes, as quais poderiam
proteger-se do contato com uma cidade “doente”. Em 1904, é feita a
complementação e conclusão pelo 2
agrimensor italiano Antonio Polidrelli mostrada
na figura 1. É evidente que esta intervenção nos fala um pouco sobre os primórdios
da segregação espacial na cidade de Natal, pois além de tudo, a nova extensão da
cidade trazia também a novidade da expropriação de moradores nativos e a criação
de um mercado de terras que favorecia políticos, comerciantes e industriários
pertencentes a grupos de elite3

1
Prefeitura Municipal do Natal. Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo. Ordenamento

Urbano de Natal: do Plano Polidrelli ao Plano Diretor 2007 / Secretaria Municipal de Meio Ambiente e
Urbanismo. – Natal: Departamento de Informação, Pesquisa e Estatística, 2007.

2
FERREIRA et al (2008), DANTAS (2003), SIQUEIRA (2014).

3
LIMA, Pedro A. de. A questão sanitária e o disciplinamento de Natal. In: SEMINÁRIO DA CIDADE

E DO URBANISMO, 5., 1998, Campinas. Anais… Campinas: PUC, 1998. 1 CD.


Figura 1: Plano Polidrelli com ampliação da cidade
nova (1904). Fonte: SEMURB apud Prefeitura
Municipal do Natal

Saltando alguns anos políticos na história chegamos aos anos 20, em uma Natal
com uma estrutura urbana mais consolidada e adensada. Foram configuradas as
primeiras normas de regulação do solo urbano, que davam continuidade às ações
higienistas dos períodos anteriores, como: adequação das residências à insolação e
ventilação, tamanho e forma das esquadrias. A sistematização dessas ações marca
um período que vai de 1920 a 1935.
Juntamente com a emergência dos saberes técnicos de engenheiros e arquitetos à
época surgia também uma nova classe de saberes que dominaria conceitos
importantes para as transformações de cunho higienista: a classe médica. Uma das
figuras de destaque nesse sentido foi o médico Januário Cicco, o qual escreveu em
1920 um livro intitulado: “Como se hygienizaria Natal”, em que apresentava o
estado sanitário dos bairros de Natal e possíveis soluções de cunho higienista, as
quais concordavam e tinham como exemplo outros países europeus como França,
Inglaterra e Itália.
Em 1929, assume o prefeito e engenheiro Omar O’Grady, o qual fomenta a
elaboração de um plano que guiasse o desenvolvimento de Natal. Para tal, contratou
o arquiteto formado pela academia de Belas Artes, Giácomo Palumbo para elaborar
o Plano de Sistematização de Natal, também conhecido como Plano Palumbo
(SIQUEIRA, 2014). A gestão de O’Grady deu bastante ênfase à pavimentação das
ruas, drenagem de águas pluviais, limpeza pública e embelezamento da cidade; e,
num segundo momento, preocupou-se em sistematizar todas as ações em um plano
urbanístico que ordenasse a ocupação e expansão de Natal (DANTAS, 1998).
Palumbo tinha a pretensão de expandir a Cidade Nova e implementar a ideia de
“zoning”, segundo influência americana, que nada mais era do que um zoneamento,
atribuindo funções para cada área da cidade.

Figura 2: Plano de Sistematização da cidade de


Natal (1929). Fonte: DANTAS, 1998.

No período pós planos de embelezamento, pouco mais de 30 anos, a cidade de Natal


passou por um período de lacuna “entreplanos” em que não houve nenhum outro
objeto legal com tentativa de intervir no urbano de maneira mais direta como havia
acontecido no início do século. Entre fins dos anos 1950 e a aprovação da Lei
3.175/84 (Plano Diretor de 1984), há um largo processo de reorganização das balizas
legais para o ordenamento e planejamento urbano da cidade de Natal que
aprofundaremos mais à frente.

O governo militar e os superplanos

As transformações que marcam o período de transição entre as décadas de 60 e 80


e consolidam uma sociedade urbano-industrial devem ser analisadas entre a crise, o
milagre econômico e a desaceleração da economia brasileira, período este que pode
se caracterizar como entre 1962 e 1980.
É interessante lembrar desse contexto porque a terceira e quarta fase do
planejamento da qual estamos tratando, que vai de 1965-1992 juntando os períodos
das duas inicia-se no bojo de uma virada para o regime ditatorial. Mas de que forma
exatamente os acontecimentos econômicos afetam o planejamento urbano? Durante
este período colocado como “milagre econômico" tem-se por parte do Governo Militar
uma clara ênfase e estímulo financeiro à elaboração de planos urbanos. É preciso, no
entanto, entender que, por se tratar de um período que tinha como características
uma forte centralização do processo de decisão e também uma repressão social e
política que incentivava a desmobilização, as demandas colocadas aos planos
diretores eram as que favorecessem a acumulação de capital e, na época, o
pensamento difundido de progresso era o desenvolvimento econômico.

É em meio a ascensão e consolidação do governo militar que surgem os superplanos,


os quais iriam unir as ideias de globalidade, sofisticação técnica e
interdisciplinaridade. Esses planos eram chamados também de Planos de
desenvolvimento integrado (PDDI) e visavam “o desenvolvimento social e econômico
do município bem como a sua adequada organização territorial” (VILLAÇA, 1999).
Segundo o autor, uma das principais características desses planos era o
distanciamento entre as propostas contidas nos documentos e a real aplicabilidade
das mesmas na prática. Por que será que isso aconteceu?

Primeiramente, existia um conflito entre propostas que eram cada vez mais
abrangentes e estruturas administrativas cada vez mais setorializadas e
especializadas. Esta separação gerava dificuldades e indefinições quanto à aprovação
dos planos, uma vez que até então estes eram da alçada do Executivo e, a partir da
incorporação de leis e recomendações das mais diversas naturezas, passaram a ser
também da alçada do Legislativo (VILLAÇA, 1999).Outra característica marcante
destes planos era de ser uma prática dominada por especialistas de escritórios
privados contrapondo-se à dinâmica passada (pensamento dominante de sucessivas
administrações). Havia um certo apelo em se contratar escritórios com profissionais
multidisciplinares com o argumento de que trazia mais base científica para o
planejamento e também o caráter integrado, o que na teoria faz sentido, no entanto,
na prática, o que se viu foram documentos enormes, com seus extensos diagnósticos
e trabalhos de campo serem relegados às prateleiras.

É justamente em cima da característica desses planos de serem elaborados a partir


de equipes que se propunham a estudar o espaço urbano a fundo que defendo
pensarmos o “fracasso” da aplicabilidade dos mesmos. Considerando uma realidade
em que o milagre econômico e as vias de desenvolvimentismo eram prioridade, uma
variedade de problemas sociais que passaram a fazer parte dos resultados obtidos
pelos estudos urbanos podia ser incompatível com o interesse das classes
dominantes, distanciando-se portanto da aplicabilidade real. Eis aqui a questão do
planejamento como instrumento mediador de um conflito de classes. Podemos supor
que quando a máquina não equilibra os interesses pende-se, pois, para a decisão que
não prejudique os donos do poder (não só político como financeiro).

NATAL E A NECESSIDADE DE PROGRESSO: POR QUE PLANEJAR?

E o progresso?
Com a Revolução industrial o termo progresso fundamenta-se, segundo Silva (2006),
não apenas como algo idealizado, mas como uma verdade científica. O referido
progresso seria um conceito no qual sua base norteadora seria sempre a pergunta:
como será o nosso futuro? Ele teria um guia, um conjunto de homens, destinados a
representar uma potencialidade inventiva e que teria como missão conduzir a
sociedade moderna rumo a um futuro melhor.
Assim, por representar interesses principalmente de uma classe dominante que está
interessada em uma “sociedade moderna”, não existe uma ideia hegemônica do que
seria o progresso, visto que o que é progresso para uns pode não ser para outros e
por isso esta noção é vista aqui por um viés ideológico, um termo relativista. Mesmo
porque estamos a colocar o progresso aqui como um fator determinante para o
discurso planejador e deve ser considerar que o planejamento se insere em meio a
um conflito de classes.
Nos havemos com uma certa ideologia do progresso (SILVA, 2006) pois, na medida
em que uma ideia ou representação que nasce por meio de um discurso da elite vai
evoluindo para as vias de fato através da conversão do plano da imaginação para o
“plano” da realidade. Assim, a ideia dos planos como documentação de ideias e
sobretudo de discursos vai ganhando força no sentido mesmo de registro do processo
de progresso.
Localiza-se as ações para o progresso na cidade de Natal com a República e os seus
ideários de modernidade e formação de uma nova elite que estava constituída de
uma mentalidade progressista aos moldes europeus. Essa tarefa foi entregue aos
novos intelectuais potiguares (bem como aos técnicos de fora, vide os planos iniciais
já detalhados) que retornavam a Natal e iam ocupar cargos públicos e assim gerir
jornais, incentivar a cultura, a boa arquitetura, tudo envolvido num amplo processo
que dá substrato as modificações físicas e estruturais que passaria a cidade dali pra
frente: pavimentação das vias, iluminação pública, bonde elétrico, teatro, cinema,
novo vestuário; elementos escolhidos no repertório modernizante das elites. Fica
claro então de quem partia a ideia de progresso e para quem também, e esse mesmo
sentido terá repercussões no direcionamento do planejamento. Em algum momento
será de valia perguntar: para quem, afinal, se está planejando?
Em 1909, Manoel Dantas profere uma palestra denominada “Natal daqui a cinquenta
anos” para os convidados da elite natalense. Com um texto sedutor ele descreve
Natal nos anos de 1959: radiante, monumental, funcionalmente dividida, com todos
os recursos da melhor tecnologia possível. A natureza da cidade seria apropriada pelo
Progresso, que dela faria surgir variadas opções de lazer e deleite. Em tal visão, Natal
não teria apenas os artefatos e tecnologias progressistas, mas seria um ponto de
convergência da própria civilização (SILVA, 2006). O autor analisa ainda que no
discurso de Dantas identificamos que a arquitetura, os novos transportes e as
máquinas seriam responsáveis por resolver os problemas que a cidade começava a
apresentar, mas que esta seria uma fugidía ida para um futuro descolado de
diagnósticos da realidade. Qual viria a ser então a Natal de 1959?

Natal nos anos 60: novas questões e necessidade de planejamento

Em termos de planejamento, a baliza de ordenamento urbano até o final dos anos


1950 ainda eram os planos urbanísticos elaborados nos anos 1920 e 1930 (Plano das
Obras de Saneamento de Natal, de Henrique de Novaes, de 1924; Plano Geral de
Sistematização, de Palumbo, de 1930, e o Plano Geral das Obras de Saneamento de
Natal, do Escritório Saturnino de Brito, de 1935, cuja inauguração das obras, em
1939, dotou a cidade de infraestrutura avançada e com capacidade de carga para
atender 100% da população e mais 10 anos de crescimento demográfico com folga,
não fossem as reviravoltas decorrentes do contexto da Segunda Guerra Mundial e os
impactos em Natal por conta da instalação das bases militares brasileiras e
americanas). Todos esses planos incorporaram e expandiram a lógica da malha
ortogonal da criação da chamada Cidade Nova pela intendência municipal nos
primeiros anos do século XX (Ferreira et al, 2008).

Clementino (1990) aponta que se pode apreender já dessa época a preocupação dos
governantes com o controle da expansão físico-territorial da cidade e que havia uma
certa “visão de futuro” por parte de quem controlava o Estado a nível local no sentido
de facilitar a captação de recursos externos a partir da formulação e implantação de
planos urbanísticos. Devemos apontar então a questão dos incentivos fiscais como
um importante fator para a industrialização de todo o Nordeste e consequentemente
para o município de Natal.
Adentrando outra questão chave, Angela Ferreira (1996) observa que a produção
imobiliária se desenvolve de maneira lenta como o próprio crescimento da cidade.
Até a segunda guerra não havia maiores incentivos para a construção de edifícios
destinados ao comércio e às residências. Por conseguinte, não era a expansão
imobiliária que provocava a necessidade de ordenamento físico da cidade, ao
contrário, segundo Clementino (1990) era a estratégia das classes dominantes em
alocar recursos externos e preparar a cidade para o futuro (ou para seu próprio
futuro/usufruto).

Clementino (1990) aponta a falta de condições da capital potiguar em abrigar a


atividade militar, principalmente em aspectos ligados ao abastecimento,
disponibilidade de moradias, infraestrutura urbana (transportes, hotéis, pensões),
custo de vida e defesa civil. A única exceção, praticamente, eram as redes de
abastecimento de água e saneamento, que davam conta, ainda que de maneira
desigual, da capacidade de carga de toda a população. O problema é que a rede não
estava dimensionada para a pressão demográfica acelerada que se viu, com o
deslocamento de grandes contingentes militares em poucos meses.

A imigração, nunca superada, contribuiu para que a população da cidade


praticamente dobrasse, passando de 55 mil habitantes em 1940 para 103 mil em
1950 (aumento de 88,2%). Este incremento segue expressivo, embora não tanto,
pelas décadas seguintes. Isto se deve, segundo Clementino, por dois motivos: a
fixação e continuidade de tropas e atividades militares das três armas das forças
nacionais e o novo papel, mais dinâmico e participante, que Natal assume no contexto
da economia nacional a partir de então. É importante destacar que havia um clima
do que pode ser chamado de “falso progresso”, devido aos investimentos
desordenados no urbano, à revelia das necessidades locais.

Ferreira (1996) destaca alguns momentos importantes relativos ao processo de


constituição do espaço urbano e no tocante às décadas as quais estamos nos
debruçando. Pode se destacar que houve a formação de um mercado de terras e uma
intensa produção fundiária no final da década de 1940 e nas décadas de 1950 e 1960.
Identifica também a produção em grande escala de moradias através de conjuntos
habitacionais tanto sob encomenda do Estado e cooperativas como por meio do
sistema de incorporação imobiliária (até a primeira metade da década de
1980). Além disso, acontece a intensificação do uso do solo urbano por meio da
mudança no porte das construções, aumentando a densidade demográfica dos
bairros consolidados e substituindo antigas construções (o processo de verticalização,
iniciado ainda nos anos 1960, ganharia força a partir da segunda metade dos anos
1980).

Tem-se um apontamento para o despertar de um planejamento que nasce no


contexto nacional de redefinição do padrão de planejamento e de política urbana a
partir de 1964. A orientação para que se elaborassem, no âmbito dos municípios, os
PDDLI funcionava como um dos instrumentos de controle dos repasses de verbas
federais para os municípios, nos primeiros anos dos governos militares. Sob essa
orientação, foi elaborado o Plano SERETE - em 1968 -, reformulado e implantado
pelos planos de 1974 e 1984, respectivamente. Destaca-se ainda que, segundo
Ataíde (1997), nem o Plano SERETE nem o Plano diretor de 1974 revelaram-se
elementos estruturadores do espaço urbano de Natal. A autora defende que, ainda
assim, ambos assentaram bases teórico-metodológicas do modelo de planejamento
que norteou o Plano Diretor de 1984. Essa é uma das discussões que a nossa
pesquisa pretende aprofundar e matizar.

Estidos para o PLANO SERETE de 1967 4

Iniciando pelo PLANO SERETE, o seu criador Jorge Wilheim afirma que o urbanismo
estava sendo usado como estratégia para o desenvolvimento de Natal. Em fevereiro
de 1967, o Diário de Natal publica uma matéria a qual nos conta que o Prefeito Agnelo
Alves convidou os técnicos do escritório paulista SERETE, sob supervisão do arquiteto
Jorge Wilheim, a elaborar o primeiro Plano Diretor da Cidade do Natal, no formato de
Minuta de Lei, assim como o Código de Obras para controle e fiscalização das
edificações urbanas. Nos anos 1950 e 1960, Jorge Wilheim se notabilizara por
elaborar propostas em planejamento urbano para várias cidades brasileiras, inclusive
o de Curitiba em 1965. O então Prefeito Agnelo Alves acompanhou essa repercussão
e, pleiteando apoio financeiro junto à SUDENE, decide contratar o escritório SERETE
e contar com a supervisão técnica de Jorge Wilheim, visando estruturar o Plano
Trienal de Natal (1967-1970).

Agnelo Alves propôs à SUDENE um amplo conjunto de obras modernizantes para


Natal, tendo o Plano de Wilheim/SERETE como eixo principal. Segundo Agnelo Alves,
“através [do Plano] será definida a vocação de Natal, qual seu futuro econômico e
as potencialidades industriais, portuárias e rodoviárias” (Diário de Natal, 17 fev.
1967). Percebe-se que politicamente existia a intenção de se utilizar do planejamento

4
É comum que esta primeira tentativa de organização do planejamento seja amplamente conhecida
como PLANO SERETE (1967). No entanto, podemos interpretar que na verdade tratam-se de estudos
que começam em 1965 com a ambição de virarem um Plano Diretor. Como o PDN de fato só sairá em
1974, as formulações feitas pelo escritório SERETE no final dos anos 1960 se configuram melhor como
partes de um estudo que se concluíram apenas nos documentos posteriores.
como uma forma de potencializar e até de dar uma vocação para a cidade, inserindo-
a num contexto mais amplo de industrialização a nível regional, vide as gestões do
prefeito junto à SUDENE.

Encontra-se nos estudos preparatórios para a proposta de Wilheim algumas


informações importantes que nos permitem inferir um pouco do contexto social da
cidade à época. A cidade do Natal possuía 103,2 mil habitantes em 1950, passando
para 264,3 mil habitantes em 1970. Grande parte desse crescimento deu-se ainda
em decorrência do impacto socioeconômico da Segunda Grande Guerra (1939-1945)
na economia urbana natalense, gerando empregos e atraindo trabalhadores de todo
o Brasil. Após a desmobilização dessa economia voltada à Guerra, as repartições
públicas, órgãos militares e a posição de entreposto comercial para o interior do
estado do RN, continuaram a manter e dinamizar a expansão urbana da cidade até
os anos 1960. Natal ganha novos bairros, acirra a segregação socioespacial (Tirol e
Petrópolis como bairros da classe média e alta, Alecrim e Rocas como bairros
populares), consolida as favelas como uma realidade estrutural (Mãe Luiza e Brasília
Teimosa ocupando a orla de Natal no contexto pós-1945 e, antes, o Passo da Pátria,
existente desde fins do século XIX como espaço da pobreza, entre a Cidade Alta e o
Rio), impulsiona o mercado de terras (a partir de 1946).

Para elaboração da proposta de Plano Diretor de Natal (1968-1969), o escritório


SERETE realizou pesquisas de campo, com dados coletados pela equipe em 1967.
Observando algumas informações divulgados à época, vemos que aproximadamente
50% da população pesquisada não trabalhava ou tinha ocupações eventuais (sem
carteira assinada); dos que trabalhavam, 62% se deslocavam para Ribeira, Cidade
Alta ou Alecrim, à pé (41%) ou de ônibus (36%), e poucos de carro individual (14%);
quando perguntado o que faria a família se mudar de endereço, 53% responderam
pela casa própria, 22% por ascensão social e 10% se fossem forçados. Estas
informações constroem um retrato urbano que revela uma intensa centralidade
(Ribeira, Cidade Alta e Alecrim), com uma mobilidade basicamente de ligação
Alecrim-Centro, com uma elite urbana que morava em Petrópolis, Tirol e Cidade Alta,
e com presença instalações industriais e comerciais na Ribeira e Alecrim (Diário de
Natal, 26 nov. 1967, p. 6).

Assim, as informações levantadas pelo escritório SERETE indicaram para Jorge


Wilheim a necessidade de ligação viária entre os setores centrais (Centro Histórico e
praias), com os bairros populares (Alecrim e Quintas), por meio de um sistema de
circulação que continuava a malha ortogonal delineada pela Intendência Municipal
entre 1901 e 1904 e consolidada pelos planos urbanísticos dos anos 1920 e 1930,
sem inversões ou grandes obras. Mas a proposta elencada (não foram localizados os
documentos originais de 1967-1968)5 e discutida nos jornais da época, indica
também uma preocupação com a estrutura de fiscalização e controle das edificações,
associada a um controle ambiental, isto é, do movimento das dunas que compõem o
importante cordão de vegetação à leste (hoje, o Parque das Dunas, um dos maiores
parques urbanos brasileiros, com mata atlântica remanescente) e sua vegetação
fixadora, além das lagoas existentes, importantes ademais para o sistema de
abastecimento da capital.6

Em termos de sítio ambiental, as dunas (que o importante intelectual e antigo


intendente municipal Manoel Dantas chamou de “perigo iminente”, devido a
possibilidade de seu deslocamento sobre Natal), apareciam como elemento mais
significativo, seguido das lagoas naturais e da orla marítima. O levantamento
Wilheim/SERETE revelou três preocupações básicas, sendo, a) a proteção da
paisagem (o olhar para as praias urbanas), b) o uso da infraestrutura para mitigar
os efeitos socioambientais; e c) o dinamismo de opções de emprego e renda, por
meio da industrialização.

A proteção da paisagem da orla marítima decorria da recente “descoberta” do turismo


de sol e mar, com a inauguração do Hotel Reis Magos em 1965, cuja construção foi
viabilizada pela gestão do governo estadual de Aluísio Alves, irmão do então prefeito
Agnelo Alves. Emerge claramente aí a ideia de proteção de ambientes cênico-
paisagísticos, em alguns pontos, como na Av. Getúlio Vargas (com vista às praias do
Forte e Praia do Meio) e a melhoria das calçadas e ruas de acesso às praias pela
Avenida Circular.

No que se refere às proposições para a estruturação físico-espacial do município, o


Plano Serete era considerado como bastante abrangente. Constituía-se em um
documento que não pretendia apenas orientar os processos de uso e ocupação do
solo através da legislação, mas também definia projetos de intervenções urbanísticas
para algumas áreas da cidade consideradas prioritárias do ponto de vista social, ou
outras identificadas como pólos geradores de desenvolvimento econômico do
município (Ataíde, 1997). Entre esses objetivos, há que se destacar as referências
ao reconhecimento das diferenças espaciais e socioeconômicas existentes na cidade.

5
Já obtivemos acesso a alguns documentos da época porém a pesquisa ainda vai avançar no
processamento da documentação
6
Importante registrar que o arcabouço jurídico de proteção ambiental vai, apesar das dificuldades, se
estabelecer com clareza entre 1974 e 1994, servindo como baliza para as lutas sociais e ambientais de
defesa das áreas de proteção ambiental e de interesse social desde então (cf. Costa, 2011, e Ataíde,
2013). Não à toa, esse arcabouço se encontra outra vez sob fogo cerrado no atual processo de revisão
do Plano Diretor de Natal, iniciado em 2019 e que segue até hoje.
Nesse sentido, quando se refere ao projeto para o bairro de Mãe Luiza, por exemplo,
o plano prevê uma quebra da homogeneidade dominante na classificação funcional
da cidade. Nesse caso, de uma certa maneira, Ataíde (1997) comenta que ele tentou
romper com a orientação dominante no país, na década de 1960, especificamente
quando se tratava de projetos de intervenções em favelas que eram orientados pela
ideia da erradicação através da remoção7.

Ao propor a urbanização da favela de Mãe Luiza, o plano antecipa uma atitude ou


ação governamental que veio a se difundir com mais firmeza somente a partir da
segunda metade da década de 1970. Essa orientação, entretanto, estava muito mais
vinculada às possibilidades de adequação físico-espaciais da área onde estava
assentada a favela de Mãe Luiza, aos padrões ideais de ocupação do solo definidos
pelo Plano, do que às necessidades e práticas concretas e cotidianas do lugar. Essa
compreensão torna-se mais visível quando o autor do plano explicita as razões da
remoção da comunidade de Brasília Teimosa (uma atitude contrária a que foi tomada
em relação a Mãe Luiza) para os lados (os vazios) do recém construído conjunto
habitacional da Cidade da Esperança. Segundo Wilheim (1977), as condições de
ocupação de Brasília Teimosa, caracterizada pela alta densidade e pela inexistência
dos recuos frontais nas residências, dificultavam a implantação de uma proposta de
remodelação da área segundo os padrões definidos pelo Plano, seja para o
parcelamento, seja para a ocupação do solo.

O primeiro Plano Diretor de Natal de 1974

Em cinquenta e oito artigos, o Prefeito Jorge Rodrigues sanciona o Plano Diretor de


Natal, primeiro Plano com características normativas abrangentes, com estrutura
legal baseada em objetivos, princípios, instrumentos, órgão de planejamento,
sanções e dispositivos transitórios. Os mapas em anexo não eram desenhos
propositivos de como Natal deveria ser, em futuro próximo, mas se constituíam como
uma tentativa de reconstituir o que Natal era em 1974, incluindo áreas vazias
propícias ao uso, malha viária, orla marítima e dunas.

Logo nos primeiros artigos, o PDN/74 assevera seu compromisso com a proteção
ambiental, controle sobre o uso do solo, preservação dos monumentos e sítios
notáveis (o que viria ser entendido como Patrimônio Histórico), tendo como meta a
melhoria das condições de vida da população. O PDN/74 estava composto de duas
etapas: a) a primeira, os estudos elaborados e a minuta do projeto de Lei; b) os

7
Apesar desta leitura destaca-se aqui que estão acontecendo as primeiras experiências de urbanização
de favelas com o grupo Quadra, do Carlos Nelson dos Santos, no Rio de Janeiro.
projetos urbanísticos elencados no relatório da SERETE, a serem desenvolvidos pela
SEMPLA.

Figura 3: página inicial do Plano Diretor de 1974. Fonte: Natal (1974).

Segundo afirma Ataíde (1997), o PDN/74 consistiu numa regulamentação


simplificada das proposições do Plano SERETE e que, em termos teórico-
metodológicos, as proposições alinhavam-se a um modelo de planejamento e gestão
excludente, centralizado e autoritário que só seriam incorporadas de fato à Lei
3.175/84, ou seja, o Plano diretor seguinte.

No campo do Desenvolvimento social, propõem a criação de conselhos de bairro, com


participação da comunidade; coordenação das entidades oficiais e particulares de
assistência social; aumento racional da capacidade de matrícula escolar, implantação
de ensino técnico e profissional. Contempla a modernização administrativa, com
estímulos à profissionalização da gestão pública, do salário dos servidores assim
como dá parâmetros para os padrões de produtividade funcional.

De efetivo e de novidade, para a criação de uma estrutura institucional de


planejamento com algum nível de representação social, seria criado o Conselho
Municipal de Planejamento Urbano de Natal – CONPLAM. Composto por 12 membros,
entre técnicos, representantes do poder municipal, estadual, órgãos públicos,
autoridades militares, federação do comércio, conselho regional dos Engenheiros,
Instituto Histórico, entre outros. O CONPLAM representou uma “abertura” da
sociedade civil (mesmo que limitada e constrangida) para influenciar os processos
decisórios da Política Urbana. Durante os próximos vinte anos (1974-1994), o
CONPLAM teria um papel cada vez mais importante na definição de regras, normas
e aprovação de projetos arquitetônicos e urbanísticos para Natal (vide, por exemplo,
o conflito envolvendo a aprovação da Via Costeira e do Conjunto Cidade Satélite) 8.

Sobre a questão do CONPLAM, Ataíde (1997) observa que o órgão consultivo era
composto em sua maioria por setores institucionais e econômicos ligados ao poder
constituído, o que legitimava a implantação do planejamento centralizado. Além
disso, a autora ainda afirma que a separação entre a Política Urbana delineada pelas
ações de planejamento e das demais ações (habitação, transportes, saneamento e
outras) setoriais contribuiu para o estabelecimento de vícios corporativos e
clientelistas na definição das prioridades de investimentos, entre os níveis de poder
local e central.

Encontra-se também, em relação ao zoneamento, uma outra pista dessa


característica excludente e fragmentária. Nos artigos 5º e 6º da dita lei, Vidal afirma
que:

A destinação e as características de cada zona ou setor da


cidade deverão ser objeto de segura previsão, de modo que,
para defesa do mercado de imóveis e embaraço, de
especulações ilegítimas, não se venha rebaixar o nível
econômico da propriedade imobiliária, por falta de
homogeneidade e pela decorrente promiscuidade de prédios de
valores e funções diferentes na mesma área da quadra. (Art.
5º) (Vidal, 1994, p.93).

As áreas da cidade em cuja urbanização ou melhoramento


houverem sido investidas grandes somas pelo município,
estado ou união, deverão ter aproveitamento econômico que
possibilite a urbanização crescente dos terrenos e edificações
nelas situadas, oferecendo a devida compensação à Fazenda
Pública (Art. 6º) (Vidal, 1994, p.93-94)

No entanto, pelo caráter extremamente generalista do Plano em relação ao


zoneamento e uso do solo, foi necessário que logo em breve o Plano fosse resgatado,
reelaborado e reapresentado como Plano Diretor de Organização Físico-Territorial do
Município de Natal - Lei 3.175/84, que incorporou, além das disposições gerais de
intervenção no meio físico (não mais no “desenvolvimento socioeconômico e
administrativo da cidade”), as indicações para o zoneamento do uso e da ocupação
do solo e para o parcelamento (Ataíde, 1997, p. 120).

8
Essa importância permanece e gerará conflitos pós Estatuto da Cidade, com a definição do Concidade
e demais conselhos, etc.
Encontramos um destaque no plano para as indicações regulamentadoras em relação
à proteção ambiental. Cometia infração no PDN/74 quem desfigurasse a paisagem,
acelerasse processos de erosão de terras, ou promovesse o ressecamento do solo,
ou acúmulo de água, comprometesse o desenvolvimento das espécies vegetais,
prejudicando a drenagem do terreno; também na alteração das qualidades físico-
químicas e biológicas das águas, assim como desfigurasse as construções de
interesse histórico e construísse loteamentos sem autorização prévia.

O Poder Público municipal, com tais diretrizes, precisou criar setores de fiscalização
e aprovação de projetos, expandindo assim sua capacidade institucional; para tanto,
criou a Secretaria Municipal de Planejamento e setores internos de análise, parecer
e aprovação. O primeiro embargo de construção, por descumprimento da Lei
2.211/74, ocorreu em 1976 na praia de Ponta Negra, devido a uma obra residencial
em área não passível de ocupação. Mesmo sem as regulamentações posteriores, o
PDN de 1974 alterou a forma de relacionamento entre o Poder Público e o setor da
construção civil, que passou a considerar as linhas gerais expressas na Lei 2.211/74.

Embora os artigos do PDN/1974 não tenham sido regulamentados nos anos


posteriores, sua estrutura normativa, a ênfase na proteção ambiental, a pontuação
no controle no uso do solo (embora sem prescrições), na densidade demográfica e a
existência do CONPLAM, são contribuições relevantes aos Planos Diretores das
décadas seguintes. Nesse sentido, podemos apontar que o Plano Diretor de 1984 (Lei
Municipal n.3.175/84) foi resultado de um longo processo de regulamentação dos
artigos da Lei 2.211/74, ampliados e atualizados para a Natal de 1984.

CONSIDERAÇÕES SOBRE A LEITURA DE CIDADE BASEADA NO PROCESSO


DE PLANEJAMENTO ATÉ 1974: HERANÇAS E DESDOBRAMENTOS

Apreende-se que havia uma Natal, ao final dos anos 1960, com uma bagagem de
aceleração do crescimento populacional trazida pelo contingente militar na Segunda
Grande Guerra, porém que não tinha estrutura para abrigar tal mudança. A fim de
angariar mais recursos da SUDENE, o prefeito Agnelo Alves propõe um amplo
conjunto de modernizações tendo no Plano SERETE a orientação principal. As
preocupações identificadas no SERETE dizem respeito à questão da proteção da
paisagem, a um progresso sem descontinuidade e o aproveitamento das
potencialidades industriais, portuárias e rodoviárias. Um ponto que chama atenção
refere-se ao reconhecimento das diferenças sócio-espaciais. Pode-se ler a Natal da
época, segundo apontam os resultados do estudo SERETE, como uma cidade em vias
de maior estratificação social com uma forte característica centralizadora.
O SERETE parecia ter diferentes intenções quanto ao enfrentamento da questão das
favelas, apesar de já denotar um caráter seletivo, visto que se propunha a indicar a
urbanização de Mãe Luiza ao mesmo tempo que indicava a remoção de Brasília
Teimosa possibilitando inferir que a escolha por uma e não pela outra não tinha um
caráter exatamente de vontade de promover melhorias em relação às favelas no
geral, considerando as práticas cotidianas, e sim de adequação aos padrões já
definidos pelo Plano que evidentemente não consideravam áreas como estas como
parâmetro de prioridade. O caráter fragmentário e seletivo vai ficar ainda mais claro
no PDN/74 que, apesar de citar apenas de maneira geral as indicações para
zoneamento e uso do solo, deixa claro que deverão ter prioridade zonas da cidade
em que a urbanização já tenha tido grande investimento. Sendo assim, identificamos
um padrão de gestão do planejamento que vai tentar manter sempre as mesmas
áreas em crescimento em detrimento de outras que até então não tenham recebido
tanta atenção. Este padrão vai tomar como herança, os planos desenvolvidos no
início do século, os quais tinha como diretriz principal uma modernização para as
elites.

Há elementos que são sempre citados e continuarão sendo prioridade do


planejamento em documentos posteriores. A proteção ambiental é o principal deles.
Com o recente boom turístico e construção do Hotel Reis Magos surge a necessidade
de pensar a preservação das áreas de orla. Com isto percebe-se também que esses
estudos e planos iriam priorizar a questão da orla marítima, mas pouco diriam sobre
as zonas periféricas: quanto mais o planejamento se afasta da linha de praia, menos
detalhes, prescrições, orientações têm a dizer à cidade.. A proteção ambiental
(“setores verdes”, “áreas verdes”, “zonas de proteção ambiental”, são algumas
expressões recorrentes em todos os Planos) é uma marca presente e forte na
estruturação legal do PDN, desde o seu início, Ao mesmo tempo, há uma enorme
dificuldade do poder público municipal em delimitar, regulamentar, gerir e manejar
essas áreas especiais, sempre postergando a aplicação de instrumentos, embora
sempre avançando um pouco mais em relação ao Plano anterior. Pode-se dizer que
os grandes conflitos expostos nos Planos Diretores no geral estão relacionados à
capacidade de construção sobre as áreas ditas como de preservação – há uma
constante tensão em o que preservar e quanto construir sobre essas áreas.

Deve ser importante lembrarmos que o SERETE se identifica tanto no “tempo” quanto
por suas características com a fase dos Superplanos e assim como estes ficou
relegado às prateleiras no final dos anos de 1960 e embora tenha sido utilizado como
base para os Planos diretores de fato, vários de seus diagnósticos não são
aproveitados a um nível de aplicabilidade real de diretrizes. Se considerarmos como
um processo contínuo percebemos que questões emergem e continuam enquanto
outras somem, como a discussão sobre Mãe Luiza, por exemplo, que sequer chega
a ter alguma ênfase no PDN de 74. Enquanto isso, questões urbanas ambientais que
reforçam um caráter de desenvolvimento econômico (vocação turística) tendem a
ser mais evidenciadas. Podemos associar as características vistas a nível nacional,
mas também a uma ausência de articulação dos movimentos sociais exatamente
nessa época (consequência também das restrições dos governos militares), algo que
fará bastante diferença nos planos diretores seguintes.

O dito progresso colocado como ideologia dominante para impulsionar o


planejamento traz consigo uma característica de “modernização para as elites” isso
evidencia-se ao longo de todos os momentos importantes do planejamento da cidade.
Considerando os marcos que utilizamos como “instrumentalização do progresso”
percebemos que a história do urbanismo de Natal pode estar marcada não por um
planejamento que nasce por causa das questões sociais, mas por um interesse de
arrecadação que precisava devolver em forma de plano uma proposta que
acompanhasse os interesses desenvolvimentistas da época e também que entrasse
em consonância com os ideais modernizadores das elites, que carrega uma herança
ainda muito forte da ideia de embelezamento europeu dado no início do século. Essa
origem pode ajudar a explicar a forma com que a cidade a partir de então passa a
lidar com seus problemas urbanos, sejam eles de moradia, transporte, verticalização,
periferização etc.

REFERÊNCIAS
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Natal: o desafio para incluir, a exclusão que permanece. Dissertação (mestrado) -
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Departamento de Ciências Sociais,
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Séries documentais [Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional]

Diário de Natal. Natal, 1965-1985.

O Poti. Natal, 1965-1985.


A REFORMA URBANA NO BRASIL
Do Seminário de Habitação e Reforma Urbana (1963)
ao Estatuto da Cidade (2001)

LA REFORMA URBANA EN BRASIL


Del Seminario sobre Vivienda y Reforma Urbana (1963)
al Estatuto da Cidade (2001)

Práticas, processos e institucionalidades

ZERBINATO, Isabel Mayumi Garcia


Estudante de graduação em Arquitetura e Urbanismo na UFMG,
pesquisadora bolsista no Programa de Educação Tutorial (PET) Arquitetura;
belzerbinato@ufmg.br

• 1
RESUMO

Este trabalho pretende acrescer ao debate em torno da Reforma Urbana no


Brasil a partir da apreensão de sua trajetória ao longo da segunda metade do
século XX. O momento em que a questão urbana se torna candente nas
grandes cidades brasileiras, na década de 1960, corresponde à primeira
aparição expressiva da pauta da Reforma Urbana no país, com a realização do
Seminário de Habitação e Reforma Urbana (s.HRu) em 1963. Entre rupturas e
continuidades na construção da agenda, que enfrenta o período da ditadura
militar e sua parca política habitacional, a sua institucionalização é enfim
consumada na forma do Estatuto da Cidade que, em 2001, regulamenta o
capítulo de Política Urbana tratado na Constituição Federal de 1988. A
compreensão de que o processo de urbanização brasileira opera sob os
paradigmas do sentido colonial e da dependência histórica é fundamental para
que se possa alçar, de seu desenvolvimento histórico particular, a Reforma
Urbana enquanto uma verdadeira estratégia urbana na concepção lefebvriana.
Busca-se evidenciar o caráter popular intrínseco à construção da agenda da
Reforma Urbana no Brasil, o qual, apesar de presente em toda a sua trajetória,
se materializa na atuação e reivindicação dos movimentos sociais urbanos e,
no limite, da prática orientada ao urbano. A metodologia deste artigo abrange
revisão bibliográfica e análise documental, tem caráter descritivo crítico e
abordagem qualitativa.

PALAVRAS CHAVE Reforma Urbana; urbanização brasileira; dependência


histórica; movimentos sociais urbanos; prática urbana.

RESUMEN

Este trabajo pretende sumarse al debate sobre la Reforma Urbana en Brasil


desde la aprehensión de su trayectoria al largo de la segunda mitad del siglo
XX. El contexto en que la cuestión urbana se vuelve candente en las ciudades
brasileñas, en la década del 1960, corresponde a la primera aparición
expresiva del temario de la Reforma Urbana en el país, con la realización del
Seminario sobre Vivienda y Reforma Urbana (Seminário de Habitação e
Reforma Urbana - s.HRu) en 1963. Entre rupturas y continuidades en la
construcción del programa, que enfrenta el período de la dictadura militar y su
escasa política de vivienda, su institucionalización se consuma finalmente en
la forma del Estatuto de la Ciudad (Estatuto da Cidade) que, en 2001, regula
el capítulo de Política Urbana tratado en la Constitución Federal de 1988. La
comprensión de que el proceso de urbanización brasileño opera bajo los
paradigmas del sentido colonial y la dependencia histórica es fundamental para
plantear, a partir de su particular desarrollo histórico, la Reforma Urbana como
una verdadera estrategia urbana en la concepción lefebvriana. Busca resaltar

• 2
el carácter popular intrínseco a la construcción del programa de la Reforma
Urbana en Brasil, que, aunque presente a lo largo de su trayectoria, se
materializa en el desempeño y el reclamo de los movimientos sociales urbanos
y, en el límite, de la práctica orientada a lo urbano. La metodología de este
artículo incluye revisión bibliográfica y análisis documental, tiene un carácter
descriptivo crítico y un enfoque cualitativo.

PALABRAS CLAVE Reforma Urbana; urbanización brasileña; dependencia


histórica; movimientos sociales urbanos; prática urbana.

• 3
INTRODUÇÃO
A pauta da Reforma Urbana tem engendrado diversas mobilizações de denúncia e
enfrentamento às questões urbanas que se apresentam nas cidades brasileiras, de forma
cada vez mais acentuada. É evidente que, embora se verifiquem avanços e conquistas no
sentido do que propõe essa agenda, as condições de vida às quais está submetida a
maioria da população urbana do país ainda são de extrema precariedade, em especial
aquelas experimentadas pela classe trabalhadora nas periferias (MARICATO, 2015b;
ROLNIK, 2022). Reclama-se o resgate da trajetória da Reforma Urbana no Brasil, em seus
termos teórico e prático, a de forma a retomar a sua construção orientada à uma
transformação radical das cidades brasileiras.

É a partir do conceito de estratégia urbana, desenvolvido por Lefebvre (2001; 2002;


2016), que se pretende apreender a Reforma Urbana neste trabalho. Segundo o autor:

Em si mesma reformista, a estratégia de renovação urbana se torna ‘necessariamente’


revolucionária, não pela força das coisas mas contra as coisas estabelecidas. A estratégia
urbana baseada na ciência da cidade tem necessidade de um suporte social e de forças
políticas para se tornar atuante. Ela não age por si mesma (LEFEBVRE, 2001, p. 113, grifos
do autor).

Compreende-se aqui que a Reforma Urbana pode se tornar central na organização e


propulsão de lutas urbanas, no sentido à construção do poder popular. A partir da ruptura
com as formas de produção e apropriação do espaço capitalistas – inclusas as relações
sociais que as correspondem, que permeiam esses processos e neles se reproduzem –
ela se projeta em favor da autodeterminação dos sujeitos em sentido à sociedade urbana.
“Tal como a reforma agrária no decorrer deste século XX, a reforma urbana é uma reforma
revolucionária. Ela dá lugar a uma estratégia que se opõe à estratégia da classe
dominante” (LEFEBVRE, 2001, p. 139-140). Esse é o sentido que se atribui à Reforma
Urbana neste trabalho, que se quer acentuar ao longo de sua história no Brasil.

No entanto, essa construção só poderá se dar sob uma prática que reconheça as
contradições imanentes ao processo de urbanização capitalista, em sua expressão de
caráter dependente. A historicização dos processos de formação social latino-americanos,
que parte da compreensão do sentido colonial como apresenta Novais (2019), é
fundamental à construção da Reforma Urbana, da forma como se pretende apreendê-la
neste trabalho.

A América Latina esteve, desde o período colonial, submetida ao evolver capitalista que
se anunciava na Europa: o Antigo Sistema Colonial e a acumulação primitiva por ele
possibilitada foram condições centrais à conformação e consolidação desse sistema. A
agregação de novos territórios ao circuito econômico mundial se configura como
instrumental à reprodução e expansão do capital. “[...] [Esta é] a conotação do sentido
profundo da colonização: comercial e capitalista, isto é, elemento constitutivo no processo

• 4
de formação do capitalismo moderno” (NOVAIS, 2019, p. 87, grifos do autor). Sob o
capitalismo mercantil, todas as atividades empreendidas nas colônias – o tipo de
produção, seu ritmo e extensão – encontravam-se sob as determinações metropolitanas
e, no limite, ao sentido colonial (NOVAIS, 2019). Trata-se de investigar a urbanização
brasileira a partir do entendimento de que também a produção do espaço nos territórios
colonizados se determina segundo o sentido colonial. Busca-se compreender o processo
desde a totalidade que o determina, até que ele seja apreendido em sua especificidade,
a considerar suas implicações concretas na realidade do território em consonância às
particularidades da formação social brasileira.

A dependência histórica, conceito desenvolvido por Quijano (1978), abarca a


compreensão de que a emancipação formal dos países latino-americanos a partir do
século XIX não foi acompanhada de um rompimento com sua essência subordinada, que
remonta à colonização. Mantidos sob o tolho da dependência até a contemporaneidade,
os territórios latino-americanos apresentam características que se circunscrevem sob o
seu caráter dependente, como é o caso do fenômeno da primazia urbana, da falta de
integração entre os espaços urbanizados e seu desenvolvimento desigual (QUIJANO,
1978; SANTOS, 2020).

A partir desses conceitos, pretende-se investigar a trajetória da Reforma Urbana no Brasil


na segunda metade do século XX. A delimitação do período de estudo se pauta por três
momentos: o primeiro diz respeito às primeiras aparições do termo, com a realização do
Seminário de Habitação e Reforma Urbana (s.HRu) em 1963. Em sequência, tem-se o
regime da ditadura militar, em exercício entre 1964 e 1985, cujas políticas urbana e
habitacional foram centralizadas no Banco Nacional de Habitação (BNH). Por fim, trata-
se da redemocratização, marcada por uma gradativa abertura política de que se tem a
retomada popular das questões urbanas, por meio da organização da sociedade civil em
movimentos sociais urbanos, de que uma das resultantes é a incorporação da Reforma
nos aparelhos institucionais.

Esta pesquisa tem como principal objetivo evidenciar o caráter popular intrínseco à
construção da agenda da Reforma Urbana no Brasil. Pretende-se recuperar diferentes
conceituações atribuídas ao termo postas em debate ao longo de sua trajetória, para além
de apontar os papeis da intelectualidade, da institucionalidade e da luta popular nos
múltiplos cursos tomados pela agenda em sua construção.

Tem-se a compreensão de que os paradigmas do sentido colonial e da dependência


histórica são determinantes ao processo de urbanização brasileira, bem como da
produção capitalista do espaço como um sistema inerentemente contraditório. Isto posto,
supõe-se que a Reforma Urbana possa se apresentar enquanto alternativa concreta a
esse modelo – isto é, como estratégia urbana sob o termo lefebvriano (LEFEBVRE, 2001).

• 5
O artigo se estrutura em cinco partes, a contar com esta introdução. O próximo item
contextualiza o s.HRu e verifica seus resultados, a partir sobretudo da análise
documental. Dá-se prosseguimento com análises críticas à política urbana e habitacional
no período da ditadura militar e à passagem da pauta para a institucionalidade com a
redemocratização, nos terceiro e quarto itens, respectivamente. Neste último, a luta
urbana se mostra central ao debate e é, então, retomada nas considerações como chave
para a construção de uma Reforma Urbana da forma como se aponta ao longo deste
trabalho, como estratégia urbana: popular, consequente e radical.

O SEMINÁRIO DE HABITAÇÃO E REFORMA URBANA (s.HRu)


O processo de urbanização brasileira na primeira metade do século XX se caracteriza por
um vertiginoso crescimento demográfico e industrial no país, de que se verifica o
agravamento das condições de vida da população nas grandes cidades, em especial
aquelas experimentadas pela classe trabalhadora nas periferias (CAMARGO, 1976). A
questão urbana se apresenta, nesse período, em múltiplas facetas. Dentre elas, está a
desigualdade de acesso aos serviços e infraestruturas urbanos, que corresponde à uma
precarização generalizada das condições de moradia, acentuação da autoconstrução em
ocupações irregulares nas periferias metropolitanas e em regiões de risco ambiental
(KOWARICK, 1979; MARICATO, 1979, 2007). Esse apanhado pode ser compreendido sob
o que Bolaffi (1979) denomina como padrão de crescimento periférico das metrópoles.
Em mesmo sentido, para Maricato (1979), esse processo se traduz pela proletarização do
espaço. Ambas as definições estão contidas na compreensão que se constrói neste artigo
de uma urbanização dependente.

O problema da moradia, da forma como se manifestou em território brasileiro, torna-se


objeto central de diversos seminários e congressos de planejamento urbano na América
Latina, a partir da década de 1920. Naquele momento, “[...] emerge uma visão de
planejamento que incorpora a habitação como um direito, a política como intrínseca ao
processo de planejamento, o controle da especulação da terra urbana e o planejamento
na escala metropolitana” (FELDMAN, 2014, p. 131). De um lado, evidencia-se que os
problemas urbanos que efervescem nas grandes cidades latino-americanas se
assemelham por compartilharem de um passado colonial ibérico, que tem continuidade
com o paradigma de dependência histórica (QUIJANO, 1978). E, de outro, destaca-se a
emergência de uma percepção igualmente convergente entre os técnicos e profissionais
da área do planejamento dessas localidades, acerca desses problemas que se mostram
reconhecidamente comuns (FELDMAN, 2014).

Ainda segundo Feldman (2014), o Seminário de Habitação e Reforma Urbana (s.HRu),


realizado nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo em 1963 pelo Instituto Brasileiro de
Arquitetos (IAB), configura-se como momento chave de consolidação dessa nova agenda
de planejamento urbano latino-americano no Brasil. O s.HRu, que parte da compreensão

• 6
do problema da habitação enquanto central na análise das questões urbanas de seu
tempo, introduz no Brasil a pauta da Reforma Urbana.

O termo, já consolidado nos países centrais enquanto conjunto de modificações espaciais


de áreas deterioradas, assume outro caráter nos países periféricos em função da
experiência de implementação de uma lei de Reforma Urbana em Cuba, fruto do processo
revolucionário consolidado em 1959 (MONTE-MÓR, 2007). Na década de 1960 no Brasil,
em meio às mobilizações populares de apoio às chamadas reformas de base vinculadas
ao Presidente João Goulart (1961-1964), o termo se estabelece de modo a remeter à já
conceituada Reforma Agrária (BONDUKI, 2018).

A Reforma Urbana compreendia, segundo Bonduki (2018) um conjunto de medidas e


instrumentos de restrição ao direito de propriedade e de combate à especulação
imobiliária frente ao intenso crescimento urbano. Constata-se a maior abrangência do
termo, quando da apreciação da seguinte interpretação acerca do que nele estava
contido, para os intelectuais e profissionais da arquitetura progressistas, expressas pelo
arquiteto e membro do IAB no período, Wilheim (1964, p. 15):

[...] para o povo em geral, a sigla RU [Reforma Urbana] não se relaciona com as filas de
ônibus, as 4 horas de transporte diário, os atravessadores do abastecimento, as
inundações, a ausência de serviços públicos, precariedade de preços das habitações: não
se traduz enfim, pelo mal-viver de nossas cidades e suas possibilidades de modificação.
Mas, para nós, profissionais do planejamento, estas mazelas todas são precisamente os
itens que englobadamente se traduzem pela expressão reforma urbana.

Isto é, mais do que somente um conjunto de medidas e aparatos regulatórios, a


construção da agenda da Reforma Urbana se dá sob a compreensão da questão urbana
em sua totalidade enquanto cotidiana à população. A partir da percepção dos problemas
que a assolam, trata-se de construir um programa que busca romper com as causas
dessas mazelas. “A abordagem pretendida pelos arquitetos seria o entendimento de que
a questão [da habitação] devia extrapolar a visão do estrito espaço da casa. [...] Também
o alvo dessa preocupação seria a população que faz todas estas coisas terem sentido”
(AZEVEDO; FREITAS, 2014, p. 761). O problema habitacional não se encerra em si: ele
extrapola o caráter emergencial da demanda por moradia e corresponde, ainda, à uma
concepção mais totalizante a respeito da apropriação da cidade pelo conjunto da
população e de sua prática no e sobre o espaço, de que o urbano obtém o seu sentido. É
a partir da orientação da práxis social ao urbano (em sua virtualidade), porquanto práxis
urbana, que poderão estar concatenadas as lutas populares urbanas, frutos do cotidiano,
em vistas à concretização do direito à cidade (LEFEBVRE, 2001; 2002).

O caráter popular atribuído à agenda da Reforma Urbana, até este ponto, surge como
uma decorrência da elaboração conceitual e técnica promovida no s.HRu e assume, de
certa maneira, aspecto secundário – interpretação esta que se constrói a partir de

• 7
considerações posteriores realizadas por Wilheim (1964). Segundo o autor, houve uma
preocupação entre os participantes do s.HRu de que a Reforma Urbana se perdesse em
demagogia e reformismo. Ele então argumenta a favor da construção de um sistema de
pressão popular, antecedido de uma transposição do caráter técnico e conceitual do
programa apresentado para um linguajar dito mais simples e acessível, para que então a
população conseguisse associar a proposta da Reforma Urbana aos seus problemas
cotidianos. Ainda que se perceba essa limitação, não se pode contestar a presença da
questão popular no programa de Reforma Urbana apresentado na ocasião.

Parte-se, então, para uma análise do documento final do resultante do s.HRu, que se
subdivide em três seções: considerações, afirmações e proposições (IAB, 1963).

Em primeiro lugar, o s.HRu considera ”que o problema habitacional na América Latina


[...] é o resultado das condições de subdesenvolvimento provocadas por fatores diversos,
inclusive processos espoliativos a que se acham submetidos os países latino-americanos“
(IAB, 1963, p. 17). Compreendido como parte constituinte da dinâmica de arrocho salarial
frente aos valores especulativos da terra urbana, o problema da moradia é verificado com
o crescimento das chamadas “subhabitações”: as favelas, os cortiços, barracos etc.,
juntamente ao desequilíbrio da distribuição da infraestrutura urbana que privilegia as
regiões da cidade já mais abastadas. Ao caráter da urbanização brasileira, apontada como
vertiginosa e desordenada, atribuem-se o paradigma do subdesenvolvimento e o intenso
crescimento populacional que precede este período. Por fim, confere-se ao problema da
habitação papel significativo no baixo rendimento socioeconômico do país, em uma
perspectiva mais global (IAB, 1963).

Reafirma-se a consolidação das emergentes concepções no âmbito do planejamento


urbano latino-americano no Brasil (FELDMAN, 2014). Sobretudo, dá-se destaque à
compreensão do problema da habitação e, no limite, da questão urbana brasileira
enquanto tributários do tema mais abrangente do subdesenvolvimento. Isto é, não se
tem uma percepção dos problemas urbanos enquanto desajustes que contrastam com
um processo de modernização em curso, como argumentavam as teorias da
modernização predominantes na época (KOWARICK, 1977; SANTOS, 2013). Do contrário,
as considerações feitas pelo s.HRu apontam para uma real apreensão da questão urbana
de acordo com as determinações concretas de que é tributária uma formação social
capitalista e dependente.

Em prosseguimento, afirma-se:

1) que dentre os direitos fundamentais do homem e da família, se inclui o da habitação e


que sua plena realização, exigindo limitações ao direito de propriedade e uso do solo, se
consubstancia numa reforma urbana, considerada como o conjunto de medidas estatais,
visando à justa utilização do solo urbano, à ordenação e ao equipamento das aglomerações
urbanas e ao fornecimento de habitação condigna a todas as famílias; 2) que a habitação

• 8
é um elemento fundamental de padrão de vida, constituindo não apenas o abrigo físico,
mas também um fator condicionante de interação entre seus moradores no seio da família
e destes para com toda a sociedade; [...] 8) que é de grande importância para a política
habitacional a formação de uma consciência popular do problema e a participação do povo
em programas de desenvolvimento de comunidades (IAB, 1963, p. 19-20).

A questão do caráter popular atribuído à Reforma Urbana se afirma a partir do


reconhecimento da imprescindibilidade de a população incorporar à sua consciência a
questão da habitação enquanto política – sob o escopo de uma Reforma Urbana. Insiste-
se na interpretação de que a agenda supera o caráter exclusivamente institucional e
regulatório e se estende até os domínios da constituição do indivíduo em sociedade.
Percebe-se o entroncamento entre o direito à moradia e a Reforma Urbana a partir do
caráter global que ambos assumem: para além da garantia de qualidade de vida digna,
eles correspondem a uma mediação entre o indivíduo e a totalidade, a qual se estabelece
no e a partir do cotidiano experienciado no urbano.

Evidenciam-se, a seguir, algumas das proposições do documento, que se desdobram a


partir da identificação de uma necessidade de regulamentação dos princípios da política
habitacional e da proposta da Reforma Urbana. Prevê-se a criação de um órgão federal
central que coordene as políticas habitacional e urbana, sob o escopo de um Plano
Nacional Territorial. Ainda assim, especifica-se que no âmbito executivo deve ser
priorizada a descentralização do aparato institucional. Dentre as atribuições do órgão
centralizado figura o estímulo à indústria de materiais de construção e o desenvolvimento
de processos tecnológicos nacionais, a fim de baratear a produção habitacional a partir
da padronização e pré-fabricação. Figuram como propostas: noções de assistência
técnica, voltada especialmente para os conjuntos de “subhabitação”; regulamentação da
desapropriação de terrenos e imóveis por interesse social; transposição do planejamento
para a escala metropolitana, a fim de tratar de problemas comuns entre municipalidades
concentradas; e, por fim, a incorporação da Reforma Urbana à política agrária e de
desenvolvimento socioeconômico nacional (IAB, 1963).

Essas propostas – que abrangem instrumentos urbanísticos de regulação e enfrentamento


à especulação imobiliária, a concepção de assistência técnica e a metropolização do
exercício do planejamento urbano – são características da virada teórica em emersão na
América Latina nesse período (FELDMAN, 2014).

A POLÍTICA URBANA E HABITACIONAL NA DITADURA MILITAR: ENTRE


RUPTURAS E CONTINUIDADES
A consumação do golpe militar em 1964, ano seguinte à realização do Seminário,
configura-se como um ponto de inflexão crítica na construção da agenda Reforma Urbana.
Tem-se como ponto de partida as críticas traçadas à política urbana empreendida pelo
regime militar, realizadas por Monte-Mór (2007) e Bonduki (2018). Interessa a este

• 9
trabalho fazer alguns apontamentos sobre o principal instrumento de política urbana
adotado nesse período, o Banco Nacional de Habitação (BNH), bem como compreender
as continuidades e descontinuidades da trajetória da Reforma Urbana até a sua reaparição
expressiva no período seguinte, com a redemocratização.

A institucionalização do planejamento urbano nesse período concentra o problema urbano


na habitação, a toma como item isolado, ao invés de tratá-lo em sua totalidade
(BONDUKI, 2018; MONTE-MÓR, 2007). Assim se formulam os “problemas urbanos”,1
falsamente conduzidos pelos grupos hegemônicos a fim de orientar a consciência coletiva
à uma fragmentação da questão urbana (BOLAFFI, 1979). Segundo o autor, “Entre os
muitos problemas e necessidades que sempre afligiram a população dos maiores centros
urbanos do Brasil [...] a habitação popular é eleita pelo governo federal, em 1964, como
‘problema fundamental’” (BOLAFFI, 1979, p. 42). Isso se confirma com a implementação
do BNH em agosto de 1964. Segundo Rolnik (2009), são dois os principais eixos que
fundamentaram a sua fundação e atuação: a busca pelo apoio entre as massas populares
das cidades e o intento de estruturação da indústria da construção civil.

Quanto à primeira diretriz, vale resgatar a frase atribuída à primeira presidenta do BNH,
Sandra Cavalcanti, que afirma: “a casa própria faz do trabalhador um conservador que
defende o direito de propriedade” (CAVALCANTI, 1964 apud BONDUKI, 2018, p. 33). A
apologia à propriedade privada, para além de apelo popular, está para Monte-Mór (2007)
enquanto prática política e urbanística de caráter modernista progressista-racionalista2.
No processo de generalização da moradia enquanto mercadoria, que se expressa no
engodo da casa própria voltado às massas populares, está compreendido o espraiamento
das relações sociais de produção capitalistas sobre o espaço inteiro, anunciado por
Lefebvre (2016). Em outras palavras, Costa (2013, p. 176) afirma que:

Este espaço tecnicamente homogeneizado, o espaço abstrato, constitui-se em elemento-


chave da estratégia adotada pelo regime militar no processo de suporte à modernização a

1 Segundo Bolaffi (1979, p. 40), esses seriam os problemas “formulados não a partir das
características intrínsecas ao problema, mas a partir das necessidades da estratégia do poder
e das ideologias”. Essa percepção não ignora as condições concretas verificáveis na sociedade
e nas grandes cidades brasileiras, que se agravavam. Do contrário, o questionamento em
torno do que se é tomado como problema, isto é, sobre o qual se busca construir uma solução
por parte dos grupos hegemônicos e pelo Estado, revela a formulação falseada desse. No
termo entre aspas, da forma como foi amplamente utilizado pelos autores de referência deste
trabalho no período de estudo, está contido esse conteúdo crítico.

2 De caráter tecnicista e funcionalista, sob esse pensamento urbanístico está uma eficácia
industrial que se busca atingir por meio da operacionalização da cidade, que é tomada como
um instrumento de trabalho: a partir de uma análise que categoriza, classifica e fragmenta os
espaços, constrói-se a homogeneização dele sustentado por uma ordenação rigorosa, a da
produção (CHOAY, 2018).

• 10
economia e à tentativa de integração do território, estendendo as condições gerais de
produção e de reprodução do capital a todo o território nacional.

Para que se compreenda essa estratégia com relação ao setor da construção civil, recorre-
se à noção das crises de superacumulação do capitalismo: da tendência imanente às
crises do sistema fruto da oposição entre capital e trabalho, se destacam aquelas
engendradas por excedente de capital e/ou de força de trabalho (HARVEY, 2005). A
urbanização, como argumenta Harvey (2014), assume papel particularmente ativo na
absorção desse excedente e, portanto, é central ao desenvolvimento e manutenção do
próprio capitalismo. Para Lefebvre (2016), isso significa tomar a urbanização como
espécie de refúgio compensatório ou território suplementar de exploração em períodos
de recessão e crise do capital.

É evidente que a seleção da moradia enquanto “problema urbano”, a ser supostamente


solucionado pela política urbana militar, tem estreitos vínculos com o desenvolvimento
capitalista industrial no Brasil. “O ‘problema da habitação popular’ [...] não passou de um
artifício político formulado para enfrentar um problema econômico conjuntural” (BOLAFFI,
1979, p. 47). A ativação do mercado imobiliário por meio do BNH foi a principal maneira
adotada pelo regime para conter as pressões inflacionárias, sem deprimir a economia
(BOLAFFI, 1979). “Não poderia ser de outro modo no momento em que o regime
autoritário instalado dava uma forte guinada para a direita no processo de implantação
efetiva do capitalismo industrial no país” (MONTE-MÓR, 2007, p. 81). Destaca-se o
caráter instrumental que assume a moradia, enquanto mercadoria, na promoção do
desenvolvimento capitalista no Brasil nesse período.

A análise sobre os resultados da política urbana imposta na ditadura militar brasileira


demonstra que a produção habitacional do BNH se voltou ao atendimento da demanda
das classes médias, em detrimento das populações mais pobres, cujas condições de
habitabilidade enfrentaram forte agravamento no período de sua implementação
(BONDUKI, 2018). A instrumentalização dos centros urbanos para a efetivação dos
objetivos sociais, econômicos e políticos do regime se torna mais clara e intensificam-se
a dinâmica da especulação imobiliária, a tendência de concentração de infraestrutura
pública nos centros abastados em detrimento das periferias, as quais têm crescimento
populacional vertiginoso, e enfim, a segregação socioespacial (MONTE-MÓR, 2007).

A reconfiguração da política urbana e habitacional nesse período apresenta, todavia, uma


incorporação parcial e confessa de algumas propostas formuladas no s.HRu, aquelas que
dizem respeito à centralização da política habitacional e ao fomento à indústria de
construção civil nacional. Elas tomam forma com a centralização da política urbana no
aparelho do BNH acompanhado de medidas de investimento à produção privada de
construção civil e de materiais de construção. Na perspectiva de Bonduki (2018, p. 31)
“contraditoriamente, a profunda transformação imposta à força pelos militares criou um

• 11
ambiente favorável à implementação de uma política habitacional que pode incorporar
algumas das propostas surgidas no SHRU”. Compreende-se que a apropriação de
elementos do Seminário por parte do regime militar, antes de contraditória, realiza-se
apenas formalmente. Em si mesmos, o processo de centralização institucional da política
urbana à nível federal e o fomento tecnológico nacional empreendidos no período da
ditadura militar não significam a realização do ideário político do Seminário. O s.HRu, em
suas formulações, tem como premissa a submissão da agenda da Reforma Urbana à
elaboração de uma política de desenvolvimento socioeconômico nacional e carrega
evidente caráter político progressista. Uma vez posto o paradigma do
subdesenvolvimento enquanto ponto crítico que subsidia a interpretação da questão
urbana, compreende-se que ambas a centralização política e o incremento tecnológico da
indústria brasileira da forma como anunciada pelos arquitetos não podem se realizar,
senão, num cenário de rompimento com o paradigma da dependência e orientadas à um
projeto de soberania nacional.

Compreendida a atuação por parte do Estado acerca da política urbana no período militar,
parte-se para uma breve análise da perspectiva da categoria de arquitetos e urbanistas
progressistas, que outrora integrou o s.HRu em 1963. A leitura do texto Política urbana
e habitacional: Reforma Urbana, de autoria do arquiteto e político Arthur de Lima
Cavalcanti3 (1965), revela uma alteração do tom ao se tratar do tema sob a nova
conjuntura política, em que se consolidava o cenário de coerção e repressão. O corpo
editorial da Revista Civilização Brasileira, veículo de publicação do artigo, enfatiza em
nota precedente ao corpo do texto: “O autor desse trabalho [...] se restringiu com relação
à exposição por nós solicitada, ao aspecto eminentemente técnico do problema aqui
focalizado” (CAVALCANTI, 1965, p. 338). Interpreta-se essa ressalva como um recuo no
trato da agenda da Reforma Urbana com relação à forma como ela havia sido disposta no
s.HRu e uma redução de seu conteúdo à uma faceta formalmente técnica. Supõe-se que
isso se deu como forma de garantir e resguardar a repercussão das perspectivas da pauta
defendida pela categoria sob o constante receio à represália do regime.

A Reforma Urbana surge no discurso de Cavalcanti (1965) como uma revisão do direito
de propriedade, com objetivo de ordenar o crescimento urbano e combater a especulação
imobiliária. O caráter popular anteriormente atribuído a ela, explícito na compreensão da
necessidade da conscientização da população acerca de seu cotidiano nas cidades
enquanto ponto central à construção da agenda, não é abordado neste momento. Quanto
ao planejamento territorial e urbano: “Sua razão de ser é, em última análise, a utilização

3 Eleito deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro em 1963 – no mesmo ano em que
participou do s.HRu, como consta no documento final do Seminário (IAB, 1963) – o arquiteto
teve seu mandato interrompido em 1964, bem como os seus direitos políticos suspensos por
dez anos, às ordens do regime militar (CAVALCANTI, 1965).

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de todos os meios racionais pra o aproveitamento dos recursos materiais e técnicos,
sociais e humanos, a fim de proporcionar ao homem melhores condições de existência”
(CAVALCANTI, 1965, p. 355). Essa percepção, ainda que remonte a aspectos técnicos,
vai de encontro à concepção lefebvriana de estratégia urbana. Segundo o autor, ela
abrange também o emprego ótimo e máximo das tecnologias na solução da questão
urbana, a favor da vida cotidiana e em vistas da realização do urbano (LEFEBVRE, 2002).

Reproduzidos na revista em questão, encontram-se o Projeto de Lei (PL) 1.329, que


propunha a criação da Superintendência da Política Urbana (SUPURB), e a proposta de
criação do Conselho Nacional de Política Urbana (CONPURB), ambos de autoria do então
deputado Cavalcanti. As proposições, que têm como principal objeto a centralização da
política urbana em âmbito federal, partem da compreensão de que a política habitacional
e o planejamento físico territorial devem se integrar sob um escopo mais totalizante,
como propõe também o documento final do s.HRu. O Decreto que formalizaria o CONPURB
teria sido assinado pelo então Presidente João Goulart no dia 2 de abril de 1964, processo
que foi interrompido pela concretização do golpe militar no dia anterior (CAVALCANTI,
1965). Esse caso de impedimento da institucionalização da Reforma Urbana, em função
da nova cena política, configura-se como um claro sinal de ruptura em sua trajetória.

De um lado, as rupturas se apresentam no campo institucional operado pelo regime


militar – ainda que possam exprimir continuidades em sua forma, como da centralização
da política urbana e do reconhecimento da questão habitacional. De outro, a pauta da
Reforma Urbana percorre esse período e conserva o seu conteúdo, ainda que circunscrita
à uma formalidade técnica.

A RECONDUÇÃO DA REFORMA URBANA: REDEMOCRATIZAÇÃO, LUTAS


URBANAS E INSTITUCIONALIDADE
O final da década de 1970 foi marcado por grave instabilidade econômica, social e política,
enfrentadas pelo regime militar, bem como pelo agravamento da condição de vida da
população nas grandes cidades. Pode-se dizer que se dá prosseguimento à reprodução
do padrão periférico de crescimento das metrópoles, nos termos postulados por Bolaffi
(1979) ainda na década de 1970. Isso se dá em consequência de uma política urbana e
habitacional voltadas aos interesses do capital (BONDUKI, 2018; MONTE-MÓR, 2007).

Sob essa conjuntura, vislumbram-se indícios de abertura política e, ainda, a insurreição


de lutas populares aglutinadas nos chamados movimentos sociais urbanos. 4 Eles se

4 “Muitas vezes os assim chamados movimentos sociais urbanos têm um caráter nitidamente
policlassista, reunindo grupos díspares quanto à situação socioeconômica; em outros casos
[...] reúnem o que é normalmente chamado de classes populares, cujo denominador é a
situação comum de exclusão quanto a benefícios socialmente básicos. Varia também

• 13
constituíam, especialmente, por grupos sociais que compartilhavam de uma situação
comum de exclusão, que então reivindicavam o acesso aos bens de consumo coletivos
dos quais eram privados nas grandes cidades (KOWARICK, 2009). Também eram
compostos e construídos pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), que surgem a
partir de uma atuação orgânica das pastorais nos bairros proletários e periféricos; por
movimentos operário-sindicais; e por intelectuais, profissionais e universitários, dentre
os quais figuravam arquitetos e urbanistas (KOWARICK, 2009; ROLNIK, 2013; USINA,
2012). A luta por moradia digna se destaca dentre as reivindicações populares, manifesta
especialmente com o surgimento de ocupações organizadas de terra. Inaugura-se, assim,
um novo ciclo na história da Reforma Urbana no Brasil (BONDUKI, 2018).

O regime [militar], ao bloquear os canais institucionais de representação popular, através


de uma brutal repressão aos sindicatos, acabou estimulando involuntariamente formas de
união popular fora do espaço de trabalho, nos bairros e vizinhanças da periferia. [...] a
população começa a cobrar saneamento, educação, saúde, habitação, enfim a resolução de
problemas que afetam seu dia a dia. O espaço do cotidiano torna-se então um novo lugar
para a política [...]. Se até então os trabalhadores resolviam a questão da habitação na
clandestinidade e no anonimato, construindo na periferia com poupança e trabalho
próprios, as ocupações, passeatas e manifestações noticiadas nos jornais rompiam o círculo
de ferro que isolava a classe trabalhadora: sua reprodução social precisava ser debatida
publicamente e não podia mais ser escondida (USINA, 2012, p. 95).

Uma vez mais se faz evidente o caráter popular imanente à agenda da Reforma Urbana,
neste terceiro momento como figura ativa e determinante. A recondução da trajetória da
Reforma Urbana no Brasil é provocada pela luta popular, a partir da reivindicação da
garantia de condições mínimas à reprodução social nas grandes cidades, como a moradia,
o usufruto de infraestrutura e serviços de consumo coletivo etc., aspectos contidos no
cotidiano da população. (USINA, 2012). Compreende-se que para além do local de
trabalho, em que se promovem as formas mais frontais de exploração próprias do
processo produtivo, os territórios se tornam, em processo dialético, campo de reprodução
das relações sociais de produção capitalistas e espaços compreendidos como potenciais
de irrupção do descontentamento popular que nessas localidades se originam.

Cabe retratar que não se compreendem as condições macroestruturais como fatores de


um abstrato determinismo revolucionário, mas como conjuntura – nas palavras de
Kowarick (2009), “pano de fundo”, ou “palco”, segundo o Coletivo Usina (2012) – de
práticas e processos disruptivos quando esses correspondem à já mencionada situação
comum de exclusão.

enormemente a vinculação das lutas urbanas com o movimento sindical, malgrado o


trabalhador explorado ser também, via de regra, o habitante urbano espoliado” (KOWARICK,
2009, p. 65).

• 14
Deve-se avançar na concepção da estratégia urbana: “Só por essa via [da estratégia
urbana,] a prática urbana, a dos grupos e das classes, ou seja, sua maneira de viver, a
morfologia da qual dispõem, pode confrontar-se com a ideologia urbanística. Assim, a
contestação se transforma em reivindicação” (LEFEBVRE, 2002, p. 128). Quando a práxis
social é mobilizada em orientação ao urbano – o que, já se compreendeu neste artigo,
corresponde à constituição da estratégia urbana lefebvriana – pode-se transpor a
verificação do problema imediato do cotidiano. Isto é, apenas contestação da precarização
da vida da classe trabalhadora que se verifica nas periferias não garante a realização de
reivindicações no sentido que evoca Lefebvre (2002). Para tal, está implicada a
necessidade de haver um processo de conscientização da classe com base na
compreensão científica do fenômeno urbano – dever esse que não exclui, mas,
precisamente, implica na indispensabilidade dialética da prática para a teoria.

A agenda da Reforma Urbana no Brasil tem sua construção continuada uma vez
consolidado o processo de redemocratização no país, em contexto de intensificação da
crise instaurada no regime militar e de seu eventual encerramento em 1985. Sob uma
renovada conjuntura política e social, a pauta urbana, que já vinha se fortalecendo
especialmente a partir da luta popular, concentra-se em torno da proposição da Emenda
de Iniciativa Popular (EP) 63/1987, encaminhada para à Assembleia Nacional Constituinte
(Assembleia..., 1987). “[...] Ela [a EP] deu força política, pelo apoio popular, a um
conjunto de propostas que vinha sendo debatido desde o Seminário de Habitação e
Reforma Urbana, realizado em 1963” (BONDUKI, 2018, p. 103). É nesse contexto em que
surge o Movimento Nacional pela Reforma Urbana (MNRU), em 1987, quando também
protagoniza a formulação da Emenda. O documento, assinado por uma rede de
movimentos sociais e organizações populares, 5 tinha como principais pautas: a garantia
dos chamados direitos urbanos; a limitação do direito à propriedade e do direito de
construir; o cerceamento dos lucros na produção de infraestrutura urbana e moradia, que
deveriam ser de responsabilidade estatal; e a gestão democrática e participativa das
cidades (BONDUKI, 2018).

Por entre negociações e disputas políticas ocorridas na tramitação da Constituinte, mesmo


que uma parcela dos elementos propostos no documento redigido em favor da Reforma
Urbana não tenha sido contemplada, conquista-se a implementação de um capítulo
específico na Constituição Federal (CF) de 1988 que trata da Política Urbana. Dos grandes

5 “Mesmo com dificuldades políticas e deficiências logísticas [...], seis entidades nacionais –
Articulação Nacional do Solo Urbano, Movimento de Defesa do Favelado, Coordenação Nacional
dos Mutuários, Federação Nacional dos Arquitetos, Federação Nacional dos Engenheiros e
Instituto dos Arquitetos do Brasil –, todas com ramificações estaduais e municipais,
envolvendo centenas de associações, sindicatos e movimentos a elas filiadas ou não,
organizaram uma rede nacional que logrou obter em três meses, o apoio e a assinatura física
de 131 mil assinaturas” (BONDUKI, 2018, p. 102).

• 15
avanços obtidos com a promulgação dos Art. 182 e 183 da CF, destaca-se a garantia da
função social da propriedade, que se sobrepõe ao direito de propriedade e ao direito de
construir, acompanhada da apresentação de instrumentos urbanísticos como o
parcelamento compulsório e a previsão de aplicação de Imposto Predial e Territorial
Urbano (IPTU) progressivo (BRASIL, 1988).

O texto da lei, entretanto, demonstra algumas limitações, sendo a principal delas a sua
falta de autoaplicabilidade: seria mandatória a regulamentação dos dois artigos por ainda
outra lei federal (BONDUKI, 2018). Compreende-se que, “quanto mais tardia for a
densificação da função social da propriedade por instrumentos urbanísticos e ambientais,
mais difícil será a sua exequibilidade” (GAIO, 2015, p. 288). Essa procrastinação e
esvaziamento das propostas incorporadas à Constituição surgem, como estratégia de
classe, para beneficiar os setores privados da construção civil e do mercado imobiliário,
aqueles que seriam mais prejudicados pela sua devida regulamentação (GAIO, 2015).

Até que fossem regulamentados os capítulos da Política Urbana, na forma do Estatuto da


Cidade (2001), atravessou-se pouco mais de uma década em que a política urbana à nível
federal teve atuação irrisória, especialmente com a dissolução do programa basilar do
regime militar, o BNH, em 1986. As instâncias municipais, fortalecidas pelo processo de
descentralização dos aparelhos burocráticos vinculados à redemocratização e com a
retomada gradual das eleições, passam a preencher essa lacuna e se tornam as principais
mediadoras das demandas sociais para com a institucionalidade (BONDUKI, 2018). O
campo político autodenominado democrático-popular conquista a administração local de
algumas das principais capitais brasileiras e dá início a uma série de experiências
concretas de aplicação de alguns dos ideais da Reforma Urbana, que se tornaram
referência para a prática da gestão urbana no país (ROLNIK, 2013; MARICATO, 2015a).
Apesar de exitosas, em grande medida, essas experiências não puderam ser
implementadas senão frente uma ampla resistência a favor dos interesses imobiliários
em cada câmara legislativa e órgão executivo municipal, que alegava ausência de
respaldo jurídico à nível federal para a execução delas (BONDUKI, 2018).

Vale mencionar alguns desses casos exemplares: em Recife e, posteriormente, em Belo


Horizonte, as ocupações informais foram reconhecidas no âmbito do planejamento urbano
enquanto Zonas de Especial Interesse Social (ZEIS) ou Áreas de Especial Interesse Social
(AEIS), processo que é acompanhado de programas de reurbanização de favelas e
processos de regularização fundiária (ROLNIK, 2013; MARICATO, 2015a). Também na
capital mineira ocorre a elaboração e implementação do Orçamento Participativo,
experiência precedida pelo pioneirismo de Porto Alegre, enquanto parte de uma agenda
de gestão democrática e participativa (GOMES, 2005; AVRITZER, 2007). No município de
São Paulo foram promovidos projetos de produção de moradia por mutirão autogeridas
no centro da cidade, contra a lógica de periferização dos conjuntos de habitação social
(BONDUKI, 2018; MARICATO, 2015a; ROLNIK, 2015; USINA, 2012).

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O Estatuto da Cidade (2001) regulamenta, enfim, os pressupostos e instrumentos
urbanísticos da CF. O Estatuto é, para o Coletivo Usina (2012, p. 92) “uma lei progressista
e inaplicável”. Isto é porque, quando da sua promulgação, ficam subordinados os seus
instrumentos e concepções fundamentais à regulamentação municipal, como a
responsabilidade de definir o que configuraria a proclamada função social da propriedade
e quais casos seriam inadimplentes. Segundo Bonduki (2018, p. 135): “Na medida em
que os proprietários de terra e o setor imobiliário têm grande peso político no poder local
[...], esse dispositivo representou um empecilho ou, no mínimo, um retardamento, para
a implementação da reforma urbana”. Ou seja, uma vez mais a aplicabilidade da agenda
da Reforma Urbana, inscrita na institucionalidade, é prorrogada e sua efetivação minada.

Não há de se alongar o comentário acerca da política urbana brasileira recente, que


contempla a atuação do Estatuto da Cidade (2001), a criação do Ministério das Cidades
(2003), o período de elaboração massiva de Planos Diretores pelos municípios brasileiros
na primeira década do século XXI e a amplidão de seus desdobramentos contemporâneos
(BONDUKI, 2018; CALDAS, 2018). Para esta pesquisa, cabe sinalizar as principais
limitações e entraves dessa faceta da trajetória da Reforma Urbana, no campo legislativo
e institucional. Quando a agenda adentra esse, malgrado os avanços conquistados, sua
aplicação tende a ser solapada em função das disputas incorridas, de que os interesses
do capital prevalecem, de modo a reter a retomada popular da pauta.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Buscou-se, ao longo da exposição de três principais momentos da trajetória da Reforma
Urbana no Brasil no século XX, alçar o caráter popular presente em sua sentido. Ainda
em sua primeira aparição na década de 1960 consta a compreensão, dentre os
profissionais e intelectuais, da imprescindibilidade de estar incorporada a Reforma Urbana
na consciência popular. Atravessada por rupturas e impedimentos no período da ditadura
militar, a pauta se desloca para o campo da prática através da luta organizada e popular
de reivindicação por melhoria de qualidade de vida nas grandes cidades, travada pelos
movimentos sociais urbanos na década de 1980. O potencial vislumbrado nesse momento
em que se identificaram as questões cotidianas e o temário urbano em maior amplitude,
e de que a menção se faz honrosa, enfrenta ainda novos obstáculos quando da
incorporação da agenda à institucionalidade.

A partir do que se apresenta neste trabalho, há de se compreender que a Reforma Urbana


só terá como extrapolar o terreno do imediato e se encaminhar à concretização do direito
à cidade através da prática social voltada ao urbano. Persiste o argumento de que o
caráter popular, que obtém a sua razão nos domínios da vida cotidiana das cidades, é
central para a construção e realização da Reforma Urbana enquanto estratégia urbana na
acepção lefebvriana.

• 17
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• 20
A REVISTA FUNDAÇÃO JP E A TEMÁTICA DO PLANEJAMENTO
URBANO-REGIONAL EM MINAS GERAIS
FUNDAÇÃO JP MAGAZINE AND THE THEME OF URBAN-REGIONAL
PLANNING IN MINAS GERAIS
Eixo temático: Práticas, processos e institucionalidades

LACERDA, Gabriel do Carmo


Mestre em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ); Doutorando em Economia
(Cedeplar/UFMG)
gdclacerda@gmail.com
RESUMO

O presente texto se insere na literatura que tem retomado as experiências e


institucionalidades acerca do planejamento urbano-regional durante a ditadura
civil-militar brasileira. Aqui é estudada a Revista Fundação JP, editada pela
Fundação João Pinheiro (FJP) – instituição criada em 1969 para produção de
estudos e estatísticas que auxiliassem o desenvolvimento mineiro – durante a
década de 1970, quando a temática se organizou e consolidou no aparelho
estatal mineiro.O estudo das publicações acerca da temática do planejamento
urbano e regional na Revista Fundação JP é ilustrativo, pois demonstra as
mudanças de enfoques dado o contexto mineiro e nacional, a pluralidade de
referenciais teórico-metodológicos, os debates acerca dos caminhos tomados
e futuros da política urbano-regional. Assim, seu estudo auxilia na
compreensão dos processos de consolidação institucional das questões do
planejamento e ação estatal no âmbito das políticas urbanas e regionais.

PALAVRAS-CHAVE Planejamento; Minas Gerais; Revista Fundação JP;


instituições

ABSTRACT

This paper is part of the literature that has resumed the experiences and
institutionalities about urban-regional planning during the Brazilian civil-
military dictatorship. The Fundação JP Magazine is studied here, edited by
Fundação João Pinheiro (FJP), an institution created in 1969 to produce studies
and statistics that would help the development of Minas Gerais. We studied
particularly the 1970s, when the theme was organized and consolidated in the
state apparatus of Minas Gerais. The study of publications on the theme of
urban and regional planning in Fundação JP Magazine is illustrative, as it
demonstrates the changes in approaches given the Minas Gerais and national
context, the plurality of theoretical-methodological references, the debates
about the paths taken and the future of urban and regional policy. Thus, this
article study helps to understand the processes of institutional consolidation of
issues about planning and state action in the context of urban and regional
policies.

KEY-WORDS Planning; Minas Gerais; Fundação JP Magazine; institutions


INTRODUÇÃO
O presente trabalho se insere na recente literatura que tem buscado reavaliar as
trajetórias de institucionalização e ação das políticas urbano-regionais durante o período
da ditadura civil-militar brasileira. Essa literatura tem revisitado tanto as iniciativas
federais – como o Serfhau, CNPU e CNDU (FELDMAN, 2021; FARIA, 2019) – até as
experiências estaduais (VERRI, 2014) e locais (FREITAG; FARIA, 2021) de repercussão
dos planos elaborados no período. Os trabalhos têm destacado os efeitos de longa
duração, seja de implementação incremental dos planos locais (FERREIRA, 2007), seja
de pioneirismo teórico-metodológico dos trabalhos (RAMALHO, 2021), seja de implicações
de estruturação espacial regional e estadual dos planos regionais (TAVARES, 2021).
Nesse sentido, a Revista Fundação JP, lançada em 1971, é uma fonte privilegiada para
as discussões acerca das metodologias e ações de planejamento urbano, regional e
metropolitano, tanto mineiro quanto nacional, durante os anos 1970. Nesse sentido, a
apresentação de sua primeira edição salientou sua função no “labor de promover o
desenvolvimento econômico e social do Estado [de Minas Gerais]” (FJP, 1971a, p.1).
Assim, o papel da revista foi definido “pela divulgação de estudos ou pesquisas e pelo
incentivo a iniciativas de apoio ao Poder Público e ao Setor Privado no sentido do
equacionamento dos problemas de interesse de Minas Gerais e do País” (FJP, 1971a, p.1).
A apresentação seguiu retomando as funções básicas1 a serem desempenhadas pela
Fundação João Pinheiro (FJP), criada em 1969, além de sumarizar o conteúdo da sua
primeira edição.
O conjunto dos trabalhos desta primeira edição – que, na verdade, foram elaborados pelo
Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais (BDMG) e pelo Conselho Estadual de
Desenvolvimento (CED) com assessoria do Instituto Latino-Americano de Planificação
Econômica e Social (ILPES) – remetem ao final dos anos 1960 e início da década de 1970.
A primeira edição envolveu um conjunto de textos que pretenderam situar as
características mais relevantes da economia mineira e delinearam diretrizes que
possibilitassem uma elevação das taxas de crescimento econômico estadual. Desta forma,
os textos colaboraram para a formulação de uma estratégia de desenvolvimento que
passaria, a partir de então, a ser responsabilidade da FJP.
A compreensão do papel da FJP e, consequentemente, da sua revista se insere num
horizonte mais amplo de montagem institucional estatal estadual no sentido da
industrialização e modernização do estado de Minas Gerais frente ao seu atraso relativo

1 A Lei 5.399 de 12/12/1969, que institui a FJP, definiu as seguintes cinco finalidades: 1)
planejamento do desenvolvimento estadual envolvendo estudos, pesquisas, programação
econômico-social, inclusive estudos de oportunidades de investimento; 2) estudo, pesquisa,
divulgação e aplicação de métodos e técnicas de organização racional do trabalho e
processamento de dados por sistemas mecânicos, eletromecânicos e eletrônicos; 3) execução
de serviços de geografia e estatística; 4) execução de projetos de pesquisa e prestação de
serviços no campo de tecnologia básica e social; e 5) ensino, por meio de cursos afins com as
atividades mencionadas nos itens anteriores.

• 1
em relação ao Rio de Janeiro e, particularmente, a São Paulo, manifestado, sobretudo,
na intensa emigração ao longo das primeiras seis décadas do século XX (GODOY, 2009;
PAULA, 2017; BRITO; SOUZA, 1995). A chamada “perda de substância” da economia
mineira ensejou diversas ações2 das elites dirigentes mineiras (DULCI, 1999), tendo,
inclusive, como marco inicial moderno a mudança da capital estadual de Ouro Preto para
Belo Horizonte, que possuía demarcado sentido geoeconômico de articulação das diversas
atividades produtivas arroladas nas diversas regiões do estado (SINGER, 1977; LACERDA,
2019).
A autenticidade na construção deste aparelho estatal e algumas singularidades – e.g. o
pioneirismo do desenvolvimentismo mineiro com João Pinheiro – já foram amplamente
discutidos pela literatura (DINIZ, 1981; CINTRA; HADDAD, 1978; SIQUEIRA, 2007;
PAULA, 2004;2017). Mais raros, no entanto, foram os estudos das políticas e ações
setoriais, como, por exemplo, as políticas urbano-regionais. Estas visavam enfrentar a
desigualdade estruturante do espaço geoeconômico mineiro, sendo, inclusive, uma das
razões centrais para uma ação precoce do Estado, bem como do desenvolvimento de
políticas industriais espacialmente específicas para combater as desigualdades regionais.
Entretanto, antes da estruturação de políticas urbano-regionais, diversas ações
“indiretas” tiveram efeitos espaciais marcantes, seja para desarticulação interna –
notadamente o período da “era ferroviária” (BATISTA; BARBOSA; GODOY, 2012) –
quanto para articulação interna do estado – em especial, a “era rodoviária” sob ação do
DER-MG (LOPES; GODOY, 2019), bem como a política de construção de hidroelétricas
pela Cemig (CEMIG, 1971). Contudo, apenas na segunda metade dos anos 1960, com a
criação da Comissão de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha (CODEVALE), em
19653; a estruturação do Conselho Estadual de Desenvolvimento (CED); da
Superintendência de Desenvolvimento da Área Mineira do Polígono das Secas
(SUDEMINAS), em 19664; e a criação da Companhia de Distritos Industriais (CDI), em
19715, que se consolidaram meios de intervenção urbano-regional diretos.
Este conjunto, amparado, por um lado, do ponto vista estadual, com os repasses e
financiamentos do BDMG, os estudos de viabilidade industrial do Instituto de
Desenvolvimento Industrial (INDI), a oferta abundante de energia pela Cemig e pelo
sistema de Incentivos Fiscais6 (DINIZ, 1981), além da própria FJP, foram consolidados,

2 Outras ações relevantes foram o I Congresso Agrícola, Industrial e Comercial de 1903


(PAULA, 2004); a criação da Secretaria de Agricultura, Indústria, Comércio e Trabalho na
década de 1930 (DULCI, 1999); a instalação da cidade industrial de Contagem, 1942 (DINIZ,
1981); o Plano de Recuperação Econômica de 1947 (DINIZ, 1981); o Binômio Energia e
Transporte com a organização e criação do Departamento de Estradas e Rodagens (DER-MG)
e da Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig) (DINIZ, 1981); criação do BDMG, em
1962 (PAULA, 2017); e, finalmente, a institucionalização do Sistema Estadual de
Planejamento, em 1972 (Siqueira, 2001).
3 Lei nº 3764/1965
4 Lei nº 4133/1966 e Decreto nº 10023/1966, respectivamente.
5 Lei nº 5121/1971.
6 Lei nº 5261/1969.

• 2
em 1971, com a estruturação do Sistema Estadual de Planejamento 7. E, por outro, pelo
contexto nacional: de crescente desconcentração e transbordamento das inversões
industriais de São Paulo (CANO, 2007); da emergência da problemática das políticas
nacionais de desconcentração industrial (CANO, 2007) e do desenvolvimento urbano-
regional pelo Governo Federal (MONTE-MÓR, 1981); e pelos investimentos das empresas
estatais no interior do país (BACELAR, 2012), abriram uma janela de oportunidade para
diversas inversões industriais em Minas Gerais que, conforme as perspectivas da época
(BDMG/CED/ILPES, 1970; MINAS GERAIS, 1971), dentre as condições necessárias para
sua sustentação tinha-se a estruturação de uma rede urbana estadual. Assim, uma rede
urbana estruturada e equilibrada, pensavam a elites técnicas da época, seria a chave para
a consolidação da industrialização mineira, o que geraria a difusão das oportunidades de
emprego, consequentemente, a retenção da população migrante, e melhoria de qualidade
de vida dos mineiros (BDMG/CED/ILPES, 1970; MINAS GERAIS, 1971).

A PROBLEMÁTICA URBANO-REGIONAL NA FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO NOS


ANOS 1970
Para a devida compreensão do conteúdo produzido pela Revista Fundação JP se faz
necessário apresentar o próprio desenvolvimento da institucionalidade e organização da
FJP, bem como da conjuntura político-econômica estadual e nacional. Particularmente
interessa a trajetória institucional das políticas urbanas e regionais desempenhadas pela
FJP, que podem ser divididas em dois períodos. O primeiro, entre 1971 e 1975, foi
marcado pela estruturação de um segmento específico dentro da FJP voltado para a
problemática do planejamento urbano e regional. O segundo, entre 1975 e 1979, pela
consolidação e crescente prestígio da atuação da FJP no segmento de planejamento, além
de demarcada divisão de trabalhos conforme a escala e temática de planejamento.
A origem da temática urbano-regional remete ao Instituto de Pesquisa Econômica e Social
(Ipes), que funcionou entre o fim de 1970 e início de 1971 dentro da FJP, e tinha como
objetivos promover o planejamento e o desenvolvimento econômico-social mineiro,
sobretudo via convênios com o BDMG, o CDE e a Secretária Estadual da Fazenda (GOMES,
2022). A estruturação do Sistema Estadual de Planejamento, em outubro de 1971, que
incluiu a FJP como entidade vinculada, fez com que o Ipes, em 1972, fosse desmembrado
no Centro de Projetos de Desenvolvimento (CPD) e no Centro de Estudos Econômicos e
Urbanos (CEEU) (GOMES, 2022).
O CEEU ficou responsável pela confecção de estudos, pesquisas e projetos nas áreas
econômicas e de urbanismo. A sua existência perdurou até o final de 1972 quando, pelo
volume de trabalho, foi desmembrado, em 1973, no Centro de Economia Aplicada (CEA),
responsável pela área econômica, e no Centro de Desenvolvimento Urbano (CDU),
especializado na área de urbanismo (GOMES, 2022). Nota-se que esta estruturação

7 Lei nº 5792/1971.

• 3
seguiu pari passu a institucionalização inicial da política nacional urbana de âmbito federal
que, no contexto da ditadura civil-militar, envolveu o Serviço Federal de Habitação e
Urbanismo (Serfhau), de 1964, e, posteriormente, o Programa de Ação Concentrada
(PAC), de 1969, até desembocar na Comissão de Regiões Metropolitanas e Política Urbana
(CNPU), de 19748 (FELDMAN, 2021; LEME, 2019).
No plano das atividades desenvolvidas enquanto CEEU, ou seja, até 1973, a divisão
responsável pelos estudos urbanos (o Instituto de Pesquisas e Projetos Urbanos – IPPU)
participou de projetos de desenvolvimento urbano e regional além de Minas Gerais, em
Roraima e no Amapá. Posteriormente, quando se tornou CDU, desenvolveu estudos
específicos para as cidades históricas de Ouro Preto e Mariana, entre 1973 e 1974, bem
como, em parceria com o BDMG, estruturou o Programa de Desenvolvimento Urbano para
Minas Gerais, em 1973, voltado especificamente para cidades de porte médio nas diversas
regiões de Minas Gerais (GOMES, 2022). Importante frisar que esta política esteve
embebida no contexto do I Plano Mineiro de Desenvolvimento Econômico e Social
(PMDES), vigente entre 1972 e 1976, onde se salientou a importância de uma política de
urbanização, especialmente nas cidades consideradas polo de cada Região de
Programação9. No artigo consta que isso seria promovido pela implementação de uma
política de atração de investimentos industriais atrelada à descentralização administrativa
dos serviços públicos e do melhoramento do equipamento urbano (MINAS GERAIS, 1971,
p.12-16).
Concomitantemente, foram desenvolvidas ações voltadas para a Região Metropolitana de
Belo Horizonte pelo Plambel (Plano Metropolitano de Belo Horizonte), grupo instituído
dentro da FJP, em 1971, e tornado órgão autônomo a partir de 1974, com regulamentação
federal acerca das regiões metropolitanas (TONUCCI FILHO, 2012).
O segundo período se inicia entre 1975 e 1976 – em meio a nova reestruturação
organizacional da FJP, na esteira de transformação do CED em Secretaria de Estado do
Planejamento e Coordenação Geral10, no contexto de passagem do Governo estadual de
Rondon Pacheco (1971-1975) para Aureliano Chaves (1975-1979) – quando foi criada a
Diretoria de Planejamento, a qual o CDU esteve vinculado. O período também foi marcado
pela formulação do II PMDES, além saída da problemática metropolitana da FJP, com
autonomização do Plambel.
Do ponto de vista da divisão de trabalho – durante o Governo Aureliano Chaves, cujo
presidente da FJP, a partir de 1977, foi Antônio Octávio Cintra – a Diretoria de

8 Posteriormente no Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano (CNDU), em 1979.


9 Desde finais dos anos 1960 no âmbito do CED e suas parcerias (BDMG e ILPES) foram
desenvolvidas regionalizações além das zonas fisiográficas do IBGE. Um dos resultados, que
era preliminar, chamado “Regiões para fins de programação” tornou-se canônico ao ser
incorporado no I PMDES, elaborado em 1971, para guiar as ações no espaço mineiro (MINAS
GERAIS, 1974). A persistência deste recorte só foi substituindo como diretriz espacial das
políticas públicas mineira em 1992, quando a FJP define as Regiões de Planejamento (DINIZ;
BATELLA, 2005).
10 Decreto 17.122/1975.

• 4
Planejamento concentrou suas ações no planejamento regional; e o CDU esteve
concentrado no planejamento microrregional e urbano. Ademais, destaca-se que nas
áreas social e institucional destes planos, ambas as diretorias tinham o apoio do Diretoria
de Programas Públicos (DPP), criada em 1975 na FJP (GOMES, 2022). Ressalta-se que foi
também em 1977 que o CDU novamente retomou sua situação como diretoria própria,
ou seja, não estava mais subordinada a Diretoria de Planejamento (GOMES, 2022).
O segundo período foi marcado pela forte retomada do planejamento regional, um dos
marcos do II PMDES e do II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), especialmente
sob a metodologia de planos regionais de desenvolvimento integrado. Foram priorizadas
regiões consideradas tanto “problemas”, quanto com grandes “potenciais” não
aproveitados, isto é, o Sul de Minas, a Área Mineira da Sudene (AMS), o Vale do
Jequitinhonha e o Vale do Rio Doce (GOMES, 2022).
O Sul de Minas era visto como área potencial para receber a desconcentração de
investimentos de São Paulo e já vinha sendo objeto de atenção estadual desde finais dos
anos 1960 (DER-MG/CEMIG/CED, 1967). A AMS também tinha potencial de atração
devido aos elevados incentivos fiscais por ser parte da área da Sudene, mas também era
afligida pelos graves problemas sociais (LACERDA, 2019). Ela também já vinha sendo
foco de atenção desde os anos 1960 através da SUDEMINAS (MINAS GERAIS, 1967b),
sobretudo pela sua preterição frente aos estados nordestinos no montante total de
investimentos em infraestrutura física e social. Do mesmo modo, o Vale do Jequitinhonha,
área também com baixos índices de desenvolvimento econômico e social (LACERDA,
2019), tinha a CODEVALE e o desenvolvimento de alguns planos estudos e planos
regionais (CODEVALE, 1968). O Vale do Rio Doce padecia de problemas de um
crescimento urbano explosivo em poucos centros e baixo dinamismo econômico e
expulsão de população das pequenas cidades e áreas rurais (LACERDA, 2019).
O crescente prestígio da problemática urbano-regional na política estadual pode ser
demarcado pelo retorno do status como diretoria, em 1977, do CDU, que ampliou sua
importância atuando em quatro programas-chave: a Política Estadual de
Desenvolvimento Urbano, o Programa de Desenvolvimento Urbano, o Programa de
Cidades Históricas e Programas Especiais (GOMES, 2022), além da realização de uma
série de estudos sobre a realidade urbana mineira e identificação de cidades-polo.
Em 1979, assumiu como Governador Estadual Francelino Pereira (1979-1983). No âmbito
da FJP, em relação a problemática urbano-regional, permaneceu sua ação no campo do
planejamento. Contudo, a principal mudança foi a fusão do CDU com a DPP, conformando
a Diretoria de Planejamento Social e Urbano (DPSU), cujo objetivo visava melhor
aproveitamento do quadro técnico da FJP, além de buscar uma maior integração das
problemáticas urbanas, microrregionais e regionais. Este movimento resultou,
posteriormente, no desenho do Programa Estadual de Cidades Intermediárias de Minas
Gerais (PROECI) (MENDONÇA, 1990).

• 5
A REVISTA FUNDAÇÃO JP NA DÉCADA DE 1970
Conforme Soares (2022), a Revista Fundação JP foi produzida pelo Setor de Informações
da Diretoria de Comunicação e servia para divulgação dos trabalhos desenvolvidos pela
FJP, bem como outros órgãos do Governo Estadual. A partir de 1974, nela foi incorporado
o Boletim Conjuntura, publicado pelo CEA da FJP com informações de conjuntura
econômica. A partir de então, em 1974, a revista passou a se chamar Revista Fundação
JP – Análise e Conjuntura e passou a ser publicada mensalmente, em vez de
trimestralmente (GOMES, 2022). Chegou a ter tiragem de seis mil exemplares com
circulação em diversos centros nacionais e em 21 países (SOARES, 2022).
Conforme se vê na Figura 1, em meio aos artigos, estão dispostas – muitas vezes em
impressão colorida – propagandas de empresas estatais, órgãos e secretarias estaduais,
empresas privadas em setores ou áreas prioritárias de inversão e cursos oferecidos pela
FJP. Estes anúncios serviam para divulgar as oportunidades de inversão junto ao público
da revista, as realizações do governo estadual, além de apresentar as instituições de
apoio ao processo de industrialização e desenvolvimento estadual. Contudo, é possível
notar que no decorrer da década, especialmente a partir de 1978, ocorreu uma redução
significativa na quantidade de propagandas, especialmente de empresas estatais e
privadas.

[Figura 1: Propagandas presentes na Revista Fundação JP. (a) Banco de Crédito Real, banco público
estadual (1971); (b) Cortnorte, empresa da Área Mineira da Sudene (1972); (c) CEMIG, empresa de
capital misto de energia elétrica (1973); (d) Oferta de cursos de especialização em Administração
ofertado pela FJP (1975); (e) Sistema Estadual de Planejamento e seus órgãos vinculados pós-1975
(1976); (f) Banco do Brasil banco público federal (1978). Fonte: Revista Fundação JP, diversas edições.]

• 6
Em 1986, a revista foi refundada, ampliando seu escopo de temáticas, e renomeada de
Revista Análise & Conjuntura. Ela foi editada até janeiro de 1993.
Mas, além de espaço de divulgação dos planos e realizações estaduais na área urbano-
regional, a revista também foi espaço privilegiado para produção de textos críticos, com
debates teóricos, metodológicos e avaliativos no campo do planejamento. O conteúdo
produzido foi feito tanto por técnicos e funcionários da FJP, quanto assinado por
instituições e membros externos, refletindo pluralidade de perspectivas. Salienta-se como
os ciclos de discussão refletiam tanto a conjuntura nacional e estadual, quanto apontavam
para desenvolvimentos autônomos de perspectivas gestada no âmbito da Fundação João
Pinheiro.
Conforme já apresentado, a primeira edição é um compêndio de textos produzidos por
outras instituições estatais estaduais. Particularmente interessante é o texto de abertura
“Minas Gerais e o Desenvolvimento Nacional” – redigido a partir da parceria BDMG, CED
e ILPES, em 1970. Nele são apresentadas as quatro funções de Minas no desenvolvimento
nacional, além de quatro diretrizes de desenvolvimento para consecução do desempenho
destas funções. Todos estes elementos, posteriormente, entraram no I PMDES. Interessa,
particularmente, a terceira e quarta função, respectivamente, “desenvolver uma
capacidade de criação de emprego e uma atração urbana suficiente para ter população,
freando os fluxos emigratórios para as metrópoles do litoral” e “participar do esforço
nacional de penetração para o interior” (BDMG/CED/ILPES, 1971, p. 4). O terceiro
procurava evitar os problemas de “congestionamento urbano” mediante a criação de um
nível eficiente de emprego via “uma política de diversificação industrial (...) com a criação
de sistemas compostos por centros urbano-industriais” (idem, p.4). Já a quarta função
apontava a criação de novos centros de penetração no interior do país.
A diretriz de ação estadual número 2 propunha a “desconcentração do próprio
crescimento” mineiro, pois buscava evitar eventuais “deformações que a estrutura
espacial (...) sofreria caso persistisse o padrão de desenvolvimento extremamente
concentrado em Belo Horizonte” (idem, p.5). Assim, seria possível “viabilizar o uso das
potencialidades de cada região” (idem, p.5). A concretização deste objetivo passava pela
“política de descentralização urbano-industrial, de descentralização dos serviços públicos
e de remanejamento da rede de transportes e comunicações e do comércio” (idem, p.5).
Particularmente, o espaço regional síntese de ações estaduais e federais – e
posteriormente salientado também no I PMDES – foi a Região de Programação VI,
envolvendo a porção noroeste do estado, particularmente o vale do Rio São Francisco e
região sul do Polígono das Secas das Área Mineira da SUDENE. A Região VI era
considerada estratégica, pois deveria ser ponta de lança da ocupação do interior do país,
da integração espacial nacional e de desconcentração espacial da indústria, refletindo e
convergindo com o avanço econômico e social pretendido pelo Governo Federal (MINAS
GERAIS, 1971). A Figura 2 apresenta o estado de Minas Gerais divido nas suas Regiões
de Programação.

• 7
[Figura 2: Regiões para fins de Programação do Estado de
Minas Gerais. Fonte: MINAS GERAIS (1971).]

O outro texto de interesse desta primeira edição – também redigido a partir da parceria
CED, BDMG e ILPES – é o “A rede de transportes de Minas e a integração do seu espaço
econômico”, que basicamente apresenta um exame do grau de acesso, interno e externo,
das diversas Regiões de Programação. O objetivo foi auxiliar na definição de prioridades
de intervenção de um programa de transportes de superfície, particularmente
rodoviário11, para acelerar o desenvolvimento estadual. Aqui já se apresentava um
exemplo da operacionalização das Regiões de Programação e dos estudos sobre
diferentes graus de desenvolvimento regional dos espaços mineiros.
A partir da segunda edição, lançada no segundo trimestre de 1971, até o final de 1979,
período de análise deste trabalho, 39 artigos trataram da problemática do planejamento.
Do ponto de vista metodológico, examinamos textos tanto com abordagens gerais acerca
do planejamento estatal; quanto aqueles específicos, isto é, que trataram do
planejamento em suas múltiplas escalas (urbano, metropolitano, regional). Ademais,
consideramos as temáticas setoriais – especificamente transportes, indústrias – com
menção à ação estatal planejada para o estímulo do desenvolvimento regional.

11Em 1972 foi aprovado o Programa de Desenvolvimento Rodoviário – PRODER, que seria
cumprido pelo DER-MG.

• 8
Nesse sentido, a Figura 3 apresenta a produção de artigos anuais sobre planejamento,
além da divisão entre os dois períodos de estruturação dos estudos urbano-regionais – o
primeiro até 1974 e o segundo a partir desta data até 1979.

[Figura 3: Produção de artigos relacionados a temático do planejamento urbano-regional na Revista


Fundação JP. Fonte: elaboração própria.]

Primeiro momento: estruturação dos estudos acerca do planejamento


urbano-regional (1971-1974)
No primeiro momento, enquanto ocorria a estruturação das diretorias com foco nos
estudos sobre planejamento urbano-regional, constatamos que predominaram
abordagens em relação à questão metropolitana. Foram cinco os textos públicados12. Isso
é explicado pelo contexto em que o Plambel esteve dentro FJP, além da consolidação da
importância da temática com a regulamentação das regiões metropolitanas ao nível
federal. Em relação a vinculação institucional dos autores, dos cinco textos produzidos,
quatro foram redigidos por técnicos da Fundação João Pinheiro e um por um consultor
jurídico relacionado ao Plano Metropolitano da RMBH. A formação profissional dos autores,
refletindo o contexto de multidisciplinariedade do planejamento (COSTA, 2008), era de
engenheiros, sociólogos, bacharéis em direito, arquitetos, economistas e matemáticos.

12 O plano metropolitano de Belo Horizonte (DAYRELL, 1971); A metrópole e o pleno


desenvolvimento do homem (DAVID, 1972); Área Metropolitana, desafio à técnica e à
comunidade (CINTRA, 1972); A Região Metropolitana e sua lei (FONSECA, 1974); e Uma área
metropolitana sem metrópole (MONTE-MOR; DRUMMOND, 1974).

• 9
O outro conjunto de quatro textos publicados neste primeiro momento discutem assuntos
diversos tais como: a importância do planejamento no contexto de urbanização latino-
americana (LAMOUNIER, 1972); a importância da formação de quadros técnicos para
consecução do planejamento pretendido e demandado pelo Estado em seus vários níveis,
particularmente com uma discussão para o caso mineiro, inclusive com a sugestão da
criação de um curso de especialização em planejamento urbano e regional (LAMOUNIER,
1973); a discussão teórica acerca da inefetividade do planejamento brasileiro e uma
preposição alternativa, bem como um debate acerca dos custos de urbanização (DANTAS,
1974), e, por fim, o esboço de um plano regional para uma região prioritária13.

Segundo momento: consolidação e prestígio dos estudos e planos acerca


do planejamento urbano-regional (1975-1979)
A partir de 1975, no segundo momento, nota-se na Figura 3 o aumento da produção de
artigos acerca do planejamento urbano-regional. Esta elevação se deu, principalmente,
pela maior periodicidade de publicações, que passa a ser mensal; pela centralidade do
planejamento regional no âmbito do II PMDES, ao nível estadual, bem como do II PND,
ao nível federal; e pela própria consolidação da estrutura institucional voltada à pesquisa
e à realização de planos dentro da FJP. Nesse sentido, a edição de junho de 1975 da
Revista Fundação JP dedica-se a apresentar as diretrizes básicas do II PMDES:

o Governador Aureliano Chaves determinou que se desse, no II Plano Mineiro, especial


ênfase à formulação de planos regionais de desenvolvimento, já que em Minas ainda se
destaca a desintegração de sua estrutura espacial, dado que repercute e explica as
características do nosso sistema urbano, também definido como desintegrado, isto é,
carente de centros intermediários relevantes, o que marginaliza a maior parte do nosso
espaço geográfico. Assim, as cidades são incapazes de oferecer suporte urbano ao processo
de expansão produtiva (MINAS GERAIS, 1975, p.3).

Depreende-se do trecho acima a importância do sistema urbano e do urbano como


suporte para o desenvolvimento. Em outra parte do texto, que discute o problema da
concentração versus desconcentração espacial, apresenta-se uma releitura das opções
dos estilos de desenvolvimento dos governo anteriores, bem como a relevância de uma
nova compreensão acerca do processo de desenvolvimento, que passa a ser
compreendido como desequilibrado14 ao invés de equilibrado, o que implica,
consequentemente, em novo entendimento acerca do próprio planejamento:

O dilema pode ser encarado em termos de estratégias distintas: uma delas foi colocada no
Plano de Recuperação Econômica [1947] que diagnosticava falta de um núcleo aglutinador
capaz de compensar a polarização exercida por centros externos e propunha reforço do
centro [Belo Horizonte]; a outra substanciou-se no I PMDES que, a partir da visão do Estado

13
Uma estratégia para o Vale do Jequitinhonha feito pelo BDMG (1974).
14 É notável a influência das perspectivas de Albert Hirschman (1958).

• 10
como polarizado por Belo Horizonte e desequilibrado na sua rede de cidades, advogou
política de desconcentração (MINAS GERAIS, 1975, p.7-8).

Entre ambas as estratégias, o II PMDES propunha a adoção de “diferentes estilos de


desenvolvimento” para atender “às peculiaridades de cada região”, mas sempre
remetendo ao plano para o estado como um todo (idem, p.7). Do mesmo modo, o
planejamento, em seu sentido, deveria incorporar uma “teoria da trajetória crítica do
desenvolvimento em que se delineiem os passos e etapas em função do desdobrar do
processo e não em função de previão ‘a priori’” (idem, p.9), o que significaria o
aproveitamento do poder indutor dos desequilíbrios, ou seja uma “política de
desenvolvimento desequilibrado” (idem, p.9), em que:

a função central do órgão de planejamento é de sintonizar a máquina pública com as


exigências do desenvolvimento, ora induzindo-o através da criação de desequilíbrios, ora
corrigindo-lhe as distorções e desajustes [...] que ora dá ênfase ao papel do Estado como
investidor em atividades diretamente produtivas, ora lhe realça a atuação na formação de
capital social e internalizações de deseconomias geradas pelo próprio desenvolvimento
(MINAS GERAIS, 1975, p.9).

Este duplo papel do Estado – como indutor de desequilíbrios e corretor de distorções –


levaria ao “abandono do planejamento compreensivo e do modelo de desenvolvimento
equilibrado que a ele se liga”. Assim, a nova concepção de planejamento deveria se
basear: a) numa ação planejadora que se ajusta ao processo de desenvolvimento, com
opção e decisões com graus de flexibilidade; b) em programas estratégicos setoriais e,
principalmente, regionais, em que o foco de ação governamental recai em setores e
regiões prioritárias, em menor estágio de desenvolvimento.
A partir destas diretrizes, na Revista Fundação JP, até o final de 1979, foram publicados
outros 30 textos sobre planejamento. As temáticas podem ser agrupadas em quatro
grupos. Um primeiro grupo trata do planejamento estatal em geral, com o intuito de
avançar no esboço apresentado na edição especial acerca do II PMDES no entendimento
de um planejamento que fosse além da perspectiva compreensiva e do desenvolvimento
equilibrado – setorialmente e espacialmente.
São cinco artigos com esta temática, sendo dois deles na mesma edição, em 1975,
debatendo entre si e consolidando as referências para um novo estilo de planejamento –
uma perspectiva incremental (CINTRA, 1975) e outra pragmática (HADDAD, 1975).
Ambos os textos foram retomados posteriormente por outro texto publicado pela revista,
em 1979, que, por sua vez, propôs um planejamento centrado em problemas – isto é,
processual – e histórico-socialmente situado, ou seja, dependente do próprio nível de
desenvolvimento econômico e político-institucional da realidade na qual quer intervir
(FERREIRA, 1979).
Em relação aos outros dois textos acerca do planejamento em geral, um discute a
importância de considerar a dimensão social e a focalização do planejamento nos grupos
e espaços marginalizados (POSADA, 1976) e o outro apresenta a importância das
contribuições sociológicas no desenho de planos de desenvolvimento, sempre indicando
a centralidade da disputa política e dos atores concretos (ALBUQUERQUE, 1976).

• 11
Um segundo grupo de textos produzidos, composto por seis textos – e que cumpria o
papel da revista enquanto espaço privilegiado de divulgação e propaganda do que era
feito pelo Estado e como apresentação de oportunidades de investimento – são os planos
regionais de desenvolvimento produzidos pelos órgãos estatais estaduais15. Alguns textos
fazem parte de edições especiais – particularmente sobre o Sul de Minas e Campo das
Vertentes – onde, além do diagnóstico regional, há trabalhos sobre a história da formação
econômico-social e estudos setoriais.
Um terceiro grupo de textos – que totalizam onze textos – discutem aspectos setoriais
(por exemplo, transporte, recursos naturais, industrialização etc.) e sua vinculação como
meio/suporte para o desenvolvimento urbano e regional.
Mais especificamente, há um subgrupo de quatro textos referentes ao papel da
descentralização industrial como mola propulsora da difusão espacial do
desenvolvimento, seja através de políticas de incentivo fiscal, seja através da
implementação de distritos industriais. Nesse sentido, um texto fornece o panorama da
política do CDI para implementação dos distritos industriais (PENA, 1975). Dois outros
textos tratam especificamente das condições históricas que levariam a descentralização
industrial e seus limites, tanto para desenvolvimento regional quanto para integração
espacial (CARDOSO, 1979) – além de críticas às políticas em voga, particularmente os
incentivos fiscais e os distritos industriais (TOLOSA, 1977). E, por último, um texto
institucional – assinado pelo CDI, FJP e INDI – que apresenta como a política de distritos
industriais mineira respondia aos desígnios mais amplos da política de desenvolvimento
regional estadual. Este texto foi uma resposta às críticas, em edição anterior, acerca da
aceitação acrítica da política de construção de distritos industriais16. Este texto
institucional apresenta todas as etapas de avaliação e quais as pré-condições eram
necessárias para que uma localidade fosse escolhida para ter um distrito industrial
instalado, bem como a avaliação potencial de segmentos que poderiam ser atraídos
segundo o porte de viabilidade regional do distrito (CDI; FJP; INDI, 1977).
Um outro subgrupo é referente a temática de modernização administrativa dos
municípios, com dois textos (MATOS, 1976; LIMA, 1979). Estes foram escritos no
contexto do desenho estadual de uma política de modernização administrativa, devido a
constatação da inefetividade dos planos e políticas urbanas (GOMES, 2022), que começou
ser implementada ao final da década de 1970. Em outras palavras, neste período, passou-
se a considerar a organização administrativa municipal como pré-condição para a devida
execução dos planos locais e regionais.

15 Área Mineira da Sudene feito pela Diretoria de Planejamento da FJP (1974); Vale do Rio
Doce: uma proposta para desenvolvimento integrado feito por órgãos estaduais com
financiamento da Companhia Vale do Rio Doce (1975); Plano do Sul de Minas: por quê? feito
pelo FJP e o INDI com financiamento do organismo do Governo da Alemanha Ocidental (1976);
II Plano Integrado do Desenvolvimento do Noroeste Mineiro feito pelo Departamento de
Planejamento da FJP (1976); Microrregião dos Campos das Vertentes feito pela FJP (1977); e
Sul de Minas: um potencial para a interiorização do desenvolvimento feito pela FJP (1979).
16 Texto de Tolosa (1977).

• 12
Ligados a esses textos, existem outros dois textos relacionados ao problema das finanças
municipais e sua associação com a melhor estruturação das prefeituras para elevar sua
capacidade de exação (RIANI, 1978; DIAS; SOUZA, 1978). Estes textos salientam a
importância, por um lado, das leis de zoneamento e sua vinculação com o IPTU e o
cadastro imobiliário para a melhor disponibilidade de recursos. E, por outro, as
dificuldades de gastos sociais setoriais em políticas urbanas (saneamento e habitação,
primordialmente) – devido ao regime tributário centralizado na esfera federal (OLIVEIRA,
1991) – e seus impactos na própria estruturação dos municípios e na sua capacidade de
planejamento, o que implicava, como num ciclo vicioso, na incapacidade de administrativa
e de gastos, consequentemente, na retenção e atração de população.
Ademais, ainda no grupo de textos setoriais há um texto sobre o papel dos transportes,
especialmente de corredores de exportação (ALVES, 1976) – dado o contexto nacional de
crescente estrangulamento do balanço de pagamentos – e outros sobre a gestão de
recursos naturais (SILVA; PADILHA, 1976) para o desenvolvimento regional. Também há
um texto relacionando a problemática da urbanização com as migrações internas e
salientando a importância de uma rede urbana mais equilibrada (STRAUSS, 1975) para
evitar a concentração dos fluxos humanos para as metrópoles. Por fim, um artigo
discutindo a importância da consecução de fundos públicos para o financiamento (SILVA,
1977) do desenvolvimento regional, que padecia de recursos – sobretudo para inversões
em saneamento, habitação, saúde e educação – frente a complexidade e disparidades
regionais existentes em Minas Gerais e no Brasil.
Um quarto grupo de artigos são os estudos mais específicos sobre a questão urbano-
regional, totalizando sete textos. Este conjunto é composto por: estudos empíricos para
a definição das características regionais e municipais mineiras para a eleição de áreas
prioritárias para as inversões públicas (SILVA; ARRUDA, 1977). Um texto sobre as origens
do desenvolvimento regional na França (VOCHEL, 1977). Um artigo ressaltando as
contribuições de Hardoy, intelectual latino-americano com contribuições originais acerca
da questão urbana (NEVES, 1978). Dois textos debatendo o contexto nacional de desenho
da política nacional de desenvolvimento urbano (DUTRA JUNIOR, 1978; AZEVEDO, 1978)
na transição entre a CNPU e o CNDU. Um texto avaliando o desenvolvimento regional no
Aglomerado do Vale do Aço, debatendo inclusive as políticas regionais postas em prática
até então (PENNA, 1979). Por fim, um artigo que, embora seja um texto avaliando a
nova industrialização mineira, traz o debate sobre os efeitos espaciais das diferentes
políticas de atração de investimentos (financiamento, participação societária do Estado
de Minas Gerais, distritos industriais, incentivos fiscais, etc.), bem como salienta como a
política de incentivos fiscais não incorporou em si mesma uma predileção por áreas
prioritárias de inversão, resultando na atração de setores e a localização dos
empreendimentos nos espaços/regiões que já tinham vantagens locacionais (DUARTE
FILHO; CHAVES; SILVA, 1979), isto é, a Região Metropolitana de Belo Horizonte e seu
entorno, o Triângulo Mineiro, o Sul de Minas e a cidade de Montes Claros.
No que consideramos como segundo momento da temática do planejamento urbano-
regional no âmbito da FJP, dentre os textos possíveis de identificar a formação profissional

• 13
dos autores, permanece a pluralidade de formação; entretanto, é notável o grande
número de textos assinados por economistas. Isso reflete a centralidade e prestígios
destes profissionais no contexto de planejamento dos anos 1970 (HADDAD, 1978; DINIZ,
1981; GODOY; BARBOSA; BARBOSA, 2015).
Já em relação a vinculação institucional, predominam os técnicos da FJP, seguidos por
funcionários de outros órgãos estaduais como CDI, INDI e Secretarias de Estado.
Contudo, também há textos de pesquisadores do IPEA, do ILPES e de universidades
estrangeiras. Em especial, há uma edição da revista com as conferências dadas no
Seminário Internacional de Desenvolvimento Regional, inclusive com participação de uma
equipe francesa (FJP, 1977).
Em relação ao referencial teórico utilizado pelos autores nos 39 textos de ambos os
momentos – isto é, de 1971 até 1979 –, construímos uma nuvem de palavras com os
sobrenomes das referências que possuem ao menos duas citações17 (Figura 4). Quanto
maior o tamanho do sobrenome na imagem, maior é o número de citações. A principal
referência, com seis citações, é o livro “Planejamento Regional – Enfoque sobre Sistemas”
de Jos G.M. Hilhorst. Depois temos diversos textos de Josef Barat que tratam da questão
do transporte e sua relação com o desenvolvimento. Os demais sobrenomes dos autores
indicam a pluralidade de referências e perspectivas, pois há desde latino-americanos –
como Sergio Boisier –; poloneses – como Boleslaw Malisz, com as versões francesas de
seus livros e artigos –; italianos – como Alberto Rossi –; literatura norte-americana;
autores brasileiros, bem como documentos e órgãos institucionais, especialmente
federais (Brasil e Serfhau). Outro aspecto relevante constatado é que os textos ganham
maior volume de referências ao longo do tempo, indicando maior estruturação da
produção e rigor de análise. Do mesmo modo, como já salientado, alguns textos retomam
e citam outros textos já publicados pela revista, indicando seu papel como fonte relevante
de debates e produção acadêmica.

[Figura 4: Nuvem de palavras com os sobrenomes dos


autores com ao menos duas citações nos textos
publicados na Revista Fundação JP entre 1971 e 1979.
Fonte: Elaboração própria]

17Não foi considerado o artigo de Neves (1978) sobre Hardoy por se tratar da discussão
exclusiva sobre seu pensamento.

• 14
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho se insere na literatura que retoma as experiências de planejamento
e as trajetórias de institucionalização das políticas urbano-regionais durante o período da
ditadura civil-militar. Conforme dito, embora a precocidade da organização da ação
estatal mineira seja amplamente discutida na literatura, as suas expressões específicas –
como a política urbano-regional – carecem de trabalhos. Aqui foi privilegiada a análise da
Revista Fundação JP, editada pela Fundação João Pinheiro, que foi a instituição incumbida
de realizar os estudos e a produção estatísticas acerca da realidade socioeconômica de
Minas Gerais no sentido de auxiliar o seu desenvolvimento econômico durante a década
de 1970, numa longa trajetória de institucionalização do planejamento estatal estadual.
Nesse sentido, dentro da FJP foram estruturados setores específicos para a realização de
planos integrados de desenvolvimento local e regional, especialmente o CDU e o DP,
respectivamente. Uma faceta da atuação destes organismos – e que refletia sua
estruturação – foi a publicação por parte de seus técnicos na Revista Fundação JP. Assim,
a análise da revista possibilita a indicação tanto das filiações teórico-metodológicas
quanto dos trabalhos técnicos e planos desenvolvidos pelos técnicos e pesquisadores
durante o período em tela. Isso é ainda mais evidente, pois na Revista Fundação JP fica
houve o predomínio da filiação institucional dos autores com a FJP e outras instituições
estatais estaduais nas publicações.
Do mesmo modo, a partir da análise dos artigos publicados, identificamos dois momentos
que refletem a ação e a estruturação da problemática urbano-regional no estado. Um
primeiro, marcado pela organização da temática dentro da FJP, e com maior peso da
questão metropolitana que perdurou de 1971 até 1974, período coincidente que o Plambel
esteve vinculado à FJP. Um segundo momento – entre 1975 até 1979 – de consolidação
e prestígio da produção de planos locais e regionais de desenvolvimento, dado o contexto
nacional do II PND e refletido, também, no contexto estadual pelo II PMDES.
Ademais, notamos, durante toda a década, que paira uma preocupação mais geral acerca
do planejamento e sua efetividade, bem como discussões sobre como torná-lo mais
realizável, além de preocupações com necessidade de participação social e das
populações-alvo dos planos.
Do ponto de vista do referencial teórico presente nos artigos, observamos a
contemporaneidade da produção utilizada, bem como a pluralidade de referências
utilizadas. As influências vão além do campo canônico da economia regional e urbana e
das teorias de planejamento, pois verificou-se o peso das influências latino-americanas e
europeias (notadamente francesas). Assim, é possível depreender a importância da
compreensão das especificidades locais e regionais que os autores procuravam incorporar
em seus estudos técnicos, sobretudo pela inclusão de uma miríade de referências de
estudos de outras realidades nacionais e regionais.

• 15
Em síntese, a diversidade de temas, das formações profissionais dos autores, da abertura
para debates entre os artigos produzidos, da preocupação com a dimensão social e
participativa dentro do planejamento, em especial urbano-regional, revelam como a
Revista Fundação JP foi muito além de um mecanismo de propaganda das ações do
Governo Estadual de Minas Gerais. Em outras palavras, serviu como meio de difusão
teórica e institucionalização da problemática do planejamento e da política urbano-
regional, particularmente em Minas Gerais.
Por fim, fica em aberto o espaço para a análise mais detida tanto dos planos regionais
estaduais de fim dos anos 1960, quanto das iniciativas federais – e.g. Serfhau – nos
municípios mineiros, bem como os estudos e planos estaduais – locais e regionais –
elaborados e implementados até a estruturação do PROECI ao final dos anos 1970,
sempre cotejados pela discussão teórica presente na Revista Fundação JP e ao contexto
político-econômico estadual e nacional.

• 16
REFERÊNCIAS
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• 19
AS DINÂMICAS URBANAS DA PAISAGEM HISTÓRICA PARA
POLÍTICAS PÚBLICAS DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
Histórico, Conceitos e Análises
THE URBAN DYNAMICS OF THE HISTORIC LANDSCAPE
FOR SUSTAINABLE DEVELOPMENT PUBLIC POLICIES
History, concepts and analysis

Práticas, processos e institucionalidades

MARQUES, Tiago
Bacharel em Arquitetura e Urbanismo; Universidade Federal do Piauí
tiiago_marques10@hotmail.com

SERRA, Áldine Ohana


Bacharel em Arquitetura e Urbanismo; Universidade Federal do Piauí
aldineocs@gmail.com
RESUMO

A preservação do patrimônio cultural em seus mais diversos âmbitos, entre


eles a conservação urbana, apresenta grande potencial na promoção do
desenvolvimento sustentável das cidades, tema esse de importantes debates,
com maior prevalência a partir de 2015 através da Habitat III, a Conferência
das Nações Unidas sobre Habitação e Desenvolvimento Urbano Sustentável e
a Agenda 2030, plano de ação global que reúne os 17 objetivos de
desenvolvimento sustentável cujas metas visam, dentre elas, a preservação e
conservação do patrimônio cultural.

Contudo, por diversas vezes, o estado e a sociedade, por ausência de instrução


na área, perpetuam a ideia de que as áreas históricas dos centros urbanos, em
especial as brasileiras, além de serem negligenciadas, não se adaptam às
dinâmicas urbanas - que pode ser constatado quando o processo de
requalificação de áreas históricas é tratado separadamente das intervenções
urbanísticas em demais zonas da cidade.

Outro fator de destaque diz respeito ao pequeno número de estudos referentes


a políticas públicas destinadas à paisagem urbana histórica, bem como casos
bem sucedidos de gestão de centros históricos brasileiros e os agentes
responsáveis por essa conservação urbana. E quando estruturado em temas
como o desenvolvimento sustentável, esse número tende a ser ainda menor.

Diante dessa realidade, esta pesquisa busca realizar uma análise cujo objetivo
é destacar a importância da paisagem urbana histórica para a promoção do
desenvolvimento urbano sustentável de cidades brasileiras, de forma a
disseminar a importância de estudos nesta área através de projetos, pesquisas
e implementação de parcerias em todas as escalas.

PALAVRAS CHAVE Urbanismo Sustentável; Paisagem Urbana Histórica;


Conservação Urbana.

ABSTRACT

The preservation of cultural heritage in its various areas, including urban


conservation, has great potential in promoting sustainable development of
cities, a topic of important debates, with greater prevalence as of 2015 through
Habitat III, the United Nations Conference on Housing and Sustainable Urban
Development and Agenda 2030, a global action plan that brings together the
17 Sustainable Development Goals (SDG) whose targets aim, among them,
the preservation and conservation of cultural heritage.

However, several times, the state and society, due to lack of education in the
area, perpetuate the idea that the historic areas of urban centres, especially
the Brazilian ones, besides being neglected, are not adapted to urban dynamics

• 2
- which can be seen when the requalification process of historic areas is treated
separately from urban interventions in other areas of the city.

Another noteworthy factor concerns the small number of studies concerning


public policies aimed at the historic urban landscape, as well as successful
cases of management of Brazilian historic centres and the agents responsible
for this urban conservation. And when structured in themes such as sustainable
development, this number tends to be even smaller.

Given this reality, this research seeks to carry out an analysis whose aim is to
highlight the importance of the historic urban landscape for the promotion of
sustainable urban development in Brazilian cities, in order to disseminate the
importance of studies in this area through projects, research and
implementation of partnerships at all scales.

KEY-WORDS Sustainable Urbanism, Historic Urban Landscape, Urban


Conservation.

• 3
INTRODUÇÃO
HISTÓRICO DA GESTÃO DE CENTROS HISTÓRICOS BRASILEIROS

O pensamento urbanístico brasileiro teve sua gênese no final do século XIX, em


concomitância com o início da primeira república, conforme destaca Leme (1999, p. 24),
tendo ocorrido em três etapas. A primeira foi caracterizada pelo Planos de Melhoramento
com foco em áreas centrais, sem levar em consideração áreas periféricas e questões como
a política habitacional. A segunda – ocorreu através dos Planos de Conjunto, nos quais o
objetivo era a intervenção no conjunto da área urbana na época, entre 1930 e 1965. E a
terceira, com os Planos Diretores de desenvolvimento integrado, intensificados a partir
da década de 1970.
No que diz respeito à centros e áreas de interesse histórico, vale ressaltar as
transformações ocorridas a partir da década de 1960. O país entrara no período de
Regime Militar, e grandes mudanças nas cidades foram visíveis. A principal delas foi
iniciada por meio da criação do Programa integrado de reconstrução de Cidades
Históricas: o PCH. “Programa criado em 1967 que muda o foco da preservação voltado
anteriormente apenas aos monumentos estendendo-se também para conjuntos urbanos
e paisagísticos, a princípio implantado no nordeste brasileiro e ampliado posteriormente
em todo o território nacional” (AZEVEDO, 2016, p.01). Quando ainda restrito à região
nordeste, o mesmo propunha iniciativas em centros históricos das cidades de Salvador e
do Recife, porém, a princípio houveram diminutas intervenções. Por conseguinte, o
programa passa a abranger os estados da região Sudeste.
O mesmo é considerado, segundo Azevedo (2016, p. 02), como o maior programa de
preservação do patrimônio cultural integrado a um plano de desenvolvimento urbano e
regional, por meio do turismo cultural. Filho e Guia (2011, p. 42) ainda corroboram que
durante a década de 1980, sob influência das pesquisas desenvolvidas com a criação do
PCH, “desenvolveram-se diversos estudos e investimentos nas áreas centrais, geralmente
pontuais e desarticulados entre si”. E que mesmo com um período de grandes
investimentos em pesquisas relacionadas às intervenções urbanísticas em sítios
históricos, “o tema de qualificação dos centros históricos e desenvolvimento econômico
ainda não fazia parte da agenda de políticas públicas (FILHO; GUIA, 2011, p. 42).
Contudo, um dos primeiros projetos de Gestão e Requalificação Urbana em sítios
históricos que ganharam notoriedade no país só ocorreu no início da década de 1990, na
cidade de Salvador (BA). A área de Centro Histórico, que havia sido tombada anos antes,
em 1984, segundo Braga 2013, p. 57) faz parte de uma área ainda maior conhecida por
Centro Tradicional de Salvador, abrangendo o Antigo Centro (Figura 01).

• 4
Figura 01: Área compreendente ao Antigo Centro de Salvador (em vermelho) e o
Centro Histórico de Salvador (em verde). Fonte:
http://www.parquesocial.org.br/portalpce/index.php/comunidade/pelourinho

Outro programa de melhora na qualidade dos espaços em Centros Históricos que ganhou
notoriedade ocorreu em 2003 na cidade de Ouro Preto, em Minas Gerais (Figura 02).
Tendo em vista o histórico resultante do crescimento da malha urbana da cidade e o
iminente risco de descaracterização do acervo histórico e arquitetônico da cidade, a
representação do IPHAN em Ouro Preto iniciou uma série de medidas emergenciais para
a preservação do patrimônio edificado. Com efeito, as equipes da UNESCO passaram a
monitorar a cidade a partir de abril de 2003. Logo após a primeira vistoria da agência,
houveram inúmeros incidentes, quando um antigo hotel sofreu um grave incêndio, meses
depois um caminhão destrói um chafariz e no fim desse mesmo ano um sobrado desaba
devido a uma reforma irregular (IPHAN, 2008, p.16).

Figura 02: Ouro Preto (MG). Fonte: Tiago Marques, 2018.

• 5
Toda essa série de acontecimentos levou à UNESCO elaborar um relatório emergencial
para Ouro Preto com uma série de recomendações. A principal delas seria a elaboração
de um Plano Diretor, e de Leis de uso e ocupação do solo. Desde então, a cidade mineira
tem se destacado nacionalmente por uma série de medidas direcionadas à preservação
do patrimônio edificado e na melhoria da qualidade dos espaços públicos.
Vale destacar ainda a atuação dos programas Monumenta e o PAC das Cidades Históricas.
De inspiração na restauração do Centro Histórico de Quito (Equador), o Monumenta foi
lançado no ano de 1999, mas os projetos só começaram a serem implementados e
executados no ano de 2001. Para integrar o programa, as cidades precisavam cumprir
normas e pré-requisitos estabelecidos como o tombamento à nível federal pelo IPHAN de
um perímetro urbano, não restringindo a atuação apenas a construções históricas
isoladas.
No período de concepção do programa, o país passava por um profundo processo de
degradação dos bens arquitetônicos tombados cujos problemas, segundo Bonduki (2010,
p.37), eram de cinco naturezas:

uso inadequado dos edifícios; modificações incompatíveis com a preservação;


desconhecimento pela maioria dos empreiteiros e artesãos das técnicas apropriadas para
trabalhar com edifícios e materiais históricos; precário conhecimento da população
brasileira sobre a importância da proteção; ineficiência do setor público para tratar do
assunto (BONDUKI, 2010, p.37).

O Monumenta foi uma das iniciativas governamentais que soube melhor retratar
questões, desafios e soluções para a gestão de áreas centrais brasileiras de importância
histórica e patrimonial. Ele ainda atuou promovendo a melhoria das políticas patrimoniais
com o planejamento de ações visando o desenvolvimento local evidenciadas por meio de
intervenções urbanas e do financiamento de edificações privadas (BONDUKI, 2010, p.09).
Todas essas intervenções partiam da proposta de alcançar o objetivo principal de criar
uma consciência na população que reside na região contemplada pelo programa sobre a
importância da memória e da preservação, utilizando disso como pressuposto para as
ações de políticas públicas (BONDUKI, 2010, p.24).
Quanto ao PAC das Cidades Históricas, o escopo do programa busca tornar o patrimônio
cultural um eixo condutor e estruturante na geração de renda, empregos, e afirmação
identitária das cidades protegidas, utilizando-se de seu potencial econômico e simbólico.
Iniciado no ano de 2007 promovendo a retomada do planejamento e execução de grandes
obras de infraestrutura social, urbana, logística e energética no país, apenas a partir do
ano de 2013 o então Ministério do Planejamento autorizou a criação de uma linha
destinada exclusivamente aos sítios históricos urbanos protegidos pelo IPHAN (IPHAN,
2018).

• 6
DINÂMICAS URBANAS DE CENTROS HISTÓRICOS

Pensar em centros e áreas de interesse histórico quase sempre direciona as discussões


sobre políticas públicas, em sua maioria, de base conservacionista. Filho e Guia (2011,
p.42) elucidam que a base de pensamento sobre a dinâmica de centros históricos é
direcionada para dois caminhos. O primeiro diz respeito a centros históricos de grandes
cidades, estando inseridos em complexos e vastos tecidos urbanos. O segundo abrange
centros históricos localizados em pequenas e médias cidades, que se diferenciam do
primeiro exposto por ainda manterem fortes relações de centralidade em diversos
aspectos, que vão desde econômicos, políticos e culturais.

Para cada uma destas realidades urbanas, as modalidades de desenvolvimento econômico


em vigor normalmente percebem o patrimônio edificado apenas pela premissa das
restrições urbanísticas e arquitetônicas. Pode-se admitir que essa visão deriva tanto de
visões desinformadas do que ocorre no mundo, onde a requalificação de áreas centrais é
ação que une planejamento estratégico das cidades com importantes oportunidades de
investimentos e negócios, mas também da ortodoxia e pouca maturidade urbanística das
áreas públicas de planejamento e preservação do patrimônio (FILHO E GUIA, 2011, p.42).

Tais questionamentos levam à análise de novas abordagens direcionadas ao que


atualmente é conceituado de conservação urbana. Considerada uma política e uma prática
de planejamento, a conservação urbana, conforme elucida Bandari e Van Oers (2012, p.
08), “está enraizada no fascínio do público pelos ambientes construídos no passado: a
representação de história, valores da memória pessoal e coletiva, no espírito de lugar,
refletindo então os valores da cidade histórica”1.
Embora a urbanização em massa seja um fenômeno relativamente recente, as cidades
têm sido sempre o centro de poder e identidade social. E nesse contexto, a conservação
urbana tem atraído enorme atenção, gerando uma abundância de princípios, teorias,
experiências práticas, instrumentos técnicos e normativos (BANDARI; VAN OERS, 2012,
p. 09); quando associado a políticas públicas e agendas globais de debates recentes,
como a Agenda 2030 com os 17 Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável, toda a
área profissional está hoje associada aos processos e tarefas políticas da conservação
urbana, destacando o poder transformador da urbanização.
Em regiões de centro histórico, por serem, em sua maioria, áreas originárias de fundação
e de marco zero de expansão urbanística das cidades, apresentam infraestruturas
completamente instaladas e consolidadas no tecido urbano, sendo caracterizados também
por atuarem como “importantes áreas com identidade vinculada à história do local [...]
em que todos os serviços públicos essenciais estão instalados e as distâncias entre
funções como comércio, serviços, moradia, cultura e lazer são reduzidas drasticamente”
(FILHO E GUIA, 2011, p.42).

1
Citação original em língua inglesa
“And yet, urban conservation is [...] rooted in the public’s fascination for past built environments: the
representation of history, personal and collective memory values, spirit of place [...] and reflect the values
of the historic city (BANDARI, VAN OERS, 2012, p.08).

• 7
Ao longo do tempo, as ações de intervenção urbana em centros históricos têm seguido
dois principais caminhos. A primeira busca tornar as áreas históricas renovadas por meio
do despojamento da memória local de forma a desconsiderar a história presente no
patrimônio arquitetônico em detrimento da atratividade da região para o setor imobiliário
e os consequentes fenômenos de especulação, gentrificação e perda da identidade local.
A segunda segue caminhos que buscam a manutenção e a preservação da paisagem
urbana histórica, utilizando-as como instrumentos de dinamismo cultural e
desenvolvimento econômico, voltado para a ideia do city marketing, conforme Filho e
Guia (2011, p.42) citam.
E quando observamos a formação e evolução das cidades, principalmente das brasileiras,
existe a ideia de que as áreas históricas dos centros urbanos são negligenciadas e não se
adaptam às novas dinâmicas urbanas - o que pode ser constatado quando o processo de
restauração de áreas históricas degradadas é tratado separadamente das intervenções
urbanísticas, podendo gerar uma dispersão no tecido urbano (BRAGA, P. 2013, p. 31),
quando o ideal é que as propostas urbanas sejam trabalhadas de forma vinculada à
preservação de cidades e conjuntos históricos.

A CONFERÊNCIA GERAL DA UNESCO DE 2011

Dentro deste espectro que destaca a importância de preservar, de modelo de gestão em


rede do patrimônio histórico e desenvolver políticas públicas setoriais voltadas para a
conservação da paisagem urbana histórica vale destacar a atuação da UNESCO, a
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.
Dentro do escopo da UNESCO, a preservação e gestão da paisagem urbana histórica
atuam como importantes instrumentos para a promoção de políticas públicas direcionadas
ao desenvolvimento urbano sustentável e integrado, com fortes bases na centralidade
cultural e econômica, de forma a valorizar sítios e centros históricos levando em
consideração aspectos locais.
Na 36ª Conferência Geral, ocorrida em novembro de 2011 na cidade de Paris (França),
uma das resoluções do relatório final buscou destacar e trazer recomendações sobre o
reconhecimento da importância da paisagem urbana histórica como um instrumento
inovador para a preservação e gestão do patrimônio de cidades históricas.
A resolução teve como principal produto o documento intitulado “Recomendação sobre a
Paisagem Histórica Urbana”, cujo objetivo principal é dar instrumentos à governantes,
autoridades e instituições de salvaguarda do patrimônio cultural para estimular a
“conservação e gestão das áreas históricas urbanas e suas envolventes geográficas mais
amplas” (UNESCO, p.03, 2011). Utilizando o termo “Paisagem Urbana Histórica” como
termo norteador, a resolução busca destacar que o termo “transcende a noção de "centro
histórico" ou de "conjunto histórico" para incluir o contexto urbano mais abrangente”
(UNESCO, p.04, 2011), integrado com as dinâmicas urbanas intrínsecas e relacionado ao
desenvolvimento integrado de todo seu entorno, que geram influências diretas, além de
relações urbanísticas e socioespaciais.

• 8
O documento ressalta importantes aspectos como o reconhecimento de que em áreas
históricas se concentram as manifestações mais diversas do patrimônio cultural de um
determinado lugar e/ou região e que

o patrimônio urbano constitui um recurso social, cultural e econômico para a humanidade,


definido por uma estratificação histórica de valores que foram produzidos por culturas
sucessivas e contemporâneas e por uma acumulação de tradições e de experiências,
reconhecidas como tal na sua diversidade. [...] Que (o processo de) urbanização (das
cidades) está ocorrendo em uma escala sem precedentes na história da humanidade e que,
por todo o mundo, vai provocando transformações e crescimento socioeconômicos, que
deveriam ser fruídos às escalas local, nacional, regional e internacional [...] (e que é de
extrema relevância) considerar a natureza dinâmica das cidades. (UNESCO, p.03, 2011).

É destacado ainda na resolução que esse acelerado processo de urbanização das cidades,
em especial de países em desenvolvimento, podem pôr em risco a integridade do
patrimônio urbano, resultando em sua deterioração e fragmentação e o consequente
impacto negativo nos valores e na identidade das comunidades. E que para reverter tais
processos, é preciso considerar a integração de estratégias de gestão, conservação e
planejamento de áreas históricas urbanas para apoiar a proteção do patrimônio cultural
e natural, utilizando instrumentos como a arquitetura contemporânea e o estímulo para
a implementação de uma abordagem voltada para a paisagem urbana histórica, com a
finalidade de preservar a identidade urbana (UNESCO, p.02, 2011).
O princípio do desenvolvimento urbano sustentável, este estruturado nos 17 objetivos
para o desenvolvimento sustentável, implica na preservação e proteção ativa do
patrimônio urbano e na sua gestão sustentável. Tais aspectos estão presentes na a meta
11.4 do objetivo 11 (Cidades e Comunidades Sustentáveis), que busca fortalecer esforços
para proteger e salvaguardar o patrimônio cultural e natural, de modo a tornar o
patrimônio urbano um recurso essencial para a melhora na habitabilidade de áreas
urbanas (UNESCO, p.03, 2011).
O estímulo de políticas e modelos de gestão em rede, que aproximem a população para
a linha de frente da preservação da paisagem urbana histórica também é um dos pontos
estruturantes da resolução, destacando que, somente com a preservação do patrimônio
urbano é possível promover o desenvolvimento econômico e a coesão social dentro do
contexto atual de mudanças, sejam elas de ordem política, social ou ainda ocasionadas
pelas mudanças climáticas, tornando responsiva a necessidade de propor estratégias mais
abrangentes de desenvolvimento sustentável da paisagem urbana histórica.
A abordagem da Paisagem Urbana Histórica também busca

[...]preservar a qualidade do ambiente humano, melhorando a utilização produtiva e


sustentável dos espaços urbanos, embora reconhecendo o seu caráter dinâmico e
promovendo a diversidade funcional e social. Integra os objetivos de conservação do
património urbano com os de desenvolvimento económico e social. Baseia-se numa relação
equilibrada e sustentável entre o ambiente urbano e o natural, entre as necessidades das
gerações presentes e futuras e o legado do passado (UNESCO, p.04, 2011)[...].

• 9
atuando, portanto, como um mecanismo que considera a diversidade como um elemento
basilar para o desenvolvimento urbano e social de modo a garantir que as transformações
ocorridas por meio de intervenções contemporâneas, como requalificações e reabilitações
de áreas históricas, estejam integradas de forma harmônica, respeitando a identidade,
preservando valores da comunidade e distanciando de valores que possam transformar a
essência do patrimônio urbano. Para isso, é importante que as ações e políticas públicas
sejam integradas ao planejamento, incluindo mecanismos que deem equilíbrio à
conservação e à sustentabilidade urbana estruturados em prazos e metas à curto, médio
e longo prazo.
Por fim, a resolução ainda ressalta que, para que haja uma efetividade e gere frutos
positivos às comunidades, os instrumentos de implementação de ações precisam ser
adaptados aos contextos locais, integradas com medidas tradicionais e inovadoras, tais
como a implementação de parcerias com iniciativas privadas, elaboração de instrumentos
que estimulem a participação ativa da sociedade e a implementação de sistemas de
regulamentação que reflitam as condições locais (UNESCO, p.07, 2011).

PAISAGEM URBANA HISTÓRICA E SUSTENTABILIDADE

A abordagem da Paisagem Urbana Histórica, estabelecida na Conferência Geral da


UNESCO de 2011, atua como uma nova forma de incluir todos os aspectos da conservação
num espectro de maior integração e sustentabilidade. Como com todos os instrumentos
normativos do seu tipo, a abordagem é uma consequência das necessidades e do
pensamento moderno, mas também enraizada na história da conservação urbana
(BANDARI; VAN OERS, 2012, p. 17).
Tendo como objetivo definir princípios operacionais capazes de assegurar modelos de
conservação urbana que respeitam os valores, tradições e ambientes de diferentes
culturas contextos, a gestão da Paisagem Urbana Histórica é um importante mecanismo
para ajudar e direcionar a redefinição do patrimônio urbano como o centro do processo
de desenvolvimento espacial - em outras palavras, para reconhecer e posicionar a cidade
histórica como um recurso para um futuro sustentável e resiliente às mudanças e
paradigmas sociais.
E para que haja uma integração entre conservação e desenvolvimento urbano
sustentável, é preciso pensar na necessidade de desenvolver e implementar medidas
apropriadas para a conservação de áreas históricas, incluindo a gestão do controle de uso
e ocupação do solo, elaboração de regulamentos norteadores, planos de conservação,
esquemas de gestão de tráficos, controle da emissão de gases poluentes, implementação
mecanismos adequados de financiamento e subsídios, participação estruturas e
atividades de sensibilização e educação patrimonial às comunidades (BANDARI; VAN
OERS, 2012, p. 70).
Vale destacar ainda aspectos como a preservação de zonas históricas de modo a adaptá-
las às novas intervenções ao contexto urbano e associar a revitalização cultural e social
à conservação física, a fim de preservar o tecido social tradicional e as funções das zonas

• 10
históricas, ressaltando o caráter transformador da Paisagem Urbana Histórica integrada
às medidas de promoção da sustentabilidade urbana.

CONCLUSÃO

A preservação do patrimônio histórico e artístico nacional, com destaque para a


conservação da Paisagem Urbana Histórica, termo criado pela UNESCO de contexto
abrangente, comparado à centros e conjuntos históricos, atua como um importante
instrumento de promoção da preservação da memória e da identidade de comunidades,
além de estabelecer relações, até então pouco óbvias, com questões de prevalência
recente como o Desenvolvimento Urbano Sustentável.
A proposição de medidas amplas e setoriais, com bases em modelos de gestão em rede,
destacando a sociedade civil como principal agente de preservação do patrimônio cultural,
podem transformar a visão e a forma como a gestão do patrimônio cultural é vista,
levando em consideração aspectos como o contexto de atual de urgência de ações contra
mudanças climáticas, resiliência urbana e preservação da Paisagem Urbana Histórica por
mecanismos de dinamismo econômico e social.

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• 12
ATERROS NOS MODOS DE PRODUÇÃO ESPACIAL EM
SALVADOR-BA
Emprego de técnicas e tecnologias de poder sobre o mar
EMBANKMENT IN SPACE PRODUCTION MODERS AT SALVADOR
(BAHIA)
Práticas, processos e institucionalidades

LISIAK, Janaína
Universidade Federal de Minas Gerais; Mestre em Arquitetura e Urbanismo
janalisiak@gmail.com
RESUMO

O urbanismo, enquanto dispositivo de controle, tem o aterro enquanto conduta


e expressão radical do poder. Esse procedimento é realizado pela ocupação
humana em Salvador (Bahia) desde a sua fundação, sobretudo em relação ao
mar. Associados a planos e projetos urbanos, o aumento de superfície terrestre
sobre a aquosa reformula modos de ocupação e usos existentes. Relevam uma
ação destrutiva que, ancoradas em discursos de progresso e desenvolvimento,
tencionam instituições, práticas e, consequentemente, os processos de
produção do espaço urbano. Para desenvolver esses aportes reflexivos,
tomamos duas regiões da capital baiana onde massivos aterros foram
realizados sobre o mar durante o século XX: na primeira metade do século, o
Comércio, que comporta parte da estrutura portuária da cidade, será
abordado. Na segunda metade, consideramos as investidas realizadas em
Alagados, localizado na Península de Itapagipe, região que abrigou as
primeiras indústrias da cidade.

PALAVRAS CHAVE aterro; tecnologia de poder; Salvador (Bahia).

ABSTRACT OU RESUMEN

Urbanism, as a control apparatus, has the embankment as a conduct and


radical expression of power. This procedure has been carried out by human
occupation in Salvador (Bahia) since its foundation, especially in relation to the
sea. Associated with urban plans and projects, the increase in land surface
over the watery area reformulates the existing occupation modes and uses.
They reveal a destructive action that, anchored in discourses of progress and
development, intend institutions, practices and, consequently, the processes
of production of urban space. To develop these reflexive contributions, we took
two regions of the capital of Bahia where massive embankment were carried
out over the sea during the 20th century: in the first half of the century, we
Commerce, which comprises part of the city's port structure, will approached.
In the second half, we consider the actions taken in Alagados, located in the
Peninsula of Itapagipe, the region that sheltered the first industries in the city.

KEY-WORDS OU PALABRAS-CLAVE embankment; power technology;


Salvador (Bahia).

• 1
INTRODUÇÃO
O aterro se apresenta como uma tecnologia de poder mobilizada pela ocupação humana
em Salvador desde a sua fundação. Ganhar terra sobre o mar institui-se, historicamente,
enquanto uma operação de ordenamento e de controle do espaço, para os mais diversos
fins – reformular as áreas de embarque e desembarque das estruturas portuárias;
expandir superfície para construção de quadras e vias; interditar determinadas formas de
ocupação do território e estabelecer outras; e o mais.
O aterro é somente uma das tecnologias do dispositivo que é o urbanismo. Michel Foucault
define o dispositivo enquanto um conjunto heterogêneo de elementos discursivos e não
discursivos, inscritos em um jogo de poder 1, “sempre (...) ligado a uma ou mais
configurações de saber que dele nascem mas que igualmente o condicionam” (FOUCAULT,
2018b [1977], p. 367). O urbanismo é um agrupamento histórico de saberes, condutas,
estratégicas e táticas mobilizados em prol da produção do espaço (da cidade) por meio
de sua diversidade técnica e tecnológica, de agentes, de ações, de registros, de
normativas, enfim, de múltiplos elementos que disputam o acesso ao poder - desde os
mecanismos biopolíticos às lutas e resistências2.
A instituição e consolidação do campo profissional do urbano se desenvolve no século XX
em conformidade com o novo ordenamento do aparelho estatal - seja no âmbito da
organização em torno da República Federativa, seja pelo acúmulo de controle do espaço
urbano3. O urbanista, profissional especializado para sanar os problemas da cidade por
meio da gestão e regulamentação do espaço, desponta sustentado por ideais de
modernização e desenvolvimento. Respostas técnicas (específicas) não atenderiam
somente ao embelezamento da cidade, também criariam o “bom meio”, dando origem ao
“bom homem” (FERNANDES; SAMPAIO; GOMES, 1999, p. 167). Nesse sentido, a
modificação espacial agregaria um caráter formado do homem, criando uma nova cidade

1
Acerca do poder, conceito igualmente relevante no arcabouço intelectual de Foucault, o autor escreve:
“O poder (...) é o nome dado a uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada”, de
modo que “está em toda parte; não porque englobe tudo e sim porque provém de todos os lugares”.
(FOUCAULT, 2018a [1976], p. 100) O poder não é somente a ação opressora hegemônica, pois engloba a
resistência em sua rede de relações. Portanto, “parece-me que se deve compreender o poder, primeiro,
como a multiplicidade de correlações de forças imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de
sua organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes, as transforma, reforça,
inverte; os apoios que tais correlações de forças encontram umas nas outras, formando cadeias ou
sistemas, ou ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em
que se originam nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais” (ibid., p. 100-101).

2
Vide Ferrari de Lima (2017) para extensa análise entre os conceitos articulados por Michel Foucault e
comentadores (governamentalidade, biopolítica, conduta, contraconduta, dispositivo, estratégia, tática,
entre outros) com o urbanismo.

3
Vale destacar a reorganização dos espaços das cidades brasileiras, entre elas Salvador, por conta dos
surtos epidêmicos da febre amarela (1849-1850) e cólera (1855-1965). Nesse contexto, para além da
atuação dos médicos, os engenheiros assumem paulatinamente a posição de detentores do saber
técnico para enfrentar as adversidades das condições de vida na cidade, cf. FERNANDES; SAMPAIO;
GOMES, 1999, p. 168.

• 2
e novas formas de relações sociais. Na prática, esse discurso sustenta o arrasamento
sistemático de determinadas formas de vida, organizando os indivíduos e os lugares de
forma hierárquica e funcional. O que “contamina” o espaço, ou seja, tudo aquilo que não
atende às determinações funcionais e técnicas, é enquadrado nos termos da ilegalidade
e/ou da informalidade. Caso não seja possível desmontá-las ou mesmo destruí-las, as
práticas “fora da ordem” são isoladas, segregadas - seja por uma ação ativa, seja pela
omissão.
O aterro, por sua vez, é uma forma ativa de controle; é a destruição (mesmo que parcial)
do existente para a instauração de uma nova ordem no espaço. Materialmente, um
volume de terra (e/ou demais materiais) é deslocado, lançado e compactado. Por meio
dessa sequência de procedimentos, uma nova superfície é criada, cuja ocupação, a
princípio, ocorre conforme determinações tecnocráticas. Há, portanto, um modo de fazer
espaço através do aterro, mesmo que esta não seja a única forma de produção. Henri
Lefebvre (1981 [1974]) alega que o espaço é constituído de múltiplos cruzamentos,
formulados pela relação (jamais simples nem estável) entre três aspectos: a prática
espacial, a representação do espaço e o espaço de representação. O primeiro engloba a
produção e reprodução próprias a cada formação social, em determinados marcos
temporais, e está relacionado ao espaço percebido, isto é, à realidade cotidiana - emprego
do tempo - e à realidade urbana - o percurso e a rede dos lugares de trabalho, da vida
privada, dos lazeres. Por sua vez, o espaço de representação, através das imagens e dos
símbolos que o acompanham, está associado ao espaço vivido. É o espaço dos habitantes
e dos usuários, submetido àquilo que a imaginação tenta modificar e apropriar, recobrindo
a materialidade pelo uso simbólico de seus objetos. Por fim, a representação do espaço
se correlaciona às relações de ordem que se impõem. Responde ao espaço concebido,
cujas concepções tendem em direção a um sistema de signos verbais elaborados
intelectualmente. É, portanto, àquele dos sábios, dos planificadores, dos urbanistas, dos
tecnocratas, entre outros.
Para os fins deste artigo, os aterros são explorados, a princípio, na perspectiva de espaço
concebido. A fragmentação do objeto ocorre de modo a ponderar sobre a
operacionalização de um modo de fazer cidade específico, centrado nos esforços e ações
do Estado em mobilizar determinadas tecnologias no exercício do poder. Contudo,
conforme mencionado anteriormente, a produção do espaço não se resume a um só
aspecto. O risco assumido por essa postura almeja constituir aportes reflexivos iniciais
em torno da relação entre práticas, processos e instituições em prol da produção do
espaço urbano.
Ainda, vale ressaltar que os aterros, enquanto agência de controle, não ocorrem da
mesma forma em todos os espaços, muito menos segundo uma falsa ideia de linearidade
temporal. Em cada momento histórico, estas operações ocorrem de modos (e com fins)
distintos, ou seja, revelam aspectos específicos da produção da cidade. Portanto,
tomamos duas regiões de Salvador onde massivos aterros foram realizados durante o
século XX: na primeira metade do século, abordaremos o Comércio, que comporta parte
da estrutura portuária da cidade. Na segunda metade, consideramos as investidas

• 3
realizadas em Alagados, localizado na Península de Itapagipe, região que abrigou as
primeiras indústrias da cidade.

Figura 1. Mapa da cidade de Salvador, com a indicação do Comércio e de Alagados. Elaborado pelo(a)
autor(a).

COMÉRCIO: ATERRO ENQUANTO TÉCNICA PARA A MODERNIZAÇÃO


Conforme mencionado brevemente, o aterro é um procedimento operado desde a
fundação da capital baiana. A região portuária aumentou sucessivamente a sua área de
terra desde o século XVI, conforme a figura 2 indica. Até o século XVIII, os aterros foram
realizados por ordens religiosas e particulares, bem como pelo poder público local (este
último, sobretudo para a instalação de equipamentos militares e de controle comercial -
Alfândega, fortes e fortins, entre outros). Os proprietários dos trapiches4 aterram o mar
em prol do desenvolvimento comercial, de modo a estruturar e consolidar os espaços de
embarque e desembarque dos produtos transportados pelas embarcações, além de
aumentar a área para armazenagem de mercadorias. Por sua vez, os aterros realizados
pelo Estado a partir do século XX ocorrem com dupla motivação: evocar o
desenvolvimento civilizatório de uma “nova sociedade moderna”, bem como aumentar o
espaço para a realização das atividades na região portuária, sobretudo comerciais.

4
“Trapiche é considerado como casa (armazém) de guardar gêneros de embarque e desembarque, com
aparelho para carregar e descarregar, situado à beira-mar, junto ao cais, onde, através de pontes
improvisadas de madeira, podia-se ter acesso às embarcações menores que se aproximavam das
margens” (LEAL, 2016, p. 77).

• 4
Figura 2. Mapa demarca os sucessivos aterros realizados na região do Comércio. Fonte: ANDRADE
JÚNIOR, 2008. Elaborado pelo(a) autor(a).

A navegação foi, do Brasil Colônia à Primeira República, o principal meio de transporte e


distribuição de insumos e produtos em território nacional. Essa centralidade responde não
somente pelo alcance tecnológico da época, mas também pelas dinâmicas de produção e
reprodução do capital. Quando colônia, Salvador foi estruturada, em parte, para suprir o
comércio ultramarino da Coroa Portuguesa. A capital baiana era um entreposto comercial
estratégico para a empreitada mercantil portuguesa, sobretudo da rota europeia para
Ásia e África5. A atividade comercial náutica se fortaleceu ao longo dos séculos, uma vez
que, mesmo com as mudanças de organização do Estado (de Colônia, para Império e
então República), Salvador permanece sendo um importante centro de distribuição de
produção pela via marítima. Entretanto, até o século XX, o espaço portuário não possuía
cais acostável, de modo que a carga e descarga das embarcações de maior porte era
realizada por alvarengas (barcos de menor porte que fazia o trânsito dos produtos até a
contenção - estrutura do cais - existente). Essas pequenas embarcações eram próprias
de cada trapiche, os equipamentos responsáveis pela recepção e armazenamento dos
produtos na região portuária, sendo, portanto, de grande importância para as dinâmicas
existentes:

5
“Salvador, lugar estratégico tanto do ponto de vista náutico como militar e comercial, destacou-se
como o mais importante polo comercial que promoveu a expansão colonial portuguesa na América, o
que lhe imprimiu a característica de ‘cidade portuária’. Seu porto teve proeminência para escala da
Carreira da Índia, mantendo relações ‘com navios que demandavam o Oriente ou vinham de torna-
viagem’” (LEAL, op. cit., p. 78).

• 5
No porto de Salvador, os trapiches particulares (...) dominavam a logística comercial, por
se constituírem em pontos estratégicos de armazenagem e transporte de mercadorias de
longo e pequeno curso, cobrando altos preços pelos serviços que realizavam (ibid., p. 107).

Figura 3. Cais das Amarras, fotografia de Rodolpho Lindemann por volta de 1885, registra os diversos
trapiches localizados à beira-mar, na região portuária de Salvador. Fonte: Coleção Gilberto Ferrez,
Acervo do Instituto Moreira Salles.

Por mais que Salvador fosse um importante entreposto comercial marítimo, a estrutura
portuária do final do século XIX e início do século XX enfrentava uma série de entraves:
a Baía de Todos os Santos, conhecida por suas águas mansas 6, exigia experiência dos
marinheiros devido a presença de panelas, barras e recifes (PINHO, 2016, p. 125) - sem
contar as adversidades provocadas pelas mudanças nas condições do tempo (ibid.,
p.125). Ainda, inexistia uma estrutura portuária homogênea, isto é, os trapiches
fragmentavam a dinâmica de carga e descarga, dificultando o controle de entrada e saída
da produção (ibid., p. 127)7.

6
A escolha do local de implantação de Salvador ocorreu, em parte, para o atendimento às orientações
da Corte Portuguesa, previstas no Regimento de Tomé de Souza, que demandava a escolha de um sítio
com águas mansas e porto natural (CEAB, 1979).

7
Ainda, sobre as adversidades enfrentadas em relação ao controle financeiro e fiscal, Leal (op. cit., p.
107) elabora a seguinte contribuição: “A necessidade de aumentar a arrecadação e diminuir a evasão de
renda, diante da ‘posição estratégica desses estabelecimentos comerciais [trapiches], que aumentava com
o passar dos anos’, levou, em 1840, um ministro da Fazenda a arguir sobre a necessidade de ‘tornar o
Estado independente dos trapiches particulares’, o que ‘gerou, por sua vez, dois cursos de ação por parte
das elites políticas do Império: um visando remodelar o porto e aumentar as instalações da Alfândega, o
outro visando controlar e fiscalizar as atividades portuárias e dos trapiches privados’”. Nesse contexto,
destacamos ações mobilizadas pelo Estado a favor do controle das atividades marítimas: em 1861, é
concluída a Casa da Alfândega (onde hoje está localizado o Mercado Modelo), equipamento que buscava
centralizar a gestão do controle portuário, e, em 1845, é instituída a Capitania dos Portos em cada
província marítima do Império. A esta instituição, “competia policiar o porto e os ancoradouros, bem como
promover o seu melhoramento e conservação (...) e realizar ‘a matrícula da gente do mar e das tripulações
empregadas na navegação e (tráfego) dos Portos e das Cotas, praticagem destas e das Barras” (ibid., p.
105)

• 6
Ainda nesse contexto, vale salientar que, com a abertura dos portos às nações unidas
(1808) e a proibição do comércio de pessoas escravizadas (1850), houve a necessidade
de reorganização do capital. Em parte, esta resposta ocorreu por meio do investimento
em novos setores de produção e de distribuição, que culminaram, por exemplo, no
desenvolvimento industrial [mesmo que precário e fragmentado, conforme indica Cardoso
(2004)] e na reformulação das matrizes de transporte. As atividades fabris foram também
impulsionadas pelo advento de novas tecnologias, entre as quais destacamos a
navegação a vapor (ibid., p. 131; 138) e a estruturação da navegação de cabotagem 8
(ibid., p. 145). Com o avanço técnico e tecnológico náutico, acelerou-se a dinâmica de
distribuição de insumo e de produtos pelo mundo. Na segunda metade do século XIX, a
estrutura portuária existente já não atendia a demanda do circuito comercial nacional e
internacional9.
Para responder às diversas mudanças que esse contexto convoca, o Estado elabora
medidas para modificar os portos do país, mobilizando mudanças estruturais (sejam dos
aspectos materiais, sejam institucionais). As propostas desenvolvidas pelo poder público
não ocorrem sem dificuldades e conflitos, sobretudo no que diz respeito aos proprietários
dos trapiches10. Estes defendiam a preservação da estrutura vigente, ou seja, do cais,
dos trapiches e das alvarengas por eles pertencentes, e solicitavam melhorias
direcionadas às docas de atracação existentes (ROSADO, op. cit., p. 169).
Entretanto, a estrutura portuária de Salvador foi efetivamente modificada entre a
segunda metade do século XIX - sobretudo, no âmbito institucional -, que culminou na
realização de um grande aterro no início do século XX. Em 1869, o Governo Imperial
publica o Decreto nº 1.746, no qual autoriza a contratação para a construção de docas e
armazéns para carga, descarga, guarda e conservação das mercadorias de importação e
exportação nos diferentes portos no Império (BRASIL, 1869 apud ROSADO, p. 169).
No âmbito local, desde 1871 havia um projeto aprovado pelo Estado para realização de
obras na área portuária soteropolitana. Contudo, a concessionária dessa primeira
proposta é dissolvida e a concessão é declarada caduca em 1887 (ROSADO, op. cit., p.
175-176). Em 1891, com o Estado brasileiro organizado em regime republicano

8
Sistema de navegação com diversos pontos de paragem ao longo da costa do Recôncavo.

9
De 1871 a 1872, 461 navios ancoraram no porto de Salvador. Já entre 1873 e 1874, mais que triplica o
número de navios. Por sua vez, no início da República, em 1891, registrou-se a presença de 730 navios
em Salvador, sendo 577 movidos a vapor e 153 a vela (MATTOSO, 1978, p. 70-71 apud ROSADO, op. cit.,
p. 166-167).

10
“Em contraposição ao projeto de modernização, os comerciantes trapicheiros tinham interesse em
preservar a feição tradicional do porto, sob pena de perderem o monopólio de armazenagem, atracação e
transporte dessas mercadorias, além de lucrarem pela ancoragem dos navios de longo curso, de
cabotagem e de embarcação de pequeno porte, e ainda pelo transporte dessas mercadorias e passageiros,
realizados pelas alvarengas, bem como pela isenção de despesas relativas à utilização das dependências
do cais” (LEAL, op. cit., p. 106).

• 7
federalista, é decretada uma nova concessão para a construção e exploração das docas
do porto de Salvador. Contudo, mais uma vez, nem o canteiro é iniciado - apesar do ato
cívico realizado no Cais das Amarras, onde se bate a primeira estaca que inaugura os
trabalhos (ibid., p. 176).
É somente no século XX que a mudança física da região portuária é efetivada, retomando
os procedimentos de conquista da terra sobre o mar. A concessão de 1891 é repassada
para outra concessionária e tem o seu prazo estendido sucessivamente até 1905. Por fim,
o Decreto nº 5.550, de 6 de junho de 1905, define, impreterivelmente, o início das obras
até o final de 1906 e estabelece o fim do contrato em 1912. Um dos grandes
patrocinadores desta decisão é José Joaquim Seabra (J. J. Seabra) 11, que, em discurso
da inauguração do porto, anuncia:

iniciei a reforma desta cidade, absolutamente necessária, maximé na parte baixa, onde a
actividade mercantil, á falta de espaço, se sentia opprimida, e o aspecto da estreita faixa
occupada entre a collina e o mar patenteava na conservação do passado, mais que atrazo,
os testemunhos formaes de uma verdadeira decadencia. (...) A Cidade Baixa,
profundamente modificada, e melhorada pelas novas construcções e alargamento das ruas,
apresente, complementamente diversa do que é hoje, as vantagens dos modernos centros
de commercio (SEABRA, 1912, p. 9 apud PAOLI, 2016, p. 250-251).

Os discursos mobilizados à época anunciavam a existência de uma estrutura obsoleta,


atrasada e decadente para a sociedade soteropolitana. A tradução ideológica, em prol do
progresso e desenvolvimento, ocorreria pela destruição de uma determinada existência
para a criação de outra, na materializada do espaço. O seu ordenamento, por meio da
criação de tábula rasa, era a tradução do ideal de modernidade vigente, formulado pelas
elites e pelo Estado, com fins de atender à reorganização das dinâmicas do capital,
alocando-o em outros modos de produção.
O grande espaço em grande criado pelo aterro ocupava a extensão de mais de dois
quilômetros, de modo que

A construção do novo porto alterou a relação do bairro do Comércio com o mar, pois
compreendia a construção de uma imensa faixa de aterro na frente do bairro, que o
separava dos novos armazéns, rompendo a relação da contiguidade direta que havia entre
os antigos armazéns e o Cais das Amarras” (PAOLI, op. cit., p. 245-246).

11
Político baiano ocupou, em dois momentos distintos, posições no Governo Federal: entre 1902 a 1906,
foi Ministro da Justiça e Negócios Interiores de 1902 a 1906; de 1910 a 1912, ocupou o Ministério da
Viação e Obras Públicas. Neste ínterim, o mesmo esteve Governador do Estado da Bahia entre 1912 a
1916 e de 1920 a 1924.

• 8
Figura 4. À esquerda, região do Comércio em 1881 (fotografia de Underwood & Underwood). À direita,
mesmo ângulo da Cidade Baixa em 1913 (fotografia de Keystone View Company). Fonte: Guia
geográfico da Cidade de Salvador. Disponível em <http://cidade-salvador.com/>. Acesso em 16 ago.
2022.

A superfície criada pelo aterro foi determinada por um rigoroso traçado em tabuleiro
xadrez, ocupado lentamente até os anos 1940, “quando os enormes vazios deixados pela
operação começaram a ser preenchidos com maior intensidade” (FERNANDES; SAMPAIO;
GOMES, 1999, p. 173). A lenta ocupação ocorreu, em grande medida, pela inibição dos
investimentos externos, estagnados por conta da Primeira Guerra Mundial. Além disso,
as obras do aterro ocorreram em paralelo com o alargamento das ruas existentes no
Comércio, o que acarretou na reforma (através da demolição parcial e reconstrução) dos
edifícios existentes na região:

Consegui, ainda, e por felizes combinações, sob dependencia do mesmo contracto do porto,
reformar a nossa cidade commercial, mudando-lhe o aspecto antigo, saneando-a,
embellezando-a, senão civilisando-a, até a conquista dessa feição moderna, que agora tem”
(SEABRA, 1916, p. 31 apud PAOLI, op. cit., p. 252)

É somente a partir dos anos 1940 que o grande aterro passa a ser extensivamente
ocupado, após diversas medidas de incentivos do Estado para a apropriação material do
espaço12. Vale ressaltar, nesse contexto, a importância da cultura do cacau, que,
nacionalmente, vai financiar a construção dos edifícios na região - inclusive, o próprio
Instituto do Cacau, no Comércio, tem o projeto aprovado em 1933 (ibid., p. 277).
Por sua vez, a Península de Itapagipe, abrigando as primeiras estruturas fabris de
Salvador, estabelecia relações com a região portuária da cidade. A produção industrial -
sobretudo têxtil - era escoada até as docas, para então ser encaminhada para os destinos
finais - fossem eles locais (na própria cidade, no Recôncavo baiano e então nos demais
espaços da Bahia), fossem eles no âmbito internacional. Contudo, essas regiões não se

12
Entre estes, citamos a Lei nº 1.125, de 15 de junho de 2015, que isentava o pagamento do imposto
da propriedade urbana pelo prazo de 11 anos (PAOLI, op. cit., p. 275).

• 9
relacionam somente através das dinâmicas de produção industrial - há, ainda, uma
aproximação possível a ser estabelecida pela realização de sucessivos aterros sobre o
mar.

ALAGADOS: ATERRO COMO ESTRATÉGIA DE PERMANÊNCIA

Figura 5. Recorte da Península de Itapagipe em 1959 (à esquerda) e em 2010 (à direita). Fonte: Conder
(2010). Elaborado pelo(a) autor(a).

Analisando as fotos aéreas da Península de Itapagipe, é possível observar o ganho de


volume de terra sobre o mar ocorrido entre 1959 e 2010, ou seja, no período de mais de
50 anos. Em grande medida, esses aterros foram mobilizados de modo a consolidar o
contingente populacional que ocupou a região em forma de palafitas sobre o mar. A
expansão da superfície terrestre consolidou uma área limitada por vias de bordo. A
expressão mais conhecida deste empreendimento são os sucessivos planos e projetos
realizados em Alagados, na Enseada dos Tainheiros (que hoje engloba a parte litorânea
dos bairros Massaranduba, Uruguai e Lobato).
Aramis Ribeiro Costa, médico baiano, em seu livro de memórias sobre a Península de
Itapagipe dos anos 1950, credita à Alagados a definição da topografia definitiva da
Península de Itapagipe13. Mas não resume a região somente a esse fenômeno. Ao relatar
as memórias de sua infância na península itapagipana, Costa evoca distintos aspectos
distintos da região. Destarte, indica que Itapagipe era a nomenclatura utilizada pelos
moradores do local para se referenciar ao que hoje entendemos como o bairro da Ribeira

13
“[Os Alagados acabou] por modificar, inclusive, com o aterro progressivo que se tornou definitivo, a
própria topografia da Península Itapagipana” (COSTA, 2018., p. 45).

• 10
(COSTA, op. cit., p. 23), cuja designação advém dos estaleiros navais existentes na
localidade (ibid., p. 22). A região se constitui historicamente com o mar, seja pela
presença de equipamentos náuticos (para além dos já citados estaleiros navais, estavam
presentes clubes de regatas de vela d’içar, um hidroporto, entre outros
estabelecimentos), seja pelo porto natural que se formava às margens da Rua Porto de
Tainheiros:

Também se podia ver, não apenas no pequeno trecho dos anos 50, mas ao longo de toda
a comprida via pública [desde a Av. Porto dos Mastros até a Igreja da Penha], os muitos
barcos fundeados, ou encalhados nos bancos de areia próximos à amurada do cais, areia
apenas visível nas marés baixas e que, por sua curta extensão e dependência das marés,
não era chamada de praia (ibid., p. 42).

Figura 6. Mapa com vias e localidades pertinentes da Península de Itapagipe. Elaborado pelo(a) autora(a).

O Largo do Papagaio iniciava a delimitação entre o mar e a superfície terrestre, cuja


fronteira se estendia demarcada pelo sistema viário - da Avenida Porto dos Mastros,
passava-se à Rua Porto de Tainheiros e, por fim, ao Largo da Ribeira 14. Ao lado do Porto
dos Mastros, existia uma grande região de manguezal alagadiça, que, ao longo do século
XX, foi sendo ocupada por construções em palafitas - localidade chamada de Alagados,
cuja ocupação sobre o mar vai ser transposta por um grande aterro, a ser abordada em
breve neste artigo.

14
Hoje, a região é conhecida por abrigar uma série de sorveterias e demais empreendimentos culinários.
Ainda, vale ressaltar a existência do Terminal Marítimo da Ribeira, que faz a travessia entre Ribeira e
Plataforma, e o Terminal Pesqueiro de Salvador, que atualmente se encontra fechado.

• 11
Segundo Costa, a Península de Itapagipe era ocupada pela classe média (ibid., p. 28) 15,
mas passou por um processo de “proletarização” (ibid., p. 29) devido a presença de um
contingente significativo de fábricas na região. A construção e manutenção de
embarcações16 já constituíam atividades industriais realizadas na localidade e, no século
XIX, abriga as primeiras fábricas da cidade, posto o fácil acesso à linha férrea e ao porto
(localizado no Comércio)17.
Nesse momento histórico, a Bahia foi um grande pólo têxtil do Brasil18, de modo que
havia, em 1890, na península itapagipana ao menos quatro das dez indústrias têxteis do
estado (CARDOSO, 2004, p. 61)19. Essa estrutura fabril convocou a construção de
habitações operárias na proximidade, com apoio da administração pública para ocupação
de terrenos baldios. Os industriários construíram imóveis residenciais, com isenção fiscal,
com fins de aluguel aos trabalhadores (ibid., p. 106).
Contudo, a atividade industrial na região enfrentou sucessivas crises 20, de modo que nos
anos de 1950 muitas fábricas e galpões das indústrias se encontravam inativas (COSTA,
op. cit., p. 54). Nesse contexto de instabilidade e retração das atividades produtivas, é
possível aferir o empobrecimento da classe trabalhadora, o que culmina, minimamente,
na incapacidade da manutenção dos pagamentos de aluguel. Desta forma, é possível
relacionar o desmonte da estrutura fabril com as primeiras ocupações que ocorreram na
região.

15
Muito embora Aramis Costa apresente esse perfil populacional para o século XX, demais pesquisadores
(Mattoso, 1992; Nascimento, 2007 [1986]) indicam que a região era ocupada, durante o século XIX, por
uma população predominantemente negra, em sua maioria trabalhadores pobres (majoritariamente
pescadores, mas também costureiras, ganhadeiras, lavadeiras, vendedoras de mingau).

16
“De alguma forma, a Península de Itapagipe sempre esteve relacionada à indústria, haja vista a atividade
de construção e reparos de navios e embarcações que, desde o primeiro século da colonização portuguesa,
transformou toda a vasta área num grande estaleiro naval. E, na verdade, jamais deixou de ter estaleiros
importantes” (COSTA, op. cit., p. 26).

17
Ainda assim, à época, o conjunto industrial da cidade se encontrava afastado da ocupação central da
cidade, ou seja, ocupava uma região periférica. A partir de Santos (2012 [1958]), consideramos a
ocupação central da cidade como a região da falha geológica, que configura a relação Cidade Alta e Cidade
Baixa, e do seu entorno adjacente.

18
“Em 1866 havia oito fábricas de tecidos no Brasil, cinco delas na Bahia, que teria se tornado o primeiro
centro têxtil do país, apesar das pequenas dimensões se comparadas às indústrias européias na mesma
época.” (CARDOSO, 2004, p. 59).

19
“Mas a atividade têxtil não é a única atividade industrial de Salvador, na época. Há ainda manufaturas
de calçados, rapé, biscoitos, gelo, óleo, móveis, alambiques, cigarros, charutos, fundições de ferro e de
bronze; e ainda manufaturas de pregos, de velas, de refino de açúcar; de sabão e sabonetes, de
chocolates, de cervejas, de luvas, de fósforos, de massas alimentícias, de serrarias, de ferro esmaltado,
etc” (MATTOSO, 1978, p. 281 apud ibid., p. 59).

20
Entre essas, podemos citar brevemente, a partir da análise de Santos (2010) sobre as atividades da
Companhia Empório Industrial do Norte (indústria têxtil localizada na Península de Itapagipe), as
dificuldades em manter a balança de lucros e a incapacidade de disputa com o mercado nacional e
internacional.

• 12
Milton Santos (2012 [1958]) relata a existência de “invasões” na cidade de Salvador nos
anos 1950, cuja a mais “impressionante de todos é aquele construído sobre os
manguezais aterrados com lixo, na península de Itapagipe” (ibid., p. 54). Ainda, indica
que esta ocupação é uma construção paisagística artificial, fruto de

ganhos sobre mar, mais particularmente sobre os mangues, os terrenos hoje ocupados com
as invasões da península de Itapagipe, casas de gente pobre construídas inicialmente à
moda das palafitas e depois sobre terrenos “fabricados” com depósitos de lixo (ibid., p. 57).

Figura 7. Palafitas sobre área alagadiça da Enseada de Tainheiros, na Península de Itapagipe. Fonte:
CARVALHO (2002).

Aramis Costa, ao se referir sobre Alagados, menciona a destruição do bioma local e os


aspectos de precariedade que constituíam a ocupação21. Essas narrativas (tanto a de
Milton Santos quanto de Aramis Costa) evocam os aspectos precários da ocupação, mas
também apontam para uma estratégia de permanência realizada por aterros pontuais,
com lixo, pela própria população.
A princípio, a ocupação é uma resposta à dificuldade de acesso ao solo urbano por parte
da população pelas vias legais, que recorre a esta estratégia como forma de garantia de
moradia. Ainda, observa-se ações coletivas de apropriação do solo urbano pelas vias
materiais - criação e consolidação da ocupação através do aterro, bem como a construção

21
“Por outro lado, em quase toda a extensão [da Avenida Porto de Mastros], acompanhava a recente e
já imensa invasão de Alagados, as palavras que rapidamente formavam um quase infindável labirinto de
casinhas minúsculas e pontes improvisadas de madeira sobre o manguezal e sobre as águas, em grande
parte turvas e estagnadas. O mangue, bastante destruído, havia perdido muito da antiga fauna, estando
quase sem peixes, habitado apenas por moluscos e caranguejos” (COSTA, op. cit., p. 43).

• 13
de casas em alvenaria (estrutura muito mais sólida e estável do que as palafitas de
madeira), que retificam a permanência dos moradores no local por meio da materialidade.
As medidas de urbanização engendradas a partir da década de 1970 não se ancoram
somente na necessidade de garantir melhores condições de vida aos cidadãos, muito
menos no desenvolvimentismo por meio da “superação” de uma forma de produção de
espaço precária. O processo é “conveniente” ao Estado, uma vez que não necessita
mobilizar o aparelho estatal para deslocar o grande contingente populacional 22 para
outras regiões da cidade. Ainda, garante rentabilidade ao setor imobiliário ao manter
demais espaços da cidade livres para o mercado 23, consolidando a população em uma
localidade de baixo valor de solo.
Raquel Mattedi (1979) localiza o início das ocupações de Alagados a partir de 1946, no
trecho da Fazendo do Coronel, localizada no bairro de Massaranduba (à leste da Avenida
Porto dos Mastros). Conforme a ocupação foi crescendo e se consolidando, agentes
políticos intervieram pontualmente no espaço, realizando asfaltamento de rua, construção
de equipamentos comunitários, escolas, implantação de estrutura em rede (CARVALHO,
2002, p. 95), sobretudo nas regiões onde a população já havia realizado aterro por conta
própria com entulhos ou lixo, construindo moradias com materiais mais permanentes (por
exemplo, alvenaria).
Em 1973, dois terços da população de Alagados já se encontravam, nas palavras de
Carvalho (op. cit., p. 96), em áreas urbanizadas. Esse entendimento decorre da
consolidação mínima de uma estrutura material da ocupação sobre as águas. Esta se
dava se dava em estágios e seguindo padrões: inicialmente erigiam casas de madeira
sobre palafitas, de “quatro a seis metros de largura, dispostos de forma linear”, com uma
distância “relativamente regular, entre cinco e sete metros, é respeitada entre fachadas
que se confrontam”. Ainda, “uma distância em média de vinte metros separa as ruas, que
se dispõem de forma paralela, definindo a largura das quadras” (ibid., p. 97).
Posteriormente, aterrava-se o mar com lixo e material de entulho, conseguido pelos
moradores ou mesmo provido pela prefeitura (ibid., p. 99). O solo, conforme ia sendo
conquistado e consolidado (inclusive, utilizando material arenoso), foi formando as ruas
sem critérios técnicos sobre os traçados de vias, posto que não havia um plano de
urbanização ou parâmetros de ocupação determinados pelo poder público - ou mesmo
pelos moradores. As habitações que já estavam em regiões mais “sólidas” eram,
porventura, construídas em alvenaria e as ruas asfaltadas (ibid., p. 100).

22
Segundo Gordilho-Souza (2008, p. 270), na década de 1970, havia em Alagados uma população de
aproximadamente 70 mil habitantes.

23
Sobretudo se considerarmos que, entre 1925 a 1991, 5,83% da área do município era formada por
ocupações coletivas (GORDILHO-SOUZA, 2008, p. 210).

• 14
Figura 8. Esquema dos estágios de ocupação na região. Fonte: Carvalho (2002).

Entre 1973 e 1974, o Estado, na contramão da erradicação das ocupações24, mobiliza o


aparelho administrativo para iniciar os procedimentos de urbanização de Alagados,
valendo-se da estrutura do Banco Nacional de Habitação (BNH) para financiar a ação. Um

24
“Enquanto outras invasões, existentes em Salvador, estavam sendo reprimidas ou, até mesmo,
erradicadas, a área de Alagados era objeto de investimentos do setor público que lhe assegurava
progressivas melhorias das condições habitacionais o que possibilitou a consolidação urbana de grandes
áreas alagadas antes da intervenção de 1973” (ibid., p. 96). Ainda assim, vale ressaltar que, em
décadas anteriores, o Estado desenvolveu processos de demolição das moradias em Alagados, utilizando
força policial, mesmo com a declaração de utilidade pública para efeito de desapropriação e garantia da
permanência dos moradores no local (ibid., p. 89).

• 15
concurso público nacional foi convocado para a desenvolvimento de um plano
esquemático global de urbanização, que implementasse as soluções de forma rápida e
respeitando determinadas condições (melhoria das condições de habitação; respeito às
características existentes da organização comunitária e social, com a manutenção das
relações de vizinhança; preservação dos investimentos habitacionais e infraestruturais da
localidade; realização do mínimo necessário de aterro, de modo a reduzir a densidade
ocupacional; entre outros). A operação, implementada até 1987, erradicou as palafitas
existentes, realizando um grande aterro, bem como provendo a rede de serviços
essenciais - água, saneamento e eletricidade (ibid., p. 85-86).
Entre 1973 a 1987, é executado o plano urbanístico à nível executivo, legalizando a posse
de terra e realizando os aterros. Também são construídas as habitações, com ocupação
tipo cluster, atendidas pela rede de serviços básicos. Os trabalhos são interrompidos em
1987 e durante a década de 1990, a população retoma paulatinamente a ocupação sobre
o mar por construções em palafitas e aterro com entulhos. Em 1996, uma nova frente de
trabalho atua propondo uma série de projetos, e implementando-os, desta vez com a
construção de uma pista de borda para conter futuras ocupações.

Figura 9. Síntese da produção de espaço em Alagados pelas vias institucionais, com seus respectivos
marcos temporais. Fonte: Carvalho (2002).

• 16
A experiência de urbanização de Alagados teve como mote a recuperação e urbanização
de forma integral de toda área ocupada, desenvolvendo um caminho contrário à atuação
das instituições públicas de remoção das ocupações populares. Também se destaca,
enquanto caráter inovador, a criação da carteira de financiamento de urbanização de
assentamentos populares no escopo no BNH (CARVALHO, op. cit., p. 125). De toda forma,
o desenvolvimento de Alagados revela o privilégio da terra sobre o mar, cujo movimento
veio da população, retificado pelo Estado, de modo que uma estratégia de permanência
dobra para uma ação institucional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O urbanismo, enquanto dispositivo de controle, tem o aterro enquanto conduta e
expressão radical do poder. Associados a planos e projetos urbanos, o aumento de
superfície terrestre sobre o mar reformula formas de ocupação e usos existentes. As
operações aqui mencionadas apontam para modos distintos de agenciar esta tecnologia
de poder pelo Estado. De um lado, temos o ganho de superfície com fins de atender a um
ideal de desenvolvimento e progresso, a formulação de novos espaços da cidade para
uma (suposta) nova sociedade, cujo os fins são para atender a reorganização do capital.
Do outro, os aterros são mobilizados pela população local enquanto estratégias de
permanência e esta medida é, por fim, sancionada pelo Estado, uma vez que a sua
conversão seria muito mais onerosa do que a manutenção dos moradores.
A produção do espaço urbano é formulada por ações plurais, com diversos interesses
implicados. Os aterros realizados em Alagados, em especial, apontam, minimamente,
para uma dupla operação das práticas espaciais e dos espaços de representação. A ação
dos moradores, aterrando os espaços para solidificar materialmente a permanência na
ocupação, indica a mobilização de um sistema de signos técnicos, que foi ratificado pela
atuação do Estado. Portanto, essa ocorrência aponta, inicialmente, a impossibilidade de
isolar o fragmento dentro das categorias epistêmicas. Os acontecimentos dentro do
espaço precisam, então, ser analisados pela emergência de sua complexidade. Aqui,
consideramos o início de uma análise desse fenômeno, a ser desenvolvido porventura.
Ainda, tanto o Comércio quanto Alagados convocam para outras reflexões: quais sentidos
evocam este avanço de terra sobre o mar? Não haveria, também, uma produção de cidade
que se faz também junto ao mar? Que cidade pode ser realizada junto ao mar? Nesse
sentido, Costa, em sua rememoração pela Península de Itapagipe dos anos 1950, nos
anuncia uma pista importante:

A balaustrada em frente [de uma casa na Penha, próxima a Igreja homônima] era um dos
lugares preferidos dos pescadores amadores, que ali permaneciam durante horas, na brisa
fresca das tardes itapagipana, à sombra daquelas árvores grandes, a apreciar a paisagem
suave e deliciosa à frente, enquanto seguravam as varas de pescar ou os cordões dos
jererés” (COSTA, op. cit., p. 150-151).

Até hoje é possível observar pescadoras e pescadores lançando linha junto ao mar, sobre
as balaustradas, atracadouros e até mesmo equilibrados nas pedras à beira-mar. Nas

• 17
contenções entre a porção terrestre e aquosa, existem estaleiros navais populares que
são mantidos pelos moradores. Barcos atracam e ancoram por todo litoral soteropolitano,
em maior ou menor quantidade a depender da localidade, evidenciando uma relação
cotidiana estabelecida entre esses (muitos) outros com o mar. Os diversos sujeitos
produzem cotidianamente o espaço a partir de práticas que que mobilizam técnicas e
tecnologias, objetos e o próprio corpo. Que modos de vida existem junto ao mar? É
possível pensar uma existência sobre a água sem a sua supressão? Como pensar a
produção do espaço a partir da corporeidade?

Figura 10. Pescadores lançam linha sobre pedra, à beira-mar de Salvador. Acervo pessoal (2019).

Pensar sobre formas possíveis de produção do espaço, tomando Salvador como bússola
de reflexão, permite pensar sobre as múltiplas coexistências – a princípio, aterros e
práticas. Mas não são somente esses elementos que contribuem; há, ainda, de se
considerar os conflitos, condutas e contracondutas, resistências e lutas na produção do
espaço – ou seja, ponderar acerca dos jogos de poder, conforme Michel Foucault nos
convoca. Por mais que realize desmontes e destruições a favor de formulações idealistas
de desenvolvimento e progresso, práticas e dinâmicas permanecem, adotando uma
postura de resistência e luta no cotidiano.
Por fim, ainda que o aterro tome corpo enquanto estratégia de dominação, diversas
camadas permanecem nele para serem exploradas. Literalmente. Quantas existências
soterradas não são possíveis de serem analisadas e exploradas? Não seria possível adotar
uma postura arqueológica, investigando os múltiplos estratos, do passado e do presente,
existentes na cidade? Tomar os elementos, esquecidos, escondidos – os resíduos – para

• 18
ponderar acerca dos aspectos materiais e abstratos que os compõe. Recorrer aos
elementos de um aterro tal qual o trapeiro benjaminiano: coletar, catalogar e colecionar
tudo o que a cidade destruiu (BENJAMIN, 2018, p. 579), e ocupa-se deste tesouro.

REFERÊNCIAS
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Paisagístico e Urbanístico do Bairro do Comércio, Salvador - BA. Salvador, IPHAN:
2008.
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Salvador moderna (1892 - 1947). Dissertação (Mestrado) - Escola de Engenharia de São
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CARVALHO, Eduardo Teixeira de. Os Alagados da Bahia: Intervenções Públicas e
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Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2002.
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• 19
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SANTOS, Milton. O Centro da Cidade do Salvador: Estudo de Geografia Urbana. 2ª ed. 1ª
reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012 [1958].

• 20
DISPERSÃO URBANA NO BRASIL.
Leituras sobre os processos territoriais de transformação do tecido
urbano.
URBAN SPRAWL IN BRAZIL. READINGS ON THE TERRITORIAL
PROCESSES OF TRANSFORMATION OF THE URBAN FABRIC. /
DISPERSIÓN URBANA EN BRASIL.
LECTURAS SOBRE LOS PROCESOS TERRITORIALES DE
TRANSFORMACIÓN DEL TEJIDO URBANO.
Práticas, processos e institucionalidades

TAVARES, Jeferson
Arquiteto e Urbanista; IAU-USP
jctavares@usp.br
RESUMO

O objetivo é investigar as principais interpretações sobre o processo histórico


de dispersão urbana no Brasil. À luz das evidências de transformação do tecido
urbano das cidades, busca-se responder à questão sobre as particularidades
nacionais desse processo. Metodologicamente, a presente investigação
vincula-se a uma revisão bibliográfica para identificar os principais marcos
teórico-conceituais sobre o assunto e observá-los em relação ao histórico das
transformações territoriais e suas leituras. Pesquisas recentes têm apontado a
dispersão urbana como um processo característico da urbanização
contemporânea que difere da expansão da mancha metropolitana que marcou
a cidade baseada na lógica produtiva industrial. Pois a dispersão urbana
consolida novas configurações urbanas e diz respeito a novas formas sociais
de assentamentos no território. Suas particularidades colaboram para uma
revisão das relações com o centro e com as bordas da mancha urbanizada e,
principalmente, com a mudança no tecido urbano. A partir dessas leituras, que
nesse artigo são analisadas pela problematização histórica, é possível destacar
que o tecido urbano torna-se a principal estrutura da dispersão urbana por
estar condicionado a um reescalonamento funcional que altera as relações
centro-periferia.

PALAVRAS CHAVE Dispersão urbana; Tecido urbano; Processo de


urbanização; Reescalonamento funcional.

ABSTRACT

The objective is to investigate the main interpretations about the historical


process of urban dispersion in Brazil. In light of the evidence of the
transformation of the urban fabric of cities, we seek to answer the question
about the national particularities of this process. Methodologically, the present
investigation is linked to a bibliographic review to identify the main theoretical-
conceptual landmarks on the subject and observe them in relation to the
history of territorial transformations and their readings. Recent research has
pointed to urban dispersion as a characteristic process of contemporary
urbanization that differs from the expansion of the metropolitan area that
marked the city based on the industrial productive logic. Because urban
dispersion consolidates new urban configurations and concerns new social
forms of settlements in the territory. Its particularities contribute to a review
of the relationship with the center and with the edges of the urbanized area
and, mainly, with the change in the urban fabric. From these readings, which
in this article are analyzed through historical problematization, it is possible to
highlight that the urban fabric becomes the main structure of urban dispersion
because it is conditioned to a functional rescheduling that alters the center-
periphery relations.
KEY-WORDS Urban dispersion; Urban fabric; Urbanization process;
Functional rescheduling.

• 2
INTRODUÇÃO
Este artigo busca demonstrar, por meio de uma análise das principais leituras e
interpretações sobre a dispersão urbana, como o histórico da transformação do tecido
urbano torna-se elemento basilar para compreender a estruturação da dispersão urbana.
E, complementarmente, como as novas relações entre centro e periferia proporcionadas
por esse novo ordenamento territorial conferem a particularidade da dispersão urbana
em relação à expansão da mancha urbanizada característica do século XX, no Brasil.
O artigo está divido em duas principais seções onde são investigadas as leituras sobre a
dispersão urbana. A primeira busca caracterizar a trajetória do debate internacional
apresentando as definições e, principalmente, as impressões sobre o fenômeno da
dispersão urbana na Europa, na América do Norte e na América Latina. E, nesse sentido,
apontar aproximações e divergências quanto às características continentais e
subcontinentais dadas as condições e diferenças socioeconômicas, de formação, etc.
A segunda seção busca aprofundar a análise sobre as interpretações do espaço nacional
em todas as suas macrorregiões. Essas investigações não apresentam, necessariamente,
convergências, mas caracterizam com clareza os principais fenômenos do atual estágio
do processo de urbanização brasileiro distinguindo-o de períodos anteriores e de muitas
referências internacionais. Ou seja, a análise das transformações recentes são operadas
pela problematização de suas conformações históricas.
Como poderá ser observado dessas leituras, pode-se concluir pela importância emergente
que o tecido urbano adquire na compreensão e estruturação da dispersão urbana; e como
as transformações que ocorrem subsidiariamente no centro e nas bordas da mancha
urbanizada são orientadas por esse complexo processo. Nesse sentido, a origem dessas
transformações reside no (re)escalonamento funcional que o tecido urbano (novo ou
consolidado) adquire e como ele se comporta no território direcionando as relações
centro-periferia.
Por fim, importante mencionar nessas notas introdutórias que as discussões e análise
aqui propostas vinculam-se aos resultados finais do Projeto Regular FAPESP
2018/13.637-0 que teve como tema a metropolização e a dispersão urbana promovidas
pelos projetos urbanísticos federais pós-1988.

DISPERSÃO URBANA NO DEBATE INTERNACIONAL E AS APROXIMAÇÕES


COM O CONTEXTO BRASILEIRO
A constatação da dispersão urbana na Europa e nos Estados Unidos ao longo do século
XX gerou análises que buscaram compreender e explicar suas origens e efeitos. Essas
análises foram pioneiras e os estudos brasileiros estabeleceram alguns diálogos por
convergências e divergências com os casos europeus e norte-americanos. O que justifica
iluminar os principais aspectos que tiveram aderência e cujas ideias colaboraram para
explicar os casos brasileiros.

• 1
A maior parte dessas análises norte-americanas e europeias ocorreu pelo antagonismo
entre a cidade industrial e a cidade contemporânea. Fishman (1990, pp. 43-49), por
exemplo, demonstrou o anacronismo do modelo centro-periferia em relação à realidade
da metrópole americana contemporânea. Na cidade descentralizada, o subúrbio ganha
maior importância por ser o lugar da classe média e por concentrar novas atividades
distintas do centro principal, condições que lhe atribuíram autonomia em relação a outros
setores urbanos.
Nessas cidades, segundo o autor, a escala passa da rua ou das quadras para os corredores
de crescimento que são fundamentais para a formação de “regiões urbanas”. Conformam-
se por “edge cities” e “clusters” de serviços, escritórios e complexos de entretenimento.
E são caracterizadas por baixa densidade, sem centro único, forte orientação pelas
rodovias e com junção de aspectos do urbano, do rural e do suburbano. As definições de
subúrbio e de cidade central tornam-se obsoletas e o desaparecimento das bordas das
cidades é uma imagem paradigmática desse processo.
Esses aspectos têm convergências com as análises de G. Dematteis (1996, pp. 9-16;
2015, 14-34) sobre a ocorrência desse processo na Europa e mais especificamente na
Itália, onde a dispersão urbana foi caracterizada por movimentos demográficos sucedidos
por mudanças funcionais entre o centro da cidade e uma periferia mais ampla,
diferentemente da periferia compacta do período fordista.
Para o autor (DEMATTEIS, 1996, pp. 11-15), esse processo resultou em duas escalas, a
regional ou a de sistemas funcionais caracterizada pelos movimentos pendulares e
cotidianos; e a de sistemas urbanos e territoriais caracterizada pelo crescimento de
cidades periféricas, descentralização e recentralização do trabalho. E pode ser verificado
por três tipos morfológicos: a periurbanização que depende essencialmente de um serviço
num contexto regional; a difusão reticular por tecidos mistos residenciais e produtivos,
pela expansão metropolitana ou por distritos industriais; e a sobreposição de ambas ao
longo dos eixos de comunicação que resultam numa desconexão com as áreas tradicionais
e simbólicas da cidade.
Nesse contexto, Monclús (1996, pp. 2-8) identifica a cidade descentralizada como um
novo tipo de cidade cujas particularidades são marcadas pelo processo de suburbanização
ou “dissolução” da cidade compacta tradicional, cada vez mais dispersa e fragmentada.
Sua origem está vinculada à profusão de áreas residenciais de baixa densidade e à
descentralização de caráter mais extensivo das novas áreas industriais, parques,
universidades, áreas de esportes, aeroportos, centros comerciais, etc. que ocorrem nas
áreas metropolitanas, mas também nas cidades menores.
A constatação da transformação do urbano como o modo dominante de territorialização
da sociedade sobre extensos espaços ocasionados pelo aumento da mobilidade (física e
informacional) foi denominada de urbanização extensiva, por Domingues (2008, p. 1).
Nela, chama a atenção a questão da grande escala de urbanização que decorre de
múltiplas dimensões que estruturam dinâmicas e processos e ocorre sobre a escala micro
dos lugares. A grande escala permite compreender como se conectam os sistemas

• 2
econômicos aos infraestruturais e aos biofísicos e como que interferem no lugar do
cotidiano.
Na urbanização extensiva definida por Domingues (2008, pp. 6-10), a dicotomia
cidade/campo ou urbano/rural rompe-se por atividades de diferentes escalas e funções
nos limites da área urbanizada. As infraestruturas regionais (como rodovias) sobrepõem-
se às urbanas (como a grelha) e as megaestruturas (grandes hospitais regionais,
condomínios de diferentes funções, centros logísticos) são propostas de maneira
confinada sem relação com o entorno.
Nesse sentido, a compreensão é a de que dispersão e concentração não devem ser
contrapostas e que junto da cidade que se dissolve, dissolvem também alguns conceitos:
de função, de zona homogênea, de hierarquia, de densidade e proximidade enquanto
emergem outros, como compatibilidade e incompatibilidade, porosidade e de justa
distância (SECCHI, 2007, pp. 122, 132-136).
E que a parte essencial de todo esse processo é o tecido urbano. Na multiplicidade de
interpretações (SIEVERTS, 2007, pp. 304) ele foi entendido como a junção de elementos
infraestruturais de mobilidade, habitacionais, serviços e espaços de produção que em
última instância constituem não só cidades dispersas, mas “regiões dispersas”.
No entendimento histórico, Bruegmann (2011, pp. 24) compreende a dispersão urbana a
partir de uma polissemia, mas que tradicionalmente tem sido definida pelo
desenvolvimento de baixa densidade, disseminada, sem planejamento público territorial
sistemático que ocorre na grande escala ou na escala regional.
Indovina (2019) posicionou a dispersão urbana a partir de transformações mais amplas
no território que levam a compreender as cidades pela analogia com arquipélagos para
caracterizar o aspecto fragmentado das ocupações periféricas que se estendem para além
do modelo monocêntrico.
E assim a constatação da dispersão urbana desde o final do século XX tem provocado
debates sobre as cidades compactas e as cidades dispersas (ÁLAMO, 2014, pp. 175-177).
Muito embora a dispersão urbana não seja uma exclusividade da história recente e seja
uma discussão mais ampla que a polarização entre modelos (PESCATORI; FARIA, 2019,
pp. 1-20).
Pois, algumas interpretações têm observado as dinâmicas sociais que envolvem a
dispersão urbana, como a gentrificação e segregação territorial, congestionamentos,
estratificação de valores imobiliários, necessidade da gestão regional-urbana (GUEVARA,
2015, pp. 5-24). E até da propagação da morte da cidade ou, ainda de maneira mais
complexa e pertinente, do questionamento sobre a existência de urbanidade nas novas
escalas da urbanização (CHOAY, 2004).
A partir da circulação dessas ideias, as periferias deixam de ser interpretadas como o
local residual, marginal e de exclusão e passam a ser reconhecidas por sediarem novas
funções, novas escalas de relações sociais e novos aspectos do estilo de vida urbano. Pela
sua extensão, afastam-se da imagem de uma coroa periférica ao redor do centro
tradicional, quando em alguns casos nem mantém relações diretas com ele. Concentram

• 3
mais oportunidades e diversidades, inclusive de classes sociais, e com isso ganham
autonomia e alteram a relação com o centro principal.
No Brasil, os estudos pioneiros dialogaram diretamente com esse debate internacional e
colaboraram na construção de uma crítica à forma como o planejamento mantém-se
inerte diante das mudanças no processo de urbanização.
A partir desse ponto-de-vista, a urbanização dispersa foi caracterizada por Reis (2006,
pp. 12-14) como sendo: dispersão da urbanização em todo o território, separada no
espaço mas com vínculos que as fazem partes de um único sistema; pela “regionalização
do cotidiano” a partir de novos modos de vida baseados na intensa mobilidade
metropolitana e intermetropolitana; pela nova “gestão do espaço urbano” por
condomínios ou loteamentos fechados de moradia, de veraneio, de serviços ou industriais
considerados novas centralidades; com alteração de espaços de caráter público mas de
gestão privada; pela diversificação do mercado imobiliário a partir de empreendimentos
de usos mistos; e pelos novos projetos arquitetônicos e urbanísticos que pretendem
atender a essa nova demanda. E com duas escalas: do espraiamento das ocupações nas
regiões metropolitanas e da dispersão do tecido urbano.
Dentre as particularidades do processo brasileiro apontado pela literatura nacional (REIS,
2007, pp. 39), está a maneira como a dispersão materializa-se por condomínios
residenciais (de todas as rendas) construídos para além das áreas urbanizadas, distritos
industriais, centros comerciais e/ou de serviços, campi universitários, centros médicos
especializados, os de cultura, de lazer, de turismo, etc. Com mudanças nos padrões de
êxodo rural e crescimento demográfico nas cidades, das regiões com população
totalmente urbanizada, da intensificação da industrialização e da dispersão das unidades
produtivas, da universalização dos mercados e da universalização dos modos de consumo
de massa.
Fatores que levam ao entendimento da dispersão pela diminuição do adensamento
urbano, aumento da periferia e, também de formação de novas concentrações urbanas
na escala microrregional (REIS, 2015, pp. 92-107) e não somente pela forma do tecido
urbano.

EVIDÊNCIAS DA DISPERSÃO URBANA NO BRASIL: INTERESCALAR,


MULTIFUNCIONAL E COM NOVOS NÚCLEOS
No Brasil, revisões importantes de terminologias e análises do debate internacional foram
proporcionadas por Reis (2006, pp. 29-37) e Chatel e Spósito (2015, pp. 111-115 e 118-
126a). Mas, de forma sintética, pode-se afirmar que percepção sobre a dispersão urbana
é dada pela ideia de descentralização das aglomerações urbanas como um fato estrutural
do atual processo de urbanização (SPOSITO, 2009, pp. 40-43). A partir da qual a unidade
espacial da cidade dissolve-se pelo espraiamento do tecido urbano e pela diminuição
relativa dos índices de densidade demográfica. Essa condição leva à intensificação dos
fluxos de pessoas e de mercadorias que ocorrem pela aceleração das formas de se
deslocar e comunicar.

• 4
Essas transformações caracterizam a urbanização difusa por tecidos urbanos maiores em
extensão e descontínuos reforçando a interpretação da sociedade como uma rede. Nesse
processo e junto da urbanização difusa, a cidade dispersa caracterizada pelas novas
práticas socioespaciais “marcadas pela fragmentação, pela seletividade socioespacial e
justificadas pelo aspecto da (in)segurança urbana” (SPÓSITO, 2009, p. 50) torna-se a
nova particularidade da vida urbana.
A dispersão urbana no Brasil leva em conta a ideia de espraiamento e fragmentação.
Apesar de o entendimento clássico do termo urbanização significar concentração e
formação de centro e centralidade, o movimento de dispersão faz parte do mesmo
processo porque áreas mais concentradas ou menos densas compõem um mesmo quadro
de urbanização. Incorporam a importância do centro como uma referência, sobretudo no
aspecto metropolitano, mas também os movimentos centrífugos, a expansão das
atividades do centro para a periferia e a fragmentação compreendida por fatores sociais
e não apenas físicos (CHATEL; SPÓSITO, 2015, pp. 121-122).
Observando a dispersão urbana dentro de um processo mais amplo que envolve
mudanças em como as pessoas vivem, na forma da cidade e na relação entre as cidades,
Botelho (2009, pp. 275) pondera sobre quatro características que podem sintetizá-la:
afastamento do limite do tecido urbano em relação ao centro; núcleos urbanos de
diferentes dimensões que formam constelações ou nebulosas integradas numa área
metropolitana, a um conjunto ou a um sistema delas; incorporação de sistemas de
rodovias e ferrovias ao transporte cotidiano intrametropolitano de pessoas; difusão de
modos metropolitanos de vida.
Em relação às mudanças demográficas e territoriais, a dispersão urbana pode ser
caracterizada (CATALÃO, 2015, pp. 250-277) por: crescimento territorial e populacional,
com predominância do primeiro; mudança de relação entre densidade e compacidade na
relação centro-periferia; ruptura da continuidade territorial urbana com indicação de
vazios; e intensificação da diferenciação socioespacial. E contempla quatro elementos:
crescimento territorial acentuado, diminuição progressiva das densidades, perda de
continuidade territorial urbana e ampla segmentação social.
Evidentemente, esses fenômenos implicam em dois fatores no crescimento urbano
(OJIMA, 2007, pp. 277-300), um relativo ao populacional que interfere diretamente na
demanda por infraestrutura; e outro relacionado à expansão física das cidades que implica
em custos sociais e impactos ambientais.
Nas cinco macrorregiões do país essas características repetem-se com maior ou menor
intensidade demonstrando um processo de transformação em diferentes áreas do
território brasileiro. Mas, em cada caso há especificidades importantes de serem
compreendidas. Alguns casos são paradigmáticos dessas relações gerais e particulares.
No Sudeste, a implantação do COMPERJ (Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro
localizado no município de Itaboraí, no estado do Rio de Janeiro) transformou a dinâmica
imobiliária do município vizinho, de Maricá-RJ, pela atração de empreendimentos
condominiais (HOLZER, 2016, pp. 71-89). Esses empreendimentos são motivados pela
demanda de novos empregos gerada pelos grandes investimentos públicos federais do

• 5
COMPERJ e são atraídos pelo baixo custo da terra e pela disponibilidade de infraestrutura
proporcionada por governos locais, estadual e federal. Esses empreendimentos ocorrem
na borda do tecido urbano e se justificam pela busca de qualidade de vida fora da
metrópole.
Próximo da mesma área, a instalação do Complexo Portuário e Logístico do Açu também
atraiu outros empreendimentos para um conjunto de cidades sob suas influências (São
João da Barra, Campos, Macaé, Rio das Ostras, Cabo Frio, Araruana, Niterói, Maricá e
Itaboraí, todas no estado do Rio de Janeiro). Esse empreendimento consolidou uma
interdependência dessas cidades com a capital estadual Rio de Janeiro-RJ e reorientou a
função regional do aglomerado (ARAUJO, 2016, pp. 91-111) com mudanças na hierarquia
da rede urbana.
Em ambos os casos (do COMPERJ e do Complexo Portuário e Logístico do Açu), houve a
constituição de um mercado de terras que se ampliou sob influência de grandes projetos
federais de abrangência nacional e internacional. As maiores transformações ocorreram
sobre a escala local, orientadas por investimentos federais e de capital privado e
descoladas das características urbanísticas do lugar.
No Nordeste, especialmente nas áreas metropolitanas (como na Região Metropolitana de
Natal-RN), a dispersão que se verifica é caracterizada por uma mancha urbanizada
descontínua com deslocamentos demográficos frequentes e intensos, marcada por baixa
densidade populacional, ocupação horizontal e com dependência do transporte individual.
O movimento pendular é intensificado por novas hierarquias urbanas e novos
empreendimentos de diferentes escalas (OJIMA; MONTEIRO; NASCIMENTO, 2015, pp. 9
a 20). A sede da região metropolitana não é a principal origem ou o principal destino
desses fluxos – como ocorria até os anos 2000 - e o crescimento dos municípios do seu
entorno não deriva exclusivamente do transbordamento dos fluxos migratórios da capital.
Fatores que demonstram a construção de novas hierarquias e o redirecionamento dos
movimentos pendulares.
No Sul, no estado do Paraná, o aglomerado urbano de Maringá-PR (CORDOVIL; BARBOSA,
2019, 21-30) apresenta crescimento dos movimentos pendulares orientados pelo
município polo (Maringá), implantação de grandes polos de atração em áreas periféricas,
aumento do transporte individual de passageiros, fluxos regionais que produzem novas
centralidades e ocupações ao longo de eixos regionais (ferrovias e rodovias). A
proliferação dos condomínios residenciais, de universidades, do aeroporto, dos centros
comerciais e das indústrias em áreas rurais e articulados às vias regionais definem a
expansão urbana e promovem a dispersão das cidades ao redor de Maringá.
No Norte, na região amazônica, a urbanização no limite da selva e distante das ocupações
tradicionais consolidou um tipo de dispersão cuja configuração foi interpretada pela ideia
de urbanização extensiva (MONTE-MÓR; LINHARES, 2009, p. 148) e foi precursora na
leitura da relação entre os meios de produção e a produção do meio urbano nessa região.
Tratada também como urbanização difusa, o avanço desse processo foi mais vinculado à
importância das cidades médias no quadro regional da Amazônia. E atualmente está
representada por um reordenamento territorial baseado nas políticas públicas que

• 6
incidiram e incidem sobre seu território e que colaboram na difusão do fenômeno urbano
em nível espacial mais amplo e complexo (TRINDADE JÚNIOR, 2015, pp. 305-334).
Há ainda uma dispersão eminente de povoados e comunidades isoladas dos distritos
urbanizados. Presentes no sertão do Nordeste, no interior do Norte e nas cidades de baixa
industrialização do interior do Centro-Oeste, Sudeste e Sul, esses pequenos povoados e
comunidades são considerados pelos instrumentos de planejamento como áreas rurais,
mas representam importantes centros comerciais, políticos e religiosos das áreas sob sua
influência (TAVARES; GONÇALVES; ROSAS; SOUZA, 2020). E configuram uma
particularidade do desenvolvimento disperso que aproxima modos rurais às dinâmicas
urbanas, sobretudo pela produção e distribuição de alimentos e recursos naturais.
Por fim, cabe destacar o papel do planejamento nesse processo de dispersão urbana no
Brasil. Como indicam estudos recentes (LEONELLI; MOCCI; MAIA, 2019, pp. 299-312),
os governos locais (dos casos estudados dos municípios de Araraquara-SP, Chapecó-SC,
Ribeirão Preto-SP e Uberlândia-MG, nas regiões Sudeste e Sul) têm colaborado para a
dispersão urbana. Seus planos diretores ampliam as reservas de terras classificadas como
urbanas, muitas vezes maiores que a própria área urbanizada da cidade, e assim
incentivam o espraiamento da área a ser urbanizada por possibilitarem regulações mais
flexíveis para aprovação de loteamentos, desmembramentos, instalação de novas
atividades produtivas, etc.
Essas decisões favorecem a iniciativa privada e a profusão de condomínios de diferentes
naturezas, mas principalmente residenciais e destinados às classes de média e alta renda
a partir do controle de índices urbanísticos, como os baixos coeficientes de
aproveitamento que encarecem o uso da terra. Ou até mesmo pela permissividade e
flexibilidade de planos diretores com formas condominiais irregulares ou ilegais fechadas
por muros e guaritas.
Assim, emergem iniciativas bem-sucedidas do ponto-de-vista do mercado imobiliário e
da construção civil, como no caso emblemático da empresa Alphaville (SILVA, 2016) com
empreendimentos nas principais cidades brasileiras, portanto não restritos às regiões
metropolitanas. Uma indústria de urbanização de terras que promove a dispersão urbana
por loteamentos padronizados responsáveis pela ocupação de áreas rurais ou vazios nas
franjas urbanas beneficiando-se do baixo custo da terra e da propagação de novos modos
de vida.

CONCLUSÕES
A verificação e a possibilidade da caracterização da dispersão urbana brasileira podem
ser concluídas pelo entendimento das transformações do tecido urbano. Ao longo do
século XX e nas primeiras décadas do século XXI, o tecido urbano das cidades brasileiras
que receberam recursos para políticas urbanas e regionais passou por modificações
materiais (pela fragmentação, pela ampliação ou pelo rompimento das suas bordas) e
imateriais (pelas mudanças de hierarquia das tradicionais áreas centrais ou pela mudança
de perfil social das periferias).

• 7
Essas transformações implicaram na mudança de escala da abrangência do tecido urbano,
ora intensificando domínios urbanos; ora intensificando domínios regionais. E mudança
na função desse tecido que passa a ser sede de outras atividades rompendo uma
estrutura morfológica e funcional constituída pela atividade industrial e pelas atividades
subsidiárias à atividade industrial. Intensificação de serviços intermunicipais ou regionais,
maiores interdependências entre os entes federativos e intensificação da circulação de
mercadorias, de pessoas e de capital consolida uma nova estrutura do tecido que sintetiza
o reescalonamento funcional.
Esse reescalonamento funcional pode ser considerado como uma forte evidência de que,
à luz do desenvolvimento das cidades brasileiras, a dispersão urbana pode ser
considerada uma particularidade do período atual da urbanização que se soma a
processos históricos, sem excluí-los. Cabendo à pesquisa e ao planejamento mensurar
suas particularidades e impactos.

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• 9
ENSAIO SOBRE O BAIRRO DE SÃO CRISTÓVÃO, RJ
Transformação urbana e social através da trajetória de seus
moradores, 1890-1940
ESSAY ABOUT SÃO CRISTÓVÃO NEIGHBORHOOD
Urban and social transformation through the trajectory of its
residents, 1890-1940
Práticas, processos e institucionalidades

GENNARI, Luciana Alem


Doutora em Planejamento Urbano e Regional;
Professora Adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
luciana.gennari@eng.uerj.br
RESUMO

Este artigo procura explorar possíveis narrativas sobre o bairro de São


Cristóvão na cidade do Rio de Janeiro a partir da perspectiva da micro-história,
tensionando uma historiografia já consagrada a partir de trajetórias pessoais
de famílias que se envolveram com este espaço. O bairro aqui assume um
sentido associativo de pertencimento e sua história se mistura com a trajetória
da família de Antonio Ferreira Agostinho. A história do lugar vai sendo
construída de forma relacional, debatendo tempos, lugares, personagens,
temas e fatos já abordados por outros estudos e que têm a que podem ser
postos em perspectiva. Esse percurso se assemelha a tantos outros que foram
experenciados por sujeitos envolvidos no processo de urbanização acelerada
pelo qual a cidade passava. Esse grupo, que faz parte dos “setores médios
urbanos” é difícil de ser caracterizado, mas teve importante participação no
processo de transformação física e social da cidade. Esse estudo abrange o
período em que Antonio Ferreira Agostinho viveu em São Cristóvão até sua
morte, de 1890 a 1940.

PALAVRAS CHAVE Rio de Janeiro (cidade); São Cristóvão (RJ); Antonio


Ferreira Agostinho; Bairro; Setores Médios Urbanos.

ABSTRACT

This paper aims to explore possible narratives about the neighborhood of São
Cristóvão in the city of Rio de Janeiro from the perspective of microhistory,
tensing an established historiography based on the personal trajectories of
families who were involved with this space. The neighborhood assumes an
associative sense of belonging and its history is blends with the trajectory of
Antonio Ferreira Agostinho's family. The history of this site is written in a
relational way, discussing times, places, characters, themes and facts that
have already been approached by other studies and that can be put into
perspective. This path is similar to many others that were experienced by
subjects involved in the accelerated urbanization process the city was going
through. This group, which is part of an "urban middle sectors" is difficult to
be characterized, but it had an important participation in the process of
physical and social transformation of the city. This study covers the period
when Antonio Ferreira Agostinho lived in São Cristóvão until his death, from
1890 to 1940.

KEY-WORDS Rio de Janeiro (city); São Cristóvão (RJ); Antonio Ferreira


Agostinho; Neighborhood; Urban Middle Sectors.
INTRODUÇÃO

Este artigo é um desdobramento da pesquisa realizada no âmbito do estágio de pós-


doutorado realizado no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ) no ano de 2021 sob supervisão da
profª Fania Fridman, intitulado “A participação dos setores médios na produção social do
espaço urbano da cidade do Rio de Janeiro na Primeira República”. O objetivo aqui é
explorar possíveis narrativas sobre a cidade do Rio de Janeiro, a partir da perspectiva da
micro-história, tomando o recorte do bairro de São Cristóvão como o fio condutor do
tensionamento de uma historiografia já consagrada a partir de trajetórias pessoais de
famílias que se envolveram com este espaço. Esta dinâmica propõe trabalhar com uma
escala de tempo e de espaço, que adotam a noção de bairro em seu sentido associativo
de pertencimento, antes do que o administrativo de ordenamento (GENNARI, 2019).
Através da trajetória da família de Antonio Ferreira Agostinho durante as primeiras
décadas do século XX, busca-se construir uma das possíveis histórias de São Cristóvão,
que debata tempos, lugares, personagens, temas e fatos já abordados por outros estudos
e que tenha a possibilidade de colocar este constructo em perspectiva numa teia
relacional, onde o ambíguo e o contraditório podem matizar as narrativas de forma não
excludente (ROCHA-PEIXOTO, 2013). Neste sentido, entende-se que os grupos
constituem seu lugar, ao mesmo tempo que por ele são influenciados; são por ele ao
mesmo tempo determinados ou constituídos e deles determinantes ou constituintes
(HALBWACHS, 1941; BOURDIEU, 2007).
Em um período peculiar, de transição no cenário político e econômico nacional, este
português, recém-chegado ao Distrito Federal, foi morar na rua Bella de São João,
estabeleceu uma quitanda na rua de São Januário e, nas décadas seguintes, construiu
nas proximidades casas e edifícios para uso próprio e para aluguel nas ruas Sá Freire e
Conde de Leopoldina. Ele, seus filhos e netos tomaram o espaço do bairro como lugar
privilegiado de reprodução de suas práticas, contribuindo de forma ativa para a
configuração das morfologias física e social do lugar.
Essa trajetória se assemelha a de tantas outras pessoas e famílias que se estabeleceram
em áreas da cidade que passavam, na virada para o século XX, por um processo de
urbanização acelerada. Este grupo denominado “setores médios urbanos” é apontado por
diversos estudos como difícil de ser caracterizado, dada a sua diversidade social. Ele era
formado, entre outros, por pequenos e médios investidores, que foram responsáveis na
somatória por significativos investimentos privados no mercado imobiliário, conformando
extensas áreas da cidade, num momento em que predominava a lógica capitalista e liberal
regulada por um Estado que se burocratizava. Analisando o conjunto dessas ações, a
história da cidade se desfia numa teia complexa, onde os percursos corriqueiros foram
capazes de produzir paisagens urbanas e sociais mais ou menos homogêneas, que não
chamam a atenção nem pela opulência, nem pela escassez de recursos, mas que marcam

● 1
ainda hoje a memória urbana e o sentido de pertencimento na cidade, que estão no cerne
de uma das definições de bairro.
O nome de Antonio Ferreira Agostinho surgiu em um levantamento sobre proprietários
que construíram duas ou mais casas no bairro de são Cristóvão como investimento, feito
nos pedidos de licença para obras particulares, que estão guardados no Fundo Licenças
para Obras do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ). A partir daí, a pesquisa
seguiu para o levantamento de documentos no Acervo Judiciário do Arquivo Nacional do
Rio de Janeiro (ANRJ) e nas ocorrências em periódicos do período no acervo digital da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BNRJ), cujo instrumento de pesquisa permite um
recorte por tempo/lugar e palavra-chave. O recorte temporal da pesquisa é de 1890,
década estimada de imigração de Antônio Ferreira Agostinho para o Brasil, até sua morte
em 1940, não deixando, porém, dados relevantes que por ventura pudessem surgir na
documentação.

SÃO CRISTÓVÃO, URBANIZAÇÃO E TRANSFORMAÇÕES

A área administrativa de São Cristóvão foi instituída em 1859 com o terreno


desmembrado da antiga freguesia do Engenho Velho, sofrendo alterações ao longo do
tempo. Pertenciam ao antigo distrito, além deste bairro, áreas que hoje pertencem a
Benfica, Mangueira, Vasco da Gama e Caju. Recentemente o bairro incorporou o título de
“imperial” a seu nome em comemoração à chegada da comitiva real e sua instalação
nesta área.
Desde o final da década de 1830 havia linhas regulares de omnibus para São Cristóvão e
em 1869 os bondes de tração animal foram implementados. O incremento da rede viária
de trens e bondes, associado ao mercado imobiliário, foi um importante fator de
transformação das áreas urbanas na segunda metade do século XIX. No distrito, a
ocupação dos sopés das colinas no entorno das ruas Alegria, Bela de São João, São Luís
Gonzaga e São Cristóvão pelas camadas mais abastadas convivia com a instalação das
fábricas e da população operária nas partes não construídas das ruas mais antigas e mais
próximas das águas (RIO DE JANEIRO, 1991; GENNARI, 2009).
A ocupação intermitente da região até as primeiras décadas do século XIX deu lugar a
um processo de adensamento e ocupação de residências mais abastadas, impulsionados
pela presença da família real. Ao mesmo tempo, o local também foi o destino de usos
“sujos” em áreas menos valorizadas, alagadiças e próximas aos trapiches da região
portuária (STROHAECKER, 1989).
O Decreto nº 842 de 1851, instituiu o cemitério público de S. Francisco Xavier em São
Cristóvão e o matadouro foi transferido em 1853 da praia de Santa Luzia para a paróquia
do Engenho Velho, onde funcionou na praça do Matadouro (praça da Bandeira) até 1881,
quando foi deslocado para Santa Cruz (BENCHIMOL, 1990). São Cristóvão também se
beneficiava já na década de 1880 do melhor sistema de abastecimento de água e de
esgotamento sanitário da cidade. Isso provocou o aumento da procura do local para

● 2
instalação de indústrias, que buscavam, além da boa infraestrutura instalada, a
proximidade com o porto e os eixos ferroviários (GENNARI, 2009).
Por ocasião do Plano da Comissão de Melhoramentos, em 1875, a região de São Cristóvão
já estava bastante ocupada, sobretudo no entorno das ruas Coronel Figueira de Melo e
Bela de São João, dos logradouros abertos no entorno do morro de São Januário, como o
largo da Cancela, as ruas São Januário e General Argolo e da antiga praça D. Pedro I
(atual Campo de São Cristóvão), além do hospital Frei Antonio, a igreja de São Cristóvão,
a primeira escola pública construída em 1872 pela Sociedade Promotora da Instrução e o
cemitério São Francisco Xavier.
A instalação das primeiras fábricas e manufaturas datam ainda da primeira metade do
século XIX, possivelmente por São Cristóvão ser historicamente um importante
entreposto comercial (STROHAECKER, 1989). O ar aristocrático do bairro foi cedendo
lugar a usos ligados à produção industrial, sobretudo por conta de sua localização próxima
ao porto e por sua rede de infraestrutura consolidada. São Cristóvão foi o segundo lugar
da cidade, depois do centro, a receber a rede de abastecimento de água potável e de
esgoto da City Improvements (GENNARI, 2009). Alguns desses estabelecimentos de
maior porte foram a fábrica de velas Lajoux na praia de São Cristóvão de 1842 (que Mauá
comprou em 1854 transformando-a em Luz Steárica), a fábrica de tecidos São Lázaro na
rua Bela de 1873 (que depois se transformou em Arsenal de Guerra e possuía edifícios
espalhados por todo o bairro, inclusive casas para seus operários), a América Fabril, a
Marcenaria Brasileira e a fábrica de vidros Esberard na rua General Bruce (RIO DE
JANEIRO, 1991).
Beaurepaire-Rohan, em seu Relatorio apresentado a Illustrissima Camara Municipal de
1843, já apresentava a rua de São Cristóvão como importante via de comunicação entre
a área central e a praia de São Cristóvão-Caju, com a necessidade de sua retificação e
seu alargamento. Três décadas mais tarde, em 1875, o primeiro relatório da Comissão
de Melhoramentos da cidade do Rio de Janeiro, nomeada pelo Imperador e da qual faziam
parte três engenheiros, entre eles Francisco Pereira Passos, reiterou a importância das
vias de comunicação da cidade, num modelo de urbanismo em que os melhoramentos
estão atrelados à circulação, com abertura, criação e alargamento de vias. Neste
documento o canal do Mangue se apresentava como um elemento fundamental para o
estabelecimento das relações capitalistas ancoradas no plano de transformação espacial
da cidade e a proposta de construção de um cais ligando a ponta da Chichorra (Saúde) à
praia de São Cristóvão veio documentar o interesse que se rascunhava para o bairro, na
perspectiva de sua inserção no circuito mais amplo do capital, reafirmando sua vocação
industrial. Nesta ocasião, propostas de aterro da praia de São Cristóvão foram
apresentadas e, ainda que não tivessem sido executadas, apontavam para a natureza
dos projetos que ganhavam força para a região.
Foi o próprio Passos, quando prefeito da cidade do Rio de Janeiro entre 1902 e 1906, que
colocou em prática muitas das ideias contidas naquele relatório através de seu Plano de
Embelezamento e Saneamento, de 1903. As obras deste plano foram implementadas de
forma casada com as de modernização do porto, empreendidas pelo governo federal. A

● 3
retificação do cais e a obra contígua de construção do canal do Mangue estabeleceram
uma fronteira com os trapiches da praia de são Cristóvão, que seriam suplantados pelo
projeto de uma grande via de circulação que se começou a discutir nas décadas seguintes.
Entre 1927 e 1930 o urbanista francês Alfred D. Agache elaborou a convite do então
prefeito da cidade seu Plano de Remodelação, Extensão e Embelezamento que, entre
outras coisas, propunha ordenamento urbano atuando no nível físico, através do zoning
e de uma legislação urbanística, contemplando as funções da cidade do ponto de vista
político, administrativo e econômico. Essa eficiência da cidade seria obtida pela
interferência do sistema viário, articularia os elementos funcionais e especializados,
dentro da proposta de divisão do território em bairros. Uma das principais questões era
adequar a cidade à existência de um setor industrial (REZENDE, 1982) e São Cristóvão
era apresentado neste documento como um porto comercial que se ligaria ao bairro
industrial da baixada fluminense (PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, 1930).
Esse plano foi engavetado na mudança de regime político em 1930, mas seus princípios
e suas propostas foram retomados como política urbana para a cidade nos anos seguintes.
Impactaram o bairro de São Cristóvão seu reconhecimento como Zona Industrial pelo
Código de Obras do Distrito Federal, o Decreto nº 6.000/1937, e os estudos de uma
ligação viária entre Rio-Petrópolis e Rio-SP, que culminariam no projeto de abertura de
uma via sobre aterro e o início das obras da avenida Brasil em 1939 (COSTA, 2006),
separando-o definitivamente da baía:

No govêrno do Dr. Arthur Bernardes, em 1924, foi decidida a construção de um


prolongamento de 1428 metros de Cais, a partir do Canal do Mangue. As obras foram
executadas [...], passando o novo trecho a ser conhecido como Cais de São Cristóvão. [...]
Paralelamente ao Cais, foi aberta a Avenida Rio de Janeiro, com 50 metros de largura,
permitindo o intenso movimento de veículos de carga nesse trecho do Pôrto. As principais
vias de tráfego da zona portuária [...] convergem para a Avenida Brasil, por onde se faz
hoje todo o movimento de veículos entre a cidade e o interior do País. [...] O chamado Cais
do Caju teve sua construção iniciada em 1948 e concluída em 1949, no Govêrno do General
Eurico Dutra (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICAS, 1960, p. 62).

Imigração e proletarização de São Cristóvão

A virada para o século XX é marcada pela entrada de um número significativo de


imigrantes no Brasil, sendo os portugueses o segundo maior grupo que aqui aportou1 e a
cidade do Rio de Janeiro, então capital federal, o destino de muitos deles. O expressivo
número de portugueses na cidade já era há muito corriqueiro, sobretudo a partir o
Primeiro Reinado, quando já constituíam parte significativa dos trabalhadores livres da

1
Cerca de 30% dos imigrantes que entraram no Brasil entre 1884 e 1933 era de nacionalidade portuguesa.
Fonte: INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Brasil: 500 anos de povoamento. Rio de
Janeiro, 2000. Apêndice: Estatísticas de 500 anos de povoamento. p. 226. Disponível em:
<https://brasil500anos.ibge.gov.br/estatisticas-do-povoamento/imigracao-por-nacionalidade-1884-
1933.html>. Acesso em: 01/07/2022.

● 4
Corte (LOBO, 1978). O crescente fluxo imigratório fez participar essa presença lusa nos
diferentes segmentos sociais, como grandes e comerciantes, proprietários, caixeiros ou
operários. Da mesma forma, engrossava as estatísticas dos párias, vadios ou arruaceiros,
envolvidos em “delitos relacionados à pobreza e à falta de oportunidades no mercado de
trabalho, bem corno àqueles relacionados à contestação operária” (MENEZES, 2006, p.
95).
Essa massiva presença tornava a truncada dinâmica social do pós-abolição no Rio de
Janeiro ainda mais complexa. Se, por um lado, a disputa no campo do trabalho e das
representações veio reforçar um sentimento antilusitano, associado a questões raciais,
políticas e econômicas dentro de um projeto maior de modernização da nação, por outro
lado, a prevalência e a herança portuguesas, já tão incorporadas ao cotidiano da cidade,
produziram uma certa “invisibilidade pela naturalização da presença”, dificultando a
dissociação da identidade lusa de muitas práticas urbanas já generalizadas (SOUZA,
2005; RIBEIRO, 2006).
O então distrito de São Cristóvão era marcado por esta presença portuguesa, seja pela
corte que ali habitou, seja pelos trabalhadores e suas famílias que ali estabeleceram
residência e reproduziam suas práticas urbanas. Em 1906, havia 45.098 habitantes no
distrito São Cristóvão (de um total de 805.335 habitantes da cidade), dentre os quais
8.919 eram estrangeiros. Entre estes, 6.440 eram portugueses, o que correspondia a
mais de 70% da população estrangeira local. A maioria sabia ler e escrever, o que
possibilitava sua inserção no mundo do trabalho em ocupações diversificadas ou seu
envolvimento em negócios. Algumas profissões exercidas em São Cristóvão eram
marcadas pela participação estrangeira. Em atividades como a agricultura, horticultura,
floricultura e criação eles perfaziam três quartos do total de ocupações, mais da metade
dos profissionais do comércio e cerca de um terço dos envolvidos na indústria, com
destaque para o ramo têxtil, de couros, cerâmica e alimentação, onde eram a maioria
(REPUBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRAZIL, 1907).
O caráter marcadamente de uso misto de São Cristóvão começou a ser delineado desde
meados do século XIX, quando o perfil residencial aristocrático do bairro foi cedendo
espaço para a prevalência de seu caráter fabril, ocasionado pela instalação de uma série
de indústrias na região até o Caju. O desdobramento disso foi o estabelecimento de um
comércio expressivo na região, ligado ou não a essas fábricas, e a construção de centenas
de casas, sendo a maior parte delas destinadas a operários e outros trabalhadores
urbanos. Alguns comércios ou ofertas de prestação de serviços que poderiam ser
realizadas dentro das residências ou em edifícios de uso misto surgiram como extensão
natural das manufaturas: tipografias que eram ligadas a livrarias; serviços de costura,
alfaiatarias e pequenas fábricas de roupas e chapéus que eram ligadas a lojas de roupas
e casas comerciais; produções de hortifrutigranjeiros ligadas a quitandas (SOLIS &
RIBEIRO 1985).
Em virtude da conjuntura havia a possibilidade de aplicar diferentes montas no mercado
imobiliário, num período em que se inicia o processo de separação entre a propriedade
fundiária e o capital imobiliário, com importantes consequências para a produção

● 5
habitacional, de uso exclusivo ou não. Empresas comerciais, bancos e proprietários das
antigas chácaras arruaram e lotearam suas propriedades, como o Banco Mercantil ou a
empresa comercial Costa Guimarães & Cia., que no último quartel do XIX abriram diversas
ruas em São Cristóvão (RIBEIRO, 1997). Ao mesmo tempo, sujeitos já instalados no
bairro ou que tinham interesse em especular com o mercado imobiliário no local
construíam imóveis com fins diversos, para uso próprio, venda ou aluguel (GENNARI,
2009). O intenso retalhamento das terras em São Cristóvão a partir de 1870 provocou a
abertura de novas ruas e um significativo adensamento do bairro. A população do então
distrito aumentou de 22.202 habitantes em 1890 para 45.098 em 1906 e 59.332 em
1920; o número de domicílios acompanhou esse crescimento, passando de 3.309 em
1890 para, 4.085 em 1906 e 5.990 em 1920 (MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, INDÚSTRIA
E COMMERCIO, 1925). Esse processo seguia a legislação vigente, mas, acima de tudo,
visava a um mercado que crescia e se diversificava.
O uso misto que caracterizava esta área se materializava de forma diferente nas escalas
do bairro e da rua. Próximo ao cemitério, à baía e em direção à Ponta do Caju, na área
portuária e no entorno das principais vias que ligavam São Cristóvão ao restante da
cidade, ficavam os grandes edifícios fabris e o comércio de maior porte, que atendia à
capital. Ao lado desses prédios e nas ruas que iam se abrindo no bairro, ficavam as
residências, os edifícios do comércio local ou de uso misto (GENNARI, 2009). Na frente
dos trilhos onde circulavam bondes se abriam sequências de entradas comerciais, tendo
em sua maioria habitações junto a elas, no sobrado ou nos fundos. Entre essas portas
que, em geral, contavam com trabalho em cantaria e bandeira com gradil de ferro, se
intercalavam alguns edifícios residenciais, sobrados, entradas de vilas ou avenidas.
Nessas vias estavam também localizados os edifícios de maior gabarito e mesmo as casas
implantadas nas entradas de vilas eram, de modo geral, mais altas do que as de miolos
de quadra. Nas travessas ou interior das quadras, nas passagens ou “ruas particulares”,
estavam as habitações de uso exclusivo e de gabarito mais baixo; entre vilas e avenidas
por vezes havia um palacete (ALMANAK ADMINISTRATIVO, MERCANTIL E INDUSTRIAL
DO RIO DE JANEIRO, 1910; RIO DE JANEIRO, 1991).

A TRAJETÓRIA DE ANTONIO FERREIRA AGOSTINHO EM SÃO CRISTÓVÃO

Entre os portugueses moradores de São Cristóvão estão Antonio Ferreira Agostinho e


Maria da Conceição Monteiro, casados, que imigraram ainda no final do século XIX para
o Rio de Janeiro e residiram numa chácara situada na então rua Bella de São João nº 70.
Em 1905, já viúvo desta primeira esposa, ele se casou novamente com a brasileira
Adriana Lopes. Teve ao todo dez filhos: José Ferreira Agostinho (1899), Maria (falecida
em 1901 de gastroenterite), Virgínia (1902), Antonieta (1903), Zulmira (falecida em
1919), Antonio (?), Álvaro (?), Guilherme (?), Juliana (1910), Luciano (1915), Julieta (?)
e Otília (?). Ele, assim como alguns de seus descendentes, morou, construiu edifícios,

● 6
trabalhou e estabeleceu uma relação estreita com a porção do bairro de São Cristóvão
entre o mar e São Januário.
Antonio Agostinho mantinha desde fins do século XIX naquela chácara da rua Bella uma
horta2, cuja produção era comercializada em sua quitanda, que ficava na rua de São
Januário nº 75. Esse estabelecimento funcionou neste endereço até 1901, quando se
mudou para a praia de São Christovão nº 113 (depois 201). A quitanda ali permaneceu
até 1930, funcionando junto a ela um depósito de lenha e carvão. A quitanda foi
posteriormente transferida para a rua Conde de Leopoldina nº 88 e o depósito para a
praia do Retiro Saudoso nº 2-A3.
“São Cristóvão começou na praia” (RIO DE JANEIRO, 1991, p. 25), mas estes endereços
à beira d’água foram sendo afastados da baía e incorporados à malha urbana pelos
sucessivos aterros sofridos entre os séculos XIX e XX para as obras viárias e do porto. Do
braço de mar que formava o saco de São Diogo ou das praias das Palmeiras, dos Lázaros,
de São Cristóvão, do Caju e do Retiro Saudoso, restaram, quando muito, os nomes de
alguns lugares. Os projetos para esta região eram apresentados como extensão dos
melhoramentos propostos para a área portuária. A intenção de se prolongar e a
modernizar o cais até o Caju, a ligação com a linha férrea ou posteriormente o projeto
implantado da avenida Brasil voltariam a área urbanizada que se adensava cada vez mais
para o continente.
Nas edições do Almanak Laemmert a partir de 1901, o endereço do edifício na praia de
São Christóvão de Antonio Ferreira Agostinho vinha ora como “praia”, ora como “rua” de
São Christóvão. A “praia” do Retiro Saudoso foi definitivamente designada como a “rua”
Carlos Seidl, no Caju, a partir de 1931. A alteração desses endereços, assim como de sua
numeração, aponta este movimento de mudança da relação da cidade com a baía da
Guanabara. Esta intenção de avançar o bairro sobre as águas da baía já vinha sendo
discutido desde meados do século XIX4, através diferentes propostas, mas foi a partir da
década de 1930 que São Cristóvão perderia definitivamente sua associação com o mar.
São Cristóvão já era considerada área urbana desde o século XIX. Apesar de seu território
se consolidar marcadamente com o uso misto, este fato inseriu o bairro no rol das
iniciativas empreendidas na zona urbana como extensão das obras empreendidas na área
central, no sentido de modernizá-la e saneá-la, como parte do projeto de construção de
uma capital civilizada. Qualificou-se o lugar dentro da economia urbana servindo ao
projeto político e econômico para o então Distrito Federal.

2
Fundo Juízo dos Feitos da Fazenda Municipal do RJ; Infração Tributária Agostinho, Antonio Ferreira; n.
1255; caixa 2281; gal. A. Acervo: Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
3
Os registros levantados no “Indicador de Habitantes da cidade do Rio de Janeiro” do Almanak Laemmert
vão até o final da década de 1940. Acervo: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (os dados estão
disponíveis no acervo da Biblioteca Nacional Digital, cujo instrumento de pesquisa – no momento do
levantamento – permitia que os almanaques fossem consultados por palavra-chave ao longo dos anos;
disponível em: <https://bndigital.bn.gov.br/>).
4
A sistematização do processo da retirada das águas e do afastamento do mar das terras de São Cristóvão
pode ser pontuada desde a primeira metade do século XIX quando se iniciou o dessecamento do Mangal
de São Diogo para a ligação das porções afastadas da cidade através do caminho do Aterrado.

● 7
A restrição aos usos associados às práticas rurais na cidade desde o final do século XIX
se intensificou na gestão do prefeito Pereira Passos. Essas ações vinham respaldadas
pelos discursos higienistas e eram apoiadas pela parcela da população que se
entusiasmava com as transformações urbanas, com suas novas regras e posturas. Os
odores exalados das propriedades onde se praticava o cultivo de gêneros alimentícios ou
a criação de pequenos animais (cujo estrume muitas vezes era aproveitado na própria
horta), eram associados a miasmas e focos de infecção e, portanto, às doenças que se
desejavam extirpar da cidade. Atividades impróprias ao espaço urbano, à cidade que se
pretendia modernizar (SANTOS, 2014).
A chácara da rua Bella de São João, n.º 70, recebeu uma série de notificações sobre
infrações relacionadas às posturas municipais. Em 1901 foi “[...] encontrada uma horta
recentemente plantada no local [...]”; em 1907, a polícia emitiu um despacho contra
Antonio Ferreira Agostinho, por ter espalhado em sua horta “[...] estrumo não humificado,
sendo multado em 20$000”; em 1911, ele e seus vizinhos Maria de Jesus (estabelecida
na rua de São Januário nº 24/fundos), Pedro Ferreira (rua São Luiz Gonzaga nº 208) e
Raphael Chamareli (rua Bonfim nº 160) foram multados em 100$ cada um por “[...]
terem iniciado a exploração de hortas de commercio [...] sem a competente licença”5. Em
desacordo com as posturas, ele ainda foi multado em 1928 por lançar lixo na via pública,
na rua Conde de Leopoldina nº 88, e em 1930 por construir barracão na praia do Retiro
Saudoso, nº 2-A, onde possuía seu depósito (ainda na praia)6.
Em 1936, seu depósito de lenha, agora com endereço da rua Carlos Seidl nº 16, sofreu
um grande incêndio, iniciado em uma pilha de lenhas que estava fora do galpão 7. A causa
não estava clara, mas mostrava um problema recorrente na cidade e que, apesar do
aprimoramento das técnicas de combate às chamas, não havia regulamentação de
segurança sobre densidade, saídas de emergência ou cuidados especiais com materiais
inflamáveis. Em 1905 houve uma tragédia próxima àquele local, na rua General Gurjão
nº 10, num comércio de secos e molhados, em que as chamas se espalharam para o
vizinho nº 8, um estabelecimento de fazendas e armarinho. A notícia veiculada chamava
a atenção para a solidariedade dos vizinhos, que tentaram salvar as pessoas que estavam
nos prédios e seus bens até a chagada dos bombeiros, e para o fato de que o comércio
que não tinha seguro ter tido um grande prejuízo8. A venda de seguros foi uma das
atividades que encontraram espaço dentro do mercado urbano que se ampliava.
No início da década de 1910, Antonio Agostinho Ferreira começou a fornecer legumes
para o Colégio Pedro II, instituição pública fundada em 1837 na área central da cidade
que abriu uma sessão em São Cristóvão em 18889. A partir do início da década de 1920,
expandiu seus negócios com a administração pública, fornecendo através de sua firma

5
O Paiz, 23/12/1911, p. 7.
6
Jornal do Brasil, 09/11/1928, p. 19; 15/8/1930, p. 17.
7
Correio da Manhã, 28/1/1936, p. 8.
8
A Noticia (RJ), 17/9/1905, p. 1.
9
Informações sobre a história do colégio podem ser consultadas em sua página eletrônica na sessão
“História do CPII”. Disponível em: <https://www.cp2.g12.br/historia_cp2.html>. Acesso em: 20/07/2022.

● 8
frutas, verduras, lenha e carvão vegetal ao Departamento Nacional de Saúde Pública
(Assistência Hospitalar do Brasil). Para os negócios ele possuía um veículo de carga e,
apesar de enfrentar alguns percalços contratuais, esse negócio seguiu bastante próspero
até a década seguinte, permitindo que elevasse em pelo menos duas ocasiões o capital
de sua firma individual10.

As relações constituídas na escala do bairro

A instituição de uma unidade entre os grupos urbanos não está dissociada do


estabelecimento de uma unidade morfológica dada a partir da tendência de que
segmentos com rendimentos semelhantes tenham o mesmo padrão de consumo, dado
pelo acesso a determinados bens e serviços, estabelecido dentro da economia urbana
(BOURDIEU, 2007). O lugar não está dissociado de seus processos sociais e o espaço
social preenche os espaços concretos da cidade onde se desenrola a vida cotidiana, com
sua complexidade, sua singularidade e suas contingências. Como questionou Maurice
Halbwachs (1941) no início das considerações finais de sua obra Morfologia Social, seria
possível falar em vida social sem os pensamentos, sentimentos e, sobretudo, a ideia de
organização que une os membros de um grupo?
Foi no edifício da rua de São Christovão nº 115, ao lado da quitanda no nº 113, que quase
todos os filhos de Antonio Ferreira Agostinho nasceram. Além de seus estabelecimentos
comerciais, ele construiu durante as décadas de 1910, 20 e 30 uma série de casas no
entorno para venda ou aluguel. As primeiras foras as da rua Sá Freire: uma no nº 16,
uma no nº 18, uma no nº 22 e uma vila com oito casas no nº 20; ele se mudou para a
de nº 18 e seu filho mais velho, José Ferreira Agostinho, tão logo se estabeleceu como
comerciante na região, se mudou para o nº 20. Ele e o outro filho, Antonio, assim como
seu pai, viveram e se estabeleceram no bairro de São Cristóvão 11.
José Ferreira Agostinho já era viúvo de Ernestina Ferreira Agostinho, quando se casou em
segundas núpcias com uma vizinha, Palmyra Ferreira Agostinha, doméstica de profissão,
que morava na rua conde de Leopoldina nº 9, e que faleceu em 1923 aos 18 anos de
tuberculose. Em 1925 casou-se novamente com outra vizinha, Ermelinda Cândida, filha
de José Ferreira da Costa, um operário que tinha casas para aluguel na rua de São
Januário e que morava na rua Conde de Leopoldina nº 285. Ela morreu em 1930, aos 23
anos, de tuberculose, deixando um filho menor, José Ferreira Agostinho Filho e
possivelmente outro filho, Antonio Ferreira Agostinho Netto. Novamente viúvo, casou-se
uma quarta vez, em 1930, com outra vizinha que residia com seus pais na rua Conde de
Leopoldina nº 85, Assunção Sibanto, uma viúva, doméstica de profissão, cujo marido
havia falecido aos 30 anos de tuberculose deixando uma filha de três anos 12.

10
Diario de Noticias, 01/9/1932, p. 6.
11
AGCRJ, Fundo Licença para Obras Particulares.
12
Jornal do Commercio, 22/8/1920, p. 9; ANRJ [documentos diversos].

● 9
Seu irmão, Antonio Ferreira Agostinho, ingressou no então Internato Nacional Bernardo
de Vasconcellos (Colegio Pedro II) em 1911. Seu filho, Antonio Agostinho Netto (o
Antoninho) frequentou o Internato Colegio Pedro II a partir de 1934 13. José, seu irmão
Luciano e seu filho Antoninho, além de sócios com seu pai na firma Ferreira Agostinho &
Cia., estiveram envolvidos em diversas atividades sociais do bairro ligadas ao jogo do
bicho (que já tinha severas restrições e era considerado caso de polícia), ao rancho
carnavalescos União das Flores (tricampeão entre 1937-39) e ao clube de futebol Sport
Club 1º de Maio.
O União das Flores surge como um antigo cordão de carnaval fundado em 1900, com
sede no centro da cidade. A partir de 1910, as denominações de “rancho” e “cordão” se
alternam, possivelmente num movimento de se organizar os cortejos, buscando ao
mesmo tempo oficializar e “civilizar” o carnaval de rua depois das investidas contra estas
manifestações empreendidas por Pereira Passos, no bojo de modernização da cidade. Foi
quando os ranchos foram apropriados pelos segmentos médios da sociedade, ainda que
as camadas mais populares não o tivessem abandonado completamente, e se
organizaram em forma de clubes (FERNANDES, 2003). No caso, o União das Flores
acresceu a seu nome o título de “Sociedade Familiar”, transferindo sua sede para São
Cristóvão, na rua Bella de São João e depois para a rua Bruce nº 40, onde ali permaneceu.
Antonio Ferreira Agostinho, foi diretor da União das Flores, “prestigioso rancho que é a
guarda avançada de Momo no vasto e populoso bairro de São Cristóvão”. Depois dele,
José e seu filho, Antoninho, também se envolveram durante as décadas seguintes com a
organização de eventos ligados ao cortejo carnavalesco ou a eventos realizados em sua
sede social14. José foi presidente do clube e era conhecido como “Zezé” ou “Cuica”. Seu
pai, homenageado pela Ala dos 20 Diabos em 1933 era o “Lorde Cuica” e seu filho
“Toninho”.
O Sport Club 1º de Maio foi fundado em 1º de maio de 1919 na rua Conde de Leopoldina
nº 60, transferindo-se nos anos de 1930 para a rua Bonfim nº 170, com participação de
José Ferreira Agostinho. Se o futebol foi disseminado como um esporte elitizado e logo
apropriado pelas classes trabalhadoras, os grupos médios também tiveram seu papel na
transformação do esporte em sua associação com sua sede social (SANTOS, 2014).
Apesar do nome, este clube não era politicamente ligado a trabalhadores urbanos ou
operários de fábricas, mas antes tinha a família de Antonio Ferreira Agostinho vinculada
à participação em sua organização social e desportiva. No anúncio da comemoração de
seu 13º aniversário, foi anunciado como “querido grêmio da elite Sanchristovense”, cuja
sede social teria seu “salão de dansas ornamentado caprichosamente” e receberia figuras
da sociedade carioca na posse da nova diretoria, da qual fariam parte Luciano Ferreira

13
Em 1909, o então presidente Nilo Peçanha, ex-aluno do Colégio Pedro II, altera o nome do segundo
externato ligado ao colégio para Internato Nacional Bernardo de Vasconcelos, retornando em 1911 à
denominação de Colégio Pedro II, dividido em Externato e Internato, sob decreto do presidente Marechal
Hermes da Fonseca, também ex-aluno da instituição (COLÉGIO PEDRO II, 2014). O Paiz, 01/2/1911, p.
5; Correio da Manhã, 22/2/1934, p. 9; Jornal do Brasil, 09/3/1935, p. 14.
14
Gazeta de Noticias, 16/12/1906, p. 4; 02/3/1919, p. 5; 25/6/1921, p. 4; 08/4/1924, p. 8.

● 10
Agostinho e Antonio Ferreira Agostinho (como comissão de sindicância da nova diretoria).
Essa participação na vida social do clube, colaborando na organização de eventos diversos
em seus salões, como festas caipira, bailes etc., se estendia ao futebol propriamente dito.
Antonio Ferreira Agostinho Netto esteve à frente do time como técnico nos anos 1950
durante o campeonato do Departamento de Amadores, ganhando destaque na imprensa
na ocasião15.
Desde os Oitocentos, há uma crescente participação da população em organizações
urbanas que, para além do associativismo institucionalizado, marcaram os lugares e por
eles foram marcados. “[...] foram os usos repetidos de lugares da cidade, conformando
redes de sociabilidade e de trabalho, domínio do espaço e afirmação de autonomia por
parte de uma sociedade que se habituara a viver sobre si mesma, com poucos cuidados
da metrópole” (CARVALHO, 2010, p. 120). Desta forma, o uso da cidade pelas pessoas
constituiu no meio urbano um espaço diferenciado de “exercício da cidade”, que criava
identificação da população com o lugar. Para além da cidade hierarquizada, se
sobrepunham um aglomerado de redes de relacionamento, estruturados pela própria
cidade.
Antonio Ferreira Agostinho estendeu ainda sua vinculação associativa à Irmandade do
Senhor Jesus do Bonfim e Nossa Senhora do Paraíso, cuja igreja que então ficava em
frente à baía hoje se encontra na beira da avenida Brasil e encostada no viaduto do
Gasômetro16. Ele foi durante toda sua vida provedor e benemérito da instituição,
participando da organização das festividades religiosas, das missas e comunhões, bem
como da conservação do edifício. Em 1914 como definidor e benemérito, cuidou das
festividades da Irmandade do Senhor Jesus do Bonfim e Nossa Senhora do Paraíso que
ocorreu no templo religioso em São Cristóvão “vistosamente ornamentado a flores
naturaes e feericamente iluminado por milhares de lâmpadas electricas”. No início dos
anos 1930, como provedor, cuidou da reforma da nave, da pintura da fachada e
decorações, sendo reconhecidamente pelo grupo como alguém de destaque na
congregação17.
Gozando de certa distinção, era tido como um “morador ilustre” do bairro, um
“comerciante nesta praça e figura de relevo em sua classe” 18, participando sempre das
comitivas oficiais do bairro. Em 1922, por ocasião do enterro de Francisco Antonio Maria
Esberard, fundador da Companhia Fábrica de Vidros e Cristais do Brasil Esberard em São
Cristóvão, prestou sua homenagem, assim como no enterro da esposa do diretor do

15
Diario da Noite, 08/11/1955, p. 17.
16
Localizada na atual rua Monsenhor Manoel Gomes, n° 241 foi tombada pelo Instituto Rio Patrimônio da
Humanidade (IRPH) através do Decreto n° 27.650 de 06/03/07 e pelo seu estado de conservação, foi
condenada pela Defesa Civil em 2018.
17
O Paiz, 22/5/1914, p. 8; Jornal do Brasil, 23/5/1914, p. 12; Jornal do Brasil, 29/3/1927, p. 20; Diario
da Noite, 12/8/1930, p. 4; O Jornal, 08/5/1932, p. 9.
18
O Paiz, 06/8/1921, p. 5; 20/5/1922, p. 7 e 26/4/1928, p. 4; Correio da Manhã, 20/5/1922, p. 1;
29/12/1923, p. 7; 21/3/1929, p. 5; Relatórios do Ministério da Justiça, 1922, p. 291-4 E 1923, p. 209-
12; Jornal do Commercio, 23/4/1911, p. 4; 18/2/1923, p. 4; 13/12/1930, p. 15; A Noite, 21/2/1925, p.5;
Gazeta de Noticias, 08/3/1928, p. 10; O Brasil, 17/2/1925, p. 5.

● 11
Tribunal de Contas em 192319. Em 1933 o então interventor federal Pedro Ernesto visitou
o “laborioso” bairro de São Cristóvão a convite do “commercio local, industriaes,
proprietários e moradores”, representados por uma comissão da qual fazia parte Antonio
Ferreira Agostinho, recebendo uma homenagem na residência de Dionysio Moura, um
escriturário que residia na rua Bella de São João nº 226. Em 1936 em nova visita do
então prefeito por ocasião do lançamento da pedra fundamental da Escola Oswaldo Cruz
e do embelezamento da rua Sá Freire, Antonio Ferreira Agostinho ofereceu em sua
residência um “almoço de cem talheres”, promovido por iniciativa do Diretório do Partido
Autonomista de São Cristóvão, ao qual estava vinculado 20 (ABREU, 2009).
O Partido Autonomista foi organizado com o apoio de Getúlio Vargas por uma comissão
integrada por Pedro Ernesto Batista (então interventor no Distrito Federal), Pedro Aurélio
de Góis Monteiro, João de Mendonça Lima e João Alberto Lins de Barros. Para formar
bases consistentes nos bairros, contava com a participação de lideranças de bairro, chefes
políticos e cabos eleitorais, onde participava Antonio Ferreira Agostinho. Foi durante a
gestão de Pedro Ernesto que em 1934 foi revogado o Plano Agache e foi extinta a
Comissão do Plano da Cidade, sendo ainda homologado o Decreto nº 5.595, de 1935,
delimitando pela primeira vez a área destinada ao uso predominantemente industrial, a
Zona Industrial (ZI), localizada no bairro de São Cristóvão (BORGES, 2007).
Antonio Ferreira Agostinho faleceu em setembro de 1940, tendo suas honrarias sido feitas
neste bairro. Seu cortejo fúnebre seguiu de sua casa na rua Sá Freire nº 20 até o cemitério
de São Francisco Xavier, no Caju, onde foi enterrado21. Seus descendentes preservariam
suas relações com o bairro, mas acompanhando suas mudanças físicas e sociais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A urbanização da cidade do Rio de Janeiro foi marcada por uma deliberada diferenciação
espacial impressa física e socialmente em seu território. No bojo desse movimento, os
bairros foram sendo ocupados, parcelados, consolidados e transformados, dentro das
particularidades deste movimento mais geral no âmbito local, que teve na virada para o
século XX um caráter acelerado, graças aos grandes planos e projetos urbanos para a
então capital federal. Essas ondas de transformação que assolaram a cidade, em especial
sua zona urbana, ganhavam na escala do lugar peculiaridades quanto à intensidade e à
duração que ora nele perduram, ora prematuramente cessam. Os processos influenciam
e são influenciados pelo lugar e legam a ele, afinal, elementos próprios que também
interfeririam futuramente em suas morfologias urbana e social e, no limite, na própria
urbanização.

19
O Paiz, 02/2/1922, p. 4; Jornal do Commercio, 06/4/1923, p. 5.
20
O Jornal, 28/3/1936, p. 2.
21
A Noite, 17/9/1940, p. 2 e 14.

● 12
Abreu (1993, p. 172) recupera a noção de Milton Santos (2004) de tempo espacial, que
é específico ao lugar, mas não está descolado das variáveis que atuam nas diferentes
escalas e que reverberam em outros tempos históricos e em outros espaços.

O lugar é, pois, o resultado de ações multilaterais que se realizam em tempos desiguais


sobre cada um e em todos os pontos da superfície terrestre. [...] O lugar assegura assim a
unidade do contínuo e do descontínuo, o que a um tempo possibilita sua evolução e também
lhe assegura uma estrutura inconfundível. [...] Cada lugar é, a cada momento, um sistema
espacial, seja qual for a ‘idade’ dos seus elementos e a ordem em que se instalaram [...].
(SANTOS, 2004, p. 258).

Para Santos (2004), há uma receptividade específica de cada lugar, ocupado ou vazio,
aos fluxos de modernização ou de inovação. Quando esses fluxos são novos e se instalam
em locais onde já havia outras variáveis, eles são por elas deformados ou, ao contrário,
podem ser preservados de determinadas influências durante um período. De todo o modo,
o processo de modernização pelo qual passou a cidade do Rio de Janeiro atingiu de
maneira desigual suas partes, por questões políticas, econômicas, ou mesmo de
administração pública. E ainda que tenha havido ingerência em determinadas fases deste
processo, para além das escolhas individuais ou de determinados grupos, o lugar foi
influenciado, ao mesmo tempo em que exerceu influência na implantação de sistemas
físicos, sociais ou culturais.
Esta perspectiva coloca em xeque o estabelecimento de fronteiras estanques à cidade,
corroborando com uma ideia relacional e sistêmica entre suas partes, assim como com
as noções mais fluidas de bairros, grupos sociais e segmentos urbanos. Fez parte deste
movimento a vocação de uso misto da cidade do Rio de Janeiro na Primeira República.
Contudo, o caminho que seu desenvolvimento tomou não colocou seus bairros em pé de
igualdade, mas sim num patamar onde o rol de possibilidades que se apresentavam
surtiria semelhanças e diferenças entre eles e deles em relação ao restante da cidade.

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● 13
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● 14
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3); Cód. 331, Fl. 212.

● 15
ENTRE TRILHOS, RUAS E O JARDIM:
As adequações urbanas no bairro do Bom Retiro.
São Paulo, 1889-1891.
BETWEEN TRAILS, STREETS AND THE GARDEN: THE URBAN
ADAPTATIONS IN THE NEIGHBORHOOD OF BOM RETIRO. SÃO
PAULO, 1889-1891.

Práticas, processos e institucionalidades

CAMPOS, Cristina de
Doutora em Arquitetura e Urbanismo; Professora Programa de Pós-Graduação em
Arquitetura e Urbanismo Universidade São Judas Tadeu/Professora Colaboradora
Instituto de Geociências Universidade Estadual de Campinas.
crcampos@unicamp.br

GUEDES, Shelda Moreira


Graduanda em Arquitetura e Urbanismo Universidade São Judas Tadeu;
bolsista de Iniciação Científica FAPESP (Proc. N. 2021/02457-4)
sheldamg@hotmail.com
RESUMO

Em fins do século XIX, com a economia cafeeira em ascensão, São Paulo


passou por mudanças em nas estruturas urbanas da cidade, com alterações
no sistema viário e a implantação dos transportes ferroviários. A instalação dos
trilhos impactou antigos núcleos de povoamento, alterando as formas de
deslocamento pela cidade. Na década de 1860, a São Paulo Railway Company
instala-se no bairro do Bom Retiro, que oferecia terrenos planos ideais para a
ferrovia. Junto à ferrovia surgem comércios e serviços, impulsionando a vida
urbana do bairro. Entretanto, a falta de planejamento para a instalação da
ferrovia trouxe problemas de mobilidade, onde os trilhos, o Jardim Público e
os rios acabam por bloquear o acesso à cidade. Este trabalho tem como
objetivo analisar as adequações no traçado urbano do Bom Retiro, realizadas
entre 1889 e 1891, em virtude da presença dos trilhos da São Paulo Railway
Company. Identificou-se uma mobilização de agentes sociais para adequar o
traçado urbano à existência dos trilhos: os moradores, o poder público e a
empresa ferroviária. Essa interessante mobilização social e as adequações que
se seguiram entre os anos de 1889 e 1891 foram descobertas em uma
documentação da Diretoria de Obras Públicas, depositadas no Arquivo Público
do Estado de São Paulo. A pesquisa identificou as adequações no traçado
urbano do bairro, as mobilizações populares e suas reivindicações e como a
gestão pública lidou com a questão, com uma articulação a fim de restabelecer
as ligações do bairro com a cidade.

PALAVRAS CHAVE Produção social do espaço; Urbanização; Ferrovias;


Mobilidade; São Paulo; Adequação urbana.

ABSTRACT

At the end of the 19th century, with the coffee economy on the rise, São Paulo
underwent changes in the city's urban structures, with changes in the road
system and the implementation of railroads transport. The installation of the
rails impacted old settlement cores, changing the ways of displacement
through the city. In the 1860s, the São Paulo Railway Company settled in the
Bom Retiro neighborhood, which offered ideal flat land for the railway. Trades
and services emerge along the railroad, boosting the urban life of the
neighborhood. However, the lack of planning for the installation of the railway
has brought mobility problems, where the rails, the Public Garden and the
rivers end up blocking access to the city. This work aims to analyze the
adaptations in the urban layout of Bom Retiro, carried out between 1889 and
1891, due to the presence of the trails of the São Paulo Railway Company. A
mobilization of social agents was identified to adapt the urban layout to the
existence of the tracks: residents, the government, and the railway company.

 1
This interesting social mobilization and the adaptations that followed between
the years 1889 and 1891 were discovered in a documentation of the Public
Works Board, deposited in the Public Archives of the State of São Paulo. The
research identified the adaptations in the urban layout of the neighborhood,
the popular mobilizations, and their demands and how the public management
dealt with the issue, with an articulation to reestablish the neighborhood's links
with the city.

KEY-WORDS Social Production of Space; Urbanization; Railroads; Mobility;


Urban Adequacy;

 2
INTRODUÇÃO
São Paulo, nas décadas finais do século XIX é uma cidade em mutação, alterando suas
feições coloniais com o alargamento de ruas, retificando leitos de rios e derrubando o
casario em taipa. Essas transformações são decorrentes dos estímulos econômicos vindos
da lavoura de exportação do café, que conquista posição de destaque dentro do mercado
mundial. As cidades que estão dentro do circuito produtivo, incluso a capital, são
remodeladas, a frente produtora avança para terras virgens e novos contingentes
populacionais constituídos de imigrantes europeus, são atraídos para o trabalho na
lavoura. As mudanças são intensas. Dentro desse contexto de expansão, a questão
envolvendo as ferrovias ocupa o debate da época. A discussão girava em torno da
instalação do sistema ferroviário e as formas de atração de empresários para organização
de empresas interessadas em explorar os serviços nas províncias.

A partir da década de 1870, várias companhias ferroviárias surgem e o novo sistema de


transporte traz outra dinâmica de circulação de pessoas e mercadorias pelo território. Em
algumas localidades que possuíam núcleos ou assentamentos mais antigos, os trilhos
modificam o espaço e atraem novos moradores. Na capital, os trilhos causam fenômeno
similar e alteram as formas de comunicação, especialmente dos antigos caminhos que
conectavam arrabaldes com a área central. Esse problema é identificado no Distrito do
Bom Retiro, próximo aos Campos da Luz, em uma das saídas para Jundiaí.

Em fins da década de 1860, a empresa São Paulo Railway Company (SPR) é formada para
explorar por mais de 90 anos a concessão de linha férrea entre Santos e Jundiaí, trecho
que mais se parecia com um funil ao concentrar o escoamento da produção do interior
até o porto exportador no litoral, na cidade de Santos (CYRINO, 2004). Nesse trecho, a
empresa instala na capital, no bairro do Bom Retiro, os seus prédios administrativos,
armazéns e oficinas de manutenção. Os terrenos da área eram planos, pois pertenciam
as várzeas do Tietê e Tamanduateí, oferecendo as condições ideais para o assentamento
dos trilhos (MANGILI, 2009). O bairro tinha um acanhado núcleo de assentamento
preexistente, que se desenvolveu depois da chegada da empresa. No entorno da estação
surgem comércios diversos, fábricas e muitos operários estabelecem moradia no bairro,
pela proximidade do local de trabalho.

Na década de 1870, outra ferrovia também chega com os trilhos no bairro, a Companhia
Sorocabana (CS), o que faz com que o pátio de manobras existente fique ainda mais
complexo com duas empresas em operação. A chegada dos trilhos não foi algo pensado
pelas autoridades locais, nem ao menos o esforço de pensar a ferrovia fosse atrair
moradores, comércio e indústrias para o bairro. Não houve, por parte das autoridades
públicas – municipalidade e província – ações preventivas para pensar o impacto dos
trilhos. Como consequência, essas áreas passam a precisar de ajustes para adequarem o
traçado urbano à existência dos trilhos, pois antigos acessos com a região central foram
completamente bloqueados. Em outras palavras, o bairro do Bom Retiro constituía um

 3
enclave cujas barreiras eram os trilhos, o Jardim Público e os rios Tietê e Tamanduateí
(MANGILI, 2009).

Identificou-se uma mobilização de agentes sociais para adequar o traçado urbano à


existência dos trilhos: moradores, o poder público e a empresa ferroviária. Essa
interessante mobilização social e as adequações que se seguiram entre os anos de 1889
e 1891 foram descobertas em uma documentação da Diretoria de Obras Públicas,
depositadas no Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP). A documentação é um
importante testemunho que revela essa teia de relações e a ação dos agentes sociais no
ordenamento do espaço. Esse material é composto de croquis com as adequações
propostas nos arruamentos do bairro, relatórios que discutem as mudanças, diversos
ofícios e abaixo-assinados de moradores que solicitam alterações. Trata-se de um
material pouco explorado, depositado em uma caixa que não havia sido catalogada pelo
arquivo, não constando nos registros a existência de tais documentos. Esse material foi
analisado em pesquisa sob o abrigo da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo (FAPESP).

O objetivo da pesquisa é identificar as adequações no traçado urbano do Bom Retiro, a


mobilização de populares e suas reivindicações e como a gestão pública lidou com a
questão. Quais os resultados que essa mobilização produziu no espaço?

O material foi analisado a partir de um referencial teórico para compreensão das


transformações urbanas que operavam na cidade de São Paulo e as adequações no Bom
Retiro (LANGENBUCH, 1971; SAMPAIO, 1994; BRITO, 2000; BUENO, 2016; SIMONI,
2003). Como foi esse processo, a interação entre esses agentes sociais e os
desdobramentos no espaço? Para responder essa questão, o material coletado no APESP
foi cotejado com outras fontes recolhidas junto ao Acervo do jornal O Estado de São
Paulo, de onde foi recolhido material que comprova a mobilização dos moradores que
reivindicam junto às autoridades públicas a resolução do problema, que no fundo nada
mais é do que a questão da mobilidade urbana, da circulação. Em outros estudos sobre
a urbanização paulistana, os setores populares acabam sendo vozes pouco ouvidas nesse
processo de modernização das cidades. Trabalhos acadêmicos importantes têm procurado
dar voz a essas manifestações e apontar a participação da sociedade dentro dessa
experiência plural de modernização, como apontou Cerasoli (2004).

A fim de entender o que pautavam as reivindicações pelas mudanças no acesso viário à


cidade, a pesquisa debruçou-se no estudo do material cartográfico disponibilizado pelo
Setor Cartográfico do APESP, para representar esse enclave impostos pelos trilhos e as
adequações realizadas no bairro. A produção desse material toma como referencial
teórico as contribuições de Simioni (2003) e Kako e Cintra (2016), cujos trabalhos tomam
as cartografias como peças-chave ao entendimento das transformações no tecido urbano
da capital paulista.

 4
BOM RETIRO, BAIRRO DE SÃO PAULO: DE VÁRZEA AO ENCLAVE
FERROVIÁRIO
A segunda metade do século XIX traz mudanças significativas à cidade de São Paulo.
Como consequência do aumento das exportações e a consolidação do império brasileiro
como um dos principais produtores mundiais de café (TOMICH E MARQUESE, 2009), a
Província de São Paulo e sua capital passam por um processo de ressignificação de suas
infraestruturas territoriais e urbanas. Esse processo é entendido por autores dos estudos
sobre urbanização como “modernizador” no sentido de prover melhoras materiais em
serviços, equipamentos, no entanto, sem realizar profundas mudanças nas estruturas
sociais de dominação e distribuição de renda (SOMEKH, 1997; CAMPOS FILHO, 2002). Ao
que toca as questões presentes nesta pesquisa, a ressignificação da infraestrutura para
a elite produtora era para introduzir um sistema de transporte ágil e eficaz para a
agroexportação, ao passo que cidades importantes no oferecimento de suporte para as
atividades produtoras no campo fossem remodeladas em seus sistemas viários e dotadas
de novos serviços, para assim desempenharem seus papéis enquanto centralidades
urbanas (COSTA, 2003).

O debate para implantação das ferrovias na província ocorre desde a década de 1850 e a
primeira empresa organizada com capitais estrangeiros é a São Paulo Railway Company
(SPR). Esta empresa obteve a concessão para explorar o trecho de Santos a Jundiaí, um
desenho de linha que representa uma “bacia de drenagem”, coletando a produção do
interior e a conduzindo até o porto para exportação. Era uma companhia ferroviária
pensada para ser uma escoadora de produtos e que detinha com exclusividade a descida
para o porto de Santos. O desenho da linha não era feito para dinamizar o mercado
interno, promovendo ligações com outras localidades e estimular o mercado consumidor.
O objetivo era atender a cafeicultura. A linha é aberta oficialmente em 1867, com
estabelecimento dos primeiros edifícios de suporte para a operação da empresa
funcionando na cidade de São Paulo, no bairro do Bom Retiro (CYRINO, 2004).

Essa época, o bairro do Bom Retiro estava distante do centro da cidade e contava com
poucos moradores. Era uma área considerada de várzea, com alguns arruamentos
existentes à época da instalação da ferrovia. A construção de oficinas, escritórios e a
estação trazem outra dinâmica para o bairro e fomentam o surgimento de
estabelecimentos comerciais no entorno, bem como local de moradia para os operários
da ferrovia (MANGILI, 2009). Soma-se a esses a fundação da primeira hospedaria de
imigrantes da capital em 1881, instituição que abrigava os imigrantes chegados da Europa
durante as primeiras políticas de imigração do governo provincial (PAIVA, 2016). Da
hospedaria, o destino desses trabalhadores eram as fazendas produtoras do interior, mas
muitos acabaram fixando-se na capital e no Bom Retiro.

A instalação da companhia trouxe outra dinâmica ao bairro e atraiu novos moradores. A


medida em que crescia, adequações no traçado eram necessárias. Antes de entrar na

 5
questão, um esclarecimento sobre o uso do termo “adequação do traçado urbano” aqui
empregado. O termo foi localizado no livro de memórias do engenheiro Adolpho Augusto
Pinto (1977). O engenheiro rememora sobre esse episódio no Bom Retiro, quando
ocupava o cargo de engenheiro fiscal da SPR. O significado de adequação proposto por
Pinto é o de ajuste, no sentido de adequar a malha urbana aos trilhos. Logo, os novos
arruamentos são pensados posteriormente a implantação dos trilhos e a eles devendo se
adequar.

Ao longo dos anos, foram surgindo demandas por essas adequações no Bom Retiro. Em
1888, foi localizado um abaixo-assinado de moradores solicitando a abertura da nova rua
entre a estação e o Jardim Público1. Era uma situação inusitada: uma estação ferroviária
aberta em um lugar sem rua. O alto fluxo de pessoas, passageiros ou para retirada de
mercadorias, feito em um local sem uma via pública inviabilizava a mobilidade. Mais de
uma centena de moradores assinaram o documento. No ano seguinte, várias notas são
publicadas no jornal “A Província de São Paulo” sobre a abertura de uma nova rua para
comunicar o Bom Retiro com a cidade. De acordo com o jornal, as leis de 11 de abril de
1887 e a de 22 de março de 1888, autorizavam o governo provincial a realizar os
trabalhos. A comunicação do bairro com a área central foi prejudicada depois que a SPR
construiu grandes edificações que tornavam o caminho de pedestres antes utilizado (pela
Rua Helvetia) intransitável. As novas edificações eram consequência do aumento de
tráfego da empresa, denotando a alta demanda que a ferrovia tinha na província. A nota
do jornal menciona que as novas oficinas deveriam ser instaladas na região da Água
Branca2 (A PROVÍNCIA DE SÃO PAULO, 27 de março de 1889:p.1).

Em outra nota, a queixa era se a obra prevista seria suficiente para comportar o trânsito
ao redor dos armazéns (A PROVÍNCIA DE SÃO PAULO, 2 agosto 1889:p.1). O jornal deixa
evidente que a insatisfação com o descumprimento das leis era grande, com um “jogo de
empurra” entre a Câmara Municipal e o governo da Província. O impasse levou os
moradores a tomarem uma atitude extrema: um grupo munido de ferramentas partiu
para a demolição do muro do Jardim Público, abrindo o espaço para a nova via. A
ocorrência acabou em caso de polícia, com a prisão de sete pessoas (A PROVÍNCIA DE
SÃO PAULO, 15 de outubro de 1889).

1
O Jardim Público, cujas origens remontam ao período colonial, era conhecido como “Jardim Botânico” ou
“Jardim Público”, no século XX popularizou-se como o “Jardim da Luz”. Sobre sua história consultar
Segawa (1996).

2
Em outras fases de expansão da SPR, um conjunto de oficinas será construído na região da Água Branca.
Sobre a expansão da SPR em São Paulo ver Cyrino (2004). Outros documentos que constam no APESP
dão a entender que a expansão da SPR acabou por ocupar terrenos que eram públicos. Ao que as fontes
indicam, a empresa não recebeu uma notificação por parte do governo. A questão será tratada somente
quando foram realizados os acordos para a execução das obras.

 6
Em tom de chacota, o jornal publica uma nota em 26 de outubro do mesmo ano,
conclamando para que os moradores utilizassem como saída do bairro uma “estrada de
ferro aérea”:

“Organizem os moradores do Bom Retiro a companhia, escolham incorporadores entre os


amigos do governo e depois peçam garantia de juros, quando menos para ver mais um
lugar de engenheiro fiscal. Eis aí o meio. Façam isso e terão fácil saída, melhor, mas
arejada, de vista mais bonita que a rua passando pelo jardim” (A PROVÍNCIA DE SÃO
PAULO, 26 de outubro de 1889:p.1).

Em 3 de novembro, é publicada uma nota cujo conteúdo muda o rumo sobre a abertura
da nova rua. Às 7 horas da manhã, enquanto atravessava a linha férrea para a Alameda
do Triumpho, Rosa Bernarda Giovanni, é atingida pela máquina limpa trilhos que a arrasta
por 30 metros. Teve morte instantânea (A PROVÍNCIA DE SÃO PAULO, 3 de novembro
de 1889). O trágico desastre, com vítima fatal, deu uma guinada no “jogo de empurra”.
Nos dias 13 e 15 de novembro, ofícios enviados da Câmara e da Presidência da Província
aceleram as tratativas para que as obras saiam do papel, com a nomeação de uma
comissão formada pelos engenheiros da Diretoria de Obras Públicas, Zózimo Barroso,
Augusto Fomm Júnior e Luiz César do Amaral Gama para efetuarem estudos e propor o
plano das obras necessárias para a abertura da rua (SÃO PAULO - MUNICÍPIO,
1889.11.25).

A comissão emite parecer para que as passagens dos trilhos da SPR com a Rua Helvetia
fossem fechadas, com a construção de uma passagem de nível para a Alameda
Nothmann, o mesmo cercamento deveria ser feito pela CS nessa mesma Alameda. Além
dos muros de acesso aos trilhos, recomendam as seguintes obras:

1º Prolongamento da rua Bom Retiro para comunicação do bairro até a Luz, por meio
do terreno do Jardim Público construindo uma faixa com 20 metros de largura,
contíguo à Estrada de Ferro Santos a Jundiaí e fechar o Jardim com muro e gradil,
tendo no centro da rua um portão;
2º Estabelecer um passadiço sobre colunas de ferro para pedestres, entre a rua da
Estação (em frente à rua Bom Retiro) e o ponto mais conveniente do prolongamento
projetado;
3º Abertura e estabelecimento de porteira de nível com porteira e guarda em frente à
rua Florêncio de Abreu;
4ª Demolição da parte da plataforma em frente a via Brigadeiro Tobias, e
estabelecimento de outra porteira de nível com porteiro e guarda,
5º Fechamento da atual passagem de nível e formação no lugar um pequeno jardim
com gradil alinhado pela frente da estação, em forma semicircular ao lado da Avenida
da Luz. O jardim fechará o espaço entre as duas porteiras de níveis, servindo de
ornamentação a Avenida e não possibilitando a entrada do público, por estar próximo
aos trens (SÃO PAULO - MUNICÍPIO, 1889.11.25).

 7
Após o parecer emitido pela Comissão de engenheiro da Diretoria de Obras Públicas, do
governo provincial, os engenheiros da Câmara Municipal, Antonio Tertuliano Gonçalves e
Carlos Daniel Rath, realizam o orçamento para as obras. O que estava incluso era a
construção do muro e gradil para o Jardim Público, abertura da rua, demolição da casa
do jardineiro, do botequim e custos da desapropriação, calçamento das ruas e dos
passeios, totalizando em Rs49.529$000. Antes do acidente com vítima fatal, a SPR já
havia concordado com a construção de um passadiço para pedestres. Quanto a questão
envolvendo as posses indevidas da SPR em áreas públicas, seriam relevadas porque a
SPR deveria perder área com a abertura da rua. Assim, a SPR faria as obras acordadas,
ficando com o terreno e a diferença de soma do orçamento, o que seria vantajoso para a
empresa e para o Estado.

As obras foram executadas, mas entre os papéis depositados no APESP não foi possível
averiguar o início exato das obras. Outro detalhe importante que pode explicar a falta de
documentos é a transição política que ocorria no país naquele novembro de 1889, que no
dia 15 assistiu ao golpe militar que destituiu a monarquia. O que se segue é uma
reorganização do Estado brasileiro, marcada pela descentralização política e autonomia
dos governos estaduais. Apenas a título de exemplo, a antiga Diretoria de Obras é
organizada como a Superintendência de Obras Públicas, que terá além das obras públicas
outras atribuições administrativas. Sobre as adequações no Bom Retiro, a análise da
produção cartográfica dos anos posteriores permite visualizar as adequações realizadas,
abordadas na seção final do presente estudo.

Sobre as adequações no traçado urbano do Bom Retiro, a falta de planejamento que


marca o espaço, ressaltada e discutida pela produção acadêmica dos estudos sobre
urbanização na cidade de São Paulo, tem no bairro paulistano exemplo contundente. Não
houve por parte das autoridades de governo (municipal e provincial) uma preocupação
com a instalação dos trilhos e as edificações da SPR, como uma forma de mitigar os
efeitos que uma infraestrutura desse porte poderia trazer à cidade. Das frágeis ações de
planejamento (que visavam antes de tudo atender a empresa ferroviária e não a
população) a gestão urbana também se mostra frágil, como foi verificado entre as notas
publicadas pelo jornal A Província de São Paulo: marcada pelo “jogo do empurra” entre
Câmara e governo provincial, com delongas na resolução desta que era uma solicitação
dos moradores, praticamente sitiados no bairro, com difícil deslocamento para outras
regiões, feita pelos trilhos, cuja travessia poderia ser fatal.

AS ADEQUAÇÕES URBANAS DO BOM RETIRO ATRAVÉS DA ANÁLISE DA


CARTOGRAFIA BOM RETIRO
Na documentação levantada para a realização da pesquisa - ofícios diversos e as notas
publicadas no jornal A Província de São Paulo - observa-se que a palavra “melhoramento”
é usada repetidamente para referir-se a abertura da nova rua e as consequências que tal
alteração traria para os moradores e a cidade. O uso da palavra melhoramento, presente

 8
dentro de um contexto social permeado pelo pensamento positivista, onde o seu
significado remete ao uso racional do espaço, à organização e com uma forte conotação
de progresso. No entanto, sensível a outras questões postas no período, como o
estabelecimento das bases capitalistas de produção e, especialmente, da organização do
mercado de terras urbano (BRITO, 2000; SAMPAIO, 1994), a palavra melhoramento traz
outro significado: o de tornar melhor, no sentido de melhorar determinada área visando
o lucro monetário.

Essa ressalva a palavra melhoramento, do inglês improvements3, é trabalhada por Ellen


Wood (2000) para entender os melhoramentos operados em terras rurais durante a
Revolução Industrial na Inglaterra, mas que cabem aos melhoramentos urbanos
pensados para a cidade de São Paulo no final do século XIX. Em São Paulo, o mercado
imobiliário estava em plena expansão, ávido por agregar valor às terras próximas do
centro, que seriam retalhadas em lotes menores e disponibilizadas para venda4.
Melhoramento, nesta pesquisa, é entendido dentro desta chave do “melhorar” para
aumentar o valor de venda, do aluguel e, acima de tudo, para melhorar os negócios dos
proprietários. As adequações debatidas para o Bom Retiro, no sentido de melhorar a
comunicação do bairro com a cidade, é entendida dentro dessa chave do mercado de
terras, das trocas comerciais para empresas instaladas no bairro, notadamente a SPR.

Para conhecer as alterações realizadas no Bom Retiro, a pesquisa recolheu e analisou


mapas produzidos entre 1850, 1881 e 1904, arco temporal que permite visualizar como
era a região antes e depois dos trilhos, bem como as adequações realizadas no traçado
após os eventos descritos na seção anterior. As informações obtidas nos outros
documentos textuais foram fundamentais para as intervenções gráficas realizadas nos
mapas.

3
Essas considerações sobre a palavra “melhoramentos” foram amplamente discutidas no âmbito da
disciplina “Cidade-Jardim: utopias e realizações”, ministrada pelo Prof. Dr. Carlos Roberto Monteiro de
Andrade, do IAU/USP.

4
Das autoras mencionadas que trabalham com a questão do mercado de terras urbano acrescenta-se as
pesquisas de Bueno (2016) e Simoni (2003).

 9
O primeiro mapa selecionado foi a “Planta da cidade de São Paulo”, de 1850 (Figura 1).
O Bom Retiro é representado como parte de uma zona rural da cidade, que integrava o
conhecido “cinturão de chácaras” dispostos nos arredores de São Paulo (LANGENBUCH,
1971:p.79). Os limites naturais do então distrito é feita pelo Rio Tietê ao norte, Rio
Tamanduateí a leste e o Jardim Público ao sul. Por ser área rural, não era dotado de um
sistema viário sofisticado, com alguns caminhos que o ligavam aos Campos Elíseos.

Fig. 1. Detalhe da “Planta da Cidade de São Paulo”, de 1850, onde se vê o bairro do Bom Retiro. Fonte:
Acervo Cartográfico/APESP.

Na década de 1860, a ferrovia chega a São Paulo com a São Paulo Railway Company
(SPR), que escolhe a região do Bom Retiro para instalar a estação da cidade e os outros
prédios administrativos e de manutenção. A escolha da área, segundo Mangili (2009), era
devido a sua proximidade com as áreas de várzea, dispondo de uma topografia
naturalmente em planície, o que favorecia a implantação da estrada. A presença da
empresa modifica o bairro, estimulando o adensamento nas décadas seguintes. Segundo
Langenbuch, a estrutura urbana é modificada quando os locais antes evitados – as áreas
de várzea – começam a ser ocupados. A proximidade com a SPR estimula a instalação de
indústria e trabalhadores livres, muitos dos quais imigrantes e ferroviários, passam a
viver no bairro. Langenbuch identifica que as antigas chácaras são divididas em lotes
menores e comercializadas, em um fenômeno que se intensifica e se torna um dos mais
rentáveis, o mercado de terras urbanas (SAMPAIO, 1994).

Com a implantação dos trilhos, o entorno passa a ser mais adensado, com a presença de
loteamentos e arruamentos, como se observa nos Campos Elíseos. Pelo mapa da cidade
de 1881 (Fig. 2), produzido a pedido da Companhia Cantareira e Esgotos, o Bom Retiro
ainda não estava adensado. Para compreensão e identificação das adequações que
ocorreram no Bom Retiro, foi realizada uma sobreposição a partir dos mapas de 1850 e

 10
1881. Como resultado obteve-se uma representação gráfica do crescimento urbano do
bairro (Fig. 3).

Fig. 2. Detalhe da “Planta da Cidade de São Paulo” de 1881, com o bairro do Bom Retiro. Fonte: Acervo
Cartográfico/APESP.

 11
Fig. 3. Sobreposição dos mapas de 1850 e 1881, em bege o crescimento que ocorre no Bom Retiro e
outros bairros adjacentes, em bege. Elaboração própria a partir dos mapas de 1850 e 1881. Fonte:
Acervo Cartográfico/APESP.

É perceptível como o Bom Retiro passa a ter seu limite imposto pela ferrovia, que se
constitui em uma barreira física que o deixa sem comunicação com o Campos Elíseos,
Santa Ifigênia e os Campos da Luz. Essa falta de comunicação com outras partes da
cidade é o que motiva a solicitação das adequações. Como visto na seção anterior, os
reclamos populares pediram a abertura de uma nova rua, em frente à estação, com uso
de parte do terreno ocupado pelo Jardim Público, como o croqui abaixo ilustra (Fig. 4)

 12
Fig. 4. Croqui da nova rua projetada entre o Jardim Público e a São Paulo Railway feita pelo engenheiro
da Câmara Municipal de São Paulo Antonio Tertuliano Gonçalves. O croqui integra a documentação sob a
guarda do APESP. Fonte: APESP.

Além da construção da rua, os planos incluíam um viaduto para pedestres e a remoção


do armazém de cargas para outra área (anos depois construída no Pari), fechamentos de
alguns acessos aos trilhos e aberturas de novas comunicações contínuas à Alameda das
Figueiras (atual Avenida Tiradentes). Como o fechamento da antiga passagem central
foram abertas duas novas passagens de nível: uma na Rua Alegre (atual Rua Brigadeiro
Tobias) e outra na Rua Florêncio de Abreu até a Alameda das Figueiras, como mostra a
figura abaixo.

 13
Fig. 5. Infográfico com as adequações no traçado urbano identificadas junto às fontes, indicadas no
mapa de 1924. Elaboração própria a partir do Mapa da Cidade de São Paulo de 1924. Fonte: Acervo
Cartográfico/APESP.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Bairro do Bom Retiro, na capital paulista, foi escolhido para sede de vários edifícios da
ferrovia SPR, no trecho de Santos à Jundiaí. Esse complexo da ferrovia e o bairro estavam
contidos pelos trilhos, os rios e o Jardim Público, deixando o Bom Retiro como um enclave.
A comunicação com a área central de São Paulo era feita através de uma única passagem
pelos trilhos. Com o adensamento do bairro, especialmente na década de 1880, inicia-se
uma mobilização dos moradores pela adequação dos arruamentos, com a abertura de
uma nova rua com a demolição de parte do terreno do Jardim Público.

A documentação analisada pela pesquisa recupera tal movimentação, indicando a


presença dos agentes sociais envolvidos e os caminhos para a resolução do problema.
Desse processo, ressalta-se:

 14
- as ferrovias em São Paulo, a instalação dos trilhos, não foram ações planejadas no
sentido de prever seus desdobramentos, especialmente em núcleos urbanos
preexistentes. A estação e outros prédios foram instalados em uma área sem rua,
defronte ao Jardim Público;

- Com o adensamento populacional e o crescimento da ferrovia, o poder público


(municipalidade e província) discute, mas não resolve o problema de imediato. O impasse
leva os próprios moradores a chegarem as vias de fato, e abrirem eles mesmos a nova
rua. A empreitada acabou com a polícia e pessoas presas;

- O processo de adequação do traçado teve como consequência direta a perda de área do


Jardim Público, um dos únicos espaços remanescentes do período colonial, segundo
Segawa (1996). A partir desse evento, constata-se que houve outras reduções
significativas da área do jardim, o que merece uma investigação mais aprofundada a
respeito das outras adequações realizadas nas primeiras décadas do século XX,

- O espaço é moldado de acordo as necessidades, com ajustes e adequações na malha


urbana. A gestão urbana exercida pela municipalidade e província agem conforme as
necessidades colocadas.

Para finalizar, uma constatação que a ocorrência do Bom Retiro evidencia: um Estado que
atua em prol do interesse de poucos – dos latifundiários, das empresas estrangeiras - e
releva para segundo plano o público, os interesses coletivos.

REFERÊNCIAS
BRITO, Mônica Silveira. A participação da iniciativa privada na produção do espaço
urbano: São Paulo, 1890-1911. 213 f. 2000. Dissertação (Mestrado em Geografia) –Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000.
BUENO, Beatriz Piccolotto Siqueira. Aspectos do mercado imobiliário em perspectiva
histórica: São Paulo (1809-1950). São Paulo: Edusp, 2016.
CAMPOS FILHO, Cândido Malta. Os rumos da cidade: urbanismo e modernização em São
Paulo. São Paulo: Ed. Senac, 2002.
CERASOLI, Josianne Francia. Modernização no plural: obras públicas, tensões sociais e
cidadania em São Paulo na passagem do século XIX para o XX. 2004. Tese (Doutorado) -
Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
Campinas,2004.
COSTA, Luiz Augusto Maia. O ideário urbano paulista na virada do século. O engenheiro
Theodoro Sampaio e as questões territoriais e urbanas modernas (1886-1903). São Carlos:
Rima/Fapesp, 2003.
CYRINO, Fábio. Café, ferro e argila: a história da implantação e consolidação da The São
Paulo (Brazilian) Railway Campany Ltd. através da análise de sua arquitetura. São Paulo, SP:
Landmark, 2004.
KAKO, Iara Sakitani; CINTRA, Jorge Pimentel. “A estruturação da cidade de São Paulo a partir
dos caminhos e trilhos (1867-1930)”. Boletim de Ciências Geodésicas, v. 22, n. 4, p. 574-
588, 2016.

 15
LANGENBUCH, Juergen Richard. A estruturação da grande São Paulo. Rio de Janeiro: IBGE,
1971.
MANGILI, Liziane Peres. Bom Retiro, bairro central de São Paulo: transformações e
permanências, 1930-1954. São Paulo: Alameda, 2011.
MARQUESE, Rafael; TOMICH, Dale. “O vale do Paraíba escravista e a formação do mercado
mundial do café no século XIX”. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (orgs.). O Brasil
Imperial (vol.II – 1831-1870) . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
MORAES, Antonio Carlos Robert. Território e história no Brasil. São Paulo: Annablume,
2004.
PAIVA, Odair Cruz. Hospedaria de Imigrantes de São Paulo. Navegar, v. 2, n.3, Jul.-Dez.
2016.
PINTO, Adolfo Augusto. Minha vida. Memórias de um engenheiro paulista. SãoPaulo:
Imprensa Oficial, 1969.
SAMPAIO, Maria Ruth Amaral. O papel da iniciativa privada na formação da periferia paulista.
Espaço e Debates, n. 37, 1994.
SEGAWA, Hugo. (1996). Ao amor do público: jardins no Brasil. São Paulo: Studio
Nobel/FAPESP, 1996.
SIMONI, Lucia Noemia. O arruamento de terras e o processo de formação do espaço
urbano no município de São Paulo, 1840-1930. 2003. Tese (Doutorado) - Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003.
SOMEKH, Nádia. A cidade vertical e o urbanismo modernizador. São Paulo: Nobel, 1997.
WOOD, Ellen. As origens agrárias do capitalismo. Revista Crítica Marxista, (10), 12-30,
2000.
Arquivos consultados
Acervo Digital “O Estado de São Paulo”
A Província de São Paulo, 27 de março de 1889.
A Província de São Paulo, 2 agosto 1889.
A Província de São Paulo, 15 de outubro de 1889.
A Província de São Paulo, 26 de outubro de 1889.
A Província de São Paulo, 3 de novembro de 1889.
Arquivo Público do Estado de São Paulo
Diretoria de Obras Públicas
Caixa 67or5204
SÃO PAULO – MUNICIPIO. Ofício da Comissão de Engenheiros. 1889.11.25

 16
FRAGMENTOS DA HISTÓRIA DA CIDADE EM UMA TRAJETÓRIA
PROFISSIONAL:
as contribuições do engenheiro Milson Dantas
para a cobertura viária
FRAGMENTS OF THE HISTORY OF THE CITY IN A PROFESSIONAL
TRAJECTORY / FRAGMENTOS DE LA HISTORIA DE LA CIUDAD EN
UNA TRAYECTORIA PROFESIONAL
Práticas, processos e institucionalidades

JALES, Carlos Daniel Martins


Graduando em Arquitetura e Urbanismo, integrante do Grupo de Pesquisa História da
Cidade, do Território e do Urbanismo (HCUrb), Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN)
carlosdanielmj@hotmail.com
FERREIRA, Angela Lúcia
Doutora em Geografia, professora do Departamento de Arquitetura e do Programa de
Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFRN
angela.lucia.ferreira@ufrn.br
RESUMO

Com o aumento de transportes automotivos em circulação na cidade de Natal


a partir da década de 1950, surgiu a necessidade de buscar novos materiais
e recursos de calçamento das vias que suportassem crescentes cargas sem a
elevação exacerbada de custos. Nesse sentido, o Bripar, método de
pavimentação criado em 1958 por Milson Dantas, ganhou destaque. Formado
pela Universidade do Recife em 1953, o engenheiro civil teve sua invenção
reconhecida nacional e internacionalmente, embora não memorada, gerando
uma lacuna a respeito dos eventos que influenciaram e resultaram da
transformação da cidade. Assim, objetiva-se compreender a contribuição dos
conhecimentos científicos e atuação técnica de Dantas na modernização da
cobertura viária natalense, recuperando um sujeito histórico pouco
reconhecido pela historiografia corrente. Para tanto, utilizaram-se como fonte
de dados principal os periódicos em circulação à época que retratavam as
realizações do engenheiro e eventuais discussões sobre o Bripar,
fundamentando a análise em autores que dissertam sobre a importância do
estudo da trajetória profissional de determinados atores sociais. Dessarte,
nota-se que o percurso de Dantas foi marcado por diversos fatos, que dizem
respeito tanto à infraestrutura urbana como à arquitetura, pouco conhecidos
pela sociedade. A importância de seu pensamento e proposta de
pavimentação, no que se refere ao conforto visual e térmico e à
permeabilidade do solo, se torna essencial para o debate atual sobre cidades
sustentáveis.

PALAVRAS CHAVE Método Bripar; Pavimentação; Sujeito histórico; Natal-


RN/Brasil.

ABSTRACT

With the increase of automotive transports in circulation in the city of Natal


from the 1950s onwards, the need arose to seek new materials and
resources for paving the roads that would support greater loads without the
exacerbated increase of costs. In this sense, the Bripar, a paving method
created in 1958 by Milson Dantas, gained prominence. Graduated from the
University of Recife in 1953, the civil engineer had his invention recognized
nationally and internationally, although not remembered, creating a gap
about the events that influenced and resulted in the transformation of the
city. Therefore, the objective is to analyze the contribution of scientific
knowledge and technical performance of Dantas in the modernization of road
coverage in Natal, recovering a historical subject little recognized by current
historiography. In order to do so, periodicals in circulation at the time were
used as main data sources, which portrayed the engineer's achievements and
eventual discussions about Bripar, basing the analysis on authors who

• 2
discuss the importance of studying the professional trajectory of certain
social actors. Thus, it is noted that Dantas' path was marked by several facts
little known by society. The importance of his thinking and paving proposal,
with regard to visual and thermal comfort and soil permeability, becomes
essential for the current debate on sustainable cities.

KEY-WORDS Bripar method; Paving; Historical subject; Natal-RN/Brazil.

• 3
INTRODUÇÃO
Não sei como firmas que se dizem conceituadas com idoneidade técnica, se submetem a
executar calçamentos dentro das especificações previstas nos Editais da Prefeitura do
Natal. Especificações ultrapassadas e vetustas, sem nenhum conteúdo científico
e comprovadamente ineficiente. Incapazes de suportar os esforços a que estão
submetidos os investimentos de ruas com tráfego pesado. Esforços tangenciais
acima de 500 veículos e carga-eixo de 100 toneladas (ENGENHEIRO..., 1975, p. 5, grifo
nosso).

Essa fala, concedida ao jornal Diário de Natal no ano de 1975, faz referência à
precarização da cobertura viária na cidade, em decorrência do aumento crescente do
número de automóveis, leves e pesados, em circulação na Capital potiguar a partir da
segunda metade do século XX. Destarte, era premente a necessidade de criar um
método de pavimentação que suportasse maiores níveis de cargas sem a elevação
acentuada de custos dos materiais utilizados e da mão de obra. É nesse contexto que
surge a definitiva contribuição de um profissional que marcaria uma época, formado em
Engenharia Civil pela Universidade do Recife em 1953: Milson Dantas. Engenheiro de
relevância no meio técnico e político, com ideais de grande influência no Brasil e no
mundo, foi o inventor do método matemático de dimensionamento do calçamento com
brita e paralelepípedo, Bripar.
Toda a trajetória do potiguar, marcada por significantes conquistas, lideranças em
diferentes instituições e compartilhamento de seus princípios modernos por meio de
suas produções, é pouco lembrada, o que consequentemente não gerou registros de
seu percurso e de seu trabalho teórico e experimental, que foram da escala do edifício à
infraestrutura física urbana e regional. Desse modo, o presente estudo tem como
objetivo geral compreender a inserção dos conhecimentos científicos e da atuação
profissional de Dantas nas transformações da cidade, com ênfase na cobertura viária,
recuperando um sujeito histórico (PIEROSAN, 2008) partícipe da construção da Natal
contemporânea. Mais especificamente, pretende-se apreender as fontes de influência
existentes durante a sua formação acadêmica; o processo de entrada e permanência do
potiguar no mundo do trabalho; a interferência de suas realizações, principalmente no
que se refere ao tratamento dado às vias, nas mudanças infraestruturais ocorridas pelo
crescimento urbano; e apontar elementos da repercussão de sua trajetória na
participação dos engenheiros na história de Natal.
O desenvolvimento do estudo em questão foi realizou-se primordialmente pela revisão
da literatura a respeito de categorias teórico-metodológicas fundamentais que apoiam a
sistematização, interpretação e análise dos dados. Para o entendimento das ações
modernizadoras ocorridas no Brasil e em Natal, que dizem respeito à tecnologia e aos
ideais da época, foram fundamentais as contribuições de Nabil Bonduki (2002), Dilma
de Paula (2010), Luiza Lima (2011), Maísa Oliveira (2013) e Paulo Nobre (2016).
Ademais, amparou-se em autores que discutem a atuação de engenheiros no território
brasileiro, mas que também tiveram importância para a historiografia local, como
Heliana Salgueiro (2001), Verena Alberti (2008), Anna Rachel Julianelli (2011) e
Frederico Tavares (2017). Na procura por uma conexão entre a formação acadêmica de

• 4
Dantas e sua atuação profissional, também foram importantes os aportes de Luiza Lima
(2015) e de André Roberto Pinto (2015).
Cabe destacar que, embora com análise voltada para outra faceta profissional de
Dantas, as bases do estudo estão presentes no trabalho intitulado “Mossoró 604”,
elaborado por Gabriele Gadêlha (2019). O documento traz a compreensão dos preceitos
modernistas na Capital potiguar, apreendendo a participação de Milson Dantas como
projetista na Natal que almejava ser moderna. Gadêlha (2019) traz dados pertinentes à
trajetória do engenheiro civil que puderam ser analisados e, posteriormente, permitiram
novas discussões, possibilitando uma abordagem mais acentuada de determinados
tópicos como a criação e divulgação do método Bripar, relevante para a pesquisa.
Os periódicos da época se tornaram fontes importantes de dados empíricos,
proporcionando informações acerca da ampla atuação do engenheiro civil na cidade do
Natal – ao exercer cargos de projetista, avaliador de imóveis, sócio em construtoras,
diretor-chefe em instituições, fiscal e inventor – e sobre a trajetória de reconhecimento
do método Bripar pelo Poder Público Municipal. A consulta dos periódicos se deu por
meio da Biblioteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional, onde se filtrou as matérias
que citam o engenheiro civil Milson Dantas e o método Bripar de pavimentação. Assim,
encontraram-se discussões relevantes nos jornais Diário de Natal (RN), O Poti (RN) e
Diário de Pernambuco (PE), em um intervalo de tempo de 1955 a 1985 – ano de
registro de suas primeiras atuações como engenheiro na cidade de Natal e ano de sua
candidatura à prefeito da Capital potiguar, respectivamente.
Vale salientar que, independentemente da linha editorial do jornal, todas as notícias que
mencionam o engenheiro foram consideradas, sendo um total de 110 recortes de
matérias: 76 do periódico Diário de Natal; 21 do O Poti; e 13 do Diário de Pernambuco.
Em relação às notícias que fazem referência ao método Bripar, analisou-se 227
matérias: 175 do periódico Diário de Natal e 52 do O Poti.
Para complementar as informações rastreadas e entender melhor as questões técnicas
do método de pavimentação criado por Milson Dantas, realizou-se consultas ao Dr.
Petrus Nóbrega (2020), engenheiro civil e professor de estruturas da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte. Particularmente, buscou-se responder eventuais
questionamentos a respeito da relação entre as propriedades da aplicação do Bripar –
permeabilidade do solo e absorção de calor, por exemplo – e a solução de determinados
impasses existentes nas cidades contemporâneas.
O trabalho se estrutura em três itens: o primeiro diz respeito a sua formação acadêmica
na Escola de Engenharia de Pernambuco; o segundo mostra o percurso de
reconhecimento de Dantas por sua invenção criada; e, por fim, destaca-se os diversos
outros cargos ocupados e produções do potiguar ao longo de sua carreira e suas
respectivas contribuições à Natal.

• 5
MILSON DANTAS: UMA VIDA DEDICADA A INOVAÇÕES
O percurso profissional do engenheiro civil Milson Dantas (Figura 1) se direcionou
principalmente às áreas de projeto arquitetônico e de melhoramento da cobertura viária
natalense. Apesar de serem campos distintos, o potiguar apresentava uma preocupação
constante no estudo da engenharia dos materiais, unindo as suas duas principais
atuações. Esta sua preocupação pode ser exemplificada pela sua própria residência,
onde Dantas utiliza de diferentes traços do concreto para texturizar os ambientes.
Gadêlha (2019) também evidencia o uso do concreto armado, técnica em ascensão na
época, como solução adotada pelo engenheiro para dar mais liberdade à disposição dos
espaços em uma construção, o que permite o não alinhamento de paredes em
pavimentos diferentes. Dantas (1975), ao descrever os materiais que compõem o
método Bripar, criado por ele, mostra o seu cuidado em escolher elementos que
apresentem maiores vantagens quanto à resistência, durabilidade e conforto lumínico.
Desse modo, percebe-se que o engenheiro, ao longo de sua carreira, teve como foco a
implantação de recursos eficazes que solucionassem os problemas encontrados na
Construção Civil a partir do estudo e comprovação científica dos materiais utilizados.

Figura 1: engenheiro Milson Dantas durante


entrevista concedida ao jornal Diário de Natal. Fonte:
Diário de Natal (1975).

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Dantas nasceu no município de Macaíba-RN em 16 de julho de 1922. Filho do
desembargador Virgílio Dantas e de Maria Terceira Dantas, casou-se com Martha Maria
Dantas e teve dois filhos: Jorge Campos de Melo Dantas e Luiz Felipe Campos de Melo
Dantas. Mostrava-se um profissional crítico, determinado e de espírito inovador que,
entre 1955 e 2014 – esse último, ano de seu falecimento –, atuou em distintas áreas da
Engenharia. Ainda estudante do ginasial (atualmente conhecido como Ensino
Fundamental II), em 1942, Milson Dantas teve o seu primeiro contato com a Construção
Civil, área na qual seguiria carreira futuramente: foi contratado como estagiário do
laboratório de análises físicas de material do solo, localizado em Parnamirim-RN. O
potiguar era encarregado de estudar os materiais que seriam componentes para as
bases e pavimentos de pistas e estradas (ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS INVENTORES,
2008). Alguns anos depois, em 1949, Dantas decidiu estudar Engenharia Civil na cidade
de Recife-PE.
A capital pernambucana, com sua movimentação de importação e exportação pelo seu
porto a partir do final do século XIX, era considerada um importante centro do Nordeste
brasileiro. Com a República, em 1889, e o incremento da industrialização e das relações
comerciais no mundo, gerou-se a necessidade de modernização das cidades brasileiras.
Assim, as Escolas de Engenharia foram construídas com o objetivo primordial de formar
profissionais engenheiros para atender tal demanda (PINTO, 2015). A Escola de
Engenharia de Pernambuco, fundada em junho de 1895, se tornou a primeira a abrir no
Nordeste e a quarta a ser instalada no país – depois da Real Academia Militar (RJ) em
1792, da Escola de Engenharia de Minas e Metalurgia de Ouro Preto (MG) em 1876 e da
Escola Politécnica de São Paulo (SP) em 1893. Em virtude da Instituição ter sido
fechada em 1904 pelo Governo Estadual por falta de recursos, fundou-se, em janeiro de
1905, a Escola Livre de Engenharia de Pernambuco. O prédio foi demolido no ano de
1943, posteriormente reerguido e inaugurado em 1945. Por fim, constituiu-se a
Universidade do Recife, federalizada mediante a Lei Nº 976, de 17 de dezembro de
1949.
O professor Luiz de Barros Freire, durante uma palestra alusiva ao Cinquentenário da
Escola de Engenharia de Pernambuco, em 1945, destacou o empenho da Instituição em
aprimorar o ensino aplicado, com investimentos em laboratórios e oficinas, convênios
com professores estrangeiros e ampliação do acervo bibliográfico (FREIRE apud LIMA,
2015, p. 219), o que demonstra a preocupação em reformular o perfil do engenheiro da
época, ao ter em vista a crescente expansão industrial no Brasil. Ao analisar a grade
curricular em vigor na época em que Dantas era estudante (Quadro 1), pode-se
ressaltar que já se transmitiam ideais de cunho modernista aos discentes do curso de
Engenharia Civil da referida faculdade, com disciplinas voltadas ao planejamento urbano
e à modernização das cidades, tais como “Higiene geral, higiene industrial e dos
edifícios”, “Saneamento e traçado das cidades”, “Construção civil” e “Arquitetura”.
Por meio da revisão da comunidade docente da época, também evidenciada na grade
curricular, tem-se que os professores apresentavam uma trajetória profissional bastante
diversificada. Assim, destacam-se: Antônio Bezerra Baltar, professor da Escola de

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Engenharia e do curso de arquitetura da Escola de Belas-Artes de Pernambuco, também
engenheiro do Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Pernambuco, da
Associação Brasileira de Cimento Portland e do Departamento Nacional de Estradas de
Rodagem (DNER); Manoel Antônio de Moraes Rêgo, um dos fundadores da Escola Livre
de Engenharia de Pernambuco, eleito prefeito de Recife em 1915 e criador do Clube de
Engenharia de Pernambuco (GADÊLHA, 2019); e Pelópidas Silveira, primeiro prefeito da
Capital pernambucana a ser eleito pelo voto popular (1955-1959), conhecido por suas
obras de planejamento urbano nas áreas periféricas do Recife (INSTITUTO DA CIDADE
PELÓPIDAS SILVEIRA, 2016).

Quadro 1: disciplinas da Escola de Engenharia da


Universidade do Recife (1947). Fonte: Lima
(2015), retirado do arquivo geral da UFPE.

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Dessa maneira, constata-se que, em virtude da formação profissional do corpo de
professores da Escola de Engenharia de Pernambuco, que atuavam em diversos outros
campos da Construção Civil além da docência, os ideais modernos puderam ser
disseminados com mais propriedade e ênfase aos estudantes da Instituição, instigando
a comunidade discente a pôr em prática seus conhecimentos sobre a inovação dentro e
fora da edificação. No ano de 1953, Milson Dantas conclui sua graduação em
Engenharia Civil e retorna a Natal-RN.

O MÉTODO BRIPAR DE PAVIMENTAÇÃO


Dantas se destacou por seu espírito criativo. Dentre suas invenções, a que recebeu
maior destaque foi o método matemático de dimensionamento de pavimentação à
pedra, o Bripar (aglutinação das palavras “brita” e “paralelepípedo”), criado em 1958 e
atualmente utilizado em diversos países, sendo um dos inventos mais lucrativos em
todo o Brasil. Em virtude do aumento considerável do número de veículos em trânsito
em meados do século XX, o pavimento da cidade do Natal, segundo enfatizado pela
imprensa da época, já não suportava mais as altas cargas atuantes, mesmo seguindo
todas as normas e especificações técnicas, encontrando-se “em estado precário, cheias
de buracos, provocando diariamente dezenas de acidentes” (MÉTODO..., 1975, p. 19).
Em 1958, durante a concretagem de uma placa do Aeroporto Internacional Augusto
Severo, localizado em Parnamirim-RN, Dantas imaginou o rejuntamento à base de brita
para os paralelepípedos (ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS INVENTORES, 2008), surgindo,
desse modo, a ideia primordial do que se tornaria o método Bripar de pavimentação.
O Bripar utiliza a brita e o paralelepípedo como principais elementos, compactados de
forma mecânica, enquanto as junções existentes são costuradas com cimento asfáltico
ou emulsão asfáltica por irrigação manual (Figura 2). Assim, cria-se um método de
pavimentação “verdadeiramente semi-flexível na resistência aos esforços verticais e, ao
mesmo tempo, um pavimento de características rígidas na resistência aos esforços
tangenciais” (DANTAS, 1975, p. 18).

Figura 2: ilustração do produto final do processo de


pavimentaço Bripar. Fonte: Relatório descritivo da
patente do método Bripar (1975).

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Para que Dantas tivesse seu invento reconhecido, foi necessária a assistência dos
laboratórios do Departamento de Estradas e Rodagem do RN (DER/RN) e da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Tais instituições apresentaram
importância por contribuir ao estudo das proporções corretas de cada componente a ser
utilizado (ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS INVENTORES, 2008), além de comprovar
cientificamente a eficácia do produto, primordial no processo de patente.
Desde 1958, ano de descoberta do Bripar, Milson Dantas lutou para que seu método
fosse aplicado e tivesse apoio governamental. Somente em 1973, com a eleição do
governador Cortez Pereira, o engenheiro teve a assistência do governo do Estado,
sendo a primeira oportunidade de usar sua invenção a partir de um programa
executado pelo DER. Com o sucesso da experiência, o governo, no ano seguinte,
disponibilizou um milhão de cruzeiros para dar prosseguimento às obras na estrada RN-
22 (Figura 3) – extensão que ligaria a RN-4 à Extremoz – utilizando o novo invento
(MILSON..., 1974, p. 5). A atenção dada pela administração estadual foi essencial para
que Dantas pudesse dar início à sua trajetória de divulgação do método de
pavimentação, trazendo revoluções técnicas pertinentes à Capital potiguar com base em
mais de uma década de estudos e análises.

Figura 3: RN-22 em processo de pavimentação


pelo método Bripar. Fonte: O Poti (1974).

A cobertura viária criada por Milson Dantas, de acordo com o Relatório Descritivo da
Patente do método, apresenta favoráveis condições térmicas e lumínicas, considerável
durabilidade, com pouca necessidade de manutenção, além de fazer uso de materiais
locais e de mão de obra simples – em virtude da fácil aprendizagem da técnica -, o que
reduz seu custo (DANTAS, 1975). Apesar das juntas poderem ser irrigadas com
emulsão asfáltica, o Bripar não se torna uma pavimentação totalmente impermeável
(NÓBREGA, 2020), o que contribui para o escoamento e absorção parcial das águas
pluviais e, consequentemente, diminuindo o número de alagamentos no espaço urbano.
Sobre a aplicação do método, é interessante destacar o uso do rolo compactador em
substituição do trabalho manual (MILSON..., 1974, p. 5), ao ter em vista que a máquina
provoca uma pressão uniforme, diferentemente dos operários, que tendem a diminuir

• 10
sua força à medida que se cansam, o que pode provocar ondulações na pavimentação.
Logo, constata-se que a invenção de Dantas, apesar de fazer uso de materiais já
conhecidos pela Construção Civil, prevê uma modernização e eficácia na metodologia
aplicada na pavimentação da época – considerada ultrapassada “por não mais satisfazer
as exigências de conforto requerido pelo tráfego intenso (pesado) do mundo moderno”
(DANTAS, 1975, p. 2).
O Diário de Natal foi o periódico que mais se fez presente na transmissão de notícias
sobre a trajetória de implantação do método Bripar na cidade de Natal, assim como
também expôs de maneira explícita o seu posicionamento a respeito da invisibilidade do
novo método de pavimentação por parte do Poder Público Municipal. Entre tais notícias,
destaca-se a matéria escrita pelo jornalista Cassiano Arruda Câmara, figura bastante
conhecida pela elite natalense da época, no qual questionava quais os motivos para a
Prefeitura não utilizar um método de interesse internacional:

No momento em que a Prefeitura se dispõe a reiniciar o seu programa de calçamento,


insistindo no ultrapassado método de paralelepípedo, é chegado o momento de se
questionar se esta é a providência mais adequada e se esta é a melhor solução para a
cidade (CÂMARA, 1975, p. 4)

É possível que a relutância da Prefeitura de Natal em aplicar o referido método, e


tomado uma atitude conservadora, tenha como razão o fato da pavimentação criada por
Dantas apresentar um custo maior que o calçamento convencional, gerando maiores
despesas ao Poder Público Municipal caso essa fosse adotada. Dessa maneira,
desconsiderou-se todo o embasamento e comprovação técnica elaborada pelo
engenheiro civil em relação à durabilidade e resistência do Bripar, contentando-se com
os métodos antigos - e ultrapassados - de cobertura viária por uma questão de
economia mínima do dinheiro público.
O reconhecimento do Bripar pela administração pública local foi um processo paulatino
e, muitas vezes, com diversos conflitos. Em julho de 1974, Dantas criticou o Poder
Público natalense por copiar e aplicar incorretamente seu método durante a
pavimentação da Avenida Prudente de Morais – via de tráfego intenso - e por planejar o
uso de areia-asfalto como pavimentação da Avenida Deodoro da Fonseca – via de
menor hierarquia, mas com certa relevância -, ignorando todas as vantagens
comprovadas pelo engenheiro a respeito de seu novo método (SANTO..., 1974, p. 22).
Vale salientar que, nesse mesmo período, outros Estados da Federação já possuíam
interesse no Bripar, com patente requerida no Brasil e em mais quatro países:
Inglaterra, Estados Unidos, Uruguai e Argentina – e, após a patente publicada em
janeiro de 1975, na Índia (BRIPAR, 1975, p. 4). Assim, evidencia-se que o método,
mesmo se destacando além do território norte-rio-grandense, foi invalidado por seus
próprios conterrâneos, que insistiam em utilizar métodos não mais eficazes.
Posteriormente, outras denúncias relacionadas a irregularidades devido ao uso
inadequado do método Bripar de pavimentação foram relatadas em notícias de jornais
da época (ENGENHEIRO..., 1976, p. 8; AV. PRUDENTE..., 1979, p.3), muitas vezes
demonstrando a insatisfação do próprio engenheiro. É notório o apelo de Milson Dantas

• 11
aos jornais de grande circulação na Natal do período estudado como meio de dar voz às
suas indignações com os governos Municipal e Estadual, proporcionando entrevistas e
expondo suas opiniões e denúncias (Figura 04), atitude justificada ao ter em vista a sua
não credibilidade perante o Poder Público Municipal, principalmente. Tais periódicos
também evidenciam que, raramente, são apresentadas soluções às problemáticas
trazidas pelo engenheiro civil.

Figura 04: montagem com recortes de jornais que


destacam as críticas a respeito do método Bripar.
Fonte: elaborado pelo autor (2022).

Durante a 4ª Reunião de Diretores de Órgãos Rodoviários Estaduais, realizada em Belo


Horizonte – MG em setembro de 1975, Dantas trouxe à tona sua incredibilidade perante
o Governo Municipal de Natal. É interessante destacar que, meses antes da Reunião, o
engenheiro fora afastado inexplicavelmente de seu cargo no DER/RN (MÁRCIO..., 1975,
p. 5), o que corrobora o fato de que o potiguar não recebia o devido apreço e respeito
pelos seus estudos em benefício do programa rodoviário do RN. A discussão ocorrida no
evento levou à convocação de Milson Dantas para debater, em maio de 1976, sobre seu
método Bripar (MAGNUS..., 1975, p. 4). O invento apresentou certa repercussão entre
os presentes (MILSON..., 1976, p. 3), tendo como ouvintes alguns integrantes da elite
política da época: o Governador do Estado, Tarcísio Maia, o prefeito de Natal, Vauban
Bezerra, os diretores do DNER e do DER e o secretário de Serviços Urbanos da
Prefeitura.
No ano de 1979, Milson Dantas também precisou lidar com o desentendimento entre
empreendimentos que prestavam serviços de pavimentação, que alegavam a
irregularidade da patente do Bripar: “É provável que ainda esta semana várias
empresas de construção civil definam um movimento de rebeldia - através de uma ação
judicial - contra o pagamento de royalties pela utilização do método bripar, sob o

• 12
fundamento de que ele não está patenteado” (POSIÇÃO, 1979, p. 4). O advogado do
engenheiro, Ivo Dantas, auxiliou o inventor do método a solucionar o referido impasse
(BRIPAR, 1979, p. 4), entretanto, não houve publicação de demais notas ou notícias nos
periódicos analisados que evidenciassem o desfecho da situação, o que pode indicar que
a ação judicial movida pelas empresas não tenha seguido adiante.
Dantas, apesar de ter sofrido inúmeras repreensões por seu método de pavimentação,
foi enaltecido por diversas instituições como o Congresso Nacional em 1974, o Centro
de Debates e Estudo Café Filho (Natal-RN) em 1979 (SESSÕES..., 1979, p. 5) e a
Empresa Brasileira de Transportes Urbanos (Brasília-DF) em 1980 (BRIPAR, 1980, p. 4),
sendo convidado a palestrar sobre o Bripar nas duas últimas. Também houve críticas
positivas sobre o engenheiro e seu método nas revistas Transporte Moderno (SANTO...,
1974, p. 22), Construção Norte-Nordeste (BRIPAR, 1982, p. 4) e Isto É (OS RICOS,
1985, p. 4), periódicos respeitados na época. Assim, percebe-se que o potiguar, após os
diversos conflitos com a Prefeitura do Natal, principalmente na década de 1970,
ganhou, em partes, o seu devido reconhecimento por suas contribuições para a Capital
potiguar, sendo bem considerado por determinados meios de comunicação durante a
segunda metade do século XX.
Apesar dos impasses existentes entre parte da administração pública, a implementação
do método Bripar se deu ainda na década de 1970, na estrada que liga Natal à Ponta
Negra e na estrada Natal-Redinha, inauguradas em fevereiro de 1975 (ESTRADAS...,
1975, p. 8), seguido das avenidas Alexandrino de Alencar e Capitão Mor Gouveia, em
1978 (BRIPAR, 1978, p. 4; CALÇAMENTO, 1978, p. 5). É relevante destacar que, até o
início da década de 1980, o invento ainda era pouco adotado como método de
pavimentação principal em outros estados do RN, o que levou Dantas a se tornar sócio
do engenheiro Aroldo Azevedo em 1984 (REVOLUÇÃO, 1984, p. 4), que coordenou a
comercialização e o controle de qualidade da técnica, intensificando a divulgação
sistematizada por todo o Brasil.
A criatividade de Dantas não se limitou à invenção do Bripar. Em 1981, o engenheiro
desenvolveu uma nova técnica de pavimentação, o Bripac (PAVIMENTO, 1981, p. 4),
mas que não ofereceu todos os resultados esperados durante o seu teste (TESTE, 1981,
p. 4). Em 1985, anunciou a realização de pesquisas com o objetivo de aproveitar as
ondas do mar como fonte de energia alternativa (OS RICOS, 1985, p. 4), mas sem se
aprofundar em detalhes a respeito de suas ideias. Dantas também criou e patenteou um
cata-vento horizontal, porém, em virtude dos conflitos ocorridos com o método Bripar, o
engenheiro optou por não o divulgar. Em vista disso, salienta-se o desapontamento do
sujeito histórico (PIEROSAN, 2008) por sua invisibilidade perante a comunidade
natalense, que não o reconheceu como profissional relevante à transformação da
cobertura viária das cidades, levando-o a não aprimorar – ou não difundir – suas
inovadoras ideias e invenções criadas posteriormente ao método Bripar de
pavimentação.

• 13
AS DEMAIS INSERÇÕES PROFISSIONAIS
Dantas possuiu uma trajetória profissional bastante diversa, ao ter em vista que o
potiguar atuou em inúmeros segmentos da Engenharia Civil e, até mesmo, fora dela.
O seu interesse na área de projeto é evidenciado em seu currículo pela escolha de
disciplinas optativas oferecidas pela Universidade do Recife como “Arquitetura” e
“Construção Civil”, atuando como projetista no início de sua carreira (LIMA, 2015) e,
posteriormente, explorando outras áreas. Entre 1955 e 1958, Milson Dantas ocupou seu
primeiro cargo empregatício após a graduação: tornou-se sócio da Sociedade
Construtora Técnica F. & Pimenta Ltda, empresa responsável pela construção de
rodoviárias, ferrovias e pavimentações em geral, sendo o engenheiro responsável pelas
obras da empresa (COLABORANDO..., 1956, p. 12; SOCIEDADE..., 1958, p. 4).
Concomitantemente às suas atividades empresariais, Dantas foi contratado, em 1956,
para atuar como avaliador de imóveis pelos Institutos de Aposentadorias e Pensões
(IAPs), política criada em 1933 durante o Primeiro Governo Vargas – mas efetivado em
Natal somente em 1941 – para a produção direta e financiamento de moradias em
âmbito nacional (LIMA, 2011). Nessa função, iniciada em novembro de 1956 e se
estendendo até fevereiro de 1961, contabilizando um total de 18 avaliações elaboradas
entre o IAP dos Servidores Públicos Federais (IPASE), o IAP dos Comerciários (IAPC) e o
IAP dos Industriários (IAPI) (LIMA, 2015). Parte significativa das residências avaliadas
por Dantas pertenciam a grupos de poder aquisitivo médio e alto, em sua maioria
servidores públicos (vinculados ao IPASE) que adquiriram casas de considerável padrão,
localizadas principalmente em áreas nobres dos bairros do Tirol e Petrópolis. Os bairros
do Alecrim e da Cidade Alta também foram alvos das avaliações do engenheiro, porém
de casas destinadas a grupos menos abastados.
Entre 1960 e 1982, o potiguar trabalhou de forma intensa como projetista de diversas
tipologias dentro da cidade do Natal (Quadro 02). É válido salientar que os engenheiros
vinculados aos IAPs, institutos no qual a referida atuação de Dantas foi desenvolvida, se
constituíram em agentes importantes na difusão dos novos princípios modernistas,
promovendo a introdução de elementos inovadores na arquitetura e no urbanismo,
difundindo tais preceitos e facilitando o acesso às novas tipologias de moradias
(OLIVEIRA, 2013). De acordo com os registros no Conselho Regional de Engenharia e
Agronomia do RN (CREA-RN), os projetos residenciais ganham destaque (Figuras 5 e 6),
seguidos dos “projetos” de pavimentação, que constam somente a partir de 1976,
possivelmente em virtude do método Bripar ter sido registrado no CREA-RN em 1975.

Quadro 2: projetos de Dantas registrados no


CREA-RN. Fonte: Gadêlha (2019).

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Figura 5: fachada e maquete eletrônica do sobrado
projetado por Dantas na década de 1960,
financiado pelo IAPB. Fonte: Gadêlha (2019).

Figura 6: fachada de residência projetada por


Dantas e financiada pelo IAPB. Fonte: processos
prediais do INSS-RN – Banco de dados
empreendimento/HCUrb.

Ao longo de sua carreira, Dantas ocupou cargos de chefia de grande relevância na


cidade do Natal, exercendo a função de conselheiro fiscal do Sindicato das Indústrias da
Construção e do Mobiliário do Estado do RN entre 1961 e 1965 (SINDICATO..., 1961, p.
3; SINDICATO..., 1963, p. 4), na fiscalização de obras com convênio entre o Ministério
da Educação e o Governo do Estado em 1962 (TERIA..., 1962, p. 6), além de presidir a
Comissão de Estudos e Reorganização Administrativa do DER, criada a partir de uma
orientação governamental (CRIADA..., 1963, p. 8) com o objetivo de realizar estudos
relacionados à dinamização dos serviços e implantação de novos sistemas no tocante a
organização e funcionamento do DER.
O 5º Distrito Rodoviário do Departamento de Natal, inaugurado em dezembro de 1971,
também recebeu a chefia do engenheiro (DER..., 1971, p. 3), com a finalidade de
atender às rodovias estaduais próximas à Natal, atuando na rede de melhoramentos,
construção e conservação. Verifica-se, portanto, que tais instituições presentes na
Capital potiguar, na grande maioria dos casos, percebiam Milson Dantas como um

• 15
profissional capaz de atuar em cargos de chefia, sendo um engenheiro civil experiente
marcado por seus ideais fortes e de espírito inovador.
O engenheiro ainda tentou seguir a carreira política: em 1976, candidatou-se a
vereador de Natal (EXPERT, 1976, p. 4), e em 1985, a prefeito (POEMAS..., 1985, p. 2).
Entretanto, Dantas não foi eleito em nenhum dos dois momentos, apesar de suas
candidaturas terem sido apoiadas pela imprensa, ao levar em consideração que o Poder
Público Municipal poderia ter um “expert em pavimentação”, um dos assuntos mais
debatidos na época no órgão executivo, como menciona o jornal Diário de Natal na
década de 1970 (EXPERT, 1976, p. 4). A candidatura do profissional a cargos políticos
na cidade do Natal pode ser percebida como uma forma encontrada por Dantas de
solucionar as problemáticas existentes na Capital potiguar de maneira mais eficiente,
em especial, a infraestrutura física.
Os diversos cargos de chefia ocupados por Dantas durante seu percurso profissional,
aliados também a outras experiências, possivelmente tiveram papel relevante na
fundação de uma empresa própria, antes mesmo da sociedade realizada com o
engenheiro Aroldo Azevedo em 1984. Assim, em 23 de janeiro de 1978, Milson Dantas
inaugurou a Bripar - Tecnologia e Assistência Técnica Ltda., localizada em Natal, sendo
uma sociedade composta por ele como diretor técnico e o engenheiro José Mesquita
Fontes como diretor comercial (BRIPAR..., 1979, p. 8). As atividades da empresa
consistiam principalmente no desmonte e demolição de estruturas previamente
existentes (manual, mecanizada ou através de implosão), além da prestação de
serviços de pavimentação utilizando o método Bripar, encerrando suas atividades em 07
de março de 2007. A Bripar Ldta. permaneceu ativa por quase 30 anos, o que
demonstra o sucesso da empresa em suas atividades na cidade do Natal.
Na noite do dia 04 de junho de 2014, aos 91 anos, Milson Dantas foi vítima de um
acidente automobilístico na cidade de Natal-RN, vindo a falecer na manhã do dia
seguinte. Recordou-se a participação do engenheiro civil em eventos sociais e reuniões
na Capital potiguar, destacado também como “um dos maiores nomes da engenharia do
Rio Grande do Norte”, mencionado em nota realizada pelo jornal Tribuna do Norte
(MILSON..., 2014).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A busca e disseminação de informações a respeito de elementos que compõem uma
cidade, assim como a trajetória do indivíduo vinculado a esses, são ações pertinentes ao
aprofundamento teórico sobre a história de uma cidade. Tavares destaca a ausência de
conhecimento acerca da própria cidade na qual estamos inseridos, o que evidencia uma
“nítida separação entre o que se vê e o que não se reconhece importante” e,
consequentemente, reproduzindo “uma banalização involuntária entre a vida e morte da
urbe” (TAVARES, 2017, p. 28). O método Bripar de pavimentação se mostrou inovador
por todo o Brasil e em diversos outros países pela sua eficácia no melhoramento da
cobertura viária das cidades, remediando os eventuais impasses urbanos em

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surgimento na época. No entanto, o sujeito histórico responsável por desenvolver tal
técnica fora esquecido, inclusive por sua própria comunidade: o engenheiro civil
potiguar Milson Dantas.
Na contemporaneidade, ainda pode-se caminhar pelas ruas da cidade e não perceber a
relevância dessa pavimentação e de seu inventor. Verena Alberti (2008) revela que as
biografias de indivíduos comuns são capazes de concentrar diversas características de
uma sociedade, evidenciando contextos e possibilidades ocultas de uma cultura. A
autora também acrescenta: a história de uma cidade pode ser percebida a partir do
estudo das transformações ocorridas em seu espaço físico, âmbito social ou pela difusão
de pensamentos e ideias. Ao remeter à Heliana Salgueiro (2001), pode-se dizer que o
saber sobre a cidade depende, principalmente, do conhecimento de trajetórias
profissionais de técnicos e mediadores culturais. No caso da pesquisa em foco,
identificou-se como aqueles que se dedicaram à solução de problemas da base física da
cidade e do território. Assim, fez-se uso do conceito de “sujeito histórico” como sendo o
indivíduo que interpreta sua própria realidade, “identificando e criando possibilidades de
agir sobre ela e transformando sua própria História” (PIEROSAN, 2008, p. 48).
O referido estudo se torna relevante para a análise da conjuntura da cidade do Natal
durante a segunda metade do século XX, ao dar ênfase à problemática da pavimentação
da Capital potiguar, que se encontrava em estado precário, e à modernização de
técnicas para solucionar tais problemas. Também mostrou-se os conflitos existentes
entre a Prefeitura Municipal do Natal e o engenheiro civil que, após patentear sua
invenção em 1975, não recebeu o devido crédito do Poder Público, que insistiu em
continuar utilizando os métodos tradicionais de pavimentação mesmo tendo noção de
sua ineficácia – já comprovada cientificamente por Dantas após 15 anos de análises e
experiências apoiadas pelos laboratórios do DER/RN e da UFRN.
Por diversas vezes, foram registrados casos de uso ilegal do método Bripar, o que pode
ter levado o engenheiro a resguardar seus posteriores inventos, com vistas a evitar os
mesmos momentos desgastantes no qual viveu principalmente durante a década de
1970, quando lutou pelo reconhecimento de seu método de pavimentação. De acordo
com Peter Hall (1988, p. 3), os fatos ocorridos atualmente nas cidades do mundo,
sejam esses positivos ou negativos, já poderiam ser encontrados em épocas passadas
nas ideias de determinados sujeitos históricos, “o mais das vezes quase ignorados por
seus contemporâneos, quando não por estes francamente rejeitados”. Assim, verifica-se
que o estudo da trajetória profissional de atores sociais, em especial os conterrâneos,
deve ser preservada, ao ter em vista que os princípios defendidos por tais indivíduos
são de fundamental importância para a reconstrução da história da cidade.
Os princípios modernos de Milson Dantas ainda servem como alicerce para a análise de
problemáticas das urbes contemporâneas, tais como a impermeabilidade do solo, a
absorção excessiva de calor pela pavimentação, sua durabilidade e seu baixo conforto
visual. Dessa maneira, sua proposta de pavimentação contribui de forma essencial para
o desenvolvimento de debates acerca das condições ambientais necessárias a uma
cidade mais sustentável. A análise do percurso profissional de Dantas permite

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enriquecer não somente a compreensão da história da cidade do Natal, como também
das transformações na cobertura viária ocorridas no Brasil e em diversos outros países
ao redor do mundo.

AGRADECIMENTOS
Os autores agradecem ao Grupo de Pesquisa História da Cidade, do Território e do
Urbanismo do Departamento de Arquitetura da UFRN pela disponibilização do acervo,
bem como ao CNPq pelas bolsas concedidas e pelo apoio financeiro à pesquisa.

REFERÊNCIAS

Fontes documentais
AV. PRUDENTE de Moraes. Diário de Natal, Natal, p. 3, 26 set. 1979. Disponível em:
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• 18
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Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/028711_01/2569. Acesso em: 18 fev.
2020.

• 19
TERIA sido nomeado o Dr. Milson Dantas. Diário de Natal, Natal, p. 6, 28 mar. 1962.
Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/028711_01/11281. Acesso em: 18 fev.
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• 20
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• 21
O DEBATE SOBRE O URBANISMO NO I CONGRESSO DE
HABITAÇÃO (SÃO PAULO, 1931): AS REFERÊNCIAS DE
LYSANDRO PEREIRA DA SILVA
THE DEBATE ON URBANISM IN THE I CONGRESSO DE HABITAÇÃO
(SÃO PAULO, 1931): LYSANDRO PEREIRA DA SILVA’S REFERENCES /
EL DEBATE SOBRE EL URBANISMO EN EL I CONGRESSO DE
HABITAÇÃO (SÃO PAULO, 1931): LAS REFERENCIAS DE LYSANDRO
PEREIRA DA SILVA
Práticas, processos e institucionalidades

JORDAN, Raquel Oliveira


Mestre; IFCH - Unicamp
raqjordan@gmail.com

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RESUMO

Este trabalho tem por objetivo investigar as referências da tese de Lysandro


Pereira da Silva no I Congresso de Habitação de 1931 em São Paulo. O
congresso reuniu agentes com distinta atuação no debate urbanístico na
cidade. Organizado pelo Instituto de Engenharia, foi presidido por Alexandre
Albuquerque, professor da Escola Politécnica e autor de um plano de
melhoramentos para São Paulo na década de 1910. Contou com apoio oficial
da prefeitura, administrada na época por Luiz de Anhaia Mello, professor da
Escola Politécnica no primeiro curso a levar em seu título o termo urbanismo.
Ao explorar a composição das referências mobilizadas por Pereira da Silva, em
particular, as discussões do Congrès International de l'Urbanisme et d'Hygiène
Municipale, organizado pela municipalidade de Estrasburgo e pela Société
Française des Urbanistes em 1923, ao contrário de exemplo de uma circulação
de materiais e discursos sobre o urbanismo, espera-se discutir a validade de
percebê-las como parte de um debate e disputa internacional de profissionais
de diferentes instituições e disciplinas pela constituição de um campo comum.

PALAVRAS CHAVE Congresso de Habitação; Urbanismo; São Paulo.

RESUMEN

Este trabajo pretende investigar las referencias de la tesis de Lysandro Pereira


da Silva en el I Congresso de Habitação de 1931 en São Paulo. El congreso
reunió a agentes con distinta actuación en el debate urbanístico de la ciudad.
Organizado por el Instituto de Ingeniería, fue presidido por Alexandre
Albuquerque, profesor de la Escuela Politécnica y autor de un plan de mejoras
de São Paulo en la década de 1910. Contó con el apoyo oficial del
Ayuntamiento, administrado entonces por Luiz de Anhaia Mello, profesor de la
Escuela Politécnica en el primer curso que incluyó en su título el término
urbanismo. Al explorar la composición de las referencias movilizadas por
Pereira da Silva, en particular las discusiones del Congrès International de
l'Urbanisme et d'Hygiène Municipale, organizado por el municipio de
Estrasburgo y la Société Française des Urbanistes en 1923, al contrario que un
ejemplo de circulación de materiales y discursos sobre el urbanismo,
esperamos discutir la validez de percibirlas como parte de un debate y disputa
internacional de profesionales de diferentes instituciones y disciplinas para la
constitución de un campo común.

PALABRAS-CLAVE Congresso de Habitação; Urbanismo; São Paulo.


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• 2
O I CONGRESSO DE HABITAÇÃO: CAMPO PROFISSIONAL E DEBATE SOBRE
O URBANISMO

[...] quando for discutida a these do engenheiro dr. Lysandro Pereira da Silva, apresentarão
sugestões de real utilidade para o urbanismo [Folha da Manhã, 1931, p.10].

Com essa recomendação, Luiz de Anhaia Mello encerrava sua conferência no I Congresso
de Habitação, reunido de 23 a 30 de maio de 1931 nos salões do prédio em que
antigamente funcionava o Fórum Civil, na rua do Tesouro, em esquina com a 15 de
novembro, na época desocupado. A conferência fora proferida no mesmo dia da abertura
do evento ao público, que contou com uma sessão plenária solene e visita à Exposição de
Materiais de Construção anexa ao congresso. Compareceram à solenidade autoridades
públicas envolvidas na gestão e debate de melhoramentos urbanos na cidade. Alberto de
Oliveira Coutinho, Secretário de Estado da Viação e Obras Públicas e ex-presidente do
Instituto de Engenharia, Francisco E. da Fonseca Telles, na época diretor do Instituto de
Engenharia, Sérgio de Paiva Meira Filho, diretor da Faculdade de Medicina, representantes
do interventor federal e do secretário de Segurança Pública.
O congresso fora organizado pela Divisão de Arquitetura do Instituto de Engenharia, e
presidido por Alexandre Albuquerque, ex-diretor dessa divisão e lente da Escola
Politécnica na disciplina de História da Arquitetura, Estética, Estilos. A intervenção de
Anhaia Mello no congresso partia tanto do engenheiro, lente da primeira disciplina que
trazia no título o termo urbanismo na Escola Politécnica de São Paulo, mas também partia
enquanto prefeito da capital do estado.1
De acordo com o relator da Folha da Manhã, que acompanhou diariamente as sessões do
evento, a conferência fora pronunciada à noite, no dia inaugural do congresso e, contou
com o salão completamente cheio, inclusive com parte do público em pé. O apoio oficial
ao evento pela Secretaria de Estado da Viação e da Prefeitura Municipal, bem como a
solenidade com a presença dos seus representantes parece sinalizar a importância das
discussões do congresso para as autoridades públicas. Anhaia Mello reconhecia ainda, em
sua fala na mesa de abertura, uma simpatia do governo de São Paulo pelo congresso e
ratificava apoio às conclusões, em suas palavras, debatidas naquele “meio de technicos
experientes e experimentados” [CONGRESSO, 1931, p.23].
Como argumenta parte da historiografia voltada ao congresso, o tema central dedicou-se
à discussão sobre os assuntos relacionados ao problema da habitação [CARPINTERO,
1990; BONDUKI, 1999; FREITAS, 2005; MARTINS, 2013]. Em linhas gerais, as cinco
pautas priorizadas continham a questão das habitações econômicas e loteamento de
terrenos, das habitações coletivas, a racionalização dos materiais de construção e

1
A disciplina aparece no regulamento em 1926, no 2º. Ano do curso de Engenheiro-Arquiteto, e seu
título era: “Estética, Composição Geral e Urbanismo”.

• 1
padronização, a codificação ou os códigos estaduais e municipais, e o financiamento das
construções [CONGRESSO, 1931, p.15-16].
A partir delas, o congresso contou com teses sobre especificação de materiais de
construção, com estudos sobre tijolos, cimentos e madeiras, uma variedade de trabalhos
sobre habitação econômica com sugestões de tipologia, questões que envolviam a
administração pública e particular, e o seu financiamento. 2 Foram apresentadas ainda
teses sobre a iluminação, o custo da energia elétrica, e questões de legislação como o
dispositivo que regulava direitos dos proprietários na meação de terrenos, o debate sobre
o código municipal de obras e a legislação sobre arruamentos proposto por Lysandro
Pereira da Silva.
Desses trabalhos o congresso aprovou conclusões, analisadas e votadas a partir de
comissões eleitas pela mesa diretora. O que conferia, pode-se pensar, um objetivo prático
dos agentes ali reunidos em ampliar o debate sobre esses assuntos junto aos poderes
públicos.3 Completavam as discussões do evento, quatro conferências, as quais, como a
já mencionada de Luiz de Anhaia Mello, ultrapassaram as pautas da habitação, e pode-
se perguntar se estas não indicariam certa restrição das abordagens tomadas no
congresso, ou um anseio em debater temas mais amplos do que os anteriormente
previstos.4
Além das autoridades reunidas, o congresso contou com número considerável de agentes
com atuação no campo. Os anais registram a presença de 21 autores de tese, 56
expositores e cerca de 246 inscritos entre escritórios técnicos, industriais, engenheiros
civis, arquitetos, médicos, construtores, legisladores e autoridades públicas
[CONGRESSO, 1931, p.17; 377-386]. Entre autores de tese, observa-se composição
variada de integrantes de grupos, escolas e associações profissionais, com predomínio da
Escola Politécnica de São Paulo e do Instituto de Engenharia.
No entanto, o próprio Lysandro Pereira da Silva, engenheiro da Divisão de Urbanismo da
Prefeitura de São Paulo, era diplomado pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Filho de
Clodomiro Pereira da Silva, Lysandro assim como o pai, ingressava na época como
professor substituto na Escola Politécnica de São Paulo na cadeira de Hidráulica urbana,
Higiene dos Edifícios e Saneamento das Cidades. 5 A breve incursão nos autores de teses
e conferências, bem como das solenidades de abertura oferece um indício da legitimidade
que o congresso teria tido, como um trabalho que fosse indicativo das pretensões e da
produção do campo profissional naquele momento.

2
Para uma análise dos trabalhos sobre habitação econômica, consultar Freitas [2005] e Martins [2013].
3
O recente fechamento da Câmara de vereadores com o decreto do Governo provisório n.19.398 de
novembro de 1930, dificultava ainda o debate sobre a legislação.
4
A primeira, de Luiz de Anhaia Mello, tratou dos “Problemas de urbanismo que interessam directamente
a cidade de S. Paulo” [CONGRESSO, 1931. p.23], e João Baptista de Almeida Prado da refrigeração,
Alexandre Albuquerque do código municipal de obras e José Marianno Filho, antigo diretor da Escola de
Belas Artes do Rio de Janeiro, teve o título de “A architectura mesológica” [CONGRESSO, 1931. p.311].
5
Clodomiro Pereira da Silva foi professor substituto de Tecnologia das Profissões Elementares e Estradas,
Pontes e Viadutos [FICHER, 2005. p.47-9]. Entre 1936 e 1937 foi vice-diretor da Escola Politécnica, e seu
bibliotecário no ano anterior.

• 2
Como já apontado, o termo urbanismo esteve ausente das pautas oficiais, mas, a exemplo
da avaliação de Anhaia Mello sobre a tese de Lysandro Pereira, a palavra é mobilizada
em algumas teses e discussões plenárias e permite indagar as concepções de urbanismo
em debate naquele momento. Um desses ocorreu na sessão de encerramento do
congresso, com votos para a realização de um segundo congresso com o título de
Habitação e Urbanismo, ou apenas Urbanismo, pela percepção de que a disciplina incluía
também os temas da habitação e da arquitetura.6 No entanto, a proposta que prevalece
é de um segundo congresso de habitação, e separado deste, um primeiro sobre
urbanismo [CONGRESSO, 1931. p.44].
À percepção de que o assunto não era percebido de modo consensual entre os
congressistas soma-se ao levantamento de um volume considerável de referências sobre
o debate urbanístico do período na tese de Lysandro Pereira da Silva, o que instiga nesse
artigo um exame mais atento de sua presença no congresso. Tais constatações levam
assim, a uma série de indagações: Ao recuperar alguns dos debates que esse autor
buscou evocar, podem ser observados consensos na construção ou na forma de atuação
no campo? E quem eram os autores citados por Lysandro Pereira, compartilhavam de
uma mesma concepção sobre o urbanismo e o campo profissional?
Para tanto, busco explorar a composição dessas referências, suas tipologias, assuntos e
autores, e destacar entre essas, a menção ao Congrès International de l'Urbanisme et
d'Hygiène Municipale de 1923, realizado pela municipalidade de Estrasburgo e pela
Société Française des Urbanistes. Por um lado, a legislação era uma das pautas oficiais
desse congresso. Contou com trabalhos sobre loteamentos e especulação com terrenos.
Por outro, foi um material também referenciado por outros profissionais em periódicos e
publicações de São Paulo, o que faz perguntar se mais do que a menção ou uso enquanto
uma possível corroboração às propostas em pauta, as proposições ali colocadas tenham
sido objeto de debate no campo. As pautas em comum a partir dessa referência, fazem
pensar desse modo na construção de um campo profissional do urbanismo menos isolado
do que poderia parecer um congresso sediado na cidade de São Paulo, e nos transporta
para debates constitutivos desse campo comum.
Espera-se com a exploração desses referenciais poder discutir a relevância de não os
tomar como exemplos de um processo de circulação de materiais e de discursos sobre o
urbanismo em uma via de mão-única [SALGUEIRO, 2020. p.58] ou pela perspectiva de
interações mediadas pelas nacionalidades [NASR; VOLAIT, 2003. p.xxx], mas antes,
interrogá-los enquanto parte de uma trama complexa e em disputa sobre a abrangência
e os modos de atuação nesse campo compartilhado e multidisciplinar [BRESCIANI, 2015;
CALABI, 2015. p.xxiii-xxiv].

6
Ainda que derrotada na sessão plenária, José Marianno Filho afirmava ao final do evento a concordância
de parte dos congressistas [CONGRESSO, 1931. p.345-346].

• 3
REFERÊNCIAS DE UM CAMPO COMPARTILHADO
A tese “Defeza da municipalidade contra o arruamento clandestino para a especulação
em terrenos”, de Lysandro Pereira da Silva, um dos trabalhos mais extensos dos anais,
contabiliza grande número de referências. Os materiais variam em diversos tipos.
Tratam-se de 31 referências, as quais podemos separar entre leis e publicações como
anais de congressos, livros, tratados, relatórios e pareceres, jornais e planos. Além
dessas, constam menções difusas sem referência ao tipo de material citado, como um
aforismo ou recorte de um texto.7 A forma de citação pelo autor também não é
homogênea, em algumas sinaliza a referência completa, em outras indica apenas título,
autor ou número da lei. Ainda, em alguns casos, apenas o tipo de material é indicado,
como a citação a “jornaes desta capital” [CONGRESSO, 1931. p.90] e também, a um
texto de autoria anônima [CONGRESSO, 1931. p.119-122]. Parte desses referenciais têm
exemplares localizados no acervo da Escola Politécnica – espaço de trabalho e consulta
de Lysandro Pereira, e também de parte do meio especializado. 8
Além do acesso facilitado por essa biblioteca, pode-se pensar, ao menos no caso das
referências à legislação de São Paulo, que essas eram parte das ferramentas de trabalho
de um engenheiro municipal. Para além de recuperar os possíveis acessos aos materiais,
proponho explorar a composição desses referenciais, os tipos e autores, bem como o uso
de parte deles por Pereira como justificativa à proposta por ele apresentada sobre o
problema do arruamento particular. O tema também fora explorado no congresso por
Anhaia Mello e constituía segundo este um grave problema enfrentado pela
municipalidade, pela grande extensão da cidade naquele período em terrenos sem as
obras dirigidas pelo poder público como canalização de água e esgoto, iluminação,
arruamento, calçamento. [CONGRESSO, 1931. p.300].9
O voto sobre a tese de Lysandro Pereira, elaborado nas sessões plenárias do congresso,
corroborava a proposta do autor, e resumia dois pontos centrais de seu texto:

O I Congresso da Habitação considera da mais alta importancia a questão do arruamento


particular e solicita para ella a attenção dos legisladores, no sentido de obter solução que
resguarde os interesses do município, fornecendo-lhe o controlle da questão, respeitados
os interesses da collectividade sob o ponto de vista social [CONGRESSO, 1931. p.41].

7
Pereira citou do escritor francês Montesquieu um aforismo sem identificação, que além de curto e pouco
explorado no texto, aparece apenas com menção ao autor, o que pode sugerir que este era lido ou ao
menos conhecido de grande parte do público [CONGRESSO, 1931. p.102].
8
Caramori [2015. p. 94; 151; 225-226] aponta que a biblioteca se forma nas demandas de pesquisa de
seus professores, mais do que das exigências com disciplinas, configurando-se como um acervo
especializado. A partir de 1928 o volume se amplifica e denota um período de grande circulação de
impressos na cidade, sobretudo o de periódicos adquiridos em livrarias. É possível se pensar ainda que
parte dos materiais podem ter sido consultados pelo autor no acervo da Divisão de Urbanismo da Prefeitura
Municipal, da qual Pereira era funcionário, uma vez que a mesma seção anunciava em momento posterior
a constituição de uma biblioteca especializada [ACROPOLE, 1950. p.179].
9
Em 1929, as construções apontavam um “explosivo desenvolvimento”, com 75% das casas com menos
de 25 anos e a população da cidade chegava a um milhão de habitantes [PIRES DO RIO, 1929. p.2], quase
o dobro do número apontado no recenseamento de 1920 [BRASIL, 1926. p. X].

• 4
Em primeiro lugar, a avaliação sobre o controle da abertura de vias por parte da
municipalidade. E, em seguida, a crítica ao problema por ele discutido do arruamento
particular, e para que no assunto fossem resguardados os interesses do município. Para
tanto, o objeto central do texto tratou da análise de dois atos recém lançados pela
Prefeitura sobre restrições à construção e condições para regulamentar a abertura de
ruas por particulares.10
Segundo o autor, este era um tema corrente em congressos da época. “O mal é
ubiquitário”, disse Lysandro, e era objeto de comentários, críticas em relação a leis, e de
sugestões diversas com o objetivo de “apparelhar as municipalidades de meios para
controlar efficazmente a abertura de ruas” [CONGRESSO, 1931. p. 88]. Em diversos
congressos internacionais da época a legislação urbanística figura entre as pautas, ainda
que não conste explicitamente no título do evento. Entre esses, no período próximo ao
Congresso de Habitação de 1931, o III Congresso Pan-Americano de Arquitetos de 1927
e o I Congreso Argentino de Urbanismo de 1935, contaram respectivamente com o tema
da “Renovación de las leyes y reglamentos en concordância con los adelantos técnicos y
las exigências de la arquitectura actual” [III CONGRESSO, 1927. p.12] e “El problema
legal (...) prevision contra la especulacion” [PRIMER, 1936. t.1, p.31].11
Após a ponderação sobre os materiais levantados, Pereira concluía pela necessidade de
um maior controle do município no crescimento da cidade com a proibição formal de
construir ou efetivar transações em terrenos arruados sem permissão, bem como a
abertura de novas vias condicionadas a um plano geral limitado da cidade, e que tivesse
sua área aumentada “com o tempo”, completava, “segundo as necessidades”
[CONGRESSO, 1931. p.122]. A abertura de vias não estaria assim, segundo Lysandro,
proibida ao particular, mas entendia que o arruamento de terrenos era obra de interesse
público e de atribuição exclusiva da municipalidade. Ao particular, poderiam ser
concedidas licenças especiais, desde que observadas as condições do município e do plano
geral.
Não surpreende, assim, que a tese contenha um volume não pequeno de menções a leis.
Dez referências remetem diretamente a elas, e outras cinco tratam de pareceres ou
críticas a documentos legais.12 Com exceção de um parecer contrário, os referenciais

10
Tratam-se dos atos n.25, de dezembro de 1930 e n.129, de março de 1931. O primeiro instituía
condições para a construção e a obrigatoriedade do alvará. O segundo, revogava o anterior e estabelecia
condições para construção em ruas particulares e terrenos não arruados.
11
O tema foi objeto de congressos em períodos anteriores no Town Planning Conference realizado em
Londres em 1910, no I Congresso Internacional e Exposição Comparada de Cidades de Gand em 1913 e
no Congrès International de l'Urbanisme et d'Hygiène Municipale em Estrasburgo em 1923. Embora a
legislação não constasse como uma pauta oficial, o Congresso de Engenharia e Indústria de 1900 no Rio
de Janeiro contou com um trabalho sobre arruamentos (REVISTA, 1900. p.111-131.) e o III CIAM de 1930
teve um trabalho sobre o parcelamento do solo (LE CORBUSIER, 1973. p.233-243).
12
Sete das legislações foram promulgadas na cidade de São Paulo e remetiam
à abertura de ruas e construções. Trataram-se do o Código de Posturas de 1886, a Lei n. 862 de 16 de
novembro de 1905, Lei n. 1.193 de 9 de março de 1909, Lei n. 1.666 de 26 de março de 1913, Lei n.
2.611 de 20 de junho de 1923, e dos atos n.25, de 23 de dezembro de 1930 e n.129, de 21 de março de
1931. Outras três tratavam de planejamento e desenvolvimento urbano, como a California Planning Act
de 1927, o Standard City Planning Enabling Act de 1928, e a lei do plano de desenvolvimento de Hamburgo
de 31 de outubro de 1923. Entre os pareceres, figuram críticas e corroborações à competência da

• 5
sobre a legislação parecem corroborar a proposição do autor sobre o controle do
crescimento urbano pelos poderes públicos. Ademais, quando se observam os materiais
citados em relação aos demais trabalhos publicados em livros e revistas na cidade de São
Paulo, pode-se notar que algumas dessas leis e publicações haviam sido também objeto
de discussão nesses espaços. O que leva a pensar, o assunto e os referenciais mobilizados
eram parte do debate sobre o urbanismo na época.13
O uso das leis como fundamento à defesa do controle municipal no arruamento era
corroborado ainda por parte das publicações citadas por Lysandro, e ia de encontro a uma
concepção do urbanismo enquanto um novo domínio administrativo sobre a iniciativa
particular [CONGRESSO, 1931. p.92]. A formulação era de Maurice Polti, autor do Traité
Théorique et Pratique sur les Lotissements de 1926.
A partir dessa publicação, Pereira discutia as vantagens e problemas do arruamento por
particulares e a “necessidade de uma orientação determinada por um plano de conjunto”
no crescimento urbano [CONGRESSO, 1931. p.93]. Entre os problemas, destacava a
especulação com terrenos ao promover um crescimento exagerado da cidade sem atingir
número suficiente de proprietários interessados. A referência ao texto de Maurice Polti
abrangia ainda definições de urbanismo, e ia além da corroboração pretendida por
Lysandro à proposta de um maior controle municipal na abertura de vias. Como um novo
domínio da administração pública, o termo era novo segundo esse autor. Ele indicava,
prossegue a citação, tudo que diz respeito ao plano de conjunto, desenvolvimento,
embelezamento e extensão das cidades. De outro autor, Robert de Souza, Polti retirava
os objetivos desse novo campo:

[...] appliquer, à la création et au développement des villes, les príncipes qui commandent
leur avenir, par l’étude rationnelle des rapports entre la géographie et l’histoire
économiques, qui déterminent leur emplacement, et les améliorations sociales, techniques,
hygiéniques, esthétiques, par conséquent constructives, que cet emplacement rend
possibles, et qui doivent assurer sa fortune [POLTI, 1926. Apud. CONGRESSO, 1931.
p.92].14

Nessa concepção, o loteamento era definido como um dos quadros principais do


urbanismo, pois se relacionava à extensão ou mesmo à criação de novas cidades

municipalidade em regular a abertura de vias: de Vicente Ráo sobre o ato municipal n.129 [CONGRESSO,
1931. p.117-118], de um “técnico anônimo” em crítica à mesma legislação [CONGRESSO, 1931. p.119-
122], sobre expropriações de João Octaviano de Lima Pereira, Procurador Judicial da Prefeitura de São
Paulo [CONGRESSO, 1931. p.98-100], a publicação de Paulo de Lacerda de 1919 sobre o Código Civil
Brasileiro [CONGRESSO, 1931. p.88] e um abaixo assinado direcionado ao Desembargador, Ouvidor Geral,
e Corregedor da Câmara de fevereiro de 1808 [CONGRESSO, 1931. p.94].
13
Entre as leis, a “California Planning Act” de 1927 foi citada por Luiz de Anhaia Mello [1929a], o “Standard
City Planning Enabling Act” foi citado por Mello em duas ocasiões [1929a; 1929b], o Ato n. 129 da
Prefeitura Municipal de São Paulo de 1931, também foi mencionado por Mello [1931], assim como as leis
municipais 1.666 de 1913 [1920; 1927] e 2.611 de 1923 [1929]. O código de posturas municipais de
1886 foi também debatido por Victor Freire [1914; 1916; 1918 e Alexandre Albuquerque [1931]. Este
último, também fez menção à lei municipal 1.193 de 1909 [1910].
14
Tradução da autora: “[...] aplicar, à criação e desenvolvimento das cidades, os princípios que regem o
seu futuro, pelo estudo racional da relação entre a geografia e a história econômica que determinam a
sua localização, e os melhoramentos sociais, técnicos, higiênicos, estéticos e, consequentemente,
construtivos, que esta localização torna possível, e que devem assegurar a sua fortuna”.

• 6
[CONGRESSO, 1931. p.91-92]. A casa individual, completava o trecho de Polti, não
deveria orientar a rua, mas era o contrário, a rua deveria indicar as orientações para a
construção. Embora o plano – e a legislação – fossem percebidos nessa discussão
provocada por Lysandro como centrais na concepção de urbanismo, também pela
preferência na ação das autoridades municipais, o trecho sinaliza a presença de outras
disciplinas e campos de ação, como a geografia e história econômica, e os aspectos
higiênicos, sociais e estéticos. Mas, quem eram afinal os especialistas evocados por
Lysandro Pereira? Michel Polti era advogado, atuante na corte de apelação de Paris, além
de autor de outras publicações sobre o tema de loteamentos, entre essas
“L’amenagement des lotissements défectueux” de 1929, com prefácio de Gustave
Malette, engenheiro e presidente da Société des Urbanistes diplômés, sociedade vinculada
ao Instituto de Urbanismo de Paris.
Das demais publicações parte das referências da tese, é possível localizar entre a
formação dos autores as áreas da engenharia, arquitetura, urbanismo, direito, economia,
bem como do serviço público. Assim como boa parte das referências eram constituídas
pela legislação, entre as publicações predominam autores da área legal. No entanto, a
atuação desses autores por vezes em mais de uma atividade dificulta a percepção de seu
pertencimento a uma ou outra área do conhecimento. É o caso, por exemplo, de René
Danger, engenheiro-agrimensor, mas que também se apresentava como urbanista. Deste
autor, Lysandro cita o livro “La technique des lotissements” de 1930 [CONGRESSO, 1931.
p.94]. Outros autores indicam uma mesma percepção, de formações ou atuações em
mais de uma área, como Rudolf Eberstad, economista e urbanista, professor da
Universidade de Berlim, François Latour, era economista, advogado e conselheiro
municipal de Paris, Herbert Hoover, ex-secretário e engenheiro norte-americano, na
época Presidente dos Estados Unidos para o mandato de 1929 a 1933, e Frederic Howe,
diplomado em filosofia, era advogado e reconhecido como reformador social.
Mesmo entre autores que poderiam ser compreendidos enquanto engenheiros, arquitetos,
ou advogados, a simplificação apenas à formação pouco acrescenta sobre as dinâmicas
constitutivas do campo. João Octaviano de Lima Pereira, Paulo Maria de Lacerda e Vicente
Ráo eram advogados diplomados pela Faculdade de Direito, este último, também era
professor dessa escola, diplomado em filosofia e integrou nos anos seguintes o Ministério
da Justiça e Negócios Interiores. Entre engenheiros e arquitetos, Charles Henry Cheney
era arquiteto, consultor de planejamento em diversas cidades da Califórnia, Albert
Lilienberg era engenheiro-chefe da cidade de Gotemburgo na Suécia, e Prestes Maia,
engenheiro-arquiteto e professor da Escola Politécnica de São Paulo, havia sido chefe da
Secretaria de Viação e Obras Públicas na gestão do prefeito Pires do Rio (1926-1930), e
em anos posteriores ocupou o cargo de prefeito de São Paulo. Já William Hale Thompson
era na época prefeito de Chicago, Henri Marie Emile de Béco, governador de Brabante na
Bélgica (1906 a 1928), Henry R. Aldridge era secretário da National Housing and Town

• 7
Planning Council em Londres e John J. Clarke, era autor de livros e periódicos sobre a
legislação da habitação.15
Para além da formação, esses agentes eram autores, e atuantes no campo político em
cargos eletivos ou administrativos. Atuações, por sua, vez que apontam para um campo
multidisciplinar, e em disputa da abrangência dos assuntos atribuídos ao campo, mas
também sobre a autoridade da sua prática. O título e os votos da tese de Lysandro Pereira
apontam pistas para essa disputa, seja na necessidade de uma “Defeza da
municipalidade”, seja na percepção da negociação com proprietários. Ao passo que o
volume de referências na tese deixa entrever as possíveis dificuldades enfrentadas pela
administração municipal nessas tratativas, ou em convencer sobre a questão.16
Outra dinâmica importante de ser observada é o compartilhamento desses referenciais
em debates do campo profissional em São Paulo. Assim como as leis, em artigos de
revistas técnicas do período pode-se localizar menções às publicações mobilizadas por
Pereira em outros debates. Quatro autores foram mobilizados na época a partir de outros
trabalhos. São o caso de citações de Anhaia Mello a René Danger [1952], Frederic Howe
[1929] e João Octaviano de Lima Pereira [1929]. Bem como o secretário de estado norte-
americano Hebert Hoover, citado por Mello [1940], pelo na época antigo diretor das obras
municipais, Victor Freire [1925; 1936], e outros dois congressistas, Pereira e Ludolf
[CONGRESSO, 1931. p.216; 204]. Já as publicações do Estudo de um plano de Avenidas
para a Cidade de São Paulo de Francisco Prestes Maia, foi mencionado por Victor Freire
[1942], e os anais do Congrès International de l'Urbanisme et d'Hygiène Municipale de
1923 foram utilizados como referências na época em textos de Anhaia Mello [1927; 1933]
e Prestes Maia [1930]. Quais as pautas em comum a esse congresso e quais dos seus
debates foram compartilhados em São Paulo?

ONDE ESTÁ O URBANISMO?


Com o título de “Où en est l’urbanisme en France et à l’Etranger?” na sua publicação
oficial, esse congresso lançava como questão condutora algo também presente nas
disputas formativas do campo, ao questionar onde está o urbanismo, ou pode-se pensar,
onde as apreensões daquele momento buscavam situá-lo? A publicação resulta dos
trabalhos do Congrès International d’Urbanisme et d’Hygiène Municipale. Realizado em
Estrasburgo de 15 a 18 de julho, organizado pela Société Française des Urbanistes com

15
Desses autores, são citados respectivamente: “Handbuch des Wohnungswesens” de 1920, “Standard
City Planning Enabling Act”, elaborado pelo Departamento de Comércio em 1928, “The Modern City and
its Problems” de 1915, “Parecer sobre acção demolitória intentada contra infrator das leis 2611 de 1923
e 2332 de 1920”, “Codigo Civil Brasileiro” de 1919, “California Planning Act” de 1927, Plano de Avenidas
para a Cidade de São Paulo de 1930, “Chicago - Eight Years of Progress” da Chicago Zooning Commission,
de 1923, “Rapporteur sur les travaux de la Comission des Lotissements de l"union des Villes et Comunes
belges”, de 1919, “The case for Town Planning” de 1915, “The Housing Problem” de 1920.
16
O parecer de Vicente Ráo [CONGRESSO, 1931. p.119], era taxativo em condenar a regulamentação
proposta no ato n.129 de março de 1931, e recomendava o protesto em juízo contra as exigências do
município nas construções em ruas particulares.

• 8
a colaboração de 42 institutos de diversos países. Além da França, estiveram no apoio à
organização instituições da Sérvia, antiga Tchecoslováquia, Bélgica, Romênia, Polônia,
Suíça, Grécia, Itália, Inglaterra, Barcelona, Estados Unidos, Canadá e Argentina. Também
de organismos internacionais como a Union Internationale des Villes, a Liga das Nações
e a Société Franco Sud-américaine de Travaux Publics.17 Jacques Peirotes, tipógrafo,
socialista e prefeito da cidade, atuou como presidente do congresso.
O evento contou com quatro temas oficiais: Legislação, Planos de Cidade, Higiene Urbana
e Habitação.18 Esse último, uma pauta em comum ao I Congresso de Habitação de 1931
em São Paulo, assim como se pode observar sobre a legislação. Os anais, distribuídos
antes do evento para subsidiar os debates, funcionou como um material para propaganda
do urbanismo e da SFU, pois, contou com uma breve descrição dos objetivos dessa
sociedade e um relatório sobre os trabalhos por Adolphe Dervaux, presidente da École
Supérieure d’Art Public, traduzido no espanhol.
Nele, o autor questionava ser o urbanismo um assunto bem estabelecido. Em seu relato
enquanto representante da Sociedade Francesa de Urbanistas, há um esforço em
justificar que foram mantidas as diferentes terminologias dos autores, e que não se
buscou propor hierarquias entre trabalhos e assuntos.19 No entanto, os votos finais
excederam as preocupações apontadas no relatório, bem como os temas iniciais do
congresso.20 Dois deles, sobre a organização de eventos internacionais, denotam
preocupações com a abrangência de temas ao urbanismo, e disputas sobre sua dimensão
internacional. O primeiro previa a inclusão do urbanismo como pauta autônoma nas
exposições internacionais, e indicava como temas prioritários o planejamento,
embelezamento e extensão de cidades, os bairros de habitação e as cidades-jardim. Já o
segundo, indicava a preferência do uso da língua francesa nos congressos internacionais

17
Outros membros da organização, pela representação em sociedades da época reforçam a busca do
congresso em reunir grande número de instituições da classe profissional. Constam além da Société
Française des Urbanistes, o Conselho da cidade de New York, a International Garden Cities and Town
Planning Associaction, a Société d’Hygiène de France, a École Supérieure d’Art Public. Foram parte das
instituições apoiadoras, entidades ligadas a classe dos engenheiros, como a Société des Ingénieurs Civils,
médicos como a Academie de Médecine e o Institute Pasteur, técnicos e órgãos municipais, como a
Association Générale des Hygiénistes et Techniciesn Municipaux e a Union Internationale des Villes, dos
arquitetos como a Société Centrale des Architectes e o American Institute of Architects, dos arquitetos-
urbanistas como o Musée Social, agrimensores, Union des Géomètres-Experts Français, geógrafos, com o
Institut d’Histoire et de Géographie Urbaines. O material do congresso lista 58 trabalhos de autores
representantes das diversas classes profissionais, como George Bechmann, presidente da Union Urbaniste
que irá atuar na consultoria a planos de municípios franceses após a lei Cornudet de 1919 que instituía a
obrigatoriedade de planos em cidades com mais de 10 mil habitantes, Marcel Auburtin, Presidente da SFU,
o engenheiro Emile Cacheux, o arquiteto Le Corbusier, o engenheiro-sanitário Edouard Imbeaux, o
arquiteto e urbanista Henri Prost entre outros [SOCIÉTÉ, 1923. p.3-5]. Para uma análise da organização
do congresso, consultar Jonas [1996. p.234-243].
18
Além das discussões dos trabalhos, estava prevista a visitação a Exposition d’Hygiène de Strasbourg,
as obras municipais da cidade e construções de cidade-jardim [LINT, 1923. p.17-18].
19
Segundo Dervaux: “Nous n’avons pas fait la critique de ces rapports, nous n’avons pas établi de
palmarès (...). Mais il s’agissait seulement ici d’exposer tout sec la matière oferte sans ordre préconçu et
sans hiérarchie [SOCIÉTÉ, 1923. p.7-19].
20
Além dos temas oficiais, os votos do congresso versaram sobre regulamentos de vias, crise da habitação,
higiene, autoridade executiva, ensino e exposições e congressos.

• 9
de urbanismo, apesar de o próprio material do evento contar com trabalhos no espanhol
[SOCIÉTÉ, 1923. p.498].21
Três autores em São Paulo utilizaram o material do congresso como referência em seus
textos. Lysandro Pereira da Silva aborda dois trabalhos da seção de legislação: de
François Latour, o artigo “Modifications susceptibles de donner aux collectivités publiques
des armes contre la spéculation foncière” [CONGRESSO, 1931. p.126.], e de Albert
Lilienberg, “Législation urbaine en Suède” [CONGRESSO, 1931. p.103-4]. Em duas
ocasiões, Luiz de Anhaia Mello utiliza o trabalho “L’Urbanisme dans ses rapports avec la
Geographie humaine”, de Scrive-Loyer da mesma seção [MELLO, 1927. p.343-344; 1933.
p.210], e na seção de Planos de cidade, Francisco Prestes Maia faz referência ao texto de
Alfred Agache “Comment on fait um plan de ville. Les étapes d’une étude urbaniste conçue
suivant l’esprit et la letrre de la loi du 14 mars 1919” [MAIA, 1930. p.2].
O primeiro uso do material do congresso por Pereira evoca o trabalho de Albert Lilienberg
na busca de estabelecer, segundo o autor, um histórico do “aperfeiçoamento crescente”
da legislação sobre arruamentos e da eficiência dos seus resultados “segundo a crítica
dos autores mais conhecidos” [CONGRESSO, 1931. p.101]. O exemplo retirado dessa
referência visava demonstrar que uma legislação moderna deveria prever o arruamento
urbano segundo um plano geral. Embora não comentada de modo extenso, a referência
corrobora em parte sua avaliação sobre o controle da abertura de vias pelo poder público,
na percepção de Lilienberg pela necessidade de uma legislação complementar às leis do
plano geral da Suécia de 1874 e 1907, com vistas a regulamentar o uso do solo e, desse
modo, mediar as constantes negociações com proprietários [SOCIÉTÉ, 1923. p.127].22
A segunda referência de Pereira aparece na sessão de conclusões da tese, em um
pequeno trecho e sem que o autor acolhesse integralmente a proposta.23 Pereira retirava
de François Latour a avaliação de que a ameaça de uma expropriação, a exemplo do
arruamento previsto em um plano geral, por vezes constituía uma valorização do imóvel,
e em alguns casos, o aviso da expropriação era um dos atrativos para a venda [SOCIÉTÉ,
1923. p.75; CONGRESSO, 1931. p.126]. Com o argumento, e a despeito da aproximação
a ambos os autores, Pereira concluía por uma proposição distinta da apresentada por
esses no congresso de 1923, ao recomendar por esforços para a promulgação de uma
taxa com vistas a custear a abertura de vias, essas por sua vez, reforçada enquanto uma
atribuição exclusiva da municipalidade [CONGRESSO, 1931. p.126-127].24

21
Além do relatório de Dervaux, o trabalho de Nicolas Lozano, Professor de Higiene da Escola Normal de
Buenos Aires, foi publicado em espanhol.
22
Para tal, Albert Lilienberg argumentava ao congresso a necessidade da regulamentação da construção,
das áreas destinadas ao uso industrial ou residencial, os espaços livres, densidade urbana entre outros.
Os regulamentos incluíam a altura das construções, sua característica, interdição, e que esta deveria ser
aprovada junto às leis sobre planos gerais.
23
Latour argumentava pela criação de um dispositivo que garantisse o direito de preferência da
municipalidade na compra de propriedades expropriadas, com vistas a evitar desse modo as estratégias
de especulação [SOCIÉTÉ, 1923. p.77].
24
Pereira retira a ideia da taxa de melhoria de Prestes Maia no Plano de Avenidas (1930, p.26). A proposta
foi apresentada em outros termos por Victor Freire (1911, p.143) e Anhaia Mello (1927, p.352; 1928,
p.186-190).

• 10
Para além da legislação, o material do congresso foi utilizado por outros dois autores no
debate sobre o urbanismo e a atuação profissional. Anhaia Mello, em duas ocasiões, retira
de Jules Scrive-Loyer, vice-presidente da Société de Géographie de Lille na França,
definições do urbanismo enquanto “arte scientifica do arranjo e disposição das
aglomerações urbanas” e do urbanista como um “urbanicultor”, por sua “intervenção
reflectida, inteligente, ordenadora da vontade humana no jogo das leis naturais de
existência e crescimento das aglomerações urbanas” [MELLO, 1927. p.343-344]. Em seu
texto no congresso de 1923, Scrive-Loyer era mais propositivo na ligação do urbanismo,
ao seu ver uma prática antiga, com os procedimentos e objetivos dos campos da geografia
humana e da sociologia. A engenharia e arquitetura eram percebidas em sua avaliação
como auxiliares ao urbanista, por oferecerem o instrumental às questões técnicas e
estéticas. A tese, por fim, argumentava ser o urbanismo uma das aplicações práticas da
geografia humana e o “verdadeiro urbanista” ser um “urbanicultor”, termo utilizado por
Anhaia Mello, ao transformar com as “leis da geografia humana”, a “flora urbana
selvagem” em uma flora cultivada e “de rendimento social superior” [SOCIÉTÉ. 1923.
p.109-119; MELLO, 1927. p.343-344].
Nessa concepção, de acordo com Mello, o urbanismo não podia ser resumido ao traçar
das ruas e perspectivas. Ele buscava de modo mais amplo adaptar a cidade às
necessidades, “aspirações e ideaes do typo social a que ella pertence”. Embora não
mencionasse as conclusões de Scrive-Loyer a respeito da engenharia e arquitetura, Mello
compartilhava desse autor a apreensão do urbanismo como um problema “geográfico,
antropogeográfico e sociológico” [MELLO, 1933. p.210].
Em apreensão diversa, centrada em instrumentos e perspectivas técnicas, Prestes Maia
buscava argumentar a partir de Alfred Agache, o valor do estudo do plano mesmo sem a
previsão de execução. Segundo o trecho recortado era parte da prática do urbanista a
realização de planos preliminares a partir da documentação disponível sobre o lugar. O
texto de Agache, no entanto, incorporava a atuação de diferentes profissionais. Visava
argumentar aos conselheiros municipais que o plano previsto na lei Cornudet de 14 de
março de 1919, era abrangente, e seu objetivo era traçar o desenvolvimento e extensão
da cidade à medida do seu crescimento. Para tal, exigia o trabalho do especialista, um
urbanista, na lei designado como “homme de l’art” [LOI, 1919. p.2726], em atuação
conjunta ao: engenheiro, responsável por canalizações, transporte e assuntos técnicos,
ao topógrafo-aviador, o qual realizava imagens do terreno com a técnica aperfeiçoada da
época, e ao agrimensor, treinado na leitura e correção dessas imagens em relação ao
território. Ao urbanista cabia o importante papel de dirigir esses trabalhos e elaborar os
planos [SOCIÉTÉ, 1923. p.145].
Por um lado, tais referências compunham o debate promovido pelos autores sobre a
legislação, o urbanismo e a atuação profissional. Por outro, ao compor parte do
levantamento dos autores sugerem seu uso na relação com um debate mais amplo, e
indicam, desse modo, um procedimento frequente nos trabalhos da época. Como
apontado por Victor Freire, tratava-se de colocar a “própria experiência em commum” e
discutir as “respectivas soluções sob o prisma de comparações detalhadas” [FREIRE,

• 11
1918. p. 345-346], o que aponta, por sua vez, para uma necessária dimensão
internacional.25 A recorrência, como discute Stella Bresciani, indica um procedimento
comum da citação à experiência de demais agentes do campo. A “necessária participação
de representantes de várias nações” nesse procedimento, segundo a autora, atesta a sua
configuração enquanto campo internacional [BRESCIANI, 2020. p.276]. Ou como
analisam Payre e Saunier [2000. p.219], constituíam um movimento internacional na
resolução em comum dos problemas urbanos e, no momento fundador da Union
Internationale des Villes em 1913, uma cooperação intercomunitária das entidades ali
reunidas como uma causa, a do entendimento pacífico entre os povos.
Como discute SCHROEDER-GUDEHUS [2022] a exaltação da cooperação científica em
anais dos congressos internacionais em muitos casos mascarou as divergências e os
fracassos em compor acordos em comum. De modo que, não se pode tomar tal dimensão
internacional como isenta de conflitos. No entanto, o próprio Congresso de Habitação de
1931 expressava o alcance do debate para além de São Paulo, na recordação de
Alexandre Albuquerque sobre a proposta de um evento ter sido encorajada pelo III
Congresso Pan-Americano de Arquitetos de 1927 em Buenos Aires [CONGRESSO, 1931.
p.19].26 Procedimento semelhante, pode-se pensar, do Congrès International
d’Urbanisme et d’Hygiène Municipale de 1923 ao reunir como apoio oficial representantes
de diferentes nacionalidades e classes profissionais. A recorrência do material desse
congresso em três autores do campo profissional em São Paulo indica ainda um debate.
De um domínio administrativo em Lysandro, à participação de diferentes profissionais e
áreas disciplinares nos trabalhos de Scrive-Loyer e Agache, o debate colocado a partir
das referências ao congresso de 1923 ao abordar diferentes apreensões sobre o campo
profissional e, ao contrário de uma configuração estável, aponta disputas na elaboração
de regulamentos e na atuação nos planos. O material do congresso de 1923 pouco
esclarece sobre essas disputas, e apenas menciona, no relatório de Dervaux, a busca de
não estabelecer hierarquias, bem como em vista das diferentes apreensões e
terminologias utilizadas, coloca em questão a existência de uma configuração do campo
compartilhada pelos congressistas. Ao menos do que se pode apreender das discussões
no congresso de habitação de 1931, tal configuração também não era consensual.
A despeito da busca de construir consensos, expresso nos discursos solenes e nos relatos
dos agentes sobre os congressos, os trabalhos apontavam maiores divergências do que
seus organizadores pareciam esperar. A recorrência da referência entre os autores em

25
O trecho fora retirado por Victor Freire do convite para o I Congresso Internacional e Exposição
Comparada de Cidades realizado em Gent na Bélgica entre 27 de julho e 1 de outubro de 1913.: “(...)
tous ceux qui s’occupent de l’amélioration des villes, de leurs plans, de leurs services communaux, de la
vie communale, ont um intérêt croissant à mettre leur experiènce em commun et à discuter les slutions à
la lumière de comparaisons étendues”. In: Premier Congrès International et Exposition Comparèe des
Villes. Bruxelles, Union Internationale des Villes, s/d.p.8.
26
Figura entre os votos desse congresso no tema da habitação econômica, a organização de exposições e
conferências internacionais [III CONGRESSO, 1927. p.9-15].

• 12
São Paulo, ao indicar um debate parece sugerir que a disputa pela abrangência do campo
seja em assuntos seja em grupos profissionais era, no entanto, compartilhada.

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• 14
<https://www.acfas.ca/publications/magazine/2022/04/emergence-congres-
scientifiques-internationaux-au-19e-siecle>.

• 15
O LARGO DOS CONTOS E A PAISAGEM DE OURO PRETO
LARGO DOS CONTOS AND THE OURO PRETO LANDSCAPE
Práticas, processos e institucionalidades

COSTA, Raíssa de Keller e


Mestre em Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável (PACPS|UFMG), Doutoranda;
Universidade Federal de Minas Gerais
raissakc@yahoo.com.br
LOPES, Myriam Bahia
Doutora em Sociétés occidentales: temps, espace et civilisations (Université Paris VII),
Docente; Universidade Federal de Minas Gerais
bahialopesmyriam@mac.com

• 1
RESUMO

Este estudo se refere ao Largo dos Contos na cidade de Ouro Preto, em Minas
Gerais, no Brasil. A partir da noção de paisagem discute as dinâmicas do Largo
e suas relações com a cidade ao longo de sua história. Apresenta os elementos
desse espaço que abarca a Casa e o Chafariz dos Contos, a edificação do
cinema e do Ministério Público de MG e faz limite com o Grande Hotel. Retoma
aspectos do passado para compor uma leitura do presente que acolhe a sua
transmissão, apresentando seus valores, vivências, conflitos e dinâmicas. Para
isso utilizamos de pesquisa bibliográfica e documental. Com apontamentos
sobre a definição de “largo” e a importância da circulação de diferentes pessoas
e culturas para a manutenção de uma cidade viva o texto tem por objetivo
mostrar as permanências e as transformações do Largo em sua relação com a
cidade, seus usos e dimensões. Esperamos contribuir com uma discussão
multidisciplinar sobre os espaços urbanos e a cidade.

PALAVRAS CHAVE Largo dos Contos; Espaço urbano; Ouro Preto; Paisagem;
História.

ABSTRACT

This study refers to the Largo dos Contos in the city of Ouro Preto, Minas
Gerais, Brazil. Based on the notion of landscape, it discusses the dynamics of
the Largo and its relations with the city throughout its history. It presents the
elements of this space, which includes the Casa and the Chafariz dos Contos,
the cinema building and the Minas Gerais Public Prosecutor's Office, and
borders the Grande Hotel. It takes up aspects of the past to compose a reading
of the present that welcomes its transmission, presenting its values,
experiences, conflicts, and dynamics. For this we used bibliographic and
documental research. With notes on the definition of square and the
importance of the circulation of different people and cultures for the
maintenance of a living city, it aims to show the permanences and
transformations of the Largo in its relationship with the city, its uses and
dimensions. We hope to contribute to a multidisciplinary discussion about
urban spaces and the city.

KEY-WORDS Largo dos Contos; Urban area; Ouro Preto; Landscape; History.

• 2
INTRODUÇÃO
Em Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil, o Largo dos Contos é um espaço de circulação para
moradores e turistas. Também conhecido como Largo do Cinema e, oficialmente, como
Praça Reinaldo Alves de Brito está relacionado às dinâmicas do seu entorno com
características comerciais. No século XIX, contou com inúmeras atividades comerciais e
instituições importantes para a cidade, como é o caso da antiga Casa dos Contos (1793-
97) que sediou a Secretaria da Fazenda de MG (1840-44) e os Correios (1897), dentre
outros usos. Além disso, o Largo foi lugar importante para as atividades cotidianas como
a busca pela água no Chafariz dos Contos (1750-1900).

Figura 1: Largo dos Contos. Fonte: acervo pessoal, 2022.


O surgimento dos largos em Ouro Preto nos remete à ocupação dos espaços públicos da
cidade desde o início da exploração do ouro. A medida que as pessoas se fixavam no
território também faziam o traçado e o desenvolvimento urbano com base nas ocupações
da América Portuguesa1. A peculiaridade aqui é que também o relevo foi levado em
consideração, característica bem distinta das cidades europeias. Ao mesmo tempo a
ocupação urbana refletiu uma essência barroca “exaltando o drama da religiosidade e das
belezas naturais” (ARAÚJO, 2018, p.287).

1
Sobre a cidade e o traçado urbano consultar: BAETA, Rodrigo. Ouro Preto: cidade barroca. In: Cadernos
PPGAU/UFBA. V. 01, n. 01, 2003, p.47-66. Disponível em
https://periodicos.ufba.br/index.php/ppgau/article/view/1541/975. Acesso em 28 de julho de 2022;
NATAL, Caion Meneguello. Ouro Preto: a construção de uma cidade histórica, 1891-1933. Dissertação
[mestrado] Universidade Federal de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas, 2007.

• 3
No presente, Ouro Preto não conta com mobiliário urbano que acolhe a parada e o
descanso dos pedestres tal como foi preconizado desde o urbanismo oitocentista. A
distribuição do espaço com passeios estreitos obedece a outra lógica. As árvores e os
bancos, elementos que possibilitam a pausa no percurso, inexistem. As escadas em frente
ao Ministério Público e ao cinema são utilizadas para pequenas pausas, as placas de
sinalização servem de encosto para os pedestres e para rápidas trocas de informação
entre os passantes; da mesma forma que as esquinas do Largo e a frente do Chafariz são
utilizados para a venda de flores, frutas e legumes de moradores. É preciso destacar
ainda que no século XX entrou em cena a patrimonialização, os reconhecimentos oficiais
da cidade patrimônio, a necessidade de se preservar e sua relação com a atividade
turística, ampliando os usos e as dinâmicas de espaços como esse.
Essas dinâmicas fazem parte da paisagem de Ouro Preto. A paisagem é compreendida
aqui a partir da relação complexa entre um lugar, um olhar e uma imagem (COLLOT,
2013). Nesse sentido, o olhar pressupõe a interação entre esses elementos indissociáveis
entre si quando se trata da paisagem. A paisagem é considerada “um fenômeno, que não
é nem uma pura representação, nem uma simples presença, mas o produto do encontro
entre o mundo e um ponto de vista” (COLLOT, 2013, p. 18). Assim, o objetivo deste
estudo é favorecer novas leituras do Largo dos Contos a partir de sua história com foco
nas dinâmicas e em seus elementos entre 1890 e 2022. Esse recorte temporal se justifica
pelo uso comercial do Largo e seu entorno, e, ainda, devido à construção de edificações
como a do cinema, a do Grande Hotel, a do Ministério Público de MG que marcam esse
período de transformações na cidade.
Esperamos contribuir para as discussões sobre o Largo dos Contos com perspectivas
sensíveis que contemplem suas práticas, usos e transformações que estão relacionadas
à história de Ouro Preto. Para isso utilizamos de pesquisa bibliográfica e documental,
resultados iniciais de doutorado em andamento.

O LARGO DOS CONTOS


O Largo dos Contos em Ouro Preto faz parte de uma via plana, o que é uma característica
incomum no perímetro tombado da cidade. Essa característica da via favorece o ritmo
acelerado de pessoas e automóveis. A via é utilizada frequentemente como passagem por
moradores, estudantes, comerciantes, turistas e procissões. Dificilmente é possível
observar o Largo sem a presença de carros estacionados, e, em eventos fica encoberto
por palanques, barracas e guarda-sol.
Para trabalharmos as dinâmicas do Largo dos Contos, destacaremos alguns eixos: os
trajetos e as relações com os fluxos da cidade; os nós e as tramas urbanas com destaque
para a Casa dos Contos. Além disso, destacaremos as características de alguns elementos
do Largo, como o Chafariz, as edificações do cinema, do Ministério Público e do Grande
Hotel.

• 4
Com relação aos trajetos, o Largo dos Contos está situado em nível mais baixo que a
Praça Tiradentes, ligados por duas ladeiras: a Rua das Flores e a Rua Direita 2. Aqueles
que chegam à cidade pela Rua Padre Rolim3, se deparam primeiramente com a Praça
Tiradentes. Para os automóveis, a única via de acesso dessa Praça para o Largo dos
Contos é a descida pela Rua das Flores, sinalizada com a seta vermelha na figura 2. Para
o pedestre, a área plana do Largo dos Contos serve para o corpo tomar impulso para a
subida da Rua das Flores; e também para frear na descida ao entrar no trecho que
corresponde ao largo.

Praça Tiradentes

Largo dos Contos

Figura 2: Largo dos Contos. Fonte: Elaborado por Isabelle Capanema Maciel, de acervo pessoal, 2021.

Ainda com relação ao trajeto, o Largo dos Contos é a via de principal acesso ao comércio
da cidade patrimônio; é também um lugar que distribui o fluxo das pessoas para
diferentes regiões da cidade. A pé, da Ponte dos Contos para o Largo, trajeto sinalizado
pela seta amarela na figura 2, a apreensão do espaço é diferente da percepção quando
nos deslocamos em sentido contrário.
A Rua São José e a Rua das Flores convergem para o Largo dos Contos. No Largo elas se
encontram. Na figura 2 essa confluência pode ser observada seguindo a direção das setas

2
Oficialmente, a Rua das Flores é Rua Senador Rocha Lagoa e a Rua Direita é Rua Conde de Bobadela.
Optamos pelo uso das nomenclaturas mais utilizadas por moradores e que são também encontradas em
sites de pesquisa e turismo.
3
A Rua Padre Rolim é onde está situada a rodoviária e de onde se estende a rodovia que liga Ouro Preto
à capital de Minas Gerais, Belo Horizonte (BR 356).

• 5
vermelha e a amarela. Uma rua estreita se torna um largo, com a “confluência de ruas”
(PRIBERAM, s/d.4). A palavra largo é definida por Silva e Bluteau (1858, p. 8) como
“extenso, difuso”, e por Torrinha (1937, p. 467) como “abundante, copioso”.
Por outro lado, quem vai a pé do Largo para a Rua São José, tem a sensação de seu
espaço reduzido, ressaltando a grandeza da antiga Casa dos Contos. Isso porque de frente
para a fachada principal da Casa o espaço reduzido da rua estreita limita o campo de
visão de modo que não cabe no enquadramento de uma fotografia, por exemplo. O
mesmo acontece de dentro do carro, do Largo para a Rua São José, quando vários
automóveis passam a se organizar em fila única, em novo ritmo.

Figura 3: Largo dos Contos em 1956. Fonte: Adenilson José em @Reviva Ouro Preto, 2019.
Com relação aos nós e à trama urbana que se dá entre os monumentos e os demais
elementos do Largo dos Contos, destacamos a Casa dos Contos como um marco visual
na cidade. Ela pode ser considerada um cruzamento, também chamado de nó focal
(LYNCH, 1980). Assim, se a Casa dos Contos é um nó focal para quem está no Largo,
poderíamos dizer que o Largo é um nó para a cidade. Isso porque, para Lynch (1980), o
nó pode ser uma referência à uma região temática, um ponto nítido da imagem urbana,
seja por características típicas, por vegetação ou por atividade. É o caso do Largo dos
Contos que está associado ao centro comercial de Ouro Preto.
No período colonial, a ideia de centro não era bem definida na caracterização de vilas e
cidades brasileiras, já que a hierarquização dos espaços da cidade se dava pela divisão
entre bairros, freguesias, paróquias ou arraiais. No entanto, há referências de centro
enquanto concentração referencial, como no caso do “centro comercial, centro do

4
In Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, Disponível em
https://dicionario.priberam.org/largo. Acesso em 21-06-2021.

• 6
comércio, centro dos negócios e similares, muitas vezes preferidas, ao longo do
Oitocentos, para identificar essa região urbana economicamente dominante” (TOPALOV;
et al, 2014, p. 203-4).
Outro destaque na trama urbana é o Chafariz dos Contos que foi um equipamento público
essencial nos séculos XVIII e XIX para acesso a água. Para além de um monumento, ele
foi um lugar de vivência, de circulação de notícias, de muitas vozes e de conflitos. Tudo
isso em torno da dinâmica de transporte d’água e abastecimento das moradias que se
dava principalmente pelos negros e negras escravizados. O espaço público era, portanto,
um lugar de encontro favorecido por elementos como esse. Na atualidade, o Chafariz é
um monumento evidenciado pelo turismo na cidade. As vivências dos moradores em seu
entorno estão relacionadas às festas e celebrações que ocorrem no Largo, como os
festivais e o carnaval.

CINEMA
CHAFARIZ

Figura 4: Festival Estrada Real Experience no Largo dos Contos. Fonte: acervo pessoal, 2022.
Nessas tramas urbanas, destacamos, ainda, o Cine Vila Rica que funciona onde era o
Liceu de Artes e Ofícios de Ouro Preto. Abrigar uma instituição de ensino como essa fazia
parte do contexto de se mostrar uma cidade do presente. Em parte, a mudança da capital
que ocorreu na década de 1890, contribuiu para reforçar os conflitos e a tentativa de
equilibrar o passado e o presente. Na década de 1950, quando passou a sediar o cinema,
a edificação do Liceu se transformou para resgatar o estilo colonial de sua fachada. Os
traços ecléticos e a platibanda originais foram retirados e substituídos pelo telhado
colonial. A volumetria se alterou em relação às áreas verdes e os fundos dos casarios
para a instalação de 650 cadeiras destinadas ao público do cinema.
A edificação que sedia uma unidade do Ministério Público do Estado de Minas Gerais é
outro elemento que merece destaque. Ela foi construída no começo do século XX para
funcionamento de uma instituição bancária. Em 1923, abrigou a filial do Banco Comércio

• 7
e Indústria de Minas Gerais. Originalmente com estilo eclético, art-deco e dois
pavimentos, é vizinha de parede do Chafariz e da Rua das Flores. Ela sofreu
transformações compatíveis com o período e as características do Liceu, em busca de um
suposto estilo colonial.
O Grande Hotel de Ouro Preto é um limite do Largo e foi, provavelmente, a construção
mais polêmica da cidade desde a sua criação (1940). De autoria de Oscar Niemeyer,
situa-se no final da Rua das Flores, mais alta que a antiga Casa dos Contos e bem acima
do Largo. Com ampla volumetria, esse fazia parte do contexto de criação de infraestrutura
para atividade turística atrelada à promoção da cidade monumento. Com edificação e
implantação controversa, impunha uma lógica moderna que se chocava com o tecido
colonial e com o apelo à humildade dos arquitetos do presente em acolher a cidade do
passado no presente. Manter a cidade histórica viva é importante desafio posto pelas
práticas e políticas patrimoniais.
No século XX, como podemos observar, no Largo dos Contos foram construídas várias
estruturas, especialmente em uma de suas laterais, demarcada em vermelho na figura
5. Considerando as estruturas apresentadas, podemos dizer que a visada também se
alterou com as novas edificações na parte em que se construiu a edificação para abrigar
o Liceu que antes contava apenas com um casario, como se observa no círculo amarelo
na figura 5. Sem as construções, aquela lateral permitia que a vegetação preservada do
horto e o Córrego dos Contos fossem parte do espaço. Além disso, as construções não
fizeram recuar a amplitude do Largo, pelo contrário, elas foram feitas aproveitando o
espaço do próprio horto ao construírem edificações com andares inferiores ao nível da
rua, como se observa na mesma edificação sinalizada no círculo amarelo da figura 5.

CASA DOS CONTOS


LARGO DOS CONTOS

HORTO

Figura 5: Largo dos Contos com destaque para a edificação do Fórum de Justiça, década de 1880.
Fonte: Autoria de Guilherme (Wilhelm) Linebeau, Wikimedia Commons, 2022.

• 8
Diante de todos esses elementos da paisagem de Ouro Preto, que influenciam
diretamente nos ritmos e apreensões do Largo dos Contos, podemos dizer que se trata
de um lugar de disputas. Nos séculos passados, as disputas tinham como mote a água e
os valores a ela associados. Na atualidade acontecem entre carros e pedestres; entre
comerciantes e foliões (carnaval); entre comerciantes e trabalhadores informais
(carnaval); entre a religiosidade e a arte (Semana Santa), entre moradores e turistas. Os
espaços vividos da cidade se revelam em suas diferentes formas, em diferentes horários
do dia e em diferentes momentos da sua existência.
A cidade enquanto paisagem necessita de olhares mais atentos, ultrapassando barreiras
de tempo e de espaço. Assim, a cidade é o espaço comum e permanente dos conflitos,
do movimento, que escapa de representações definitivas, um organismo vivo desde
sempre. Possui estratos desiguais, mostra as suas hierarquias, impõe formas e funções,
organizações dominantes (DELEUZE; GUATARRI, 1997, p. 21).
Aos poucos vai se apagando a ideia da cidade descritivamente precisa, de espaços
estáveis, funcionais e meramente estáticos. As construções, imóveis, concorrem com
espaços de circulação. Circulam pessoas e informações em fluxo contínuo de movimento,
em oposição ao estático.

Espaço liso e estriado


Os espaços, que são públicos, são dinâmicos e variáveis pelas ruas e calçadas. O território
vai além do espaço fixo. Ele é também um trajeto. Nessa perspectiva, o corpo é também
paisagem e o trajeto é também o território.
Sobre as formas de espacialização, recorremos a Gilles Deleuze e Felix Guattari (1997, p.
180) e as noções de espaço liso e estriado. No espaço estriado as formas se apresentam
à matéria, enquanto no liso se apresentam às suas forças ou sintomas (ibidem, p. 185).
O espaço liso só pode ser percebido e não visto, manifestando-se a todo instante pois é
instável. O espaço estriado é visível, calculado, lógico, com linhas e medições pois é
enraizado.
Os caminhos são exemplos da coexistência dos espaços lisos e estriados. O que para os
primeiros indica trajeto, para os estriados indica métrica, distância em números. As
procissões, por exemplo, que são “oração publica feita a Deos [sic] por um comum
ajuntamento de fieis disposto em certa ordem, que vai de um lugar sagrado a outro lugar
sagrado” (CONSTITUIÇÃO PRIMEIRA DO ARCEBISPADO DA BAHIA, 1853, p.191), fazem
coexistir o liso e o estriado. São trajetos de fé, com elementos religiosos, e, também são
distância, definidos os pontos inicial e final, as paradas para os cantos.

E como este culto seja um eficaz meio para alcançarmos de Deus o que lhe pedimos,
ordenamos, e mandamos, que tão santo, e louvável costume, e o uso das Procissões se
guarde em nosso Arcebispado, [...] observando-se em todas a ordem, e disposição
necessária para perfeição e majestade dos tais atos (ibidem, p.191).

• 9
A dinâmica da procissão vai além da religiosidade. Ela possui significados sócio-políticos,
verdadeiras demonstrações de poder (SOUZA, 2013). Rituais como esse afirmavam
hierarquias, especialmente numa cidade barroca, em que sua paisagem contribui
substancialmente para isso pela disposição das igrejas no alto dos morros. Na cidade, a
paisagem é produzida de forma cenográfica com as ondulações do solo. Por outro lado,
no período colonial, não participar das procissões significava ser contrário às
recomendações da Igreja e da Coroa, uma insubmissão a essas autoridades máximas.

Como demonstrações de poder, as procissões barrocas visavam deslumbrar a partir da


ostentação do poder de quem as organizava; de quem demonstrava condições de colocar
em ação um aparato tão complexo e dispendioso, para ser consumido de forma tão fugaz
(SOUZA, 2013, p. 54).

Nesse contexto, a cidade de Ouro Preto vai muito além do que é visto. É lugar de encontro,
de passagem, de procissões, de festas, de exposições, de desencontros. Os seus espaços
estriados são representados pelas edificações de diferentes tempos históricos. Os espaços
lisos nem sempre são percebidos pela velocidade do cotidiano contemporâneo.
Contribuem para isso o grande número de edificações voltadas para usos comerciais e
para a atividade turística. As diversas possibilidades de percepção dessa paisagem
dependem da contemplação.

Figura 6: Procissão de Santa Efigênia, São Sebastião e São Roque no Largo dos Contos.
Fonte: Fotografia de Luiz Fontana, Acervo do IFAC, 1930.

A HISTÓRIA DA PALAVRA LARGO

Ao falar em “largos” surgiu a necessidade de compreender as suas raízes. Ouro Preto se


formou a partir do agrupamento de vários arraiais espalhados no território. Esse

• 10
ajuntamento entre os arraiais deu origem ao caminho-tronco. De acordo com Araújo
(2018, p. 287), a partir dele, várias ruas secundárias se encontraram formando os largos
que “até hoje, são também alguns dos mais importantes espaços livres de uso público da
cidade”.
No entanto, as armadilhas da historiografia das cidades coloniais portuguesas que
atribuíram o crescimento de cidades como Ouro Preto à espontaneidade foram
sobrepostas ao se observar que o desenvolvimento respeitou normas de organização
espacial vinculadas à Igreja, à Câmara e ao barroco5. Com isso, consideramos para fins
deste estudo que os largos não deixam de ser o encontro de ruas, mas se formaram a
partir da necessidade de abertura de caminhos e para o usufruto da sociedade.
Em Portugal, o vocábulo “largo” aparece, pelo menos, desde o século XIV. Krus et al
(2017, p. 416) apresentam referência ao Largo do Pelourinho em documentação de 1392.
Segundo os autores, o antigo Açougue do Pescado se tornou Largo do Pelourinho Velho,
dedicado a atividades comerciais, especialmente na venda de peixes. As alterações nas
larguras das vias e na continuidade dos espaços públicos são consideradas como “as
primeiras expressões do novo modelo urbanístico europeu e cristão na urbe de Lisboa”
(ibidem, p. 415). O alargamento marcou uma mudança no caráter intimista e na
privacidade das ruas anteriores, que eram estreitas. Desde o período do Açougue dos
Pescados, o Largo tinha forte importância comercial e essa teria sido uma justificativa
para a destruição de estruturas que possibilitavam o alargamento da via. “(...) sabemos
que foi prática ao longo dos tempos destruírem-se algumas boticas adossadas à dita
construção para que o Largo pudesse ficar mais desafogado” (SILVA, 1987, p. 138 apud
KRUS et al 2017, p. 416).
De acordo com Krus et al (2017), em documento de 1552, o Largo é descrito como um
espaço em que se vendia de tudo, sob o nome de Rua Nova (dos Mercadores).
Provavelmente em 1544 ele passou a ser denominado Largo do Pelourinho Velho,
funcionando sempre como um espaço de grande valor econômico e de alta circulação de
pessoas de Lisboa, até o terremoto de 1755.

5
Sobre as discussões acerca das cidades brasileiras sem planificação ver DELSON, R. M. Novas Vilas
para Brasil-Colônia: planejamento espacial e social no século XVIII. Brasília: Editora ALVACIORD, 1997.

• 11
A cidade de Lisboa foi reconstruída e a região é conhecida atualmente como Baixa
Pombalina. Na figura abaixo se destaca, no traçado de cor preta, a demarcação pós-
reconstrução das ruas de Lisboa; e no traçado de cor vermelha, as estruturas destruídas.

Figura 7: Fragmento da planta topográfica no local do Largo do Pelourinho em Lisboa.


Fonte: Pais apud Vieira da Silva (2019, p.16).
Essa reconstrução marcou um momento de ruptura com os padrões de construção da
urbe lisboeta, adotando novas características que eram consideradas mais organizadas,
trocando elementos como becos, ruelas e largos por organizações retilíneas. “O local que
outrora fora um importante centro comercial, é completamente integrado neste novo
modelo urbanístico, correspondendo quase que ao limite oriental da Baixa Pombalina”
(KRUS; et al 2017, p. 416).
Os largos de Lisboa no período anterior à reconstrução se assemelham aos largos de Ouro
Preto enquanto espaços públicos direcionados para atividades coletivas cotidianas. O
alargamento de ruas e vias para favorecer as práticas comerciais, a circulação de pessoas
e o funcionamento de instituições como a Casa dos Contos confere aos largos de Portugal
assim como aos de Ouro Preto a intencionalidade e importância dos espaços públicos.
Em Faria (1997), “largo” aparece num comparativo com “praça”, em referência à uma
classificação pré-pombalina (1750-1777) para o Terreiro do Paço, em Lisboa. Os grandes
espaços públicos, “grandes largos tradicionais” eram considerados não planejados,
irregulares e ocasionais, diferindo das praças que eram consideradas regulares e

• 12
monumentais, com planos arquitetônicos e de fachadas6 (FARIA, 1997, p. 53). Essa seria
a grande diferença apontada pelo autor entre praça e largo, embora ambos vocábulos se
caracterizem como espaços de permanência. “Os largos impunham-se pela natureza da
evolução dos tecidos urbanos, evolução essa resultando da erosão provocada pelos
habitantes e suas regras de convívio, do comércio às festas, que necessitavam de espaço
para se afirmarem” (FARIA, 1997, P. 54). Isso nos leva a pensar que nas relações de
poder que se estabeleciam nos espaços, a ideia de atribuir a característica de
desorganização aos largos tenha as suas bases em sua ampla utilização pela comunidade.
Apesar da ideia de progressão e hierarquia entre largo e praça, cabe ressaltar que há
imprecisão na utilização deles na documentação do passado, como aponta Faria (1997).
Nas cidades coloniais portuguesas a construção da praça como elemento fundante não
era uma regra, tendo em vista que cada cidade surgiu com um propósito e com
características topográficas bem distintas das cidades europeias. Além disso, a ocupação
definitiva só se dava no segundo momento da exploração de ouro, quando finalmente se
tornavam vilas e cidades. Com a criação da Casa de Câmara em Ouro Preto se estruturou
a Praça Tiradentes como símbolo do poder da Coroa. Os largos permaneceram se
configurando e fixando como espaços públicos de uso coletivo, envolvendo não só o
abastecimento de água como também de gêneros alimentícios, a presença de tropeiros,
a venda de produtos, a presença de negros, negros escravizados e “negras de tabuleiro”
(ARAÚJO, 2018, p. 289).
Entre o século XVIII e a atualidade, houve uma gradativa desvalorização do vocábulo
praça (FARIA, 1997). Essa mudança de valores dedicada às praças pode estar relacionada
ao ritmo moderno da vida cotidiana, a perda de sua utilização enquanto lugar de encontro
e permanência. Podemos considerar que essa mudança aproximou a ideia de largo e a de
praça, e ambos se tornaram lugares predominantemente de passagem.
Os largos da cidade de Ouro Preto são encontrados desde a documentação oitocentista.
Na tabela abaixo, observamos uma listagem realizada com base em consulta ao Arquivo
Público Mineiro e ao Portal da Transparência da Prefeitura de Ouro Preto.

DENOMINADO
ANO DA POR LEI?
DENOMINAÇÃO BAIRRO | REGIÃO
LEI | FONTE

Largo de São José Rua São José – Centro 1780 NÃO


(impreciso)

(APM, CMOP, CX. 55, DOC 92,


1780)

Largo do Rosário Rosário 1803 NÃO

6
Segundo Faria (1997), muitos largos deram origem a praças em Lisboa.

• 13
(APM, CC, CX. 91, 20307,
1803)

Largo dos Baús Não encontrado – referência à 1817 -


carta de sesmaria e ao Rio
Tejuco

(APM, SG, CX 101, DOC49,


24/04/1817)

Largo da Alegria Praça Silviano Brandão, 1890 NÃO


Centro. (Almanaque de Ouro
Preto)

Largo do Dirceu Antônio Dias – referência ao 193-. NÃO


chafariz de Marília no dossiê
Chafarizes de Ouro Preto de
193-

(APM, MM-193(03), s/d)

Largo Musicista José São Cristóvão 1968 SIM


dos Anjos Costa

Largo da Fonte da Água Limpa 1991 SIM


Chácara

Largo Secundino São Cristóvão 1994 SIM


Martins Ferreira

Largo Orlando Trópia Centro – em frente à Escola 1996 SIM


D. Pedro II

Largo Célio Inácio Alto da Cruz 2000 SIM

Largo Maria Timóteo Vila Aparecida 2005 SIM


Dias

Largo Professor José Água Limpa 2008 SIM


Benedito Nunes

Largo Farmacêutico Centro - Rua Costa Sena, em 2010 SIM


Vicente Éllena Trópia frente à Escola de Farmácia

Largo Mauro São Cristóvão 2011 SIM


Guimarães

Largo Maestro Otacílio Centro – entre a Igreja das 2014 SIM


Jacinto de Cunha Mercês de Cima e a Escola de
Minas

Largo Basílio Gomes São Cristóvão 2016 SIM

• 14
Largo Padre Mendes Morro da Piedade - em frente 2018 SIM
à Igreja São Francisco de
Paula

Largo de Coimbra Centro Desconhecido NÃO

Largo dos Contos ou Praça Reinaldo Alves de Brito Desconhecido NÃO


Largo do Cinema

Tabela 1: Largos de Ouro Preto. Fonte: Baseado em consulta do Arquivo Público Mineiro e Prefeitura de
Ouro Preto, 15 de jul. de 2021.
Observamos que os logradouros denominados “Largos”, por Lei, começaram a surgir a
partir da década de 1960, embora o volume tenha aumentado consideravelmente da
década de 1990 até hoje. Os demais, cuja lei não foi localizada até o momento, não
passam de denominações de uso comum. Embora não oficiais, eles são facilmente
identificados como largos, haja vista que qualquer pesquisa básica na internet indicará
exatamente a sua localização a partir da denominação popular. Tendo em vista que os
sites de busca na internet e os sites de turismo da cidade confirmam essas nomenclaturas,
elas continuam a existir entre a comunidade e também os turistas, contrariando a
imposição de nomes de personalidades muitas vezes desconhecidas.
Algumas ruas e largos se destacam por suas dinâmicas comerciais e administrativas,
como o Largo dos Contos (Praça Reinaldo Alves de Brito), a Rua Tiradentes (depois Rua
São José), o Largo da Alegria (Praça Silviano Brandão) e a Rua Nova do Sacramento
(depois Rua Getúlio Vargas). Como vimos na tabela, o Largo dos Contos e o Largo da
Alegria não foram denominados como “largos”, oficialmente. A via começa no Largo dos
Contos e termina no Largo da Alegria.
Na década de 1890, o “Almanack de Ouro Preto” apresentou, dentre outras informações,
os profissionais (prestadores de serviço) com as mais variadas funções e a sua
localização. No entanto ele menciona a Rua de São José (OZZORI, 1890) como referência
à Rua Nova do Sacramento (VILLASCHI, 2014), ou Rua do Paredão (SALGADO, 2010)
que veio a ser a Rua Getúlio Vargas até os dias atuais. Veloso (2018) afirma que essas
alterações na nomenclatura das ruas eram constantes, podendo variar em curtos períodos
de tempo, por isso as diferentes referências a uma mesma rua. Os profissionais e as
empresas (pontos comerciais) foram organizadas na tabela abaixo a partir da síntese
desse documento7. Consideramos para a criação da tabela que o Largo dos Contos era
considerado parte da Rua Tiradentes devido a uma referência a essa rua no Almanaque,
que diz: “Começa em frente à Diretoria de Fazenda e termina no Largo da Alegria”
(OZZORI, 1890, p. 79). Além disso, o antigo Liceu Mineiro estava endereçado como Rua
Tiradentes, e também fez parte do Largo dos Contos. No entanto, apesar de o Largo dos
Contos e o Largo da Alegria se tratarem, oficialmente, da mesma rua (século XIX), os

7
O Almanaque de Ouro Preto de 1890 informa aos leitores, nas páginas III e IV, sobre a dificuldade em
obter as informações e com isso a possibilidade de falhas nas informações apresentadas. Em todo caso,
parece-nos interessante compreender a vocação para a ascensão comercial do lugar, característica que
se mantém na contemporaneidade.

• 15
endereços fazem distinção quando se trata desse último, citados no Almanaque como
“Largo da Alegria”. Isso nos dá um panorama das referências de habitantes da cidade
daquele período, já que as informações eram passadas por eles ao tipógrafo. Então, a
Rua de Tiradentes será considerada aqui do Largo dos Contos até o Largo da Alegria; o
Largo da Alegria será contabilizado quando for mencionado como tal; a Rua de São José
será considerada do Largo da Alegria até o Largo do Rosário, conforme indica o
Almanaque. O Largo do Rosário não será contabilizado porque entendemos que tem uma
dinâmica e fluxos diferentes e específicos.

Rua de Largo da Rua de


Tiradentes Alegria São
José
Advogados 7 1 0
Médicos 1 0 3
Procuradores 5 1 3
Professores particulares 1 1 0
Sacerdotes 1 0 0
Typographias e publicações 1 1 0
Lyceu Mineiro e Escola Normal de Ouro Preto 1 0 0
Banco Territorial e Mercantil de Minas 1 0 0
Fotógrafo 1 0 0
Maison (Magasin) 1 0 0
Dentistas 2 0 0
Depositários de tecidos da Companhia Cedro Y 1 0 0
Cachoeira
Fabricantes de calçados (com depósito) 2 0 0
Fabricantes e depositários de mobílias 1 0 0
Negociantes de fazendas, modas, etc. 6 0 2
Negociantes de ferragens, louça, etc. 1 0 0
Negociantes de molhados, calçado, chapéus, etc. 1 0 0
Negociantes de Molhados e Generos do Paiz 4 0 12
Negociantes de peixes, frutas, etc. 1 0 0
Ourives 2 0 0
Farmácias 1 0 2
Proprietários de alfaiatarias 5 0 0
Proprietário de bilhares 1 0 0
Proprietário de charutarias 3 0 0
Proprietários de botequins e restaurantes 3 0 0
Proprietário de casa de tiro ao alvo 1 0 0
Proprietários de padarias 2 0 0
Modistas e costureiras 2 0 0
Proprietários de colchoaria 1 0 0
Proprietários de livraria e papelaria 1 0 0
Proprietários de salões de barbeiro e cabelereiro 2 0 2
Relojoeiro 1 0 0
Retratista a crayon 1 0 0
Sapateiro 1 0 0
Fábrica de massas 0 0 1
Selleiro (celeiro) 0 0 1
Proprietário de açougue 0 0 1
Hotel 0 0 1
= 66 =4 = 28
Tabela 2: profissionais e empresas (1890) nas Ruas Tiradentes, Largo da Alegria, Rua de São José em
Ouro Preto. Fonte: Adaptado pela autora, de Almanaque de Ouro Preto (1890).

• 16
As informações do Almanaque reforçam a característica comercial ao redor do Largo dos
Contos. Os dados apontam a predominância de atividades comerciais desenvolvidas por
pessoas com melhores condições financeiras, a julgar pela localização de seus
empreendimentos: próximos à Praça Tiradentes, ao lado de instituições importantes como
os Correios, o Fórum de Justiça e o Liceu. Comparada com as demais ruas apontadas no
Almanaque, é um número bastante expressivo. Atualmente, a antiga Rua Tiradentes é
conhecida como “Rua dos Bancos”, que oficialmente é a Rua São José, devido à
concentração de instituições bancárias na via. Em 1890, nessa pequena rua estreita e
fria, o Almanaque de Ouro Preto apontou 66 profissionais e empresas (OZZORI, 1890),
como vimos na tabela. A maior parte dos profissionais e empresas listados estava entre
o Largo dos Contos e o Largo da Alegria.
No século XVIII e XIX, o tempo era dividido de forma bem diferente do atual. No século
XIX, “o comércio abria-se às 7 horas e encerrava as portas às 21”, todos os dias da
semana (CABRAL, 1969, p. 212). A Câmara chegou a estipular, em 1830, para “segurança
e tranquilidade do município” que estava proibido manter as portas abertas depois do
meio dia de domingos e dias santos, acusando os negros escravizados de utilizarem esses
dias para se embriagarem e perturbarem o sossego público (ibidem, p. 156).

As melhores construções particulares destinam-se, pelo menos parcialmente, a lojeas ou


vendagens, inclusive aquelas mais grandiosas, dentre as quais sobressai a de João
Rodrigues de Macedo, depois Casa dos Contos. Seus primeiros pavimentos abrem-se
francamente para a via pública, compondo áreas grandes e pouco subdivididas,
evidentemente não agenciadas para moradia. Só quando fraquejava o comércio pela
decadência das povoações, são os referidos cômodos incorporados às residências, com a
consequente transformação de suas portas de entrada em janelas (VASCONCELOS, 1977,
p. 56).

O mesmo Almanaque de Ouro Preto (OZZORI, 1890) informa sobre a rota dos bondes
para os funcionários das empresas, que envolvia o trajeto Antônio Dias – Rosário (ida e
volta) de 30 em 30 minutos entre 8:30 e 12:30 da manhã e entre 1 hora a 9:30
tarde/noite.
As dinâmicas se alteram com o passar do tempo, e também a forma de se relacionar com
os espaços públicos. Preservando muito mais que os aspectos físicos, o Largo dos Contos
mantém a sua característica comercial. Embora seja um lugar de passagem na maior
parte do tempo, os eventos culturais fazem o papel de atrair as pessoas, favorecer os
ajuntamentos, retomar as vivências, no entanto, são atividades pontuais no calendário
anual da cidade. A paisagem de Ouro Preto se transforma com o tempo e as práticas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerando o significado de largo ou de praça, acreditamos que o Largo dos Contos é
um espaço importante na manutenção da cidade viva. O fluxo contínuo de suas dinâmicas
no espaço e tempo de Ouro Preto representa uma parcela importante da história da
cidade.

• 17
Considerando que os largos são importantes espaços urbanos das cidades desenvolvidos
com aspectos que favoreçam o cotidiano, observamos que atualmente faltam incentivos
e gestão que privilegie a desaceleração. Nas bases de qualquer disputa pelo espaço estão
os usos. No Largo dos Contos os moradores mantêm velhas práticas como o uso de
grandes cestos e balaios para a venda de produtos de seus quintais em partes da calçada
estreita. Por outro lado, apesar de ter alto custo de aluguel, o comércio nas edificações é
disputado constantemente.
No século XIX, os profissionais que atuavam no Largo dos Contos ou perto dele moravam
nos andares superiores e trabalhavam no térreo. O que se observa atualmente é que as
pessoas estão deixando as suas casas para morarem em bairros mais tranquilos, com
facilidade de estacionamento, sem impedimentos relacionados a obras e alterações em
seus casarios tombados e outras questões que vieram a se tornar importantes no contexto
atual, alugando e transformando pouco a pouco aquele lugar. Ainda assim, a dinâmica
persiste pelo uso constante dos moradores junto ao uso pelos turistas garantido pelas
instituições bancárias, comércio popular e eventos municipais.
Os elementos do Largo, como a antiga Casa dos Contos e o Chafariz (século XVIII), as
edificações do cinema, do Ministério Público e do Grande Hotel (século XX) favorecem
diferentes percepções da cidade com características de movimento. Eles demarcam as
principais transformações entre o século XIX e o presente. O dinamismo no Largo está
relacionado ao dinamismo da cidade que não incorreu no erro de se tornar um cenário
como aconteceu em Tiradentes (MG).
As rupturas marcaram as resistências de uma sociedade que transformou a cristalização
em imagem de uma herança colonial em uma cidade viva, que concilia o respeito ao
passado com o seu usufruto contemporâneo.

REFERÊNCIAS

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históricas, desafios contemporâneos. Tese [Doutorado] – Programa de Pós-graduação em
Arquitetura pela Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte, 2018. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/MMMD-BAAJTC.
Acesso em agosto de 2022.

CABRAL, Henrique Barbosa da Silva. Ouro Preto. Belo Horizonte, 1969.

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Janeiro: Oficina Raquel, 2013.

CONSTITUIÇÕES PRIMEIRAS DO ARCEBISPADO DA BAHIA, feytas, e ordenada pelo... Senhor


d. Sebastião Monteyro da Vide...propostas, e aceytas em o Synodo Diocesano, que o dito
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• 18
FARIA, Miguel. O modelo Praça/Monumento Central na evolução urbanística da cidade de
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Colóquio Lisboa Iluminista e o seu tempo da Universidade Autônoma de Lisboa. 1997.
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VASCONCELLOS, Sylvio de. Vila Rica. São Paulo: Perspectivas, 1977.

• 19
VELOSO, Tércio. Terrenos urbanos: os aforamentos da sesmaria da câmara de Vila
Rica e a sociedade mineira setecentista (1711-1809). Tese [doutorado] –Programa de
Pós-graduação em História do Departamento de História da Universidade Federal de Ouro
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VILLASCHI, João Nazario Simões. Hermenêutica do patrimônio e apropriação do


território em Ouro Preto - MG. Tese (Doutorado em Geografia Humana) - Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.
doi:10.11606/T.8.2014.tde-07112014-184004. Acesso em: junho 2020.

• 20
PASSADO E MEMÓRIA EM CONSTRUÇÃO
Modernidade e patrimônio cultural no Brasil
Past and memory under construction. Modernity and cultural heritage
in Brazil
Pasado y Memoria en Construcción. Modernidad y Patrimonio Cultural
en Brasil

Eixos temático: Práticas, processos e institucionalidades

CERÁVOLO, Ana Lúcia


Doutora; UNICEP São Carlos
aceravolo@unicep.edu.br

MARTINS, Carlos A. Ferreira


Doutor/Titular; Universidade de São Paulo (USP)
cmartins@sc.usp.br
RESUMO

O presente trabalho pretende apresentar uma reflexão sobre as características,


dificuldades e contradições da política de preservação da arquitetura,
particularmente da arquitetura moderna, no Brasil, ao longo das últimas oito
décadas. Não se trata de uma panorâmica nem de um estudo de caso, mas de
um estímulo ao reconhecimento e debate dos alcances e limites da cultura
preservacionista brasileira, especialmente relevante num momento em que
ela, assim como outros âmbitos da ciência e da cultura, sofre o que já se
caracterizou como assédio institucional. Para informar esse debate,
estruturamos a comunicação em três momentos ou abordagens: 1) o quadro
de intervenções da arquitetura moderna sobre as obras coloniais; 2) A política
de registros de obras e conjuntos modernos e, 3) dois exemplos dos problemas
conceituais e legais colocados pela intervenção do autor em seus próprios
trabalhos protegidos. Nesse cenário, o esforço de organização de instituições
e suas políticas desfalece para dar lugar a uma guerra do governo brasileiro
contra os marcos de identidade cultural da nação e a concessão à iniciativa
privada de monumentos emblemáticos da arquitetura do país.

PALAVRAS CHAVE Patrimônio; Arquitetura; Intervenção; SPHAN; Brasil.

ABSTRACT OU RESUMEN

This article intends to present a reflection on the characteristics, difficulties and


contradictions of the architecture preservation policy, particularly of modern
architecture, in Brazil, over the last eight decades. It is not an overview or a
case study, but a stimulus to the recognition and debate of the scope and limits
of Brazilian preservationist culture, especially relevant at a time when it, like
other areas of science and culture, is suffering what has already been
characterized as institutional harassment. To inform this debate, we structured
communication in three moments or approaches: 1) the framework of
interventions of modern architecture on colonial sites or buildings; 2) The
policy of registering modern buildings and ensembles, and 3) two examples of
the conceptual and legal problems posed by the author's intervention in his
own protected works. In this scenario, the effort to organize institutions and
their policies fails to give way to a war by the Brazilian government against the
nation's cultural identity landmarks and the concession to the private sector of
emblematic monuments of the country's architecture.

KEY-WORDS OU PALABRAS-CLAVE Heritage; Architecture; Intervention;


SPHAN; Brazil.

• 2
INTERVENÇÃO MODERNA EM LOCAIS HISTÓRICOS

Este ano o debate cultural brasileiro está fortemente marcado por duas efemérides
relacionadas entre si, ambas relevantes como mote para atualizar a reflexão sobre os
temas das heranças histórico-culturais e da tradição moderna: o bicentenário da
independência política (1822) e o centenário da Semana da Arte Moderna (1922), cujas
polêmicas, revisões e questionamentos acabam por reafirmá-la como um dos marcos
fundamentais da afirmação da arte e da cultura modernas em nosso país.

Como se tem visto, os juízos de valor seguem variando, desde momento crucial da
autoconsciência cultural, até episódio contraditório de uma vanguarda apoiada pelas elites
dos grandes exportadores de café ou momento supervalorizado por uma perspectiva
paulistocêntrica.

Porém, não se contesta que os movimentos culturais brasileiros das décadas de 20 e 30


do século XX, estavam inseridos, consideradas todas as especificidades dos diferentes
contextos nacionais, num conjunto de acontecimentos no âmbito latino-americano que,
segundo Jorge Manrique (1974), estabeleceram uma inflexão na história cultural da
região, com o surgimento de grupos, revistas, manifestos e outras formas de afirmação
cultural, que analisavam seus países e o continente como uma espécie de dupla face de
Janus.

Para esse autor, no afã de afirmar a modernidade e a identidade nacional dos países da
América Latina passado um século dos movimentos de independências políticas, os
artistas e intelectuais olhavam, ao mesmo tempo, para fora e para dentro: para a Europa,
das antigas metrópoles coloniais convertidas em metrópoles culturais e econômicas, e
para o interior dos nossos próprios países, em busca daquilo que nos tornava diferentes
(MANRIQUE, 1974).

Essa duplicidade do olhar se aplicava também ao tempo, na medida em que afirmar a


modernidade implicava um olhar para o futuro, característico das vanguardas, mas a
afirmação de nossa específica alteridade passava pela busca, na história, do que nos
caracterizava e distinguia.

Manrique (1974) se apoiava na teorização do antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro para


indicar que, diante da heterogeneidade de nossos povos não era possível uma resposta
comum à pergunta por nossa identidade latino-americana, pois o que apresentávamos
em comum era a inexorabilidade da pergunta e desse aparente paradoxo consistente em
querer ser, ao mesmo tempo, modernos e nacionais.

Dez anos depois, o crítico de arte Ronaldo Brito (LIMA, 2005) vinha chamar a atenção
para o impasse que, para um país como o Brasil, significava buscar no passado o alicerce

• 3
de sua identidade: "O passado de uma colônia é opaco para si mesma", diz ele. No caso
do Brasil, o passado seria um tipo de espelho partido que aponta para Portugal e as
populações autóctones, mas também para a África. Diante dessa impossibilidade, diz
Brito, a identidade só pode ser um projeto, uma construção de frente para o futuro. É
significativo que a ideia de "Brasil, o país do futuro" tenha deixado de ser apenas o título
de um livro de Stephan Zweig, para se transformar em mote identitário.

Não apenas nas artes plásticas e na literatura, mas também na arquitetura, esse será o
movimento dominante nas décadas seguintes: a afirmação de uma modernidade que
paradoxalmente se apoia e se justifica no passado. Ou, com mais precisão, uma
modernidade que precisa construir um passado que legitime a imagem do futuro que se
projeta.

Essa é a chave a partir da qual é possível compreender a inserção dos jovens artistas e
intelectuais vinculados ao movimento moderno nas políticas culturais e, em particular, na
proposta e na criação do órgão de preservação patrimonial brasileira, o Serviço Nacional
de Patrimônio Histórico e Artístico (SPHAN), que se efetivou em 1937, a partir das
contribuições de Mario de Andrade, o grande ideólogo modernista, de Carlos Drummond
ou do intelectual Rodrigo de Mello Franco, que será seu diretor por três décadas.

Como é bastante conhecido entre nós, mas não deveria ser considerado corriqueiro, Lúcio
Costa, Oscar Niemeyer, Carlos Leão, José de Souza Reis, Renato Soeiro e Alcides da
Rocha Miranda, todos protagonistas da arquitetura moderna brasileira, estavam entre os
arquitetos que integraram a equipe técnica do novo órgão.

Desde os primeiros anos de atividade do SPHAN, sob a liderança de Rodrigo Franco e com
Lucio Costa à frente da Divisão de Estudos e Tombamento1, estabeleceu-se como
prioridade inicial a salvaguarda das cidades coloniais, com ênfase sobre o barroco, que
foi interpretado por eles como "o primeiro momento genuíno da cultura brasileira".

Já na primeira edição da Revista do Patrimônio, publicada ainda em 1937, estava o texto


de Lúcio Costa, Documentação Necessária, que poderia ser considerado como um
programa de trabalho para o recém-criado órgão e ao mesmo tempo, o estabelecimento
da base ideológica para a operação intelectual de articulação entre arquitetura moderna
e a tradição consolidada nas construções históricas.

Ao buscar identificar as origens do que seria específico da tradição construtiva do país,


Lúcio Costa afirma:

(...) a arquitetura popular apresenta em Portugal, a nosso ver, interesse maior que a
‘erudita’ – servindo-nos da expressão usada, na falta de outra, por Mário de Andrade, para

1
Palavra de origem portuguesa que designa o registo ou a declaração de interesse, visando a proteção
patrimonial, que no Brasil se agregou, desde o decreto nº 25/1937, a salvaguarda legal.

• 4
distinguir da arte do povo a ‘sabida’. É nas suas aldeias, no aspecto viril das suas
construções rurais a um tempo rudes e acolhedoras, que as qualidades da raça se mostram
melhor. (COSTA, 2007, p. 86)

E continua:

Tais características, transferidas – na pessoa dos antigos mestres e pedreiros ‘incultos’ –


para a nossa terra, longe de significarem um mau começo, conferiram desde logo, pelo
contrário, à Arquitetura Portuguesa na colônia, esse ar despretensioso e puro que ela soube
manter (...) até meados do século XIX. (Ibid.)

Cultura construtiva que contou ainda, para chegar a sua versão propriamente brasileira,
com certo “amolecimento”, expressão que Costa (2007, p. 87) empresta de Gilberto
Freyre, em relação aos rigores europeus. Essa adaptação ocorre, segundo o arquiteto por
“dificuldades materiais de toda ordem, entre as quais a da mão-de-obra, a princípio
bisonha, dos nativos e negros”. As edificações são afetadas ainda pela “distância” e outras
necessidades que levam à diferenciação das construções realizadas no Brasil e em
Portugal. “Notando-se nas realizações daqui um certo atraso sobre as da metrópole”.

Mas, essa diferenciação, usualmente tratada como inferioridade é destacada por Costa
(2007, p. 88) como qualidade própria que diferencia a “casa brasileira” de suas
contemporâneas:

A nossa casa se apresenta assim, quase sempre, desataviada e pobre, comparada à


opulência dos ‘palazzi’ e ‘ville’ italianos, dos castelos de Franca e das ‘mansions’ inglesas
da mesma época (...), ou, ainda o aspecto apalacetado e faceiro de certas residências
nobres portuguesas.

Ao colocar a ênfase, assim como Mario de Andrade, na cultura popular como âncora da
identidade cultural do país e, num movimento paralelo, ao indicar uma espécie de
continuidade histórica entre as estruturas profundas da tradição arquitetônica colonial e
a arquitetura moderna de raiz mediterrânea, Costa definiu não apenas o que se
consolidaria como a postura dominante do SPHAN (ao menos durante um bom período
de sua história) sobre a arquitetura do passado, mas também o solo fértil sobre o qual se
fundamentou a narrativa dominante do que viria a consolidar-se como o cânone da
arquitetura moderna e brasileira.

Da mesma forma, a ação do SPHAN no campo da arquitetura e dos conjuntos urbanos se


move, nos primeiros anos, em duas direções: a intervenção moderna em edifícios ou
sítios históricos e no tombamento, isto é, na seleção e proteção como patrimônio nacional
de algumas obras modernas, varias delas a apenas alguns poucos anos de sua realização.

Cada um desses movimentos justifica estudos aprofundados, mas acreditamos que, ao


sintetizá-los, permitimos uma visão mais compreensiva dos méritos e das aporias de
nossa política patrimonial.

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E, nesse sentido, a amplitude dessas ações é considerável. Nos dois primeiros anos, o
órgão define o tombamento (ou seja, o registro e a proteção do patrimônio) de 259
edifícios ou sítios, aos quais serão adicionados mais 147 na década seguinte. (MILET,
1988)

O tombamento é hoje, após a Constituição Federal de 1998, realizado pelo poder público
em todos os níveis de organização do Estado e se aplica exclusivamente a ativos materiais
ou ambientais (BRASIL, 1988). No âmbito federal é responsabilidade do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) 2; e órgãos similares estão presentes em
todos os estados e em parte dos municípios brasileiros.

O processo de tombamento começa com um pedido formal de abertura para um


procedimento de avaliação, que pode ser iniciado a pedido de um cidadão comum ou de
uma instituição pública ou privada (BRASIL, 1937). O texto do Decreto-lei nº 25/1937,
estabelece em seu artigo 4, a criação de 4 livros de "Tombo", isto é, de registro das
mercadorias que colocam em proteção legal: o Livro do Registro Arqueológico, Etnográfico
e da Paisagem; o livro de registro histórico; O Livro de Registro de Belas Artes e o Livro
do Registro de Artes Aplicadas (BRASIL, 1937).

A qualidade e o pioneirismo da legislação de proteção brasileira são destacados por Michel


Parent3, que lidera a primeira missão de inspeção da UNESCO no Brasil, realizada em
1968, no escopo do Programa de Apoio ao Turismo daquele órgão (LEAL, 2008). Parent
indica também que “se no Brasil os recursos são insuficientes, os instrumentos legais são
excelentes”. Diz ainda que a legislação era, na década de 1960, infinitamente mais forte
da que dispunham os franceses (LEAL, 2008, p. 64).

Desde já, e esta questão será retomada, o problema de preservação e conservação dos
bens patrimoniais no Brasil não se pode atribuir à falta de instrumentos legais.

INTERVENÇÃO MODERNA EM LOCAIS HISTÓRICOS

Museu de Missões em San Miguel (1938)


O primeiro desafio prático de Lucio Costa no IPHAN, já em 1937, é uma visita técnica à
área das Missões, com a comissão de buscar "soluções para as ruínas das missões
jesuítas".

2
A denominação Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) passa a vigorar
definitivamente, a partir de 1994. O órgão nacional de preservação do patrimônio nacional teve diversas
designações desde o nome original Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), em 1937.
3
Michel Parent foi inspetor do principal serviço de proteção de monumentos e sítios da França e uma
das principais lideranças internacionais do ICOMOS, no período pós constituição da entidade.

• 6
Demonstrando conhecimento e afinidade com a carta do restaurante de Atenas, de 1931,
Costa entende que "não se pode pensar em reconstruir San Miguel nem sequer reconstruir
nenhuma de suas partes (mas) apenas consolidar e conservar".

De fato, aquele documento patrimonial estabelecia, claramente que "quando se trata de


ruínas, se impõe uma conservação escrupulosa, com a realocação em seus lugares dos
elementos originais, encontrados (anastilose), sempre que possível" e que "os novos
materiais necessários para esse trabalho sejam sempre reconhecíveis. "
Por outro lado, indica a importância de "dar ao visitante uma impressão o mais
aproximada possível do que eram as Missões".

Isso o leva a tomar a decisão de, além de tomar as medidas técnicas necessárias para
consolidar as ruínas, reunir num pequeno museu em San Miguel, ex-capital das Sete
Aldeias das Missões, as obras resgatadas nas várias missões e, ao mesmo tempo, num
gesto de sabedoria projetual, usar a localização do pequeno edifício para definir a escala
do que havia sido a grande praça original, da qual não havia ficado nada mais do que
poucos sinais.

O hotel em Ouro Preto (1942)


Pouco tempo depois, um desafio mais complexo exigirá de Costa um equilíbrio entre o
arquiteto modernista e a pessoa encarregada da preservação de edifícios e locais de valor
histórico.

A preservação de todo o centro histórico de Ouro Preto, a antiga Vila Rica do auge da
exploração de ouro e pedras preciosas, tinha a vocação e o desafio de ser a grande vitrine
da recém-criada política patrimonial do SPHAN. Mas a abertura da cidade ao turismo,
inerente à política de patrimônio, exigia a implementação de vários equipamentos, entre
os quais se destacava um hotel equipado com os confortos exigidos pelos visitantes, tanto
quanto possível, perto da área central.

E isso levanta, naturalmente, o problema da aparência de um imóvel moderno, de escala


relativamente grande a ser inserida em um ambiente de densa historicidade. A Divisão
de Preservação abriga diferentes concepções a respeito desse tema, que acabam se
expressando em propostas de edificação que vão do neocolonial, proposto inicialmente
por Carlos Leão, ao projeto radicalmente moderno de Oscar Niemeyer, apresentado
meses depois.

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Figura 1: Grande Hotel de Ouro Preto, 1939. Fonte: Revista Municipal de Engenharia, Rio de Janeiro, v.9,
n.2, p.82-7, mar. 1942.

Chamado a opinar, Costa apresenta um parecer manuscrito4 a Rodrigo de Mello Franco,


no qual define uma postura que vai além do caso específico e estabelece uma diretriz de
atuação que marcará, ao menos por um certo período, o padrão de intervenção do SPHAN
em centros urbanos de interesse histórico e patrimonial.

4
O parecer manuscrito, que Lucio Costa optou por não incluir no livro Registros de uma Vivência, foi
reproduzido pela primeira vez em MARTINS (1988, pp. 192-200). Posteriormente foi republicado em
revista do Patrimônio Histórico Artístico Nacional.

• 8
Significativamente, Costa começa por lembrar que se manifesta na dupla condição de
“arquiteto incumbido pelo CIAM de organizar o grupo do Rio e de técnico especialista
encarregado pelo SPHAN do estudo de nossa arquitetura antiga”.
É a partir dessa dupla visada que propõe descartar a solução de um edifício neocolonial,
proposta por Carlos Leão, na medida em que afirma saber:

(...) por experiência própria que a reprodução do estilo das casas de Ouro Preto, só é
possível, hoje em dia, à custa de muito artifício”. Admitindo-se que o caso especial dessa
cidade justificasse excepcionalmente, a adoção de tais processos, teríamos, depois de
concluída a obra, ou uma imitação perfeita e o turista desprevenido correria o risco, á
primeira vista, tomar por um dos principais monumentos da cidade, uma contrafação, ou
então, fracassada a tentativa, teríamos um arremedo "neocolonial", sem nada de comum
com o verdadeiro espírito das construções antigas (COSTA apud MARTINS, 1998, p. 182).

Na sequência, realiza um enfático elogio do projeto apresentado por Niemeyer, que,


segundo Costa, tem duas coisas em comum com os antigos edifícios coloniais: “(...)
beleza e verdade. Composto claramente, diretamente, sem compromissos, resolve com
a técnica atual e da melhor maneira possível, um problema atual” (COSTA apud MARTINS,
1998, p. 197).

Seu elogio vai além, afirmando que

(...) de excepcional pureza de linhas e muito equilíbrio plástico, é, na verdade, uma obra
de arte e, como tal, não deverá estranhar a companhia de outras obras de arte, embora
diferentes, porque a boa arquitetura de um determinado período vai sempre bem com a de
qualquer período anterior (COSTA apud MARTINS, 1998, pp. 197-8)

O parecer segue num longo excurso comentando que a presença de artefatos modernos
(o telefone ou o automóvel) em edifícios ou ambiências históricas só reforça, por
contraste, a vetustez do passado e criticando a mania de certas culturas novo-ricas que
falsificam estilisticamente o desenho funcional desses artefatos resultando em pastiches
de mau gosto e incompreensão do sentido da arte.

Quando todo o argumento parecia enfatizar a justificativa para o apoio ao projeto de


Niemeyer, entra em cena a terceira persona de Costa. Ao início auto apresentado como
o representante do CIAM e o responsável pelo estudo de nossa arquitetura antiga, agora
é o "amigo" de Rodrigo Mello Franco que o lembra da importância de Ouro Preto para
todo o projeto do SPHAN e do risco de ter seu trabalho cometido por algum mal-entendido
dos vínculos entre a arquitetura moderna e tradicional. E avança na proposta de uma
espécie de harmonização entre a intervenção moderna e o ambiente histórico.

Pergunta de maneira retórica, se não seria possível:

(...) sem perder de vista o CIAM ou o SPHAN, (...) encontrar uma solução que, mantendo
integralmente o partido adotado e respeitando a verdade atual e os princípios da boa

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arquitetura, se ajustasse melhor ao quadro e, sem pretender de forma alguma reproduzir
as construções antigas ou confundir-se com elas, acentuar menos ao vivo o contraste entre
passado e presente, procurando, apesar do tamanho, aparecer o mínimo possível, não
contar, melhor , não dizer nada (...) para que Ouro Preto permaneça confortável, sozinha
em seu canto, a reviver sua própria história (COSTA apud MARTINS, 1998, p. 200).

A citação é longa, mas necessária para entender as sutilezas do compromisso que a Costa
considera necessárias entre a arquitetura moderna e o ambiente dos centros históricos.

Ao final, ele sugere a Rodrigo de Mello Franco que solicite a Niemeyer a adoção de uma
cobertura em telhas de barro e o uso da tradicional treliça de madeira nas varandas da
frente, o que resultou na forma como o hotel foi construído.

Aceita neste caso, veremos que, apesar da reconhecida autoridade de Costa, sua posição
está longe de ser unânime, isenta de contestação ou mesmo de transformação.

Anos antes, o pioneiro Luís Nunes havia construído um reservatório de água de linhas
decididamente modernas em frente à Igreja Matriz de Olinda, talvez o centro histórico de
densidade cultural e arquitetônica mais próximo às de Ouro Preto.

Mas o caso da Igreja Matriz de São Salvador, conhecida como a Sé de Olinda, mostra
ainda a complexidade do processo de decisões da intervenção moderna em edifícios
históricos que são o resultado de sucessivas intervenções, naturais ou humanas, ao longo
do tempo.

O famoso Brazil Builds traz uma foto de Kidder Smith, da relação entre a caixa d’água de
Nunes e a Sé que mostra uma igreja, em 1943, que um visitante não mais encontra.
Entre 1974 e 1943, foi realizada uma “restauração” da igreja no contexto do Programa
Integrado de Reconstrução das Cidades Históricas do Nordeste. Renata Cabral (2016)
historia cuidadosamente o processo, lembrando que existem registros de várias Sés
diferentes ao longo do tempo: a fundacional, do século XVI, queimada pelos holandeses,
a reconstruída em na retomada portuguesa do séc. XVII, uma neobarroca constante de
fotografia do final do século XIX, uma neogótica a partir de 1910 e aquela que aparece
na foto de Kidder Smith, resultado de uma intervenção de 1930.

O intenso processo de debates na década de 70 oscilou entre a defesa da feição do século


XIX, a mais antiga de que se tinha registro fotográfico, um “projeto conjectural” do que
ela teria sido ao longo do período colonial e a posição que afinal prevalece, com a
intervenção de Lucio Costa que, apesar de já aposentado, valida a ideia de construção
das duas torres piramidais, como as conhecemos hoje, porque “a maioria das igrejas
portuguesas do século XVI tinham torres piramidais” e “a unidade formal do bem
restaurado é mais importante que sua historicidade”. (CABRAL, 2016)

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Em nenhum momento desse processo cogitou-se da remoção da caixa d’água que, ao
contrario, recebeu uma atualização mais recente, aproveitando sua posição para
transformação num mirante.

Voltando no tempo, o próprio Niemeyer, no início dos anos 50, demonstrará em seus
projetos para Diamantina - um ambiente histórico tão denso e significativo como uma
preto de Ouro - que não faria mais concessões a uma posição conciliatória entre o passado
e o presente. Naquela cidade, ele realiza três projetos, Diamantina Tennis Clube (1950);
O Hotel Tijuco (1951) e a Escola Julia Kubitschek (1954) nomeada em homenagem à mãe
do então governador e futuro presidente da República, Juscelino Kubitschek. Os três sem
nenhum traço da harmonização recomendada por Costa.

Essas e outras concepções diferentes viveram no SPHAN/IPHAN ao longo do século XX,


conforme declarado em relatórios e publicações.

Interessante destacar, entre os exemplos possíveis, o processo de construção e


consolidação da ambiência uniforme do centro histórico de Paraty, desde os anos 50 em
diante. (COSTA, 2015).

Declarada monumento nacional seis anos depois de seu tricentenário em 1960, toda
reforma adaptação ou construção em sua área tombada passou a depender da aprovação
dos técnicos do DPHAN.

O processo referente aos Solar dos Gerânios é exemplar para compreender como o órgão
conduz a dinâmica de adaptação da realidade física da cidade à imagem idealizada da
cidade colonial. O proprietário de um imóvel com terreno adjacente solicitou “autorização
para reforma e adaptação para hotel” mas se tratava, de fato, da construção de nova
edificação.

O DPHAN emite parecer de aprovação desde que a obra fosse executada de acordo “com
o projeto anexo, elaborado pela seção de projetos desta Diretoria”.

Em vários processos se expressa a preocupação de que eventuais novas edificações se


“diluíssem no conjunto do casario”, por meio de especificações detalhadas, das coberturas
em telha canal “de tipo antigo”, dos beirais e das cimalhas executadas “conforme os
modelos existentes nos sobrados antigos da cidade”, das paredes “caiadas de branco
sem qualquer barra inferior e as esquadrias pintadas a óleo nas cores adotadas pelo
patrimônio.” (DPHAN, Série obras/cidade de Paraty, processo 2607/60, in COSTA, 2016)

Qualquer turista desavisado que se hospede no hotel Solar dos Gerânios terá a sensação
de usufruir da ambiência de um legítimo sobrado oitocentista, exatamente na situação

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que Lúcio Costa pretendia evitar ao se opor ao projeto de Carlos Leão para o Hotel de
Ouro Preto.

Solar Do Unhão, Salvador-BA (1961-3)


No início dos anos 60, a intervenção de Lina Bo Bardi no solar do Unhão, introduziu no
Brasil o debate sobre a teoria da restauração crítica, desenvolvida na Itália no Brasil após
a Segunda Guerra Mundial e consolidada na Carta de Veneza, de 1964.

Figura 2: Solar do Unhão, o conjunto após a intervenção projetada e conduzida por Lina Bo Bardi. Salvador,

BA, 1961-3. Foto de: Nelson Kohn. Fonte: CERÁVOLO, 2013.

Sua intervenção, que adapta o conjunto histórico para a implantação do novo Museu de
Arte Moderna da Bahia, na orla de Salvador, é explicada e justificada em um raro
documento na história da intervenção arquitetônica no Brasil até então, que explicita os
princípios metodológicos e teóricos empregados no projeto arquitetônico de restauro.

Sua memória é relevante também, pois, permite registrar um histórico da restauração


em seu tempo, demonstrando o conhecimento de Bardi sobre o assunto e, ao mesmo
tempo, por revelar as diferentes posições dos técnicos dentro do SPHAN.

Lina Bardi não explica suas fontes, porém deixa claro as referências teóricas que, como
arquiteta, assume, filiando-se explicitamente à teoria da restauração crítica. Ao escrever
o texto que denomina "Critérios para o Restauro do Solar do Unhão"5, apoia-se
claramente nas formulações do teórico italiano Renato Bonelli6 e apresenta um caminho

5
O texto na íntegra foi publicado em CERÁVOLO (2013).
6
Ver Cerávolo (2020).

• 12
sem precedentes para a atuação profissional no Brasil, abrindo um universo novo, que irá
ser mostrar, a longo do tempo, intenso e produtivo.

A arquiteta propõe a restauração como projeto de arquitetura, como ato de


responsabilidade social em sua dimensão antropológica, valorizando as origens, os
desenvolvimentos físicos, materiais, culturais, as características étnicas, os costumes
sociais e as crenças. É isso, sobretudo, a nosso juízo, que faz de suas intervenções em
preexistências projetos exemplares que continuam a atrair o interesse dos profissionais
de diferentes nacionalidades e gerações.

A intervenção no casarão do século XVIII propõe a remoção da escada antiga e sua


substituição por uma nova, localizada no centro do salão, solta e escultórica, projetada e
construída com base nas técnicas tradicionais de carpintaria.

As decisões de Lina Bo não tiveram a boa vontade dos técnicos do SPHAN. Em


correspondência a Rodrigo de Mello Franco sobre a inauguração, em 1963, o responsável
regional mencionou que havia problemas na intervenção e que a obra apenas seguiu
adiante devido à orientação de Lucio Costa. Porém, lamenta que não foi possível "(...)
sugerir correções que abrasileirassem o conjunto, reintegrando-o em certos detalhes, na
melhor tradição local" (CERÁVOLO, 2013, p. 161).

Também lamenta detalhes como o tratamento dos arcos ou as cores brilhantes das portas
e janelas, ou ainda da solução dada à capela. Entre os temas de embate entre os técnicos
locais e a arquiteta estava a exigência de uma pesquisa prévia de natureza filológica para
orientar a intervenção no todo.

Lina Bardi admite fazê-lo, mas mal como apenas como "método" do trabalho e nunca
como um fim em si, ou como um elemento determinante do projeto. Desde então e até
sua morte, em 1992, seu escritório, integrado pelos arquitetos Marcelo Ferraz, Marcelo
Suzuki e André Vainer, realizou dezenas de projetos de restauro, constituindo-se como
um tipo de escola de intervenção em bens patrimoniais, que produziu algumas obras
reconhecidas internacionalmente, como o SESC Pompéia, do final da década de 1970.

Esses arquitetos continuaram a fazer trabalhos importantes desde então, a fim de manter
vivo o legado do trabalho deste protagonista da visão contemporânea do restauro no
Brasil, continuidade que certamente contribuiu para o reconhecimento atual do trabalho
de Lina Bo Bardi, que, como se sabe, recebeu o Leão de Ouro Especial na Bienal de Veneza
de 2021.

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PROTEÇÃO DAS OBRAS DE ARQUITETURA MODERNA NO BRASIL
Nos mais de quatrocentos imóveis ou sítios sob proteção legal no final dos anos 1940,
destacam-se alguns edifícios modernos.

Mais do que por seu número, é a natureza precoce da proteção, ou seja, sua posta em
valor formal como monumento e, por outro lado, a identidade dos autores dessas obras
e a estreita relação com as autoridades responsáveis por seu registro e proteção, que
atrai a atenção dos pesquisadores sobre o assunto.

Para diferentes autores, foi a projeção internacional da arquitetura moderna brasileira e,


em seguida, então identificada à chamada escola carioca, capitaneada por Lucio Costa e
Oscar Niemeyer, impulsionada ao estrelato internacional pela exposição e o livro Brazil
Builds, organizados por Philip Goodwin para o MoMA em 1943, e por uma extensa série
de números monográfico ou dossiês de revistas internacionais dedicados ao Brasil, que
ofereceu o argumento legitimador da proteção local.
Segundo esses autores, o registro das obras da arquitetura moderna no Brasil é uma das
mais precoces do mundo.

De fato, a pequena igreja de São Francisco de Assis, que integra o Conjunto da Pampulha,
projetada por Oscar Niemeyer em Minas Gerais, está reconhecida como monumento já
em 1947, menos de 4 anos depois de sua construção. E, neste caso, se agrega a
circunstância de ter sido declarada monumento nacional, em função de sua inegável e
surpreendente realização plástica, mesmo antes da hierarquia católica permitiu sua
consagração.

• 14
Figura 3: Vista do painel de azulejos da igreja de São Francisco de Assis, Conjunto da Pampulha, 1942.
Fonte: Acervos do autores, 2018.

O seguinte edifício reconhecido é o monumento moderno brasileiro por antonomásia, o


Ministério da Educação e Saúde, projetado por Lucio Costa e sua equipe de então jovens
arquitetos, sob a orientação de Le Corbusier. Foi inscrito no Livro de Registro em 1948,
apenas 3 anos após sua inauguração.

Já nos anos 50 e 60, seguem-se a Estação de Hidroaviões, de Attilio Corrêa Lima, cuja
imagem está na sobrecapa do Brazil Builds, registrada em 1957; o Parque de Flamengo
de Affonso Eduardo Reidy e Roberto Burle Marx, em 1965, ainda sem a conclusão das
obras de implantação.

Brasília também constitui, também neste tema, um capítulo à parte.

Em 1959, o chamado "Catetinho", pequena construção de madeira que servia de


hospedagem ao presidente Kubitscheck em suas frequentes viagens ao local para
acompanhar a construção do novo capital. Nesse caso, é particularmente interessante a
decisão de preservar um edifício que se supunha, inicialmente, provisório.

E, em uma curiosa repetição do caso de Pampulha, a Catedral de Brasília, de Oscar


Niemeyer, foi declarada Monumento Nacional em 1967, quatro anos antes de sua
inauguração.

A antropóloga Silvana Rubino (1996) chama a atenção para o fato de que a Costa e os
técnicos vinculados ao grupo de arquitetos cariocas (o próprio Niemeyer, Alcides Rocha
Miranda, Renato Soeiro e outros), “fizeram do registro patrimonial uma instancia de auto-
consagração. Inclusive porque enquanto registravam seus próprios marcos modernos,
eles deixavam de lado obras importantes do mesmo período ou do período imediatamente
anterior” (RUBINO, 1996, p. 105).

Mesmo com a saída de cena do grupo inicial (Costa se aposentou em 1972, embora tenha
se mantido como referência), o órgão continua realizando o registro e proteção,
basicamente, de obras do mesmo grupo. É o que acontece com o Hotel Park de Nova
Friburgo, de Lúcio Costa e o edifício-sede da Associação de Imprensa Brasileira, dos
Irmãos Roberto, em 1984; o Conjunto Residencial do Parque Guinle, de Costa, em 1986;
o conjunto arquitetônico e paisagístico de Pampulha, de Niemeyer e Burle Marx, em 1997,
meio século após o registro da igreja que o compõe.

Somente com a criação dos órgãos estatais de preservação patrimonial é que se começa
a definir a proteção de obras de outros âmbitos da produção arquitetônica, como as casas
pioneiras de Warchavchik, em 1987, ou a Casa de Vidro de Lina Bardi, protegida em 2007.

• 15
No entanto, segundo José Pessôa, um dos mais atentos pesquisadores da atuação de
Costa no IPHAN, o acervo de arquitetura moderna registrada e protegida no Brasil ainda
é pequena diante da importância dessa arquitetura, o que se pode atribuir ao fato de que
não foi realizado um amplo inventário para apoiar uma ação sistemática de preservação
dos exemplares notáveis dessa produção (PESSÔA, 2006).

DILEMA CONCEITUAL: A OBRA DEVE SER PROTEGIDA DE SEU AUTOR?

Antes de concluir esta apresentação, talvez seja interessante indicar um terceiro eixo de
nossa reflexão: as intervenções do próprio autor em suas obras protegidas.

Esta é obviamente uma questão geral, mas permaneceremos no caso mais famoso e
controverso, o das recorrentes intervenções de Oscar Niemeyer em sua própria obra.

O caso do plano piloto de Brasília é certamente o mais emblemático. O enredo começa


com a proteção do Plano Piloto, isto é, da área central de Brasília, determinada pelo
Governo do Distrito Federal no início dos anos 1960. Lá se determina que a área central
da cidade e, em particular, o Eixo Monumental não pode ser modificado, exceto por
projeto de seus autores.

Estabelecida legalmente a curiosa situação de uma cidade que tem “autores” e que,
apesar de estar protegida, pode ser transformada por seus autores, Niemeyer se
aproveitou disso para uma série de intervenções que, para muitos críticos, desfiguraram
progressivamente o sítio original.

Os diferentes edifícios e anexos para o Tribunal de Contas, o Mausoléu de Tancredo Neves,


o Museu de Brasília ou a mais recente Biblioteca Nacional não deixaram de provocar
controvérsias, que o já velho mestre em geral não levou em consideração.

Curiosamente, foi o outro autor, Lucio Costa, em uma intervenção post-morten, quem
impediu, em 2009, que Niemeyer levasse adiante a proposta de construir uma praça com
obelisco no meio da Esplanada dos Ministérios, sob o pretexto de comemorar o meio
centenário da capital.
Foi uma manifestação pública de Maria Elisa Costa, filha de Lucio, lembrando de a vontade
expressa do velho urbanista de que nada se interpusesse na visada entre a rodoviária de
Brasília e a Praça dos Três Poderes, que finalmente conseguiu fazer com que o já
centenário arquiteto abrisse mão de sua proposta.

Uma outra face das relações entre Niemeyer e seus trabalhos legalmente protegidos
ocorreu quando Niemeyer venceu, mas apenas parcialmente, uma luta judicial em relação

• 16
à construção de um auditório no Parque de Ibirapuera, projeto de uma equipe liderada
por ele mesmo e construído por ocasião do Comemoração do IV Centenário da fundação
de São Paulo, em 1954.

Como o parque estava legalmente protegido desde 1997, Niemeyer só conseguiu


construir o auditório, em 2005, depois de argumentar que o projeto inicial do parque já
previa construção. Mas, curiosamente, não lhe foi permitido completar alguns metros da
famosa marquise gigante para chegar à entrada do novo equipamento cultural, que agora
leva o nome do mestre.

A modo de conclusão, recordamos que, na última década, várias superintendências


regionais haviam começado a realizar em suas respectivas regiões, embora sem
coordenação nacional eficaz, inventários de arquitetura, urbanismo e paisagismo
modernos.
Mas esses esforços esbarram, desde o início do governo negacionista de Jair Bolsonaro,
em 2018, dificuldades de toda a ordem. Muitos técnicos e pesquisadores com formação e
longo desempenho na área vem sendo substituídos, nos cargos de direção, nacionais e
regionais, por pessoas sem nenhuma relação com o Patrimônio e sem nenhum
conhecimento técnico.

Talvez o momento mais explícito da atual guerra cultural do governo brasileiro contra os
marcos de identidade cultural da nação tenha sido a intenção anunciada, de vender à
iniciativa privada o monumento mais emblemático da arquitetura moderna no Brasil, o
Palácio de Capanema, nome atual do Edifício do Ministério da Educação e Saúde.

O caráter puramente ideológico e antimoderno dessa ação é ainda mais evidente quando
se sabe que o edifício do Ministério havia passado nos últimos anos por um processo de
restauração caro e cuidadoso, realizado por equipes técnica sob coordenação e
fiscalização do IPHAM e a um custo estimado de 20 milhões de dólares, patrocinado pelos
Petrobras.

A reação organizada de instituições e personalidades, nacional e internacional, pelo


menos atraiu a atenção para o problema e deu início a um longo debate. Afinal, houve
manifestação formal do judiciário lembrando que é proibida a alienação de bem publico
tombado, mas isso não garantiu a preservação de um número significativo de outros
imóveis de interesse histórico que integravam a lista de privatização.
A sanha privatizante não é exclusividade do bolsonarismo nem do âmbito federal. Em São
Paulo temos assistido a dois processos exemplares, para bem e para mal, da luta pela
preservação de equipamentos públicos de valor cultural.

No caso do Estádio do Pacaembu, cuja concessão não foi possível impedir, inclusive pela
subserviência dos órgãos de preservação, que tiveram suas composições alteradas, um

• 17
espaço de significação histórica para a memória da cidade e do esporte mais popular do
país, vem sendo escandalosamente desfigurado e transformado em mais um espaço de
consumo para ricos. Suas arquibancadas foram totalmente destruídas e o episódio de
escarnio mais recente foi a venda por uma conhecida rede de venda móveis, de cadeiras-
fetiche montadas a partir dos assentos arrancados do estádio, a preços apenas menos
escandalosos do que o contrato sigiloso que pretendia incluir ilegalmente na concessão
também a Praça Charles Muller, fronteiriça ao estádio.

Mais auspicioso, por enquanto, é o caso do complexo esportivo do Ginásio do Ibirapuera,


neste caso um bem estadual, cuja concessão, com autorização de alterações físicas não
claramente delimitadas, foi bloqueada por uma ação civil pública assinada por esportistas,
arquitetos e algumas personalidades da área jurídica. O governo do Estado já recorreu
por mais de uma vez e, por ora, a concessão está suspensa. Mas a ameaça não foi
superada.

Para o patrimônio e a cultura, como para a Amazônia, para populações originais ou


quilombolas, para a ciência e as universidades, como para 30 milhões de pessoas com
fome, a luta no Brasil, neste momento é, literalmente, pela sobrevivência.

• 18
REFERÊNCIAS
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ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 15/08/2022.
BRASIL. Decreto-lei nº 25, 1937. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-
lei/del0025.htm. Acesso em 15/08/2022.
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âmbito do Programa Integrado de Reconstrução das Cidades Históricas do Nordeste. Anais do
Museu Paulista: História E Cultura Material. São Paulo. n. 24, pp. 181-203, 2016.
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colonial de Paraty RJ. Anais do XIV SHCU. Seminário de História da Cidade e do Urbanismo.
São Carlos. 2016.
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Nacional. Ministério da Educação e Saúde. Serviço de Documentação. Rio de Janeiro, 1952.
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arquitetura. Porto Alegre: UniRitter, 2007.
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Janeiro: Flama Ramos, 2008.
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moderno. A obra de Lucio Costa 1924-1952. Dissertação (Mestrado) – FFLCH USP. São
Paulo. 1988.
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no Brasil. Olinda-PE: Prefeitura de Olinda, 1988.
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VELOSO, Mariza. Nasce a Academia SPHAN. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional. Rio de Janeiro, nº 24, pp. 77-95, 1996.

• 19
REDES URBANAS DO RIO GRANDE DO SUL NA PRIMEIRA
METADE DO SÉCULO XIX
Uma interpretação a partir de Saint-Adolphe1
URBAN NETWORKS IN RIO GRANDE DO SUL DURING THE FIRST
HALF OF THE 19TH CENTURY / REDES URBANAS EN RIO GRANDE DO
SUL EN LA PRIMERA MITAD DEL SIGLO XIX
Eixo Temático 2: Práticas, processos e institucionalidades

KRAUSE, Cleandro
Doutor em Planejamento Urbano e Regional (Universidade Federal do Rio de Janeiro);
Técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
cleandrokrause@uol.com.br

1 Este trabalho apresenta resultados da pesquisa em rede “Urbanizações Brasileiras no século


XIX”, coordenada pela Prof.ª Fania Fridman (IPPUR/UFRJ), sendo o autor deste trabalho
responsável pelo levantamento da província do Rio Grande do Sul.
RESUMO

Este trabalho é parte de um projeto de pesquisa coletivo sobre as urbanizações


das províncias brasileiras ao longo do século XIX. Especificamente, buscamos
uma representação das redes urbanas do Rio Grande do Sul a partir de
elementos presentes na obra de Saint-Adolphe, o Dicionário Geográfico,
Histórico e Descritivo do Império do Brasil, publicado em 1845 e recentemente
reeditado. Saint-Adolphe proporciona informações sobre as localidades e os
fluxos econômicos entre elas, o que permite a representação proposta, de
redes urbanas hierárquicas. Por sua vez, as informações sobre infraestruturas,
serviços e estruturas espaciais, os fixos – portos, estradas, aduanas,
fortificações etc. – proporcionam uma leitura do ordenamento territorial. Ainda
que incipiente, especialmente no caso do Rio Grande do Sul, cuja urbanização
foi tardia, vislumbramos “futuros possíveis” marcados por diferenças internas
da província. Essa leitura se complementa com as opiniões de viajantes
estrangeiros contemporâneos, tanto sobre temas do ordenamento territorial,
como da ocupação humana e seus avanços para novas áreas de colonização.
O retrato obtido é de contrastes entre os modos como esses avanços poderiam
se dar, indícios de diferenças e desigualdades do território que viriam a se
manter e aprofundar.

PALAVRAS CHAVE Geografia histórica urbana; Redes urbanas; Século XIX;


Rio Grande do Sul; J. C. R. Milliet de Saint-Adolphe.

RESUMEN

Este trabajo es parte de un proyecto de investigación colectiva sobre las


urbanizaciones de las provincias brasileñas a lo largo del siglo XIX.
Específicamente, buscamos una representación de las redes urbanas de Rio
Grande do Sul a partir de elementos presentes en la obra de Saint-Adolphe, el
“Diccionario Geográfico, Histórico y Descriptivo del Imperio de Brasil”,
publicado en 1845 y recientemente reeditado. Saint-Adolphe proporciona
informaciones sobre las localidades y los flujos económicos entre ellas, lo que
permite la representación propuesta de redes urbanas jerárquicas. A su vez,
la información sobre infraestructuras, servicios y estructuras espaciales, las
fijas – puertos, carreteras, aduanas, fortificaciones, etc. – proporciona una
lectura del ordenamiento territorial. Aunque incipiente, especialmente en el
caso de Rio Grande do Sul, cuya urbanización fue tardía, visualizamos “futuros
posibles” marcados por diferencias internas en la provincia. Esta lectura se
complementa con las opiniones de viajeros extranjeros contemporáneos, tanto
en temas de ordenamiento territorial, como de la ocupación humana y sus
avances hacia nuevas zonas de colonización. El cuadro obtenido es de
contrastes entre las formas cómo estos avances podrían darse, indicios de

• 2
diferencias y desigualdades en el territorio que vendrían a mantenerse y
profundizarse.

PALABRAS-CLAVE Geografía histórica urbana; Redes urbanas; Siglo XIX; Rio


Grande do Sul [Brasil]; J. C. R. Milliet de Saint-Adolphe.

• 3
INTRODUÇÃO
Este trabalho propõe uma caracterização das redes urbanas do Rio Grande do Sul, sendo
parte de um projeto de um coletivo de pesquisadores sobre as urbanizações brasileiras
no século XIX, com o objetivo de reconhecer as diferenças do processo de urbanização
de cada uma das províncias, tendo por fundamento a definição de uniformidade
metodológica para a construção de bases conceituais e de dados coesas.
Para o período que corresponde à primeira metade do século XIX, a principal obra de
referência desta pesquisa é o Dicionário Geográfico, Histórico e Descritivo do Império do
Brasil, de J. C. R. Milliet de Saint-Adolphe, que proporciona uma visão abrangente e
categorizada das povoações existentes pouco antes da metade do século. Sua primeira
edição ocorreu em 1845 e, em 2014, o Dicionário de Saint-Adolphe foi reeditado pela
Fundação João Pinheiro e pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.
A província de São Pedro do Rio Grande do Sul era uma das 18 existentes à época. Ela
constituía, no começo do século XIX, um território de incorporação recente ao que viria a
ser o Brasil. Somente uma povoação havia sido elevada a vila no século XVIII (Rio
Grande) e apenas três cidades – Porto Alegre, Rio Grande e Pelotas – passaram a essa
condição no período aqui examinado, todas elas no curto intervalo entre 1822 e 1835.
Não bastasse a raridade de ocupações que poderiam ser qualificadas de urbanas, um
quadro de decréscimo populacional foi causado pela guerra civil conhecida como “dos
Farrapos” ou “Revolução Farroupilha”, entre os anos de 1835 e 1845. Vale lembrar outro
conflito após a Independência, que teve como objeto a província Cisplatina, reclamada
pelo governo imperial do Brasil, e que se encerrou em 1828, com a criação do Uruguai
enquanto estado tampão entre o Brasil e as Províncias Unidas do Rio da Prata, a futura
República Argentina. Durante o período da guerra civil, ou mais precisamente entre 1834
e 1843, não entraram novos colonos na província, interrompendo momentaneamente um
projeto de imigração europeia que fora iniciado, no Rio Grande do Sul, em 1824.
O levantamento realizado em 1814 a mando do governador da província estimou a
população do Rio Grande do Sul em 70.656 habitantes e o próximo dado disponível,
relativo a 1846, estimou-a em 149.363 habitantes. Esses dados, separados por um
intervalo de 32 anos, não são capazes de revelar as variações, para menos e para mais,
que teriam ocorrido ao longo do período. Contudo, em comparação com estimativas de
outras províncias, pode-se ter uma ideia da pequena densidade demográfica da província
do extremo sul, pois, em 1845, São Paulo já teria 360 mil habitantes; a província do Rio
de Janeiro (sem a Corte), em 1850, 556.080 habitantes; e Minas Gerais, em 1847,
908.816 habitantes (SILVA, 1951 [1870]). Por outro lado, o Rio Grande do Sul
provavelmente excederia a população do Uruguai, estimada em 70 mil habitantes em
1830, dos quais somente 23 mil viviam nos três extensos departamentos que faziam
fronteira com o Brasil (BARACCHINI; ALTEZOR, 2008, p. 107).
Na seção a seguir, faremos uma proposta de representação hierárquica da rede urbana,
apoiando-nos especialmente em Saint-Adolphe. A seguir, detalharemos as informações
sobre freguesias, vilas e cidades, que basearam a proposição de um desenho da rede
urbana. Como o mesmo Dicionário também contém verbetes sobre as diversas

• 4
infraestruturas que constituiriam o ordenamento territorial da província, faremos uma
sistematização desses fixos, associando-os à rede urbana. Com isso, indicaremos alguns
“futuros possíveis” para o povoamento e a economia do Rio Grande do Sul. Por fim, de
modo complementar e mais especulativo, faremos um apanhado de “visões de futuro” de
viajantes estrangeiros que estiveram no Rio Grande do Sul na primeira metade do século
XIX, conforme as expressaram em seus relatos.

UMA PROPOSTA DE REPRESENTAÇÃO DA REDE URBANA DA PROVÍNCIA


Uma primeira consideração a ser feita refere-se ao número de municipalidades do Rio
Grande do Sul durante a primeira metade do século XIX. A primeira divisão municipal
ocorreu em 27 de abril de 1809, por meio da Real Resolução que tornou vilas as
povoações de Porto Alegre, Rio Grande, Rio Pardo e Santo Antônio da Patrulha, na então
Capitania de São Pedro do Rio Grande do Sul. Contudo, a divisão político-territorial e
administrativa dessas quatro vilas, incluindo sua subdivisão em freguesias, só viria a
constar na Provisão Real de 7 de outubro do mesmo ano (RIO GRANDE DO SUL, 2018).
A próxima representação da evolução da divisão político-administrativa apenas retratará
a situação em 1872, momento em que haveria 28 municípios, entre vilas e cidades (RIO
GRANDE DO SUL, op. cit.). Trata-se da conhecida divisão presente no recenseamento
realizado naquele ano, o primeiro que cobriu todo o território nacional (IBGE, 2011).
Assim, ainda é necessário buscar precisar o número de municipalidades existentes em
meados do século XIX. Weimer (2004) refere-se, por ocasião da deflagração da guerra
civil em 1835, à existência de 14 municípios naquele ano. A seguir, afirma que, até 1860,
o número de municípios teria dobrado em relação a 1835 (WEIMER, op. cit., p. 131), o
que equivaleria aos mesmos 28 municípios recenseados em 1872.
Examinando-se as datas de criação das vilas entre 1809 e 1850, chega-se ao número de
19 novas municipalidades2, que, junto às quatro iniciais, somariam 23 municipalidades
em meados do século. Por sua vez, os verbetes do Dicionário de Saint-Adolphe referem-
se à existência de 18 municípios, quantitativo que exclui, obviamente, aqueles que foram
criados após a publicação da primeira edição daquela obra: Bagé, Uruguaiana, Taquari,
Encruzilhada do Sul e Vacaria. Destes, todos correspondiam a freguesias, conforme
descritas por Saint-Adolphe, com exceção de Uruguaiana, à qual não foi encontrada
menção em nenhum verbete, o que nos levou a decidir por sua não inclusão em nossa
representação.
A mesma obra proporciona diversas informações que permitem a representação de
posições relativas e de fluxos entre os lugares registrados nos verbetes. Aqui

2 Foram criadas as vilas de: Santo Amaro em 1811 (município extinto atualmente), Cachoeira
[do Sul] e Mostardas em 1819, São José do Norte em 1820, São Leopoldo em 1825, Pelotas e
Piratini em 1830, Triunfo, Alegrete e Caçapava [do Sul] em 1831, Jaguarão em 1832, Cruz
Alta em 1833, São Borja em 1834, Canguçu em 1835, Bagé e Uruguaiana em 1846, Taquari
e Encruzilhada [do Sul] em 1849, Vacaria em 1850 (extinta em 1857 e recriada em 1878).
Ainda cabe registrar que São Luiz das Missões [Gonzaga], vila criada em 1817, foi extinta em
1834 e recriada em 1880.

• 5
representamos nossa interpretação dos relacionamentos entre cidades, vilas e freguesias.
Para as demais categorias (povoação, aldeia, lugar, lugarejo, arraial etc.), encontramos
muitos casos de indefinição de localização, sem referências atuais, e de vínculos pouco
explicitados com outros centros urbanos, tendo optado por não representá-las3. Assim,
os vínculos utilizados são de três naturezas: (i) político-administrativa, baseados
principalmente em desmembramentos, conforme a “Genealogia dos municípios do Rio
Grande do Sul” (RIO GRANDE DO SUL, 2018) e, também, em Saint-Adolphe; (ii) fluxos
econômicos entre centros urbanos, conforme mencionados por Saint-Adolphe; e (iii)
eclesiásticos, de dependência entre freguesias e matrizes, também descritos pelo mesmo
autor. A representação proposta para esses vínculos está na figura a seguir.

Cidade Vila I Vila II Vila III Freguesia

Porto Alegre
Viamão (dep. Laguna/SC)
Gravataí
Capela de Santana
Rio Pardo
Cachoeira do Sul
Caçapava do Sul
Camaquã
Alegrete
Cruz Alta
São Borja
São Luiz Gonzaga (ex vila e comarca)
Encruzilhada do Sul*
Santo Antônio da Patrulha
Lombas
Osório
Vacaria*
Triunfo
Santo Amaro
Taquari*
São Leopoldo

Rio Grande
Taim
Piratini
Jaguarão
Arroio Grande
Herval
Canguçu
Bagé*
São José do Norte
Mostardas**
Pelotas
Cerro da Buena
São Lourenço do Sul

Figura 1: Representação proposta das redes urbanas da província de São Pedro do Rio Grande do Sul em
meados do século XIX. Fonte: elaboração própria.
Notas: Foram considerados os nomes atuais. *Referida como freguesia por Saint-Adolphe. **Referida
tanto como vila como freguesia por Saint-Adolphe. Em fonte maior: maiores centros, com população ao
redor de 12 mil habitantes (estimada por Saint-Adolphe). Em fonte em negrito: presença de estrada
e/ou porto. Em fonte em itálico: sede de comarca.

A representação por nós proposta da rede urbana do Rio Grande do Sul inclui uma
hierarquia das vilas, em três níveis. O primeiro nível inclui as duas vilas dentre as

3A partir das informações compiladas por Saint-Adolphe, podemos contabilizar que o Rio
Grande do Sul teria 44 outros núcleos de população, nessas categorias.

• 6
primeiras a serem criadas que ainda não haviam sido elevadas a cidade, Rio Pardo e
Santo Antônio da Patrulha, assim como a maioria das vilas que contavam com um porto
ou estavam à beira das estradas descritas por Saint-Adolphe; optou-se também por
incluir, no primeiro nível, a vila de Piratini, pois esta era sede de comarca 4. As vilas no
segundo nível hierárquico correspondem a desmembramentos das primeiras (conforme
RIO GRANDE DO SUL, 2018), incluindo São Borja, que, mesmo sendo sede de comarca,
foi a última a ser criada e desmembrada de Rio Pardo. Por sua vez, no terceiro nível estão
vilas desmembradas daquelas do segundo nível (caso das “pequenas vilas” de Caçapava
do Sul e Alegrete) e as criadas mais próximo ao final da primeira metade do século, tendo
sido mencionadas ainda como freguesias por Saint-Adolphe; por sua vez, optamos por
representar São Luiz Gonzaga nesse mesmo nível, para registro histórico da ex vila e ex
sede de comarca.

DETALHAMENTO DE INFORMAÇÕES SOBRE FREGUESIAS, VILAS E CIDADES,


QUE APOIARAM A PROPOSIÇÃO DE UM DESENHO DA REDE URBANA
Na obra de Saint-Adolphe, poucos verbetes sobre freguesias não têm informações sobre
o distrito (termo) ao qual pertenciam ou à matriz da qual dependiam. Nesses casos,
buscou-se informações em outros verbetes ou referências. Assim, Viamão poderia ser
representada como freguesia dependente de Laguna (Santa Catarina), como o era no
momento de sua criação, e não de Porto Alegre. De qualquer modo, Viamão faz parte,
obviamente, da rede urbana de Porto Alegre, haja vista a grande proximidade da capital
da província, tendo sido escolhido este último vínculo. Outro caso que vale observar é o
de Encruzilhada do Sul, descrita por Saint-Adolphe no termo da vila de Caçapava do Sul,
mas dependente da matriz de Rio Pardo, vínculo este que foi escolhido para
representação.
Outros dois casos referem-se à área de ocupação antiga ao longo do istmo entre a Lagoa
dos Patos e o Oceano Atlântico, caminho terrestre entre Laguna e a Colônia do
Sacramento. Mostardas conta com um verbete que a define como freguesia, mas é
considerada vila no verbete sobre a província, tendo sido mantida apenas a última
representação, subordinada à vila de São José do Norte. Também no distrito dessa última,
a localidade do Estreito está descrita como simples povoação, tendo perdido o título de
paróquia para São José do Norte em 1820. No Diccionario Topographico do Imperio do
Brasil, essa povoação já era qualificada como “muito decadente” (PEREIRA, 1834, p. 54);
assim, não foi representada.
Passando às vilas, as informações trazidas por Saint-Adolphe são mais abrangentes,
permitindo a constatação de alguma diferença de hierarquia entre elas, seja em função

4A hierarquia urbana de Piratini é controversa, havendo tanto descrições, em 1839, de uma


povoação muito simples e sem estrutura para receber uma sede de governo como pretendida
pela República Farroupilha, quanto a indicação de que já havia casarões assobradados que
serviram de Ministério de Guerra e Fazenda e Palácio do Governo da República no período
entre 1836 e 1845 (OLIVEIRA, 2022, p. 55).

• 7
de sua população, seja de outras qualificações. Sete delas são referidas como “pequena
vila” e outras duas, como “nova vila” – indício de urbanização incipiente. Outro caso
interessante é o de São Borja, "antiga missão" e única das aldeias que correspondiam às
antigas reduções jesuíticas dos indígenas Guarani elevada a vila. Essa informação, assim
como a de que São Borja era cabeça de comarca, está presente no verbete referente a
outra aldeia, a de São Luiz (atualmente São Luiz Gonzaga), que havia sido elevada a vila
e sede da “quinta comarca” das Missões em 1817, mas que perderia esses títulos para
São Borja em 1835. Ainda sobre essa porção da província, há referência a uma estrada
“que vai de São Luiz das Missões para a cidade de Porto Alegre”. Não obstante a enorme
distância a ser percorrida, a importância estratégica dessa ligação foi percebida por Saint-
Adolphe, pois “no caso de guerra com os Estados Argentinos e Cisplatinos, podem aqueles
produtos serem encaminhados pela serra Geral [sic], para lugares mais vizinhos do rio
Jacuí, e serem facilmente transportados também por água para a cidade de Porto Alegre
ou para a do Rio Grande, e para vila de São José” (conforme trecho que está no verbete
“São Luiz das Missões”). Infere-se assim que a ligação preferencial com a região
missioneira ainda seria a fluvial, pelo rio Uruguai e rio da Prata, mas a estrada referida
também seria capaz de integrá-la à rede urbana de Porto Alegre, tendo sido assim
representada.
Entre os “lugares mais vizinhos do rio Jacuí” mencionados pelo autor, desponta a vila de
Rio Pardo, verdadeira cabeça de ponte do avanço de ocupação da província a oeste,
elevada a vila em 1809, apenas um ano após Porto Alegre, a cuja rede urbana
naturalmente se vincula. Um grupo de três vilas foi subordinado a Rio Pardo, compondo
o maior número de ramificações nesta representação da rede urbana: Cachoeira do Sul
e, por sua vez, Caçapava do Sul e Alegrete. Nota-se ainda que Rio Pardo, com seu
extenso termo original, tinha população de 10.445 habitantes em 1814, muito mais
próxima das populações das cidades de Porto Alegre e Rio Grande, 12 mil habitantes em
cada uma, referidas por Saint-Adolphe ao tempo de seu levantamento, do que da
população de qualquer outra vila. Além disso, Rio Pardo era sede de comarca desde 1819.
Agregam-se à rede urbana de Porto Alegre outras duas vilas sobre o rio Jacuí, Triunfo e,
subordinada a esta, a “pequena vila” de Santo Amaro, que posteriormente perderia status
de municipalidade, passando a distrito do município de General Câmara.
As vilas remanescentes na rede urbana de Porto Alegre estão a leste: Santo Antônio da
Patrulha e São Leopoldo. A primeira, de vasto termo que abrangia os campos de cima da
serra e parte da estrada de tropas entre o Rio Grande do Sul e São Paulo, viria a dar
origem ao município de Vacaria. Santo Antônio, mesmo que fosse classificada por Saint-
Adolphe como “pequena vila”, tinha papel importante como ponto de passagem nesse
comércio. Por sua vez, a vila de São Leopoldo também seria beneficiada com a construção
de uma ligação terrestre a partir de 1832. Saint-Adolphe informa que "o Imperador
mandou abrir uma estrada na serra à custa do Estado, para facilitar a comunicação com
esta nova vila". Como a sede urbana de São Leopoldo situa-se em uma planície próxima

• 8
a Porto Alegre, infere-se que se tratava de comunicação com o hinterland da vila, ou seja,
com as colônias de imigrantes europeus que a teriam como centro urbano de referência5.
As informações sobre vínculos político-administrativos, econômicos e eclesiásticos
apontam com muita clareza para uma separação entre redes urbanas, polarizadas seja
por Porto Alegre, seja pelas duas cidades situadas ao sul da província. Se é fácil agrupar
os centros de população em duas redes, uma ao norte e outra ao sul, é mais difícil separar
os vínculos entre Pelotas e Rio Grande, de modo que propusemos a sua representação
em uma só rede urbana.
Chama atenção que a rede urbana de Rio Grande e Pelotas seja muito menos extensa e
ramificada que a de Porto Alegre, com destaque econômico apenas para essas duas
cidades. Rio Grande, mais antiga povoação e principal porto da província, estendia
naturalmente sua influência à vila de São José do Norte, situada à sua frente e
correspondendo a um porto menos abrigado. Pelotas e Piratini também foram
desmembradas do termo inicial de Rio Grande, sendo Pelotas elevada a cidade apenas
cinco anos após a criação da vila, o que seria um indicativo de sua rápida evolução urbana,
populacional e econômica, capitaneada pelas atividades das charqueadas. Quanto às
demais vilas, não obstante ser Piratini sede de comarca, era qualificada por Saint-Adolphe
como “pequena vila”, mesmo caso de Jaguarão. Por sua vez, Canguçu seria apenas uma
“nova vila”. Nenhuma das três era atendida por estradas ou portos, segundo o que foi
possível encontrar em Saint-Adolphe, o que seria um indicativo de seu baixo dinamismo6.
Em nossa representação, Pelotas somente estenderia sua influência a duas freguesias
dependentes de sua matriz. Contudo, apesar de terem sido as vilas de Jaguarão e Piratini
desanexadas do termo de Rio Grande, elas encontram-se mais próximas e acessíveis por
terra a Pelotas (e, no caso de Jaguarão, também por via fluvial e lacustre), podendo-se
admitir que mantivessem fluxos econômicos tão ou mais importantes com esta última –
razão, inclusive, para considerarmos ambas as cidades conjuntamente como cabeças de
uma só rede urbana.

5 Na primeira metade do século XIX, foram fundadas quatro colônias de imigrantes europeus
por iniciativa do governo imperial: a já citada São Leopoldo (1824); Três Forquilhas e São
Pedro de Alcântara, ambas em 1826 e no atual município de Torres; e Feliz, em 1845, no
município de São Sebastião do Caí (em localização que corresponde ao atual município de
Feliz). Outra iniciativa estatal foi do governo provincial, que fundou a colônia de Santa Cruz,
no atual município de Santa Cruz do Sul, em 1849. Além dessas, doze colônias foram fundadas
por particulares: Mundo Novo (1846) e Morro Pelado (1850), ambas no município de Taquara;
Sommerschneis (1844), Fazenda Padre Eterno (1850) e Leoner Hof (1850), no município de
São Leopoldo; Vigia (1827), São Sebastião (1848) e Chapadão (1850), no município de São
Sebastião do Caí; duas colônias denominadas “Forromeco” no município de Montenegro (1846
e 1850); Rincão del Rei (1850), no município de Rio Pardo; e Pinhal (1843), no município de
Santa Maria (CEM ANOS DE GERMANIDADE..., 2005, p. 608-616). Segundo a mesma fonte,
teriam entrado no Rio Grande do Sul 7.491 imigrantes entre 1824 e 1853, dos quais pouco
mais de um terço apenas no intervalo 1847-1853 (ibid., p. 71).

6 Como já anotado, Piratini cumpriu papel de sede do governo Farroupilha durante parte do
período em tela. Podemos cogitar que isso esteja relacionado à criação da comarca da qual é
sede, mas não encontramos menção ao ano em que teria sido criada, e mesmo a informação
de que era cabeça de comarca está presente apenas no verbete “Missões”, sobre a comarca
de mesmo nome.

• 9
Portanto, consideramos a existência de duas redes urbanas separadas na província, em
meados do século XIX. Como dito, ambas se diferenciariam por seu porte, densidade e
complexidade de ramificações. O Quadro 1 resume alguns desses indicadores.

Nome da rede urbana Porto Alegre Rio Grande -


Pelotas
Número de municipalidades 15 8
Número de sedes de comarcas 3 2
Número de vilas classificadas como “novas” ou 9 (60%) 4 (50%)
“pequenas”, incluindo freguesias elevadas a vilas
no final do período (entre parênteses, proporção
do total de municipalidades em cada rede urbana)
Número de municipalidades com portos e/ou 7 (47%) 3 (37%)
estradas (entre parênteses, proporção do total)
População em 1803* (entre parênteses, 25.431 (69%) 11.290 (31%)
proporção da população total da província)
População em 1814* (entre parênteses, 51.131 (72%) 20.008 (28%)
proporção do total)
Quadro 1 – Informações sobre municipalidades nas redes urbanas de Porto Alegre e Rio Grande –
Pelotas. Fonte: elaboração própria.
Nota: *distribuição entre redes urbanas dos dados populacionais compilados por Macedo (1968, p. 72).

Se já foi possível reunir elementos que apontam para diferenças quantitativas, nos
perguntamos agora se essas duas redes urbanas também teriam naturezas distintas. Ou
seja, se suas atividades econômicas e suas dinâmicas populacionais indicariam elementos
que as distinguiriam. É certo que a condição de Porto Alegre como capital da província
poderia denotar uma posição administrativa hierarquicamente superior à das demais
cidades da província. Contudo, trata-se aqui de um período, que Singer (1977, p. 153)
fixa entre 1820 e 1858, em que Porto Alegre perderia a primazia comercial para Rio
Grande, momento em que o charque estava valorizado no país e, portanto, trazia
benefícios à última cidade, principal porto de exportação daquele produto de sua
hinterland, bem como a Pelotas, principal centro de sua produção 7. Por sua vez, o porto
de Porto Alegre seria, naturalmente, escoadouro da produção da depressão central do Rio
Grande do Sul, onde estava a maior parte dos centros urbanos por nós dispostos em sua
rede de influência. O charque não era o principal produto de exportação dessa parte da
província, ao contrário, os produtos aí se diversificavam em uma região de colonização
em contínua expansão.
De qualquer modo, ambas as cidades seguiriam rivalizando em importância comercial,
algo que nem se resolveria até o final do período imperial, tanto que uma afirmação da

7 Souza e Müller (1997, p. 59) compilam dados do relatório apresentado pelo vice-presidente
da província em 1861, que dão conta da primazia de Rio Grande como porto exportador de
derivados da pecuária, em relação a Porto Alegre: a quantidade de couros (em unidades)
exportados pela primeira era cerca de três vezes a da última, e a diferença na quantidade de
charque (em arrobas) era ainda maior, 13 vezes. Por outro lado, no mesmo ano Porto Alegre
destacava-se pela exportação de produtos agrícolas, mostrando as seguintes proporções
(aproximadas) em relação às quantidades dos mesmos produtos exportadas por Rio Grande:
erva mate, três vezes; farinha de mandioca, nove vezes; feijão, 52 vezes; milho, 441 vezes.

• 10
capitalidade de Porto Alegre permaneceria como projeto dos gestores municipais na longa
continuidade administrativa da República Velha, em ondas de modernização que
buscariam confirmá-la como “sala de visitas” do Rio Grande do Sul (BAKOS, 2013).

INFRAESTRUTURAS, SERVIÇOS E ESTRUTURAS ESPACIAIS, E SUAS


DISTINÇÕES ENTRE REDES URBANAS
Mais do que buscar outros dados quantitativos que possam demonstrar alguma primazia
de uma cidade ou rede urbana sobre a outra, ou do que recorrer à descrição exaustiva
das atividades econômicas então correntes, trata-se agora de reunir informações que
mostrem indícios de ordenamento territorial e, portanto, de “futuros possíveis” para a
província. Isso é viável em uma leitura da obra de Saint-Adolphe, a partir da qual foram
sistematizadas referências a infraestruturas, serviços e estruturas espaciais – em uma
palavra, os fixos presentes na província – conforme diretriz geral do presente projeto de
pesquisa. O Quadro 2 resume a ocorrência desses fixos e inclui sua associação, por nós
atribuída, às duas redes urbanas propostas.

Tipos de infraestruturas e Porto Alegre Rio Grande – Total


redes urbanas Pelotas

Portos 5 3 8
Registros e aduanas 5 6 11
Estradas ou caminhos 4 1 5
Fortes 1 4 5
Núcleos coloniais 1 - 1
Quadro 2 – Quantidades de infraestruturas, serviços e estruturas espaciais na província do Rio Grande
do Sul e sua distribuição nas redes urbanas propostas, em meados do século XIX. Fonte: elaboração
própria, a partir de Saint-Adolphe.

Iniciando pelos portos, sem dúvida, os mais importantes eram aqueles existentes nas
duas principais cidades, Porto Alegre e Rio Grande. Este último teria maior profundidade,
pois o porto “e a carreira por onde nele se entra foram cavados em 1833 por uma
companhia, e os navios que demandam quinze pés d’água acham nele bom surgidouro”.
Além disso, o porto de Rio Grande estaria sinalizado por uma “torre [...] onde há um farol
que indica aos navegantes” a sua entrada, conforme consta no verbete “Atalaia”. Quanto
a Porto Alegre, é curioso que o verbete dessa “cidade mercantil” não traga descrições do
porto em si, mas sim do sítio “defronte duma barra cômoda e abrigada dos ventos”,
indicador de sua posição favorável.
Quanto aos demais portos associados à rede urbana de Rio Grande, como já dito, o porto
de São José do Norte estaria em situação menos favorável que o de Rio Grande, por ser
desabrigado, mas eventualmente poderia retomar o movimento de embarcações nos
casos em que “o porto do Rio Grande e o canal se tornassem a entupir”. Por sua vez, o
porto de Pelotas não receberia embarcações oceânicas, apenas iates que levariam as
cargas para os portos de São José do Norte e de Rio Grande.
Sobre os demais portos associados à rede urbana de Porto Alegre, apenas encontramos
menção a iates no porto de Triunfo, o mais próximo da capital, e a embarcações menores

• 11
nos demais portos a montante: à vila de Rio Pardo chegariam sumacas; e, seguindo pelo
rio Jacuí (e também pelo rio Taquari), apenas canoas. Há ainda menção a um porto no
lugarejo de Forquilha, no rio Ibicuí, afluente do rio Uruguai, portanto na região das
Missões, com menção explícita à impossibilidade de navegação por “grandes barcos”.
Relativamente a atividades aduaneiras, o verbete sobre Porto Alegre traz as informações
de que a alfândega é um dos “edifícios mais notáveis desta cidade” e que, em 1831, teria
“comércio florescente”. Quanto a Rio Grande, é curioso que não haja menção direta à
alfândega, mas isso está obviamente implícito no “comércio de exportação” para a Europa
a partir daquele porto, assim como do de São José do Norte, cuja alfândega é mencionada
por Saint-Adolphe.
Se a localização das alfândegas corresponde à dos portos principais, a localização de
registros associa-se à proximidade a duas divisas, seja com as províncias de Santa
Catarina e São Paulo, ao norte, seja com o Uruguai, ao sul. Os primeiros estão na
abrangência da rede urbana polarizada por Porto Alegre, e os últimos, naquela por Rio
Grande e Pelotas. O mais antigo cuja data está informada, o registro da Guarda Velha em
Santo Antônio da Patrulha (na rede urbana de Porto Alegre), havia sido instalado em
1740. Há ainda menções a dois registros na bacia do rio Uruguai (aqui também incluídos
na rede urbana de Porto Alegre), São Borja e Belém (este atualmente em território
uruguaio), e nada menos que quatro registros em povoações ao longo do rio Jaguarão,
na divisa com o Uruguai, o que contribui para que o maior número desses equipamentos
estivesse na rede urbana polarizada por Rio Grande.
A distribuição das estradas é distinta, com presença majoritária em localidades
abrangidas pela rede urbana de Porto Alegre. A localização da maioria reflete a atividade
de formação de tropas para o transporte de gado a pé até a província de São Paulo, a
partir da região das Missões, tomada por luso-brasileiros e anexada à coroa portuguesa
em 1801 (CESAR, 1981, p. 191). Assim, três tramos articulariam São Luiz Gonzaga, nas
Missões (conforme já citamos), a Rio Pardo, a Porto Alegre e, daí, a São Paulo8. E uma
nova estrada, que também já mencionamos, havia sido aberta em 1832 em direção à já
“antiga” colônia alemã de São Leopoldo, e por ela seriam escoados seus produtos para
Porto Alegre. Aliás, cabe notar que São Leopoldo conteria, conforme Saint-Adolphe, o
único núcleo colonial existente na província, mas essa iniciativa já se desdobrara em
outras localidades que também se vinculariam à rede urbana de Porto Alegre.
Na rede urbana de Rio Grande, não há menção a estradas em verbetes próprios, e apenas
uma, facilmente negligenciável, é referida no verbete sobre o forte de Santa Teresa,
estendendo-se entre Rio Grande e a vila de Maldonado, que “pertence atualmente ao
Estado Oriental” do Uruguai. Neste caso, trata-se de um trecho do antigo caminho
terrestre para a Colônia do Sacramento, percorrido desde antes da sua fundação em
1680, e ao longo do qual já chamava atenção a presença de gado bravio, que poderia e,

8 Apenas para se ter uma ideia da dificuldade desse percurso, a viagem em caravana de
carretas das Missões até Rio Pardo, portanto, o primeiro tramo, tardava cerca de quarenta
dias, em 1834. Note-se ainda o contraste com o tempo de viagem entre Rio Pardo e Porto
Alegre, apenas 20 horas descendo o rio Jacuí (conforme ISABELLE, 2006 [1835]).

• 12
efetivamente, veio a ter aproveitamento econômico, como sugerira Simão de
Vasconcelos, da Companhia de Jesus, em 1663 (CESAR, 1981, p. 37-38).
Quanto às fortificações, cabe notar que apenas uma estava na rede urbana de Porto
Alegre, a de Itapuã (no atual município de Viamão), guardando a entrada do Guaíba.
Saint-Adolphe informa que sua demolição teria ocorrido em 1840, portanto ainda em meio
à guerra civil, mas em momento no qual Porto Alegre já voltara ao domínio imperial. As
demais fortificações estavam ao sul, uma no atual município de Bagé – a “povoação
fortificada” de Santa Tecla – e as outras três no que já era território uruguaio – Mochera
(ou Espírito Santo), Santa Teresa e São Miguel. A última também foi classificada como
povoação por Saint-Adolphe, que afirmou haver ali “um forte que há muito está sem
munição”. Ou seja, com o final dos conflitos da Cisplatina, a função de defesa de tais
equipamentos não mais seria necessária.

OPINIÕES DE VIAJANTES ESTRANGEIROS SOBRE O POVOAMENTO E O


DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO DA PROVÍNCIA
Passado um período de conflitos armados, que perspectivas poderiam se abrir para a
província do Rio Grande do Sul? Proposições de aproveitamento de recursos materiais já
haviam sido feitas pelos primeiros viajantes nas terras que mais tarde corresponderiam
à capitania e província mais meridional do Brasil, como pelo já citado Simão Vasconcelos,
assim como por Manuel Jordão da Silva, que em 1698 pretendia descobrir ouro nas areias
do litoral (CESAR, 1981, p. 46), e por Francisco Ribeiro, que em 1704 mostrou já conhecer
a erva mate (ibid., p. 62), além de outros viajantes que sugeriram localizações para
futuras povoações que facilitassem a exploração desse território. Neste sentido,
constatamos que Saint-Adolphe não fugiu à regra. O autor francês não apenas registrou
situações observadas, mas sugeriu caminhos para o desenvolvimento econômico dos
lugares ou das regiões descritas.
Uma leitura das “visões de futuro” de Saint-Adolphe mostra um tema que se destaca: a
proposição de colônias de povoamento, especificamente na antiga região missioneira.
Aliás, como o próprio tradutor do Dicionário, Caetano Lopes de Moura, reconhecia no
prólogo à obra, sua divulgação poderia ter um impacto positivo no estímulo à imigração
de trabalhadores livres para o Brasil (VENÂNCIO, 2014, p. 25). Isso coadunaria com a
retomada da imigração europeia iniciada havia poucos anos no Rio Grande do Sul e que,
momentaneamente suspensa, apenas se estendera a colônias relativamente próximas de
Porto Alegre.
Das sete antigas missões jesuíticas dos Guarani, seis estavam ainda nomeadas como
aldeias, com exceção de São [Francisco de] Borja, que, como visto, havia sido elevada a
vila e recebera também a sede da quinta comarca da província, bem como um registro9.

9 Além do fato de estar junto ao rio Uruguai, é possível que a preservação de São Borja, única
das antigas missões que não fora destruída nem abandonada quando da guerra que se seguiu
ao Tratado de Madrid e à expulsão dos jesuítas (SEMPÉ, 1982, p. 71) tenha, de algum modo,
influenciado nas decisões por sua elevação a vila e cabeça de comarca. De qualquer forma,

• 13
Esvaziadas após a expulsão dos jesuítas e permanecendo nelas menos de dez mil
habitantes, como estimou Saint-Adolphe, o autor sugeriu que fosse instalada uma colônia
de imigrantes europeus na área das antigas missões. Vejamos o modo como ele
argumentava a respeito:

Poder-se-ia estabelecer nesta comarca uma colônia estrangeira, repartindo-se com ela
algumas terras; o exemplo dos benefícios que procuraria uma bem entendida agricultação
[sic] estimularia os habitantes a amanhar as terras, e a tratar da criação do gado, e este
país [sic] se converteria num dos mais importantes do Brasil por isso que se acha situado
entre grandes rios que dão fácil navegação (SAINT-ADOLPHE, op. cit., p. 523).

A citação acima está no verbete “Missões”, relativo àquela comarca. Saint-Adolphe


também sugere o repovoamento no verbete sobre a aldeia de Santo Ângelo, fazendo uma
oposição entre a população existente de “índios que vivem entregues à preguiça” versus
“homens industriosos” que poderiam vir a residirem nela, haja vista a possibilidade de
navegação no rio Ijuí, “o que poderia contribuir para seu aumento” de população10.
Assim como descreveu a estrada da região missioneira até Porto Alegre com uma visão
estratégica que pudesse evitar a navegação pelo rio Uruguai, eventualmente sujeita a
conflitos com os países vizinhos, Saint-Adolphe também aventou outra possibilidade de
ligação fluvial ao restante da província, sugerindo, no verbete sobre a aldeia de São Luiz,
a abertura de um “canal entre o Ibicuí e o Jaguarão, onde quer que o sítio for mais
acomodado”. Isso corresponderia à ligação entre duas bacias hidrográficas, a do Uruguai
e a da Lagoa Mirim, o que aproximaria a região missioneira dos portos existentes na rede
urbana de Rio Grande e Pelotas.
A proposição de infraestruturas de transporte que facilitassem os fluxos econômicos já
havia sido feita por Arsène Isabelle, outro francês que visitara a província do Rio Grande
do Sul. Em 1834, ao percorrer a estrada entre a região missioneira e Rio Pardo, anotou a
ocorrência de recursos minerais que poderiam ser explorados ao longo do percurso, bem
como as dificuldades de transposição dos passos dos rios, tanto que encontrou apenas
uma ponte na chegada a Rio Pardo, sobre o rio de mesmo nome. O autor considerou

extraordinário que, numa região em que as florestas são tão numerosas, não se tenha a
ideia de construir jangadas ou pontes que permitam a passagem de carretas carregadas.
[...] Uma contribuição um pouco maior pela passagem compensaria em pouco tempo o seu
empreendedor e todo mundo lucraria com isso. Mas a preguiça e a indolência dos nativos
são um obstáculo a toda espécie de inovação útil, e seria necessário que os estrangeiros
dessem o exemplo... (ISABELLE, 2006, p. 224).

com a colonização europeia posterior, São Borja seria uma das missões cujo conjunto jesuítico,
pela reutilização de materiais de construção, viria a desaparecer (GUTIERREZ, 1987, p. 48).

10 Saint-Adolphe associou repetidas vezes a qualificação de “industriosos” aos eventuais


colonos que migrassem, não apenas para o Rio Grande do Sul, mas também para localidades
nos sertões das províncias de Goiás, de Minas Gerais e do Pará.

• 14
Isabelle não propôs colônias de povoamento especificamente na região missioneira do
Brasil, como Saint-Adolphe, mas já se manifestava a respeito antes mesmo de chegar ao
país, subindo o rio Uruguai, referindo-se às aldeias na “região que se estende do Salto
[no Uruguai] até o Brasil [que] está em parte deserta, e não poderá comportar
estabelecimentos estáveis e de alguma importância se nela não forem instaladas colônias
de estrangeiros industriosos” (ISABELLE, op. cit., p. 185), novamente qualificando-os em
oposição a uma população anterior de “índios nada industriosos, inclinados naturalmente
à preguiça” (ibid., p. 185).
Essas impressões são reiteradas ao visitar a colônia alemã de São Leopoldo, que lhe
provoca um “sentimento de admiração” pelo contraste de sua prosperidade com a “falta
de indústria” dos brasileiros, “esse espírito perdulário e destruidor que os caracteriza”
(ibid., p. 251). Lá, considerava Isabelle, as iniciativas empreendedoras dos imigrantes –
para construir pontes, abrir estradas, constituir estabelecimentos industriais etc. –
poderiam levar a que um “sentimento de emulação acabará nascendo entre os brasileiros,
à vista de tantas dificuldades vencidas por homens industriosos” (ibid., p. 253). Para o
autor, enfim, a população de imigrantes alemães teria “uma grande importância moral,
pois seu exemplo não pode deixar de estimular, mais cedo ou mais tarde, o caráter
apático dos brasileiros” (ibid., p. 261).
Conforme Saint-Adolphe anotou nas descrições de três das aldeias missioneiras, a
população indígena, mesmo reduzida, ainda era larga maioria, variando entre 92% em
São João e 70% em São Miguel. Os demais eram brancos, ou seja, “brasileiros”, mas,
como visto, o autor não sugeriu que poderiam eles serem os novos povoadores, papel
que caberia a estrangeiros. Resta a pergunta: poderiam os indígenas ter lugar em alguma
“visão de futuro” para a região missioneira?
Os dois autores já examinados não colocam essa possibilidade, mas há outro francês que
visitou a região pouco antes da Independência e merece ainda ser lembrado. O botânico
Auguste de Saint-Hilaire esteve nas Missões em 1821, anotando uma minoria de
indígenas em relação à população branca, sendo uma causa disso a varíola, cuja vacina,
apesar de já conhecida, não teria sido introduzida entre os indígenas quando da anexação
das Missões à coroa portuguesa em 1801 (CESAR, 1982, p. 87)11. Além disso, a região
missioneira teria então uma minoria de jovens; em sua maioria eles teriam fugido,
serviriam como soldados para caudilhos ou para os governadores das Missões, ou haviam
sido roubados e escravizados, de modo que “um fator de perecimento, de estagnação, e

11 Como Saint-Adolphe apontou uma maioria de indígenas, é possível que a região tenha
voltado a ser povoada após a passagem de Saint-Hilaire. Isto é sugerido por Isabelle, que
menciona a povoação em aldeias e vilas ao longo do rio Uruguai, a jusante da divisa com o
Brasil, por indígenas Guarani trazidos das antigas missões durante a guerra da Cisplatina, que,
após a resolução do conflito, teriam sido destruídas pelo governo uruguaio, tendo uma parte
dos indígenas retornado, por volta de 1833, às antigas Missões (ISABELLE, op. cit., p. 185).

• 15
depois de morte da cultura indígena, foi o não aproveitamento dos jovens no
fortalecimento social da comunidade indígena subsistente” (CESAR, 1982, p. 89).
Por fim, para Saint-Hilaire, a ausência de autonomia ou de protagonismo dos indígenas
em qualquer projeto para a região missioneira está muito evidente nesta citação, que
representa bem uma negação de pensamento prospectivo, um atributo de racionalidade,
aos indígenas:

Como remediar, nas atuais circunstâncias, tantos males? Confesso não ver nenhum meio.
A civilização não nasceu para índios, visto ser fundada inteiramente na concepção do futuro,
que lhes é absolutamente estranha. Cercados de homens civilizados, os selvagens não
podem volver completamente ao estado de bárbaros. Até serem completamente absorvidos
pelos brancos terão de viver de modo muito pior que a vida selvagem, visto terem perdido
a inocência peculiar aos seus ancestrais quando viviam em plena floresta, e visto não
possuírem qualidades necessárias à vida em sociedade, da qual entretanto não podem sair
(SAINT-HILAIRE, 1887, apud CESAR, 1982, p. 92; grifo nosso).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na primeira metade do século XIX, o ordenamento territorial da província do Rio Grande
do Sul estava em seus primórdios, assim como era esparsa sua ocupação humana e
urbana. Entretanto, um ainda pequeno mas relativamente bem sucedido projeto de
colonização baseado em imigrantes brancos europeus contrastava com a situação
agonizante dos indígenas remanescentes da destruição do projeto jesuíta, aos quais seria
negado protagonismo em um novo projeto.
Também contrastavam as duas fronteiras: ao sul, com seus limites consolidados mas
mostrando um abandono do qual as fortificações serviam como testemunho; ao norte, de
vastas extensões de florestas cuja ocupação já era cobiçada, muito antes que a ideia de
um mercado interno comum integrasse o Rio Grande do Sul ao resto do país. Os avanços
nessas duas fronteiras só poderiam ser feitos de modos diferentes: ao sul, seguindo no
passo do gado que ocuparia os campos naturais; ao norte, em ação que exigiria
planejamento para o desmatamento, a implantação de infraestruturas de transporte e a
urbanização. Essas diferenças influenciariam o modo como evoluiriam as redes urbanas
ao sul e ao norte do Rio Grande do Sul.
Neste trabalho, buscamos reunir elementos que permitiram propor uma representação
hierárquica da rede urbana do Rio Grande do Sul. O resultado disso, como visto, apontou
para uma separação em duas redes, refletindo dois territórios distintos. Já havia
elementos materiais no ordenamento territorial, os fixos, cujas diferenças apontavam
para distinções entre esses territórios. Mas a veiculação de ideias também reforçaria
distinções, pela aplicação de juízos de valor às porções do território, urbanas e rurais, nas
quais se propunha como benéfico um suposto “efeito moral” da intensificação da presença
de europeus, associado ao seu caráter empreendedor e “industrioso” valorizado pela visão
liberal dos viajantes franceses (e outros) que passaram pelo Rio Grande do Sul ao longo
da primeira metade do século. Daí para a frente, a expectativa de transformação local a
ser induzida pela presença humana de origem europeia poderia fazer com que as soluções

• 16
de povoamento, urbanização e desenvolvimento econômico da província fossem desiguais
e excludentes, hipótese que pretendemos testar na continuidade do presente projeto de
pesquisa, que cuidará das urbanizações brasileiras na segunda metade do século XIX.

REFERÊNCIAS
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TERRA PÚBLICA, PRÁTICAS PREGRESSAS
A constituição da Vila Werneck em Belo Horizonte
PUBLIC LAND, PAST PRACTICES: THE CONSTITUTION OF VILA
WERNECK IN BELO HORIZONTE

Eixo: Práticas, processos e institucionalidades

FARIA, Letícia Gardusi


Bolsista PIBIC/PROBIC; Universidade Federal de Minas Gerais
leticiagardusi@ufmg.br
SOUZA, Gisela Barcellos
Doutora em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo;
Professora do departamento de Urbanismos na Universidade Federal de Minas Gerais
giselabarcellos@ufmg.br
RESUMO

A institucionalização da propriedade privada no Brasil, por meio da Lei e Terras


de 1850, marca o rompimento formal com as práticas jurídicas portuguesas de
Direito de Propriedade. Entretanto, o instrumento da enfiteuse continua
recorrente como meio de acesso à terra no século XIX - uma vez que continua
presente no Código Civil de 1917. Este artigo analisa a questão do acesso à
terra urbana que transcendem a sua compreensão como mercadoria,
abrangendo o arco temporal que compreende a prática de concessão de uso
em terra pública em Belo Horizonte - regularizada apenas em 1928 -, e a
aprovação da lei Profavela - instrumento de regularização fundiária pioneiro no
país. Para tanto , o artigo foca noe studo a Vila Edgard Werneck, próxima ao
Pátio de Oficina da antiga Estação do Horto, uma ocupação realizada dentro da
faixa de domínio da ferrovia, que traz, de forma patente, as contradições entre
a cidade planejada e a cidade real, velhas e novas práticas de acesso à terra
urbana.

PALAVRAS CHAVE Direito de Propriedade; Posse Útil; Vila Edgard Werneck;


Regularização Fundiária; Faixa de Domínio de Ferrovia.

ABSTRACT

The institutionalisation of private property in Brazil, through the Law and Lands
of 1850, marks the formal break with Portuguese legal practices of Property
Law. However, the instrument of emphyteusis remains recurrent to access to
land in the 19th century - since it is still present in the Civil Code of 1917. This
article analyses access to urban land that transcends its understanding as a
commodity, covering the arch period that includes the practice of granting use
of public land in Belo Horizonte - regularised only in 1928 -, and the approval
of the Profavela law - a pioneering instrument for land regularisation in the
country. Therefore, the article focuses on the study of Vila Edgard Werneck,
close to the workshop courtyard of the old Horto Station, an occupation carried
out within the railroad domain, which clearly brings the contradictions between
the planned city and the real city, old and new practices of access to urban
land.

KEY-WORDS Property Law; Useful Ownership; Vila Edgard Werneck; Land


Regularization; Railway Domain Range.

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INTRODUÇÃO

A recente institucionalização da propriedade privada no Brasil, formalizada pela Lei das


Terras de 1850, marca o rompimento com as práticas jurídicas portuguesas de Direito de
Propriedade, delineando um período de mudanças no acesso a terras urbanas e rurais no
país (CASTRO, 2000). Como bem destaca Hélio Novoa (2000), ao extinguir o regime de
sesmarias, em 1822, o império detinha o poder de terras de praticamente todo o território
na forma de terras devolutas. Portanto, a Lei 601/1850, ao proibir o acesso às terras
devolutas sob qualquer outra forma que não pela compra, extinguiu a legitimação do
acesso pela posse que vigorou entre 1822 e 1850, causando grande repercussão em todo
território nacional. A nova forma de alienação da terra urbana possibilitou o advento do
patrimônio leigo (MARX, 1991), distinto daquele público, cuja concessão pela câmara
municipal foi prática corrente por séculos até o final do império (MARX, 1991; SILVA,
2012).

A partir de 1850, a propriedade privada se torna soberana em termos legais no país, sem
que as práticas tradicionais fundiárias fossem realmente extintas do cotidiano das cidades
brasileiras. O acesso à terra mediante o pagamento de foro permanece vigente como ato
entre vivos no Código Civil de 1917 e sem restrições efetivas até 1955, quando a Lei
2.453/1955 estabeleceu o limite temporal de vinte anos para a enfiteuse, permitindo ao
foreiro resgatar a terra após esta data. Vale ressaltar que a enfiteuse de terras
pertencentes ao patrimônio da União só foi regulamentada pelo Decreto-Lei 9.760 de
1946. A proibição da instituição de novas enfiteuses, por outro lado, ocorreria um século
e meio após a instituição da terra como mercadoria, com o Código Civil de 2002. Verifica-
se, portanto , a coexistência entre distintas formas de acesso à terra urbana, com uma
gradual dissolução dos dispositivos legais de concessão por aforamento.

Belo Horizonte é cidade símbolo da primeira república e de momento de transição na


história do urbanismo - uma cidade planejada, geometrizada e de parcelamento racional
e regular do chão público. A nova capital de Minas se estabelece em área em que se
dissolvem as estruturas fundiárias de Curral d’El Rei para dar lugar ao desenho ordenado
do engenheiro Aarão Reis, tendo como base de sua fundação a associação entre novos
núcleos urbanos, a expansão da linha férrea e a consolidação da “ordem” republicana que
fora destacada por Murilo Marx (1991).

Vale destacar que, a partir da consolidação de Belo Horizonte, a simples distinção do


patrimônio leigo e patrimônio público se torna insuficiente, pois a chegada da ferrovia na
Cidade de Minas em 1917, provoca a constituição de um novo tipo patrimônio público: as
faixas de domínio, que pertencem à União. Estas diversas formas de patrimônio presente
na cidade possibilita também diferentes - e contraditórias - formas de acesso à terra
urbana.ncorporados pela RFFSA (Rede Ferroviária Federal S/A) em 1957, os domínios da
antiga Central do Brasil (EFCB) em Belo Horizonte foram marcados por formas de
concessão de uso semelhantes às práticas do século XIX.

● 3
Dessa maneira, o presente artigo parte da constatação da contradição entre uma cidade
planejada, constituída - em primeiro momento - sob a égide da propriedade privada em
suas novas práticas de desenho urbano -, e a constituição de bairros informais por meio
da concessão do uso de terras públicas - práticas que, no campo jurídico, eram pouco
incentivadas e gradualmente dissolvidas. Como objeto de estudo, dedica-se atenção à
vila ferroviária implantada na faixa de domínio junto ao Pátio da Oficina da antiga estação
do Horto Florestal. Conhecida como Vila Edgard Werneck (com cerca de 5.300 habitantes,
segundo censo de 2010), a região teve sua ocupação inicial pelos próprios funcionários
da companhia, foi objeto de negociações com a prefeitura para sua regularização em
1976 e em 1982 (BELO HORIZONTE, 1976; idem, 1982) e sofreu alterações posterior em
seu desenho com a implementação do metrô na capital.

Consequentemente, este trabalho tem por objetivo debater sobre as práticas jurídicas de
acesso terra urbana no Brasil, trazendo Belo Horizonte como exemplo da transformação
gradual e da coexistência das práticas fundiárias de direito à propriedade e à posse útil -
a fim de buscar melhor compreender a história de nossas cidades e do chão urbano. Como
método, trouxe-se como fontes primárias as legislações referentes às Vilas Operárias em
Belo Horizonte e os relatórios de prefeito da Capital, tecendo um mosaico de relações
legais ao longo do século XIX até meados da década de 1980 do século XX - recorte
temporal que avançamos neste artigo. Junto com os marcos institucionais, buscou-se a
revisão de trabalhos que analisam questões semelhantes, no qual destaca-se uma
bibliografia sobre a propriedade da terra urbana no Brasil de Murillo Marx (1991; 1999)
e Sonia Castro (2000), e de Belo Horizonte - como o trabalho desenvolvido por Júnia
Ferrari Lima (2009) sobre o bairro Concórdia.

Por fim, este artigo estrutura-se em quatro seções, sendo a primeira destinada a
investigação da consolidação de Belo Horizonte como primeira experiência do urbanismo
republicano, mostrando os elementos que a mesma adquire - no campo jurídico-urbano
e formal - e a relutância na adoção de práticas regressas, como a enfiteuse, trazendo a
a contradição que se projeta dentro capital mineira. Após apresentar esta base teórica, o
artigo foca sua análise na Vila Edgard Werneck, buscando compreender como se deu a
consolidação da vila ferroviária, e suas contradições no acesso à terra, entre 1920 e 1960.
Na terceira parte, o processo de regularização fundiária da vila é abordado,
contextualizando-o dentro de um cenário local e nacional - no qual ressalta-se seu caráter
precursor na prática deste instrumento urbano, formalizado um ano antes da aprovação
do Profavela em Belo Horizonte. Em sua seção final, realizou-se algumas considerações
finais e apresentou-se uma agenda de pesquisa considerando a importância da Vila
Edgard Werneck e de outras ocupações à beira-linha para as questões referentes ao
acesso às terras públicas.

A PRIMEIRA CIDADE DA REPÚBLICA


A saída da capital de Ouro Preto, decadente pelo esgotamento das minas, já era discutida
nos tempos do Império brasileiro, mas apenas se tornou possível com o advento da

● 4
República em 1889 (MAGALHÃES, 1989). Assim, é no ano de 1890 que se indica o antigo
arraial do Curral d’El Rei como nova localização da Capital do Estado, uma atribuição não
só simbólica, mas também que buscava uma nova qualificação espacial para a República
que acabava de se instalar (MAGALHÃES, 1989).

Desta forma, a cidade de Belo Horizonte, através de suas toponímias de conteúdos


nacionalistas, sua ordem geométrica e cartesiana, e de outras mensagens formais, se
torna símbolo espacial dos ideais republicanos. É no desenho da planta da Comissão
Construtora da Capital que se torna nítido o racionalismo absolutista, o urbanismo dito
científico, e o traço positivista da régua no papel. Como indica Murillo Marx (1991), este
desenho mais geométrico e atento a forma coincide com a expansão da rede ferroviária
no país, especialmente pelo interior paulista, assim como nas novas cidades republicanas.

Por ser a primeira cidade planejada a conciliar a afirmação do liberalismo e o positivismo


do período (MAGALHÃES, 1989; MARX, 1991), Belo Horizonte se torna o primeiro
experimento de um novo desenho urbano que marca o século XIX.

Figura 1: Planta Geral da Cidade de Minas. Fonte: PLANTA…, [SEM DATA].

O Plano de Aarão Reis, ilustrado na figura 1, baseia-se fortemente no desenho de L’Enfant


para Washington, com suas malhas ortogonais sobrepostas por grandes eixos diagonais,
e então, delimitadas por uma rua que contorna toda a zona urbana - a Avenida do
Contorno, então Avenida 17 de Dezembro.

Para além da zona urbana, o plano original da cidade também possuía as zonas
suburbanas (em verde escuro na planta chave), com ruas retilíneas e não regulares,
formando um segundo anel pericentral, assim como as zonas rurais (verde claro),
destinada ao cinturão verde de abastecimento da capital, através do estabelecimento das

● 5
Colônias Agrícolas na região. Vale destacar, como nota Lima (2009), que a zona
suburbana no desenho belorizontino não foi planejada como área proletária ou operária,
e sim como incentivo de transferência da elite ouropretana à nova Capital, destinada
principalmente para sítios e chácaras de funcionários que residiriam durante a semana
na área central. Não há, no traçado republicano da Cidade de Minas, espaço para classe
de menor renda, trabalhadores (LIMA, 2009).

Além da busca pela consolidação da “ordem” republicana, a cidade de Belo Horizonte


também é planejada sob as novas feições do sistema de aquisição e transmissão de terra
no país: a compra e venda, inaugurado na Lei de Terras de 1850. Os lotes da Cidade de
Minas exprimem não só o desejo racionalista, mas também a forma e o módulo do traçado
destinado a compra e venda - compatíveis com a especulação do terreno urbano (LIMA,
2009; MARX, 1991).

É importante salientar a novidade destes lotes racionais, pois até o marco legal de 1850
perdurou-se, durante séculos no Brasil, a prática da concessão de terras e aforamentos,
instrumentos vindos do direito de propriedade português (CASTRO, 2000), no qual
gratuitamente e livre de encargos, obtinham-se terrenos urbanos pertencentes à
municipalidade. Esta prática de datas de terras de cessão pública se assemelha com o
sistema de concessão de sesmaria - com adendo para a diferença na menor proporção
da primeira -, assim, similarmente, os concessionários precisavam atender exigências
mínimas, de beneficiar e ocupar o chão urbano, para não perder seu direito de posse útil
(MARX, 1991).

É este conceito de posse útil que desaparece em 1850, com o fechamento da reformulação
iniciada na resolução de 17 de julho de 1822 - que extingue o regime de sesmarias -
abrindo espaço para a instituição da propriedade privada como conceito jurídico soberano
(CASTRO, 2000; MARX, 1991). O resultado se observa na área central de Belo Horizonte,
a necessidade de se medir o chão, desenhá-lo, controlá-lo - precisando estipular seu
desenho em frações e em planta. Reforçando também, que o acesso às terras da nova
cidade seria feito via compra e venda, reforçando o estabelecimento do sistema
econômico liberal (MAGALHÃES, 1898; MARX,1991)

É nítido o intuito de aproximar Belo Horizonte ao máximo das novas práticas jurídicas
urbanas - em uma esperança de consolidá-las e promover a Capital como modelo de um
novo Brasil, agora, republicano. Afastava-se, assim, qualquer resquício de práticas
fundiárias anteriores, vistas como arcaicas, reforçando o desejo da elite intelectual em
transpor as práticas legislativas europeias (CASTRO, 2000). Como reafirmação deste
argumento, pode-se destacar passagens do prefeito Flávio Fernandes dos Santos em seus
relatórios:

“A referida lei estadoal numero 832 [que aboliu o regime de aforamento no estado em
1922] consigna outras medidas de alta relevancia para a Capital, como se verifica do seu
contexto, e todas tendentes á salva-guarda do plano da cidade, do traçado de suas ruas e

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praças, da manutenção e conservação dos logradouros publicos etc, de modo a evitar-se a
série de abusos que infelizmente foram perpetrados na matéria;” (BELO HORIZONTE, 1922)
“Em Bello Horizonte, cidade fundada sob um plano geometrico, racional e definitivo, seria
um crime admittir-se o chamado methodo natural de crescimento, que ia sendo permitttido,
[…]” (BELO HORIZONTE, 1923)
“Reportando-nos ao que dissemos ás paginas 58 e 59 do relatorio de 1921, vimos agora
com factos, ou melhor, com algarismos, mostrar que tinhamos razão de nos mostrar
contrarios ao regimen de aforamento de terrenos, então vigente.” (BELO HORIZONTE,
1923).

Nestes relatórios, observa-se que apesar do Código Civil de 1917 trazer o aforamento
como prática jurídica legal - mesmo que não o construa como prática principal -, Belo
Horizonte não dispõe deste instrumento regularizado desde 1922, com a promulgação da
Lei Estadual 832/1922. A não utilização do instrumento, inclusive, é vista como fator
positivo pelo então prefeito e comissão, uma vez que era entendido como elemento que
permitia o crescimento “natural” - e não racional - da cidade.

Contudo, ao final da década de 1920, bairros centrais como o Barro Preto eram ocupados
“ilegalmente” devido a falta de planejamento de áreas para a população de baixa renda
e a dificuldade (LIMA, 2009) - mesmo com as promoções de condições especiais para
operários em 1926 - de acesso a terra por esse setor populacional. Estas disputas e
contradições no espaço urbano e no acesso à terra em Belo Horizonte se intensificaram
ao longo da década de 1920 (BELO HORIZONTE, 1928; LIMA, 2009), necessitando que a
prefeitura lançasse um novo olhar para a prática de enfiteuse, já que a abolição deste
regime de acesso à terra não resultou nas melhoras urbanas esperadas.

Assim, contrariando as expectativas do início da década, em 1928 é instituído -


novamente - o sistema de aforamento, para a distribuição dos lotes aos operários da
cidade, buscando estimular a ocupação das áreas de Vilas Operárias criadas em 1926
(LIMA, 2009). O método de acesso à terra, neste momento, buscava realocar a população
proletária da área central para a suburbana, assim como garantir o controle municipal
estético no desenho resultante - ordenado e linear. Destaca-se, aqui, a consolidação da
Vila Concórdia a partir dos anos 1930, como exemplo de acesso à terra via enfiteuse, em
Belo Horizonte (LIMA, 2009).

CIDADE NOVA, PRÁTICAS REGRESSAS


A Vila Edgard Werneck, objeto de atenção no nosso estudo, aparece na Planta de
Cadastramento de 1928/1929 produzida pela prefeitura - sendo concebida como Villa já
no relatório da 3ª Secção, referente ao início do levantamento da Planta Cadastral (BELO
HORIZONTE, 1928, p. 127). Segundo a documentação disponibilizada pelo historiador
Marx Vasconcellos (1934), e pelos documentos disponibilizados pelo Arquivo Público
Mineiro (Roxo, 1924), a vila tem sua consolidação entre 1924 e 1934, com a construção,
por parte da companhia EFCB de “casas typo de elegante aparência” (VASCONCELLOS,
1934, p. 205), para os operários da oficina de trens de Belo Horizonte, localizada na
estação Horto (sem data de inauguração no material de Vasconcellos).

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Figura 2: Planta da casa para trabalhador da Estrada De Ferro Central Do Brasil. Fonte: Roxo (1924).

Ao comparar os elementos do Cadastramento Municipal - seja textual (BELO HORIZONTE,


1928, p.127) ou ilustrativo (figura 3) - com o levantamento aerofotogramétrico de 1953
(figura 4), percebe-se que o desenho idealizado de 1929 - com suas ruas retilíneas e
ortogonais - não é seguido. A primeira hipótese para essa divergência é o não
pertencimento das terras da Vila Edgard Werneck a prefeitura de Belo Horizonte - não
encontrado em nenhum relatório de prefeito analisado, neste período, uma documentação
que coloque a área como patrimônio público municipal -, indicando que o solo da Vila
Werneck já era neste momento propriedade da EFCB, parte da faixa de domínio da
ferrovia.

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Figura 3: Planta Geral do Município de Bello Horizonte, data de referência 1928/1929.
Observar-se a proposta retilínea para o bairro, que se encontra ao lado direito inferior da figura.
Fonte: DIRETORIA DE OBRAS E SERVIÇOS, 1934

Figura 4: Levantamento Aerofotogramétrico, 1953.


Observa-se como pouco do tecido regular proposto em 1929 foi continuado.
O bairro se consolida majoritariamente de forma orgânica.
Fonte: BELO HORIZONTE, 1953.

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Para entender, então, como a Central do Brasil e, posteriormente, a RFFSA, possibilitaram
o acesso ao solo urbano pelos funcionários, buscou-se depoimentos verbais - presentes
na dissertação de Ferreira (2011, p. 71-72) - já que pouca documentação das companhias
estão disponíveis para pesquisa. Segundo estes mesmo depoimentos, os lotes eram
arrendados pela própria empresa (EFCB e RFFSA) aos funcionários por preços baixos,
sendo a estes proibido a venda ou aluguel de lotes - porém, mesmo ilegal, a prática de
compra e venda ocorria de forma irregular.

Outros relatos (FERREIRA, 2011, p.71) indicam que inclusive a construção nos terrenos
da companhia era regulada, e que a “Central do Brasil não aceitava, [...] construir mais
dois cômodos” fora do estipulado. Entretanto, as relações amistosas entre os vizinhos
possibilitaram a prática de construções sem aprovação da EFCB e da RFFSA no bairro
(FERREIRA, 2011) - os conhecidos “puxadinhos”.

Pode-se observar que, a partir dos fatores abordados - afastamento do controle da planta
cadastral da prefeitura, ação popular coletiva, e prática de enfiteuse retomada legalmente
para áreas de Vilas Operárias -, o traçado urbano da Vila Edgard Werneck se consolidou
de forma irregular, orgânica, e atípica no quadro belo-horizontino. A posse simplesmente
era suficiente para o aval da companhia ferroviária ao acesso à terra urbana (mesmo
com algumas ações de controle vindas da mesma). Esta relação é mais próxima das
práticas fundiárias anteriores a 1850, como a posse útil, do que as fomentadas pela
prefeitura, de propriedade soberana.

Vale ressaltar que a população da vila dependia das infraestruturas da própria companhia
ferroviária ou de associações de classe - como o antigo colégio Operário Rufino, e antigo
centro médico operário (FERREIRA, 2011) -, pois com sua situação de patrimônio público
pertencente à União não houve a chegada dos serviços municipais à Vila Werneck, sendo
os moradores impedidos de usufruir dos benefícios do sistema habitacional (BELO
HORIZONTE, 1977). Como resultado, a vila operária esteve em situação precária, sem
água, luz e esgotamento durante vários anos - que só foram providenciados na virada da
década de 1970 para 1980 (FERREIRA, 2011), com a regularização fundiária da área.

A CONSTRUÇÃO DE UM INSTRUMENTO PRECURSOR


Em 1976, através da resolução nº 340, a Prefeitura de Belo Horizonte aprova convênio
com a RFFSA - atual concessionário da ferrovia -, objetivando a reurbanização da Vila
Edgard Werneck. Tal processo faz parte das ações da área de planejamento urbano do
Conselho Municipal de Planejamento do Desenvolvimento (CMPD), que focaram sua
discussão para os problemas urbanos existentes - especialmente aqueles relativos ao de
loteamento das vilas e bairros irregulares. Como destaca o relatório do ano de 1976, as
áreas prioritárias do processo de medidas destinadas a facilitar o desfavelamento e
urbanização, eram aquelas localizadas ao longo do Ribeirão Arrudas, entre a favela do
Perrela e a Vila Edgard Werneck.

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Assim, a faixa de domínio da ferrovia - patrimônio público pertencente à União, e as casas
ali construídas - passam para o domínio da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte em 27
de outubro de 1976. Neste convênio celebrado entre o Município e a RFFSA, a prefeitura
tomou a responsabilidade de garantir a reurbanização e, posteriormente, promover a
venda a preços irrisórios dos lotes aos ferroviários, empregados da Rede, que ali
ocupavam e fizeram moradia (BELO HORIZONTE, 1976) - uma vez que, de alguma forma,
era entendido que eles tinham direito a terra pelo conceito de posse útil.

O processo de regularização fundiária das moradias da Vila Edgard Werneck se consolida


apenas em 1982, a partir das a aberturas de ruas e vielas, esgotamento, venda e
titularização de lotes para famílias que “há cerca de 40 anos lutavam para legitimar a
ocupação precária, em loteamentos espontâneas” (BELO HORIZONTE, 1983, p.17).
Segundo depoimentos também apresentados na dissertação de Ferreira (2011),

“Mas então, o que é que aconteceu? Na área da Rede passou todo o título em nome das
pessoas que residiam ali. Você morava numa casa, passava a pagar só o IPTU. Isso aí foi
um ganho e também trouxe… o bairro Horto teve mais urbanização com esgoto, luz e água,
foi mesmo na década de oitenta. Antes não tinha isso não cara. Antes era esgoto escorrendo
assim, na porta da sua casa.” (p. 72).
“a própria empresa, [...], ela cedia o lote pro funcionário, o funcionário construía e ficava
morando, né? Só mudou depois dessa época mesmo, quando a prefeitura fez uma troca
com a ferrovia e entregou a papelada de posse pros moradores. Os terrenos eram, eu não
falo que de graça, não. Mas era um troço quase que cedido. Preço irrisório que pagavam
na época” (p.72).

É também, através do decreto nº 4.231/1982, que é revelado e registrado a importante


participação da Associação dos Habitantes da Vila Edgard Werneck no levantamento
topográfico da região - associação que foi fundada em 1972 e reconhecida em 1976 -
pela lei estadual nº 6.908 (BELO HORIZONTE, 1986).

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Figura 5: Planta Cadastral da Vila Edgard Werneck, aprovada pelo decreto nº 4.231/82.
Especial atenção à construção de novas vielas e retalhamento irregular dos lotes aprovados.
Fonte: BELO HORIZONTE, 2022.

Interessante destacar que a regularização fundiária da Vila Edgard Werneck configura-se


como uma das pioneiras em Belo Horizonte, e possivelmente no país. Como ressalta Conti
(2004), a década de 1980, através da retomada do Estado democrático, propiciou a
criação de novos canais de contato entre agentes públicos e sociedade civil, viabilizando
as reivindicações populares. Desta interlocução se sobressai a elaboração do documento
"Diagnósticos das favelas na RMBH” produzido em 1981 pela Plambel, que dá origem a
debates e propostas para os anos seguintes.

Caracterizada como inovadora (CONTI, 2004), tais propostas debatidas dentro da


Prefeitura, propunham um novo olhar para as áreas “ilegais” da cidades, considerando o
direito dos moradores dessas regiões pela ocupação do solo, legitimando-os do ponto de
vista legal e reconhecendo, de certa forma, a prática de posse útil já mencionada.
Conhecido como Profavela, o Programa Municipal de Regularização de Favelas, aprovado
pela Lei Municipal 3.235 de 1983, é a primeira lei com esse caráter no país (CONTI, 2004)
- sendo poucos depois aprovado a lei das PREZEIS em Recife, em 1987, com mesmo
sentido.

Interessante destacar que a regularização da Vila Edgard Werneck e sua devida aprovação
na Planta Cadastral da idade, é anterior à chegada do Profavela - quase um ano as
separa, indicando que é muito provável a presença dos mesmos agentes estatais em
ambas ações. Entretanto, apesar desse indicativo, pouco material se encontra na

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literatura especializada que possa indicar a relação entre a vila ferroviária e o Profavela.
Quase não há argumentos que coloquem a Vila Edgard Werneck como precursora das
próximas reurbanizações, gerando uma série de questionamentos sobre qual o papel
exato que a mesma tem na história urbana de Belo Horizonte - e quais foram as
divergências nestes processos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS E AGENDAS DE PESQUISA


Entender a questão do espaço urbano conjugado à história da propriedade urbana no
Brasil pode contribuir para melhor compreensão das questões sociais que encontramos
nas cidades brasileiras hoje (MARX, 1991). Assim, traçar uma retrospectiva da
estruturação fundiária em Belo Horizonte, das intenções, legislações e práticas reais, se
torna central para pensar os próximos passos dentro do planejamento e da gestão urbana
na capital mineira.

Figura 6: Linha do tempo síntese com as principais legislações referente a propriedade da terra e a
ocupação da Vila Edgard Werneck. Fonte: Elaboração própria.

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Este artigo pretendeu colaborar neste sentido, agregando na discussão entre terra pública
e práticas fundiárias, ao trazer foco para experiência da Vila Edgard Werneck, um espaço
constituído por relações patrimoniais excepcionais na cidade. Assim, a partir justamente
do seu caráter único, a vila ferroviária traz reflexões importantes sobre dois momentos
centrais na história do direito da propriedade urbana no Brasil - a transição para o
estabelecimento da propriedade privada absoluta com a alienação restrita a compra e
venda, no qual, práticas pregressas atuaram concomitantemente, e as discussões sobre
as cidades existentes a partir do maior contato entre agentes públicos e movimentos
sociais, propiciados pela redemocratização, que desembocaram nas ações de
regularização fundiária.

As primeiras reflexões dirigem-se à consolidação da Vila Operária, durante as décadas de


1920 e 1930, quando a prática de enfiteuse é retomada pela prefeitura. A leitura que se
pode fazer a partir dos dados levantados sugere que a prática de concessão do solo pela
EFCB é menos restritiva que outras promovida pelo aforamento municipal. Até que ponto
a Central do Brasil levou em consideração a proposta de Planta Cadastral de 1928/1929?
Quais foram os critérios para a alocação das primeiras residências construídas pela
companhia? Quais são os resultados na forma urbana desta prática da EFCB?

As segundas reflexões são sobre o papel da experiência da Vila Edgard Werneck nos
processos de urbanização desenvolvidos dentro do Profavela. Para além de questões já
apontadas sobre a falta de material especializado e possíveis vínculos, novas questões
surgem sobre o papel da RFFSA na reurbanização, a relação que é mantida hoje entre os
moradores e a companhia, e também como podemos pensar a atuação das associações
de classe, presentes tão fortemente na vila ferroviária (FERREIRA, 2011), com àquelas
promovidas pelas comunidades eclesiásticas diretamente ligadas ao Profavela (CONTI,
2004).

Por fim, ressalto que o presente artigo faz parte da pesquisa “Beira-linhas: Chão público
e Ocupações Urbanas em Belo Horizonte”, que se encontra em desenvolvimento. Muitas
das reflexões deste artigo avançam na continuidade deste projeto, buscando desdobrar a
história por trás das ocupações em localidades de beira-linhas, assim como refletir sobre
a questão fundiária no Brasil - valorizando não o aspecto normativo, mas sim sua
implicação sobre a paisagem de nossas cidades.

REFERÊNCIAS
BELO HORIZONTE, Câmara Municipal de. Resolução nº 340, de 27 de outubro de
1976. Aprova Convênio que, entre si fazem a Prefeitura Municipal de Belo Horizonte e a

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Rede Ferroviária Federal S.A, objetivando a reurbanização da área na Vila Edgard
Werneck.
BELO HORIZONTE, Câmara Municipal de. Decreto nº 4231, de 10 de maio de 1982.
Aprova a planta de parte do loteamento da Vila Edgard Werneck e dá outras
providências.
BELO HORIZONTE, Câmara dos Deputados de. Projeto de Lei nº 7.967, de 7 de
agosto de 1986. Declara de utilidade pública a "Associação dos Habitantes da Vila
Edgard Werneck", com sede em Belo Horizonte, Estado de Minas Gerais. [S. l.], 1986.
BELO HORIZONTE, Conselho Municipal De Planejamento do Desenvolvimento. Mapa do
Municipio de Belo Horizonte . Rio De Janeiro (RJ): Serviços Aerofotogramétricos
Cruzeiro Do Sul S.ª, 1970. Documento Cartográfico Inserido Na Coleção De Documentos
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● 15
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● 16
TINHA UM HOTEL NO MEIO DO CAMINHO
Rifando o patrimônio paisagístico e edificado por uma “modernidade
requentada"
THERE WAS HOTEL IN THE MIDDLE OF THE WAY: Riding the
landscaped and built heritage by a "reheated modernity"/ HABÍA UN
HOTEL EN MEDIO DEL CAMINO: Montando el patrimonio paisajístico y
edificado por una “modernidad recalentada”
Práticas, processos e institucionalidades

SILVA, Rodrigo
Bacharel em Arquitetura e Urbanismo (UFRN); Mestrando no Programa de Pós-graduação em
Arquitetura e Urbanismo da UFRN
rdrg.silva94@gmail.com
ATAÍDE, Ruth Maria da Costa
Doutora em Pensamiento Geografico y Organización del Territorio (Universidade de
Barcelona); Professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFRN
rataide_58@hotmail.com
CAVALCANTI, Emanuel Ramos
Doutor em Arquitetura e Urbanismo (Universidade Presbiteriana Mackenzie); Professor do
Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFRN
emanuel.cavalcanti.au@gmail.com
RESUMO

O processo de ocupação do município de Natal foi marcado na década de 1960 pelo


início do investimento na atividade turística e a construção do Hotel Internacional
dos Reis Magos (HIRM), de arquitetura modernista e o primeiro hotel de luxo da
cidade, foi um símbolo do processo. Localizado na orla central da cidade, o HIRM
contrastava com a paisagem do lugar, marcada pela presença de comunidades
socialmente vulneráveis, evidenciando os futuros conflitos que adviriam dos
impactos da atividade turística, principalmente desde meados de 1970. As Zonas
Especiais de Interesse Turístico (ZETs) foram estabelecidas enquanto estratégia
normativa de proteção da paisagem da orla e, ao mesmo tempo, de incentivo a esta
atividade no Plano Diretor de 1984. Apesar dos seus efeitos, os questionamentos
sobre tais estratégias sempre estiveram latentes, vindo à tona, mais uma vez,
durante a última revisão do plano diretor municipal, sancionado em 2022. Este
artigo discute as estratégias urbanísticas, expressas no regramento da ZET-3, onde
se localizava o HIRM até 2020, quando foi demolido. Tem por objetivo discutir a
construção e o desmonte das estratégias de proteção da paisagem referidas,
incluindo os seus elementos de valor patrimonial, como era o HIRM, que foi uma
das principais expressões do patrimônio modernista da cidade. A modo de
conclusão, constata-se a primazia da visão mercadológica do espaço urbano nos
processos de revisão dos planos diretores, que tem afetado duramente a gestão do
território, gerando desarticulação das práticas de proteção do patrimônio
arquitetônico, urbano e ambiental do município.

PALAVRAS CHAVE Proteção da paisagem; Plano Diretor; Patrimônio modernista;


Hotel Internacional dos Reis Magos.

ABSTRACT

The occupation process of Natal city was marked in 1960s by the beginning of
investment in tourist activity and the construction of the Hotel International dos Reis
Magos (HIRM), with modernist architecture and the first luxury hotel in Natal, was
a symbol of this process. Located on the central beach of the city, the HIRM
contrasted with the landscape of the place, marked by the presence of socially
vulnerable communities, highlighting the future conflicts that would occur from the
impacts of tourist activity, especially since the mid-1970s. The Tourist Interest
Special Zones (ZETs) were established as a normative strategy to protect the coastal
landscape and encourage tourism in 1984’s master plan. Despite its effects, these
strategies are always questioned and one more time was during the last municipal
master plan revision, sanctioned in 2022. This article discusses ZET-3 regulation’s
urban strategies, where HIRM was located until 2020 when it was demolished. It
aims to discuss the construction and dismantling of the landscape protection
strategies, including its heritage elements, such as the HIRM, which was one of the
main expressions of the Natal's modernist heritage. In conclusion, it’s notable the
victory of the marketing vision of the urban space in the processes of the master
plan revisions, which has severely affected the management of the territory,
generating disarticulation of its practices of protection of the architectural, urban,
and environmental heritage.

KEY-WORDS Landscape Protection; Master Plan; Modernist Heritage; Hotel


Internacional dos Reis Magos.

• 2
INTRODUÇÃO
O município de Natal, capital do Rio Grande do Norte (RN) tem como referência de sua
paisagem elementos naturais que servem de parâmetro de proteção em seus instrumentos de
planejamento e gestão urbana desde a década de 1970. A construção desses instrumentos se
torna sintomática do crescimento da atividade turística, que se instalou no estado, a partir da
década de 1960, através do investimento massivo, principalmente de orçamento federal
(BENTES SOBRINHA, 2001; DUARTE, 2011).
O financiamento público do governo federal naqueles anos para grandes obras nas capitais,
como o asfaltamento da entrada de Ponta Negra, em 1975, e a urbanização das praias do
município, possibilitou a idealização e construção do Hotel Internacional Reis Magos (HIRM)
durante a expansão da atividade turística, instalado na zona costeira do município. De
arquitetura modernista, o HIRM acompanhou a ascensão e a retração da atividade econômica
das praias da orla central do município, sendo fechado em 1995. Desde então o imponente
edifício esteve marcado na paisagem e, pelo estado de deterioro, denunciando o abandono de
mais um exemplar do patrimônio arquitetônico moderno potiguar.
Parte deste território está demarcado como Zona Especial de Interesse Turístico 3 (ZET-3)
desde o Plano Diretor de Natal de 1984 (PDN 1984), que constitui uma estratégia normativa
aplicada a proteção da paisagem da orla mediante o controle de gabarito e, ao mesmo tempo,
de incentivo a atividade turística. Delimitada até o PDN 2007 como Área Especial de Controle
de Gabarito (AECG), apesar dos efeitos positivos das estratégias de proteção do patrimônio
natural, esta delimitação sempre foi alvo de questionamentos, principalmente pelos agentes do
turismo, da construção civil e dos proprietários fundiários, antagonistas diretos das restrições
incidentes sobre a ocupação da orla do município, vistas por eles como barreiras ao
desenvolvimento urbano. Essas críticas vieram à tona, mais uma vez, durante a última revisão
do plano diretor municipal, sancionado em 2022, resultando na desestruturação deste e de
outros instrumentos gestão de sua política urbana.
Tomando essas relações com pano de fundo, este artigo discute as estratégias urbanísticas,
expressas no regramento da ZET-3, onde se localizava o HIRM até 2020, quando foi demolido.
Tem por objetivo discutir a construção e o desmonte dessas estratégias, incluindo os seus
elementos de valor patrimonial, como era o HIRM, uma das principais expressões do patrimônio
modernista da cidade.
O artigo está estruturado em duas partes: na primeira, expõe-se os instrumentos urbanísticos
inerentes à gestão da paisagem da zona costeira do município, destacando a efetividade dos
parâmetros aplicados à sua proteção e a sua descaracterização durante a revisão do PDN. Na
segunda realiza-se uma discussão sobre o território demarcado como ZET-3, dando destaque
ao bairro da Praia do Meio, onde o antigo hotel se localizava, à flexibilização dos parâmetros
urbanísticos, às alterações introduzidas pelo novo Plano Diretor e como o HIRM se encaixa no
novo desenho do território. Ao final da segunda parte, adicionam-se algumas reflexões sobre
as possibilidades de ocupação do lote, analisando as proposições dos proprietários.

• 1
A ORLA E O PLANEJAMENTO URBANO EM NATAL: DA VANGUARDA À
DESCARACTERIZAÇÃO DA POLÍTICA URBANA
O sitio geográfico de Natal é marcado por uma paisagem com forte presença de cordões
dunares, das águas do rio Potengi e do oceano Atlântico, a qual tem sido referência na trajetória
do seu planejamento urbano, fundamentando estratégias normativas de controle da ocupação
do solo que evocam a valorização e proteção do seu patrimônio natural. Ainda em 1968, o
Plano Serete já evidenciava os problemas decorrentes da ocupação do solo a partir da década
de 1940, com expressivos fluxos migratórios motivados pela infraestruturação urbana e postos
de trabalho promovidos pela presença e pelas necessidades logísticas das forças armadas
norte-americanas, presentes em Natal no contexto da 2ª. Guerra Mundial, sem qualquer
controle urbanístico ou ambiental (ATAÍDE, 2013). Esse Plano trouxe as primeiras
preocupações com o patrimônio natural do município, já destacando espaços que
posteriormente seriam protegidos, como o sítio da Fortaleza dos Reis Magos, a sua paisagem
vizinha até a Ponta do Morcego e a praia de Ponta Negra (Figura 1).

Figura 1: Natal e a paisagem de sua zona costeira em 2021. Fonte: Silva (2022). Mosaico feito com
imagens do Pinterest, Wikipedia, Portal “Praia Mar Natal e Portal “Canindé Soares”. Acesso em: 28 de
julho de 2021.

• 2
A percepção da necessidade de proteção desse patrimônio na paisagem urbana vinha
acompanhado dos investimentos na zona costeira que ocorreram com mais robustez a partir
de 1960, por meio das ações da Superintendência de Desenvolvimento para o Nordeste
(SUDENE), criada em 1959. Naquela época, o estado do RN foi alvo de muitos financiamentos
para obras públicas e privadas, dentre elas a construção de rodovias interestaduais e de hotéis
particulares, como o HIRM. Idealizado desde a década de 1940 e inaugurado em 1965, o HIRM
impulsionou outras obras de melhoramentos na infraestrutura e potencializou a expansão da
cidade na zona costeira (OLIVEIRA e LIBERALINO, 2014; TRIGUEIRO, DANTAS, et al., 2014;
NASCIMENTO, VIEIRA-DE-ARAÚJO e NOBRE, 2016) (Figura 2).

Figura 2: Imagens da Praia do Meio antes (1) e depois (2) da construção do HIRM, entre 1960 e 1980,
evidenciando a expansão da cidade para a zona costeira. Fonte: Banco de dados do IBGE. Acesso em:
11 de setembro de 2021.

As transformações no território que decorreram da instalação do hotel e,


consequentemente, do uso progressivo da orla para o lazer, impulsionaram as
expectativas da nascente indústria do turismo, articulando novos projetos, com destaque
para o Via Costeira-Parque das Dunas, idealizado e contratado na gestão do governador
Tarcísio Maia (1976-1979). A construção de uma via expressa, denominada de Via
Costeira, conectando as praias da orla central do município e a praia de Ponta Negra, um
ponto turístico até então distante deste centro consolidado, anunciava as intenções
econômicas dos segmentos envolvidos.
O projeto articulava a obra viária com a construção de um parque hoteleiro e residencial
multifamiliar à suas margens, afetando duramente o equilíbrio ambiental do território,
caracterizado pela presença de densa vegetação nativa preservada e de extensos cordões
dunares. Embora os discursos sobre o projeto indicassem uma inciativa pautada na
integração entre as políticas de desenvolvimento urbano e de proteção ambiental 1, as
propostas de adensamento e verticalização da orla apontavam na direção contrária,
explicitando muitas indagações e questionamentos sobre tais objetivos, alavancando um
sólido movimento na sociedade civil, contrário a essa ocupação, que reuniu o segmento

1O projeto já trazia, articulado com a proposta de ocupação do solo, a instituição do Parque


Estadual Dunas de Natal e sua constituição enquanto primeira Unidade de Conservação do
estado do RN.

• 3
acadêmico, articulado com entidades de classe e os movimentos sociais urbanos 2. O
movimento não conseguiu impedir a implantação do projeto, mas interferiu na sua
concepção e nos propósitos da forma de ocupação da orla, conseguindo das gestões
estadual e municipal importantes ajustes nas ideias norteadoras, inclusive as iniciativas
que resultaram na delimitação das ZETs no PDN 1984.
As disputas em torno do projeto da Via Costeira fortaleceram o movimento e
aprofundaram a interação entre universidade e sociedade em outros momentos de lutas
sobre a produção do espaço costeiro, com destaque para a luta contra a construção de
espigões na rua Pinto Martins, no contexto deste projeto; e pela reinvindicação de
discussão pública sobre o projeto de urbanização da Praia de Ponta Negra em 1987. Tal
articulação forneceu a base necessária para a construção de um planejamento urbano
alinhado com o Movimento Nacional para a Reforma Urbana (MNRU) e seus preceitos na
defesa pela justa e adequada utilização do solo urbano.
Dentre as ações protetivas da zona costeira do município de Natal podemos destacar a
criação: (1) da Área Non Aedificandi (ANA) de Ponta Negra em 1979; (2) das 3 primeiras
Zonas Especiais de Interesse Turístico (ZETs) no PDN 1984 e posteriores
regulamentações em 1987 e 19943; (3) das Áreas Especiais de Controle de Gabarito
(AECG) na promulgação do PDN 1994, já sob os princípios da Constituição Federal de
1988, que reafirmou as ZETs; (4) da Área de Controle de Gabarito do Entorno do Parque
das Dunas, na feição que margeia o tecido edificado, oposta à Via Costeira, neste mesmo
plano e inserida na categoria de AECG; (5) da ZET 4, sob a praia da Redinha, localizada
no bairro homônimo na Região Norte, e da Zona Especial Norte (ZEN), envolvendo a faixa
lindeira à margem esquerda do Rio Potengi, contígua a ZET 4, no PDN 2007; e (6) das
novas Áreas Especiais de Interesse Social (AEIS)4 na zona costeira no PDN 2007,
ampliando-as sob as antigas Favelas demarcadas no PDN 1994.
Essa trajetória demonstra uma preocupação com a proteção do seu patrimônio natural
do município, alinhada com a manutenção de padrões construtivos que valorizem o seu
potencial paisagístico e que garantam a permanência das comunidades socialmente
vulneráveis. Esses territórios resistiam a despeito da falta de regulamentação de

2 O movimento organizado pelos Instituto dos Arquitetos do Brasil/Departamento do Rio


Grande do Norte (IAB/RN) teve certo protagonismo, assim como a Sociedade de Estudos,
Defesa e Educação Ambiental (SEDEA), atual Associação Potiguar dos Amigos da Natureza
(ASPOAN), que até hoje protagoniza as lutas em defesa do meio ambiente no município.
3 As ZETs foram inicialmente delimitadas em três frações: (1) ZET 1, que delimita a faixa da

praia de Ponta Negra, no bairro homônimo na Região Sul; (2) ZET 2, que delimita a Via Costeira
e a faixa lindeira do Parque das Dunas, entre Ponta Negra e Areia Preta; e (3) ZET-3, que
compreende as praias de Miami, Areia Preta, Praia dos Artistas, Praia do Meio e Praia do Forte,
localizadas nos bairros de Areia Preta, Praia do Meio e Santos Reis, na Região Leste.
4 Conforme o art. 22 do PDN 2007, as AEIS “são aquelas situadas em terrenos públicos ou

particulares destinadas à produção, manutenção e recuperação de habitações e/ou


regularização do solo urbano e à produção de alimentos com vistas a segurança alimentar e
nutricional, tudo em consonância com a política de habitação de interesse social para o
Município de Natal” (NATAL, 2007). As novas AEIS demarcadas são a AEIS Santos Reis, Rocas,
Jacó-Rua do Motor, Alto do Juruá e Vila de Ponta Negra.

• 4
instrumentos como as AEIS, a ZET 4 e a ZEN ou a atualização das regulamentações das
ZET sob os princípios norteadores dos PDNs 1994/2007. Apesar da permanência deste
padrão de ocupação e da necessidade de fortalecer e efetivar a utilização desses
instrumentos, o questionamento sobre tais diretrizes sempre foram evidentes e vieram à
tona, mais uma vez, durante a última revisão do PDN.
O processo de revisão do PDN 2007 se iniciou em junho de 2017 e foi finalizado em abril
de 20225. Marcado por problemas de forma e conteúdo, a revisão do plano atravessou o
contexto da pandemia do COVID-19, precarizando as possibilidades de participação social
de diversos agentes dos movimentos sociais urbanos e privilegiando a atuação
pragmática de proprietários fundiários, incorporadores imobiliários e representantes do
setor da construção civil e do turismo. O diagnóstico do produto final aprovado confirma
muitos retrocessos na política urbana do município, dos quais podemos destacar: (1) as
modificações ocorridas no macrozoneamento do município, potencializando o aumento do
padrão construtivo vertical, sem a comprovação do correspondente suporte de
infraestrutura; (2) as alterações e mutilações do sistema de gestão da sua paisagem e
do meio ambiente (AECG); (3) a reestruturação das suas AEIS; (4) as modificações
conflituosas entre os instrumentos da Transferência do Potencial Construtivo (TPC) e a
Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC); e (5) as sérias confrontações a
participação social nos debates públicos.

A PRAIA DO MEIO E O CONTROLE DE GABARITO: CONSTRUINDO O


PROGRESSO SOBRE OS ENTULHOS DO PASSADO
Os bairros de Areia Preta, Praia do Meio e Santos Reis fazem parte da orla central de Natal e
foram demarcadas como ZET-3 desde a promulgação do PDN 1984, sendo este território
reconhecido por sua paisagem simbólica, delimitada pelas Ponta do Morcego, as faixas de praias
protegidas pela parede de arrecifes e o sítio do Forte dos Reis Magos, seu manguezal e a foz
do Rio Potengi (Figura 3). Os territórios destacados são reconhecidos historicamente como
ocupados por populações socialmente vulneráveis, que convivem conflituosamente com focos
de concentração de renda, visíveis na paisagem. Areia Preta e Petrópolis – outros bairros da
região Leste do município – e seus arranha-céus nas avenidas Governador Silvio Pedroza e
Presidente Getúlio Vargas, respectivamente, abrigam uma população de alta renda, que
contrasta com as edificações simples de um ou dois pavimentos do seu entorno, existentes nos
três bairros. Essas populações vulneráveis tem sua ocupação protegida e legitimada pelas AEIS
Alto do Juruá, Jacó-Rua do Motor e Santos Reis, Brasília Teimosa e Vietnã (Figura 4).

5 Nesse período de quase 5 anos o processo de revisão foi realizado em quatro momentos:
seu início proforma, encabeçado pelo Executivo Municipal, em 2017; a retomada do processo,
em 2019, ainda no modo presencial; sua continuação no modo remoto durante a pandemia,
com a finalização da fase de discussão no Executivo; e os procedimentos inerentes a atuação
do Legislativo, findados em 2022.

• 5
Figura 3: Os bairros de Areia Preta, Praia do Meio e Santos Reis na orla central do município de Natal.
Fonte: Silva (2022).

Figura 4: Os arranha-céus de Areia Preta e Petrópolis e sua relação com as comunidades socialmente
vulneráveis da orla. Fonte: Silva (2022).

• 6
Tais conflitos se revelaram principalmente com a aceleração do adensamento desses bairros a
partir da década de 1980. Desde a década de 1970, entretanto, com o Projeto Via Costeira-
Parque das Dunas e a consolidação da indústria do turismo no estado, a pressão dos agentes
imobiliários ligados à construção civil e ao turismo pelo incremento da verticalização na orla se
intensificou. A inauguração da via levou a uma profusão de tentativas de implantação de novas
formas de uso e ocupação para o território, como as primeiras proposições de ocupação das
encostas com empreendimentos hoteleiros. A mais conhecida dessas foi a dos edifícios verticais
nas encostas da rua Pinto Martins, no bairro de Areia Preta, a partir de 1982.
Os dois edifícios de 16 andares cada - um flat-service e outro de uso residencial multifamiliar -
foram apelidados de espigões da Pinto Martins e sua descoberta mobilizou a sociedade civil,
surgindo um movimento em prol da preservação da paisagem da orla, encampado mais uma
vez pela articulação construída durante a discussão do projeto da Via Costeira (BENTES
SOBRINHA, 2001). Os argumentos contrários ao projeto realçavam os impactos paisagísticos,
de conforto ambiental e urbanísticos. Como contraponto, o movimento propunha a
desapropriação da área e a construção de um centro de lazer, além da limitação do gabarito
das edificações em 3 andares para toda a orla marítima. Apesar da não concretização das duas
primeiras demandas, pois o terreno foi ocupado por um empreendimento hoteleiro horizontal,
a articulação conseguiu introduzir a ideia da proteção da paisagem a partir do estabelecimento
do controle de gabarito como parâmetro balizador da ocupação do solo das ZETs no PDN 1984.
Nas diretrizes gerais deste plano foi incluída a diretriz de “ordenar: a) o uso da orla marítima
e áreas adjacentes a rios, córregos e outros cursos d’água, incentivando as atividades de
turismo e lazer, desde que não prejudique o equilíbrio ecológico, a paisagem, a qualidade da
água, ou provoque alterações no clima” (NATAL, 1984, p. 3).
A ZET-3 e seu controle de gabarito, onde tais conflitos ocorreram e onde o HIRM foi construído
na década de 1960, resultou desta articulação. Os limites de gabarito do tecido edificado são
definidos a partir de dois pontos de observação (P1 e P26), na avenida Presidente Getúlio Vargas
e na rua Pinto Martins. Além do controle de gabarito e para estimular a instalação de
atividades turísticas, o subzoneamento da ZET-3 estabelecia coeficientes de aproveitamento
mais flexíveis para os usos comercial e de serviços.
O ponto P1, com o observador posicionado no mirante da Getúlio Vargas, estabelece 33 seções
direcionais ao objeto – o nível do mar – formando as linhas de interferência visual, as quais
restringem o gabarito emoldurando o sitio entre o Forte dos Reis Magos e a Ponta do Morcego.
A relação entre a altura do observador nesses pontos de observação e a sua distância ao objeto
com a altura limite da edificação em relação ao nível do mar e a distância do mesmo ao objeto
formam, então, a razão trigonométrica que revelaria o limite de altura para cada uma das
edificações inseridas nas visadas determinadas. Desta forma, o cone visual imposto pelo limite

6O ponto P2 nunca se concretizou de fato, estando sua vista comprometida pelos muros da
Secretaria Municipal de Educação e de Saúde, local que antes abrigava o empreendimento
hoteleiro horizontal das encostas da rua Pinto Martins.

• 7
de gabarito permite que o território seja adensado sem perder as qualidades paisagísticas
existentes, preservando suas vistas a partir do observador (Figuras 5 e 6).

Figura 5: ZET-3 e seus parâmetros urbanísticos. Fonte: Silva (2022).

Figura 6: Paisagem conformada no bairro da Praia do Meio em virtude das linhas de interferência visual
do controle de gabarito. Fonte: Silva (2022).

• 8
Tais relações foram colocadas em risco pelas alterações recentes que ocorreram na
revisão do PDN 2007. Dentre as modificações que afetam a Praia do Meio podemos
destacar a substituição das ZETs pelas Áreas Especiais de Interesse Turístico e
Paisagístico (AEITP), submetendo-as a novas regulamentações; e as alterações imediatas
feitas no próprio plano sob as regulamentações já existentes, dentre elas a da ZET-3.
Tais alterações modificam os coeficientes de aproveitamento máximos de toda zona e
excluem os antigos parâmetros do controle de gabarito, substituindo-os pela inserção de
faixas de gabaritos máximos delimitadas a partir das quadras, paralelas a faixa de praia,
sendo: 21 metros de altura na primeira quadra a partir da via limítrofe à praia, 27 metros
na segunda quadra e 60 metros a partir da terceira, excetuando as áreas demarcadas
como AEIS. Além disso, aplica-se o gabarito máximo de 65 metros de altura para o
território localizado na Ponta do Morcego, entre os bairros de Areia Preta e Praia do Meio
(Figura 7).

Figura 7: Corte esquemático das alturas e relações com o ponto de interferência P1. Fonte: Silva (2022).

As alterações destacadas afetam diretamente a paisagem urbana futura da Praia do Meio,


criando áreas passíveis de verticalização que interferem no cone paisagístico proposto,
“quebrando” esta vista panorâmica em alguns pontos, principalmente na direção do sítio da
Fortaleza dos Reis Magos em conjunção com o manguezal e a foz do Rio Potengi e na península
da Ponta do Morcego, locais onde o gabarito excede a cota 48, ponto de referência dos visuais
anteriormente traçados.

O Hotel Internacional dos Reis Magos (HIRM): símbolo do processo de


descaracterização da política urbana em Natal
O Hotel Internacional dos Reis Magos foi inaugurado em 1965 como o primeiro hotel de luxo
da cidade e o primeiro instalado na zona costeira de Natal, tornando-se uma referência da orla
central da capital potiguar. Projetado pelos arquitetos pernambucanos Waldecy Pinto, Antônio
Didier e Renato Torres, o hotel marcava a paisagem com suas curvas, pilotis, jardins e cobogós,
elementos que o alinhavam aos padrões do modernismo internacional e suas diferentes
apropriações pelos arquitetos locais, motivados pelas particularidades construtivas e
bioclimáticas típicas do Nordeste brasileiro (Figura 8). Conhecido como “um ícone de glamour
para a época, com sua boate Bambelô, frequentada pelos poucos turistas, e sobretudo, pela

• 9
alta sociedade natalense” (FURTADO, 2008, p. 57), o HIRM foi resultado dos primeiros
investimentos feitos sob a política de incentivo à indústria do turismo no Rio Grande do Norte,
com financiamento da SUDENE.

Figura 8: Hotel Internacional Reis Magos e a Praia do Meio na década de 1960. Fonte: TRIGUEIRO et al.,
2014.

O HIRM “seria o ponto de visitação e hospedagem mais refinada dos viajantes dos estados
vizinhos, local para realização de eventos de porte nacional e internacional (como o Congresso
de Astronomia, em janeiro de 1967) e elemento estruturador, potencializando a ocupação
urbana da área” (DANTAS, NASCIMENTO e VIEIRA-DE-ARAÚJO, 2016). Tal contexto levou à
instalação e melhoramento da infraestrutura e um fluxo à faixa litorânea (NASCIMENTO,
VIEIRA-DE-ARAÚJO e NOBRE, 2016), iniciando uma nova fase na vida urbana deste território,
que se estenderia até finais dos anos 1990.
O marco de implantação do hotel acompanhou o ofurô da orla central do município de Natal,
sendo fechado em 1995 pelo grupo proprietário Hotéis Pernambuco S/A, quando tal
efervescência já não existia mais. As alterações da dinâmica da atividade turística, que se
centralizou no fim da década de 1990 na Região Sul da cidade, principalmente no bairro de
Ponta Negra, abalaram as dinâmicas existentes anteriormente nos bairros de Areia Preta e Praia
do Meio, principalmente.

São marcos dessa época a construção do complexo hoteleiro e parque de preservação


ambiental Via Costeira-Parque das Dunas (1983), a Estrada de Ponta Negra/Rota do Sol
conectando a capital às praias dos municípios do litoral oriental do RN e a construção do
Aeroporto Augusto Severo, em Parnamirim (1980). O direcionamento da atividade turística
para o sul se fortaleceu com a construção desses acessos viários, passando a concentrar toda
a rede de hotelaria e restaurantes voltados ao público externo. (ASSIS e FERREIRA, 2016, p.
3)

Tal redirecionamento da dinâmica urbana da zona costeira, encaminhou o HIRM e outras


estruturas da orla central do município ao processo de deterioro e abandono. Fechado, o hotel
converteu-se no bode expiatório para os questionamentos dos agentes da construção civil e do
turismo, remetendo tal problema aos limites impostos pelas normativas urbanísticas. As críticas
impostas ao controle de gabarito da ZET-3 ganharam novamente destaque, inclusive, quando,
no final de 2013, o grupo proprietário conjecturou pela primeira vez a ideia de demolição do
HIRM para substituí-lo por uma nova edificação. No discurso, as palavras “engessamento” e
“progresso” são empregadas para se referir ao Plano Diretor então em vigor e às flexibilizações
“necessárias”, enquanto os produtos apresentados demonstram soluções arquitetônicas
arrojadas e contemporâneas, ligadas aos ideais de modernidade, mas que seriam impossíveis

• 10
dentro das circunstâncias da normativa até então existente7 (DANTAS, NASCIMENTO e VIEIRA-
DE-ARAÚJO, 2016).
A divulgação dos propósitos da demolição mobilizou parte da sociedade civil organizada de
diversas formas, sendo possível afirmar que a dilatação do tempo entre a primeira ameaça de
demolição, no fim de 2013, e a sua concretização, no início de 2020, se deu principalmente
pela atuação de movimentos e grupos que, sensibilizados pela luta da preservação do
patrimônio arquitetônico, cultural e natural, se articularam. É possível dividir essas atuações
em três campos de luta: a institucional, a acadêmica e a do debate público.
A atuação institucional assumiu e coordenou as ações dirigidas ao tombamento do edifício.
Foram iniciadas logo em 2014, quando o Instituto dos Amigos do Patrimônio Histórico e Artístico
Cultural e da Cidadania do Estado do Rio Grande do Norte (Iaphacc) ingressou com pedido de
tombamento nas três instâncias de governo, provocando o Ministério Público do Estado (MPRN)
com um pedido de liminar contra a demolição. Iniciava-se, assim, a via crucis judicial, a partir
da qual se espraiaria o embate do discurso preservacionista versus desenvolvimento nos outros
dois campos de luta, demandando ações acadêmicas e ampliando o debate público.
No segmento acadêmico, a atuação do corpo docente do Departamento de Arquitetura e
Urbanismo (DARQ) elevou a discussão, trazendo os fundamentos teórico-conceituais
necessários para demonstrar o valor arquitetônico, histórico e simbólico da edificação para o
entorno e para o município. O DARQ, inclusive, elaborou um relatório específico sobre o valor
patrimonial do hotel, justificando as motivações para o seu tombamento, alimentando o debate
público e outras as ações institucionais em favor e contrários a sua demolição.
Por fim, no debate público, o embate conflituoso do discurso preservacionista versus
desenvolvimento revelou o poder de influência dos agentes favoráveis à demolição sob o
discurso veiculado na mídia hegemônica, mas também as possibilidades de atuação e
resistência. Antes de destacá-las, cabe revelar os espaços de discussão abertos pelas ações nas
esferas institucional e acadêmica, como a promoção de entrevistas coletivas, atos e oficinas,
reuniões com o poder público e reuniões e palestras com os moradores do entorno do HIRM
(DANTAS, NASCIMENTO e VIEIRA-DE-ARAÚJO, 2016) que publicizaram as discussões e a
trouxeram para o campo do debate público. A atuação insurgente, entretanto, fora dos espaços
de ação convidados8 gerou novas possibilidades de resistência e evidenciou de forma prática
as demandas colocadas nos outros espaços. Dessa forma, cabe destacar a atuação do coletivo
[R]existe Reis Magos, parte essencial para compreensão do processo.
O coletivo, criado por um grupo de estudantes do curso de Arquitetura e Urbanismo no início
de 2015 à exemplo de outros movimentos contemporâneos ao mesmo, como o Ocupe Estelita
em Recife ou o Ocupe o Cocó em Fortaleza, teve papel fundamental na ampliação das ações

7 “o projeto preliminar (com três novas torres de sete pavimentos cada) foi rechaçado pela
Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo (Semurb), exatamente por contrariar a
legislação urbanística da área” (DANTAS, NASCIMENTO e VIEIRA-DE-ARAÚJO, 2016, p. 43).
8 Faranak Miraftab (2016) destaca a existência de espaços de ação convidados e inventados,

onde os primeiros seriam formas selecionadas de ação dos cidadãos e de suas organizações
sancionadas pelos grupos dominantes e os outros as insurreições e insurgências que o Estado
e as corporações sistematicamente buscam colocar no ostracismo e criminalizar.

• 11
articuladas (DANTAS, NASCIMENTO e VIEIRA-DE-ARAÚJO, 2016). As ações do grupo ocorridas
presencialmente no terreno do edifício aconteceram especialmente em 2015, com atividades
culturais, debates e divulgação da discussão patrimonial e o material produzido dentro do DARQ
pelos próprios alunos em disciplinas que motivaram suas produções projetuais em propostas
de intervenção e reuso para a área. A inserção no território possibilitou também a discussão
articulada com a comunidade e a compreensão “de que a questão sobre HIRM diz respeito às
possibilidades de desenvolvimento urbano da área, e não apenas à temática do patrimônio
[modernista]” (DANTAS, NASCIMENTO e VIEIRA-DE-ARAÚJO, 2016, p. 65).
As ações aqui destacadas nos três campos ocorreram entre os anos de 2013 e 2015. Nesse
interim, as ações no campo institucional encampadas pelo Iaphacc foram indeferidas na
primeira e segunda instância pela Justiça Estadual do RN, mas foram acatadas pela Fundação
José Augusto (FJA), órgão cultural vinculado à Secretaria de Cultura do Governo do Estado do
RN, que decretou o “tombamento provisório” do edifício. O grupo proprietário, inclusive, ainda
em 2014, se comprometeu com a reforma do imóvel abandonado em alguns momentos da
disputa (G1 RN, 2014). As promessas se mostraram vazias quando, depois de um longo hiato,
as novas ameaças de demolição do HIRM reapareceram, em 2017, com o anúncio de um novo
empreendimento. Novas ações também foram abertas, pelo Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional (Iphan) e pelo próprio Governo do Estado, estimulados mais uma vez pelos
mesmos agentes do primeiro momento.
Em 2019, entretanto, sem a confirmação do tombamento pelo IPHAN, o próprio Conselho
Estadual de Cultura, em nova discussão sobre a pauta, recuou na decisão do tombamento
(TRIBUNA DO NORTE, 2019), ensejado pela decisão do Tribunal Regional Federal da 5ª Região,
em Recife, que sinalizava a autorização da demolição do prédio (G1 RN, 2019). Nesse contexto,
o coletivo [R]existe Reis Magos retomou a atuação, promovendo junto ao Iaphacc e ao IAB/RN,
um concurso de ideias para fomentar novas propostas criativas de intervenção no patrimônio
histórico moderno. Outro ator fundamental nesta nova fase foi o Fórum Direito à Cidade9, que
atuou na articulação institucional, intermediando tanto a discussão nos espaços de ação
convidados para consensuar os conflitos em torno do HIRM – como as reuniões organizadas
pelo governo do estado – como também no processo de revisão o PDN, monitorando os
momentos de debates públicos. O Fórum foi essencial na manutenção da contra narrativa,
tanto em favor na preservação do HIRM, patrimônio modernista, como também na
manutenção dos regramentos aplicados à proteção da paisagem do município, conflitos que
se cruzaram na narrativa do engessamento da cidade em virtude das normativas
urbanísticas. Apesar do empenho e da inserção de novos agentes, as novas ideias foram
atropeladas pelas ações institucionais de então, através do parecer do Tribunal de Justiça do
RN, permitindo que a Prefeitura autorizasse a demolição do edifício, caso o Poder Executivo
Estadual não tomasse uma decisão sobre o tombamento do prédio (G1 RN, 2020). Não

9O Fórum Direito à Cidade é um Projeto de Extensão vinculado aos DARQ e ao Departamento de


Políticas Públicas da UFRN-DPP, que surgiu em 2018 com fins de monitoramento das políticas
públicas urbanas da RM Natal.

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havendo, segundo a própria Secretaria de Educação e Cultura do Governo do Estado, tempo
hábil para a conclusão do tombamento, o Alvará de Demolição do imóvel foi expedido, no dia
07 de janeiro de 2020, o que marca o início da demolição do hotel (Figura 9). Como destacam
Dantas, Nascimento e Vieira-de-Araújo (2016, p. 2), “o tombamento-preservação deu lugar ao
tombamento-demolição”, agora não apenas no discurso, mas materializado, de fato.
A demolição do HIRM transformou em escombros aquilo que representava o ápice e edifício

Figura 9: Demolição do HIRM e situação atual do terreno, ainda vazio. Fonte: G1, 2020 e Silva, 2022.

mais simbólico da orla central do município. Sobre o êxito do discurso do desenvolvimento


sobre o preservacionista, cabe revelar a diferença nos contextos políticos de 2013-2015 e dos
movimentos que se arrolaram desde de 2017 até o ano de 2022, com a demolição do HIRM e
a aprovação do novo PDN. A descaracterização da política urbana e o processo de des-
democratização (ALFONSIN et al., 2020), ocorrido em nível nacional, com a extinção do
Ministério das Cidades e de diversos espaços de controle social, como os conselhos da política
urbana, evidenciam o grau de fortalecimento do discurso neoliberal na gestão urbana, atingindo
gravemente os instrumentos de proteção do patrimônio arquitetônico, cultural e natural.
Sobre isso, o grupo Hotéis Pernambuco S/A já reafirmou, mais uma vez, que as possíveis
redefinições dentro do processo de revisão do PDN poderiam valorizar mais ainda as
intervenções pensadas para o terreno do antigo hotel (PINHEIRO e CARVALHO, 2020). Dessa
forma, a revisão dos parâmetros da área ocorrida principalmente no que tange ao controle de
gabarito da ZET-3, conforme explicitado anteriormente, se torna campo para a materialização
dos desejos de modernidade externados por esse e tantos outros agentes e possibilitará, se
lograr êxito, uma completa alteração da paisagem urbana da orla central do município de Natal.
A constatação dos novos cenários pode, então, ser evidenciada.

Os “quereres” de uma “modernidade requentada”: as possibilidades


existentes no antigo terreno do HIRM
No ínterim das disputas e no que tange a projetos de arquitetura para o HIRM, diversas
propostas foram apresentadas como forma de viabilizar o uso e ocupação do terreno, sejam
pela ótica preservacionista do bem, seja pela exploração econômica também do lugar. Entre as
propostas e os principais agentes propositivos podemos destacar o DARQ, através dos trabalhos
acadêmicos de discentes do curso de Arquitetura e Urbanismo referidos; os produtos

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apresentados para o concurso de ideias organizado pelo coletivo [R]existe Reis Magos; e as
próprias propostas do grupo Hotéis Pernambuco S/A.
A diferença central entre as propostas dos dois primeiros grupos e dos proprietários é,
consistentemente, a consideração do edifício existente como referência do partido projetual.
Como já destacado, os grupos contrários à demolição do hotel demandavam a possibilidade de
requalificação do mesmo e a atribuição de novos usos, enquanto o grupo proprietário
visualizava a completa demolição do edifício para a ocupação por uma nova estrutura “mais
moderna” no lugar. Cabe avaliar também quais os usos propostos nestas intervenções. Dentre
as propostas dos alunos, destaca-se a presença sempre marcante as intervenções com áreas
de uso público, com áreas livres abertas à coletividade, e agregando uma diversidade de outros
usos, como o cultural, o residencial, o comercial e serviços (Figura 10). Em contrapartida, o
grupo proprietário propunha a construção de novas edificações de uso comercial e serviços
(hotel/flat), privilegiando o interesse privado dos propositores, ao mesmo tempo que
preconizava uma intervenção que “fechasse” o terreno para si, sem compartilhar com a
comunidade tal espaço (Figura 11).

Figura 10: Proposta vencedora do concurso de ideias “Memória do Hotel Reis Magos”, promovido pelo
coletivo [R]existe Reis Magos. Fonte: Acervo do [R]existe Reis Magos (2019).

Figura 11: Propostas apresentadas pelo grupo proprietário Hotéis Pernambuco S/A em 2010 (1) e
2014(2). Fonte: Maia (2022).

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Cabe destacar que o HIRM possuía 5.520,00 m² de área construída com cerca de 20,0 m de
altura (4 pavimentos mais o subsolo), totalizando uma taxa de ocupação 18% enquanto os
projetos apresentados pelo grupo proprietário possuíam 36.660,92 m² (1) e 23.318,75 m² (2),
com alturas de 24,0 (6 pavimentos mais o subsolo) e 20,65 m (4 pavimentos mais um subsolo),
respectivamente (MAIA, 2018). Os índices utilizados nesses projetos indicam que os que
contavam com a demolição do antigo edifício aparentavam ser muito mais viáveis do ponto de
vista econômico para a perspectiva de atuação do grupo.
Assim, com a demolição do HIRM e a aprovação do novo PDN, as ideias estimuladas em
disciplinas e concursos tornaram-se inviáveis, ao mesmo tempo que as propostas do grupo
proprietário se tornaram mais verossímeis. E quais seriam as possibilidades?
Sob o antigo controle de gabarito, o lote de 9.145,57 m², localizado na avenida Presidente Café
Filho, poderia apenas receber novas edificações com até 7,0 m de altura10. Com as alterações
trazidas no novo PDN, a nova edificação pode chegar a 21 metros, altura muito próxima a do
antigo edifício existente. Quanto ao potencial construtivo do lote, as alterações serão mais
tímidas, uma vez que, para o uso de serviços, a regulamentação já permitia o Coeficiente de
Aproveitamento Máximo (CAmáximo) de 3,5 enquanto o novo PDN traz um CAmáximo de 4,0
(Quadro 1).

ACo(2) ACo(2)
Extensão CA(1) possível CA(1) possível Diferença Gmáximo(4) Gmáximo(4)
territorial (m²) PD2007 PD2007 PD2022 PD2022 do PoC(3) PD2007 PD2022
(m²) (m²)
4.572,785
9.145,57 3,5 32.009,5 4 36.582,3 7,0 m 21,0 m
m² (14 %)
(1) CA = Coeficiente de Aproveitamento; (2) ACo = Área Computável do lote; (3) PoC = Potencial Construtivo;
(4) Gmáximo = Gabarito máximo permitido.

Quadro 1: Quadro comparativo entre as possibilidades possíveis no PDN 2007 e PDN 2022. Fonte: Silva
(2022).

As alterações trazidas no novo PDN, portanto, possibilitam que ambos os projetos


apresentados pelo grupo proprietário Hotéis Pernambuco S/A sejam inseridos no lote
desocupado do antigo HIRM, com algumas alterações para adequação do gabarito
máximo, no caso do projeto apresentado em 2010. Na criação de situações-modelo
comparativas, considerando o Potencial construtivo de 36.582,30 m² aplicado ao lote com
base nos CAmáximos do novo PDN (4,0), tem-se a possibilidade de construção de uma
edificação com 7 pavimentos11, onde cada um desses pavimentos apresente 5.226,0 m²
(Figura 13). Considerando os limites anteriores, dispostos no PDN 2007 e na
regulamentação da ZET-3, percebe-se que, apesar do terreno apresentar um potencial

10 Isso se aplica ao terreno desocupado. Caso a antiga edificação fosse utilizada, o gabarito
máximo que poderia ser aplicado seria o do prédio existente (20,0 m).
11 Considerando que a edificação tenha um pé esquerdo máximo de 3,0 m.

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construtivo máximo de 32.009,5 m², a aplicação dos recuos (3,0 em cada uma das
fachadas frontais do lote) e das taxas de ocupação máxima e de permeabilidade mínima
(80% e 20%, respectivamente), junto com o controle de gabarito, impedem sua plena
utilização. As limitações de ocupação do lote permitiriam que cada pavimento do mesmo
tivesse apenas 7.316,0 m², totalizando 14.632,0 m² de área construída nos dois
pavimentos possíveis, o que equivale a 45,71% do potencial existente.

Figura 12: Infográfico com as possibilidades do terreno antes e depois da revisão do PDN. Fonte: Silva
(2022).

A possibilidade de construção de anexos poderia ser uma solução para atingir maiores
adensamentos construtivos e, ao mesmo tempo, se comprometer com a preservação do
patrimônio arquitetônico modernista, natural e paisagístico. Com base na área do terreno e na
ocupação existente do HIRM (5.520,0 m²), haveria a possibilidade de ampliar a área construída
computável em cerca de 26.500,0 m², a qual poderia ser dividida em cinco pavimentos, tal
qual o edifício pré-existente, cada um desses com cerca de 5.300,0 m². Considerando a
implantação do HIRM e a necessidade de preservar sua imagem e outros elementos
importantes, como as estatuetas dos Reis Magos e seus jardins implantados no recuo frontal
(e que também deveriam ser requalificados), percebe-se que a inserção de tal volume seria
inviável e, dificilmente, respeitaria o edifico original do HIRM
A reabilitação do antigo HIRM, portanto, se distancia bastante dos objetivos econômicos dos
proprietários justamente por também impossibilitar a total utilização do potencial construtivo,
mesmo quando comparado com a situação-modelo sob as normativas do PDN contidas no
2007. Dessa forma, tem-se uma explicita falta de descompromisso e negativa às
possibilidades de diálogo em prol da preservação do bem e da paisagem da orla central

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de Natal do grupo proprietário Hotéis Pernambuco S/A, agindo deliberadamente em favor
de seus interesses econômicos e contra os interesses coletivos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A discussão da gestão ambiental que integra a trajetória do planejamento urbano de Natal
trouxe consigo experimentações urbanísticas que fortaleceram a luta pela preservação do
patrimônio paisagístico e natural mais diretamente, mas com certa relação ao seu patrimônio
urbano e edificado, como podemos verificar no decorrer deste artigo. A delimitação das AECG
foram fundamentais para tal processo e, no caso da ZET-3, garantiu a permanência dos padrões
construtivos de modo a preservar o potencial paisagístico das praias da orla central do
município. Indiretamente, porém, o regramento de controle de gabarito também garantiu a
preservação do entorno do HIRM e, também, indiretamente, do próprio edifício.
A estruturação deste sistema, porém, enfrentou sempre diversas críticas pelos agentes ligados
ao turismo, à construção civil e os proprietários fundiários, uma vez que as limitações impostas
diminuem as rendas possíveis na utilização do solo. O processo de revisão do plano diretor
municipal que foi concluído no ano de 2022 representa, portanto, a completa “demolição” de
tal sistema em nome do futuro e do progresso e a vitória de um argumento que sempre se
repetiu na trajetória do planejamento urbano de Natal, gerando uma completa desarticulação
das práticas que envolvem a preservação do patrimônio urbano, paisagístico e ambiental. No
caso do processo de revisão do PDN 2007 a desarticulação deste sistema está associada à
justificativa de atrair novos investimentos privados, principalmente do setor da construção civil.
A primazia da visão mercadológica do espaço urbano, portanto, está claramente representada
no texto legislativo e encontra reflexo no movimento pela defesa da preservação do HIRM.
O abandono e o processo de degradação pelo qual passou o hotel reflete a importância ínfima
dada ao patrimônio brasileiro, principalmente o patrimônio modernista, que sofre de falta de
“velhice” (DANTAS, NASCIMENTO e VIEIRA-DE-ARAÚJO, 2016). Sem o reconhecimento do seu
valor patrimonial, o edifício foi esquecido ao mesmo tempo que o eixo do turismo da capital
potiguar migrou para a Região Sul da cidade. Para casos como o do HIRM, o próprio PDN traz,
desde 1994, instrumentos, como a Transferência de Potencial Construtivo, que poderiam muito
bem ser aplicados em consonância com outros, já conhecidos na proteção do patrimônio, como
o tombamento, “atrelando a noção de função social da propriedade à de memória coletiva e de
qualidade de vida urbana” (ASSIS e FERREIRA, 2016, p. 12). Outros instrumentos também
poderiam ter sido utilizados durante o período de vacância, como o direito de Preempção, o
Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsórios e o IPTU progressivo no tempo. Apesar
das possibilidades, os instrumentos que constam no próprio plano pouco foram utilizados
durante os últimos 20 anos de vigência do Estatuto da Cidade. O patrimônio desalentado,
portanto, se configura como projeto para a espoliação urbana, visando a flexibilização das
normas em nome de um acirramento nas possibilidades de adensamento da área, como foi
destacado nas situações-modelo apresentadas. A flexibilização dos parâmetros urbanísticos em
níveis máximos para a ZET-3 possibilita, enfim, que imagens de modernidade sejam mais uma
vez requentadas e materializadas sob os escombros do patrimônio moderno. O cenário

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nacional, portanto, encontra rebatimento no município de Natal, revelando em si suas próprias
reformulações e desestruturações.
Dessa forma, as mutilações jurídicas resultarão em graves alterações das paisagens
emblemáticas do município de Natal e na sua apreensão a longo prazo, causando perdas
imensuráveis à coletividade, dentre elas a dilapidação do patrimônio urbano, paisagístico e
ambiental, no qual o HIRM se insere como experiência póstuma.

REFERÊNCIAS
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DANTAS, George A. F.; NASCIMENTO, José C. D.; VIEIRA-DE-ARAÚJO, Natália M.
Modernos, antigos e atrasados: A questão patrimonial e a querela do Hotel
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• 19
AS PONTES SOBRE OS RIOS E OS NEGROS DE SÃO PAULO
Conexões e Distanciamento
BRIDGES ACROSS SÃO PAULO RIVERS AND THE BLACKS/PUENTES
SOBRE LOS RIOS E LOS NEGROS DE SÃO PAULO
Eixo temático: Cidade, política e cultura

BARONE, ANA
Profa. Dra.; FAUUSP
anabarone@usp.br
RESUMO

Em São Paulo, a realidade da população negra no espaço urbano não se reflete


nos dados oficiais. No entanto, os planos e projetos urbanos tiveram grande
impacto nesse grupo desde o nascimento do urbanismo. No período
republicano, o processo de crescimento da cidade operou uma silenciosa
pressão sobre a moradia dos negros relacionada a fatores sociais e
econômicos, ajudando a aumentar a distância de suas residências em relação
ao centro, a perpetuar sua dificuldade de mobilidade social e a reproduzir sua
condição de pobreza. O impacto do urbanismo sobre os negros seguiu seu
curso ao longo do século XX sem ser relatado ou discutido e foi amplamente
amparado pela escassez de dados oficiais para localizar e caracterizar a
população negra no espaço urbano. Recuperando dados contidos nos arquivos
da Associação Cultural do Negro, cotejados com o relatório de planejamento
urbano publicado pela Prefeitura em 1961, mostrarei a localização de moradias
negras e sua relação com a política urbana implementada no período. Na
ordem estabelecida por essa política, as pontes tornaram-se elementos de
conexão e ao mesmo tempo separação.

PALAVRAS CHAVE Localização dos negros em São Paulo; Associação Cultural


do Negro; Impactos do planejamento urbano sobre famílias negras; Pontes
Urbanas.

ABSTRACT

In São Paulo, the reality of black population in urban space is not reflected in
official data. However, urban plans and projects had a great impact on this
group since the birth of urbanism. In the republican period, the city growth
process operated a silent pressure over Black dwelling related to social and
economic factors, and helped to increase the distance from their homes to the
center, to perpetuate the difficulty of social mobility and to reproduce their
poverty condition. Urbanism impact over Black families followed its course
throughout the twentieth century without being reported or discussed and was
widely supported by the scarcity of official data to locate and characterize Black
population in urban space. By retrieving data contained in the archives of the
Associação Cultural do Negro (Black Cultural Association), collated with the
report on urban planning published by the City Hall in 1961, I will show the
location of their housing and its relationship with the urban policy implemented
in the period. In the order established by this policy, bridges became elements
of connection as well as separation for the Blacks.

KEY-WORDS Location of Blacks in São Paulo (city); Black Cultural Association;


Impact of Urban Planning over Black families, Urban Bridges.

• 2
INTRODUÇÃO

Os levantamentos que cobrem as categorias de fenótipo nas tabulações censitárias no


Brasil ao longo do século XX são intermitentes. Um verdadeiro ofuscamento acerca do
perfil demográfico quanto a essas características se operou por meio do Estado. Os
primeiros recenseamentos realizados no Brasil, em 1972 e 1890, trazem dados sobre a
caracterização racial da população desagregados para territórios menores que o
município. Durante o longo período entre 1900 e 1940, os negros não aparecem nas
informações sobre a composição demográfica. Os censos de 1900, 1920 e 1970 foram
omissos em relação a dados de cor e raça. Em 1910 e 1930 a população brasileira não
foi recenseada. A categoria só voltaria a aparecer nos censos na década de 1940. Ainda
assim, o Recenseamento Geral de 1940 traz dados de cor agregados apenas por Estado,
inviabilizando pesquisas mais detalhadas. Entre as décadas de 1950 e 1960, os censos
registraram dados fenotípicos para a circunscrição dos municípios, mas não no seu
interior. O Recenseamento de 1970 não coletou dados de cor e raça. Nos censos de 1980
e 1991, a categoria volta a aparecer, agregada por município. Apenas nos censos de 2000
e 2010, é possível voltar a ver informações sobre cor e raça por unidades territoriais
menores que os municípios. Assim, durante todo o intervalo entre 1890 e 2000, é
impossível observar, a partir dos dados censitários, a distribuição da população negra no
espaço das cidades.
Em face desse silêncio, os próprios negros deixaram sua marca. Em 1954, um grupo de
ativistas que buscava ampliar a representação do negro nos diversos âmbitos da vida
social da cidade fundaram a Associação Cultural do Negro – ACN, uma organização que
iria perdurar na cidade até 1976. A ACN voltou-se particularmente para o
desenvolvimento da experiência cultural e esportiva dos seus associados. Em seus
arquivos, é possível consultar as fichas de 248 associados, com registros de nomes,
endereços, estado civil, profissão e outros. A informação dos endereços dos associados
consiste em uma fonte importante para o estudo da localização, distribuição e
concentração dos negros na cidade nesse período. A análise desses dados pode contribuir
para a observação do fenômeno que os dados censitários impedem de enxergar.
A ACN foi criada no contexto da comemoração do 4o Centenário da cidade. Em grande
medida, a associação foi fundada em resposta à ausência de representatividade da
população negra no âmbito das festividades e da narrativa histórica oficializada naquelas
comemorações. Ao mesmo tempo, a associação surgiu em uma conjuntura histórica de
aposta no desenvolvimento econômico nacional, e São Paulo era considerada o epicentro
desse desenvolvimento. Entre 1950 e 1970, a população do município registrou uma
variação de 2,1 milhões para 5,9 milhões de habitantes, um crescimento demográfico
próximo de 6% ao ano. Esse crescimento foi sustentado pelo desenvolvimento industrial
do período, fortemente amparado por uma estratégia de planificação econômica por parte
do Estado Nacional.
Nesse cenário, para dar conta do ordenamento desse surpreendente crescimento urbano,
a cidade de São Paulo produziu uma série de estudos e projetos urbanísticos, reunidos
em um volume que cobre o período entre 1957 e 1961. Defendemos neste trabalho que

• 3
esses planos e projetos urbanos podem ajudar a compreender a forma que a distribuição
do grupo negro assumiu na cidade nesse período, embora, nenhum desses documentos,
textos, desenhos e tabulações tenha exposto ou tratado disso diretamente. Ao contrário,
a articulação entre a concentração dos negros na cidade e as decisões da política urbana
estabelecidas por meio desses planos é possível de ser feita apenas de forma indireta,
por meio da construção, análise e comparação de dados de natureza diversa, incluindo
as informações de localização do grupo negro na cidade e a cartografia produzida pelo
poder público para a definição de suas diretrizes urbanísticas. Foi o que fizemos aqui.
Em termos metodológicos, este trabalho está dividido em três partes. Na primeira,
apresento em linhas gerais a Associação Cultural do Negro, seus propósitos e suas
dinâmicas de atuação. Na segunda, procuro fazer uma análise dos dados presentes nas
fichas dos associados, com especial atenção para os endereços nelas registrados. Eles
permitem realizar um mapeamento dos locais onde residiam esses jovens politizados e
conscientes da importância de se organizarem e se fazerem representar socialmente. Em
seguida, trago um estudo do material produzido pelo Departamento de Urbanismo da
Prefeitura Municipal referente ao planejamento da cidade entre 1957 e 1961. Esse
material, reunido em um volume denominado “Planejamento”, ajuda a compreender o
modo como a política urbana adotada no período intercedeu na distribuição da população
negra sobre o território urbano e contribuiu para a configuração indicada pelo conjunto
dos endereços analisados inicialmente.
Dessa forma, este trabalho contribui com o conhecimento acerca da presença e
localização dos negros em São Paulo e da compreensão dos processos envolvidos em sua
distribuição espacial na cidade, em um período em que são inexistentes as informações
oficiais sobre esse grupo no território urbano. Também contribuímos para entender as
pressões sofridas pelos negros por meio da própria política urbana implementada na
cidade, direcionando-o para determinadas áreas distantes do centro, em um momento
marcado pela chegada de contingentes de grupos negros do interior de São Paulo e de
outros estados do Brasil. Essas duas contribuições são ainda pouco exploradas pela
bibliografia que trata da questão urbana em São Paulo e acreditamos que este texto possa
lançar luz sobre questões ainda não estudadas nessa matéria.

ASSOCIAÇÃO CULTURAL DO NEGRO

A Associação Cultural do Negro foi fundada em 28 de dezembro de 1954 por um grupo


de pessoas engajadas em organizar uma instituição representativa da contribuição do
negro para a cultura paulistana. Esse grupo era formado, entre outros, por Américo dos
Santos, Geraldo Campos de Oliveira, José Assis Barbosa, José Correia Leite, Manassés de
Oliveira, Maria Helena Lucas Barbos e Mary de Oliveira. Seus objetivos eram fomentar a
educação, a memória e a respeitabilidade do negro (Domingues, 2007 p. 01-03).
No contexto imediato da fundação da ACN, pode-se dizer que a necessidade de sua
criação decorreu da exclusão do negro no âmbito das comemorações do VI Centenário da
Fundação da cidade, naquele mesmo ano. Para aqueles festejos, foram organizadas uma

• 4
série de exposições, congressos, atividades artísticas e culturais, para as quais foram
convocados industriais, empresários, artistas, intelectuais e profissionais de diversos
campos e especialidades, com a finalidade de representar o gigantismo de São Paulo. A
imagem construída nessa representação era de uma cidade que “não parava de crescer”
e que se tornava a ponta de lança do desenvolvimento do Brasil. O tom evolutivo dessa
leitura iniciava com o mito de origem situado na figura do bandeirante e culminava com
a imagem da cidade que mais crescia no mundo. Nessa construção, entretanto, os negros
não apenas não foram convidados como foram deliberadamente excluídos. Primeiro,
foram simbolicamente eliminados das atividades comemorativas, quando foi rejeitada
pela comissão responsável pelos festejos a proposta da criação de um monumento à Mãe
Negra, a ser instalado no Largo do Paissandu. A proposta foi rejeitada por diversas vezes
e aceita apenas mediante a apresentação de um abaixo-assinado (Lofego, 2004 p. 50-
52). Em seguida, foram também fisicamente excluídos quando da remoção de 204
famílias residentes em uma favela situada na área estabelecida para a criação do Parque
Ibirapuera, onde se realizaria a grande comemoração, sem que lhes fosse dado um
destino alternativo (Cuti, 1992 p. 163; Lofego, 2004 p. 33-84; Silva, 2012 p. 228; Barone,
2018 p. 121). Em um sentido mais amplo, entretanto, pode-se compreender a ACN como
uma organização negra para o fomento da cultura, dos esportes, do lazer e da
representação do negro em múltiplas esferas.
O estatuto da associação previa uma estrutura administrativa consistente, com um
Conselho e uma Diretoria Executiva, além de departamentos para a promoção de
diferentes atividades. Com essa estrutura, a ACN fomentou uma série de encontros de
cultura negra. Entre eles, organizou a comemoração dos setenta anos da abolição, em
1958, com uma programação composta de baile, apresentações teatrais, recitais de
poesias, competições esportivas e um ciclo de conferências (Domingues, 2007, p. 04;
Silva, 2012 p. 242-244).
Estudando o protesto político negro no Brasil ao longo de 100 anos desde a abolição,
Andrews (2016) classifica quatro períodos: a luta pelo fim da escravidão na década de
1880; a ascensão e queda da Frente Negra Brasileira na década de 1930; as organizações
negras da Segunda República (1945 a 1964); e a onda de protestos negros a partir de
1970. A periodização permite perceber que o protesto negro no longo século vinte não foi
uma sucessão de episódios esporádicos, mas uma longa e contínua luta, diretamente
obstruída pelas condições impostas pelo rompimento com o Estado democrático de direito
e o autoritarismo, de forma que a cada imposição do Estado, a participação do negro foi
bruscamente interrompida. De acordo com essa periodização, a ACN emergiu no terceiro
período proposto, que Andrews chama de Segunda República, ou República populista.
O movimento negro organizado no período da abertura política entre 1945 e 1964
estruturou-se em torno do Primeiro Congresso do Negro Brasileiro, realizado em 1950.
Em decorrência desse evento, a ACN promoveu diversas atividades relevantes para o
debate público da contribuição do negro para a vida cultural e intelectual brasileira, como
a Quinzena 13 de Maio, a preparação da Primeira Convenção Paulista do Negro e a
Semana Nina Rodrigues, todos realizados em 1956 (Silva, 2012 p. 239-40).

• 5
O órgão de imprensa da ACN, o Mutirão, iniciado em 1958, era uma publicação mensal
voltada para a divulgação da cultura negra na literatura, na música e nos esportes. O
Mutirão publicava peças literárias, textos sobre a vida e obra de autores negros, uma
coluna social e datas de aniversários, casamentos e óbitos. O jornal teve vida breve. Nos
acervos disponíveis para consulta, constam apenas dois números. Além disso, a ACN
publicou também os Cadernos de Cultura, uma coleção de livros de ou sobre autores
negros, que incluiu obras do escritor e poeta Oswaldo de Camargo, de Carlos Assunção,
além de textos dos pesquisadores Arthur Ramos e Sérgio Milliet.
No acervo da ACN, além das atas de reuniões e relatórios de atividades, correspondências
e panfletos, constam as fichas dos membros inscritos. São 248 fichas de associados,
contendo diversas informações como seus nomes, filiação, data e local de nascimento,
endereço e telefone residencial e profissional, além de uma fotografia 3x4. As fichas são
numeradas, permitindo entrever a continuidade da série de matrículas realizadas na
associação. Nota-se que, muito provavelmente, diversas fichas foram extraviadas, pois
nessa coleção de 248 fichas, algumas têm a numeração duplicada e algumas apresentam
numeração superior a mil. Ainda assim, essas fichas permitem-nos fazer uma análise do
perfil dos integrantes da ACN, que apresentamos a seguir.

ENDEREÇOS

A partir dos dados reunidos nas fichas dos associados, é possível esboçar o perfil dos
membros da agremiação. Em primeiro lugar, é preciso destacar que se tratam de pessoas
articuladas em torno de questões culturais e politicas. Nesse sentido, o perfil dos
associados não coincide e nem representa o total da população negra da cidade. O
Recenseamento de 1950 aponta que havia 169.564 pretos e 55.342 pardos no município
(IBGE, 1950). O universo dessa amostragem, constituído de 248 fichas, é insuficiente
para apontar indicativos sobre características do total dos negros de São Paulo. Em
termos percentuais, considerando que cada ficha corresponde a um membro de uma
família com cerca de 04 pessoas em média, o grupo representa cerca de 02% da
população negra da cidade em 1950. No entanto, ainda que reduzida em termos
proporcionais, a amostra é significativa em termos absolutos, trazendo dados importantes
para um cenário de escassez de fontes concretas acerca da localização dos negros na
cidade nesse período.
As fotografias colocadas nas fichas permitem reconstituir um quadro da composição racial
da associação. Embora uma grande parte delas não contenha fotos, é possível ver que a
cor da pele da grande maioria daqueles que apresentam fotos é preta.
Além das fotografias, as fichas também trazem dados sobre a origem, gênero, estado
civil, grau de instrução e profissão dos associados. De posse desses dados, é possível
estabelecer com bastante precisão as características sociais do grupo. Embora apenas
175 pessoas tenham indicado sua escolaridade nas fichas, é possível perceber que, dentre
esses, 125 (71,4%) declararam ter formação primária, ou seja, até quatro anos de
estudo; 41 (23,4%) declararam ter ensino secundário; seis declararam formação

• 6
superior; um declarou-se analfabeto; um declarou formação técnica. Os dados indicam
que o grupo negro engajado na associação tinha, em sua maioria, até quatro anos de
estudos formais. Quanto à profissão desempenhada pelos associados, tratava-se, em sua
maioria, de funcionários públicos, empregadas domésticas, comerciários, operários
industriais, prestadores de serviços como mecânicos, eletricistas, pintores e auxiliares de
escritório e profissionais manuais como costureiros e balconistas. Os dados sobre o estado
civil dos matriculados revelam uma questão interessante sobre as condições de gênero.
Do total, 140 eram homens e 108 eram mulheres. Entre os que declararam o seu estado
civil, 75 eram homens 57 eram mulheres solteiras, para 38 homens e apenas 11 mulheres
casadas. Fica evidente que o casamento diminuía muito a participação dos membros, mas
as mulheres participavam sensivelmente menos que os homens se estivessem casadas.
Em relação às origens, apenas 184 inscritos declararam sua naturalidade. Desses, 84
eram naturais da própria capital. Os demais eram migrantes que tinham sua origem, em
sua maioria, no interior de São Paulo (68) e em Minas Gerais (20). Poucos provinham do
Rio de Janeiro, Bahia, Sergipe, Espírito Santo e Piauí. Portanto, ainda estamos falando,
na grande maioria, de pessoas naturais da própria cidade (45,6%). Esse dado é
importante pois contradiz a percepção técnica do período, que atribuía à migração a
expansão urbana e o crescimento da pobreza no município (Barone, 2019 p. 60).
A partir dos endereços residenciais apresentados nas fichas dos associados, é possível
realizar um mapeamento da localização desse grupo na cidade. Os endereços indicam a
seguinte distribuição nos bairros da cidade ou em cidades vizinhas a São Paulo:

Bairro
Casa Verde 26
Pq Peruche 19
Vila Formosa 17
Aclimação, Centro 07
Jd. América, Vila Nova Cachoeirinha 06
Bela Vista, Imirim, Jd. Paulista, Vila Mariana 05
Perdizes, Vila Maria 04
Brooklin, Cambuci, Campos Elíseos, Consolação, Indianápolis, Lapa, Pinheiros, Santa Cecília, 03
Vila Prudente
Água Rasa, Brasilândia, Freguesia do Ó, Guarulhos, Higienópolis, Ipiranga, Limão, Mooca, 02
Paraíso, Penha, Ponte Pequena, Santana, Sumaré, Sumarezinho, Vila Gumercindo
Alexandria, Americanópolis, Belém, Belenzinho, Brás, Caieiras, Canindé, Catumbi, Caxingui, 01
Cerqueira César, Chácara Santo Antônio, Cruz das Almas, Ibirapuera, Jabaquara, Jaguaré,
Jd. Alberto, Jd. Europa, Jd. Prudência, Liberdade, Luz, Moema, República, Santa Cecília,
Santo Amaro, São Caetano, Tatuapé, Tucuruvi, Vila Albuquerque, Vila Aurora, Vila
Aricanduva, Vila Beatriz, Vila Bertioga, Vila Vila Buenos Aires, Vila Carolina, Vila Esperança,
Vila Guilherme, Vila Medeiros, Vila Munhoz, Vila Nova Conceição, Vila Palmeiras, Vila Ré, Vila
Santa Maria

FONTE: ACN. Elaboração da autora.

O mapeamento desses endereços permite observar mais claramente a territorialidade


descrita por essa distribuição. O Mapa 1 indica a forte concentração na zona Norte da
cidade, sobretudo nos bairros da Casa Verde e Peruche, mas também Imirim, Brasilândia
(52 endereços), e já algum pronunciamento na zona Leste, notadamente na Vila Formosa,

• 7
mas também Belenzinho e Penha (19 endereços). Nota-se, pela observação do mapa,
que há uma relativa concentração no centro da cidade, em conjunto com Consolação, Luz
e Liberdade (12 endereços). Endereços em Perdizes, no Brooklin, na Consolação, no
Jardim Paulista, no Jardim América, podiam referir-se à localização do emprego dos
inscritos, já que, nesses casos, as fichas não registram o endereço profissional.
Essa marcante concentração negra em bairros como Casa Verde e Peruche, na zona norte,
já foi tratada na bibliografia sobre negros em São Paulo. Estimulada pelo baixo custo dos
terrenos, a ocupação negra desses bairros foi favorecida pela presença de um núcleo
inicial de famílias cujas redes de familiares e conhecidos no interior do estado de São
Paulo e em Minas Gerais levou à fixação de migrantes negros sobretudo a partir da década
de 1940. Nessa região, uma quantidade significativa de instituições culturais negras como
a Escola de Samba Unidos do Peruche, a Capela de São Francisco e Paula e São Benedito
e o terreiro Ile Omo Dada atestam a consolidação da presença negra no bairro (Feitosa
et al., 2021 p. 69-91).
A Vila Formosa, em contrapartida, é muito menos identificada pelo núcleo negro ali
residente. Loteado em 1940 pela Companhia de Melhoramentos do Brás, com ruas que
seguiam o padrão das curvas de nível de um bairro-jardim, o bairro ganhou maior
ocupação a partir do cemitério ali implantado em 1949. Na década de 1980, a melhoria
da condição de acesso pela Av. Vereador Abel Ferreira e Av. Salim Farah Maluf geraram
uma grande valorização e a população mais pobre foi afastada. Os núcleos negros mais
distantes, na Vila Guarani e Sapopemba, permanecem até hoje.

PLANEJAMENTO URBANO

No mesmo período em que os negros se associavam para se representar no âmbito da


cultura, a prefeitura municipal organizou sua atuação por meio de uma série de projetos
de intervenção sobre a cidade, sistematizados e publicados em um volume intitulado
“Planejamento” (PMSP, 1961). O conteúdo desses planos e projetos pode ajudar a
compreender a formação das manchas que os endereços dos associados desenharam no
mapa da cidade.
O caderno “Planejamento” é um relatório apresentado como parte integrante do Plano
Diretor da cidade, realizado por meio de planos urbanísticos e projetos de lei ao longo do
período entre 1957 e 1961, que corresponde aos anos da administração de Ademar de
Barros como prefeito. O plano foi desenvolvido pela equipe do Departamento de
Urbanismo, criado em 1947. Segundo Feldman, a equipe técnica que compunha o setor
era pequena e extremamente eficiente, produzindo mapas e peças legais importantes
para estruturar a atuação municipal sobre a cidade. Sua orientação era no sentido de
implementar novas práticas de planejamento e metodologias de trabalho para a
elaboração do plano e a criação de instrumentos legais e parâmetros urbanísticos para
sua aplicação (Feldman, 2005 p. 78). A legislação, portanto, passava a assumir um papel
fundamental na intervenção sobre o desenvolvimento urbano. No entanto,

• 8
contraditoriamente, o plano permaneceu como um repositório de ideias que não foram
executadas na sua integralidade.
Constituído pelo conjunto de trabalhos realizados pelo Departamento, o volume apresenta
uma estrutura dividida em quatro partes: uma exposição dos fundamentos do Plano
Diretor, uma sessão de pesquisas, uma sessão de projetos e uma proposta de
reestruturação administrativa para o Departamento e para a Comissão do Plano, incluindo
o aparato de legislação para sua aplicação.
Esse conteúdo reforça a ideia do projeto amparado pela lei: “três aspectos da atuação
urbanística sobressaem, portanto: a engenharia e a arquitetura, a lei, a organização”
(PMSP, 1961 p. 11). A engenharia e a arquitetura referiam-se aos projetos em si. A lei
viabilizava, por um lado, a execução dos projetos em foco e, por outro, em uma
perspectiva um pouco mais abrangente, a sua adequação em relação ao uso e
aproveitamento do solo urbano, cuja regulação estava prevista e também deveria ser
orientada por lei, na forma do zoneamento. Finalmente, a organização se referia à
estrutura das equipes administrativas dos órgãos de planejamento que deveriam elaborar
e executar o plano e se responsabilizar pela distribuição dos serviços no território (idem
p. 15-18).
Feldman destacou dois objetivos em relação à criação desse aparato legal: o controle
sobre o crescimento da cidade e sobre o aparecimento de loteamentos clandestinos, uma
prática que, desde o início dos anos de 1940 provocava a expansão desordenada da
periferia urbana. No próprio volume, três outros objetivos também são claramente
incluídos: a desconcentração, visando a superação do modelo de cidade mononuclear,
extensivo e ilimitado da proposta de Prestes Maia no Plano de Avenidas (1930), que até
então definia de forma muito contundente a orientação do desenvolvimento da cidade,
por se tratar do único plano elaborado e seguido até aquele momento; a estruturação
urbana, por meio de conexões viárias; a priorização da periferia na ação planejadora, no
sentido da criação de sub-centros que ajudavam a descongestionar o centro e
estimulavam a redistribuição da população no território.
Além da equipe técnica da prefeitura, a pesquisa que subsidiou o plano apoiou-se de
trabalhos contratados e realizados por entidades especializadas (PMSP, 1961 p. 11). No
texto, claramente, o capítulo que trata das pesquisas é uma complicação de dados de
leitura sócio-espacial realizada pela SAGMACS (1958), enquanto o capítulo sobre a
estruturação do sistema viário, composto de projetos de intervenção sobre vias de
rodagem, apresentados em planta baixa e na forma da lei que autorizava sua execução,
foi formulado pelos técnicos da própria prefeitura.
Abrindo a discussão sobre as diretrizes urbanísticas elaboradas para a cidade, o volume
traz uma planta de síntese geral do Plano Diretor. Sua análise revela que, apesar de todas
as críticas em sentido contrário, o plano se estruturou fortemente a partir da organização
de uma rede de vias expressas para a metrópole. A planta apresenta um sistema de
avenidas radiais a norte, leste e sul, interligadas por um grande anel de contorno
perimetral, do qual partem as principais rodovias que atendem a cidade. É verdade que
a estruturação urbana proposta nessa planta-síntese não se encerra no esquema viário.

• 9
Sobre a mancha urbana, são dispostos os núcleos dos chamados “bairros-chave” ou
centros secundários (V. América, Itaim, Moóca, V. Prudente, V. Formosa, Casa Verde,
Tucuruvi, V. Maria, Freguesia do Ó, Santana, Lapa, Osasco, Pinheiros, Saúde, Santo
Amaro, Ipiranga, Penha, Itaquera, São Miguel). Além disso, duas linhas de metrô
projetadas no sentido Leste-Oeste (Lapa-Penha, passando pelo Brás e Belém) e Sudeste-
Sudoeste (Pinheiros-Ipiranga, passando pela Ponte Grande) se cruzavam exatamente na
região prevista como “expansão da zona central”, organizando o transporte de massa
proposto para a cidade. Finalmente, nota-se a discriminação de uma mancha denominada
“área de expansão da zona central” localizada ao norte do centro, com destaque para a
região entre os trilhos da Estrada de Ferro e o Rio Tietê e se estendendo também além
do eixo hídrico, na direção da Vila Maria.
Além do mapa-síntese, o caderno traz também uma série de mapeamentos amplamente
apoiados no estudo da SAGMACS e utilizando as peças gráficas produzidas naquele
contexto. Essas cartas foram elaboradas para demarcar no espaço informações diversas
de interpretação da situação urbana. O primeiro conjunto de cartas oferecia leituras do
processo urbano geral da metrópole, em escalas em torno de 1:100.000. A primeira
planta representava o crescimento da cidade, por meio da indicação do tamanho da
mancha urbanizada em cada período. Também estava apresentado em planta o limite do
município e do perímetro urbano, indicando as zonas urbana e rural. Em seguida, ainda
nessa mesma escala, uma série de plantas indicavam a cobertura serviços e equipamento
públicos como água, esgotos, gás, iluminação pública, telefones, coleta de lixo,
calçamento e percurso de linhas de ônibus.
Em seguida, três séries de mapas em escala 1:50.000 representavam a situação dos
bairros quanto à atratividade das suas centralidades, ao provimento de infraestruturas e
ao uso do solo. Esses conjuntos cartográficos também foram realizados pela equipe da
SAGMACS, contratada especificamente para aplicar suas metodologias de levantamentos
e pesquisas urbanas ao município de São Paulo. No primeiro conjunto, foram mapeados
os deslocamentos realizados nos bairros, por finalidade (compras, cultura, educação e
saúde, distrações). A partir dessa técnica de representação, percebe-se que o centro
(incluindo Consolação, Av. Paulista, Vila Mariana, Cambuci, Pompéia e Barra Funda)
resultava em uma área cujas viagens ali originadas tinham a própria região como destino.
A região de Santana representava uma polaridade muito importante em relação aos
bairros contíguos, como Tucuruvi, Tremembé, Chora Menino, embora também seja
possível perceber que os bairros de Casa Verde e Vila Maria, cuja concentração de viagens
era muito menor, estavam diretamente interligadas à cidade por meio de travessias do
rio Tietê, por meio da Barra Funda, no primeiro caso, e do Brás, no segundo. O centro da
Penha polarizava toda a Zona Leste da cidade, notadamente passando pelo sub-centro
de São Miguel, que polarizava as viagens de Itaquera. A Penha também exercia
atratividade em relação a Guarulhos, a norte do Rio Tietê.
O levantamento de uso do solo foi realizado sobre o mapa SARA Brasil, de 1930, e dedicou
especial atenção à distribuição das indústrias no território urbano. Havia um claro

• 10
interesse em definir as zonas mais propícias para a ocupação industrial em franca
expansão na cidade e responsável pela dinamização da economia local e nacional.
O terceiro conjunto de mapas enunciava a situação da cobertura de infraestruturas
urbanas, equipamentos públicos e serviços por bairro. Elaborados a partir da estrutura
gráfica proposta pela SAGMACS, os mapas representavam a presença, em porcentagem,
de vias principais, calçadas cimentadas, ruas pavimentadas, guias e sarjetas, coletores
de águas pluviais, rede de água, de esgotos, rede elétrica, iluminação pública, parques e
jardins, campos de futebol, estádios e clubes, transporte coletivo, correios e telégrafo,
telefone, limpeza de ruas, mercados e feiras. Equipamentos de educação e saúde foram
mapeados em uma carta genérica, a partir de uma tabulação indicando a cobertura ou a
precariedade das redes e da cobertura do atendimento.
É pertinente observar como as regiões ocupadas pelos negros da ACN são retratadas no
plano. A Casa Verde foi retratada nesse mapeamento em maior escassez de cobertura
das redes que a região polarizadora de Santana, e elas vão se tornando mais precárias
conforme se afastam do eixo do rio Tietê e se aproximando da região mais afastada, ao
pé da Serra da Cantareira. A região da Penha, a leste, apresenta uma configuração muito
menos contemplada quanto ao atendimento das redes de infraestruturas, em toda a
extensão de sua área de influência. A Vila Formosa, onde se encontra uma pequena
concentração de membros da ACN, também era bastante desconhecida do poder público
e não representava uma área de especial interesse. Justamente as duas áreas que
concentraram mais membros ativos da associação são aquelas menos estudadas no plano
da década de 1950.
A partir da planta-síntese, dos capítulos de pesquisas, que traz os subsídios de leitura
sócio-espacial, incluindo o crescimento demográfico, o uso do solo e a caracterização de
cada bairro quanto à cobertura do atendimento das redes de infraestruturas e serviços,
e de projetos (eminentemente viários, como se verá), é possível afirmar que a lógica que
orientou a estruturação urbana estabelecida pelo plano baseava-se em uma sólida rede
viária, com conexões troncais cobrindo toda a mancha urbana e interligando os diversos
sub-centro previstos em uma periferia cujo horizonte seria a autossuficiência, na medida
do possível.
É possível estabelecer uma relação entre as intenções de descongestionar o centro e
estruturar a periferia: “A diretriz de operações estabelecida pelos técnicos, pelos
assessores de planejamento e pela administração e fundada na mais atualizada doutrina
urbanística é o da desconcentração das funções urbanas e sua reorganização e
reaparelhamento em uma nova escala, condizente com as dimensões da cidade e com
sua projeção futura” (PMSP, 1961 p. 11).
A questão do descongestionamento do centro é perceptível no planejamento de São Paulo
desde o projeto de Victor da Silva Freire para a criação de um pequeno anel viário entre
as ruas Líbero Badaró, Benjamin Constant e Boa Vista, em 1911. Seguindo essa mesma
orientação, em 1930 se consolida o projeto do anel viário de contorno, chamado de
Perímetro de Irradiação. Não por acaso, esse anel viário central foi a obra pela qual se
iniciaram os trabalhos de implementação daquele plano, no início da década de 1940. O

• 11
tema da “congestão” urbana era tratado internacionalmente e os planos para São Paulo
entravam em sintonia com a noção amplamente difundida no urbanismo praticado nos
Estados Unidos no mesmo período, que identificavam a convergência de interesses e
atividades na área central das cidades como um problema a ser equacionado (Topalov,
1990 p. 89).
No entanto, além de “descongestionar” a área central o plano para São Paulo da década
de 1950 previa também o seu “reaparelhamento em uma nova escala”, indicando uma
orientação voltada para instituir novos centros na periferia. A relação entre essas duas
intenções parece ser complementar e, em certa medida, parece estar orientada para a
criação de uma estrutura urbana mais homogênea sobre a integralidade do território. No
entanto, os termos dessa orientação não parecem se harmonizar com a homogeneização.
Pelo contrário, a relação entre a periferia e os sub-centros urbanos projetados daria um
novo sentido de hierarquização para a cidade, apoiando amplamente o almejado
“descongestionamento” da área central. Vamos analisar essa relação em seguida.

Periferia

É certo que conhecer a periferia era estabelecer um caminho com o fim de reverter um
quadro da clandestinidade. Porém, esse não parecia ser o único objetivo ensejado naquele
plano no que diz respeito à periferia. Em primeiro lugar, é preciso reconhecer o esforço
realizado pelo poder público municipal em, primeiramente, conhecer a periferia e, em
seguida, perceber seu grau de desenvolvimento urbano e autonomia em relação ao
centro, como registrado na seguinte passagem:

Zonas inteiras da periferia, que em torno de 1940 eram desprovidas de todo o serviço e
comércio e deviam recorrer fatalmente ao centro, hoje são absolutamente autônomas,
mesmo no setor bancário, mesmo no setor de comércio fino e de luxo (idem p. 12).

A articulação entre os núcleos de uma periferia em crescente autonomia e um circuito


viário concebido na escala metropolitana conduziria a um duplo resultado: o
descongestionamento do centro e a retenção de população na periferia. O significado
desse resultado duplo dá margem a uma interpretação ambígua, que vai do
fortalecimento da periferia nas várias direções à reserva de uso privilegiado do centro
para os grupos dominantes. O trecho a seguir pode ser compreendido a partir dessa
ambiguidade:

Quem vive nesta metrópole se admira de como, em menos de uma década, sua estrutura
tenha se fortalecido e aparelhado. E esse fato realizou-se, quer nesses bairros distantes,
quer no centro, que com a mesma velocidade se aparelhou para reter uma grande massa
de pessoas e oferecer à mesma facilidade abastecimento e diversão (idem p. 12).

O trecho citado evidencia a intenção predominante que regia a proposta da criação de


sub-centros e o aparelhamento da periferia. O plano estimulava o aparecimento de
estruturas de comércio e serviços, com o objetivo de reter a população nos bairros mais

• 12
distantes, tanto para o consumo como para o trabalho. Não se tratava de homogeneizar
a distribuição de recursos e riquezas pelo território, mas de “reter uma grande massa de
pessoas” nas periferias afastadas do centro, obtendo, assim, o desejado
descongestionamento. Confirmando a estratégia, o texto ainda informa: “Um índice
significativo dessa reestruturação urbana nos é oferecido pela forte queda do índice de
mobilidade nos transportes coletivos” (idem p. 12). Ou seja, a reestruturação periférica
refletia diretamente na redução dos deslocamentos para o centro.
Descongestionar era, portanto, desviar o fluxo viário da área central, por um lado, e
afastar um determinado perfil de habitantes, identificados no plano como “uma grande
massa”. Assim, em uma cidade que crescia a 5,6% ao ano, estimulada pela vigência de
um plano econômico nacional que investia fortemente na criação de um polo industrial e
gerava atração de trabalhadores de outros estados, o fortalecimento e aparelhamento
dos bairros significava a retenção dessa população nas periferias, preservando uma certa
exclusividade na área central para os grupos detentores de recursos suficientes para
permanecer no local. Os negros, seja os que já estavam na cidade, seja os que chegavam
como migrantes interestaduais, não faziam parte desse grupo privilegiado.

Conexões viárias – pontes

A rede viária projetada no documento ia além daquela estrutura apresentada na planta-


síntese do plano. Efetivamente, o capítulo de “projetos” consiste em um conjunto de obras
viárias. O projeto de estruturação viária da metrópole era justificado em função da
saturação e sobrecarga do centro, da extensão crescente dos percursos para o centro e
do agravamento das condições dos transportes coletivos. A solução elaborada para esses
problemas era a organização funcional dos bairros-chave, ou centros secundários, e sua
integração por meio das obras viárias.
É importante perceber como a solução viária atinava com os objetivos do Plano Nacional
de Metas, cujos recursos obtidos a partir de empréstimos na banca internacional eram,
em boa parte, destinados a investimentos em infraestrutura urbana, particularmente de
transportes. Entre as obras concebidas e incluídas no plano, temos a construção de vias
expressas, incluindo a Av. Anhangabaú, atual Av. 23 de Maio, a Marginal Pinheiros e o
entroncamento Pinheiros/Tietê, o alargamento de inúmeras avenidas por toda a cidade,
como a Av. Santos Dummont/Praça das Bandeiras e Av. Cruzeiro do Sul, a Av. Ipiranga
e Amaral Gurgel e a Av. Brigadeiro Luiz Antônio, entre outras, algumas obras de melhoria
de acesso às rodovias, o túnel central Liberdade-Glicério, jamais executado, algumas
obras de melhoria de acesso às rodovias, a adoção de mão única para o Perímetro de
Irradiação, além de obras de melhoria de acesso a diversas pontes, como a Euzébio
Matoso em Pinheiros, a Freguesia do Ó, a da Casa Verde, a da Penha, o complexo de
pontes na Av. Cruzeiro do Sul (Pari, Santa Ifigênia e Brás), os trevos Jaguaré e
Anhanguera, a ponte do Tatuapé (não realizada), a passagem superior à Av. Antártica, a
Ponte Cidade Universitária, a Ponte do Piqueri e os viadutos Pacheco Chaves na Vila

• 13
Prudente, e Rio Branco, no Bom Retiro, a sua maioria executados ao longo das décadas
de 1950 e 1960.
Em se tratando das pontes da cidade, vale a pena recuperar o seu significado histórico
para os escravizados e libertos antes da abolição. As pontes da cidade podem ser
interpretadas por sua conotação racial desde pelo menos a primeira metade do século
XIX. Na cidade, naquele período, 70% da população era livre e 30% escrava. Nos escalões
inferiores da sociedade, conviviam senhores vivendo do aluguel de seus poucos escravos,
além de negros livres e libertos, a grande maioria sustentada por um comércio pequeno
e pobre, de gêneros alimentícios, hortaliças, toucinho e fumo, típico de um núcleo urbano
de uma economia de subsistência (Dias, 1985, p. 23). As pontes sobre rios e ribeirões
em torno do núcleo urbano acabavam por constituir elementos importantes na definição
dos limites da cidade. Elas constituíam suas “entradas” e seu principal acesso. Em torno
dessas pontes, desenvolviam-se diversas atividades.
As lavadeiras juntavam-se na Várzea do Carmo e nas pontes do Ferrão no caminho da
Penha, do Lorena, do Piques, do Bexiga, no tanque do Zunega, no rancho do Acu e São
Carlos, em Ifigênia e nas margens do Tamanduateí, do Tietê e do Anhangabaú.
Diariamente, os guarda-corpos dessas estruturas eram utilizados para estender roupas
lavadas. Ao mesmo tempo, por constituírem passagem obrigatória de todos que vinham
com suas roças e mercadorias para serem vendidas na cidade, o comércio ambulante
também gravitava em torno dessas pontes. Era ali que se verificavam as licenças e de
cobrava o fisco sobre essas atividades. As pontes eram demarcações também para
fiscalização das licenças e aplicação de multas para comercialização de gêneros como
ovos e outros produtos. Toques de recolher, passaportes, salvo-condutos, impostos e
taxas eram frequentemente cobrados nessas travessias, constituindo verdadeiros portões
para os vendedores (Dias, 1985 p. 145).
A utilização das pontes como ambiente físico para a fiscalização e as cobranças abria
flanco para o uso policial dessas estruturas de transposição de barreiras. Na cidade, nos
espaços públicos, ali onde o negro não era controlado pelo seu senhor, a polícia e o
controle de conduta por meio do uso da violência funcionavam como um dispositivo
público de manutenção da vigência da escravidão. Fiscalizava-se negros portando paus e
facas. Capitães-do-mato guardavam as pontes e entradas da cidade para garantir a
provisão de alimentos para o abastecimento urbano. A perseguição às negras de tabuleiro
também se devia a creditarem a elas levarem alimentos e informações aos fugitivos e
quilombolas (idem p. 163-5). Pode-se pensar essa associação entre vendedores sem
licença e bandidos imaginada pelo poder público como uma das formas mais bem
acabadas do preconceito racial urbano daquele período.
Sendo assim, as pontes da cidade podem ser consideradas como as primeiras estruturas
físicas de segregação urbana utilizadas ao mesmo tempo para fazer as conexões e
transposições de obstáculos e também para garantir o privilégio no uso e na ocupação do
núcleo central. Elas definiam a separação entre as freguesias urbanas, como Sé, Sta.
Ifigênia e Consolação, e as rurais, como o Brás, Nossa Senhora do Ó e Penha, bairros
periféricos que, por sua vez, também desempenhavam um papel estratégico na chegada

• 14
de caminhos comerciais importantes como o acesso a Goiás, no caso do Ó, e ao Rio de
Janeiro, no caso da Penha. Essas freguesias mais periféricas constituíam os limites
externos da cidade e era para essas regiões que se buscava afastar ou manter afastada
a população negra e pobre da cidade.
O conjunto enorme de obras sobre pontes registrado no plano para São Paulo de 1956
aponta para um relevante sentido geral de reiteração do significado das pontes da cidade.
Se no pré-abolição essas estruturas funcionavam como portas de acesso ao núcleo urbano
principal e permitiam a fiscalização e o controle, na década de 1950 elas vão engendrar
outros acessos, rumo às periferias. Nessa ressignificação, as pontes representam o meio
pelo qual se opera a passagem, a transposição da barreira dos três rios que determinam
os limites da cidade privilegiada. Através das pontes, é possível a criação dos novos
bairros afastados do centro, onde a população não mais desejada na área central
privilegiada deve ser confinada. A planta das obras urbanas ensejadas no período de 1956
a 1961 representa uma costura que permite justamente as novas aglomerações negras
instaladas sobretudo nas zonas norte e leste da cidade indicadas no mapa dos endereços
dos membros da ACN.

Estação Rodoviária

A relação entre o a política urbana nesse período e a mancha desenhada pelos endereços
dos membros da ACN fica clara ao se observar o tratamento dado ao setor norte da cidade
no plano. O setor norte é descrito no texto como um foco privilegiado de orientação geral
do plano:

Como consequência disso, estamos estudando a previsão do alastramento do centro urbano


na vasta zona entre as ferrovias e o sopé da linha de colinas que vai da Casa Verde à Vila
Maria, zonas onde existem inúmeras grandes áreas de propriedade pública, e que no mais
está bastante obsoleta e iniciando uma fase de profunda transformação imobiliária (idem
p. 16).

Para essa área, nos terrenos públicos, previa-se estabelecer grandes estruturas
industriais, incluindo a implantação de uma grande feira industrial da cidade (o Anhembi)
e de comércio atacadista e armazenamento, além de um entreposto rodoviário (às
margens do rio Tietê). O objetivo era descongestionar a área central e arredores e alterar
o esquema do próprio núcleo central e de toda a cidade, estabelecendo uma nova
estruturação na escala da metrópole.

Foi estudada também a previsão de uma grande estação rodoviária geral na Ponte Grande,
em terrenos municipais, em coordenação com o desenvolvimento das importantes funções
urbanas previstas para essa zona da cidade (...) que provocará fatalmente um
deslocamento salutar da zona urbana central para o lado norte da cidade, provido de áreas
planas ainda não aproveitadas convenientemente e em breve livres das enchentes do Tietê
(idem p. 16).

• 15
A rodoviária projetada ficava localizada às margens do rio Tietê, já indicando um desejo
de situar o usuário nos limites da área central. Os critérios adotados para a escolha do
local incluíram a situação “privilegiada” do terreno, em face dos acessos às avenidas
marginais do Tietê, Radial Norte-Sul e Avenida Cruzeiro do Sul; a localização em área
servida pelo Metropolitano (em projeto); a localização em área municipal, garantindo a
possibilidade de execução imediata (idem p. 172).
O projeto da estação rodoviária incluído no plano é sintomático. Talvez ele seja a
expressão mais acabada da vinculação existente entre as diretrizes urbanísticas
desenhadas para São Paulo e sua inserção em um projeto de desenvolvimento nacional
fundamentado na contração de empréstimos em moeda estrangeira para a criação de um
polo econômico de proporções agigantadas. Atraindo trabalhadores de todo o país, esse
polo econômico deveria estar articulado aos estados fornecedores de trabalhadores por
meio de estradas de rodagem. A porta de acesso desses trabalhadores seria, portanto, a
estação rodoviária prevista. Ao mesmo tempo, sua localização indica o lugar a ser
ocupado pelos trabalhadores migrantes: as áreas externas ao centro, interligadas entre
si por meio da via expressa marginal do Rio Tietê.

CONCLUSÃO

No percurso deste texto, tivemos a oportunidade de trazer alguns dados relevantes sobre
a presença e localização da população negra na cidade em um período em que temos
pouca informação disponível sobre esse assunto. Os dados censitários são intermitentes
e precários e não indicam localizações territoriais menores que o município. Nesse
sentido, é relevante que os próprios negros, a partir de sua organização institucional,
ajudaram a trazer informações sobre sua localização na cidade, por meio das fichas de
matrícula da Associação Cultural do Negro, criada na data emblemática de 1954,
justamente em contraponto ao que ela significa para a cidade. Nesse sentido, a própria
construção do mapa que os dados das fichas dos matriculados permite constitui, por si
mesmo, uma narrativa contra-hegemônica.
Os dados registrados nas fichas da associação permitem elaborar uma caracterização do
perfil dos associados, jovens negros politizados que viveram na cidade entre 1954 e 1976.
Os associados não podem ser tomados como uma amostra representativa do universo da
população negra da cidade no período, pois são reunidos por afinidade e interesses
específicos que representam um recorte particular desse perfil. Por serem engajados no
ativismo político, podem pertencer a um estrato social que os diferencia. Ainda assim, a
quantidade expressiva de membros da ACN estimula uma reflexão produtiva sobre sua
localização na cidade, sobretudo se confrontada com outros parâmetros, como os dados
de levantamentos anteriores sobre a localização dos negros na cidade, assim como dados
de natureza diversa, como os da política urbana implementada na cidade no período, que
possam ter condicionado a posição ocupada por esse grupo no espaço urbano. Dessa
forma, o artigo traz dois resultados importantes: a localização desse grupo entre as

• 16
décadas de 1950 e 1970 na cidade e a possibilidade de verificar a relação dessas
concentrações com a política urbana ensejada no período.
O mapa composto pelos endereços dos membros da ACN mostra uma concentração
importante no norte, mas também a leste e a sul da cidade, mas nunca a oeste. O centro
expandido e o oeste, que correspondem às áreas mais valorizadas da cidade, onde se
concentram historicamente os investimentos públicos em infraestruturas e onde a cidade
é mais consolidada, foram ocupados predominantemente pelos brancos. Quando
confrontados entre si, os três mapas apontam para a expulsão dos negros de bairros que
antes ocupavam e a ocupação de um vetor fortemente direcionado para o norte.
Em relação ao segundo resultado do trabalho, o plano urbanístico elaborado no período
de criação da ACN inclui uma série de elementos que ajudam a compreender como a
política urbana implementada ajudou a criar uma configuração racializada dos espaços
centrais e periféricos da cidade. A leitura urbana da periferia, a estruturação urbana
proposta e os projetos pontuais que, em conjunto, representam uma intervenção
urbanística em grande escala, contribuem para melhorias do sistema de conexões viárias
entre centro e sub-centros apontam para a intenção clara de descongestionar o centro e
estruturar a periferia. No entanto, essa intenção pode assumir uma conotação dupla. Os
resultados da análise do plano indicam que as pontes e estruturas de conexão
implementadas no período são ao mesmo tempo estruturas de segregação. Foram elas
que viabilizaram a expulsão dos grupos negros antes centralmente instalados para as
áreas fora dos limites do centro expandido. Além disso, fica claro que existe no plano um
foco no direcionamento do vetor de expansão urbana para a zona norte, embora o
material demonstre também um grande desconhecimento exatamente das áreas
ocupadas pelos negros nas recentes periferias urbanas daquele momento.
Finalmente, as pontes que foram objeto das melhorias incluídas no plano indicam um
desenho de cidade se consolidaria a partir daquele momento, em que o segmento situado
no espaço entre os rios Tietê, Pinheiros e Tamanduateí, era destinado à população branca
da cidade. As pontes desenhadas na planta e nos projetos representam justamente a
transposição desse limite geográfico, que definiu historicamente o contorno da área
urbanizada e agora passava a definir uma área privilegiada onde uma boa parte da
população urbana era indesejável e não poderia permanecer.

BIBLIOGRAFIA

• 17
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em São Paulo (1850-1888). São Paulo, Hucitec, 1988.

Mapa 1. Localização dos endereços dos membros da ACN. Fonte: ACN. Elaboração própria.

• 18
Mapa 2. Síntese Geral do Plano da Cidade. Fonte: PMSP, 1961.

Mapa 3. Melhoramentos viários. Fonte: PMSP, 1961

• 19
CAMINHAR NA CIDADE BRASILEIRA DO SÉCULO XIX:
quando negros e negras forjavam paisagens com seus pés

WALKING IN THE BRAZILIAN CITY OF THE 19TH CENTURY:


when black men and women forged landscapes with their feet

Cidade, política e cultura;

BRITO, Tadeu
Doutor; PPGAU-UnB
cosmopopeia@gmail.com

SABOIA, Luciana
Profa. Dra.; PPGAU-UnB
lucianasaboia@unb.br
RESUMO

Como caminhar pela cidade forjou paisagens no século XIX? Partindo da


hipótese de que existe uma relação intrincada entre a formação e
funcionamento das cidades brasileiras e a presença negra, busca-se, por
meio do encontro entre iconografia produzida no período, pesquisas
históricas e estudos teóricos sobre o negro no Brasil, evidenciar como
caminhando nas cidades brasileiras do século XIX, negros e negras
transformaram as cidades e produziram paisagens. Nos movimentos dos seus
pés desenharam paisagens das cidades brasileira. No entanto, para
compreender esse caminhar como parte da paisagem não basta ver, é
necessário primeiramente que se reconheça sua presença na cidade.

PALAVRAS CHAVE. Paisagem; Corpo; Negrura; Caminhar; Cidade do Século


XIX.

ABSTRACT

How did walking through the city forge landscapes in the nineteenth century?
Starting from the hypothesis that there is an intricate relationship between
the formation and functioning of Brazilian cities and the black presence, we
seek, through the encounter between iconography produced in the period,
historical research and theoretical studies on blacks in Brazil, to show how
walking through Brazilian cities in the nineteenth century, black men and
women transformed the cities and produced landscapes. In the movements
of their feet they drew landscapes of Brazilian cities. However, to understand
this walk as part of the landscape it is not enough to see it, it is first
necessary to identify their presence in the city.

KEY-WORDS Landscape; Body; Blackness; Walk; 19th Century City.

• 2
CAMINHAR, CORPO, CIDADE E PAISAGEM
Existe uma relação intrincada entre a formação e funcionamento das cidades brasileiras
e a presença negra, e esta relação traça conexões entre passado e presente, é
tencionada na invisibilização/ visibilização em narrativas da história da cidade e do
urbanismo, está na construção e definição dos espaços das cidades, como também na
ação cotidiana e na produção de sentidos que forjam paisagens dinâmicas. No entanto,
quando esta relação não é reconhecida, as cidades podem ganhar novas roupagens e
estando apenas atualizando antigas relações entre sujeitos e espaços, pois suas formas
e estruturas não estão distantes da ideia de mudá-las para que tudo fique como está.1
Neste sentido, o caminhar além de ser uma ação em que o corpo estabelece uma
relação direta com o cidade, quer seja a atravessando, cruzando, vivenciando ou
mesmo a utilizando para cumprir um trajeto preestabelecido, se torna também meio
para visibilizar sujeitos que praticam essas ações. E nessas ações o corpo está
moldando paisagens. Então, como o caminhar de corpos negros moldaram paisagens do
século XIX?
Nesse período as maiores cidades do país, Salvador, Rio de Janeiro e Recife,
começavam a se tornar centros urbanos com investimentos na transformação da sua
forma com obras, construção de equipamentos urbanos, educacionais, administrativos,
jurídicos, movimento que fora se intensificando gradualmente com a chegada da família
real ao país, seguindo com a independência e o desejo de construção de uma nação nos
trópicos (SCHWARCZ; STARLING, 2018). Foi também nesse século que ocorreu uma
grande entrada de africanos escravizados no país, apenas na sua primeira são trazidos
mais de dois milhões deles, aproximadamente 40% do total trazido durante todo
período de vigência do tráfico negreiro internacional (CHALHOUB, 2012). Essas cidades
tornavam-se polo de atração e esperança de encontrar trabalho para um contingente de
negros libertos, livres e em fuga, como também para brancos vindos de Portugal que
buscavam ocupar cargos no funcionalismo público e no comércio. Esse aumento
populacional obrigou a gestão das cidades a encontrar soluções de moradia,
salubridade, saúde pública, abastecimento de água e alimentos, bem como repressão à
vadiagem e à circulação de pessoas negras.
Foram essas pessoas negras trazidas ao país na condição de escravizados e seus
descendentes que no século XIX trabalharam na transformação física dessas cidades,
como também as colocavam para funcionar sendo responsáveis por executar os
serviços de distribuição de água, esgoto, iluminação pública, produção e distribuição de
alimentos, transportes de pessoas e mercadorias. Esses trabalhos e outros serviços
ofertados e realizados ao ar livre, como vendedoras e vendedores de comida e outros
produtos, tornavam constante a presença negra circulando pela cidade. Corpos, sons,
cheiros, gestos e cantos que ocupavam e transitavam pelas ruas, praças, mercados,
beiras de rios, portos, fontes e chafarizes. A cidade brasileira se tornava urbana e se
estruturava com trabalho e circulação de pessoas negras. (BRITO, 2022)

1
Referência a frase de Giuseppe Tomasi di Lampedusa no romance O Leopardo.

• 3
Aqui vale ressaltar que quando nos referimos a pessoas negras é um grupo social
diverso que partilha marcas em comum, não se refere a um grupo étnico específico,
nem defende uma ideia de mistura étnica que apazigua diferenças internas aos negros
no Brasil, nem que todos sujeitos nele inseridos sejam escravizados. Compreende-se
que no século XIX se conformou uma estrutura de poder que atuava na vida cotidiana
das cidades demarcando separações entre pessoas brancas e negras que se
espacializavam por meio da determinações de distâncias, normas, controles e acessos
que definiam “permissões” por meio de autorizações formais e simbólicas, horários e
lugares circulação e serviços a serem prestados por cada corpo.
Nesse período havia uma variedade de pessoas negras que circulavam pela cidade,
eram negros, crioulos, pretos, cabras, mulatos, africanos, brasileiros, escravizados,
libertos, livres, que davam complexidade à dinâmica interna das cidades do século XIX.
Haviam também diversas etnias negro africanas que atuavam na construção de laços
sociais e econômicos e que marcavam distinções e espacializações entre elas, inclusive
com demarcações territoriais e de trabalho. Tal como aponta Lêda Maria Martins “a cor
de um indivíduo nunca é simplesmente uma cor, mas um enunciado repleto de
conotações e interpretações articuladas socialmente, com um valor de verdade que
estabelece marcas de poder, definindo lugares, funções e falas” (MARTINS, 2003, p. 35)
e nesse sentido ser da cor negra no Brasil do século XIX definia conotações sociais
específicas.
Compreende-se que a ação negra na cidade forjou e continua a forjar paisagens, em
que essas são a espacialização e materialização de relações sociais, que contém
valores, contradições e ambiguidades, disputas econômicas e sociais, modos de vidas e
de produção dados no tempo e em sobreposições históricas (SANTOS, 2006, 2014). Ao
mesmo tempo, paisagem não é um espaço paralisado no tempo, não é estanque, ela
está em constante movimento e dinâmica, que traz para o espaço a dimensão da ação,
“a paisagem [...] como espaço do agir e de representação da ação coletiva” (SABOIA,
2020, p. 392). Neste sentido, a paisagem estabelece uma relação direta com o corpo,
elemento físico que age, que traz movimento, dinamicidade e que materializa na
paisagem valores e sentidos subjetivos.
Assim, para responder a pergunta “como o caminhar de corpos negros moldaram
paisagens do século XIX?” lançamos mão da iconográfica produzida no período, de
pesquisas históricas que se baseiam em análises do cotidiano dos escravizados, na
variedade de relações dentro do sistema escravista e nos trabalhos urbanos, bem como
em estudos teóricos sobre o negro no Brasil. Com essas fontes em mão nos lançamos
na produção de uma encruzilhada teórica que se espacializa no estudo da paisagem e
que tem como fim a produção desta narrativa. A encruzilhada colabora na construção
dessa imaginação pois propõe uma expansão na compreensão das fontes, cruzando
limites e tensionando possibilidades interpretativas, pois não se prioriza um caminho
teórico ou outro, mas um caminho e outro para assim evidenciar camadas que se
sobrepõem na percepção da vivência na cidade.

• 4
No entanto, percebemos que para entender o caminhar negro enquanto ação que forja
paisagens se faz necessário não apenas ver e ler a presença negra, pois dentro de uma
camada de invisibilidade ao qual a relação entre negros e a cidade foram colocados na
narrativa da História da Arquitetura e do Urbano, é necessário primeiramente
reconhecer sua presença na cidade. Para isso, se torna fundamental a definição de
conceitos que ofereçam lentes que evidenciam a ação negra no espaço e essa forjando
paisagens. Assim, iniciamos o primeiro tópico tratando sobre o reconhecer, para então,
no segundo observarmos o ato de caminhar do sujeito negro na cidade por meio da
iconografia e reflexões teóricas.

NEGRURA: RECONHECER SUJEITOS QUE FAZEM A PAISAGEM


Cotidianamente negros e negras vivenciavam as cidades brasileiras do século XIX seja
por meio do uso, deslocando-se, como mão de obra, sendo infraestruturas ou mesmo
celebrando, e nessas ações forjam paisagens. Ao mesmo tempo que essas cidades
começavam a transformar suas formas assumindo feições urbanas de inspiração
europeia e utilizando para isso a mão de obra e saberes negros, era também espaço
para que negros e negras travassem suas lutas cotidianas, reivindicando a vida. Por
meio de deslocamentos e da execução dos trabalhos, foi possível para eles reconstruir
laços de solidariedade, comunitários, de afeto e de vinculação com a terra. Essas ações
negras produziam marcas no espaço e imprimiam materialidade ao tempo.
No entanto, quando se olha para produção de parte dos estudos da História da
Arquitetura e do Urbano Brasileira acerca do período imperial, percebe-se que formam
um conjunto de narrativas que evidenciam as linguagens neoclássica e ecletismo,
expressos nas formas e transformações das edificações na planta, fachadas, lote e na
relação com a cidade, sendo influenciados, principalmente, pela ordem estética trazida
ao país pela Missão Francesa e reafirmado com a abertura da Academia Imperial de
Belas-Artes. São poucos os estudos que tratam com mais afinco da relação entre
cidade, sua forma, edificações e comportamento socioeconômico, e a maioria destes
encerram suas reflexões no período colonial.2 Compreendemos que mesmo com as
contribuições destes estudos para a produção de conhecimento na área, o fato de
narrar um olhar restrito às formas arquitetônicas é uma maneira de legitimar o poder
institucional e político de uma maneira ver a cidade. Naturaliza-se uma posição de
narrador da história que invisibiliza contradições e sujeitos que também fazem parte do
processo de constituição da cidade brasileira e, posteriormente, de sua paisagem
urbana.
Imaginamos que para narrar sujeitos negros forjando paisagens, se faz necessário
primeiramente reconhecê-los, ou seja, certificar como verdadeira sua presença nas
cidades e assim retirar uma camada de invisibilidade que os cobre nas narrativas
históricas. E para isso os conceitos são importantes, pois funcionam como lentes que

2
Para exemplificar este debate ver: BUENO, 2012; DELSON, 1997; LEMOS, 1979, 1989; MARX, 1980;
REIS FILHO, 1968, 1976.

• 5
dão traços aos sujeitos e suas ações no espaço e geram contornos que nos ajudam a
enxergar o que até então estava invisibilizado. Reconhecer sujeitos e suas marcas
impressas nas cidades em camadas de ação que se sobrepõem na matéria e no tempo,
tal como texturas que se sobrepõe na paisagem. E para reconhecer as marcas que
negros e negras imprimam nas paisagens por meio de suas ações, nos aproximamos da
ideia de negrura desenvolvida por Lêda Maria Martins, para a qual

o negro – a negrura – não é pensado como um topos detentor de um sentido metafísico


ou ontológico, não é uma fronteira, mas uma noção figurativa. Afinal, como alerta Gates3
a negrura (blackness) “não é um objeto material, um absoluto, ou um evento, mas um
tropo; ela não tem uma ‘essência’ como tal, mas é antes definida pela rede de relações”
que a instauram esteticamente (MARTINS, 1995, p. 66).

Nesse sentido, estendemos a ideia de negrura para a paisagem, onde ela passa a se
referir a marcas que a vivência negra imprime na matéria. A negrura é relação do corpo
negro na paisagem, da ação no espaço. Assim, chamamos de negrura as marcas que
vão sendo registradas, impressas, riscadas na paisagem por meio de deslocamentos,
trabalhos, afetos, redes sociais, movimentos, gestos, sons ou na simples presença do
corpo. Podemos também fazer associação do termo negrura como marcas na paisagem,
tal como apontado por Augustin Berque, em que a paisagem é uma marca de expressão
de uma civilização e também matriz, “porque participa dos esquemas de percepção, de
concepção e de ação – ou seja, da cultura – que canalizam em um certo sentido a
relação da sociedade com o espaço e com a natureza e, portanto, a paisagem”
(BERQUE, 1998, p. 84-85).
Nesse caminho, reconhecemos a negrura observando a presença do corpo negro na
cidade com seus movimentos carregados de saberes trazidos da África em encontro
com estratégias de resistências cotidianas, igualmente compreendendo que foi por meio
da prática do corpo na cidade que o negro afirmou sua existência no Brasil e configurou
paisagens, tornando-se também matriz. Neste sentido a ideia de corpo não anula o
sujeito, mas evidencia a dimensão física da ação no espaço, e é essa ação motivada por
um sujeito que gera marcas na cidade durante a própria vivência cotidiana dada em
deslocamentos, encontros, trabalhos, celebrações, fugas, dentre outros movimentos e
gestos. Observar a negrura evidencia uma dimensão prática da vida, a vivência negra
cotidiana. E onde encontrar evidencias de negrura no século XIX?

3
Aqui a autora cita Henry Louis Gates Jr., no seu livro Figures in Black: words, sings and the “racial”
self, publicado pela Oxford University Press, no ano de 1987, p. 40.

• 6
CAMINHAR, O SUJEITO QUE FAZ PAISAGEM ANDANDO A PÉ

É possível reconhecer a presença negra nas ruas e suas marcas nas paisagens na
iconografia produzida no período. Existe uma grande produção iconográfica do século
XIX4, são pinturas feitas por artistas estrangeiros que vieram registrar o país em
missões exploratórias, em busca de trabalho ou a passeio, e também pinturas de
artistas brasileiros e estrangeiros que por aqui se estabeleceram, alguns deles se
formando na Academia Imperial de Belas Artes. Neste período a monarquia passou a
ser tema de pinturas com palácios, monumentos e rituais que pretendiam construir uma
imagem de nação que deixava de ser colônia e se transformava em sede do Império, e
parte desse projeto se realizaria nas cidades, tornando-as ao longo do século no locus
central das transformações culturais, políticas e estruturais pelas quais o país passaria.
A produção desses artistas (estrangeiros e brasileiros) tinham como referência estética
e civilizacional a própria Europa e foi a partir desse lugar que se produziram narrativas
pictográficas acerca do “outro” colonizado, espaço e pessoas, marcando não só a
produção de europeus, mas também a formação estética de artistas nacionais.
As cidades brasileiras também foram se tornando tema das pinturas produzidas ao
longo do século XIX, quer como personagem principal da obra, quer como figura de
fundo. Nelas podemos acompanhar uma transição de paisagem citadina para uma
paisagem com traços urbanos, no qual cidades com características coloniais de ruas
estreitas, casas pequenas e geminadas ligadas à natureza crescem em tamanho e
escala, adensando-se e recebendo instituições e infraestruturas, dadas na produção de
um crescente distanciamento da natureza.
No entanto, ao chegarem no país os artistas estrangeiros logo lhes chamariam atenção
a presença de negros que ocupavam portos trabalhando, oferecendo serviços, nos
mercados de escravizados, como também suas presenças por toda a cidade ocupando
as ruas com trabalho no seu dia a dia. A presença negra se tornaria também tema de
pinturas. Nessas obras os negros são representados de diversas maneiras: em algumas
estão figurando em ações isoladas ou recortadas do contexto da cidade; em outras são
tipologizados, quando são evidenciadas formas e marcas dos corpos; são colocados
juntos à natureza como parte do figurativo do selvagem; são retratados em cenas de
punição e castigo, um dos exemplos maiores da “normalização” das relações de poder
com traços de naturalidade; como também realizando trabalhos, celebrando e vivendo a
cidade. Segundo Boris Kossoy, pôde-se constatar que na trajetória do negro enquanto
modelo de representação são retratadas cenas nas quais se vê negros embelezados por
uns e animalizados por outros, romanceados em meio à paisagem tropical ou

4
Parte dessa produção pode ser vista em acervos virtuais onde destacam-se a Biblioteca Nacional,
Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, Acervo Brasiliana Iconográfica, além de uma série de
publicações a qual evidenciamos A Travessia da Calunga Grande de Carlos Eugênio Marcondes de Moura
(MOURA, 2012), obra que destaca a representação dos negros e negras na iconografia do século XIX. No
século XIX houve também início da fotografia no país, no entanto vamos nesse trabalho apenas nos
referir a pinturas.

• 7
abominados por suas manifestações culturais, estigmatizados em seu traje de escravo
ou trajado aristocraticamente (KOSSOY, 2002, p. 212).
Das diversas maneiras em que negros e negras foram representados na produção
iconográfica do século XIX, são escolhidas neste trabalho quatro imagens de obras que
trazem representação de negros em ação nas paisagens. Elas são elaboradas por
diferentes autores, mas em que todas elas se destacam inicialmente que negros e
negras estão ao ar livre e que estão com os pés descalços.
É importante destacar que imagens fazem parte da vida social, elas têm uma história
que contém tanto um contexto social, político, comercial, como também uma história
própria referente a sua materialidade, mas esta não é autônoma, pois está envolvida na
vida social e suas contingências (BAXANDALL, 1991; MENESES, 2005). Nesse sentido as
imagens se tornam rica fonte para o estudo da história social do período em análise,
pode ser testemunho de relações sociais e espaciais, como também construtora de
ficções inventando narrativas, sujeitos e ações, como afirma Lilia Schwarcz: “Menos do
que só registros imediatos de seu momento, elas ajudam a formar percepções coletivas,
criar conceitos difundidos, selecionar registros de realidade. [...]. Imagens têm autoria,
tempo e agência (SCHWARCZ, 2014, p. 394).
Nas cidades do século XIX as pessoas que tinham poses econômicas utilizam como
transporte para se deslocar as cadeirinhas de arruar, como a representada na obra de
Eduard Hildebrandt5 (Figura 1) que além de evitar que fossem vistos, pois eram
cobertas, também se evitava o contato com o chão. Haviam diferentes modelos de
cadeirinhas, variando o ornamento de acordo com a riqueza da família que a possuía,
pois eram símbolo de distinção social, para os que não possuíam condições financeira de
ter sua própria cadeirinha existia a possibilidade de alugá-la. Sua estrutura era
basicamente composta cortinas pendentes de uma cúpula e um varal de suspensão,
sendo carregada por dois negros; com o passar do século as cortinas foram substituídas
por vidros (OLIVEIRA, 2018). Os negros que a carregavam também faziam parte do
conjunto de ostentação do proprietário, na imagem eles estão vestidos à moda de libré,
utilizando cartolas, luvas, mas descalços.
Diferente da primeira figura onde está representa um tipo de transporte junto as
pessoas que o carrega, na obra de Jean-Baptiste Debret (Figura 2), é uma cena urbana.
São ações cotidianas que ocorrem na frente de uma loja de cirurgiões barbeiros, que
trabalhavam dentro de suas lojas e nas ruas, onde aplicavam ventosas ou tocavam
instrumentos, pois, além das habilidades para cortar cabelos, aplicar ventosas e
sanguessugas e serem dentistas devido à falta de médicos e fiscalização – pois que se
exigia uma carta de autorização à prática –, eram reconhecidos como músicos que
tocavam para seus clientes. (KARASCH, 2000, p. 353) No canto direito também é
possível identificar uma mulher negra vendendo, provavelmente, alimentos para uma
pessoa branca que se comunica com ela através da janela, aqui pode-se imaginar que a
mulher negra trabalhava circulando pela cidade de pés descalços.

5
Para uma breve biografia dos autores ver https://enciclopedia.itaucultural.org.br/

• 8
Nas cidades também circulavam famílias e uma dessas é representada por Henry
Chamberlain (Figura 3) que em uma obra relativamente simples – Chamberlain era um
militar e não tinha como sua principal ocupação a pintura, em suas obras elabora
montagens de situações, costumes e tipos sociais – retrata o que chama de família
brasileira, sendo inclusive o título da obra. Nela podemos imaginar que a família estaria
se deslocando, da Igreja para casa, pois ir à Igreja era um momento de encontro social,
de apresentação e ostentação da família o que inclui, como sinônimo de riqueza, seus
escravizados. Chama atenção é que sua representação de família brasileira é composta
por dois pequenos grupos, ambos com uma mulher e um homem adulto e o que seriam
seus filhos, no entanto um grupo é branco e o outro é negro, e o estado das roupas de
cada um deles evidencia uma diferença social e econômica, além do fato de todas
pessoas negras estarem com os pés descalços.
Com o crescimento das cidades ocorrido ao longo do século XIX, intensifica-se o
movimento de pessoas nas áreas centrais, como centro de oferta de empregos e
trabalhos, como é possível de identificar na obra de Paul Harro-Harring (Figura 4). Nela
há um movimento intenso na Rua Direita, no Rio de Janeiro. Nela a paisagem é tomada
por corpos negros, recortes de edificações que devido à sua dimensão chegam a não
caber dentro do quadro. Não há natureza, nem horizontes e nem mais uma ideia de
paisagem colonial. A cidade cresceu. Ao centro, carregadores de café em grupo
atravessam a rua, abrindo caminho com os sacos pesados nas cabeças, enquanto um
jovem com um tabuleiro na cabeça ensaia acompanhar o movimento desses
trabalhadores. Harring traz para imagem detalhes que nos faz refletir acerca da
complexidade que se formava na paisagem: à direita, vemos um negro vestido com
calças, camisa e colete em estilo europeu, carregando um tabuleiro na cabeça, mas de
pés descalços; por outro lado, à esquerda, há duas mulheres vestidas com panos em
modelo africano acompanhadas por uma criança vestida com camisa, calça e chapéu,
como se estivesse fantasiado de algum tipo social; no entanto, diferentemente do rapaz
à direita, as duas mulheres estão calçadas.

• 9
Figura 1: Cadeirinha / Going to Mass. Parte de Brasilian souvenir: a Selection of the most peculiar
costumes of the Brazils. Autor: Eduard Hildebrandt (1846-1849). Acervo de Iconografia / Instituto
Moreira Salles.

• 10
Figura 2: Boutique de barbiers. Parte de Álbum: Voyage Pittoresque dans le Brésil. Autor: Jean-Baptiste
Debret (1835).

Figura 3: A Brazilian Family. Parte de Álbum: Views and costumes of the city and neighbourhood of Rio
de Janeiro. Autor: Henry Chamberlain (1822). Acervo Fundação Estudar. Doação da Fundação Estudar,
2007 / Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo, Brasil.

• 11
Figura 2: Scène de la Rua Direita. Nègres porteurs de caffé - Negresses affranchies Nègre affranchi -
Voyageur affricain. Parte de Tropical Sketches from Brazil. Autor: Paul Harro-Harring (1840). Acervo de
Iconografia / Instituto Moreira Salles.

Andar a pé e com os pés descalços pela cidade era uma marca negra, que imprimia
negrura nas paisagens. No século XIX estar com os pés descalços era um carimbo da
escravização, enquanto calçar sapatos eram marca de distinção social. A roupa marcava
uma posição social do negro: quando negros estavam vestidos com roupas de influência
europeia era uma mostra da riqueza dos seus donos ou era um sinal de que haviam
adquirido rendas pessoais; e, quando essas roupas eram africanas, também poderiam
contar acerca da sua etnia e suas posses. No entanto, independentemente da roupa que
vestisse, o negro poderia estar calçado ou não, pois esse era um sinal de liberdade:
negros alforriados compravam sapatos para marcar socialmente sua liberdade e
expressá-la ao circular ou trabalhar nas ruas, o que causaria indignação em brancos;
pois para eles era um “atrevimento” o negro utilizar sapatos (CHALHOUB, 1990, p.
213).
Aos escravizados de ganho6 que tinham a possibilidade de circular pela cidade com
trabalhos vivenciando uma liberdade temporária, teriam seus deslocamentos marcados
pelos pés descalços, pois muitos proprietários os proibiam de utilizar sapatos. Negros
fugidos compravam sapatos para se esconder nas cidades se passando por liberto e
escravizados sempre estariam descalços. Presença marcante nas cidades seriam os
escravizados de ricas famílias que eram adornados com fraques portando brasões para
carregar liteiras e cadeirinhas, mas que deveriam permanecer com os pés descalços,

6
Escravizado de ganho era uma categoria de trabalhador urbano negro que tinha autorização do seu
proprietário para oferecer seu trabalho na cidade tendo que em troca pagar um valor semanal ao
mesmo. O valor era definido entre ambos e não havia legislação quer regesse sobre tal categoria.

• 12
como observado na Figura 1. Na pesquisa não foi encontrada uma lei que proibisse o
uso de sapatos por escravizados, mas identificou-se que era um costume social que
efetivava a proibição, segundo Mary Karasch, “ainda em 1861, ferrovias e navios a
vapor dividiam seus passageiros em duas classes: com e sem sapatos, pois a maioria
dos escravos andava descalça.” (KARASCH, 2000, p. 188).
Circular com os pés descalços seria também motivo de contágio de muitas doenças,
como o bicho-de-pé, principal causa do aleijamento de negros, e filaríase (doença
causada por um parasita invasor que se instalava nos vasos linfáticos); com isso,
muitos dos negros que ficavam impossibilitados de trabalhar passavam a esmolar nas
portas de igrejas e conventos7 (FARIAS, 2006, p. 22). As obras urbanas de drenagem e
aterros e as políticas de higiene pública colaboraram na diminuição do contágio da
filaríase e na prevenção de doenças, bem como a paulatina popularização dos sapatos.
Em consequência ao maior acesso aos sapatos, tornou-se cada vez mais difícil o
reconhecimento da condição servil de um negro.
Ao negro cabia andar com os pés no chão e se deslocar pela cidade era um movimento
feito a pé. Assim, ao passo que utilizar sapatos eram símbolo de liberdade, a figura do
pedestre enquanto um sujeito que anda a pé surge na cidade brasileira como sendo um
sujeito negro8. Aqui o filosofo Renato Noguera reflete sobre os pedestres que para ele
são “personagens que escrevem conceitos com os pés”. Continua o autor:

Pedestre – conceito afroperspectivista – tem um sentido distinto de percorrer espaços


com os pés; pedestre é quando se cria com os pés, fazendo de qualquer caminhada,
passo, compasso, bailado ou ginga: uma invenção coreográfica. Ou ainda, significa dizer
que personagens conceituais melanodérmicas são pedestres à medida que fazem dos pés
modos intensivos de escrita, formas de caligrafias no tempo e no espaço (NOGUERA,
2011, p. 14).

Caminhar e estar com os pés descalços são negrura na paisagem do século XIX. O
caminhar negro, bem como os pés no chão, estavam nos percursos do trabalho, no
fugir, esconder, driblar, nos encontros, festejos e celebrações. Segundo Jean-Marc

7
Mary Karasch, discorrendo acerca da vida escrava no Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX,
apresenta que, além da própria ausência de calçados, que causava doenças, a falta de vestuário,
moradia, alimentação e cuidados médicos, somada aos castigos, contribuíam para mortes prematuras
dos escravizados. São relatos de escravizados que, por seus proprietários não terem espaço em suas
casas para abrigá-los, eram colocados para dormir nas ruas, praças, parques e praias ou dormiam em
porões úmidos, palafitas em lugares pantanosos, que combinava-se com a falta de roupas apropriadas
para variações climáticas; vestidos com pedaços de panos, trabalhavam seminus. “As ações intencionais
ou não dos senhores contribuíam diretamente para o impacto de doenças específicas ou criavam
indiretamente as condições nas quais uma moléstia contagiosa espalhava-se rapidamente pela
população escrava”. Segundo a autora, os baixos padrões socioeconômicos de existência, somados à
sujeira urbana, davam ao Rio de Janeiro do período um “ambiente mórbido” (KARASCH, 2000, p. 186,
187, 190, 207, 208).
8
No Brasil, caminhar na rua enquanto passeio e lazer começou a ser praticadas pelas famílias brancas
influenciadas pelos imigrantes europeus que já viviam isso nos seus países, pois até então as ruas eram
definidas como lugar de negro, tal como frisa Gilberto Freyre em sua obra Sobrados e Mucambos
(2002), onde o sobrado era a extensão da casa do senhor rural na cidade e a rua era lugar do lixo,
perigo, do escuro.

• 13
Besse (BESSE, 2013, p. 48), caminhar é o ato que institui a vivência na paisagem, pois
só por meio do deslocamento pode-se perceber as intensidades e ritmos da cidade.
Francesco Careri vai mais além, refletindo acerca do ato de caminhar como um ato de
“percepção e construção simbólica do espaço”, onde “o caminhar, mesmo não sendo a
construção física de um espaço, implica uma transformação do lugar e dos seus
significados”. Para o autor, a simples presença física em um ambiente não mapeado é
“uma forma de transformação da paisagem que, embora não deixe sinais tangíveis,
modifica culturalmente o significado do espaço e, consequentemente, o espaço em si,
transformando-o em lugar. O caminhar produz lugares” (CARERI, 2013, p. 51).

CAMINHAR, CORPO É PAISAGEM


Reconhecer, ou seja, visibilizar sujeitos na relação que eles estabelecem com as
paisagens a partir de suas vivências cotidianas é fundamental para elaborar uma
narrativa da formação das cidades e do urbano. No entanto, para reconhecê-los são
necessários conceitos, pois estes produzem nomes e nomes produzem sujeitos. Aqui a
negrura se torna uma lente para identificar marcas negras na paisagem, principalmente
em um país que buscava construir uma imagem de si associada à monarquia e à
riqueza com a formação de uma nação com traços urbanos europeus e estruturado na
exploração de mão de obra negra escravizada. Nesse sentido, a escolha que se faz,
tanto na história quanto na iconografia, do que é visibilizado e do que é invisibilizado
não é uma escolha neutra, pois a seleção das imagens e a recorrência dos mesmos
sujeitos como formadores das cidades brasileiras, torna-se referência para se imaginar
o período narrado.
Observar as imagens produzidas no século XIX e as narrativas da história é saber que
elas não estão isentas do poder de “institucionalizar” assuntos como poder, natureza e
relações raciais, questões essas que dominavam a paisagem imperial. No entanto, ao se
identificar que o movimento do corpo negro nas cidades forja paisagens ao longo no
século XIX, se torna possível evidenciar o caminhar como negrura.
O caminhar negro marca a paisagem, estando nos trabalhos que construíam a cidade e
a faziam funcionar, como também nos trabalhos que tinham a circulação pela cidade
como parte de sua realização, como as lavadeiras que circulavam pela cidade com suas
trouxas de roupas nas cabeças e se encontravam na beira de rios ou nos tanques
públicos próximos aos chafarizes para lavar as roupas, como os localizados ao lado do
Chafariz da Carioca e no Campo de Santana, no Rio de Janeiro; estes locais se
transformavam em ponto de encontro quando, no lavar, bater e estender roupas, havia
cantos e trocas (KARASCH, 2000, p. 288). O caminhar também estava nos trabalhos
que se realizavam no próprio ato se deslocar, como os ambulantes, que passavam de
porta em porta vendendo todo tipo de produto que pudesse ser carregando no corpo,
alimentos ou objetos, seja feito por eles, comprado ou mesmo roubado. De domingo a
domingo, seus corpos, além de carregar produtos ou lavar roupas, marcavam a
paisagem com movimentos, gestos e sons quando cantavam ou ofertavam produtos.

• 14
Assim, caminhar e trabalhar e trabalhar caminhando eram marcas negras na paisagem,
bem como trabalhar ao ar livre. Caminhando nas cidades brasileiras do século XIX,
negros e negras transformaram as cidades e produziram paisagens. Com os
movimentos dos seus pés desenharam paisagens das cidades brasileira.

• 15
REFERÊNCIAS
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• 17
CIDADE, URBANISMO E CULTURA COMO RESISTÊNCIA
O caso do movimento cultural no Alto José do Pinho – Recife-PE

CITY, URBANISM AND CULTURE AS RESISTANCE: the case of the


cultural movement in Alto José do Pinho – Recife-PE

CIUDAD, URBANISMO Y CULTURA COMO RESISTENCIA: el caso del


movimiento cultural en Alto José do Pinho – Recife-PE

SANTOS, Marco Antônio Gomes


Doutorando em História; Universidade Federal Rural de Pernambuco
email: marcosantos743@gmail.com

ALBUQUUERQUE, Mariana Zerbone Alves


Doutora em Geografia; Universidade Federal Rural de Pernambuco
Email: mariana.zerbone@ufrpe.br

RAMEH, Ladjane Milfont


Doutora em Hospitalidade; Universidade Anhembi Morumbi
Email: ladjanerameh@gmail.com
RESUMO

O objetivo deste artigo é analisar o caso da resistência cultural empreendida


por jovens da localidade do Alto José do Pinho, Recife-PE, frente às pressões
urbanísticas e políticas ocorridas a partir de meados dos anos de 1940 na
cidade, que levou a ocupação de áreas de morro e periféricas, devido à
expulsão da população pobre das áreas centrais da cidade. Partindo dos
pressupostos da História Cultural, metodologicamente, as reflexões aqui
expostas são fruto tanto da observação, quanto da vivência nos meios
culturais da cidade da capital pernambucana, que possui uma cena cultural
diversificada, pela qual é frequentemente conhecida e posta em vitrine como
capital da cultura. Os achados fazem parte de uma pesquisa maior, que visa
analisar a formação da identidade punk em Recife nas décadas de 1980 e
1990. Iniciamos pelo questionamento do que seria uma cidade do ponto de
vista da literatura histórica e geográfica, para avançarmos à questão do
urbanismo brasileiro e principalmente o urbanismo de exclusão que vigorou
no Recife, que acabou por dar origem à ocupação dos morros e zonas
periféricas da cidade. Por fim, chegarmos ao Alto José do Pinho, região que
outrora conhecida apenas pela violência, hoje é um dos destinos culturais da
cidade. Esse movimento de valorização da comunidade começou com jovens
imersos em uma realidade social de pobreza e descaso público, mas que
encontraram no punk rock, no rap e em outras subculturas musicais um
ponto de união e expressão de suas sensibilidades.

PALAVRAS CHAVE Cultura; Resistência; Alto José do Pinho; Punk Rock;


Recife.

ABSTRACT

The objective of this paper is to analyze the case of cultural resistance


undertaken by young people from Alto José do Pinho, Recife-PE, in the face
of urban and political pressures that occurred from the mid-1940s onwards in
the city, which led to the occupation of areas and peripheral areas, due to the
expulsion of the poor population from the central areas of the city. Based on
the assumptions of Cultural History, methodologically, the reflections
exposed here are the result of both observation and experience in the
cultural environments of the city of the capital of Pernambuco, which has a
diverse cultural scene, for which it is often known and showcased as the
capital of Pernambuco. culture. The findings are part of a larger research,
which aims to analyze the formation of punk identity in Recife in the 1980s
and 1990s. and mainly the exclusionary urbanism that prevailed in Recife,
which ended up giving rise to the occupation of the hills and peripheral areas
of the city. Finally, we arrive at Alto José do Pinho, a region that was once

• 1
known only for violence, today is one of the cultural destinations of the city.
This community appreciation movement began with young people immersed
in a social reality of poverty and public neglect, but who found in punk rock,
rap and other musical subcultures a point of union and expression of their
sensibilities.

KEY-WORDS: Culture; Resistance; Alto José do Pinho; Punk Rock; Recife.

• 2
INTRODUÇÃO
O que é a cidade? Uma pergunta difícil de ser respondida com exatidão. Analisando
Vasconcelos (1999), que elaborou um exercício de abordar a definição do que é cidade
– com base em vários autores de diversos campos do conhecimento, desde geógrafos,
historiadores, sociólogos, antropólogos dentre outros – algumas características que
aparecem na maioria das definições dizem respeito a uma área geográfica, a uma
realização humana, à concentração de indivíduos, à atividade comercial e industrial, ao
intercâmbio cultural, à herança social, à permanência no tempo, às variações no tempo
(fato histórico), ao fato geográfico, dentre outras. Segundo o autor, Milton Santos em
1994 contrapõe a cidade como sendo uma realização particular, concreta e interna à
ideia de urbanismo, que seria frequentemente abstrato, geral e externo.
Como podemos ver, a pergunta inicial continua sendo difícil, pois nesse apanhado
realizado por Vasconcelos (1999) estão 150 anos que demonstram a complexidade,
independente do campo de estudos, de encontrar uma definição comum para o termo.
Milton Santos (1959), abordando Tricart (1951) e Chabot (1952), já enxergava a
dificuldade que havia na definição de uma cidade. Aproveitando-se das conclusões
desses dois autores, fala que a cidade é antes de tudo definida por suas funções e por
um gênero de vida, bem como por uma paisagem.
Porém, tal como qualquer realização humana, tanto as funções quanto as definições de
cidade vão variar de acordo com o tempo em que a significação é buscada, bem como
com a própria forma como ela se comportou ao longo de sua existência. A partir dessas
considerações – buscando analisar o que são os movimentos sociais e culturais urbanos
que ocorrem no século XX, para chegamos ao movimento punk e outras subculturas e
contraculturas – optamos por pensar a cidade como um agrupamento humano, variável
em tamanho, que se relaciona tanto com as funções econômicas exercidas, quanto com
as relações que mantém em seu entorno.
Como um agrupamento humano, a cidade é um dos locais onde se manifestam várias
das realizações próprias do gênero homo, tais como cultura, conflitos, sensibilidades,
frustrações, desejos, etc. De acordo com Pesavento (2004), a História cultural encontra
nas cidades um campo temático para suas pesquisas. Diferente das abordagens
econômico-sociais com viés evolucionista do passado, essa vertente historiográfica
aborda as representações que se constroem na e sobre a cidade, ou seja, o imaginário
urbano que incide sobre espaços, atores e práticas sociais. Acerca das representações
da modernidade, nas cidades desencadeia-se uma luta de representações entre o
progresso e a tradição, e, por conseguinte, os pontos de ancoragem da memória
coletiva das políticas de patrimônio e identidade urbana.
Henry Lefebvre (2002), em seu clássico A Revolução Urbana, publicado originalmente
em 1970, aborda várias características em relação à função das cidades no passar dos
tempos, além da forma como o urbanismo se vincula ao projeto capitalista que, por sua
vez, impulsionou desde a Revolução Industrial uma mudança na relação entre campo e
cidade. Para Raymond Williams (1990), por suas características, a Revolução Industrial,
sob certos aspectos, não encontra paralelo em outros lugares. Erigida sob um

• 3
capitalismo agrário altamente desenvolvido, contribuiu muito cedo para o
desaparecimento do campesinato tradicional. Entre os séculos XVIII e XIX, apenas 4%
da população ativa da Grã-Bretanha e suas colônias era ocupada na agricultura, tendo
como consequência a primeira população predominante urbana da história.
Lefebvre afirma que em todos os lugares onde a história aparece, a cidade acompanhou
ou seguiu de perto a aldeia. Essa, por sua vez, colocada como zero inicial foi formada
pelos primeiros grupos humanos de povos coletores, pescadores, caçadores e talvez
pastores. Lefebvre afirma que, todavia, essa é uma concepção ideológica. A outra
hipótese posta pelo autor se aproxima da adotada pelo historiador Lewis Mumford, na
qual a agricultura pode ter superado a coleta apenas após um impulso autoritário de
centros urbanos ocupados por conquistadores hábeis que usaram da proteção,
exploração e opressão para essa realização. Seriam os administradores e fundadores de
um esboço de Estado (LEFEBVRE, 2002). Em todo caso, essa ainda é uma situação
difícil de ser resolvida, em grande parte pela ausência de documentação escrita sobre a
maioria esmagadora da experiência da história humana sobre o planeta.
Acerca das funções, Lefebvre (2002) enxerga inicialmente a cidade com função política.
Aqui, uso a designação genérica de profissionais para descrever uma série de funções
ocupadas pelos habitantes das cidades iniciais tais como sacerdotes, guerreiros,
príncipes, nobres e chefes militares que administravam a produção campesina. Lewis
Mumford (1982), por sua vez, levanta a hipótese de que a primeira função da cidade
talvez tenha sido ritual. A preocupação com os mortos e com o pós-vida teria levado
aos primeiros santuários, antes mesmo de serem erigidas as primeiras cidades, em
torno do chefe militar e do chefe espiritual.
Antes de avançarmos, é bom deixar claro que estamos tomando com base
principalmente a história europeia. E mesmo na Europa, esses processos não se
reproduziram da mesma forma, principalmente após o contato com civilizações de
outros continentes. Destarte, generalizar é opção possível do ponto de vista do
entendimento dos processos, desde que se ressalve que a generalização não pode ter
um caráter exclusivista, como, quando com base nas teorias evolucionistas do século
XIX e início do século XX, desenvolveu-se a ideia de que o continente europeu era o
ápice de desenvolvimento civilizatório em uma escala linear de desenvolvimento.
Feita essa ressalva, voltamos à questão das relações comerciais entre grupos humanos.
Com o início e adensamento do comércio a cidade política vai sendo posta em cheque.
Estamos falando aqui de um punhado grande de séculos até essa inversão. Lefebvre
(2002) afirma que a cidade política tentou resistir, mas por volta do século XVI passou
a ser a cidade comercial. Em todo caso, o campo ainda tinha primazia no conjunto do
tecido social. Porém a relação vai aos poucos se invertendo. A cidade deixa de ser uma
ilha urbana para se tornar central e o campo tornar-se sua circunvizinhança. A realidade
urbana começa se tornar uma mediação entre a relação campo-cidade. Entre os séculos
XVI e XVIII a cidade comercial passará por várias transformações que precedem a
cidade industrial, esta intimamente ligada ao processo de automação e desenvolvimento

• 4
tecnológico que marcará completamente a inversão total da relação campo-cidade, que
agora será cidade-campo.
Com relação ao urbanismo, Bresciani (2002) afirma que havia na França do século XVIII
uma preocupação com a questão dos fluxos, ruas e estradas, destacando-se o trabalho
dos engenheiros da Ecole des Ponts et Chaussées (1747) e posteriormente Ecole
Polytechnique (1794), na qual a cidade já aparece com uma entidade global, enquanto
no século XIX, as mazelas decorrentes da industrialização passam a serem consideradas
nos planos urbanísticos. No século XX, o urbanismo já se encontra completo e muda
pouco até os dias atuais, sendo tributário de vários campos do saber. Visto ainda não
como ciência urbana, mas como ideia sanitária, preocupava-se também com problemas
decorrentes da indústria, da mineração, da construção de ferrovias e o quadro das
condições de vida das cidades.
As áreas suburbanas, de acordo com Mumford (1982), se erigiram inicialmente como
um lugar no qual se poderia ter um afastamento da vida citadina, combinando
características comuns às facilidades das cidades e qualidades do campo. Porém, os
fatores de atração dessa proposta, pouco a pouco começaram a atrair pessoas, e o
crescimento causado pela introdução do automóvel como meio de deslocamento
principal acabou por minar essas qualidades. Ao largo das estradas de ferro foram
erigidas várias cidades entre os séculos XIX e início do século XX, e, posteriormente os
automóveis particulares ditaram boa parte da expansão da malha urbana ocidental. Em
torno desses últimos foram articulados os planejamentos urbanísticos principalmente no
século XX (ARANTES, 2009; MUNFORD, 1982; WILLIAMS, 1990).
Não vamos traçar uma discussão sobre teórica sobre o que seria o urbanismo, pois
entraríamos em outra seara difícil de sair, como no caso da procura por uma definição
do que seria uma cidade. De fato, o senso comum consegue definir o que é cidade e o
que é campo sem precisar de imensas teorizações. Da mesma forma, existe uma ideia
aceita por quem mora numa cidade, sobre qual o seu centro e quais os seus subúrbios e
áreas periféricas, além das desigualdades no acesso a condições mínimas de vida
existentes entre áreas ricas e áreas pobres. De certo, países de várias regiões do
mundo tiveram um desenvolvimento heterogêneo em sua urbanização. Esse fato se se
mostra mesmo internamente, no seio de cada sociedade, tanto nacional, quanto
regional e localmente.
Convém falarmos ainda de O Direito à Cidade, ideia e obra desenvolvida por Lefebvre,
publicada inicialmente em 1968, que versa sobre o direito humano e coletivo, pensando
não apenas nos habitantes da cidade, mas também nas gerações futuras. O direito à
cidade opõe-se à mercantilização da vida de maneira geral. Tanto as pessoas, quanto
territórios e a natureza, segundo a análise do autor, tornaram-se mercadorias. Na
esteira dos movimentos de 1968, o autor propõe alternativas para uma cidade que
havia se tornado o principal lócus das relações capitalistas, compreendendo um
programa político de reforma urbana, bem como projetos urbanísticos bem
desenvolvidos que pudessem contemplar a vida urbana de maneira integral. Lefebvre
(2008, p. 118), acreditava que o direito à cidade só poderia ser operacionalizado,

• 5
baseando-se em uma “teoria integral da cidade e da sociedade urbana que utiliza os
recursos da ciência e da arte. Só a classe operária pode se tornar o agente, o portador
ou o suporte social dessa realização”.

A REALIDADE RECIFENSE
Em países como o Brasil, onde as desigualdades econômicas e sociais são imensas,
essas características tendem a ser acentuadas. Ao analisar a situação das formas
urbanas brasileiras, Ermínia Maricato (2009) afirma que as favelas possuem
semelhanças com os burgos medievais, ou seja, formas urbanas pré-modernas. São
ocupações irregulares que mantém relações clientelistas com os poderes legislativos em
busca de anistia para sua regularização. Em todo caso, essa regularização ignora
quaisquer características de um planejamento minimamente preocupado com questões
ambientais, de saneamento, sustentabilidade, etc.
Em países onde as leis são aplicadas circunstancialmente, os planos diretores – ou seja,
instrumentos pelos quais deveriam ser guiados os planejamentos urbanos – são
desvinculados da gestão. Os estados de bem estar social, que foram uma tentativa de
compatibilizar os interesses das grandes corporações com a melhoria de vida da classe
trabalhadora por cerca de três décadas no pós-guerra, foram desmontados no por volta
dos anos de 1970 (MARICATO, 2009).
A modernização urbanística, que existiu no Brasil desde o início do século, XX foi
sempre excludente. Sobrando aos mais pobres, habitações em situação de risco, na
beira de rios e córregos, em encostas de morros sujeitas ao desabamento no período
das chuvas, além de uma verdadeira leva de pessoas sem terra e sem teto. Dados do
IPEA, com certeza desatualizados, mostravam que em 2020, cerca de 0,1% da
população brasileira residia nas ruas, o que corresponde a mais de 220 mil pessoas,
porém o Movimento Nacional da População de Rua, estima que esse número pode
ultrapassar meio milhão de pessoas (PODER 360, 2020).
O crescimento das regiões urbanas brasileiras foi profundamente marcado pelo signo
da exclusão. Maricato (2009, p. 140) afirma que:

Boa parte do crescimento urbano se deu fora de qualquer lei ou de qualquer plano, com
tal velocidade e independência, que é possível constatar que cada metrópole brasileira
abriga, nos anos 1990, outra de moradores de favelas em seu interior. Parte das nossas
cidades podem ser classificadas como não cidades: as periferias extensas, que além as
casas autoconstruídas, contam apenas com transporte precário, a luz e água (esta não
tem abrangência universal nem mesmo no meio urbano.

A construção das cidades ao longo do mundo acompanhou os desígnios do capital.


Arantes (2009) afirma que além da especulação imobiliária e dos processos de
exclusão, a partir da década de 1960 com a virada cultural, a questão da gentrificação –
processo que busca valorizar determinadas áreas de interesse do capital, por meio do
apelo cultural e de turismo – passou a tornar o valor das moradias insustentáveis e

• 6
tendendo a empurrar os mais pobres para cinturões de habitação em situação de risco
no entorno das metrópoles, ou seja, a formação de não cidades nas cidades.
Albuquerque e Gomes (2013) detalham o processo em curso na cidade do Recife nos
últimos anos recebeu um intenso processo de grandes operações urbanas, movidas por
grandes empreendedores imobiliários, utilizando-se de alta tecnologia por meio de
capital local e internacional, e, que do ponto de vista legal, são viabilizados pelo Estado.
Não obstante, a própria ocupação da capital pernambucana ter sido um processo
extremamente caótico e excludente, isso continua a ser acentuado nos dias atuais.
A pressão exercida pelos poderes públicos sob o epíteto de modernização, durante o
século XX, foi marca do governo de Agamenon Magalhães, que governou o estado de
Pernambuco em dois momentos distintos: um deles no Estado Novo, entre 1937 e
1945, quando foi nomeado interventor federal; e outro entre 1951 e 1952 quando foi
eleito, mas teve o mandato encerrado precocemente devido ao seu falecimento.
Enquanto a sociedade brasileira do início do século XX era formada por populações de
diversas etnias devido à desagregação do sistema senhorial, após liberação dos
escravos e à imigração de povos de outras nacionalidades, o modelo modernista elege o
homem branco como sendo o trabalhador ideal. Os elementos não brancos eram
considerados indolentes e beberrões. O objetivo era ‘branquear’ o país que buscava se
industrializar e se queria moderno (MIRANDA, 2002).
Em Pernambuco, a modernização do setor açucareiro provocou mudanças nas relações
de produção na Zona da Mata, o que contribuiu para o êxodo de lavradores, que já era
constante devido à ocorrência de secas no Agreste e no Sertão. Parte dessa população
se dirigia ao Recife, onde a marginalidade e o trabalho informal eram muitas vezes as
únicas opções para os imigrantes. Sem infraestrutura para receber esse afluxo de
pessoas, a cidade ficou adensada. Os retirantes começaram a ocupar as áreas alagadas,
principalmente manguezais, mas também os mocambos. Sem água tratada e em
péssimas condições sanitárias, essas pessoas se tornavam susceptíveis a enfermidades
diversas, além de receberem a aversão das elites (MIRANDA, 2002).
Miranda (2002) afirma que A Liga Social Contra o Mocambo, criada em 1939 – que
congregava representantes da prefeitura, do governo do Estado e das classes abastadas
do Recife – sob argumentos estéticos, higiênicos e caridosos, destruiu cerca de 100
mocambos por semana. A população que habitava os habitava, segundo dados da
Comissão Censitária dos Mocambos, era de 164.873 pessoas que ocupavam 45.581
mocambos. Essas pessoas que tiveram suas habitações destruídas passaram a ocupar
os morros da Zona Norte da cidade, visando não pagarem aluguel e não terem
novamente suas moradias demolidas.
Como falamos anteriormente, o urbanismo no Brasil não procurou incluir as populações
pobres. Mesmo quando previstas nos planos, o que se tinha na prática era diferente.
Essa visão é compartilhada por Miranda (2002, p. 145) em relação ao Recife, quando
afirma que “O urbanismo de exclusão passou a ser uma prática constante nos tempos
de Agamenon Magalhães”. Nesse processo de expulsão das comunidades pobres para
as áreas de Morro, se dá o início da ocupação do Alto José do Pinho, comunidade

• 7
periférica que possui 41,5 hectares de área, e que nos dias atuais é conhecida
principalmente por ter gestado um movimento sociocultural ligado à música, que de
certa forma, modificou socialmente uma área conhecida principalmente pela violência.
A análise empreendida por Sposito (1994), sobre os jovens na cidade de São Paulo,
pode ser extrapolada para outras metrópoles brasileiras, dado o contexto social vigente
no país. Nesse cenário, a autora afirma, baseando-se em Lopes e Gottschalk (1990
apud SPOSITO, 1994) que nos anos de 1980, em centros metropolitanos como a capital
paulista, há uma convivência com níveis altos de desemprego e empobrecimento, que
afetam principalmente as parcelas mais miseráveis da sociedade. Esse estranhamento
cria modalidades de reconhecimento da condição dos jovens, que podem ser traduzidas
em estados de insegurança e disponibilidade frente ao futuro. Essas dimensões
excludentes devem ser compreendidas não apenas no âmbito econômico, mas também
no plano sociocultural.
De acordo com a autora, a socialização promovida principalmente pelas instituições
escolares não é tão efetiva para compreender as relações de identidade da juventude.
Nesse caso, a rua acaba por se inscrever na sociabilidade urbana, mas isso está ligado a
especificidades históricas (SPOSITO, 1994).
As ruas de Recife, nos anos de 1980 e 1990, foram bastante frequentadas por grupos
de jovens. Esses contatos que muitas vezes se davam amizades escolares que
extrapolavam os muros institucionais eram formados por moradores da mesma
localidade, ou seja, as periferias da cidade. Ademais, os jovens também ocupavam o
centro da cidade, marcadamente os bairros da Boa Vista, Santo Antônio e São José,
localizados na área central da cidade do Recife.
Esses locais concentravam, nas décadas de 1980 e 1990, um grande número de escolas
públicas do antigo ginásio (5ª a 8ª série) e ensino médio, sendo por vezes as únicas
opções para jovens continuarem seus estudos, pela ausência de instituições dessa
natureza em comunidades periféricas. Montarroyos (2010, p. 38) atesta esse cenário,
quando fala dos grupos de jovens que frequentavam o Beco da Fome “conglomerado de
bares e lanchonetes que não prezavam muito pela higiene” no qual se reunia “uma
contracultura de jovens vestidos de preto, a maioria fãs de thrash metal e punk rock”.
Vale frisar que o que é posto por Michel Maffesoli (1998, p. 9) ao afirmar que nas
cidades os grupos se formam por afinidades, sentimentos comuns ou experiências
vividas coletivamente. O autor afirma que existe rotatividade entre os membros das
neotribos, que difere do tribalismo clássico caracterizado por sua estabilidade. É
evidente que, tal como as massas estão em permanente agitação, as (neo)tribos que
nelas se cristalizam também não são estáveis. “As pessoas que compõem essas tribos
podem evoluir de uma para outra”.
Voltando à periferia, nas ruas do Alto José do Pinho se davam encontros de jovens que
constituiriam uma cena cultural diversificada, mas que tinham em comum as situações
vividas coletivamente tanto no plano sociocultural, quanto em relação às
vulnerabilidades sociais as quais estavam expostos. A seguir, nos deteremos na análise
do que ocorreu naquela localidade.

• 8
O ALTO JOSÉ DO PINHO E O MOVIMENTO CULTURAL

De andada no Alto, meu povo


Tem gente que anda de lado
Tem gente que anda com bíblia
Que anda com arma e que anda fardado
(Devotos – De Andada)

Montarroyos (2010) na obra intitulada Devotos 20 anos – que fala sobre a trajetória da
banda de punk rock e hardcore Devotos, formada por músicos nascidos e residentes na
comunidade – apresenta duas possíveis versões para o nome da localidade. Uma das
versões diz que José do Pinho era um velhinho que no início do século XX animava
festas no pequeno povoado. A outra diz que José do Pinho era um fabricante de violões
de pinho, proprietário de algumas terras, e que por causa de uma dívida contraída com
as famílias Viera da Cunha e Cesário de Melo para financiar seu bloco de carnaval
chamado Inté Meio-Dia, acabou sendo obrigado a vender suas propriedades para a
família Vieira da Cunha. Essa versão foi obtida com base em um documento chamado
História do Alto José do Pinho contada por seus moradores, idealizado por uma antiga
moradora da comunidade, conhecida pelo nome de Dona Detinha, em 1987.
Mesmo dentro da comunidade havia uma divisão entre os mais e menos abastados. Os
de maiores posses ocupavam as ruas do centro, enquanto os mais pobres habitavam os
arredores do alto, ou seja, “a periferia da periferia” (MONTARROYOS, 2010, p. 21). O
bairro dependia de água de uma comunidade vizinha, a Bomba do Hemetério, e era
preciso carregar essa água em baldes até o morro. Entre os anos de 1950 e 1980 o
Alto recebeu algumas melhorias, tais como como calçamento das ruas, iluminação
elétrica, entre outras, tendo na pessoa de Dona Detinha uma líder comunitária ativa,
que se encarregava de levar as demandas aos poderes públicos, sendo inclusive
recebida pelo presidente João Figueiredo, que após o recebimento de uma carta de
autoria da mesma, ordenou ao governador do Estado, então Marco Maciel a resolver a
questão de saneamento e água para a comunidade.
Montarroyos (2010) atesta Miranda (2002), quando mostra que muito da diversidade
musical e cultural do bairro vem do fato de que seus imigrantes, em grande parte,
vieram da zona rural pernambucana e conservaram tradições folclóricas como
caboclinho, maracatu e afoxé. De população predominantemente negra, o bairro possui
grande número de terreiros de Umbanda. No que tange ao punk – em entrevista
realizada com Cannibal, nome artístico de Marconi de Souza Santos, vocalista e líder da
banda Devotos – o mesmo afirma que o movimento punk tinha sua organização no
centro do Recife, por pessoas de várias classes sociais, sendo a maioria composta por
integrantes das periferias. O Alto José do Pinho não tinha um movimento punk, mas um
movimento de bandas de rock que se juntou às bandas e manifestações populares, tais
como o Maracatu Estrela Brilhante do Recife e o afoxé Ilê de Egbá (SANTOS, 2020).

• 9
Montarroyos (2010) aponta para uma coexistência pacífica no bairro entre diversos
segmentos sociais (talvez não tão pacífica no ano de 2022, dado o cenário político e
social do país). A Rádio Comunitária Alto Falante, mantida pela ONG de mesmo nome,
existente desde o ano de 2002, possui então uma programação variada, indo do samba
ao punk rock, além da existência de bares, lanchonetes, etc. Havia também o convívio
religioso de pessoas de várias designações como evangélicos, católicos,
candomblecistas e umbandistas. Pesquisamos sobre o funcionamento da Rádio, que
sofreu algumas interrupções em seu funcionamento e, atualmente, existe um projeto
encabeçado por músicos da comunidade para retomar as atividades.
Vale dizer que o Alto gestou além da Devotos, que inicialmente se chamava Devotos do
Ódio, outras bandas como grupo de rap Faces do Subúrbio que retornou às atividades
recentemente, a banda de punk escrachada Matalanamão em plena ativa, com letras de
cunho sexual em crítica aos ‘bons costumes’, além dos grupos Terceiro Mundo e Arma
da Verdade. Uma questão importante a ser citada é que além de toda sorte de
problemas causados pela forma de ocupação do bairro – devido ao urbanismo de
exclusão frequente no Brasil, que mostra sua pior face nas comunidades periféricas – é
comum que moradores dessas comunidades sofram com a violência de operações
policiais. Não raro, os shows ocorridos nos antigos CSU (Centros Sociais Urbanos) –
mantidos pela Prefeitura do Recife, em sua maioria desativados nos dias atuais –
acabavam em pancadaria, sendo por vezes interrompidos pela polícia.
O Movimento Cultural do Alto José do Pinho, formado em sua maioria por jovens
incomodados com a realidade social do bairro, procurava por meio de músicas de
culturas marginalizadas como punk, o rap, e outras variações, denunciar as mazelas
que lhes atingiam. Esse movimento cultural de jovens, vale dizer, não estava ligado
apenas à música como expressão artística, mas à formação de sujeitos políticos que
advogavam à sociedade melhorias para suas condições materiais de existência. Aos
poucos, o Alto José do Pinho foi se transformando:

Passando das páginas policiais para as páginas culturais dos principais jornais de
Pernambuco, o Alto José do Pinho da década de 80 para cá foi reduto de um intenso
movimento cultural. Quem diria que seria o punk rock, alvo de tantos preconceitos
sociais, o propulsor de uma cena que se contrapusesse à violência no bairro, que era
superexplorada pela mídia na época? (LAPENDA, 2018, online).

O punk rock, ou a cultura punk¬ mais amplamente, surgiu nos Estados Unidos e chegou
quase que instantaneamente à Inglaterra, onde nasceram as bandas que catalizaram a
cultura para o resto do mundo. Em vários outros locais foram identificados jovens
ligados ao movimento, tendo chegado ao Brasil por volta de 1977 inicialmente na
cidade de São Paulo e, posteriormente, formando pequenas cenas ao redor do Brasil.
Entre eles o movimento punk de Brasília legou alguns dos grandes nomes do rock
nacional na década de 1980, como Legião Urbana, Plebe Rude, dentre outros.

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Apesar da sonoridade de muitas dessas bandas se modificar ao longo de suas
existências, o que tinham em comum era o sentimento de revolta contra condições
políticas do país. De acordo com Viteck (2007), o punk sofre influências dos locais onde
aportou. Em São Paulo, maior cena brasileira, esteve ligado a vários episódios de
violência entre gangues de punks na busca por espaço. Em entrevista com Tina Punk,
nome pelo qual era conhecida Tina Ramos, uma das mais famosas punks de São Paulo,
LEMOS (2013, online) relata as palavras dela:

“E a grande briga sempre foi entre os punks do ABC e os punks do subúrbio. Era briga
por espaço. E esse espaço era o centro da cidade”. Tina, na época, era respeitada por
todas as gangues. Mas as coisas pioraram na metade dos anos 80 com a chegada dos
carecas, grupo que propagava ideias neonazistas e o white power, trazendo para a cena
os canivetes, os revólveres e a intolerância. “Eles surgiram como uma gangue para
acabar com os punks e aos poucos foram ficando ideologicamente de direita, com
aquelas ideias horríveis de bater em gay e em nordestino”, diz Tina.

Em todo caso, o que parece ter acontecido em Recife segue uma lógica diferente. A
cidade constantemente identificada como um dos piores lugares do mundo para se
viver, com processos de exclusão graves de grande parte da população periférica, levou
o punk à união com outros movimentos musicais e culturais, além da formação de uma
verdadeira liga de subúrbios diversos da Região Metropolitana do Recife, com problemas
semelhantes enfrentados pela juventude em busca de melhoria de vida e espaço para
expor suas sensibilidades. Como relata Montarroyos (2010, p. 38), “O Recife era uma
cidade cruel com os jovens que gostavam de rock no final dos 1980”.
Podemos afirmar que a violência a qual a cidade expunha esses jovens vinha tanto do
ponto de vista simbólico quanto material. Por conta do período histórico, a dificuldade
no acesso à música fora das produções culturais tradicionais, como frevo e maracatu,
dependia em grande parte dos contatos de amizade com alguns abastados que
conseguiam comprar ou importar materiais fonográficos por meio de algumas lojas que
foram surgindo com base nesse mercado consumidor. O centro do Recife, que
funcionava como centralizador de todas essas tribos, teve várias dessas lojas tais como
a Vinil, Rock Xpress, Discossauro e Blackout, dentre outras, todas elas voltadas ao rock
em suas múltiplas designações. Vale frisar que várias delas ainda estão em atividade
nos dias atuais. Além de discos de vinil, cassetes e CDs, também comercializavam
roupas utilizadas por esses jovens. Do ponto de vista da cultura material, também
surgiram fanzines, que eram pequenos boletins de fãs que circulavam pelos circuitos
alternativos de divulgação (MONTARROYOS, 2010; SILVA; MESQUITA, 2016).

CULTURA COMO RESISTÊNCIA


Alguns desses jovens, devido às condições materiais impostas, acabaram se
profissionalizando em funções que começaram a desenvolver ainda amadores, fazendo
parte da cena cultural da cidade como produtores culturais, roads, músicos, educadores

• 11
sociais, dentre outros. Porém existe ainda uma grande dificuldade de se trabalhar com
cultura popular, que depende quase que inteiramente do fomento estatal no Brasil,
como reconhece Zygmunt Baumann quando fala da crítica de T. W. Adorno quanto ao
Estado como administrador da cultura. Adorno não enxergava com bons olhos a
gerência estatal nas atividades culturais, porém reconhece que mesmo sofrendo
prejuízos ao ser administrada ou planejada, a cultura não poderia ser deixada por conta
própria e os criadores precisavam conviver com esse paradoxo. O conflito reside no
poder de tomada de decisão sobre o que o que produzir e o que colocar em prática
(BAUMANN, 2013).
Acerca do processo de gentrificação, descrito por Arantes (2009) como forma de
valorizar áreas do ponto de vista cultural e turístico para torná-las vendáveis com altos
preços, pensamos que, todavia, o termo cultura possui uma vasta polissemia. As
manifestações das classes marginalizadas, que durante a história foram objeto de
repressão do aparato policial, também são formas de resistência à cultura dominante.
Garcia (1990) explica que a função da cultura é permitir a convivência social. Para o
autor, todo ser vivo deve organizar suas relações com o meio no qual existe. Para isso,
ele tem um código genético que o organiza, o preserva e transmite sua estrutura
hereditária que se modifica a partir de mutações. Também uma memória, que conserva
as informações essenciais para a conduta do indivíduo e que se modifica por meio da
adição de novas memórias. E, por fim, todos os organismos sociais desenvolvem uma
cultura coletiva, que possui dados essenciais relativos ao ambiente social no qual vivem.
Essas condutas são necessárias para reger as relações entre os integrantes de um
grupo nesse ambiente. A cultura, por sua vez, se modifica no contato com subculturas
que constituem a intenção de registrar mudanças no ambiente ou mesmo uma nova
diferenciação do organismo social.
As subculturas constituem, nesse caso, instrumentos de adaptação e sobrevivência à
cultura dominante da sociedade, ao mesmo tempo em que são um mecanismo natural
de modificação delas. Elas cumprem para a cultura, a mesma função que as mutações
desempenham no código genético, e que as novas sinapses de associações de ideias
cumprem para a memória. Por fim, quando uma subcultura chega a um nível de conflito
indissociável com a cultura dominante, ela se transforma numa contracultura (GARCIA,
1990).
O movimento punk, assim como outros movimentos da juventude, tais como os hippies,
são classificados como contraculturas por serem antissistêmicos em relação ao sistema
econômico vigente, bem como as ideias que sustentam a cultura dominante. Para
termos ideia, os eventos de punks no centro do Recife eram conhecidos como encontros
antinuclear, ou seja, os jovens tinham consciência de que uma guerra nuclear, que
assombrou o mundo durante a guerra fria, poderia afetar toda a vida no planeta.
O fato acima – que é motivo de riso entre o os frequentadores dos meios culturais do
Recife atualmente – durante a década de 1980 preocupava realmente jovens da
periferia da capital pernambucana, mesmo tendo problemas cotidianos bem mais
agudos para garantir sua sobrevivência pela forma como se desenrolou o urbanismo de

• 12
exclusão no país. Em todo caso, não podemos dissociar que o desenvolvimento do
capitalismo no Brasil esteve desde sempre ligado aos quadros do capitalismo
internacional, o que acabou por ampliar as tensões sociais já existentes há décadas
(MINTO, 2013). Levamos ainda em consideração que, em um mundo globalizado,
decisões geopolíticas do cenário internacional têm impacto local, que é exacerbado
ainda mais para as populações periféricas.
Em todo caso, usando a definição de Garcia (1990) não classificaríamos o que houve
Alto José do Pinho como um movimento de contracultura. O que enxergamos ao
analisar a questão, é que aqueles jovens procuravam inclusão e não rompimento.
Queriam ter o mínimo de dignidade que era negada pelas condições sociais vigentes no
país e na cidade do Recife.
Por fim, retomando Arantes (2009) e Baumann (2013), que reconhecem os conflitos na
esfera cultural, podemos afirmar que os processos que se desenvolveram no Alto José
Pinho tiveram um componente endógeno muito forte. Foram os jovens da comunidade,
ligados a vários ritmos musicais, se sobressaindo o punk rock, que resolveram não
aceitar o lugar que o cenário político lhes impunha. Por meio de suas músicas, de sua
arte, de projetos sociais como a rádio comunitária Alto Falante, e do engajamento em
outras causas sociais, que conseguiram, dentro de um cenário improvável, promover
modificações naquela localidade.
Aquela juventude queria fazer com que suas ideias e suas concepções de mundo
chegassem aos grandes veículos de comunicação, bem como instâncias de decisão
política. Se por um lado se opuseram à realidade que encontravam, por outro, hoje
fazem parte da cena cultural da cidade afirmando a cultura da periferia dentro dos
espaços anteriormente reservados apenas aos eventos das elites. Consideremos,
porém, que o Recife apresenta um caráter particular em relação a outras cenas, pois
muitos agentes do meio cultural vivem e lutam pela cultura desenvolvida nas regiões
periféricas.
Para resumir, transcrevemos abaixo partes das letras de “Eu tenho pressa” da Devotos
e “A cidade” de Chico Science e Não Zumbi – duas músicas advindas do movimento
cultural da juventude nas periferias da capital pernambucana, uma do punk e outra do
manguebit1. Apesar de não trabalharmos diretamente o movimento mangue nesse
texto, ele pode ser considerado um herdeiro do punk, pois vários músicos que o
compuseram transitavam entre os dois movimentos. Pensamos que essas músicas
definem bem a sensibilidade daqueles que mudaram a cara do Alto José do Pinho e
também da cidade do Recife a partir do final dos anos de 1980:

1
Apesar de normalmente ser grafado como manguebeat, os artífices do movimento
consideram que o termo correto para designá-lo é manguebit, conforme o documentário
Manguebit, dirigido por Jura Capela, que deve entrar no circuito comercial em no ano de
2023, ao qual tivemos acesso em sessão ocorrida no cinema da Fundação Joaquim Nabuco –
Recife, em 31 de março de 2022. <https://www.folhape.com.br/cultura/fundaj-e-porto-
digital-celebram-manguebeat-com-exibicao-de/221470/>. Acesso em 19 de ago. 2023.

• 13
Eu tenho pressa de vencer (Eu tenho pressa)
Eu tenho pressa de vingar (Eu tenho pressa)
Vencer para me suceder (Eu tenho pressa)
Vingar pra me realizar (Eu tenho pressa)
(...)
Vivendo assim eu vou morrer
Vivendo assim eu vou matar
Eu tenho pressa de vencer
Eu tenho pressa de vingar (...)
(Devotos – Eu tenho pressa)

O sol nasce e ilumina as pedras evoluídas


Que cresceram com a força de pedreiros suicidas
Cavaleiros circulam vigiando as pessoas
Não importa se são ruins, nem importa se são boas
E a cidade se apresenta centro das ambições
Para mendigos ou ricos e outras armações
Coletivos, automóveis, motos e metrôs
Trabalhadores, patrões, policiais, camelôs

A cidade não para, a cidade só cresce


O de cima sobe e o de baixo desce
A cidade não para, a cidade só cresce
O de cima sobe e o de baixo desce

A cidade se encontra prostituída


Por aqueles que a usaram em busca de saída
Ilusora de pessoas de outros lugares
A cidade e sua fama vai além dos mares

No meio da esperteza internacional


A cidade até que não está tão mal
E a situação sempre mais ou menos
Sempre uns com mais e outros com menos

A cidade não para, a cidade só cresce


O de cima sobe e o de baixo desce
A cidade não para, a cidade só cresce
O de cima sobe e o de baixo desce
(Chico Science e Nação Zumbi – A cidade)

• 14
CONCLUSÃO
A cidade é provavelmente a maior construção histórica da humanidade. Por motivos
diversos, mas que passaram sempre pela necessidade de relações sociais para a
sobrevivência da espécie, os seres humanos empreenderam vários modelos de
agrupamento, quer por questões reprodutivas, alimentares, espirituais, dentre outras.
Esses modelos evoluíram, sofreram continuidades e descontinuidades, até que alguns
milênios depois dos primeiros registros de cidades que acompanhavam as aldeias,
tivemos a cidade comercial e seus desdobramentos como um evento global. A essas
seguiram-se modelos de urbanização visando a uma melhor ocupação e habitação para
resolver problemas básicos como acesso à água, tratamento de dejetos, necessidades
de deslocamento, trocas comerciais, etc.
Com o advento da Revolução Industrial no século XVIII, a cidade começa a inverter sua
relação com o campo. Passa a ser o principal lócus de habitação humana, a partir do
momento em que o campo é cercado e transformado em mercadoria, vem o êxodo.
Enquanto aumenta a mecanização na agricultura, a população vai sendo expulsa e
passa a procurar moradia e trabalho nas regiões industriais, que gradativamente vão
acumulando problemas diversos. O seguir do processo nos séculos XIX e XX faz com
que a cidade se torne central. Em países como o Brasil – com toda sorte de problemas
decorrentes da estrutura fundiária e econômica escravagista, após liberação dos
escravizados e da importação de mão de obra branca para modernizar o país – as
periferias dessas cidades passam a ser habitadas por excluídos, que são ignorados pelos
planos diretores elaborados durante o século XX.
No Recife, as populações expulsas do centro pelas políticas de um urbanismo higienista
ocupam as áreas de morros, que até os dias atuais apresentam vários problemas de
ordem sanitária, de deslocamento, além de serem alvo frequente da violência tanto
interna, normalmente ligada ao tráfico de drogas, quanto estatal por meio do aparato
policial. Nesse ínterim, surge um movimento cultural de jovens no Alto José do Pinho,
durante os anos de 1980 e 1990, que criticava as condições insalubres de vida, a
pobreza e da falta de políticas públicas para resolução dos problemas da comunidade.
De alguma forma, por meio da união, inclusive com outras periferias, esses movimentos
floresceram e conseguiram realizar uma valorização da comunidade, que como dito por
Lapenda (2018), saiu das páginas policiais para as páginas culturais.
Mesmo considerando a pandemia de Covid-19, que interrompeu alguns dos processos
em andamento, a retomada recente com a reabertura do mercado cultural fomentou
alguns projetos com dispositivos jurídicos específicos como a Lei Federal Aldir Blanc,
além do Funcultura, programa mantido pelo Governo do Estado de Pernambuco, que
permite a aquisição e custeio por meio de projetos enviados para editais anuais. Aqui,
retomamos Balmann (2013), quando afirma a necessidade de financiamento estatal
para fomento da cultura, mesmo que haja conflitos entre produtores e agentes estatais
acerca da definição do que produzir e como produzir.
Não custa ponderar que esses processos se desenvolveram em áreas que não estão
primordialmente nos interesses do mercado, devido às dificuldades de localização,

• 15
infraestrutura, etc., mas são bastante oportunas para quem reside naquelas localidades,
pois acaba por atrair potencialidades econômicas fomentadas pela cultura local.
Entendemos que a cidade, com o desenvolvimento capitalista, acabou por se tornar
uma mercadoria, principal lócus do conflito entre classes, lutas pelo poder simbólico,
por ocupação dos espaços e mecanismos públicos de lazer.
Ainda no esteio desse processo, surgiram e têm surgido vários casos de resistência às
desigualdades, tanto no campo, quanto nas cidades. O Movimento dos Sem Terra (MST)
e Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) são os dois exemplos mais
conhecidos, mas em diversos locais até os dias atuais, são organizadas outras
iniciativas sociais e culturais que buscam inclusão, melhoria das condições de vida,
ocupação dos espaços públicos por classes periféricas, dentre outros.
Por fim, entendemos que o processo de valorização da cultura é também um local de
disputas entre agentes do mercado, agentes estatais, produtores culturais e artistas. Os
agentes estatais, por sua vez, acabam tendo alguma margem de liberdade de ação. No
caso do Recife-PE, muitos deles são ligados às periferias, seja por terem aproximação
ideológica com esses processos endógenos, seja por serem habitantes delas, de onde
também surge parte dos mandatários dos poderes legislativos municipais. Esses
processos de fomento público são disponíveis para acesso por meio dos grupos
envolvidos com cultura nessas comunidades.

REFERÊNCIAS
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LEFEBVRE, Henry. A Revolução Urbana. Belo Horizonte: Humanitas, 2002.

• 16
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LEMOS, Nina A vida é punk. Tina Ramos levou a minissaia para a cena punk, encarou
brigas de rua e lutou pela ideologia do movimento. Revista TRIP, São Paulo, 10 de jun.
2013. Disponível em <https://revistatrip.uol.com.br/tpm/a-vida-e-punk>. Acesso em
22 de jul. 2022.
MAFFESOLI, Michel. O Tempo das Tribos: O declínio do individualismo nas sociedades
de massa. Tradução Maria de Lourdes Menezes. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1998.
MARICATO, Ermínia Uma estratégia fatal: a cultura nas novas gestões urbanas. In:
ARANTES, Otília; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia A cidade do pensamento único -
Desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 121-191.
MIRANDA, Carlos Alberto Cunha Um urbanismo excludente: o caso da capital federal e
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UFPE, V. 20, N. 1, PP. 141-171, 2002.
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PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. 2ª Ed. Belo Horizonte:
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SANTOS, Milton. A cidade como centro da região: definições e métodos de avaliação da
centralidade. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1959.
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SPOSITO, Marília Pontes. A sociabilidade juvenil e a rua: novos conflitos e ação coletiva
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VASCONCELOS, Pedro de Almeida. A cidade, o urbano, o lugar. Revista Geousp. São
Paulo: USP, N. 6, P. 11-15, 1999.
WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade na história e na literatura. 1ª reimpressão.
São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

• 17
COMPANHIA DE FIAÇÃO E TECIDOS CONFIANÇA INDUSTRIAL
O apito da fábrica marcando o tempo e contando a história
COMPANHIA DE FIAÇÃO E TECIDOS CONFIANÇA INDUSTRIAL
El silbato de fabrica marcando el tempo y contando la historia

Cidade, política e cultura

SILVA, Edilma S.
Mestre; PUC-Rio
email: edilmasoares.soares@gmail.com
GONÇALVES, Rafael S.
Doutor; PUC-Rio
Email: rafaelsgoncalves@yahoo.com.br
RESUMO

O lançamento da pedra fundamental que deu origem a Companhia de Fiação


e Tecidos Confiança Industrial ocorre em 29/07/1885, cerca de dois anos
depois, acontece a inauguração da fábrica no dia 05/03/1887, já no fim do
período conhecido como Brasil Império, na cidade do Rio de Janeiro.
Passados 137 anos o conjunto arquitetônico, segue compondo um cenário de
nostalgia, inspirando poetas e compositores e chamando a atenção de quem
passa pelos bairros de Vila Isabel e Andaraí. Patrimônio urbano; espaço
significativo de resistência, dos herdeiros e sucessores daqueles que um dia
foram operários da Campanhia Confiança Industrial. A estrutura de cimento
e cal e as vilas de casas amarelas e janelas verdes, resistem ao tempo e aos
inúmeros processos de demolições, remoções e especulações que fizeram
parte do cotidiano da cidade, durante décadas. A Companhia Confiança
Industrial segue despertando interesses de curiosos, mas também de
pesquisadores e estudiosos das questões urbanas e das histórias da cidade.
Durante sua existência, desde a fundação a Companhia Confiança Industrial
ilustrou os jornais da época, até o dia em que o apito da fábrica foi
silenciado. Com base em pesquisas em jornais da época e de bibliográfias
referentes a questão urbana, buscamos através deste artigo apresentar a
Companhia Confiança Industrial desde seu nascimento, seu fechamento e
sua existência na atualidade.

PALAVRAS CHAVE Cidade; Cultura; Questão-urbana; Patrimônio.

RESUMEN

La colocación de la primera piedra que dio origen a Companhia de Fiação e


Tecidos Confiança Industrial tiene lugar el 29/07/1885, aproximadamente
dos años después, la inauguración de la fábrica tiene lugar el 05/03/1887, al
final del período conocido como Brasil Império, en la ciudad de Río de
Janeiro. Después de 137 años, el conjunto arquitectónico sigue componiendo
un escenario de nostalgia, inspirando a poetas y compositores y llamando la
atención de quienes pasan por los barrios de Vila Isabel y Andaraí.
patrimonio urbano; importante espacio de resistencia, de los herederos y
sucesores de los que fueron trabajadores de la Campanhia Confiança
Industrial. La estructura de cemento y cal y los poblados de casas amarillas y
ventanas verdes resisten el tiempo y los innumerables procesos de derribos,
mudanzas y especulaciones que formaron parte de la vida cotidiana de la
ciudad durante décadas. La Companhia Confiança Industrial sigue
despertando el interés de curiosos, pero también de investigadores y
estudiosos de las cuestiones urbanas y de la historia de la ciudad. Durante su

• 2
existencia, desde su fundación, Companhia Confiança Industria ilustró los
periódicos de la época, hasta el día en que se silenció el silbato de la fábrica.
Con base en investigaciones en periódicos de la época y bibliografías
referentes a la cuestión urbana, buscamos a través de este artículo presentar
la Companhia Confiança Industrial desde su nacimiento, su cierre y su
existencia en la actualidad.

PALABRAS-CLAVE Ciudad; Cultura; Cuestión-urbana; Patrimonio.

• 3
INTRODUÇÃO

O apito da fábrica já não toca mais, mas circular pelas artérias urbanas dos bairros de
Vila Isabel e Andaraí nos faz defrontar invariavelmente com a memória social e a
cultura de seus moradores. O conjunto arquitetônico, formado pela fábrica e as nove
vilas de casas onde viveram os antigos operários da Companhia, segue imponente.
Apesar do tempo, esse conjunto chama a atenção de quem caminha pelas ruas Artidoro
da Costa e Piza e Almeida, ou pela rua Maxwell.
Iniciando sua construção ainda no período do Brasil Império, a Companhia de Fiação e
Tecidos Confiança Industrial marcou a história do bairro Aldeia Campista, antigo sub
bairro do Andaraí e Vila Isabel. A Companhia inspirou canções como Três Apitos de Noel
Rosa, gravada no ano de 1933, e também o samba enredo do Grêmio Recreativo Escola
de Samba Unidos de Vila Isabel de 1994, deixando explícito que, mesmo com o passar
dos anos, a existência da Companhia permanece tendo sua importância no bairro, não
somente para as pessoas que ainda vivem nas casas que restaram da antiga vila
operária da fábrica
Desde o lançamento de sua pedra fundamental no ano de 1885, a Companhia Confiança
Industrial ilustrou as páginas dos Jornais da época. Jornais, como O Paiz, Gazeta de
Notícias, Jornal do Commercio e O Economista em Lisboa-Portugal, noticiaram a
inauguração da Companhia Confiança Industrial como um grande acontecimento para
um Brasil que despontava para a prosperidade no período de industrialização e
urbanização na esteira do Brasil República.
Fruto da pesquisa no curso de pós-graduação, tendo por base as notícias dos jornais da
época e referencias bibliográficas pertinentes, o presente artigo busca apresentar a
trajetória da Companhia Confiança Industrial e sua importância no bairro de Vila Isabel
e Andaraí e das questões urbanas da cidade do Rio de Janeiro enquanto esteve ativa até
seu fechamento.
Durante a sua existência a Companhia Confiança Industrial soou o apito da fábrica,
despertando os operários e moradores do bairro e seu entorno, mas também alegrou os
fins de semana com algumas partidas de futebol do seu Confiança Atlêtico Clube, que
ocorriam no campo construído nos terrenos da Companhia. No dia 25 de abril de 1941,
por exemplo, o Jornal dos Sports noticiava a partida entre o Confiança A.C. que
aconteceria no Dia do Trabalhador, no campo da rua General Silva Telles, onde
atualmente fica a sede do Grêmio Recreativo escola de Samba Acadêmicos do
Salgueiro, e o Clube de Regatas Vasco da Gama. A manchete dizia: “Os operários do
Andarahy prestarão significativa homenagem aos Cruzmaltinos no Dia 1º de Maio”1.

1Jornal dos Sports (RJ) 1931 a 1952


http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=112518_01&pesq=%22Companhia%
20Confian%C3%A7a%20Industrial%22&pasta=ano%20194&hf=memoria.bn.br&pagfis=163
84 Acesso em 24/07/20223

• 1
O cotidiano da Companhia era contado pelo jornais, e seu fechamento impactou
inclusive o comércio local, como o proprietário do bar da esquina da rua Souza Franco;
“que perdeu sua clientela”, como noticiou o Jornal Última Hora (RJ), na edição de 30 de
junho de 1965.
Após o fechamento da fábrica, em junho de 1965, a Companhia seguiu sendo notícia no
jornal, mas dessa vez se falava do abandono dos maquinários e até de algumas casas,
que aos poucos iam se deteriorando pelo tempo, também dos ex operários largados a
própria sorte ainda com “ordenados” à receber.
A Companhia Confiança Industrial faz parte da história da cidade do Rio de Janeiro que
viveu seu auge como capital federal, mas que ainda preserva nas ruas e avenidas de
seus bairros, muitas histórias que merecem e precisam ser contadas.

A CIDADE IMPERIAL , A CAPITAL FEDERAL E A COMPANHIA CONFIANÇA

Discutir as cidades brasileiras implica pensar um país que vivenciou um longo período
de escravização do povo negro, sequestrado do continente africano. Tal fato impactou
toda e qualquer política de reforma agrária e de construção do espaço urbano
comprometido com a garantia de moradia e trabalho digno para sua população.
Margarida de Souza Neves afirma que a sensação vivenciada por homens e mulheres na
virada do século XIX para o XX, no Rio de Janeiro, seria de “[...] vertigem e aceleração
do tempo” (NEVES, 2018 p.11), “[...] o mesmo sentimento estaria presente nas
principais cidades brasileiras, que, tal como a cidade-capital, cresciam como nunca
(NEVES, 2018 p.11),

Novas engrenagens internacionais transformam a economia mundial, as grandes


potências
hegemônicas descobrem, nas áreas periféricas – inclusive no Brasil -, um mercado lucra-
tivo para aplicações financeiras e passam a investir fortemente ali, onde a mão de obra é
barata, os direitos sociais estão longe de serem conquistados e a matéria-prima é farta e
disponível. O capitalismo financeiro complementa as conquistas dos países
industrializados
e os trustes e cartéis darão novas às políticas monopolistas (NEVES, 2018 p.17)

Sair de uma economia escravista para um processo de industrialização com


trabalhadores livres significava pensar a cidade para todos. Henri Lefebvre sinaliza que
embora a industrialização caracterize a sociedade moderna, ela fornece o ponto de
partida para refletir nossa época, a “[...] Cidade preexiste a industrialização”
(LEFEBVRE, 2001 p.11).
Por sua vez, Milton Santos, citando Caio Prado Jr., destaca que ao fim do período
colonial, 5,7% da população do país estavam concentradas nas cidades de São Luiz do
Maranhão, Recife, Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro, “[...] apenas três capitais
brasileiras contavam com mais de 100 000 habitantes: Rio de Janeiro (274.972),
Salvador (129.109) e Recife (116.671)” (SANTOS, 1993 p. 21).

• 2
Entre o período de 1763 e 1960, a cidade do Rio de Janeiro foi a capital federal e
durante esse tempo “[...] a cidade foi a mais populosa do país” (ABREU,1997 p.16).
Maurício de Abreu destaca, ainda, que o Rio de Janeiro somente começa a se
transformar a partir do século XIX, e que anteriormente era uma cidade “apertada”,
“[...] limitada pelos Morros do Castelo, de São Bento e de Santo Antonio e da
Conceição” (ABREU, 1997 p.26).
O Rio de Janeiro era uma cidade em que parte de sua população era escrava. Havia
poucos trabalhadores livres e a elite que alií vivia era bastante reduzida. Devido a falta
de transporte coletivo, os poucos moradores viviam próximos. Mas essa realidade aos
poucos foi se transformando, principalmente por ocasião da vinda da família real para o
Rio de Janeiro. De acordo com o Abreu, (1997):

A vinda da familia real impõe ao Rio uma classe social até então praticamente inexistente.
Impõe também novas necessidades materiais que atendam não só aos anseios dessa
classe, como facilitem o desempenho das atividades econômicas, políticas e ideológicas
que a cidade passa a exercer (ABREU, 1997 p.26).

Em se tratando de expansão urbana e desenvolvimento industrial, a chegada dos trens


e bondes foram fundamentais na expansão da cidade. O bairro de Vila Isabel se
destacava por suas ruas largas “a [...] exemplo das cidades européias, dentre as quais
se destaca o Boulevard Vinte e Oito de Setembro”(ABREU, 1997 p.37). Vale ressaltar
que, até então, o bairro de Vila Isabel estava localizado em áreas conhecidas por suas
fazendas, sítios e chácaras, e que parte do bairro pertenceu à família imperial
denominada Fazenda dos Macacos (Abreu, 1997).
A chegada da Companhia representou mais avanço no processo de industrialização e
reurbanização para os bairros um pouco mais distante do que hoje identificamos como a
área central da cidade da cidade do Rio de Janeiro.
Noticiada como um grande acontecimento para o bairro, a inauguração da Companhia
Confiança Industrial é divulgada em vários jornais que circulavam no país e também foi
notícia no jornal português O Economista. Chama atenção o espaço ocupado pelos
edifícios que compunha o conjunto arquitêtonico, composto de um Edifício Principal de
2.262 metros quadrados, Casa de Batedores com 226 metros, Casa de Engomação 547
metros, Casa das Caldeiras 176, Casa da Máquina 109, Oficina de Máquinas 220
metros2, totalizando 3.540 metros quadrados de construção é possível ter uma ideia da
dimensão da Companhia e sua importância no cenário urbano naquele local.
Pelas notícias dos jornais e revistas da época, é possível compreender que a Companhia
fez uso de antigas construções como o Palacete Maxwell, como noticiou reportagem da

2O Economista (Lisboa - POR) 1881-1895


http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=891029&pesq=%22Companhia%20C
onfian%C3%A7a%20Industrial%22&pasta=ano%20188&hf=memoria.bn.br&pagfis=6829
Acesso em 23/07/2022

• 3
Revista de Engenharia3, de 14/03/1887. Algo importante uma vez que a cidade
vivenciava um processo de remoções e demolições, a Companhia fez uso de
construções anteriores para abrigar seu maquinário e parte das dependências da
fábrica. Como veremos mais adiante, algumas vilas de casas destinadas a moradia dos
operários ja vinham sendo construídas. Fez também novas construções, dessa vez para
abrigar principalmente o operariado da Companhia. A construção de vilas operárias foi
algo importante em um período de remoções e demolições vivido pela cidade do Rio de
Janeiro.

Figura 1 Vista lateral da fábrica. Fonte: Arquivo Nacional

Maria Eulália Lahmeyer Lobo, em seus estudos sobre a habitação popular operária no
Rio de Janeiro durante o período entre 1880 a 1930, relaciona a questão habitacional
com “[...] a Saúde Pública, a higiene, a política, o Estado no Império, e na República
Velha, o movimento operário e com a industrialização” (LOBO, 1989 p. 11).
A necessidade de moradia para os operários movimentou a construção de moradias. A
medida que a industrialização avançava, muitas dessas construções resistiram ao
tempo, como no caso das nove vilas que compõe o conjunto arquitetônico da

3Revista de Engenharia (RJ) 1879-1891


http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=709743&pesq=%22Companhia%20C
onfian%C3%A7a%20Industrial%22&pasta=ano%20188&hf=memoria.bn.br&pagfis=2238
Acesso em 23/07/22

• 4
Companhia Confiança Industrial. No contexto da habitação social, é importante ressaltar
a importância das construções das vilas operárias na garantia de moradia para o
operariado. No entanto vale sinalizar que havia nessa prática o interesse por parte dos
donos das fábricas, já que poderiam exercer um maior controle sobre seus operários.
No que diz respeito a moradia operária, Maria Eulália Lahmeyer Lobo afirma que o
objetivo do governo na época era enfraquecer o movimento operário, estimulando
construção de habitações com ofertas de vantagens aos indivíduos e companhias
interessadas. De acordo com a autora, a Companhia de Saneamento do Rio de Janeiro
“[...] construiu vilas operárias para as fábricas de tecidos Carioca e Confiança (600
operários)”(LOBO, 1989 p. 40).
Assim, no ano de 1890, estavam em vias de construção, algumas vilas operárias, na
cidade do Rio de Janeiro, entre elas;

Vila Senador Soares: à rua Gonzaga Bastos entre Barão de Mesquita e o Boulevard 28
de Setembro, Vila Isabel (44.000 m²) para atender a demanda de moradia do
operariado da fábrica de Tecidos Confiança Industrial, tinha 60 casas.
Vila Maxwell: à rua do mesmo nome, na esquina da rua Gonzaga Bastos, Vila Isabel,
ao
lado da fábrica de tecidos Confiança Industrial, com capacidade para 600 pessoas.
Dispunha de uma lavanderia a vapor e uma escola primária. Estava situada em terras
compradas pela Companhia, em uma área de 11.200 m². Em 1905 contava apenas
com
11 casas (LOBO, 1989 p. 46).

As casas das vilas nas ruas Senador Soares e Maxwell, além de abrigar os operários da
Companhia, resistiram aos processos de demolições durante as reformas urbanas na
cidade e aos períodos de crise econômica, vivenciado pela Companhia. Nabil Bonduki
destaca a vila operária como um modelo de moradia ideal para os higienistas;

pois era salubre e continha equipamentos sanitários em cada unidade; para o poder
público, que as incentivava com insenções de impostos; e para os industriais, que
chegaram a construir vilas que eram verdadeiras cidades em miniatura. No entanto, as
regras da ordem capitalista, na qual os salários precisavam ser mantidos abaixo do
necessário à subsistência, foram mais fortes que as intenções dos sanitaristas pois, antes
de se abrigar numa habitação modelar, o operário precisava se alimentar (BONDUKI,
2011 p.53).

As fábricas de maneira geral impulsionaram, por um período, a construção de novos


espaços de moradia operária e produziram, assim, o desenvolvimento dos bairros onde
estavam. É possível verificar, ainda nos dias atuais, que determinadas construções
seguem fazendo parte do patrimônio urbano da cidade do Rio de Janeiro, como a vila
operária da fábrica Confiança. De certa forma, é um legado do passado operário do Riod
e Janeiro:

No bairro também foram construídas vilas operárias, como a Vila Maxwell e a Vila
Senador Soares (ambas em torno da fábrica de tecidos Confiança Industrial), uma vila em
torno da Fábrica de Projetis de Artilharia e, segundo as pessoas entrevistadas, outras que

• 5
se situariam nas ruas Paula Brito e Ferreira Pontes. Como se sabe, essa prática não era
usual no Rio de Janeiro. A alternativa de moradia mais comum para os(as)
trabalhadores(as) eram as habitações coletivas e, com sua destruição, as favelas. Essas
vilas, no entanto, foram construídas para aproveitar as vantagens fiscais e os privilégios
que o governo imperial oferecia, desde 1882, com o objetivo de eliminar os cortiços e
estalagens considerados insalubres, às empresas que construíssem “casas higiênicas”
para seus operários (LEITE e FABIÃO, 2003, p.66)

As referências às vilas operárias das ruas Senador Soares e Maxwell nos estudos sobre
moradia operária são frequentes, deixando explicitado sua importância na composição
do cenário urbano do bairro, principalmente por exemplificarem o acesso à moradia
popular me um contexto de luta pelo direito à moradia digna e de fortes demandas da
população na cidade do Rio de Janeiro.
Resistindo ao tempo, a fábrica Confiança e a vila de casas seguem compondo o cenário
urbano do bairro de Vila Isabel e Andaraí, mantendo presente a história de um Rio de
Janeiro pulsante e potente.

Figura 2: Companhia Confiança Industrial e a marcação das vilas operárias. Fonte: Google Maps 2008.
Stanchi, R,P. 2008, p.117

Na figura 1 é possível identificarmos a fábrica e as nove vilas de casa que ainda


compõem o conjunto arquitetônico do que um dia ficou conhecido como Companhia
Confiança Industrial. Vila 1 situada na rua Souza Franco, Vila 2 rua Artidoro da Costa,
número 160, Vila 3 rua Artidoro da Costa, número 138, Vila 4 rua Artidoro da Costa,
número 106, Vila 5 entre as ruas Artidoro da Costa e Piza e Almeida, Vila 6 rua Maxwell,

• 6
Vila 7 fica entre as rua Maxwell, Senador Soares e Araújo Lima, Vila 8 situada na rua
Silva Telles e Vila 9 na rua Silva Telles número 95.

A CONFIAÇA INDUSTRIAL E SUA IMPORTÂNCIA

Em junho de 1910, a Companhia recebe a visita do então Presidente da República, Nilo


Peçanha. O Jornal O Paiz (RJ),4 de 11/06/1910, detalha cada momento da visita, desde
o compromisso de Nilo Peçanha com a produção nacional, em uma época de debate
sobre os problemas da industria. Coube a Cunha Vasco, diretor da fábrica Confiança na
época, providenciar o transporte da comitiva presidencial que saiu às 12 horas da praça
Tiradentes para Vila Isabel em 3 bondes. A chegada até a fábrica se deu em automóvel.
Lá, Nilo Peçanha, já era aguardado por vários convidados entre pessoas ligadas ao
comércio, as artes, além de representantes do Senado, da Câmara, o prefeito municipal
e o chefe de polícia. A banda de operários recebeu o presidente com o hino nacional.
A notícia detalha cada momento da visita à Companhia, informando sobre as condições
do ambiente, da produção de tecidos, como também sobre os operários;

tudo enfim por machinismos aperfeiçoados e guiados por algumas centenas de operarios
de ambos os sexos, nos quaes não se nota aquella physionomia abatida, indicadora de um
depauperamento adquirido na falta de conforto e no excesso de trabalho, que tão mal
impresionavam o que eram, outr’ora, a feição aparente dos nossos operários (O Paiz,

A notícia destaca ainda que o presidente saiu para conhecer a casa das vilas onde os
operarios viviam;

S.Ex saiu por um portão para a graciosa villa operaria, onde as familias dos trabalhado-
res da Confiança Industrial têm a sua residencia modesta, mas relativamente conforta-
vel, em uma extensa fila de alegres chaletsinhos.
Pouco adiante, á rua Silva Telles, em predio especialmente construido pela fabrica, foi o
Sr. Presidente ver a escola, onde recebem instrucção os filhos dos operarios.
Salões arejados, hygienicos e alegres.No primeiro, a aula das meninas; no segundo,a dos
meninos, estes muito pequeninos ( O Paiz, 11/06/1910 p.02)

Durante a visita, houve coral de meninas ao hino da bandeira, a ainda a presença do


ministro da fazenda. Houve também um discurso feito por Cunha Vasco que pede que o
presidente “ampare e defenda” a industria brasileira uma vez que a “[...] importação
estrangeira, procura mais uma vez subverter os interesses nacionais” ( O Paiz, 1910
p.03)
Stanchi destaca a importância das vilas operárias, como um avanço para as classes
trabalhadores, assim como aconteceu nos países da Europa e nos Estados Unidos. No

4O Paiz (RJ) 1910-1919. Visita do Sr. Presidente da República


http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=178691_04&pesq=%22Companhia%
20Confian%C3%A7a%20Industrial%22&hf=memoria.bn.br&pagfis=2153 Acesso em
19/08/2022.

• 7
entanto, ao analisar “[...] as plantas das vilas operárias da Fábrica Confiança permite
constatar a permanência de formas tradicionais do Brasil colônia na concepção dessas
moradias” (STANCHI, 2008 p.12), em sua dissertação o autor, ao analisar as plantas
identifica que ainda existe a “[...] mentalidade senhorial anacrônica nas classes
burguesas em ascenção, no que diz respeito à concepção do espaço reservado às
classes operárias” (STANCHI, 2008 p.182), que o discurso sanitarista e higienista, que
pregavam um modelo de moradias arejadas e iluminadas, ficou restrita a alguns
elementos, nas vilas operárias, por exemplo, os quartos ventilados eram restrito ao
chefe de família e sua esposa, o segundo quarto em alguns casos eram sem janelas, os
banheiros sempre nos fundos da casa.
Não podemos ignorar que as moradias concedidas pelos donos das fábricas contribuíam
para que se mantivesse a dinâmica do controle do operariado.
O conjunto arquitetônico da fábrica Confiança segue imponente, chamando atenção dos
que caminham pelas ruas do bairro. A fábrica já não apita, mas mesmo em silêncio a
imagem das casas de paredes amarelas e janelas verdes nos convida a buscar conhecer
as histórias por trás daquelas paredes. Não podemos de forma alguma romantizar a
exploração desses sujeitos e sujeitas operários. No entanto não se deve deixar de
reconhecer a força e a potência dos herdeiros e sucessores que seguem mantendo a
Vila Operária Confiança de pé, inspirando a poetas e compositores, como o Grêmio
Recreativo Escola de Samba Unidos de Vila Isabel cantou em 1994, tempo “[...] peguei
o bonde, passei no Boulevard, e a Confiança é doce recordar “Os três apitos” cantados
por Noel, ainda ecom pela Vila Isabel [...]”5. Não é exagero dizer que a Companhia
marcou de forma significativa a história do bairro.
No dia 20/04/1969, o Correio do Amanhã anunciava o leilão da massa falida da
Companhia Confiança Industrial. A manchete do jornal chama atenção para o
interessados que se tratava de uma Companhia que teve grande importância para o
país. O leilão aconteceria na rua Artidoro da Costa número 201, esquina com a rua
Souza Franco. A matéria trazia a descrição detalhada de todo material que seria posto
em leilão: cardas, penteadeiras, fiação, seção de engomadeiras, teares, salas de pano,
caldeiras, oficinas, ainda carpintarias, motores elétricos, mobiliários dos escritórios e
dois caminhões. O leilão da massa falida incluía ainda lotes de terrenos nos bairros de
Laranjeiras e Cosme Velho e um prédio com terreno no bairro do Flamengo.
Em 1985, através do decreto nº5.215 de 11/07/85, a Prefeitura Municipal do Rio de
Janeiro (PMRJ) tombou o Conjunto Arquitetônico da Antiga Companhia Fiação e Tecidos
Confiança Industrial, ressaltando sua importância arquitetônica, histórica e cultural,
passando a ser denominado de Conjunto Arquitetônico Remanescente da Antiga

5Samba-Enredo 1994. Muito Prazer! Isabel de Bragança e Drumond Rosa da Silva, mas pode
me chamar de Vila.
https://www.letras.com.br/gres-unidos-de-vila-isabel-%28rj%29/samba-enredo-1994-
muito-prazer-isabel-de-braganca-e-drumond-rosa-da-silva-mas-pode-me-chamar-de-vila
Acesso em 13/08/2022.

• 8
Companhia de Fiação Confiança – Bens Culturais - Vila Isabel. Por sua vez, em 1993, a
Lei municipal nº2038 criou a Áreas de Proteção do Ambiente Cultural – APAC.
O tombamento inclui o prédio da fábrica e a toda a estrutura remanescente como a
chaminé, o Palacete, as casa dos operários de número 37,43,47,53,57,77,
83,87,91,95,101,105,109,113,144,152,160, as casas das vilas de número 103, 138 e
160 fundos, as casas remanescentes em frente ao número 58, que são as seguintes:
I,II,III,IV,V e VI, todos esses imóveis estão localizados na rua Artidoro da Costa. O
Conjunto o Arquitetônico inclui ainda as casas de número 3,27,30,33, situadas na rua
Souza Franco6, área protegida contempla as casas das vilas operárias que estão
localizadas nas ruas Artidoro da Costa, Souza Franco, Piza e Almeida, Maxwell, Senador
Soares, Araújo Lima, Silva Telles, apartir do decreto é possível identificar o que deverá
ser preservado.

CONCLUSÃO

Desde que as atividades da fábrica foram paralisados em 1965, de maneira repentina,


o conjunto arquitetônico da Companhia passou por situações de disputas judiciais e
abandono de seus prédios, até que se tornasse uma área protegida. Somente em 1993,
28 anos após o fim das atividades da Companhia, o poder público municipal decidiu se
ocupar de um espaço significativo, para os bairros de Vila Isabel e Andaraí, e para a
cidade do Rio de Janeiro. Um Rio de Janeiro que despontava para um futuro urbanizado
e industrializado, mas que se perdeu ao longo do tempo, assim como o bairro de Vila
Isabel, que foi perdendo suas fábricas e seu comércio pulsante e inovador.
Entre herdeiros e sucessores que insistem em fazer da Vila Operária Confiança seu
lugar, encontramos homens, mulheres, crianças, jovens e idosos, que contam sobre a
fábrica, as conversas podem ser ouvidas nos bares, ou serão contadas nos sambas de
enredo, pois é assim “na Vila”, dos muitos moradores que alí resiste, está a assência
dos trabalhadores que com apito ou sem apito, despertam pela manhã, e se
encaminham aos pontos de ônibus, seguem para as estação de trem ou de metrô e
cumprem suas jornadas de trabalho, o bonde não passa mais na Vinte e Oito de
Setembro, trazendo os operários pela manhã, mas os ônibus deixam na avenida os
trabalhadores que retornam para o lar.
O apito da fábrica silencia, deixando seus operários sem salário, passado 137 anos, a
fábrica e as vilas se mantêm firmes e provocando em quem passa por suas ruas, muita
curiosidade, mas acima de tudo existe nessa construção um legado, sobre a história da

6Camara Municipal do Rio de Janeiro.


http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=089842_07&pagfis=101061
&url=http://memoria.bn.br/docreader#
Acesso em 21/08/2022.

• 9
cidade, a cultura e a luta do operariado, que mesmo durante seu momento de lazer,
vestia o camisa do time da fábrica.
As vilas operárias Brasil afora, traz parte importante da história do país, de um período
de desenvolvimento, das demandas do operariado, da construção do urbano, mas acima
de tudo de um momento em que o país poderia ter se projetado como potência
econômica e garantido moradia digna para seus trabalhadores, rompendo
definitivamente com um modelo de país atrasado.

REFERÊNCIAS

ABREU, M. A Evolução Urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Iplanrio, 3.ª ed. 1997.
BONDUKI,N. Origens da Habitação Social no Brasil: arquitetura moderna, Lei do inquilinato e
difusão da casa própria. São Paulo: Estação Liberdade,2004.
LEFEBVRE, H. O direito à cidade. Tradução, prefácio e notas Rubens Eduardo Frias. São
Paulo: Centauro, 2001.
LEITE, P.M.;FABIÃO,M.F. De volta para o futuro: imagens e identidades no Andaraí. In:
Organizadores SANTOS,A.M.;LEITE,M.P.;FRANCA,N.Quando memória e história se
entrelaçam: a trama dos espaços na Grande Tijuca – Rio de Janeiro: IBASE, 2003. 96p.
LOBO, E.M.L.; CARVALHO, L. A.;STANLEY, L. Questão habitacional e o movimento
operário.Rio de Janeiro: UFRJ, 1989.
NEVES, M.S. Os cenários da República. O Brasil na virada do século XIX para o século XX.
In: [FERREIRA.J.;DELGADO,L.A.N]. O tempo do liberalismo oligárquico. Da Proclamação da
República à Revolução de 1930. Primeira República (1889-1930). Coleção O Brasil
Republicano. Volume 1. 10ª. edição revista. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira.
2018.pp.11-41.
SANTOS, M. A urbanização brasileira.Editora HUCITEC. São Paulo, 1993.

• 10
CULTURA, POLÍTICA E A CONSTRUÇÃO DE NOVAS
CENTRALIDADES NO CENTRO DO RIO DE JANEIRO–1822-2022

CULTURE, POLITICS AND THE CONSTRUCTION OF NEW


CENTRALITIES IN THE CENTRE OF RIO DE JANEIRO – 1822-2022
Cidade, política e cultura

DA ROCHA, Ana Beatriz


PhD; Escola de Arquitetura e Urbanismo. Universidade Federal Fluminense
ab_rocha@ud.uff.br / tiz.darocha@gmail.com
REIS FILHO, Paulo
DSc.; Departamento de Design. Escola Superior de Propaganda e Marketing
pauloreis@espm.br
RESUMO

Os 200 anos de “Independência” (1822) e 100 anos de “Modernismo” (1922)


são efemérides importantes que ilustram não só como significativas crises
políticas, econômicas, sociais, culturais resultaram na mudança da forma de
governo no Brasil, passando de Colônia à Império (em 1822) e de Império à
República (em 1889), mas também como elas contribuíram para a
construção do sentido de “Brasilidade” e “modernidade” – causando um
grande impacto na configuração espacial do Rio de Janeiro, por ter sido a
capital da Colônia, do Império e da República, e por sua relevância como
centro de produção cultural. A construção da identidade nacional e
republicana seria “inventada” e com ela novos ares, mais “civilizados” e
“cosmopolitas”, se fizeram presente na região central da cidade, resultando
na (re)estruturação de espaços públicos como as Praças Tiradentes,
Floriano/Cinelândia e Mauá, além da Região Portuária – que se tornariam
símbolos de “modernidade”. As transformações urbanas seriam cada vez
mais rápidas, mais amplas, mais impactantes e mais profundas, levando a
processos expansionistas impulsionados pela velocidade, urgência,
inconstância e imaterialidade dos tempos modernos. Estas mudanças
temporais e de padrões produtivos e de consumo promoveram novas formas,
funções, usos e apropriações destes espaços urbanos citadinos – o que será
discutido neste trabalho.

PALAVRAS CHAVE Cidade; Imagem; Identidade; Políticas Públicas Urbanas;


Rio de Janeiro.

ABSTRACT

200 years of Independence (1822) and 100 years of Modernism (1922) are
important celebrations that illustrate not only how significant political,
economic, social, cultural crises resulted in the change of Brazil’s form of
government, from Colony to Empire (in 1822) and from Empire to Republic
(in 1889), but also how they contributed towards the construction of the
sense of “Brazilianness” and “modernity” – causing a great impact on the
spatial configuration of Rio de Janeiro, as it was the capital of the Colony, the
Empire and the Republic, and because of its importance as a centre of
cultural production. The construction of the national and republican identity
was “invented” and with it an air of “civility” and “cosmopolitanism” became
evident in the central region of the city, resulting in the (re)configuration of
public spaces like the Tiradentes, Floriano/Cinelândia and Mauá squares and
the Port Area – which became symbols of “modernity”. These urban
transformations would be faster, wider, more impressive and deeper, leading
to expanding processes driven by the speed, urgency, impermanence and
immateriality of modern times. These temporal and production/consumption
change of patterns led to new forms, functions, uses and appropriations of
these public spaces – something that will be discussed here.

KEY-WORDS City; Image; Identity; Urban Policies; Rio de Janeiro.

• 2
INTRODUÇÃO
Os 200 anos de “Independência” (1822) e 100 anos de “Modernismo” (1922) são
efemérides importantes que ilustram como significativas crises políticas, econômicas,
sociais, culturais resultaram na mudança da forma de governo no Brasil, passando de
Colônia à Império (em 1822) e de Império à República (em 1889) – incluindo as
diversas diferenciações temporais como Primeiro Império, Regência, Segundo Império,
República Velha, República Nova, Estado Novo, Ditadura Militar, Redemocratização,
etc.. Além da relevância na construção do sentido de “Brasilidade” e “modernidade”,
estas crises causaram um grande impacto na configuração espacial das cidades –
sobretudo no Rio de Janeiro, por ter sido a capital da Colônia, do Império e da
República, entre 1763 até 1960 – e mesmo pós-1960, pela sua importância como
centro de produção (e consumo) cultural. Há de se comentar, ainda, a questão (não-
resolvida) da abrupta transformação da sociedade rural e escravocrata em urbana e
industrial – que contribuiu para o aumento populacional e de mão de obra disponível
nas cidades e que, de certa forma, levou ao crescimento desordenado do tecido urbano.
Ao (teoricamente) deixar para trás a tradição rural e escravocrata, seria necessário
substituir costumes, crenças, ideias. Assim, apesar do (necessário e oportuno) discurso
recente de ressignificação e revisão histórica, marcos temporais como as Leis do Ventre
Livre (1871), do Sexagenário (1885) e Áurea (1888) indicariam o fim da Era Imperial e
o início de uma Era Republicana – ainda que esta mudança, imposta por leis, não tenha
sido efetivamente implementada em termos sociais, econômicos, de direitos civis, de
oportunidades etc.. até hoje. Com isso, uma nova realidade se imporia: a construção de
uma identidade nacional e republicana seria “inventada” e com ela novos ares, mais
“civilizados” e “cosmopolitas”, se fariam presente nas cidades: as transformações
urbanas seriam cada vez mais rápidas, mais amplas, mais impactantes e mais
profundas, levando a processos expansionistas impulsionados pela velocidade, urgência,
inconstância e imaterialidade dos tempos modernos.
Como consequência, a cidade do Rio de janeiro, em particular, sofreria uma série de
transformações no seu tecido urbano e social para se adaptar à nova realidade. Os
traços e vestígios da era Colonial, como sobrados, ruas estreitas e sinuosas,
passatempos provincianos etc.. foram sendo gradualmente e sistematicamente
“apagados” entre circa 1850-1950, dando lugar, inicialmente, a edificações mais
elaboradas (se valendo da importação de materiais e mão de obra imigrante); a ruas,
avenidas e espaços públicos mais arborizados/urbanizados; ao saneamento e
iluminação pública; a novidades como cafés, casinos, cine-teatros, bondes elétricos,
automóveis. Posteriormente, estas transformações dariam espaço a outras, mais
recentes e cada vez mais “modernas”, como arranha-céus, cinemas, museus, metrô,
VLT. Estas mudanças temporais e de padrões produtivos/de consumo manufaturados
para os industriais e destes para os digitais resultaram em novas formas, funções, usos
e apropriações de espaços urbanos citadinos na região central do Rio de Janeiro – o que
será discutido a seguir.

• 1
Neste sentido, o processo de abordagem teve como base metodológica leituras críticas
e o mapeamento das intervenções físicas e simbólicas na região central da cidade. O
objetivo era identificar e contextualizar – em um escopo maior de políticas públicas
culturais e urbanas – a dinâmica de ocupação/transformação/ressignificação de 3
subsistemas espaciais-temporais: A Praça Tiradentes; a Avenida Rio Branco e Praça
Floriano/Cinelândia; e a Praça Mauá e Boulevard Olímpico/Região Portuária.

200 ANOS DE PROCESSOS DE TRANSFORMAÇÃO URBANA NO CENTRO DO


RIO DE JANEIRO
Apesar de essencialmente agrário e tradicionalmente escravocrata, o Brasil passaria por
mudanças profundas de ordem social, politica, econômica e cultural – e o Rio de Janeiro
teria uma grande relevância neste processo. O aumento populacional e decorrente
expansão territorial se deu, em parte, pela crescente importância da cidade como sede
administrativa do Império, principal porto e entreposto comercial, mas também por se
tornar um grande polo cultural – o que aumentou expressivamente o número de
pessoas na região central da cidade, incluindo muitos estrangeiros e “libertos” que
vinham tentar a sorte na capital 1. Por outro lado, a transição de uma economia e uma
sociedade rural/escravocrata para urbana/industrial veio como consequência de atos
políticos – a promulgação da Lei Áurea, em 1888, decretou, extraoficialmente, o fim do
Segundo Império e a Proclamação da República, em 1889, impulsionou uma mudança,
um rompimento abrupto com a tradição e as estruturas social e urbana ainda
essencialmente coloniais. Ou seja: seriam impostos à sociedade uma “nova” forma de
governo, uma “nova” estrutura social e um “novo” regime econômico – e,
consequentemente, eram esperados uma nova atitude, novos costumes e cultura.
Contudo, não seria possível mudar as tradições de forma tão abrupta nem criar uma
nova identidade nacional tão rapidamente.
Em termos urbanos, desde meados do século XIX houve expressivas transformações no
Rio de Janeiro – impulsionadas, posteriormente, pela mudança da condição de capital
do Império à capital Federal. Com isso, a sociedade carioca passaria a adotar hábitos,
costumes, modas, técnicas e estéticas tipicamente europeias; a cidade se encantaria
com o “mundo civilizado”. Melhorias urbanas como saneamento e iluminação pública; os
bondes elétricos; a remodelação das ruas e a expansão urbana para além dos limites do
centro da cidade; os saraus, as confeitarias, cafés e restaurantes; os teatros, cassinos,
cabarés, cine-teatros e cinematógrafos; as boutiques da Rua do Ouvidor etc.. levaram
as pessoas a frequentar mais as ruas e a consumir mais – causando um grande impacto
nos costumes da sociedade. Com isso, novas praças, largas avenidas e espaços públicos
arborizados/urbanizados foram sendo (re)desenhados, compondo este novo cenário

1
Ver DAMAZIO, 1996; ABREU, 1997

• 2
cosmopolita e consolidando o Rio de Janeiro como uma cidade “moderna”. Estas
“novidades” moldariam o jeito de ser do carioca – que, além das manifestações
artísticas mais tradicionais como teatro, cinema, artes, música, dança, passou a ter um
grande interesse por eventos mais populares como carnaval, feiras livres, festivais,
esportes etc.. Com isso, a ocupação dos espaços públicos e/ou de entretenimento teria
uma real importância no processo de (re)invenção de uma nova imagem e identidade
para a cidade nestes últimos 200 anos.

Os espaços culturais na formação e transformação do tecido urbano do


centro do Rio de Janeiro
• Praça Tiradentes e arredores

Dentre os inúmeros edifícios de uso cultural construídos nestes 200 anos, os teatros,
talvez, tenham sido os mais relevantes para consolidar uma incipiente noção de
“civilidade” e “urbanidade” ainda em meados do século XIX. Dentre estes, o Real Teatro
São João, inaugurado em 1813 no Largo do Rossio (atual Praça Tiradentes) 2, seria uma
das primeiras iniciativas para fomentar a produção/consumo cultural na cidade após a
chegada da Corte, em 1808. Autores como Gonçalves de Magalhães, Martins Pena e
João Caetano, dentre outros, consolidariam a produção teatral nacional, de cunho
progressista e com conotação fortemente política – tornando o teatro, como
manifestação artística, o passatempo preferido da sociedade carioca de então.
Consumido por um incêndio em 1824, após cerimônia de juramento à Primeira
Constituição do Brasil, o São João seria reconstruído em 1826 e reinaugurado como
Imperial Teatro de São Pedro de Alcântara – indicando a mudança do momento político
(de Colônia para Império) e do regente (de D. João IV para D. Pedro I). Devido às
instabilidades políticas da época, o teatro permaneceria fechado até 1838, quando foi
renomeado Teatro São Pedro de Alcântara – destruído por um incêndio em 1851. Em
1857, sob a direção de João Caetano, o São Pedro de Alcântara seria reinaugurado e se
consolidaria com uma das principais casas de espetáculos dramáticos da cidade – e que,
após várias mudanças e reformas passaria, por volta de 1930, a ser chamado Teatro
João Caetano, ainda de pé.

2
Inicialmente chamado de Largo do Rossio, ainda no século XVII, este logradouro passaria a se chamar
Praça da Constituição, em 1821, por ocasião ao juramento de D. Pedro I à Constituição de Portugal. Em
1890, mudaria seu nome para Praça Tiradentes, em homenagem ao centenário de nascimento do
inconfidente Joaquim José da Silva Xavier – permanecendo assim até hoje.

• 3
Figuras 1-2: dois teatros, o mesmo lugar – o antigo
Theatro São Pedro de Alcântara, (à esquerda, circa 1850)
e o Teatro João Caetano (à direita, circa 1930) na Praça
Tiradentes (LIMA, 2000, p 52 e 54).

Estes teatros contribuíram para não apenas configurar, mas sobretudo para estabelecer,
a região da atual Praça Tiradentes como um importante centro produtor/difusor de
cultura e entretenimento no século XIX. Contudo, a sociedade carioca, sempre avida por
“novidades”, se encantaria com novas manifestações artísticas, que chegavam por aqui
com a crescente industrialização e diretamente relacionada com a vinda de estrangeiros
e o “progresso” – cujo maior incentivador era o Imperador D. Pedro II. Assim, a
daguerrotipia, as vedetes e os espetáculos de vaudeville dos cabarés como o Alcazar,
localizado na Rua da Vala (atual Rua Uruguaiana), os fonógrafos da Casa Edson, a
proliferação dos jogos de azar e dos cassinos, os cosmoramas na Rua do Ouvidor, a
exposição dos panoramas de Vitor Meireles (exibidos na Exposição de Universal de Paris
em 1889), dentre tantas outras atividades, promoveram uma renovação dos costumes,
modas e gostos.
Ao final do século XIX, os cinematógrafos promoveriam uma mudança de usos dos
teatros como edifícios culturais – mesclando peças teatrais, espetáculos de vaudeville,
projeções cinematográficas e música em um mesmo espaço. O Teatro Lucinda,
localizado na Rua do Espírito Santo (atual Pedro I) 3, foi palco das primeiras projeções
cinematográficas com um Lumière, em 1896. Há de se ressaltar que este era um trecho
da cidade com grande movimentação noturna, muito em função dos restaurantes,
bares, cafés e dos diversos teatros próximos à atual Praça Tiradentes.

3
Na esquina da Rua Pedro I, uma transversal à Praça Tiradentes, se encontra o Teatro Carlos Gomes,
originariamente inaugurado como Theatro Cassino Franco-Brèsilien, em 1872, e reinaugurado, com o
atual nome em 1905 – ver https://guiaculturalcentrodorio.com.br/teatro-municipal-carlos-gomes/

• 4
Figura 3: Largo do Rossio, atual Praça Tiradentes, circa 1830 (destaque em vermelho)
que se tornaria uma nova centralidade no século XIX
– note os Morros de Santo Antônio e do Castelo
(destacados em verde e azul, respectivamente) (LIMA, 2000, p 38).

Figura 4-5: o mesmo lugar, duas configurações espaciais:


Praça da Constituição (à esquerda, circa 1830-1850)
e a Praça Tiradentes (à direita, circa 1930-1950)
– o número de teatros no entorno indicam a transformação da
região em um polo produtor/difusor de cultura e entretenimento
(LIMA, 2000, p 98 e 142).

• 5
As imagens ilustram o processo de transformação da região ao longo do século XIX até
o início do século XX – quando um novo polo produtor/difusor de cultura e
entretenimento se estabeleceria na cidade, rivalizando com as atividades na Praça
Tiradentes e arredores. A construção da Avenida Central (atual Avenida Rio Branco),
inaugurada em 1905, simbolizaria um novo momento político, social e cultural para a
sociedade carioca.

• Avenida Rio Branco e Cinelândia


Com a República, houve uma revisão dos valores, costumes e modas ainda atrelados à
época Imperial – ou seja: os antigos passatempos, as antigas ruas e edifícios, os
antigos teatros, cafés e locais, como a Praça Tiradentes, seriam considerados démodé.
A virada do século XIX para o XX, foi um período de euforia e que seria traduzido em
grandes obras públicas e em intervenções urbanas de grande escala na região central
da cidade – influenciando diretamente a vida da população local. Os governos do
presidente Rodrigues Alves e do prefeito Pereira Passos (1902-1906) promoveram uma
profunda mudança nos valores mais cotidianos – e levaria, também, à uma
transformação (física e simbólica) dos espaços domésticos e urbanos.

As transformações no governo de Rodrigues Alves modificaram o caráter do carioca.


Nossa gente, depois delas, parece menos triste, adotou as carruagens abertas, comprou
automóveis, tirou a cartola, despiu os fúnebres trajes negros, vestiu-se de claro. As
senhoras aceitaram todas as audácias da moda e menosprezando o abafadiço recato das
saias espessas, adotaram, quase sem graduação, o agradável frescor das transparentes
vestes sans dessous (CARETA, nº 194, 17/02/1912 apud ROCHA e SILVA, 1999, p 92)

O processo de reestruturação urbana/social se daria de maneira rápida e decisiva. A


intervenção do Estado custeando os investimentos se faria necessária à medida que se
tornara urgente uma questão crucial: resolver a crise da centralidade urbana. A cidade,
fundada aos pés do Morro do Castelo no século XVI foi, ao longo dos séculos seguintes,
se estendendo para as várzeas 4
– e com isso os centros de representatividade foram
sendo deslocados para o Largo do Carmo (atual Praça XV) e posteriormente para o
Campo de Santana (próximo ao Largo do Rossio/Praça da Constituição/Praça
Tiradentes). A expansão territorial em direção aos Morros de Santo Antônio e do
Castelo, em fins do século XIX, promoveu uma profunda mudança na geografia da
cidade – onde demolições, reestruturações no traçado das ruas, desmontes de morros e
aterros transformariam, definitivamente, a morfologia urbana da capital do país.

4
A ocupação da cidade se iniciou próxima ao Morro do Castelo e a sua posterior a expansão urbana se
deu em direção aos Morros de São Bento, da Conceição, do Livramento, da Providência e de Santo
Antônio – uma área que hoje compreende os bairros da Saúde, Gamboa, Santo Cristo e Centro – ver
CARDOSO, VAZ, ALBERNAZ, PECHMAN, 1987

• 6
Figuras 6-7: propostas para mudanças no traçado urbano da cidade –
planos urbanísticos de Beaurepaire-Rohan (1843, à esquerda)
e de Pereira Passos (1874-76, à direita)
- note a presença/ausência dos Morros do Castelo, de Santo Antônio e
do Senado (LIMA, 2000, p 179 e 180)

Havia, pois, uma questão sensível: com a mudança na forma de governo, seria
importante (re)definir uma nova centralidade na capital, de modo a validar/consolidar a
era Republicana. Isto já tinha acontecido antes, com a mudança de status de Colônia
para Império. Neste sentido, e observando as imagens aqui apresentadas, desde que a
cidade se estendera em direção à Praça Tiradentes, ainda no século XVIII, cultura e
política foram relevantes na (re)definição de uma nova centralidade, atrelada à era
Imperial. Esta mudança contribuiu para a (re)construção de um novo marco
espacial/temporal e um (re)desenho urbano – onde a instalação de um terminal de
bondes e a presença de diversos teatros, cafés, bares, cabarés, cassinos no seu entorno
caracterizaria a Praça Tiradentes, de certo modo, como um lugar predominantemente
masculino. 5

Apesar de sua vocação boêmia e de ser um importante polo de entretenimento, a Praça


Tiradentes mostraria sinais de decadência na virada do século XIX-XX. Por outro lado,
havia uma crescente necessidade de se reestruturar espaços urbanos que ainda traziam
características e/ou simbologias ligadas ao período Colonial/Imperial. Ou seja: como
parte de um processo de ressignificação espacial, uma série de estudos foram
produzidos com o intuito de apagar os vestígios da cidade “velha”, em claro contraste
com o “progresso”, a “civilidade” e a “modernidade” representadas pelo novo sistema
político, a República.

(...) Procurar tornar o Rio de Janeiro, pois uma cidade moderna, confortável e civilizada, é
a necessidade indeclinável e inadiável do nosso problema econômico. (...) É preciso que
da nossa capital desappareçam alguns aspectos que a deprimem (...).
E, quando o Rio de Janeiro deixar de ser a cidade que ainda hoje é, eu lhes direi o que
será o Brasil (BARRO, maio 1904 apud ROCHA e SILVA, 1999, p 97)

5
ver ABREU, 1997; LIMA, 2000

• 7
Ou seja: o projeto de construção de um novo país, de uma nova capital e de uma nova
era política passava, indiscutivelmente, pela criação de uma nova centralidade urbana.
E seria neste contexto, cheio de simbolismos, de desejos de “modernidade” e
“civilidade”, que a Avenida Central (atual Rio Branco), inaugurada em 1905,
materializaria um novo conceito de cidade – burguesa, capitalista, industrial,
Republicana – e lançaria as bases da construção do imaginário nacional. Para isso, o
traçado urbano colonial deveria ser redesenhado – e neste processo, o Morro do
Castelo, local de fundação da cidade, seria “apagado”. A perda de referências espaciais,
da memória afetiva da cidade Colonial/Imperial de outrora seriam fatores relevantes
neste processo de adaptação à uma nova estrutura urbana e ao novo momento político-
econômico-social. Pereira Passos, inclusive, entraria para a história da cidade como o
prefeito “bota-abaixo”, devido às inúmeras desapropriações e demolições feitas durante
o seu governo. 6

Planejada como parte de um plano de expansão urbana que ligaria a cidade de mar e
mar, a Avenida Rio Branco se configuraria como um imponente polo produtor/difusor de
cultura e entretenimento devido à construção de equipamentos culturais de grande
porte como a Bibliotheca Nacional, a antiga Escola Nacional de Belas Artes (hoje Museu
Nacional de Belas Artes) e o Theatro Municipal – localizados no extremo sul da Avenida,
próximos à frente marítima e ao antigo Largo da Mãe do Bispo/Convento da Ajuda.

Figura 8: planta cadastral da cidade do Rio de Janeiro indicando as reformas


propostas pelo prefeito Pereira Passos (1905): a planificação do Morro do Castelo
(em azul) e a abertura da Avenida Central (em amarelo)
- note a Praça Tiradentes (em vermelho) e o Morro de Santo Antônio (em verde)
(LIMA, 2000, p 182).

6
ver GOMES PEREIRA, 1992

• 8
Figura 9: traçado original da Avenida Central (1902, em amarelo)
- note o tecido urbano Colonial sendo “apagado” e o Morro do
Castelo planificado (em azul)
(FERREZ, 1983).

Figura 10: traçado original da Avenida Central (1902, em amarelo) -


note os edifícios da antiga Escola Nacional de Belas Artes e Bibliotheca
Nacional ocupando o lugar onde estava o Morro do Castelo (em azul)
(FERREZ, 1983)

Morro do Castelo

Theatro Municipal
Bibliotheca Nacional

Figura 11: vistas Theatro Municipal e Escola Nacional de Belas Artes


(a Bibliotheca Nacional se encontra encoberta pela cúpula do Theatro Municipal)
- note o Morro do Castelo ainda presente na paisagem/morfologia urbana da
cidade (destaque em amarelo)
(https://infograficos.oglobo.globo.com/rio/castelo-360o.html).

• 9
A criação da Avenida Rio Branco como uma nova centralidade urbana marcou a primeira
fase da República – cujos ideias eram baseados em modelos importados de “civilidade”
e “modernidade”. Seus edifícios imponentes, boulevards amplos e iluminados,
automóveis, cinemas, teatros, além dos edifícios culturais de grande porte localizados
na Praça Ferreira Viana, simbolizavam uma nova fase na vida da cidade e do país.

A vida noturna duplicou, triplicou, as terrasses dos cafés regurgitavam, surgiram os


cinematógrafos e a onda de apreciadores, o Rio cintilava, a Avenida Central ia tomando
as aparências de um boulevard parisiense, cheio de luz e de gente (FON-FON, 11 de abril
de 1908 apud ROCHA e SILVA, 1999, p 101)

Há de se ressaltar que esta nova centralidade, mais moderna e cosmopolita, não


eliminou as centralidades antigas – pelo contrário. Os teatros, cafés, cassinos nos
arredores da Praça Tiradentes continuavam com suas atividades e seu público. A
diferença, talvez, era em termos de gostos, estilo, comportamento, modas, atitudes –
ilustrando que as diferenças, se existiam, eram mais em termos espaciais e simbólicos.
Ou seja: os passatempos na Praça Tiradentes seriam mais “tradicionais”, enquanto na
Avenida Rio Branco seriam mais “avant-garde”.
Na época da construção da Avenida Rio Branco, edíficios como o Theatro Municipal,
Bibliotheca Nacional e Museu Nacional de Belas Artes, além dos antigos Senado Federal
(Palácio Monroe, demolido na década de 1970) e Supremo Tribunal Federal (hoje Centro
Cultural Justiça Federal) indicavam a relevância deste local como o centro político-
cultural da cidade e do país. Contudo, já na década de 1920, uma série de edifícios
foram construidos como novos marcos espaciais-temporais, indicando o início da 2ª fase
da Avenida Rio Branco – consolidando, inclusive, um novo momento político. Além
disso, a chegada de novas mídias produtoras/difusoras de cultura e entretenimento
(como o cinema e, posteriormente, o rádio) permitiu uma gradual, porém importante,
mudança no perfil do público da região – além de ter contribuído para consolidar a nova
vocação da antiga Praça Ferreira Viana, que seria redesenhada e renomeada como
Praça Floriano.
Este redesenho foi possivel devido à demolição, na decada de 1920, do Convento da
Ajuda, localizado no antigo Largo da Mãe do Bispo – o que permitiu a extensão e
“retificação” da Praça Ferreira Viana, criando um longo e amplo boulevard até o antigo
Senado Federal (Palácio Monroe), localizado no extremo sul da Avenida Rio Branco,
próximo à Avenida Beira Mar. Neste novo boulevard, cinemas como o Odeon, Pathé
Palácio, Cine Glória, Império e Capitólio, além de edifícios comerciais como o Serrador,
por exemplo, foram construídos a partir da década de 1920 – o que mudaria
substancialmente as caracteristicas físicas e simbólicas, além do tipo de entretenimento
e perfil do público na região. Na verdade, por ter outros cinemas, como o Palácio, Rex,
Alhambra, Regina no seu entorno, a nova Praça Floriano seria reconhecida como
Cinelândia – nome que a identifica até hoje.

• 10
É importante ressaltar que a transformação da Praça Ferreira Viana em Praça
Floriano/Cinelândia veio como consequência do processo de (re)estruturação urbana da
Avenida Rio Branco no seu extremo sul – que fazia parte da expansão territorial do
centro da cidade em direção à Baía de Guanabara, por meio de diversos aterros na
frente marítima, e que daria lugar ao Aterro Glória-Flamengo, planejado por Affonso
Eduardo Reidy em fins da década de 1940. Estes aterros foram possiveis devido à
demolição dos Morros do Castelo (na década de 1920) e de Santo Antônio (na década
de 1940) – que permitiu a expansão da malha urbana central da cidade criando as
Esplanadas do Castelo (próxima à região da Praça Floriano/Cinelândia e Praça XV) e de
Santo Antônio (próxima ao Largo da Carioca, Arcos da Lapa, Praça Tiradentes).

edifício A Noite

Theatro Municipal

cinemas Cinelândia

Senado Federal
(palácio Monroe)

Figura 12: Avenida Rio Branco circa 1920 – vistas da Avenida Beira Mar
e da Praça Floriano/Cinelândia (em laranja, à esquerda) em direção à Praça Mauá
(com o edifício A Noite, no extremo norte)
- note a Esplanada do Castelo (em azul) e o Morro de Santo Antônio (em verde)
(https://br.pinterest.com/pin/545428204853969077/).

Diferentemente do processo de transformação das Praças Tiradentes e


Floriano/Cinelândia, ou da contrução da Avenida Rio Branco, onde novos polos
difusores/produtores de cultura e entretenimento foram importantes na configuração do
espaço urbano, a ocupação destas esplanadas estaria atrelada à criação de novas
centralidades políticas/institucionais na região central da cidade. Nos anos 1930, no
início da Era Vargas/Estado Novo, a Esplanada do Castelo, com as novas sedes dos
ministérios do Trabalho, Fazenda e, sobretudo, Educação e Saúde Pública (antigo MESP,
atual Palácio Gustavo Capanema), dariam uma nova dimensão ao grande vazio urbano
onde outrora era o Morro do Castelo – e inserindo, com o antigo MESP, a arquitetura
moderna carioca no cenário mundial. A partir da dácada de 1960, já no período da
Ditadura Militar, os edifícios da Petrobras, BNDES, Caixa Econômica Federal e a nova
Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro surgiriam como novos marcos espaciais-

• 11
temporais na Esplanada de Santo Antônio – configurando aquela região como um
símbolo institucional tardio, tendo em vista a mudança da capital para Brasília, em
1960.

Figuras 13-14: vistas das Esplanadas do Castelo (à esquerda)


e de Santo Antônio (à direita)
- note a presença de diversos edifícios de diferentes épocas
(modelo 3D – Naylor Vilas Boas -
https://infograficos.oglobo.globo.com/rio/castelo-360o.html
foto – Alexandre Macieira/RIOTUR -
www.rioguiaoficial.com.br).

De certo, os edificios ministeriais e/ou institucionais nas Esplanadas do Castelo e de


Santo Antônio foram responsáveis pela transformação física e simbólica da região –
onde mudanças na malha urbana seriam feitas em função da criação de grandes eixos
de expansão territorial como o quadrilátero formado pelas Avenidas Rio Branco,
Almirante Barroso, Presidente Antônio Carlos e Beira Mar, na Esplanada do Castelo, e
República do Chile e do Paraguai, na Esplanada de Santo Antônio. Apesar da criação de
uma nova centralidade política (ainda que tardia), a ocupação destas esplanadas não
seria diretamente responsável pela transformação da região da Praça Mauá – localizada
no início da Avenida Rio Branco, no extremo oposto à Praça Floriano/Cinelândia – em
um “novo” polo difusor/produtor de cultura e entretenimento. Isto de daria, sobertudo,
com a popularização de uma nova mídia, o rádio, ainda na década de 1930.

• Praça Mauá
Originariamente, a Praça Mauá era o ponto de acesso ao novo cais (atual Píer Mauá),
construído no início do século XX, para suprir a crescente demanda por espaços mais
adequados para o embarque/desembarque de passageiros 7
e mercadorias (como

7
O terminal de passageiros, o antigo Touring Club do Brasil, projeto de Joseph Gire em linhas Art Déco,
foi inaugurado em 1926

• 12
consequência do aumento das atividades comerciais na cidade), mas também como
parte do processo de remodelação da antiga Região Portuária – incluindo os arredores
do Cais Pharoux (atual Praça XV) e do Cais da Imperatriz e do Valongo (próximo às
Docas D. Pedro, na Gamboa). A praça, inaugurada em 1910 como parte do projeto de
expansão do centro do Rio de Janeiro liderado pelo prefeito Pereira Passos, conecta-se à
Avenida Rio Branco e, consequentemente, ao antigo centro financeiro e comercial da
cidade. Na década de 1930, em paralelo ao processo de ocupação da Esplanada do
Castelo com os edifícios ministeriais, a construção do edifício “A Noite”, sede do jornal
homônimo, projetado por Joseph Gire em linhas Art Déco e com uso de concreto
armado, criaria uma nova conformação urbana e novos parâmetros construtivos e
tipológicos no entorno. Ou seja: já na década de 1930, a Praça Mauá passaria por um
processo de (re)construção de sua imagem, tornando-se mais “moderna” e
verticalizada.

Figuras 15-16: Praça Mauá – vistas em direção à Avenida Rio Branco e Baía de
Guanabara (circa 1910, à esquerda, e na década de 1930, à direita)
- note o edifício A Noite (em primeiro plano) e o Morro/Esplanada do Castelo
(em azul) e o Morro de Santo Antônio (em verde)
(http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/16.187/5885
(https://ims.com.br/exposicao/rio-primeiras-poses/).

Com o edifício A Noite, onde funcionavam a redação do jornal e os estúdios da Rádio


Nacional, a região se consolidaria como uma área boêmia: os programas de auditório ao
vivo e a constante presença de escritores, jornalistas, artistas e produtores culturais
trouxeram um certo glamour ao entorno, outrora ocupado por atividades características
de zonas portuárias – edifícios administrativos como alfândega, setor de controle de
passageiros (imigração), polícia etc.. localizavam-se próximos à armazéns, bares,
hospedarias frequentados pelos tripulantes dos navios e trabalhadores locais. Na
verdade, a Praça Mauá sempre teve um caráter meio ambivalente: ao mesmo tempo
que evocava a vida luxuosa dos passageiros dos transatlânticos que ali
desembarcavam, era também o local de encontro (em amplo sentido) das classes
trabalhadoras que frequentavam o porto.

• 13
O período “áureo” da Praça Mauá deveu-se, e muito, às estrelas cantoras/compositores
da Era do Rádio e a própria existência da Rádio Nacional na região. Entretanto, com o
declínio do rádio como mídia produtora/difusora de cultura e entretenimento, a
popularização da TV, a mudança comportamental e a implementação de políticas
públicas “modernizantes” iniciadas nos anos 1950 no país, a região da Praça Mauá – e
Portuária, de maneira geral – entraria em uma nova fase. As transformações físicas e
simbólicas decorrentes das políticas expansionistas e rodoviaristas, implementadas
ainda no governo de Getúlio Vargas, mudariam significativamente o entorno. Com a
construção do Elevado da Perimetral, conectando a Zona Norte ao centro da cidade via
Avenida Brasil, a Praça Mauá deixaria para trás seu antigo glamour da Era do Rádio,
transformando-se em apenas um local de passagem. 8

O processo de verticalização da Avenida Rio Branco e arredores, e a construção de


novos edifícios que seguiam os preceitos da Arquitetura Moderna (Palácio Capanema,
ABI, Marquês do Herval e Avenida Central são símbolos da época), por exemplo,
contribuíram para a construção de uma nova imagem para a área. Por outro lado, o
declínio das atividades portuárias (passageiros e cargas) no cais do porto 9, o processo
de desindustrialização e, evidentemente, a transferência da capital do país para Brasília
contribuíram significativamente para o gradual esvaziamento (econômico e de
habitantes, inclusive) da Região Portuária. Este gradual esvaziamento das atividades
comerciais não só afetou a circulação de capital mas, sobretudo, ajudou a consolidar a
imagem (negativa) da região como uma área “vazia”, abandonada, degradada,
esquecida.
Esta visão da Região Portuária como um lugar degradado e decadente contrastava com
a história de efervescência cultural da região – ainda que esta efervescência esteja
atrelada à processos excludentes, de lutas e desigualdades socioeconômicas. A
proximidade com o Morros da Providência, Livramento e Conceição (onde surgiram as
primeiras favelas da cidade, ainda em fins do século XIX) e com o Cais do
Valongo/Imperatriz (símbolo da diáspora Africana reconhecido como Patrimônio Mundial
da Humanidade pela UNESCO, em 2017), além de, simultaneamente, ser identificada
como um marco espacial-temporal de “modernidade” (por fazer parte do processo de
transformação da cidade com a abertura da Avenida Rio Branco), indicam alguns dos
vários aspectos contraditórios que caracterizam a região da Praça Mauá e arredores.

8
Ver DA ROCHA; REIS, 2017
9
Com a expansão da malha rodoviária no país, aumenta-se o número de passageiros nos terminais
rodoviários das cidades, gerando um impacto no número de pessoas embarcando/desembarcando no
Cais do Porto. Já as atividades portuárias sofreram o impacto da concorrência do porto de Santos (SP) e
com a inauguração, na década de 1980, do porto em Itaguaí (RJ).

• 14
Figura 17: o processo de expansão urbana e de mudanças
das centralidades na região central do Rio de Janeiro
(https://www.google.com.br/maps/@-22.9058285,-
43.1928547,15z).

Contudo, a partir dos anos 2000, houve um processo de redescoberta e (re)valorização


da Região Portuária. Desde a década de 1980, uma série de estudos e propostas de
“revitalização” foi desenvolvida/implementada na região – ainda que com resultados
pontuais, desconectados e, de certa forma, pouco duradouros. Por outro lado, com o
lançamento do Plano de Recuperação e Revitalização da Região Portuária do Rio de
Janeiro, em 2001, este processo começou a ser mais consistente – sobretudo no que diz
respeito à ações e políticas públicas de preservação das edificações e ambiências
urbanas mais interligadas. Porém, seria em meados dos anos 2000, com a
implementação de políticas públicas de intervenção no espaço urbano que a Praça Mauá
e, por extensão, a Região Portuária passariam por um processo de (re)descoberta e
(re)valorização do patrimônio material e imaterial ali presente. Como parte do “projeto”
Porto Maravilha, a inauguração de equipamentos culturais e urbanos, e a transformação
da Praça Mauá e arredores em um polo turístico contribuiu para uma profunda
ressignificação da frente marítima – sobretudo considerando a abertura de passeios
públicos como o Boulevard Olímpico e a Orla Prefeito Luiz Paulo Conde. 10

10
Os trechos da orla entre o 1º Distrito Naval e a Praça Mauá foram inaugurados em abril de 2016, e
entre os Armazéns 1-6, em maio de 2016. O trecho que vai do Píer do Armazém 8 ao Museu Histórico
Nacional, na Praça XV, foi inaugurado em agosto 2016 para as Olimpíadas Rio-2016. Para maiores
informações sobre o “projeto” Porto Maravilha, ver PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, 2009

• 15
• Boulevard Olímpico e Região Portuária
A mudança na imagem e identidade da Praça Mauá e Região Portuária se valeu da
(re)construção de edifícios de uso cultural e de uma ampla reestruturação na
infraestrutura urbana existente. Como nos exemplos aqui citados, o momento político e
econômico contribuiu para que essas mudanças fossem implementadas. O anúncio, em
2009, da escolha do Rio de Janeiro como cidade-sede dos XXXI Jogos Olímpicos, em
2016, permitiu planejar ações que previam uma completa reestruturação dos
equipamentos esportivos existentes e a articulação destes com o “resto” da cidade – o
que demandaria ter uma visão mais ampla e inclusiva de outras áreas, como a Região
Portuária. Assim, ao fazer parte do “discurso olímpico”, a região central da cidade se
beneficiaria com a implementação de diversas iniciativas de caráter “regenerador” –
levando a um processo de reestruturação e ressignificação urbana e arquitetônica de
espaços como a Praça Mauá; as docas e armazéns do porto; edifícios históricos e/ou
abandonados e/ou subutilizados no entorno; além de investimentos em infraestrutura,
como a provisão de nova iluminação pública e mobiliário urbano, a implantação de um
novo modal de transporte (os bondes elétricos – VLT) e uma nova regulamentação
fundiária, parte da Operação Consorciada Porto Maravilha.
A implementação destas “melhorias urbanas” em larga escala mudaria física e
simbolicamente a Região Portuária e se estenderia para além da frente marítima em si
– incluindo os bairros adjacentes como Centro, Gamboa, Santo Cristo e Saúde no
escopo do “projeto” Porto Maravilha. Esta transformação física e simbólica seria
consolidada com a provisão de novos equipamentos culturais como o Museu de Arte do
Rio (MAR – Bernardes + Jacobsen Arquitetura, 2013) e o Museu do Amanhã (Santiago
Calatrava, 2016), na Praça Mauá; conversões de edifícios antigos, como os “novos”
Aquário Municipal e Armazém da Utopia (que, desde 2010, ocupa o Armazém 6 no
Boulevard Olímpico); a construção de edifícios de uso corporativo (se valendo dos
CEPACs – Certificados de Potencial Adicional de Construção); a provisão de melhorias
na infraestrutura (com a abertura da via Binário do Porto, dos Túneis Rio 450 anos e
Marcello Alencar, a implementação de VLTs e a demolição do Viaduto da Perimetral); e
a completa reestruturação de usos, formas e funções de estruturas industriais e
também do espaço urbano circundante.
Mas seria a intervenção na Praça Mauá e a inauguração dos Museus MAR e do Amanhã
e dos espaços adjacentes, Boulevard Olímpico e Orla Conde, que dariam maior
visibilidade ao “projeto”. O apelo midiático das novas arquiteturas e o caráter urbano
globalizado de sua “praça-passeio”, que privilegia pontos específicos para (re)descobrir
vistas outrora encobertas e/ou esquecidas, induz a apropriação do espaço urbano por
eventos de caráter temporário. 11

11
Ver DA ROCHA; REIS FILHO, 2019

• 16
Figura 18: Região Portuária – Boulevard Olímpico, Praça Mauá e arredores
(https://www.google.com.br/maps/@-22.894926,-
43.1884665,1407m/data=!3m1!1e3).

Figuras 19-22: “novos” espaços urbanos – o antigo Viaduto da Perimetral (imagens à esquerda)
e as “novas” Praça Mauá (acima, à direita) e Boulevard Olímpico (abaixo, à direita)
(http://portomaravilha.com.br/fotos_videos/g/52).

• 17
Figuras 23-24: a “nova” Praça Mauá – vistas do Museu do Amanhã (à esquerda)
e Museu de Arte do Rio (à direita)
(imagens dos autores).

Figuras 25-26: o “novo” Boulevard Olímpico – vistas dos edifícios antigos


com grafites Etnias, do Kobra (à esquerda)
e União dos Povos, do Wak da Rocinha (à direita)
(imagens dos autores).

Figura 27: o “novo” Boulevard Olímpico – diversidade de


eventos/espaços/usos imprimindo uma nova e mais efêmera
identidade para a Região Portuária
(imagens dos autores).

• 18
É interessante observar como se consolidou essa mudança das características físicas e
simbólicas da Praça Mauá e da Região Portuária após o declínio do rádio e da ascensão
da TV como principal mídia difusora/produtora de cultura e entretenimento, sobretudo a
partir dos anos 1960. Uma das consequências mais significativas foi a gradual perda da
relevância dos programas de auditório realizados nos estúdios da Rádio Nacional, no
edifício A Noite, como lugar de trocas sociais – e, consequentemente, como agente no
processo de (re)estruturação do espaço urbano circundante. Como nos exemplos aqui
citados, o aparecimento de novas mídias resultou, ainda que indiretamente, na
(re)configuração espacial e na mudança de caráter simbólico das Praças Tiradentes e
Floriano/Cinelândia – e não seria diferente com a Praça Mauá.
Até meados do século XX, estas transformações estavam, de certa forma, atreladas à
um processo de expansão urbana para além do centro da cidade – levando a alterações
significativas na morfologia urbana, com a criação de esplanadas, aterros, eixos viários
monumentais etc.. Contudo, a partir da década de 1980, questões mais complexas,
como a importância da história, do patrimônio material e imaterial, da cultura local,
etc.. seriam incorporadas ao discurso de “regeneração” urbana da/na região central.
Estas questões passariam, inclusive, a servir como instrumentos de
validação/certificação de políticas públicas culturais e urbanas desenvolvidas e
implementadas a partir dos anos 2000. Ou seja: na impossibilidade de se expandir a
malha urbana, uma vez que grande parte da região central da cidade já se encontra
edificada, a “solução” seria a constante alteração das características físicas e simbólicas
de lugares de relevância histórica como, por exemplo, a Região Portuária – que, muito
oportunamente, tem grandes vazios urbanos, oriundos do processo de
desindustrialização e “prontos” para especulação fundiária e/ou imobiliária. 12

Neste sentido, há uma constante adaptação dos discursos e das políticas


implementadas, no intuito de “atualizar” as práticas (urbanas) vigentes e considerando
novas formas de apropriação, ocupação, fruição do espaço urbano existente. Se por um
lado é importante a (re)valorização dos ritos, tradições, história e cultura da região,
“redescobertos” e instrumentalizados em ações e políticas públicas urbanas recentes,
por outro a existência de múltiplas mídias e espaços culturais, dos mais tradicionais
(como teatro, cinema, TV, museus) aos mais contemporâneos (como plataformas
digitais, cibercultura, metaverso), requer uma (res)significação/(re)construção dos
espaços públicos urbanos. Com isso, o “projeto” de reestruturação urbana proposto (e
implementado) na Região Portuária passa, indiscutivelmente, pela combinação entre
estes universos. Ou seja: como visto desde meados do século XIX, a transformação
(física, simbólica, de imagem e identidade) da região passou pela intervenção em
estruturas urbanas existentes e pela construção de novos marcos espaciais-temporais.
Contudo, esta transformação também deveria incluir/sugerir uma ocupação/apropriação

12
Ver HARVEY, 1989; DA ROCHA; REIS FILHO, 2020

• 19
mais efêmera dos espaços citadinos, onde o uso de novas mídias e tecnologias, como
projeções que exploram os sentidos e sensações subjetivas, por exemplo, poderiam ser
adotadas mais sistematicamente – devido, inclusive, ao grande apelo entre o público
jovem.
Assim, a Região Portuária, outrora decadente e abandonada, passaria a ser um “novo”
polo de difusão/produção de cultura e entretenimento não apenas pela presença, física,
das intervenções urbanas de grande porte na Praça Mauá e arredores (e.g.
equipamentos culturais como os Museus do Amanhã e de Arte do Rio), mas pelas novas
formas (e em constante movimento) de apropriação de suas estruturas arquitetônicas,
urbanas e sociais por diversas “tribos” contemporâneas.

CONCLUSÃO
A celebração destes 200 anos de Independência e 100 anos de Modernismo nos permite
(re)avaliar como e/ou se o amplo, difícil e interminável processo de mudanças nas
estruturas sociais, políticas, econômicas, culturais impactaram na (construção da)
imagem e identidade do país – outrora Imperial, rural e escravocrata e, após 1889,
Republicano, urbano e industrial. Estas efemérides simbolizam mais um desejo de
mudança do que efetivamente uma mudança em si – sobretudo ao constatar que uma
série de questões como desigualdade, racismo, miséria ainda nos remetem ao século
XIX. Contudo, algumas mudanças, principalmente as de caráter simbólico, foram
importantes para a transposição de sistemas políticos, de valores e costumes que
requeriam uma nova atitude da sociedade. Assim, é interessante notar como cultura e
política têm sido relevantes na (re)definição de (novas) centralidades de poder, na
(re)construção de (novos) marcos espaciais-temporais e no (re)desenho urbano –
sobretudo no Rio de Janeiro, por ter sido a capital da Colônia, do Império e da
República, entre 1763-1960, e pós-1960, pela relevância como polo produtor/difusor de
cultura e entretenimento.
Diversos processos de (res)significação espacial foram planejados e implementados ao
longo destes 200 anos com o intuito de apagar os vestígios da cidade “velha” – e em
claro contraste com o “progresso”, a “civilidade” e a “modernidade” representadas pelo
novo sistema político, a República, mas também como parte de agendas politicas
“modernizantes”. Ou seja: o projeto de construção de um novo país, de uma nova
capital e de uma nova era política passou, indiscutivelmente, pela criação de (várias)
nova(s) centralidade(s) urbana(s). Na verdade, e cada vez mais efetivamente,
mudanças políticas imprimem “marcas” no tecido urbano da cidade – e tem sido assim
sempre. Desde o início do século XX, este processo constante (e interminável) de
modificação das caraterísticas físicas-morfológicas da cidade, de expansão (quase
sempre inacabada e mal/não-planejada) urbana, de adoção (imposição) valores,
modas, estéticas estrangeiras se tornou símbolo de “modernidade”.

• 20
De certo, a (re)configuração de espaços públicos, como os exemplos aqui apresentados,
foi parte de um processo de (re)estruturação e expansão urbana e, principalmente, de
legitimação/validação de práticas e sistemas políticos, sociais, culturais – ainda que
estes valores estivessem em processo de transformação. Esta “transformação”,
contudo, não significa o “cancelamento” de práticas, costumes, crenças antigos; estes
sobrevivem às mudanças justamente por representarem, de certa forma, a essência dos
valores de uma sociedade. Evidentemente, e com o passar do tempo, houve uma
necessidade de se aprimorar estes processos (e políticas) de transformação urbana.
Ainda que a mudança física, simbólica, de identidade e de imagem de espaços urbanos
passem pela intervenção em estruturas existentes, definindo marcos espaciais-
temporais permanentes, há também um movimento no sentido de se repensar este
“modelo”. O que se percebe, atualmente, são propostas de ocupação/apropriação dos
espaços citadinos com atividades mais efêmeras, promovendo uma maior
interatividade, e onde questões como (re)valorização dos ritos, tradições, história e
cultura da região, aliada à inclusão social, sejam implementadas.
Neste sentido, o que é interessante observar é a oportunidade que se apresenta hoje
para a reformulação/reestruturação/redesenho do centro do Rio de Janeiro, onde
construções, equipamentos e infraestruturas existentes podem ser ajustados de acordo
com as lógicas estruturantes de uma nova economia (ainda em construção) e
parâmetros contemporâneos mais abrangentes, diversos, inclusivos e ambientalmente
responsáveis como a Agenda 2030, diretrizes do C-14 e políticas ESG, por exemplo. Ao
deixar de focar nos processos de produção/consumo típicos da sociedade industrial, a
prioridade passa a ser, necessariamente, como se dão as relações sócio-produtivas
estabelecidas pela hiperconectividade. Esta perspectiva, de caráter pós-industrial e
digital, está centrada nas pessoas, em suas relações e formas de interação, e tem como
base características e dinâmicas marcantes como: 1) o crescente mercado de trabalho
temporário e as flexibilidades das relações diretas entre clientes e consumidores (com
impacto no uso das estruturas urbanas, inclusive); 2) o compartilhamento como
tendência comportamental que destaca a importância mais ao acesso do que a posse de
produtos (consumo efêmero de cultura/entretenimento/espaços públicos, por exemplo);
3) a criatividade como lógica no desenvolvimento de negócios com base no
conhecimento aplicado (verificada na tendência de se planejar espaços para atividades
“criativas” em regiões centrais das cidades); 4) a conectividade, que tem como lógica a
percepção do conhecimento como fator de produção essencial para suportar os novos
negócios (o que impacta os modos de ocupação dos espaços urbanos, sobretudo em
função de novas mídias e tecnologias digitais/virtuais); 5) a circularidade, que busca o
desenvolvimento econômico com um melhor (re)uso dos recursos naturais e dos
espaços construídos (com a possibilidade de incluir várias cadeias produtivas circulares
e de reutilizar estruturas urbanas ociosas); 6) o impacto positivo, que busca incentivar
a criação de espaços urbanos capazes de gerar transformações sociais-econômicas-
culturais (como a criação de espaços de uso coletivo e/ou de economia solidária); e 7) a
revolução 4.0, que prevê a automatização inteligente de infraestruturas urbanas (de

• 21
modo a minimizar os impactos socioeconômicos e prover melhorias nos serviços
públicos ofertados à sociedade). Contudo, para que estas mudanças sejam efetivamente
implementadas, há de se (re)pensar os atuais processos de
reestruturação/transformação/ressignificação das estruturas urbanas e sociais
existentes na região central da cidade do Rio de Janeiro – que visam a sistemática e
recorrente produção de marcos espaciais-temporais no intuito de apenas mudar
superficialmente a imagem e a identidade da cidade.

REFERÊNCIAS
ABREU, Maurício. Evolução Urbana no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPLANRIO/ZAHAR,
1997
CARDOSO, Elizabeth D.; VAZ, Lilian. F.: ALBERNAZ, Maria Paula.; PECHMAN, Robert M.
História dos Bairros. Saúde, Gamboa, Santo Cristo – zona portuária. Rio de Janeiro: João
Fortes Engenharia/ Editora Index, 1987
DA ROCHA, Ana Beatriz; REIS FILHO, Paulo. “Arquitetura + Design + Urbanismo como
ferramentas para políticas públicas”. Anais I CILITUR. Recife: Editora UFPE, 2017, pp
177-188 (http://cilitur.com.br/cilitur/arquivos/2017/caderno-de-artigos-i-cilitur-2017.pdf)
____. “e o Porto virou Maravilha – vestígios de uma estratégia urbana 10 anos depois”. Porto
Maravilha 10 anos - passado, presente e futuro da zona portuária. Rio de Janeiro, 2019
(https://drive.google.com/file/d/1Sm51-XArZjPpv2lKSmwAsaGOHLl_M3Dn/view)
____. “Região Portuária do Rio de Janeiro: um panorama crítico pós-Olimpíadas 2016” in
SILVEIRA, Maria Laura; BERTONCELLO, Rodolfo; DI NUCCI, Josefina. Ciudad, comercio y
consumo: temas y problemas desde la Geografía. Buenos Aires: Editorial Café de las
Ciudades, 1ª ed., v.2, 2020, p. 119-140
DAMAZIO, Sylvia. Retrato Social do Rio de Janeiro na Virada do Século. Rio de Janeiro:
UERJ, 1996
FERREZ, Marc. O Álbum da Avenida Central: um documento fotográfico da construção da
Avenida Rio Branco. Rio de Janeiro 1903-1906. São Paulo: João Fortes Engenharia/ Ex
Libris, 1983
GOMES PEREIRA, Sônia. A reforma urbana de Pereira Passos e a construção da identidade
carioca. Rio de Janeiro: UFRJ/ECO, 1992
HARVEY, David. The condition of postmodernity: an enquiry into the origins of cultural
change. London: Blackwell, 1989
LIMA, Evelyn Furquim Werneck. Arquitetura do Espetáculo: teatros e cinemas na formação
da Praça Tiradentes e da Cinelândia, Rio de Janeiro: UFRJ, 2000
PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. Porto do Rio: Plano de Recuperação e
Revitalização da Região Portuária do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Instituto Municipal de
Urbanismo Pereira Passos, 2001
____. Lei Complementar n° 101, de 23 de novembro de 2009 – Operação Urbana
Consorciada da Região do Porto do Rio (https://leismunicipais.com.br/a1/rj/r/rio-de-
janeiro/lei-complementar/2009/10/101/lei-complementar-n-101-2009-modifica-o-plano-
diretor-autoriza-o-poder-executivo-a-instituir-a-operacao-urbana-consorciada-da-regiao-
do-porto-do-rio-e-da-outras-providencias)
ROCHA E SILVA, Ana Beatriz Ferreira da. A influência das Artes Cênicas na idealização do
espaço do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado –
PROARQ/FAU/UFRJ, Rio de Janeiro, 2001

• 22
DA FORMAÇÃO DA CASA BRASILEIRA E DE ESPAÇOS
SEGREGADOS À CONSTRUÇÃO DE NARRATIVAS E
EXPERIÊNCIAS FEMINISTAS

FROM THE ORIGIN OF BRAZILIAN HOUSE AND SEGREGATED SPACES


TO CONSTRUCTION OF FEMINIST NARRATIVES AND EXPERIENCES
/DE LA FORMACIÓN DE LA CASA BRASILEÑA Y DE LOS ESPACIOS
SEGREGADOS A LA CONSTRUCCIÓN DE NARRATIVAS Y
EXPERIENCIAS FEMINISTAS
Indicação do artigo ao eixo temático: Cidade, política e cultura

NACIF DA COSTA, Flávia


Pós-doutora; Universidade Federal de São João del Rei
flavianacif@ufsj.edu.br
RESUMO

Ao analisar a evolução histórica dos modos de habitar e da definição da casa


no Brasil, percebe-se a clara relação entre os processos de servidão advindos
do modelo colonial de formação do território e o desenho da habitação. Nesse
sentido, o estabelecimento de uma setorização entre áreas íntima, social e de
serviços ainda define o modelo da casa brasileira, refletindo um pensamento
de segregação, domínio e poder – em modo de atualização, mas atrelado à
origem das relações servis materializadas no século XVI. Tal modelo,
fortalecido pelos processos urbanos de ocupação do território pautados
sobretudo pela ideia de setorização, ora em esquema centro-periferia –
isolando as comunidades muitas vezes favelizadas em lugares sem
infraestrutura –, ora em sistema de cidade planejada modernista –
convencionando o uso dos espaços a papeis sociais e ao poderio econômico –
tem como suporte o controle dos corpos e suas experiências no espaço a partir
do poder masculino. Este artigo pretende estabelecer uma reflexão crítica
sobre as possibilidades de rompimento desta lógica, visando à construção de
espaços de equidade e baseados no senso de cuidado e coletividade. Para
tanto, parte-se da análise do desenvolvimento da moradia brasileira,
acrescentando a ela outros fatores globais importantes para a formação da
casa e o apontamento de caminhos históricos relacionados às utopias
domésticas e seus projetos. Serão levantadas propostas feministas de
produção dos espaços privado e público que pretendem estabelecer novos
parâmetros de atuação no campo arquitetônico e urbanístico e escrever uma
outra narrativa para a experiência cotidiana contemporânea.

PALAVRAS-CHAVE Casa; Cidade; Narrativa; Experiência; Feminista.

ABSTRACT OU RESUMEN

When analyzing the historical evolution of the ways of inhabiting and the
definition of the house in Brazil, one can see the clear relationship between the
processes of servitude arising from the colonial model of territorial formation
and the design of housing. In this sense, the establishment of a sectorization
between intimate, social and service areas still defines the model of the
Brazilian house, reflecting a thought of segregation, domination and power –
in an update mode, but linked to the origin of servile relations materialized in
the 16th century. Such a model, strengthened by the urban processes of
occupation of the territory guided mainly by the idea of sectorization,
sometimes in a center-periphery scheme – isolating communities that are often
slums in places without infrastructure –, sometimes in a modernist planned
city system – conventionalizing the use of spaces social roles and economic
power – is supported by the control of bodies and their experiences in space
based on male power. This article intends to establish a critical discussion on

• 2
the possibilities of breaking this logic, aiming at the construction of spaces of
equity and based on the sense of care and collectivity. To do so, it starts from
the analysis of the development of Brazilian housing, adding other important
global factors for the formation of the house and pointing out historical paths
related to domestic utopias and their projects. Feminist proposals for the
production of private and public spaces will be raised that intend to establish
new parameters of action in the architectural and urban field and write another
narrative for the contemporary everyday experience.

KEY-WORDS House; City; Narrative; Experience; Feminist.

• 3
NOTAS SOBRE A CASA BRASILEIRA
A arquitetura brasileira nos primeiros séculos da colônia é sobretudo rural, e o
primeiro tipo de moradia coletiva estabelece-se na relação entre casa grande e senzala.
Podemos afirmar que a formação da sociedade brasileira dependeu da relação de poder
dos senhores sobre seus escravos, e mais que isto: ela se espacializou na dialética entre
o lugar-moradia do dominador – a casa grande – e o lugar-trabalho do dominado.
Veríssimo e Bittar (1999) nos oferecem um excelente panorama em torno da evolução da
casa no Brasil, que se conforma a partir desse cenário de produção de monocultura da
cana-de-açúcar. A ocupação do território ocorre, com a chegada dos portugueses em
1500, pela agricultura e a partir de um novo modelo: a plantation. Nem bem se inicia
este relato e já se estabelece uma questão importante: em 1650 a casa brasileira
começou a estabelecer sua forma definitiva. Apesar do tempo, a concepção de nossas
casas mantém um sentido de permanência na setorização e em valores segregacionistas
e excludentes.
A casa grande formou-se pela mistura de referências: do português, como uma espécie
de coordenador e orientador dessa moradia, e que trouxe as paredes caiadas e os portais
coloridos; do índio, para quem cozinhar é uma tarefa a ser feita do lado de fora – o que
gerou a varanda ou puxado ao lado da casa; do Oriente, de onde veio a solução para o
escoamento das grandes chuvas, com as inflexões dos telhados e dos beirais alongados.
A presença da varanda, por exemplo, oferecia a um só tempo a possibilidade de combater
os rigores do clima e de controle da produção da fazenda de engenho; sempre voltada
para a parte ampla da vista, dela mesma o senhor dominava a vida de sua colônia. O
patriarcalismo fundiário marca as relações entre a sociedade e o espaço. Veríssimo
A senzala, casa coletiva, era um grande galpão em que todos conviviam, despojado de
qualquer mobiliário – o único espaço a eles oferecido. Quando o negro foi penetrando a
vida do senhor e se libertando, construiu as suas choças. A choça, a cabana e a casa do
caboclo são versões bastantes similares de moradia: espaços simples de um só ambiente,
muitas vezes construídos com parede de taipa. Na construção das choças dos seringueiros
e dos mocambos evidencia-se a influência do indígena em sua capacidade de
aproveitamento das condições técnicas do material encontrado no meio ambiente. A casa
do trabalhador rural brasileiro retrata essa marcha da escravidão para a liberdade relativa
do caboclo, com sua cabana, sua criação, seu cavalo e sua família (VERÍSSIMO & BITTAR,
1999; SAIA, 2013-2014). Este modelo corresponde, até os dias atuais, aos tipos de
moradia de grande parte da população brasileira, especialmente em pequenas cidades,
áreas rurais e favelas.
A vila ou cidade do litoral “tinha a aparência feia de feitoria d’ África” (Pedro Calmon -
Espírito da Sociedade Colonial). Oliveira Lima diz que em 1820 o Rio de Janeiro era
uma aldeia desoladora. Esses aglomerados humanos continham abarracamentos que
serviam de depósito de “escravaria africana, casinholas humildes, de rara peça de
alvenaria, que a terra não dava pedra necessária e se construída com adobe – espécie
de tijolo – necessitando trazer da Europa a pedra precisa para a construção dos
elementos de defesa, a torre e a casa fortificada, quando nestas mesmas não se

• 4
aproveitava o sistema de fortificação indígena. Enfim, uma incipiência e nulidade a
cidade brasileira dos primeiros séculos. No entanto, por todo o litoral atlântico
desdobrou-se, numa largura considerável de penetração uma faixa de latifúndio onde
“arejada e orgulhosa”, “grande e bela” a casa grande mostrava a sua varanda para o
lado da senzala – primeiro espécime brasileiro de casa coletiva – onde viviam a lascívia,
a desnudez, a imundícia, e a desgraçada miséria do escravo. (SAIA, 2013-2014, p.170)
O desprezo pela origem dos escravos é associado à ideia de ineficiência, pobreza e a uma
imagem de cidade desprezível, análise diametralmente oposta à casa “fortificada” por se
atrelar à pretensa superioridade dos portugueses. A segregação, para além da distância
física entre a casa grande e a senzala, é revelada na falta de valor por diferenças raciais
– a primeira percepção notável da estrutura de poder. Mas as relações sociais e seu
atrelamento à ocupação desigual dos espaços estende-se a uma segunda percepção: o
papel submisso das mulheres.
Mesmo com a transferência episódica da família dos fazendeiros de engenho para a
cidade, as relações permanecem inalteradas. A mulher, explicam Veríssimo e Bittar
(1999), exerce praticamente nenhum papel nas relações sociais, a quem é imposta certa
clausura, com restrições inclusive de sua área de circulação a espaços internos. A
residência urbana, portanto, era contemporânea dos engenhos, mas de menor prestígio
social; inicialmente simples residências térreas, gradativamente ampliou suas fachadas e
abriu portas para o comércio, crescendo para o modelo assobradado. Este modelo torna-
se tão adequado às condições socioculturais que permanece inalterado por cerca de três
séculos, e revela a antítese entre a colônia, essencialmente rural, e a cidade, de quem a
primeira depende para acumular e negociar a produção. Com o fim do período colonial no
século XVIII e a riqueza advinda da produção aurífera, a vida urbana se consolida,
trazendo mais conforto e ornamentação das casas bem como o início de uma vida social
mais intensa. Neste momento, a mulher, ainda que de camadas mais abastadas, é levada
aos salões em que ocorriam as festas. Algumas tradições consideradas imutáveis
começam a declinar, ameaçando a estabilidade da sociedade a partir de uma definição
clara das novas relações sociais pretendidas com o mundo exterior. Os setores e os papeis
sociais se refletiram em enormes cozinhas e salas de jantar, numerosos quartos de
hóspedes e até mesmo capelas.
Após a chegada da Família Real, no Brasil imperial do século XIX, consolida-se a ideia do
palacete neoclássico, inserido na malha urbana ou na periferia dos centros na forma de
chácaras e chalés inspirados nos subúrbios londrinos. Com a intensificação da vida social
desenvolve-se a prática do receber, e a mulher deve aparecer em público; ainda assim,
ela é, de fato, pouco participativa. Posteriormente são criados inclusive cenários para seu
desempenho: salas de música e de dança.
A abolição da escravatura e a Proclamação da República influenciam o modo de morar:
compactam-se os espaços, pois não há mais escravos para as tarefas consideradas servis,
e quem assume seu lugar é a mulher. A aceleração do processo de urbanização
e o adensamento demográfico levam ao loteamento de grandes propriedades. As
primeiras décadas do século XX são marcadas pela evolução natural dos cortiços; surgem

• 5
as vilas (avenidas com casas semelhantes, térreas ou assobradadas), e as casas em torno
de áreas comuns com acesso por estreita servidão abrigam a classe média. Nos anos
1920 surge um novo modelo de morar: os edifícios de apartamentos, que se popularizam
ao longo dos anos 40, abrigando a classe média e mesmo segmentos mais baixos da
população que ocupam os conjuntos habitacionais.
A partir do estabelecimento deste panorama geral, pode-se partir agora para dois
aspectos específicos e os apontamentos histórico-críticos que revelam: a evolução da
cozinha e a cidade modernista. Nesse sentido, algumas observações globais serão
somadas ao cenário brasileiro.

A ESTRUTURA ESSENCIAL DA CASA E SUAS IMPLICAÇÕES HISTÓRICAS


O setor de serviços se revela o setor mais importante da casa brasileira, principalmente
para a classe média, o proletariado e o camponês. Desde o período colonial, a
superposição de funções ocorre nos diversos compartimentos: cozinha, copa, alojamento
de empregados, quintal e área de serviço. Enquanto os hábitos sociais se revelam com
mais clareza que no setor social, como um disfarce das reais relações e dos bastidores
nada glamourosos, a cozinha é o centro deste setor e o coração do funcionamento da
casa. Alterações significativas ocorrem apenas na ordem de tamanho, local de
implantação na casa e agenciamento de seus equipamentos, mas tais alterações mostram
com alta significância as mudanças sociais sucessivas – onde se destacam a modificação
da mão-de-obra com a abolição da escravatura e a vinda dos imigrantes, e a aquisição
de novos produtos manufaturados disponíveis no mercado.
Como apontam Veríssimo & Bittar (1999), o setor de serviços na fazenda de engenho
equivalia a uma fábrica de comida para atender a um verdadeiro restaurante de imensa
família patriarcal, seus visitantes, agregados, empregados e até escravos. Em alguns
casos ocupava espacialmente até dois terços da casa, e quase sempre era implantada
fora do corpo da residência (alterando a posição dos primeiros tempos de colonização
quando se localizava mais ao centro, próximo à sala). No período colonial, a percepção
lusa quanto ao novo clima colocou-a nos fundos, num puxado, deixando a última parede
para apoiar a chaminé do fogão, liberando a casa para uma satisfatória ventilação. Havia
uma divisão entre “cozinha suja” – o setor de limpeza, abate e antepreparo – e “cozinha
limpa” – o setor de preparo –, de que dependia a mão-de-obra escrava; o alimento era
produzido nos próprios engenhos (galinheiro, chiqueiro, horta, pomar) e outros produtos
eram adquiridos de caixeiros-viajantes. A diferença entre a cozinha rural e a urbana
acontecia basicamente pela dimensão, e em raras exceções há presença de um poço
próprio. A culinária permanece até os dias atuais com sua base sendo um misto de
referências portuguesa, africana e indígena.

O século XIX trouxe poucas modificações: depois da abolição da escravatura inicia-se a


importação de produtos manufaturados e a mão-de-obra passa às mãos dos imigrantes
brancos. A maior presença da mulher “civilizada" nessa área de serviço – empregadas ou

• 6
proprietárias da casa – é um modelo que avança para o século XX. Note-se, no entanto,
que as mudanças ocorridas neste novo século dizem respeito a possibilidades de conforto,
higiene e equipamentos utilitários, o que transforma a experiência de cozinhar mas não
tanto seu espaço, que continua sendo uma consequência das relações sociais
estabelecidas há muito e baseadas na segregação, servidão, domínio e poder com clara
hierarquia. As cozinhas passam a ter água corrente e ladrilhos hidráulicos, e nos grandes
centros há a substituição dos fogões a lenha por fogões a gás. “Afrancesam-se” os
costumes à mesa com o refinamento das louças e a aquisição de produtos importados,
mas as casas pobres continuam utilizando o mesmo espaço da cozinha colonial, ainda
preso à tradição que persiste, e não usufruem dos novos equipamentos (VERÍSSIMO &
BITTAR, 1999). Com os novos materiais, a cozinha já não precisa ser tão isolada da casa
como em partidos anteriores, quando se localizava mais próxima dos quintais ou nos
fundos. Agora ela é incorporada à casa, com acesso fácil à sala de jantar – no caso das
casas mais ricas – ou à copa, no caso das casas da classe média.
Com os edifícios de apartamento, as cozinhas vão atingir dimensões mínimas e
racionalização máxima. Na década de 1940 veem-se geladeiras importadas ao estilo do
propagandeado american-way-of-life. A diminuição das áreas utilizadas para a cozinha
chega à década de 1950 às kitchenettes, onde a redução do tamanho do espaço é
acompanhada da “valorização” do papel da mulher, que desempenha dupla tarefa:
doméstica e profissional. Veríssimo & Bittar (1999) certeiramente afirmam: uma mulher
servil e obediente mas participante social e economicamente.
Se procedermos a este mesmo tipo de análise em relação aos setores social e íntimo, a
conclusão será a mesma, e se baseiam nas seguintes questões: dominador e dominado
raramente dividem espacialmente o mesmo lugar, a não ser nos momentos em que o
segundo serve ao primeiro; as diferenças e evoluções que ocorrem nos espaços da casa
respondem sempre à possibilidade ou não de ascensão social ou econômica de seus
habitantes; e a estrutura basilar da casa continua a mesma, ou seja, organizada a partir
do tripé social-íntimo-serviços. Nesse sentido, a territorialização segregada do espaço
continua sendo aplicada tanto na produção dos imóveis como em sua relação com os
espaços da cidade.

TIPOS DE CIDADE, MODOS DE HABITAR: AS UTOPIAS E AS DISTOPIAS


DOMÉSTICAS E URBANAS
A classificação de Knox (2016) para os tipos de cidade oferece um viés de leitura que os
organiza e qualifica de modo a auxiliar a compreensão sobre seus modos de formação
sem, no entanto, enrijecê-los em categorias ou estabelecê-las como modelos. Segundo
este autor, as quatro funções fundamentais das cidades são sua capacidade decisória,
sua capacidade transformativa, sua função mobilizadora e sua função generativa; a partir
da análise dessas funções ele define as cidades segundo treze categorias, cujas
características emblemáticas respondem à presença desses fatores fundamentais. Knox
(2016) levanta ainda três pontos importantes nos rumos de evolução histórica das

• 7
cidades: suas origens e crescimento urbano no mundo, o processo de industrialização e
o de globalização.
A definição de Cidade Fundacional – em que se encontram Atenas e Roma – traz alguns
pontos de reflexão sobre como as origens de um pensamento de cidade organizou a
relação entre os espaços público e privado e também uma lógica de setorização territorial.
“Em uma época na qual quase tudo o que atualmente é comum na vida cotidiana não
era conhecido, quando a Terra era um disco plano no centro do universo e não havia
fronteiras entre estados, mas apenas territórios tribais, a cidade emerge como uma
ideia e uma realidade material. A pólis era a cidade-estado na Grécia antiga, da qual
deriva a palavra “política”. Atenas merece o título de “cidade fundacional” por ter criado
tais conceitos, por ter estabelecido os fundamentos da democracia (democratia) e por
sua contribuição intelectual de forma geral. Roma merece o mesmo status por seu
caráter cosmopolita e pela inovação administrativa em um território tão vasto que a
tornava uma cidade global.” (KNOX, 2016, p. 18)
Afora a clara importância de a civilização grega ser reconhecida como a origem de um
sistema político, seu modo de compreender e administrar o território como um tecido de
relações sociais indica um pensamento em que é preciso negociar em espaços coletivos.
Além disso, essa vida pública política equivale ao maior tempo de uso e de espaço, o que
torna os ambientes domésticos e a vida privada menos importantes. Isso se reflete na
“interiorização” da casa grega: as casas não eram organizadas em bairros hierarquizados
e eram todas do mesmo tipo, só se diferenciando pelo tamanho e pela riqueza de
ornamentos internos. Eram edificadas de forma que protegessem o interior do calor nas
épocas quentes e o armazenassem nas épocas frias. Com pouca relação com o mundo
exterior, a divisão de espaços internos revelava também seus usos conforme o gênero e
a classe social e suas divisões de tarefas e papeis sociais.
Se as origens da civilização ocidental apontam para este tipo de setorização da moradia,
observa-se outro tipo de relação espacial na civilização oriental. A ideia de comunicação
entre o interior e o exterior e a possibilidade de integração ou separação das funções pela
abertura e fechamento dos painéis indicam um outro tipo de permeabilidade e
flexibilização dos usos. Curioso pensar que a Arquitetura Moderna do início do século XX
tenha desenvolvido um esquema de plantas livres e de possíveis adaptabilidades espaciais
sem, no entanto, refletir a mesma lógica integrativa da arquitetura da casa oriental e,
sim, baseando-se em uma lógica quase sempre utilitarista...
A casa e a cidade modernas seguem como referência de análise fundamental para nossa
experiência de habitar no século XXI. Martínez (2018) lembra que o urbanismo, por sua
envergadura, está ainda mais ligado ao poder que a arquitetura, e que os poderes
políticos e econômicos têm estado quase sempre em mãos masculinas. A cidade a partir
da experiência das mulheres tem em conta fatores como a proximidade, os detalhes
dentro de uma estrutura maior – ainda que sem esquecê-la – e as pessoas em sua
cotidianidade; questões que escapam à ideia de cidade como máquina, onde tudo é
reduzido a equações simples. Por isso mesmo é preciso relembrar a ideologia básica do

• 8
urbanismo racionalista e suas reverberações na moradia, que girou em torno do desenho
da cidade a partir de quatro funções ou pontos: moradia, trabalho, lazer e circulação.
Revisitando os quatro pontos do Movimento Moderno, é preciso situar que os CIAMs
(Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna) das primeiras décadas do século XX
e a Carta de Atenas cunharam as primeiras funções urbanas de morar, trabalhar, recrear-
se e circular. Embora amplamente criticada por ser uma divisão redutiva, este
pensamento organizacional ainda permanece como sustentação de práticas de
planejamento pelo mundo, permeiam os conceitos e se traduzem diretamente no
ambiente construído. Um exemplo disso são as regulações de empecilhos de zoneamento
que especificam usos da terra e tipologias construtivas, resultando em paisagens urbanas
homogêneas e de uso único, frequentemente em caminhos cruéis, onde a vida cotidiana
pode se tornar bastante difícil – especialmente para os pedestres. Madariaga (2013)
ensina: por “trabalho”/"trabalhar" o urbanismo do Movimento Moderno queria dizer das
locações onde empregos pagos acontecem. A função de “trabalho” definida pela Carta de
Atenas é a atividade econômica de regulação de zoneamento e planos de
desenvolvimento, com suas subcategorias “comercial”, “varejo” ou “industrial”. Políticas
de planejamento, sistemas e práticas tipicamente investem grandes recursos de todos os
tipos em assegurar o desenvolvimento apropriado e acessibilidade desses lugares, e isso
implica que a infraestrutura está ligada à promoção do desenvolvimento econômico.
Convencionando o uso dos espaços a papeis sociais e ao poderio econômico, a experiência
de cidade tem como suporte o controle dos corpos (Alcocer, 2011) e suas experiências
no espaço a partir do poder masculino (Martínez, 2018).
Como se divide este zoneamento? Quem ocupa o lugar do trabalho? Como é feita a
circulação para as atividades cotidianas e em que propósitos? Tomando a noção de
trabalho modernista, percebe-se que os espaços de circulação da cidade respondem à
sua cadeia produtiva: as grandes avenidas liberam o trânsito para os automóveis, cujos
detentores continuam sendo em maioria os homens – os mesmos que se deslocam para
os escritórios que ocupam as zonas empresariais ou industriais. Àquelas que permanecem
em casa para cuidar dos filhos e gerenciar as tarefas domésticas – lembremos, atividades
não reconhecidas como trabalho – resta a locomoção como pedestres, para fazer compras
e levar as crianças na escola, pelos espaços não ocupados pelos carros: calçadas sem
arborização e ruas muitas vezes vazias e inseguras. Desta forma, o conceito de circulação
atrela-se ao de trabalho, ambos dizendo respeito ao modo de vida das atividades ditas
masculinas. Dito de outro modo, a cidade modernista é desenhada para o desempenho
do homem, detentor dos modos de produção que só pode se realizar às custas dos
esforços femininos que mantem a ordem do poder a ele servindo. O fato de que o trabalho
doméstico não seja reconhecido como tal sobrecarrega a mulher que, assim, deve
reivindicar uma cidade desenhada para si. Para tanto, o primeiro passo é o
estabelecimento de um outro conceito de trabalho, que englobe as atividades de cuidado
não-remuneradas e, a partir de suas lógicas, repense os espaços em que acontecem e
potencialize uma experiência de equidade e equilíbrio no fazer da vida cotidiana.

• 9
Madariaga (2013) continua refletindo sobre o fato de que esforços equivalentes não são
empregados para o desenvolvimento daquelas infraestruturas e facilidades que provém
suporte à vida cotidiana, exceto pelos serviços de cuidado que se tornaram parte da
economia formal no século XX, como educação e serviço médico. É fato que o
planejamento da cidade moderna reconhece algumas das atividades de cuidado, como a
educação e os serviços de saúde, e até esportes e serviços culturais. Contudo, os serviços
para cuidados dos dependentes – os mais velhos e os mais novos – ainda não são
comumente providos, e, como resultado dos sistemas de planejamento, políticas e planos
usualmente não os integram às suas operações de rotina. Assim, os corpos femininos são
ainda sobrecarregados, como bem define Alcocer (2011), no que tange ao seu
aprisionamento a um sistema de valores e à sua possibilidade de ocupar os lugares.
A racionalização das tarefas domésticas a partir da segunda metade do século XIX revela
o esforço de importantes mulheres em suas contribuições para o projeto da casa. Mas
embora este primeiro esforço feminino tenha estabelecido os primeiros parâmetros de
mudança para facilitar a vida das mulheres, é preciso salientar que foram idealizadas
propostas de organizar o espaço doméstico com a intenção explícita de rentabilizar a
capacidade de trabalho tanto dos aparelhos como dos utilizadores. Estamos, portanto,
operando no mesmo sistema patriarcal, ou seja, sem mudar o lugar de atuação da
mulher. O movimento feminista norte-americano envolvia projetos de habitação de
autoria de mulheres preocupadas com uma "engenharia doméstica”, no cruzamento dos
valores sociais emergentes com uma ideia de modernidade apoiada na emancipação da
mulher (CUNCA, 2006). Uma das precursoras desse movimento foi a americana Catherine
Beecher, professora que iniciou sua atividade como escritora em 1831, aos 31 anos. A
julgar pelos próprios títulos de seus livros pode-se perceber que a ideia de feminismo e
do que se pretendia como conquista estava longe do que hoje se pretende, mas é preciso
lembrar-se do contexto que envolvia a proximidade com o termo da Guerra de Sucessão
e muita controvérsia sobre as questões sociais, que vislumbravam a alteração da
estrutura da economia doméstica face à modificação da posição social da mulher e dos
serviçais.
Nesse momento tinha início o entendimento de que as atividades das mulheres
mereceriam tanto respeito quanto as profissões desempenhadas pelos homens, e assim
Beecher cria os projetos da casa suburbana e do apartamento de cidade. Na primeira
destacam-se os seguintes aspectos: o fogão foi colocado num anexo em frente à cozinha,
acessada por meio de portas de correr envidraçadas que permitiam a circulação entre os
dois espaços. A divisão era realizada por um armário especial, com projeto minucioso. A
surpreendente e inovadora organização previa uma localização específica para cada um
dos elementos posicionados no local em que eram executadas as diferentes operações de
preparação e cozimento dos alimentos, sendo divididas em áreas de armazenagem,
preparação e limpeza. Mas o princípio de racionalização estava presente em toda a casa;
o espaço de estar equivalia a duas extensas dependências laterais à cozinha, um deles
com dupla ocupação, posto que o espaço era modelado por armário-biombo. A adaptação
dos compartimentos a diferentes ocupações, no qual o mobiliário constituía o primordial

• 10
elemento gerador da transformação, era uma inovação que antecedia os experimentos
da Arquitetura Moderna no século XX (CUNCA, 2006; OLIVEIRA e MONTALVÃO, 2010).
No início do século seguinte Christine Frederick dava continuidade ao trabalho de Beecher,
e desenvolvia novas teorias sobre o trabalho industrial protagonizadas por Frederick
Winslow Taylor – uma transposição da racionalização do trabalho nas fábricas para o
espaço doméstico que ela aplicou nos projetos de habitação. Lillian Gilbreth ensaiou novas
propostas de planejamento de cozinhas e iniciou uma carreira como consultora de
produtos industriais, porém fora do âmbito da promoção do ensino das mulheres e da
defesa pelo reconhecimento do trabalho feminino, estabelecidas como objetivos por
Beecher1. Frederick e Gilbreth suscitaram atenção nos setores industriais para o espaço
da cozinha (CUNCA, 2006). O conceito de padronização e racionalização encontrou sua
expressão mais completa na cidade de Frankfurt. Com a interrupção da atividade da
construção civil na Primeira Guerra e a depressão econômica do pós-guerra, a cidade
enfrentou enormes problemas sociais, como grandes áreas de cortiço, fome e doença.
Limitações de custos e a urgência da situação levaram a um conceito de “habitação
mínima” como característica central de um programa de construção de moradias, numa
tentativa de fornecer melhorias rápidas nas condições básicas de vida para o número
máximo de pessoas. Foi realizado um estudo cuidadoso das dimensões e do trabalho
doméstico e um “padrão Frankfurt” foi idealizado para corresponder ao novo conceito. A
classe operária feminina em Frankfurt frequentemente trabalhava em fábricas para
garantir a sobrevivência da família, para ajudar na renda. Este contexto político,
econômico e social levou à concepção da “cozinha de Frankfurt”, que foi totalmente
influenciada pelas ideias de Christine Frederick sobre a racionalização do trabalho
doméstico com características tayloristas (OLIVEIRA e MONTALVÃO, 2010).
Neste momento é importante retomar a consciência 1) do quanto estabelecer uma
narrativa sobre a evolução da casa em paralelo com as funções sociais preconizadas pelo
patriarcado se revelam especialmente na história da transformação ocorrida a partir do
lugar da servidão; 2) do quanto a cidade contemporânea luta contra o estabelecimento
dos moldes de ocupação moldados pela ideia de cidade modernista, baseada na
segregação e traduzida nos zoneamentos. Se as atividades do cuidado são iniciadas no
ambiente doméstico, com o desdobramento de tarefas atribuídas quase sempre ao
feminino – como cozinhar, lavar roupas, cuidar dos filhos – elas se expandem ao espaço
da rua estendendo também os processos de cuidado – como fazer compras, levar as
crianças à escola ou visitar uma pessoa mais velha. Nesse sentido, o intenso trabalho não
remunerado realizado pelas mulheres não só as obrigam a se responsabilizar pelo espaço
da casa, mas as submetem à exclusão das vias de circulação que a proposta pelo
urbanismo racionalista definiu: fora das vias rápidas para os homens que seguem de
automóvel ao “lugar de trabalho” e nas vias de pedestre sem ambiência para caminhadas
e sem segurança. O poder de usufruir da moradia/trabalho/lazer/circulação está,

1
Banham apontou a clara influência das ideias de Beecher na organização funcional da casa Dymaxion
de Buckminster Fuller, projetada em 1927 (Ver CUNCA, 2006). No entanto, comumente se associa o
desenvolvimento desta e outras funcionalidades dos espaços das cozinhas a experimentações de
arquitetos, no masculino, como Fuller e de Mies van der Rohe...

• 11
portanto, atrelado também à ideia de domínio e subserviência: o feminino oprimido pelo
seu “lugar de direito” – a casa – e o masculino permitido na rua (AGREST, 2006;
ALCOCER, 2011; PERROT, 2017). Um corpo pode circular livremente, o outro não é dono
de si próprio.

NOVOS CAMINHOS (FEMINISTAS!) À VISTA


Na direção de uma transformação desse desenho dialético, e em que pesam definições
redutivas dos elementos que contam para definir as atividades e funções desempenhadas
no espaço urbano, Madariaga (2013) apresenta o conceito de care work. A premissa
central é a de que temos planejado os processos de transporte e circulação na cidade
baseados na divisão estabelecida pelo Movimento Moderno e que corresponde a uma
classificação equivocada e ultrapassada – tanto no que diz respeito à falta de abrangência
das reais demandas da vida urbana coletiva como no fato que tal abstração corresponde
a uma não mais desejada visão de mundo patriarcal. A ideia de contabilizar as atividades
do cuidado (reconhecendo-as como um dos tipos de trabalho a serem quantificados) feitas
majoritariamente pelas mulheres e pouco incluídas nos cálculos que baseiam a definição
da mobilidade urbana, tem o intuito de quantificar, acessar e tornar visível a viagem diária
associada ao trabalho de cuidar que se relaciona às mulheres e repensar as divisões de
gênero do trabalho. Além de gerar implicações para o planejamento da cidade e do
transporte, a premissa do “trabalho de cuidado” combate as regulações de obstáculos de
zoneamento que especificam usos da terra e tipologias construtivas que comumente
resultam em paisagens urbanas homogêneas e de uso único, onde a vida cotidiana pode
se tornar difícil. Madariaga (2013) lembra: quando quem decide as diretrizes desconhece
uma realidade não quantificável, o que prevalece é uma dicotomia entre papeis sociais e
atividades de homens versus mulheres. Técnicas e ferramentas desenvolvidas e
incorporadas em práticas e instituições de planejamento e mobilidade urbanos são
construídas na noção de trabalho estritamente compreendido como emprego pago e
frequentemente misturam, equivocadamente, cuidado e tempo livre e interesses
pessoais. Nesse sentido, o fato de que as mulheres gastam mais tempo que os homens
exercendo trabalhos de cuidar, e menos tempo que os homens em atividades de tempo
livre e em empregos pagos implica que a consideração do trabalho de cuidar é a chave
para a equidade de gênero no transporte, assim como muitas questões do trabalho de
cuidar requerem transporte para acessar facilidades ou serviços localizados em diferentes
partes da cidade.
Por que pensar a cidade a partir da questão do gênero? Porque é preciso visibilizar
experiências, verificar alteridades e descontrair narrativas, e é preciso revisitar a história
e reescrevê-la incorporando as mulheres como protagonistas, como bem define Martínez
(2018). Além disso, a ideia de uma cidade segregada, não inclusiva, abarca as
interseccionalidades que atravessam o binarismo de gênero: raça, classe, sexualidade.
Não se trata, portanto, de encorpar a luta dicotômica do dominador e dos dominados,

• 12
mas de equilibrar discursos e práticas a partir de visões antes negligenciadas ou mesmo
silenciadas: aquelas das subalternidades. Por isso o desenho de uma cidade mais segura,
inclusiva, diversa e que abrace a complexidade dos agentes espaciais do cotidiano é, por
consequência, feminista. Se as decisões que materializaram o atual desenho das cidades
foram tomadas como respostas à visão do mundo do homem dominador e a seus
interesses, e se claramente seu estado se revela deteriorado e suscita amplo desejo de
redefinição, a conclusão é óbvia: o problema está nas premissas do patriarcado e nos
espaços que ele formalizou. O urbanismo, por sua envergadura, está ainda mais ligado
ao poder que a arquitetura e os poderes políticos e econômicos tem estado quase sempre
em mãos masculinas, como aponta Martínez (2018), mas é preciso lembrar que já nos
anos 1960 – em período de intensos questionamentos e declínio dos preceitos
modernistas estritos – Jane Jacobs, a célebre autora de Morte e Vida de Grandes Cidades
(The Death and Life of Great American Cities, 1961), critica duramente as práticas de
renovação do espaço público da década de 1950 nos Estados Unidos. Numa etnografia
jornalística, a autora procurou, nesse livro, identificar no cotidiano de grandes cidades
norte-americanas as razões da violência, da sujeira e do abandono, ou, ao contrário, a
boa manutenção, a segurança e a qualidade de vida de lugares que constituíam a cena
real das metrópoles, em simetria ao esquematismo dos modos de vida que os
planejadores previam em seus modelos urbanos ideais. Embora já fosse comum apontar
os problemas do urbanismo racionalista, ainda não estava claro que (o desenho da) cidade
moderna equivalia a cidade masculina. Mas a história conta sobre um modo de ocupação,
sobre quem tem o poder de ocupar livremente o espaço da cidade, e os sintomas e
consequências de um urbanismo com gênero tem sido experimentados de diversas
maneiras. Os papeis sociais atribuídos a homens e mulheres permitiu, até o início do
século XXI, que normalizássemos comportamentos preconceituosos e constrangedores –
para não dizer violentos – como as cantadas nas ruas ou o julgamento pelas roupas,
justificando até mesmo os estupros. A cidade tem sido um lugar inseguro para mulheres,
LGBTQIA+s, negros, pobres, em sobreposição de camadas. E se caminhar por um espaço
público tem sido sinônimo de luta por sobrevivência e dignidade, é preciso se perguntar
em que medida o desenho dos espaços tem contribuído para tanto. Quem detém o poder?
Quem desenha a cidade? É preciso refletir sobre dinâmicas de poder, que definem todo o
mais: as relações sociais, econômicas e, consequentemente, a arquitetura e o urbanismo.

Cortés (2008, p.40) nos lembra que temos de levar em consideração que a arquitetura,
da mesma forma que a linguagem, é uma estrutura que ajuda a construir e organizar
nossas experiências, um discurso que constrói significados e estabelece conteúdos. Desse
modo, pode-se dizer que “(...) os espaços urbanos contam-nos histórias que lemos como
se fossem “textos espaciais”, fatos realizados no espaço. A arquitetura tem uma
participação muito importante na formação da imagem da ordem social e até mesmo em
sua configuração e imposição.”
“Geralmente, quando falamos do uso do “poder”, costumamos nos referir à nossa
capacidade de definir e controlar as circunstâncias e os acontecimentos que podem

• 13
levar as coisas a funcionar de acordo com os nossos interesses. A utilização desse
poder pode adquirir diversas formas, desde a mais sofisticada, a sedução, até a mais
persuasiva e estável, a autoridade, passando pela mais agressiva, a coerção, ou pela
mais insidiosa, a manipulação. Pois bem, o que não se deve perder de vista é que o
uso do poder (…), sua capacidade de sedução dependerá, em grande parte, da sua
habilidade de ocultar seus mecanismos e propósitos. E, nesse sentido, a arquitetura
manifestou-se como um instrumento de grande utilidade por conseguir, ao mesmo
tempo, representar a autoridade e disfarçar suas ligações com ela sob um discurso
tecnicista pretensamente destituído de ideologia.” (CORTÉS, 2008, p. 39)
Trata-se, portanto, de romper os papeis que afirmam atividades e espaços determinados
e pré-definidos. E o começo passa por estabelecer, pelo olhar e pelas necessidades da
mulher, quais são as requisições que uma cidade, um bairro, uma rua e uma casa tem
que cumprir para produzir uma experiência da equidade. Desse modo, algumas narrativas
feministas contemporâneas têm criado outros percursos para a produção dos espaços, da
esfera doméstica à urbana.
As estratégias feministas da prefeitura de Barcelona encontram-se em lugar de referência
para o olhar diferenciado e necessário das políticas públicas inclusivas. Partindo da
compreensão de que por terem necessidades básicas diferentes, homens e mulheres
esperam resultados diferentes do ambiente urbano, somada ao entendimento de que uma
cidade deve ser capaz de cumprir o essencial de todos, as iniciativas de um grupo de
profissionais espanholas criam estratégias para esta visão de planejamento urbano. Com
uma prefeita e uma agenda feminista, desde 2018 Barcelona vem passando por grandes
transformações nesse aspecto, e começam a delinear as diferenças positivas de uma
cidade projetada por mulheres. Entre especialistas em planejamento e desenho urbano,
a ideia era de traçar diretrizes que possam ajudar as cidades a se tornarem "melhores"
para as mulheres – e assim para todes – e criar uma imagem de como o futuro pode ser.
Estratégias de desenho como a do Coletivo feminista Punt 6, as argumentações sobre
flexibilizar as possibilidades de atividades que envolvem o uso do espaço público com o
trio de design Equal Saree, e a iniciativa do Superblock foram retratadas num podcast e
um documentário2. Dentre as propostas destaca-se o projeto de revitalizar as
superquadras de Barcelona, com o intuito de reduzir o tráfego de veículos e trazer
vitalidade as ruas da cidade, passando a priorizar ciclistas e pedestres. O “Superblocks
Program 2016-2019” possuiu como primeira área de intervenção o “Superblock
Poblenou”, localizado no bairro homônimo do distrito de Sant Martí, antiga zona industrial
e que hoje abriga moradias sociais. Por meio de um processo colaborativo entre diversos
atores, como as pessoas que trabalham, moram ou visitam o local, são mapeadas as
necessidades e desejos dos habitantes. Essas informações são usadas para a criação de
uma visão comum de lugar, que possibilita a implementação de mudanças rápidas que
tragam benefícios imediatos para o espaço público e suas variedades de usuários, com

2
As popostas são tratadas nos seguintes links de referência:
https://www.archdaily.com.br/br/928314/como-seriam-as-cidades-pensadas-pelas-mulheres-o-caso-de-
barcelona
https://www.youtube.com/watch?v=Q3cJa0mgzqg

• 14
perspectiva mais justa posto que diversa e inclusiva. As estratégias utilizadas englobaram
pinturas de sinalizações de trânsito, instalação de mobiliários urbanos, além da colocação
de árvores, diminuição do número de pistas e vagas de estacionamento para os
automóveis e consequente transferência deste espaço para os pedestres e ciclistas. Com
as instalações iniciais os moradores da região começaram a se apropriar do espaço e
outras instalações surgiram por meio do processo colaborativo. Logo, a segunda etapa
consistiu em tornar algumas das intervenções temporárias em permanentes, com a
implantação de parques infantis, mesas de pingue-pongue, quadras esportivas, mesas,
pista de corrida, espaços de estar.
Outra das iniciativas em Barcelona envolveu a metodologia de análise urbana
desenvolvida pelo Coletivo Equal Saree: o exercício da Marxa exploratória a Les
Roquettes. A arquiteta brasileira Patrícia Orfila, por ocasião do desenvolvimento de seu
projeto de pós-doutoramento na Universidade de Lisboa, experimentou tal exercício e fez
o seguinte depoimento: o objetivo era avaliar a qualidade dos espaços e compartilhar as
percepções pessoais com o grupo, em tempo real, conduzidos por Julia e Marta – que
também registraram a experiência com um gravador, enquanto o grupo fotografava cenas
e encaminhava para um grupo de WhatsApp criado para a função de registro. O projeto
foi impulsionado pela Prefeitura de Barcelona no marco do Projeto Pla de Barris 3.
O projeto Arquitetura na Periferia, que tem como principais articuladoras a arquiteta
Carina Guedes, a arquiteta Marina Bornel e as engenheiras civis Rafaela Dias e Tereza
Barros, é uma iniciativa de inclusão das mulheres nas atividades da construção civil,
transformando a máxima tradicional de que somente homens podem fazê-lo. Estruturado
em oficinas que duram de quatro até seis meses, o projeto se inicia com aulas de
desenhos e croquis; em seguida, as mulheres aprendem noções básicas financeiras para
lidar não somente com o pequeno empréstimo recebido do projeto, como também com
as matemáticas de gastos corriqueiros e compra dos materiais de construção. Com
mulheres ensinando mulheres a projetar, e nascido da tese de mestrado de Carina, o
projeto funciona desde 2014 oferecendo capacitação em assistência técnica para
mulheres em territórios com déficit de habitação e infraestrutura, como comunidades
periféricas e ocupações. A essência da proposta deste trabalho objetiva que as mulheres
tenham o máximo de autonomia no processo de tomada de decisões envolvendo a
melhoria de suas casas. A estrutura do projeto ocorre em torno da seguinte tríade:
cooperação, autogestão e microfinanciamento4.
Além destes projetos destaca-se ainda a iniciativa da arquiteta argentina e ativista social
dos direitos humanos e dos direitos das mulheres Ana María Falú, que organizou com o
Instituto Pólis a Plataforma Global para o Direito à Cidade 5, onde se encontra o Manifesto
pelo Direito das Mulheres à Cidade, cujos dois primeiros pontos são: 1) Uma CIDADE que
adote todas as medidas necessárias combater a discriminação contra mulheres e meninas
em todas as suas formas, assegurando seu pleno desenvolvimento pessoal; 2) Uma

3
É possível conhecer a proposta no link: https://www.pladebarris.barcelona/
4
https://www.arquiteturanaperiferia.com.br/
5
https://www.right2city.org/pt/news/womens-right-to-the-city-manifesto/

• 15
CIDADE que garanta paridade na de oportunidades para a liderança em todos os níveis
de tomada de decisão da vida política, social, cultural, econômica e pública, fortalecendo
suas vozes e criando espaços e recursos para a implementação da agenda das mulheres.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
"O feminismo nos leva à luta por direitos de todas, todos e todos. Todas porque quem
leva adiante essa luta são mulheres”. Todas porque o feminismo liberou as pessoas de
se identificarem somente como mulheres ou homens e abriu espaço para outras
expressões de gênero – e de sexualidade – e isso veio interferir no todo da vida. Todos
porque luta por certa ideia de humanidade (que não é um humanismo, pois o
humanismo também pode ser um operador ideológico que privilegia o homem em
detrimento das mulheres, dos outros gêneros e, até mesmo, das outras espécies) e,
por isso mesmo, considera que aquelas pessoas definidas como homens também
devem ser incluídas em um processo realmente democrático, coisa que o mundo
machista – que conferiu aos homens privilégios, mas os abandonou a uma profunda
miséria espiritual – nunca pretendeu realmente levar à realização.”(TIBURI, 2018,
p.12)
Estabelecer uma postura feminista da análise historiográfica da arquitetura e do
urbanismo, ensina Martínez (2018), implica em descontrair a historiografia majoritária,
desvelando a falsa neutralidade e universalidade na transmissão de conhecimentos e na
construção dos relatos históricos. Para tanto é preciso apresentar outras narrativas que
não a do patriarcado, o que exige a inclusão de representatividades dos antes
identificados como subalternos, especialmente em se tratando do sistema capitalista que
domina os modos de produção no mundo. Se este mundo se identifica a partir da lógica
da opressão e da exclusão para que a esfera de domínio de poder e seus protagonistas
se mantenham em suas posições, é preciso redefinir as referências, substituindo-as por
um processo de criação de espaços que possam ser ocupados com equidade por todos os
corpos.
O desenho de uma cidade feminista significa justamente combater os processos que
segregam espaços e pessoas, e estabelecem como prioridade a construção de
experiências de coletividade e cuidado, cuja premissa só pode ser a de valorização da
potência de usos e atividades diversos que abarcam a multiplicidade dos agentes
espaciais.
Se a história vista e contada pelo domínio do poder masculino cis-hetero-patriarcado
branco implicou no reconhecimento de uma definição dos modos de morar a partir da
segregação racial, de classe e de gênero – o que se verifica na análise panorâmica da
formação da casa brasileira com moldes estabelecidos no colonialismo, nas definições dos
espaços privados e públicos a partir de uma lógica de binarismo de gênero (e suas
transversalidades), na idealização da excludente e monótona cidade modernista por meio
da definição de conceitos estritos das quatro funções morar-trabalhar-circular-divertir-se

• 16
(e que se revela o lugar dos escolhidos e privilegiados) – o que se apresenta como futuro
questiona os papeis sociais e revira suas lógicas para construir espaços feministas.
Qualificando-se por priorizar outros valores, e assim outros corpos que não os masculinos
dominadores, as espacialidades que começam a ser construídas numa narrativa feminista
guardam em si a potência do bom afeto, e instauram uma nova lógica de fundamentação
da produção da arquitetura e do urbanismo: da ordem do coletivo, das pessoas, da
transformação do conceito de trabalho, da descolonização do pensamento – para assim
descolonizar corpos e espaços.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Uma nova agenda para a arquitetura: antologia teórica 1965-1995. São Paulo:
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• 17
DAS “INVASÕES” AOS BIDONVILLES: Um estudo sobre o
habitar em Salvador e Marseille nas décadas de 1960 e 1970
From “invasions” to bidonvilles: a study on inhabit in Salvador and Marseille in
the 1960s and 1970s
Cidade, política e cultura

VIRGENS, Silvia Catarina Araújo das


Doutoranda; UNICAMP
silviavirgens@yahoo.com.br
RESUMO:

Este artigo tem como objetivo de discutir o habitar a partir de um estudo entre
o Brasil e a França nas décadas de 1960 e 1970. Para tanto, destacaremos
como foco de nossa análise a “invasão” de Saramandaia em Salvador, Bahia,
Brasil e o bidonville de Lorette em Marseille, França. Defendemos a ideia de
que embora as localidades se situem em contextos geográficos e culturais
diferentes, possuem elementos que nos permitem caracterizar o habitar
promovido a partir de um determinado contexto socioeconômico. O ato de
morar é uma característica inerente aos seres humanos e as habitações
precárias são as evidências materiais das fraturas/desigualdades sociais. Neste
artigo o termo habitar será empregado no sentido apresentado por Lefebvre
(1970) em oposição ao habitat e enquanto uma característica fundamental da
condição humana.
Palavras-Chave: habitar, “invasão”, bidonville, Brasil, França.

ABSTRACT:

This article aims to analyze the inhabit based on a study between Brazil and
France in the 1960s and 1970s. For this purpose, we will highlight the
“invasion” of Saramandaia in Salvador-BA as the focus of our analysis and the
bidonvilles in Lorette, Marseille, France. We defend the idea that although the
localities are located in different geographical and cultural contexts, they have
elements that allow us to characterize the living promoted from a given
socioeconomic context. The act of inhabit is a characteristic inherent to human
beings and poor housing is the material evidence of fractures / social
inequalities. In this article, the term inhabit will be used in the sense presented
by Lefebvre (1970) as opposed to habitat and as a fundamental point of the
human condition

KEY-WORDS inhabit; “invasion”; bidonvilles; Brazil; France

• 1
INTRODUÇÃO

O objetivo desse artigo é dicutir o habitar em várias conformações, de modo a recortar o


objetivo de analisar o habitar em “invasões” 1 e bidonvilles2 a partir de um estudo entre o
Brasil e França nas décadas de 1960 e 1970. Destacaremos como foco da nossa análise a
“invasão” de Saramandaia em Salvador e o bidonville de Lorette em Marseille.
Durante as décadas de 1960 e 1970, a habitação tornou-se, portanto, uma das questões
centrais no processo de urbanização nas duas cidades. Em Salvador e Marseille
identificamos que ocorreram processos parecidos da produção do habitar que se relaciona
com os movimentos migratórios (locais e internacionais) e a carência de planejamento no
acolhimento dos que chegam à cidade. Percebemos que políticas públicas foram criadas
com o objetivo de resolver o déficit habitacional. Em ambos os casos, as atitudes
emergenciais, além de não resolverem o problema, não foram suficientes ou adequadas
no sentido de propor políticas públicas que discutissem e/ou envolvessem as comunidades
nas propostas governamentais para a implementação do habitar na cidade.
Ressaltamos ainda que embora as ocupações tenham ocorrido em territórios diferentes,
imbricados em contextos culturais diversos, compreendemos o habitar enquanto uma
necessidade imanente ao indivíduo, inseparável dele pois é resultante do arranjo entre o
ser social e o espaço que ocupa.
Em Saramandaia e Lorette o habitar foi construído e desconstruído e é no entremeio dessa
relação que buscaremos compreender como se conforma as ideias do habitar na paisagem
das cidades.
Acreditamos que para uma melhor compreensão do habitar em “invasões” e bidonvilles
no contexto histórico brasileiro e francês, devemos concentrar nossos esforços na análise
dos processos socioeconômicos ocorridos entre as décadas de 1960 e 1970. Em ambos os
países, este período foi marcado pela intensificação do fluxo migratório que teve como
consequência o aumento das aglomerações precárias, resultando em debates midiáticos,
e na promoção de políticas públicas direcionadas às questões habitacionais. Vale ressaltar
que no Brasil prevaleceu os deslocamentos regionais, enquanto na França, o predomínio

1 O uso do termo “invasão” para denominar as habitações autoconstruídas em Salvador,


começou a ser empregado a partir de meados de 1940. (SOUZA, 2008; SANTOS, 2012;
ARAÚJO, 2016; TOPALOV, 2017; LIMA, 2019).
2 O termo bidonville surgiu em 1920 em Casablanca, Marrocos. A partir de 1950 passa a ser
usado na França para caracterizar as habitações autoconstruídas. (CATTEDRA, 2006;
TOPALOV, 2017; BLANC, 2006). Preferimos a utilização do termo na língua original, sem
tradução.

• 2
foi de deslocamentos internacionais.

Os movimentos migratórios no Brasil e na França

No Brasil, a partir da década de 1930, iniciou-se o processo de dinamização da


concentração da população em áreas urbanas, sobretudo, nas grandes aglomerações
localizadas no Sudeste, onde a industrialização se fez em um ritmo mais intenso em
relação às demais regiões brasileiras. Associado ao novo modelo econômico que se tronou
hegemônico no país, as cidades ampliaram sua população a partir, principalmente, dos
migrantes vindos das áreas rurais em busca dos empregos gerados pela economia
industrial. A intensificação do fluxo migratório do campo para a cidade, foi justamente a
razão de, em 1970, a população urbana brasileira ter superado a rural. As grandes cidades
foram os polos de atração desse novo público que necessitava não somente de trabalho,
mas sobretudo de moradia.
Na segunda metade do século XX ocorreram grandes transformações na vida dos
brasileiros. Entre 1950 e 1980, o Brasil gerou 25 milhões de ocupações no bojo das
mudanças produtivas, intensificando a industrialização brasileira, “três processos
associados tiveram grande importância: o fortalecimento da indústria concentrada na
região Sudeste; a construção de Brasília, ensejando a marcha para o Oeste; e o importante
movimento de migração inter-regional” (CARLEIAL, 2016 p.16)
Para Araújo (2016) as migrações que se sucederam após 1930 foram completamente
diferentes daquelas que ocorreram no último quartel do século XIX, pois o foco de atração
não eram mais os estrangeiros, e sim a população proveniente da zona rural (êxodo
rural); em alguns estudos sobre a migração rural-urbana, o contingente de migrantes no
período de 1950 a 1990 foi de 42,6 milhões de pessoas. Ainda para este autor, no que
diz respeito às consequências sociais, destaca-se a superação do modo de vida agrário,
provocando intensos processos migratórios seja para as capitais nordestinas, seja para o
centro-sul. Por isso, cidades como Recife e Salvador, principalmente, e depois Fortaleza
sofreram crescimentos acelerados de suas manchas urbanas e a constituição de extensas
periferias.
Um estudo da Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia – SEI (1996)3
chama a atenção para o fato de que a taxa de emigração da Bahia foi a segunda menor
do Nordeste nos anos 1950 a 1980, ainda que a de imigração também tenha ficado entre

3 Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia. Migração e migrantes da Bahia


nos anos de 1980 e 1990: tendências e perfis sociodemográficos. Salvador: SEI, 2006.

• 3
as mais baixas da região: a menor em 1950 e a segunda mais baixa de 1960 a 1980.
Conclui tal estudo que “a Bahia não apenas exercia um menor poder de atração como
tinha uma maior capacidade de fixação de sua população relativamente aos demais
estados nordestinos” (SEI, 1996 p.11).
Ou seja, embora os fluxos migratórios para outros estados, principalmente São Paulo,
sejam numericamente bastante expressivos, em termos relativos, eles pesam menos na
Bahia do que no restante do Nordeste, região na qual foram identificados dois fenômenos
paralelos desde os anos de 1960 até 1980: “ a tendência à diminuição da emigração e a
persistência do êxodo rural na região, ao longo dos anos 1970, agora mais intensamente
que em décadas anteriores, dirigido para as próprias áreas urbanas nordestinas” (SEI,
1996 p.12).
A partir da análise de Araújo (2016), a estabilização do crescimento da cultura do cacau
por volta de 1920-1930 fez com que o excedente de mão de obra, vinda sobretudo do
Recôncavo Baiano, reorientasse grande parte da corrente migratória para Salvador. Para
o autor, isso gerou uma enorme pressão habitacional na cidade, principalmente entre as
camadas mais pobres da população. “Consequentemente, a morfologia tradicional da
cidade foi rompida, e um tipo de evento particular marcou esse momento da produção
espacial de Salvador na década de 1940: as “invasões” (ARAÚJO, 2016 p.78). Em
consonância com o autor acima citado, Souza (2008) reforça que essa forte migração fez
com que a população soteropolitana, entre 1940 e 1950, passasse de 290.443 para 417.235
habitantes, ou seja, cresce 44% em apenas dez anos, enquanto nos anos anteriores,
1920/40, o acréscimo havia sido de apenas 2%. A mudança brusca populacional
trouxe, de imediato, um desequilíbrio no ordenamento espacial vigente na cidade que iria
se refletir na demanda por moradia. Ainda segundo análise dessa autora, no final da
década de 1940, emerge a categoria “invasão” como indicador da ocupação das áreas
nas quais surgiram as habitações autoconstruídas.

“As primeiras ocupações coletivas em Salvador, pelo fato de se instalarem em terrenos de


propriedade alheia ou duvidosa, sem a devida autorização ou posse legal, passam a ser
denominadas, pela imprensa local, de invasões. Essa denominação acabou sendo absorvida
popularmente pelos moradores da cidade em geral apesar de sua forte conotação ideológica.
Esse tipo de ocupação foi se tornando gradativamente comum para grande parcela da
população pobre que, na impossibilidade de adotar outra alternativa, encontra uma solução
de moradia, melhor dizendo, um espaço para ficar e se abrigar, através da ocupação
coletiva dos terrenos ociosos, de propriedade alheia, pública ou privada, ou em terras
devolutas” (SOUZA, 2008 p. 109)

Diante desse cenário, os poderes públicos iniciam seus planos de reorganização urbana
mobilizando, ainda, os discursos midiáticos em torno das habitações nomeadas
“invasões”. Um novo cenário do habitar desponta na capital, desnudando a realidade

• 4
daqueles que expõe a sua carência material no/pelo habitar.
Os estudos sobre a França também nos conduzem a refletir sobre o contexto da imigração
com o intuito de entender, sobretudo, os processos que levaram a construção de moradias
precárias no país, debate que aparece na maioria dos trabalhos sobre os bidonvilles, seu
surgimento e planos de desocupação.
O historiador francês Gèrard Noiriel em entrevista à revista L’histoire em 2010, afirmou
que na “escala do milênio, somos quase todos originários da imigração”4 (NOIRIEL, 2010
p.1, tradução nossa). Os primeiros dados apontam que existia 1 milhão de estrangeiros
em 1881 na França5. Estes imigrantes teriam vindo primeiramente dos países vizinhos,
Bélgica, Itália, Alemanha, Suíça e Espanha6.
Gérard Noiriel (2010), explica que existem pelo menos duas razões para o apelo à mão
de obra estrangeira. Em primeiro lugar, a França necessitava de trabalhadores para a
indústria e em segundo, o êxodo rural foi muito posterior e menos intensivo do que na
Grã-Bretanha, pois a Revolução Francesa teria favorecido a manutenção do pequeno
proprietário camponês. No início da Terceira República, os camponeses representavam,
ainda, mais da metade da população trabalhadora. E, em 1950, havia proporcionalmente
mais camponeses na França do que na Inglaterra.
O avanço da imigração na França, uma necessidade do país, levou a criação nos anos
posteriores à Primeira Guerra Mundial, do Comité des Forges et les gros proprietáires
terriens du Bassin parisien7. A partir de 1919, entre refugiados ou trabalhadores, o
número de estrangeiros dobra em dez anos; foram recenseados em 1934, 2,7 milhões.
Após a Segunda Guerra Mundial, novamente uma onda de recrutamentos de migrantes
fará parte do contexto de prosperidade econômica, aliado a reconstrução do país.
Os Trinta Anos Gloriosos8 provocaram uma verdadeira transformação nos postos de

4 A l'échelle du millénaire, nous sommes presque tous issus de l'immigration. Noiriel G. La


France, un vieux pays d’immigration. L’Histoire dans collections 46, janvier - mars 2010,
https://www.lhistoire.fr/parution/collections-46), acesso setembro 2021. p 1.b
5 Op. Cit
6 BLANC, C. M. Les immigrés et le logement en France depuis le XIXe siècle. Une histoire
paradoxale. Persée: Hommes et Migrations, [s. l.], n. 1264, p. 20-34, Nov/déce 2006.
7 Op. Cit. Comité responsável pela seleção e recrutamento de imigrante.
8 A expressão “Os trinta anos gloriosos” vem do título de um livro de Jean Fourastié dedicado
à expansão econômica sem precedentes que a França, como os outros grandes países
industrializados, viveu desde o fim da Segunda Guerra Mundial até o choque do petróleo de
1973. Jean Fourastié escolheu dar este nome a este período em referência a revolução de 1830
tradicionalmente qualificada como "Três gloriosas". Para ele, 1830 marca uma grande virada
política na França, e o período 1945-1973 dos "Trente Glorieuses" pode ser considerado seu
equivalente no plano econômico. Ministère de L’économie des finançes et de la relance. Les

• 5
trabalho, a partir do aumento da classe média e também do número de empregos
intermediários. “Apesar do êxodo rural ter crescido neste período, as necessidades de mão
de obra são enormes. Sempre há trabalhos que nenhum francês deseja fazer9” (NOIRIEL,
2010 p. 6, tradução nossa).
Para Pierrette e Gilbert Meynier (2011), recorrer à mão de obra “colonial”, em particular
a argelina foi uma das opções, uma vez que, era considerada mais dócil e fácil de
supervisionar. As causas da imigração da colônia para a metrópole, seriam então, por um
lado, a necessidade da França de mão de obra, por outro lado, a expropriação de terras
que acompanhou a colonização. Há também o empobrecimento da sociedade argelina no
contexto de uma economia que se tornou monetária. “Vamos à França para ter dinheiro
vivo com o qual podemos fazer “tudo”, inclusive comprar terras 10”(PIERRETTE e G.
MEYNIER, 2011 p. 223, tradução nossa).
Argelinos, então franceses, chegaram em grande número até 1954. Mas a Guerra pela
independência retardaria essa imigração. Como efeito, o Estado francês favorece a
imigração portuguesa, para limitar a que vem da Argélia, dado a guerra de independência
ter exacerbado o racismo anti-argelino. Depois dos acordos de paz de Evian de março de
1962, que pôs fim ao conflito, ocorrerá novamente o retorno da imigração argelina.
O apelo pela mão de obra não acompanhará o oferecimento de moradia para os que
chegam à França. Por isso, o questionamento; “onde morar em um país onde a habitação
se tornou escassa?11” (BLANC-CHALÉAD, 2006 p. 21, tradução nossa).
Os bidonvilles surgem a reboque de uma “solução” improvisada para a escassez de
moradia. A relação entre o aumento populacional e a precariedade do habitar compõe o
cenário das condições materiais da população que habita a cidade. Segundo Gastaut
(2006) como resultado da política de imigração para ocupar os postos de trabalho, um em
cada quatro imigrantes em 1962 e um em cada dois em 1965 moravam em um bidonville
na França.
Topalov (2017) esclarece que durante a década de 1920, enquanto surgiram em
Casablanca, Marrocos, os primeiros bairros habitacionais precários, um deles, depois de

Trente Glorieuses. Disponível em: https://www.economie.gouv.fr/facileco/trente-glorieuses,


acesso em 8 de junho, 2021.
9 Malgré l'exode rural qui est massif en France à cette date, les besoins de main-d'oeuvre sont
énormes. Il y a toujours des emplois qu'aucun Français ne veut occuper. (NOIRIEL, 2010, p.
6).
10 On part en France pour avoir des espèces sonnantes avec lesquelles on peut désormais «
tout » faire, y compris acheter de la terre. Pierrette et Gilbert Meynier. (PIERRETTE e G.
MEYNIER, 2011, p. 223).
11 Où se loger dans un pays où le logement s'est raréfié. (Op. Cit.)

• 6
ter sido um campo denominado Gadoueville, passou a se chamar Bidonville. A partir da
década de 1930, a palavra perdeu a letra maiúscula e passou a designar todos os bairros
desse tipo em Casablanca. Na década de 1950, cruzou o Mediterrâneo para servir de
nomenclatura a todos os bairros habitacionais autoconstruídos em cidades francesas, não
só por imigrantes do Magrebe, Portugal e Espanha, mas também por famílias francesas,
substituindo os vários termos locais usados entre as duas guerras para designar as essas
habitações.
Segundo Cattedra (2006) os bidonvilles já existiam antes mesmo da palavra, que se
generaliza pelo poder evocativo de sua clareza semântica (la ville de bidons – a cidade
das latas). Especialmente na língua francesa, essa palavra será gradativamente utilizada
ao longo do século XX para designar um fenômeno (que se tornou) universal.

“Equivalente a "habitar espontâneo" (...) de “habitar insalubre e miserável”, de “habitar não


regulamentado”, “clandestino”, “ilícito”, “marginal” ou “informal”, de “habitar falso” - para
usar as principais fórmulas de estigmatização em uso - o termo bidonville tem a vantagem
de incluir, em um único termo, múltiplos exemplos de situações locais. Reúne diferentes
condições de vida presentes em todo o mundo; e que tanto do ponto de vista dos diversos
estatutos legais e do terreno como da situação social e económica dos habitantes, dos
vários tipos de localização e das modalidades de construção”. (CATTEDRA, 2006 p. 1,
tradução nossa)12

Nesse artigo o habitar será entendido para além da materialidade, como parte resultante
das relações sociais nelas produzidas/inseridas. Diante disso, primeiramente gostaríamos
de discutir/apresentar o conceito de habita, desde a sua origem semântica até as
interpretações derivadas delas. No português a palavra habitar e no francês o “habiter”13

12 Équivalent d’« habitat spontané » (...), d’« habitat insalubre et misérable », d’« habitat non
réglementaire», «clandestin», «illicite», «marginal» ou «informel», d’«habitat bidon » – pour
reprendre les principales formules de stigmatisation en usage – le terme bidonville a l’avantage
de comprendre, par un seul vocable, des exemples multiples de situations locales. Il permet
de rapprocher des conditions différentes d’habitat présentes dans le monde entier ; et cela tant
du point de vue des divers statuts juridiques et du foncier que des situations sociales et
économiques des habitants, des différents types de localisation et des modalités de la
construction. (CATTEDRA, 2006 p.1).
13 Em francês “habiter” é uma palavra também de origem latina, “habitare” e expressa o “fato
de habitar”, a “morada”. A palavra “habituer” evoluiu para o “habiller”, que significa vestir, já
“habituari” significa “ter tal maneira de ser” “Aliás, em francês, a palavra “habit” será sinônimo
de “traje”, mas também de “manutenção”, no sentido de “manter o seu lugar”, sua posição”.
(PAQUOT, 2007 p. 9, tradução nossa)

• 7
se referem ao hábito, ao cotidiano, ou seja, às ações ligadas ao que é necessário para
viver, em francês está também relacionado ao “habilller”, vestir-se. Frequentemente
percebemos que o termo em francês “habiter”, em português “habitar”, aparece ligado
aos termos “habitat”, que na tradução para a língua portuguesa mantém a escrita e
significado, e “habitation” que será usado a partir do século XIX para designar moradia.
O “habitat” surgiu ligado ao vocabulário da botânica e zoologia; indica primeiro, por volta
de 1808, o território ocupado por uma planta, e depois por volta de 1881, o “ambiente”
geográfico adaptado à vida de uma espécie animal ou vegetal, que passou a designar
“nicho”, “ecológico”. No início do século XX, esse significado passou a ser utilizado de
forma generalizada para o “meio” em que o homem se movia. Finalmente, no período
entre guerras, a palavra “habitat” será usada para se referir as condições de moradia.
Para Foucault (1999) quanto à linguagem é preciso buscar a definição de como os
indivíduos ou os grupos se representam nas palavras, utilizam sua forma e seu sentido,
compõem discursos reais, mostram e escondem neles o que pensam; dizem, talvez a sua
revelia, mais ou menos, do que pretendem, deixam desses pensamentos, em todo caso,
uma massa de traços verbais que é preciso decifrar e restituir, tanto quanto possível, à
sua veracidade representativa.
Nesse sentido, apresentamos o debate acerca dos usos da palavra habitar, em francês
“habiter” e habitat. Entendemos que, uma vez originário de um termo que primeiro
estaria relacionado a botânica, o habitat se situaria dentro de uma tradição de abordagem
técnica, funcional, que representa o sentido de organização em torno das condições de
enquadramento ou não ao que se convencionou serem adequadas para a moradia.
Béguin (1991) expõe que entre 1840 e 1845 duas grandes pesquisas efetuadas pela
administração pública inglesas tinham como objetivo mostrar como o habitat se
constituiu, administrativa e tecnicamente, como um novo domínio de intervenção política.
Para o autor, essas pesquisas foram uma “gigantesca empreitada que visava reduzir o
ambiente a dados técnicos cuja incidência sobre o comportamento e a doença fosse
estabelecida estatisticamente” (BEGUIN, 1991 p.39). Nesse trabalho o uso da palavra
habitat para se referir à moradia está em consonância com a ideia de identificação,
organização e planejamento de um modelo técnico de habitat salubre que visava uma
promover uma economia do conforto.
Já o habitar ou “habiter” “é constitutivo da existência humana e exige outro tratamento,
mais filosófico, para Paquot (2007) seu significado não pode se limitar à ação de ser
abrigado, mas transborda por todos os lados é o “habitar” e o “ser”, a tal ponto que não
se pode pensar um sem o outro.

• 8
Esta é a observação feita por Henri Lefebvre, quando introduziu este debate na sociologia
urbana francesa durante os anos 60, baseando-se em grande parte nos filósofos Martin
Heidegger e Gaston Bachelard. Em seu prefácio à pesquisa sobre L'Habitat pavillonnaire,
ele opta abertamente por um significado do habitar mais heideggeriano. Lefebvre (1970)
mostra que o habitar não é mecânico, e que, no entanto, é transformado em um conjunto
de técnicas instrumentalizadas nas ações cotidianas, tornado um objeto econômico. É
reduzido, funcionalizado, restrito à função do indivíduo se alojar em algum lugar, e não
propriamente de habitar um lugar.

“O que é o habitar? Há, segundo ele [Heidegger], uma relação entre o construir, o habitar,
o pensar (e o falar). O habitar em sua essência é poético. É um traço fundamental da
condição humana, e não uma forma acidental ou uma função determinada. Comentando o
admirável poema de Hölderlin, “Poeticamente habita o homem”, Heidegger declara que a
palavra do Poeta não concerne em nada às atuais condições da habitação. Ela não afirma
que habitar queira dizer se alojar. Nós nos encontramos, diz Heidegger, diante de uma
dupla exigência e de um duplo movimento: pensar a existência profunda do ser humano
partindo do habitar e da habitação - pensar o ser da Poesia como um “construir”, como um
“fazer habitar” por excelência” (Lefebvre, 1970 p. 160, tradução nossa)14

Na obra intitulada, A Revolução Urbana (1999) Henri Lefebvre, expõe o processo histórico
em curso que anuncia o fim da contradição cidade/campo e o surgimento de uma nova
realidade, o urbano. Na formulação de sua teoria, o autor aborda novamente o debate
em torno do habitar e habitat. “Sem medo de recair em uma controvérsia já longa,
colocaremos fortemente em oposição o habitar e o habitat” (LEFEBVRE, 1999 p. 78). Em
outra obra, “O direito à cidade” (2016), defende que “o habitar torna-se essencial, a
cidade envolve o habitar; ela é forma, envelope desse local de vida “privada” (LEFEBVRE,

14 “ Qu’est-ce qu’habiter? Il y a selon lui un lien entre le bâtir, l’habiter, le penser (et le parler).
L’habiter, dans son essence, est poétique. C’est un trait fondamental de la condition humaine,
et non une forme accidentelle ou une fonction déterminée. Commentant l’admirable poème de
Hölderlin, ‘Poétiquement habite l’homme’, Heidegger déclare que la parole du Poète ne
concerne en rien les conditions actuelles de l’habitation. Elle n’affirme pas qu’habiter veuille
dire se loger. Nous nous trouvons, dit Heidegger, devant une double exigence et un double
mouvement: penser l’existence profonde de l’être humain en partant de l’habiter et de
l’habitation-penser l’être de la Poésie comme un ‘bâtir’, comme un ‘faire habiter’ par
excellence” (Lefebvre, 1970 p. 160).

• 9
2016 p.70). Sua análise expõe que o habitat foi instaurado pelo alto, aplicação de um
espaço global homogêneo e quantitativo obrigando o “vivido” a encerrar-se em caixas,
gaiolas ou “máquinas de habitar” e que para reencontrar o habitar e o seu sentido, para
exprimi-los, é preciso utilizar conceitos ou categorias capazes de ir em direção ao não
conhecido e ao desconhecido da cotidianidade.
Essa cotidianidade que se impõe nos modos de ocupação e diferentes maneiras de
apropriação do espaço, tem seus “inícios” na cidade industrial onde o processo de
industrialização é muito mais que a produção de mercadorias na fábrica, pois é também
o lugar de uma verdadeira transformação social. Nesse sentido, concordamos com o
referido autor, quando expõe que “o ser humano (não dizemos “o homem”) só pode
habitar como poeta. Se não lhe é dado, como oferenda e dom, uma possibilidade de
habitar poeticamente ou de inventar uma poesia, ele a fabricará à sua maneira”
(LEFEBVRE, 1999 p. 79). A sua maneira o habitar compõe o urbano, se condensa em
modos e formas diversas que teimam em fugir do enquadramento, pois reinventam o
viver como poesia.
Bresciani (2013) explica que à máquina o século XIX absorveu todo o poder
transformador, o que resultou no estranhamento do ser humano em meio ao mundo em
que vive. “O homem, em especial o trabalhador fabril e urbano em geral, arrancado dos
vilarejos e impelidos a levar uma vida agressiva nas cidades” (BRSCIANI, 1985, p.38). O
conjunto das transformações do habitar, reside justamente no momento em que ocorreu
a “explosão” das cidades, nelas a população proletária reinventará as suas habitações
fundamentalmente baseadas nas condições materiais.
Engels (2015), fará um uma análise sobre a questão revelando a relação entre a escassez
de moradias e as relações de produção capitalista. “O que se entende hoje por escassez
de moradia é o peculiar agravamento das más condições de moradia dos trabalhadores
em razão da repentina afluência da população às metrópoles” (ENGELS, 2015 p.38).
Em virtude desse processo de transformações, entre a segunda metade do século XIX e
os primeiros anos do século XX, o urbanismo, disciplina que trata da cidade e do território,
se constitui enquanto o arcabouço teórico resultado direto dos processos de
industrialização, segundo Choay (1965) a expansão da sociedade industrial faz surgir uma
disciplina que se distingue das artes urbanas anteriores pelo seu caráter reflexivo e crítico,
e por sua pretensão científica. No que diz respeito à moradia, formula-se um setor
específico, ao lado de outros, suscetível a acordos e soluções independentes, “a demanda
de habitações é vista, ao lado de outras necessidades sociais, como demanda particular,
mas substancialmente “destacada” (CALABI, 2015, p.41)
Diante desse cenário de crescente demanda por moradia nas cidades, a paisagem urbana
é uma amálgama entre a necessidade e as potencialidades econômicas. Compreendemos
o habitar enquanto um elemento que a partir da análise de Bourdieu (2013) sobre o
status social e as relações entre os grupos, expressa uma posição, um traço distintivo na
estrutura social. No caso do habitar denominado “invasões” e bidonvilles, esses traços

• 10
são amplamente visíveis, pois delimitam um espaço distintamente segregado nos centros
urbanos. Nesse sentido, percebemos sob a ótica de Certeau (2014) que o habitar também
pode se constituir de espaços multiformes, resistentes, astuciosos e teimosos, que
escapam a disciplina, pois a cidade não é mais um campo de operações programadas e
controladas, uma vez que “proliferam astúcias e combinações de poderes sem identidade,
legível, sem tomadas apreensíveis, sem transparência racional, impossíveis de gerir”.
(CERTEAU, 2014 p. 161).
Para Pádua (2019) o habitar como necessidade irrompe no habitat, contraditoriamente,
expondo a degradação do habitat. Por isso, o habitar não pode ser reduzido a cálculos,
às prescrições exatas dos planejadores, porque se coloca como produção propriamente
humana, a partir das necessidades do homem em seu processo de humanização e não a
partir de concepções apriorísticas do que deve ser o habitat.
O habitar em “invasões” e bidonvilles vai além da visibilidade autoconstruída nos centros
urbanos, foram tecidos em virtude da necessidade, impelidos pelo trabalho e
sobrevivência, concebidos como ponto de chegada, descanso, resprodução da vida. São
exemplos de como as cidades acolhem e excluem a partir das capacidades materiais,
encarnam em si as desigualdes interiorizadas na sociedade. É importante lembrar que
dentro de cada moradia, vivem indivíduos que necessitam habitar, que se relaciona nesse
habitar e a partir dele cria identidade e uma relação de existência com a cidade.

A “INVASÃO” DE SARAMANDAIA EM SALVADOR E OS BIDONVILLES DE


LORETTE EM MARSEILLE.

A cidade de Salvador, “construída para ser a capital do país, durante três séculos foi a
aglomeração urbana mais importante. “Seu porto, por onde escoava a produção da
agricultura comercial do Recôncavo, era o mais movimentado” (SANTOS, 2012, p.19).
Como capital regional, Salvador foi “uma das áreas urbanas mais antigas da América
Latina” (SOUZA, 2008, p.38).
O processo de industrialização, nas décadas de 1960 e 1970 com a implantação do
Complexo Industrial de Aratu, em 1967, e do Polo Petroquímico de Camaçari, em 1978,
será um importante elemento das transformações socioespaciais na capital baiana. Nesse
período “a população que era de 630.878 habitantes em 1960 cresce para 1.017.591 em
1970” (SOARES, 2009, p.89).
A “invasão” de Saramandaia foi formada durante a década de 1970, em uma região na
qual estavam em construção uma nova estação rodoviária, um shopping center e uma
importante rede viária que ligaria o aeroporto ao centro histórico. Um terreno público
nessa área foi ocupado por operários provenientes do interior da Bahia e Sergipe que
trabalhavam na construção do novo terminal rodoviário e de um viaduto.
Baseado nas pesquisas realizadas por Adriana Lima (2019), a ocupação do terreno foi

• 11
deflagrada pela proliferação de pequenos grupos anônimos em momentos diferenciados
e as ações de ocupação ocorreram em várias etapas, sendo que esses grupos não
possuíam uma conexão prévia entre si. As famílias eram compostas por casais jovens com
filhos pequenos e sujeitos a trabalhos instáveis (operários, pedreiros, lavadeiras,
domésticas, vendedores ambulantes).
Outro fator relevante é que a “ invasão” surge quase que concomitante às
estratégias do governo municipal em resolver o problema de habitação na cidade, com
a promulgação da Lei Municipal nº 2.181, de 1968, que ficou conhecida como Lei da
Reforma Urbana e o PLANDURB – Plano de Desenvolvimento Urbano da Cidade do
Salvador, em vigor durante a década de 1970. Essas duas medidas visavam uma melhor
organização do espaço urbano, no que diz respeito à posse da terra e a questão da moradia.
Outra estratégia municipal e estadual mais direcionada à habitação se concentrou na
criação “da empresa de Habitação e Urbanização da Bahia S.A. (URBIS, 1965 – 1987) e
o Instituto de Orientação às Cooperativas (INOCOOP, 1969-1994), empresas públicas que
durante o período de atuação, construíram habitações insuficientes para atender à
demanda”. (BALTRUSIS; MOURAD, 2014, p.271). Segundo Lima (2019), durante a
década de 1970, a URBIS construiu 12.500 unidades habitacionais, sendo que parte delas
foi destinada a parcelas da população que possuíam capacidade de endividamento, não
abrangendo, logicamente os moradores das “invasões”.
Ainda hoje, a localidade, que tem o nome inspirado em uma novela15 popular dos anos
1970, é constituída de habitações autocosntruídas, em grande parte desprovida de
serviços básicos de saneamento e infraestrutura. Além disso, sofre um forte estigma
social, assim como outros bairros populares tem a “fama” de ser perigoso.
Na cidade francesa, assim como em Salvador, a produção do habitar também se relaciona
às condições materiais dos que chegam à cidade. Embora estejam situadas em regiões
portuárias diferentes e culturalmente diversa, a moradia é o ponto de aproximação das
populações que tecem astuciosamente seu lugar.
Marseille16 é a segunda cidade mais populosa da França. A atividade marítima e comercial
a tornou o principal porto francês, o segundo porto mediterrâneo e o quarto porto

15 Como conjunção tênue entre a realidade concreta do esgarçamento urbano e da exclusão


social, ao imaginário coletivo articulado pelos produtos midiáticos da Rede Globo, a ocupação
localizada estrategicamente ao fundo da nova rodoviária de Salvador ganha em 1976 o nome
em homenagem a novela de grande sucesso da televisão na época, Saramandaia. (LIMA, 2019,
p. 34).
16 Tem cerca de 1,608,236 de habitantes, fica na região da Provença-Alpes-Côte d’Azur,
pertence ao 13º departamento de Bouches-du-Rhône que compreende além de Marseille, os
distritos de Aix-en-Provence, Arles e Istres. Marseille Population 2021. Disponível em:
https://worldpopulationreview.com/world- cities/marseille-population. Acesso em Mar/2021.

• 12
europeu. A cidade que perde apenas para Paris em população, é uma das mais pobres da
Europa e possui uma parte significativa de trabalhadores de baixa renda.
No início dos anos 1950, fábricas de telhas em Marseille começaram a contratar homens
de uma pequena vila no Norte da Argélia, Kabyle17, disponibilizando para esses
trabalhadores um terreno abandonado e alguns materiais para serem reutilizados. Essas
terras foram cedidas pela Société Générale de Tuilerie de Marseille aos operários
imigrantes contratados pelas fábricas, para que não precisassem construir novos
conjuntos habitacionais para os trabalhadores. Assim surgiu o bidonville de Lorrette, onde
viviam 158 famílias, próximo a fábrica de telhas, no centro de Saint-André18. Os homens
vieram primeiro e depois suas esposas se juntaram a eles, os filhos nascidos no território
francês fecham o ciclo de ocupação do bidonville.
Em Marseille, como em outras grandes cidades francesas, os bidonvilles foram
inicialmente habitações temporárias, autoconstruídas com a expectativa de que seus
habitantes no futuro pudessem adquirir moradias mais adequadas. Inscritas em um
contexto das moradias de trabalhadores imigrantes, experimentaram um “tratamento”
específico do poder público no contexto da renovação urbana entre uma concepção
higienista e de controle social de uma população percebida enquanto “perigosa” em um
período de descolonização.
Duas leis serão decisivas nesse processo, a “Lei de Debré de 14 de dezembro de
1964, cujo objetivo principal era a erradicação dos bidonvilles”19 (GASTAUT, 2006 p.4,
tradução nossa), e em 1970, “é votada a Lei Vivien, em homenagem ao Secretário de
Estado da Habitação, para facilitar a remoção de habitações insalubres” 20. (COHEN,
2011p. 34, tradução nossa).
Os bidonvilles de Saint-André foram extintos entre o final da década de 1990 e o início
dos anos 2000. Em Lorette, o terreno foi vendido pelas fábricas de telhas para a
construção de um centro comercial da Europa e os moradores foram orientados a deixar
suas habitações. Com o intuito de defender seus direitos, formaram uma Associação dos

17 Kabyle (francês) Kabília em portuguêsa é uma região montanhosa do norte da Argélia.


O seu nome provém do árabe al-qabā'il. Faz parte da cordilheira do Atlas e é banhada pelo
mar Mediterrâneo.
18 Saint-André, antigo Séon Saint-André, é um distrito do 16º arrondissement de Marseille,
ao norte da cidade.
19 La loi Debré du 14 décembre 1964 dont le principal objet était l’éradication des bidonvilles
(GASTAUT, 2006 p.4).
20 Le 10 juillet, la loi Vivien, du nom du secrétaire d’État au logement, « tendant à faciliter la
suppression de l’habitat insalubre » est votée (COHEN, 2011 p. 34).

• 13
Moradores de Lorette21 e apesar da associação não ter sido uma resistência o suficiente
para que permanecessem, já que a criação do centro comercial foi considerada uma
prioridade pela Prefeitura de Marseille, no entanto permitiu que eles recebessem uma
indenização em troca de deixarem suas casas. Alguns não queriam o dinheiro e
continuaram a resistir por um tempo, mas, eventualmente, eles foram despejados pelas
forças de segurança e todos foram realocados em uma pequena cidade com o nome de
seu antigo bidonville: Lorette.

Conclusão

A análise do habitar em invasões e bidonvilles nos oferece uma amostra de como se


constitui os processos de produção de moradia nos centros urbanos. O contexto histórico
dos movimentos migratórios nos países analisados são as importantes referências das
tranformações que resultaram nas paisagens urbanas atuais, principalmente no que diz
respeito ao habitar. Tanto o Brasil como a França a concentração da mão de obra resultou
numa demanda por moradia que não foi acompanhada por políticas públicas capazes
acolher os que chegavam a cidade. Tendo em vista que uma concepção de moradia ligada
a técnica (habitat), só foi implementada após a acomodação das comunidades em
moradias autoconstruidas, os mecanismos de adequação (planos de urbanísticos de
habitação, leis, implementação de conjuntos habitacionais, etc.) não serão suficientes, no
caso do Brasil, ou irão demorar muito tempo para serem implementados como na França.
Mesmo com as intervenções públicas percebemos que em Saramandaia a “invasão”, que
poderia a princípio ser um território provisório, se transforma em um bairro que se
autoestrutura em um espaço delimitado no centro da cidade, com uma comunidade
atuante e que embora sofra com os estigmas sociais, luta pela defesa e permanencia do
seu habitar e melhoria dos serviços públicos. Na França o período de permanência no

21 HÉNU, E. La Résorption du bidonville de Lorette, histoire de viés, histoire de villes. Persée -


Hommes et Migrations, nº1213, 1998, p. 89-97. Disponível em: La résorption du bidonville de
Lorette, histoire de vies, histoire de villes - Persée (persee.fr)

• 14
bidonville também fez surgir uma comunidade que lutou pela permanência no espaço, no
entanto, tiveram que ser realocados. Mesmo assim, a experiência de autocontruir não irá
desaparecer dos centros urbanos franceses e as moradias reservadas às comunidades
formadas sobretudo por uma população de imigrantes, não deixará de carregar em sí as
visões de segregação da sociedade francesa.

REFERÊNCIAS

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• 16
• 17
• 18
DISPUTAS, DESTRUIÇÕES E RE-SIGNIFICAÇÕES NO ESPAÇO
PÚBLICO NOS SÉCULOS XIX E XXI
DISPUTES, DESTRUCTIONS AND RE-SIGNIFICATIONS IN PUBLIC
SPACE IN XIX AND XXI CENTURIES
DISPUTAS, DESTRUCCIONES Y RE-SIGNIFICACIONES EN EL ESPACIO
PÚBLICO EN LOS SIGLOS XIX Y XXI

Cidade, política e cultura

MESENTIER, Leonardo
Professor Doutor da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal
Fluminense
lmesentier@id.uff.br
MOREIRA, Clarissa
Professora Doutora da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal
Fluminense
clarissamoreira@id.uff.br
RESUMO

O objetivo deste artigo é problematizar a relação entre o conteúdo simbólico


do espaço público e a dinâmica cultural e política nas cidades em plena
mutação nos dias de hoje, a partir de exemplos do século XIX e XXI. Cabe
recolocar a questão da importância do espaço público para a vida cultural na
cidade contemporânea, considerando o impacto crescente das tecnologias de
comunicação e após uma pandemia que aprofundou nossa dependência das
comunicações remotas. O artigo analisa ainda o modo pelo qual a dinâmica
cultural modifica o sentido simbólico do espaço público hoje e como estas
mudanças se relacionam com experiências anteriores na história da cidade.
Reflete ainda sobre como o simbolismo impregnado no espaço público
condiciona o desenvolvimento da dinâmica política e cultural na cidade
contemporânea. A partir de casos de disputa simbólica envolvendo a criação e
a destruição de artefatos urbanos como placas e esculturas públicas e da
própria configuração do espaço público, o artigo analisa a importância
renovada da gestão democrática do espaço público, tendo em vista a cada vez
mais urgente consolidação da democracia em seu mais amplo sentido.

PALAVRAS-CHAVE: Espaço público, Disputas simbólicas, Cultura urbana

ABSTRACT

This article aims to discuss the relationship established between symbolic


contents of public space and cultural and political dynamics in cities. What is
the importance of public space for cultural life in the contemporary city,
considering the rise of new communication technologies and after a pandemic
that deepened our dependence on remote communication? How does cultural
dynamics change the symbolic meaning of public space in this context? How
does the symbolism impregnated in the public space condition the
development of political and cultural dynamics in the contemporary city? Based
on cases of symbolic disputes involving urban artifacts such as street plates
and sculptures and the configuration of public space, this article seeks to
address the importance of public space for cultural life in the contemporary
city, and how it relates to the need of a democratic management of the public
space for the consolidation of democracy in the broadest sense.

KEYWORDS: Public space, Symbolic disputes, Urban culture

● 3
INTRODUÇÃO
Sacralizado na cidade colonial, teatralizado pela corte barroca, vulgarizado pela
industrialização, o espaço público se transformou para acompanhar as mudanças
históricas dos modos de urbanização. Que destino se reserva ao espaço público hoje,
numa sociedade pós-industrial, globalizada, tecnológica e em rede, com todos os riscos
e desafios dessas novas condições?

Por algum tempo, a pandemia de Covid-19 esvaziou o espaço público e a isso se associou
um grande impacto sobre uma série de atividades econômicas na cidade. A experiência
da restrição à vida no espaço público contrasta com um evidente desejo pelo espaço
público, manifesto no aumento da frequência em parques e praças como lugares
relativamente seguros para se estar fora de casa e, em alguns casos, repositórios do
contato possível com o mundo exterior.

Essa restrição à vida no espaço público contrasta também com a necessidade política de
influenciar a esfera pública através de manifestações, como as que ocorreram em plena
pandemia. Essas manifestações recolocam a necessidade de tomada do espaço público
como o lugar de se fazer ouvir, demonstrando que, apesar dos riscos, neste as urgências
e necessidades colocadas por grupos sociais e suas disputas pode se refletir de forma
mais permanente do que nas redes sociais.

Atento a essas questões, o objetivo deste artigo é discutir aspectos centrais da relação
que se estabelece hoje entre o conteúdo simbólico do espaço público e a dinâmica cultural
e política nas cidades. Para tal, em um primeiro momento, o artigo revisita conceitos
fundadores relativos ao tema do espaço público. Em seguida, confronta estes debates
conceituais com transformações do espaço público na história urbana da cidade do Rio de
Janeiro, como as que ocorreram na Praça XV de Novembro e na Cinelândia no século XX.
Finalmente, relaciona a teoria ao debate sobre situações atuais onde a importância do
espaço público se reafirma em conflitos envolvendo esculturas públicas e placas
homenageando personagens públicos relevantes.

Espaço público e esfera pública

O espaço público constitui a parcela do ambiente urbano comum e, por ser lugar de
convivência e de confrontação dos diferentes sujeitos sociais, é um bem comum (Harvey,
2014) necessário à vida democrática e à existência da democracia. O espaço público é,
portanto, parte integrante daquilo que Habermas (1984) chamou de esfera pública da
vida social. Para Habermas (1984), a esfera pública aparece como instância mediadora

● 4
das relações entre os poderes constituídos e a sociedade civil e de determinação daquilo
que predominará como interesse público.

Nas sociedades democráticas, é na esfera pública que se desenvolve o debate sobre como
deve atuar o Estado frente aos problemas, às questões e aos temas de interesse dos
diferentes grupos que formam a sociedade, de modo a encontrar um caminho de
legitimação das políticas públicas. A esfera pública é composta por mídia, redes sociais,
parlamento, espaços de debate e, com destaque, o espaço público. A esfera pública é,
portanto, um espaço comunicacional e o espaço público a integra também como um
espaço da comunicação social (Habermas, 1984).

Por ser espaço de comunicação social, o espaço público interage de forma relevante com
a vida cultural das cidades. A comunicação social se realiza a partir da cultura, enquanto
compartilhamento de sentidos e significados. Por outro lado, a cultura, para gerar
sentidos e significados comuns, depende de processos comunicacionais, que se realizam
apoiados por meios de comunicação. O espaço público, como local de encontro, se coloca
também como lugar de comunicação na cidade, envolvendo discursos verbais e não
verbais. Nas manifestações no espaço público, por exemplo, o significado está presente
não só na fala dos manifestantes, mas também em roupas, atitudes, cartazes e outras
formas de expressão que fazem parte do compartilhamento cultural entre os que ali estão.
O mesmo ocorre nas festividades no espaço público, como o carnaval, onde uma intensa
comunicação social ocorre, muitas vezes tendo caráter igualmente político.

O espaço público é, portanto, o lugar privilegiado da manifestação política e cultural, que


pode alcançar significado pela expressão da coletividade e superação do individual, numa
dimensão que as redes sociais, através da Internet, ainda não produzem, por serem
gerenciadas por plataformas mediadoras da comunicação que estão sob controle privado
e que expressam a manifestação coletiva apenas como somatório de manifestações
individuais. Por outro lado, essas redes deram uma nova dimensão a tudo que ocorre no
espaço público. O que antes se restringia ao âmbito da vida pública local, pode agora
circular pelo mundo através dos caminhos da Internet.

A esfera pública permanece como o lugar de debate das orientações políticas da


sociedade, incluindo, é claro, a construção de políticas públicas. Ao tratar da relação entre
espaço público e mídias, citando como exemplo as manifestações de junho de 2013 no
Brasil, Moraes e Rosanelli (2019) observam que esse processo pode ter sido claramente
“impulsionado a partir das redes sociais (...) expandindo-se em ritmo ainda mais

● 5
acelerado à medida que ganhavam maior visibilidade na mídia tradicional”, sem deixar
de ter o espaço público como suporte fundamental.

Hoje as redes sociais moldam fortemente a esfera pública; e, de fato, o espaço público,
como parte integrante da esfera pública, é atravessado pelas disputas que tomam as
redes sociais e a mídia. Essas novas relações, longe de representar uma fragilização do
espaço concreto da cidade, trazem a ele uma nova dimensão, como analisaremos mais
adiante no artigo. Na era das comunicações remotas, na contramão desse novo
protagonismo do espaço público, observa-se seu abandono pela esfera governamental,
especialmente nas periferias urbanas.

Disputas simbólicas: as praças e as memórias

Segundo Halbwachs (2006), a memória coletiva está presente em narrativas


compartilhadas pelo grupo social e na configuração dos lugares onde se deram suas
vivências comuns, que se associam às práticas coletivas em lugares de referência. As
vivências de práticas coletivas e os lugares onde ocorrem formam uma estrutura que é
fundamental para a existência da memória coletiva, sendo esta a base fundamental das
memórias individuais.

As cidades e o espaço público das cidades são, portanto, o lócus por excelência das
memórias coletivas e, por isso mesmo, o advento da urbanização da vida social ampliou
a relevância das memórias coletivas para a memória individual. A vida urbana produziu
uma diversidade de experiências coletivas pela combinação de grupos sociais, lugares e
momentos, gerando múltiplas memórias vivenciadas por diferentes grupos, em diferentes
lugares. Essa profusão de acontecimentos certamente gera acúmulo e sobreposição de
memórias coletivas para os grupos sociais que se apropriam do espaço público e essas
memórias se associam ao significado simbólico do espaço público. A própria noção de
lugar coletivo remete ao espaço público como repositório dos afetos comuns. A formação
e a reprodução das memórias coletivas nas cidades têm no espaço público uma estrutura
básica de sua dinâmica.

Se os lugares públicos onde se realizam atos e vivências coletivas são fundamentais para
as memórias dos grupos sociais nas cidades, então as praças, por serem lugares para
onde os atos e as vivências coletivas tendem a confluir, condicionam profundamente a
memória nas cidades. Praças são, portanto, lugares centrais da construção da memória
coletiva, constituindo-se em um patrimônio também afetivo, sejam elas reconhecidas
enquanto tal, ou não. Pelo seu poder de acionar memórias coletivas, as praças se

● 6
constituem em lugares patrimoniais ou potencialmente patrimoniais. Nesse sentido, o
projeto de urbanismo precisa considerar a importância da memória coletiva para as
relações intersubjetivas e, mesmo, para a saúde mental dos habitantes, dada a sua
relevância para a construção das subjetividades individuais e de grupos.

Foto 1: Coroação do Imperador D. Pedro II, em 18 de julho de 1841. Gilberto Ferrez. Adaptado de
Ferrez (1984, p.54)

Com relação ao Rio de Janeiro, é possível indicar o caso do Terreiro do Paço, na Praça XV
de Novembro, como lugar onde ocorreu uma mudança relevante na configuração do
espaço público, com reflexos sobre a memória coletiva na cidade (Foto 1). Durante o
período imperial, o Terreiro do Paço era o lócus onde se realizavam as cerimônias da corte
imperial, com caráter de representação do poder imperial. Para que essas cerimônias
pudessem se realizar, com séquitos em cortejo, se fazia necessário que o espaço central
da praça fosse desobstruído e também que fosse preservado, tanto quanto possível, o
percurso entre o Paço Imperial e as igrejas presentes naquele espaço, dada a relação
existente entre o Estado imperial e a Igreja católica, naquele período.

Depois que a República foi instaurada, na área correspondente ao Terreiro do Paço foi
colocada uma estátua do General Osório, cercada de árvores (Foto 2). A nova
configuração da praça, intencionalmente ou não, muda a configuração do espaço de tal
forma que só com exercício de imaginação se poderá recordar o espaço dos ritos da
representação imperial. A capacidade da praça, enquanto suporte da memória imperial,

● 7
se dissolveu na percepção cotidiana do cidadão comum. Nesse episódio, se percebe
claramente que a imagem do ambiente construído se traduz em uma dimensão simbólica
do espaço que é ao mesmo tempo um alvo e um instrumento de poder.

Foto 2: Gilberto Ferrez. Praça XV com a estátua do General Osório e o novo paisagismo Adaptado de
Ferrez (1984: 72)

Outro exemplo de reconfiguração do espaço público que teve importância para a


reconfiguração da memória e da identidade da cidade do Rio de Janeiro foi o caso da
retirada do Palácio Monroe da Cinelândia. No Rio de Janeiro, a Cinelândia é um lugar que
se associa aos carnavais, às manifestações políticas e ao encontro com os amigos após o
trabalho. Um espaço público impregnado de referências de memórias coletivas que se
vinculam ao significado simbólico do lugar. A Praça Floriano, chamada de Cinelândia, é
um exemplo clássico de uma praça que está fortemente ligada à memória política da
cidade, por ser o local de destino de muitas manifestações. Ela também é um marco
fundamental da memória cultural da cidade.

O Palácio Monroe abrigou o Senado Federal entre 1925 e 1960, mas o edifício permaneceu
até o ano de 1976. Já se acreditou que o Monroe foi demolido em função das obras de
construção do metrô, porém o traçado deste foi desviado para não afetar as fundações
do palácio. O desaparecimento do Monroe da paisagem dissolve a imagem da Cinelândia
como lugar associado ao Estado Nacional. Para a imagem do Rio de Janeiro, por
consequência, o sentido de capital do governo nacional do Brasil também se perdeu,
afetando os processos cotidianos de reativação desse sentido na memória da cidade
(Fotos 3 e 4).

● 8
Foto 3 e 4 ‒ Palácio Monroe. Arquivo Virtual,
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro e
Palácio Monroe, Biblioteca Nacional, entre 1911-
1922.

Gordon Cullen (1996) argumenta que a imagem da cidade se produz a partir de uma
relação entre elementos presentes na paisagem urbana, num processo onde a mudança,
acréscimo ou supressão de um elemento altera o significado dos demais. A partir dessa
formulação de Cullen, analisando o caso do Porto Maravilha, Mesentier e Moreira (2014)
argumentam que a intervenção na área do Porto do Rio de Janeiro gerou uma

● 9
transformação no seu significado a partir da demolição de um viaduto que atravessava
toda a área, a Avenida Perimetral; da reurbanização das vias; e da implantação do Museu
de Arte do Rio de Janeiro (MAR) e do Museu do Amanhã. Antônio Colchete nota ainda que
o foco na transformação de espaços públicos a partir da criação de novos atrativos
culturais ‒ murais de grafite, como os de Eduardo Kobra; esculturas públicas como da
“Cidade Olímpica”; além de exemplos de patrimônio histórico recuperado ‒
transformaram-se em modos de comunicar à cidade (COLCHETE et al., 2020) o sentido
de área transformada (Foto 5).

Inserido no mesmo processo, porém surgindo de um modo que não estava previsto
inicialmente no Projeto Porto Maravilha, ocorreu a “descoberta” do Cais do Valongo.
Construído no início do século XIX, o Cais do Valongo foi local de desembarque e comércio
de escravizados africanos até 1831 (LIMA et al., 2016). Durante os vinte anos de sua
operação, entre 500 mil e um milhão de escravizados desembarcaram no Cais do Valongo.
Estima-se que tenha sido a maior porta de entrada de escravizados nas Américas e, por
isso, recebeu o título de Patrimônio Histórico da Humanidade pela UNESCO. A descoberta
do Cais implicou em uma mudança na configuração urbana da região portuária que
evidenciou e sublinhou significados presentes na área. O Cais do Valongo tornou-se uma
referência da cultura afro-brasileira no Rio de Janeiro, sublinhando este aspecto na área
onde está inserido.

O cais foi reformado em 1843, como parte dos preparativos para o desembarque da
Princesa Teresa Cristina de Bourbon, futura esposa do Imperador D. Pedro II, passando
a ser chamado de Cais da Imperatriz (LIMA et al., 2016). Nesta remodelação, operou-se
um verdadeiro apagamento da paisagem anterior, a fim de oferecer à aristocracia um
cenário distinto do Cais do Valongo. O que vemos hoje no Porto do Rio é uma sobreposição
de referências desses momentos históricos e a prova de que, ao longo da história,
ocorreram várias intervenções urbanísticas com o objetivo de operar no espaço público
apagamentos da imagem de práticas sociais escravistas, ainda que estas mesmas práticas
fossem as responsáveis pela sustentação do sistema político-econômico da época.

● 10
Foto 5 : VLT Rio, Praça Mauá, Mario Roberto Durán Ortiz, 2016.

Um exemplo mais recente, nesse mesmo sentido, foi a supressão total da Praça Américo
Brum, espaço público referencial para a comunidade do Morro da Providência, na região
do Porto do Rio de Janeiro. Essa praça foi destruída para a construção de um teleférico,
que funcionou por pouco mais de seis meses, durante o período dos Jogos Olímpicos. A
destruição dessa praça gerou diversas manifestações a partir de 2011. A praça, com
papel relevante na memória social e urbana da mais antiga favela existente no Rio de
Janeiro, representou uma perda que até hoje é lembrada e lamentada por moradores.

A configuração morfológica das praças se constitui em relevante suporte das memórias


coletivas, sendo, portanto, elemento central na dinâmica cultural das cidades. Mudar a
configuração urbanística de uma praça afeta a capacidade do lugar de acionar lembranças
e de possibilitar novas vivências a elas relacionadas. A modificação de uma praça de
forma equivocada pode contribuir para a produção do esquecimento coletivo e,
consequentemente, para a desagregação de certas memórias coletivas. Tal tipo de
transformação, pelo impacto que venha a ter sobre as identidades coletivas, pode até
mesmo induzir à desagregação de certos grupos sociais. Trata-se, portanto, de um objeto
central para o projeto de urbanismo, por sua relevância para a preservação das memórias
e identidades sociais, que se associam aos processos de construção da sociabilidade na
cidade.

● 11
Disputas simbólicas: homenagens, esculturas e placas

A arte e o patrimônio cultural conferem significado ao espaço público. Estátuas, obeliscos,


colunas e templos participam do ambiente construído das cidades, compondo espaços
públicos. Esses objetos não são apenas decorativos, mas também objetos dotados de
sentido cultural. Como artefatos de sentido cultural, através de sua imagem esses objetos
comunicam valores, crenças e utopias, gerando significados do passado, do presente e
do futuro, que contribuem para modelar o imaginário social, no sentido da reprodução do
ordenamento cultural que os produziu.

Para Correa (2005), a força dos monumentos nas cidades depende de três fatores: sua
localização, sua escala e sua interconexão com práticas culturais e políticas. Esse autor
assinala que “o alcance espacial dos monumentos é limitado face aos modernos meios
eletrônicos de comunicação, que instantânea e simultaneamente produzem imagens
impregnadas de intenções” (CORREA, 2005). No entanto, transformações tecnológicas
possibilitaram o aumento da produção de imagens sobre a cidade, ampliada a partir do
uso de celulares com câmeras fotográficas, da prática social de realizar fotos e selfies, e
do desenvolvimento das redes sociais da Internet, vem ampliando o alcance da difusão
das imagens das cidades de forma não coordenada, com alcance definido pelos meios
informáticos de comunicação.

Em 11 de junho de 2020, os jornais noticiaram que um grupo de manifestantes ligados


ao movimento Black Lives Matter tinham derrubado e lançado no Porto de Bristol uma
estátua que homenageava Edward Colston, um britânico comerciante de escravos
(CBSNEWS, 2020). Na cidade inglesa de Bristol, a estátua foi arrancada do seu pedestal
durante protesto de manifestantes anti racistas, desencadeado pela morte do afro-
americano George Floyd, assassinado por um policial branco nos Estados Unidos. Essa
ação contribuiu para alimentar um debate mundial sobre estátuas no espaço público que
constituem símbolos do passado colonial e escravocrata. Outras estátuas se tornaram
alvo de disputas em torno do racismo. A discussão tomou as redes sociais também no
Brasil, originando uma pluralidade de debates e visões sobre o que celebrar, o que
destruir e o que arquivar como informação relevante de tempos passados (MOREIRA,
2020).

O ato da destruição, em si, revela a revolta contra os traços racistas ainda persistentes
na cultura ocidental. Quando se referencia o espaço público com figuras como a de um
sequestrador que praticava assassinatos e outros atos violentos, se está construindo o

● 12
ordenamento cultural da cidade através do espaço público. Nessas circunstâncias, as
percepções sociais da escravidão são construídas a partir de uma estrutura cultural racista
e ganham um caráter estruturante que garante a sua reprodução.

Emerge desses atos a própria relevância do espaço público para as cidades. Sendo o foco
deste artigo a questão do espaço público, o mais importante neste âmbito é entender
como esses atos políticos, em relação às estátuas de escravocratas e colonialistas, são
reveladores da natureza do espaço público, enquanto lugar de afirmação e de disputa
pelo ordenamento cultural das cidades. Observa-se o quanto é relevante, para as cidades,
a relação entre a imagem de elementos simbólicos, como estátuas, obeliscos, colunas e
templos que participam do ambiente construído, impregnando o espaço público de
significado.

Mas o caso citado não foi o único de uma disputa envolvendo estátuas no espaço público.
Por exemplo, em 2013, em Kiev, na Ucrânia, manifestantes derrubaram uma estátua de
Lenin durante protesto contra o governo. Algumas estátuas de Lenin já haviam sido alvo
de protestos durante o processo de dissolução da antiga União Soviética. Mas, na
Alemanha, 24 anos após a queda do muro de Berlim, as autoridades alemãs resolveram
recuperar uma estátua de Lenin que havia sido enterrada. Em 2020, a estátua foi
inaugurada novamente na cidade de Gelsenkirchen, na Alemanha. As autoridades da
cidade tentaram banir a estátua, mas a tentativa foi anulada pela justiça do país·.

No Brasil, não é a primeira vez que, num contexto de mudanças de valores políticos-
culturais, as estátuas presentes no espaço público são objeto de uma ação política. É
possível citar, por exemplo, o caso de uma estátua do poeta espanhol Garcia Lorca, que
foi objeto de uma explosão, em 1969, durante o período militar, realizada por grupos de
ultradireita. Posteriormente, em 1979, alunos da Universidade de São Paulo retiraram a
estátua do depósito municipal da prefeitura de São Paulo, em seguida a recuperaram e a
colocaram nos pilotis do Museu de Arte de São Paulo (MASP).

Outro caso, também ligado ao período da ditadura militar e da luta pela redemocratização
no Brasil, foi referente ao Memorial 9 de Novembro, um monumento de autoria do
arquiteto Oscar Niemeyer, construído na cidade de Volta Redonda-RJ, em homenagem a
três operários mortos em 9 de novembro de 1988. O monumento foi inaugurado em 1º
de maio de 1989 e no dia seguinte, na madrugada, o local sofreu um atentado a bomba.
O monumento foi parcialmente destruído. O próprio Niemeyer pediu que a obra fosse
reerguida, mas mantendo parte de sua destruição, como testemunho histórico. Porém,
no período em que esses casos ocorreram, as práticas de produção e veiculação de

● 13
imagens de maneira difusa e espontânea a partir de celulares e redes de Internet ainda
não tinham se desenvolvido, o que restringiu o alcance dos debates aos veículos das
grandes empresas de comunicação.

Dois outros episódios recentes envolveram marcadores simbólicos do espaço público que
implicaram em disputas simbólicas, mudanças e reafirmações de valores. Após o
assassinato da vereadora Marielle Franco, em março de 2018 ‒ figura pública que, além
de intelectual de muitas outras faces, simbolizava diversos grupos sociais excluídos:
mulher, bissexual, negra e com origem social em uma das favelas cariocas, a Maré ‒
foram feitas placas de rua com seu nome e coladas em lugares da cidade. A iniciativa dos
grupos de protesto pelo assassinato foi objeto de uma retaliação de grupos de extrema
direita e a placa com o nome da deputada foi quebrada publicamente na praça onde foi
colocada. Em 2021, uma placa foi finalmente inaugurada no Rio de Janeiro, na Cinelândia,
próxima à Câmara de Vereadores, marcando assim a oficialização dessa homenagem.

Com o mesmo sentido de disputa de significado, em 2021, quando do falecimento do ator


e humorista Paulo Gustavo, após uma longa hospitalização decorrente de contágio por
Covid-19, foi realizada uma homenagem através da mudança do nome de uma das ruas
mais importantes de Niterói, onde ele morava. As ações no espaço público reverberaram
nas redes e mídias virtuais e vice-versa. Em ambos os casos observa-se que, ao mesmo
tempo em que muitas questões se desenrolaram no âmbito virtual, o suporte concreto e
permanente que o espaço público pode oferecer à disputa pela construção simbólica e
política da sociedade permaneceu altamente relevante.

Na sociedade se configuram hegemonias político-culturais que duram um período de


tempo, dando certa estabilidade a valores culturais. Porém, essa estabilidade se rompe
em algumas circunstâncias. O ato político em relação a um artefato (estátua) no espaço
público é revelador de tensões culturais próprias de períodos de disputa político-cultural,
indicando que sua presença de artefatos que expressam representações culturais está
sujeita a transformações.

A estátua passa a ser objeto de disputa e deixa de ser tolerada ou considerada


representativa quando certo “estado de equilíbrio” entre as identidades sociais deixa de
existir. A disputa revela a relação entre as manifestações no espaço público das cidades
e a construção social das dominações e contra-dominações culturais, e traz à tona
elementos que antes passavam despercebidos para a maioria da sociedade. Na
contemporaneidade, essas disputas ganham projeção pela difusão de imagens da cidade,
à escala global, através de redes de comunicação de Internet.

● 14
Considerações Finais

Observa-se que o espaço público guarda, na sua configuração, referências de memórias


coletivas que dão base a identidades sociais. Com reflexos sobre a dinâmica cultural das
cidades, esses significados interagem com a dinâmica política da cidade. Por outro lado,
as memórias e identidades coletivas também se fazem referenciar por estátuas, obeliscos,
placas e outras formas de homenagear personagens da história, e contribuem para o
significado do espaço público.

Para Menezes, “a cidade é artefato, é campo de forças e é imagem”, e essas “três


dimensões” estão “solidariamente imbricadas, cada uma dependendo profundamente das
demais” (MENESES, 1996, p.148-149). Estátuas, obeliscos, placas e outras formas de
significar o território e a própria configuração dos espaços públicos, por serem artefatos
portadores de significado constroem, através da imagem, o significado do espaço público,
em diversos níveis. Pela relevância dessas imagens para a dinâmica cultural das cidades,
o espaço público tende, portanto, a ser disputado e moldado pelas forças políticas que

atuam sobre a cidade. Como observou Monnet: “Aquele que manipula os símbolos pode

manipular os processos de identificação e pode, assim, influenciar na constituição do


grupo que legitima o exercício de poder” (MONNET, 1998).

O espaço público aparece hoje tensionado pelo acirramento das disputas no campo de
forças das cidades. Entre as razões para esse acirramento aparecem, de um lado, uma
instabilidade nas relações entre essas forças, que se associa a um processo de
transformação de identidades sociais; e, de outro, o avanço da reprodução técnica das
imagens e o aumento da capacidade de sua veiculação socialmente difusa, que amplifica
o valor da imagem do espaço público da cidade, tanto para a atração de fluxos nacionais
e internacionais de consumidores e capitais, quanto nas disputas político-ideológicas no
campo de forças da cidade.

Assim, o que constrói a imagem do espaço público, dando significado ao que em uma
sociedade democrática a todos pertence, precisa ser representativo de valores aceitos
como comuns. Para se colocar um marcador simbólico no espaço público, o objeto precisa
corresponder aos valores que estão predominando na esfera pública em um determinado
momento, sendo coletivamente aceitos. Mas, no curso da história, as mudanças político-
culturais tornam inaceitável aquilo que antes era considerado natural e desejável o que
antes não era. O dissenso relativo ao espaço público evidencia, portanto, uma

● 15
transformação político-cultural na cidade, que deve ser objeto de atenção da gestão
urbana.

As questões sobre o que confere significado ao espaço público são reveladoras, portanto,
da relação entre a esfera político-cultural e o espaço público das cidades. As disputas pelo
espaço público também indicam que uma transformação sociocultural está em curso.
Diante dessa transformação, cabe indagar, portanto, se a temática do espaço público tem
encontrado, no Brasil, a devida centralidade nos debates, tanto no que diz respeito às
políticas públicas e à gestão das cidades, quanto no debate acadêmico sobre urbanismo
e projeto urbano contemporâneo. Fortalecida pela evidência de sua importância para o
cotidiano da vida social, dada a falta que fez em tempos de pandemia, o espaço público
demanda agora maior atenção, tanto no campo do urbanismo quanto no da gestão
urbana.

Seja por meio da sua supressão direta, ou de normas que restrinjam o seu uso, como os
toques de recolher; seja por meio de grades cercando praças, ou pregos colocados no
chão sob os viadutos, para que eles não sirvam de abrigo; seja por meio da prática da
violência por parte do Estado ou de grupos paramilitares, as interdições, privatizações ou
supressões do espaço público constituem um cerceamento à democracia. Cabe
considerar, portanto, que para a vida democrática, o espaço público representa a
possibilidade da existência, da presença, da manifestação e da publicidade dos pontos de
vista daqueles que são completamente desprovidos de espaço na cidade e de meios para
interferir nos processos políticos. É onde esses podem se fazer ouvir com maior ênfase.
Mesmo diante das capacidades ampliadas de comunicação via redes sociais, percebe-se
que o espaço público da cidade se mantém como palco e arena da vida política, como
lugar do encontro, do apoio mútuo ou do tensionamento político, permanecendo central.

O espaço público é bem comum (HARVEY, 2014) de uso comum. Frente ao aumento da
relevância do espaço público para a sociabilidade urbana, as disputas pelo espaço público
falam de sua vitalidade, de sua necessidade, de seu papel de protagonista na
transformação de valores e na construção de uma sociedade mais adequada aos tempos
atuais. Uma sociedade com mais pluralidade e respeito às diversas histórias e memórias
sociais. A democracia precisa preservar o espaço público, para preservar a si mesma e
impedir que ações políticas de controle das potências transformadoras do espaço público
venham a constranger a própria democracia. O controle do espaço público necessita,
portanto, existir a partir de instâncias democráticas.

Bibliografia

● 16
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GERBASE, F. Moradores do Morro da Providência protestam contra interdição de praça.
19/07/2011 - 00:00 / Atualizado em 03/11/2011 - 18:24, consultado em 7 de julho de

● 17
2021. https://oglobo.globo.com/rio/moradores-do-morro-da-providencia-protestam-
contra-interdicao-de-praca-2713856
Marielle Franco recebe mais uma homenagem internacional e terá rua com seu nome em
Lisboa 27 In Revista Forum, julho 2019. https://revistaforum.com.br/mulher/marielle-
franco-recebe-mais-uma-homenagem-internacional-e-tera-rua-com-seu-nome-em-lisboa/
Consulta em 25 de junho de 2021
Statue of U.K. slave trader fished from harbor amid backlash over another of Scouts
founder. CBS News. https://www.cbsnews.com/news/edward-colston-statue-out-bristol-
harbor-scouts-robert-baden-powell-removal-planned/ Updated on: June 11, 2020 / 11:04
AM / CBS/AP . Consultado em 18 d ejulho de 2021.

● 18
DOS ESPAÇOS OPACOS AOS ESPAÇOS LUMINOSOS
FROM OPAQUE SPACES TO LUMINOUS SPACES/ DE ESPACIOS
OPACOS A ESPACIOS LUMINOSOS

Eixo temático: Cidade, política e cultura

CARDOSO, Reginaldo Luiz


Pós-doutorando INCT-LabEspaço_IPPUR/UFRJ/FAPERJ
regiscardoso.com@gmail.com
RESUMO

Os conflitos urbanos decorrentes do fenômeno da interação do capitalismo


financeiro global e as respectivas populações localizadas necessitam de mais
investigação. O presente artigo tem como objetivo levantar questões que se
relacionam com diferentes campos do saber: o urbanismo, o direito à cidade
como direito humano e a economia política da inovação tecnológica aplicada à
cidade. Toma como objeto de estudo a cidade de Ouro Preto (MG). Para isso,
o escopo de análise tem que, necessariamente, adentrar o político e o social
enquanto campos produtores de subjetividades que, se por um lado, deixam-
se capturar por dispositivos normativos alheios ao interesse comum, por outro
lado, criam maneiras de se tornarem protagonistas de mudanças coletivas. E
esse protagonismo passa pela conquista do direito à cidade mediante o que se
denominou cidadania insurgente.

PALAVRAS-CHAVE: urbanismo, direito à cidade, economia política da


inovação tecnológica aplicada à cidade, cidadania insurgente

ABSTRACT

Urban conflicts resulting from the phenomenon of the interaction of global


financial capitalism and the respective localized populations need further
investigation. This article aims to raise issues that relate to different fields of
knowledge: the urbanism, the right to the city as a human right and the
political economy of technological innovation applied to the city. It takes as an
object of study the city of Ouro Preto (MG). For that, the scope of analysis has
to necessarily enter the political and the social as subjectivity-producing fields
that, on the one hand allow themselves to be captured by regulatory provisions
beyond the common interest, on the other they create ways to become
protagonists of collective changes. And this protagonism involves the conquest
of the right to the city through what was called insurgent citizenship.

KEY-WORDS: urbanism, the right to the city, political economy of


technological innovation applied to the city, insurgent citizenship
Introdução

Este artigo1 busca compreender o processo de ocupação territorial urbana brasileira


contemporânea, a partir do estudo de acontecimentos recentes na cidade de Ouro
Preto (MG) decorrentes da concessão plena 2 do sistema de água e esgoto a um
consórcio que tem como ator principal uma incorporadora transnacional originária da
Coreia do Sul. Tal análise fundamenta-se na premissa de que o exame da Economia
Política de projetos urbanísticos permite‐nos constatar a forma com que os atores
políticos, independentemente do nível escalar em que estejam operando ‒ municipal,
estadual, federal ou transnacional ‒, tornaram‐se reféns da nova movimentação do
capital inaugurada com o neoliberalismo, o verdadeiro nome da globalização.
Focando no que se denominou “mundo do indistinto” 3, no qual práticas e dinâmicas
resultam de processos decisórios, buscaremos observá‐los: primeiro, no processo
pouco esclarecido da privatização4 do sistema de água e esgoto da cidade de Ouro
Preto, Patrimônio Mundial, alheio ao órgão responsável pelo saneamento de água e
esgoto do estado de Minas Gerais ‒ Companhia de Saneamento de Minas Gerais -
COPASA ‒ , adquirido por uma empresa transnacional sul-coreana, que se encontra
em processo de fundação de alicerces de negócios e compliance no território
brasileiro; segundo, no processo de implantação do novo modelo de espaço público
que se experimenta em uma cidade histórica tricentenária, e que resultou em um
impasse entre os cidadãos, que alegam que foram mal-informados sobre a realidade
do projeto, e a empresa transnacional, mandante do projeto; terceiro, identificar de
que forma atores políticos e empresas nacionais e internacionais se associam e

1 Este artigo é o resultado parcial do projeto de pesquisa que o autor está desenvolvendo no
estágio de pós-doutoramento, desde abril de 2022, junto ao INCT-LabEspaço/IPPUR/UFRJ com
financiamento da FAPERJ. O projeto de pesquisa engloba também a cidade de Mariana (MG),
que sofre processo semelhante, embora gerando problemas e reações de outra ordem.

2 Concessão plena consiste em “contrato de delegação para a prestação de serviço público de


saneamento com a empresa privada, concessionária, no qual transferem para a contratada
toda a operação e manutenção do sistema de abastecimento de água e esgotamento sanitário,
e a responsabilidade de realizar os investimentos necessários por determinado período,
durante o qual a concessionária será remunerada por meio da cobrança de tarifas aos usuários.
Na concessão plena, os ativos não deixam de pertencer ao poder público, mas ficam sob a
responsabilidade da empresa privada até o fim do período de concessão” (CONCESSÃO, 2022).

3
Devo este termo à Prof.ª Maria Célia Paoli.

4Embora o processo tenha sido o de uma concessão plena, a população entende e se refere à
mesma como privatização, dado o longo período do contrato: 35 anos.

• 1
mobilizam parceiros locais e regionais para exercerem o controle do território,
constituindo uma nova geografia física, econômica e política, que decompõe o
território nacional em novos fragmentos “glocalizados”.

A partir desta temática central, podemos descortinar um conjunto de objetivos


pertinentes ao estudo proposto, necessários para que seja elucidado o nosso
problema. O objetivo principal é investigar a concepção, desenvolvimento e
operacionalização do direito à cidade, frente à reconfiguração que o território urbano
citado está sendo submetido. Por fim, pretendemos ainda analisar as reações dos
cidadãos, reconhecidas desde já como práticas de cidadania insurgente, no sentido
de dispositivo político de transformação democrática do espaços urbano.

Interconexões

Qual seria a relação entre um edifício inteligente (intelligent building) em Seul, Coréia
do Sul, projetado pelo starchitect Marshall Strabala e a Igreja São Francisco de Assis
em Ouro Preto, projetada por Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho? Ou, como uma
empresa transnacional do outro lado do mundo ajudou involuntariamente a eleger,
em 2020, um prefeito na cidade de Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil?

A questão que se apresenta inicialmente é a da técnica e dos meios sociotécnicos. O


que são, o que acarretam à vida das pessoas e ao seu entorno? Uma vez determinado
e delimitado esse parâmetro analítico, vem a questão da relação desses meios com
as pessoas e, consequentemente, com as cidades.

Toda técnica se faz como um dispositivo que permite “ganhar tempo”. Como atenta
Santos (1989, p. 123), “fazer através da ciência e do trabalho, a obra do tempo”.
Então, em uma sociedade tecnológica, a tônica é “ganhar tempo”. Mas esses
dispositivos podem ser apenas instrumentos ‒ um prolongamento do corpo humano
‒, ou máquinas, que estão muito além dos instrumentos: substituem, ocupam o lugar
do corpo, “instaurando uma nova relação” (SANTOS, 1989, p. 127). Dessa maneira,
estamos falando não apenas de fronteiras, mas de traspassamento de fronteiras. Se
esse movimento começa a ocorrer com mais e mais intensidade, então, temos redes.

Há uma imbricação tal entre redes e fronteiras, que uma não tem sentido sem a
outra. Como assinalou Mitchell (2013, p. 173), “essas estruturas de fronteira e rede
são duplos topológicos e funcionais uma da outra”. Tomando a pele natural dos
corpos como a “camada zero de uma estrutura de fronteira embutida”, conclui:
“muros, cercas e peles separam; caminhos, tubulações e fios conectam” (IDEM, p.
173). O “ganho de tempo” se acelerou, e um velho dispositivo passou a transpor
fronteiras com uma aceleração cada vez maior: a informação. E esse dispositivo não

• 2
somente gera valor, mas se torna o valor. Além disso, “redes de diversos tipos e
escalas estão integradas em complexos de redes maiores que atendem a múltiplas
funções” (MITCHELL, 2013, p. 175). São tais fatores que dão a elas ritmos e
velocidades peculiares.

Portanto, como pensar a cidade em um registro capaz de resistir aos ditames únicos
da tecnologia? Uma das primeiras incursões teóricas ao urbanismo, que se desenhava
a partir da reestruturação produtiva dos anos de 1980, veio da safra da socióloga
urbana Saskia Sassen. Em um momento em que se exaltava acriticamente a nova
onda tecnológica, ela a projetou sobre as cidades e percebeu que, diante dessa nova
operacionalização espacial, havia a necessidade de analisar como se erigia esse
cenário e quem eram esses atores. Trouxe à tona, também, quando tudo era
fetichizado como “virtual”, o que se passava no mundo real feito de cimento e tijolos.
Como observou Jordi Borja (2013), Sassen abriu uma via de pesquisa social e de
estratégia econômica para as cidades que “facilitó que con los mismos criterios se
pueda establecer que todas las ciudades, especialmente las grandes, son
parcialmente globales y parcialmente locales”.

De fato, Sassen (1998, 2005) percebeu que o fio de sustentação desse novo
rearranjo sistêmico era o capital financeiro, conduzido por fios e cabos ao redor do
mundo, mas que, para se realizar, tinha que se ancorar em algum lugar, em algum
ponto de capitonagem, lugar de controle dos processos – geração, gestão e inovação.
Enfim, em uma gama de “lugares centrais, onde se exerça o trabalho de globalização”
(SASSEN, 1998, p. 13).

Essa engenharia social foi possível pelo fato de que o capitalismo global apossou-se
por completo dos destinos da tecnologia, libertando-a de amarras metafísicas e
orientando-a única e exclusivamente para a criação de valor econômico, de modo
que as mais esotéricas inovações da ciência foram se transformando, quase
imediatamente, em tecnologias práticas. A autonomização da técnica com relação a
valores éticos e normas morais teve como consequência principal o aumento da
concentração de renda e da exclusão social. O que se refletiu na configuração das
cidades, onde “o mundo social se desmaterializa, transforma-se em signo e
simulacro” (DUPAS, 2000, p. 13). Assim, não é nenhum exagero dizer, junto com
Cortés (2008, p. 21), que “a cidade converteu-se em um enorme laboratório social
em que se combinam e se influenciam mutuamente a reflexão teórica, a ação prática
e a imaginação criativa”.

Retomando à indagação inicial, podemos agora afirmar que esta lógica fez com que
uma empresa em Seul, que controla uma empresa espanhola, que, por sua vez,
exerce o mesmo tipo de controle através de uma empresa no Brasil, a qual, por sua
vez, ao se consorciar com duas empresas mineiras, passou, via concessão plena, a

• 3
ter o direito de explorar, por 35 anos, o sistema de água e esgoto de um município
em Minas Gerais. Traduzindo de forma explícita: uma holding sul-coreana, a GS
Group – GS, de Golden Star – através de seu braço GS E&C (Engineering and
Construction), controladora da GS Inima Environment, sediada na capital espanhola,
Madrid, cuja subsidiária brasileira GC Inima Brasil Ltda, junto com as empreiteiras
mineiras, sediadas em Belo Horizonte, a MIP Engenharia S/A e a EPC Engenharia
Projeto Consultoria S/A, uniram-se no consórcio que veio a ser conhecido como Ouro
Preto Serviços de Saneamento S/A – Saneouro, criada unicamente para gestar e
operar a concessão de 100% do sistema de água e esgoto do Município de Ouro
Preto.

São várias as razões alegadas para tal processo de concessão. Uma delas, de que a
inexistência de controle do consumo de água no Município provoca a escassez e até
mesmo o desabastecimento em alguns pontos da cidade. Isto numa cidade em que
água existe em abundância e cuja Prefeitura, mediante uma taxa mensal irrisória,
fazia o fornecimento universal de água aos seus cidadãos. O que equivale a dizer que
não havia hidrômetros instalados nos imóveis do Município. Mas, em nome da
racionalidade técnica, da sustentabilidade, da desoneração dos gastos públicos, fez-
se a operação via edital licitatório de concessão plena de água e esgoto, cujo
consórcio foi concorrente único. Isto é, concorreu com ele mesmo. A população,
sentindo-se lesada, deu uma resposta democrática nas urnas que se fecharam em
15 de novembro de 2020, elegendo um novo prefeito cujo mote de campanha foi a
promessa pública de reverter tal processo.

Nessa análise inicial do nosso objeto, é perceptível como o mercado financeiro global
e as redes de informação atravessam e capturam as cidades. Não houve acaso na
escolha de Ouro Preto como o lugar inicial das atividades da holding sul-coreana no
estado de Minas Gerais. Foi operada como vitrine. Uma vitrine que tem o título de
Monumento Nacional (1933) e o de Patrimônio Mundial pela Unesco (1980). Fato que
foi destacado no site de notícias da holding que arrematou o serviço público: “A
cidade histórica de Ouro Preto será operada pela GS Inima Brasil” (A CIDADE...,
2019).

Em todo caso, o rumo do território está posto em disputa. Dito isto, como é
construída a narrativa da hegemonia do mercado sobre a sociedade? É possível
construir uma narrativa contra-hegemônica, uma melhor forma de contar histórias,
que tenha o exercício da cidadania como protagonista, conforme propõe a filósofa da
ciência Isabella Stengers (2015)?

Rebelião em Vila Rica: uma outra história?

• 4
No dia 04 de julho de 2019, uma quarta-feira fria, 4 dias antes da comemoração dos
308 anos da fundação da cidade de Ouro Preto, na segunda metade do governo de
Júlio Pimenta (MDB), então prefeito daquele Município, e, em cerimônia a porta-
fechadas, reuniu-se um grupo de autoridades políticas locais e empresários. Estavam
ali para celebrar a assinatura do que muitos diziam ali ser “um marco para todos
nós’, “um grande passo para a cidade”, “um divisor de águas” (SILVA, 2019): a
concessão plena do sistema de água e esgoto do Município por exatos 35 anos. O
edital licitatório finalizado em 01 de março de 2019, foi arrebanhado por um
candidato único, um consórcio entre as empresas GS Inima Brasil Ltda, IMP S/A e
EPC S/A. Poucos meses depois da referida efeméride, janeiro de 2020, nascia a
Saneouro, nome fantasia do consórcio.

O “marco”, “o grande passo”, feito com o aval dos poderes Executivo e Legislativo
da cidade, ocorreu sob a justificativa, inconsistente, uma vez que o Plano Municipal
de Saneamento Básico (PMSB) estava largamente desatualizado, de que o consumo
era de 400 l/hab./dia, incluindo perdas por vazamentos e desperdícios, estimados
em 50% e de que pouco mais de 1% do esgotamento sanitário sofria tratamento
adequado etc. A resolução deste problema acarretava a imediata hidrometragem do
consumo dos cidadãos da cidade e a utilização de equipamentos de alta tecnologia
para tratamento da água, conforme salientou o CEO da GS Inima Brasil (SILVA,
2019). A partir de então, a população, que não foi consultada sobre a decisão a ser
tomada ou de outras soluções, prontamente começou a tomar uma série de ações
concretas5. A primeira delas foi expulsar o alcaide da prefeitura, que concorreu à
reeleição. E o prefeito eleito, Angelo Osvaldo de Araújo Santos (PV), o foi, com a
promessa pública de reverter o processo.

No ano seguinte, 2020, após algumas declarações insossas do prefeito recém-


empossado a respeito do assunto – estaria consultando notáveis juristas a respeito
da reversão do processo etc. – veio a pandemia de COVID-19. A situação calamitosa
vivida no resto do país, obviamente, também incidiu diretamente em Ouro Preto:
falta de vacinas, debates inúteis sobre estes ou aqueles medicamentos, letalidade
crescente e a quarentena. Evidentemente, diante deste quadro caótico – crise

5 Na verdade, desde a publicação do edital de licitação, a população ouropretana já


demonstrava a sua insatisfação com a medida. Tal fato foi percebido e destacado pelo
representante da Saneamento Ambiental Águas do Brasil S/A (SAAB), em depoimento à CPI
da Câmara Municipal de Ouro Preto, criada em 2012 para investigar o processo de licitação da
concessão. “A reação popular muito forte em relação ao serviço, assustou a empresa”.
Importante dizer que a SAAB, empresa interessada, denunciou o Edital ao Tribunal de Contas
de Minas Gerais (TCE) pelas irregularidades observadas. Ante à resposta insatisfatória do TCE
e do fator destacado acima, a SAAB desistiu de participar do processo licitatório (CÂMARA,
2021, p. 27).

• 5
sanitária, crise econômica, crise social etc. – todo o controle cívico parecia ter
arrefecido.

Indiferente a isto ou por causa disto, a Saneouro, sem o menor know-how e


sensibilidade com o momento e no lidar com o patrimônio histórico material do lugar,
começou a esburacar ruas, abrir valas e mais valas nas portas das casas dos
cidadãos, e, principalmente em seu Centro Histórico, a quebrar lajotas de passeios
centenários etc. (MACHADO, 2021). Esta operação de guerra era a execução das
obras de instalação dos hidrômetros que, ao contrário de outros sistemas, foram
instalados nos passeios, fora dos imóveis e não no seu interior, deixando-os à mercê
da intervenção, para o bem e para o mal, de qualquer um alheio ao estabelecimento
residencial ou comercial.

A desmedida foi tamanha que o Ministério Público, o Instituto Histórico e Artístico


Nacional (IPHAN) e a Defesa Social foram acionados pela população (MACHADO,
2021). A Prefeitura conseguiu paralisar as obras até que a Saneouro apresentasse
um plano convincente de intervenção no Centro Histórico. A fúria avassaladora da
empresa seguiu após ela acordar com os poderes públicos a contratação de um
escritório especializado em patrimônio para acompanhamento das obras. Enfim, ante
a hesitação do Executivo Municipal frente às obras que deveriam ser embargadas,
segundo a população, as associações de bairros e dos distritos começaram a se
articular. E muito dessa movimentação ocorreu também porque: de um lado, o
contrato de concessão plena firmado entre o Consórcio e a Prefeitura Municipal prevê
a cobrança de tarifas somente a partir de completados 90% de hidrometração das
casas do perímetro urbano do Município; por outro lado, nos parcos hidrômetros já
instalados, as simulações do consumo feitas pela empresa, resultaram em quantias
tarifárias muito além da capacidade econômica da maioria dos agora “usuários”
(SABINO, 2021). Cumpre destacar que, segundo o mesmo contrato, somente 5%
dos consumidores são enquadrados na tarifa social, isto em um Município em que,
de acordo com dados do IBGE (2010), 35% das famílias se encontram na faixa de
meio salário mínimo de renda mensal. A ação imediata foi direcionada à Câmara
Municipal. Uma vigília passou a ser feita em frente à sua porta, na histórica Praça
Tiradentes, em cujo centro há um monumento centenário em homenagem ao Mártir
da Inconfidência. Cada movimento social ergueu uma barraca. E elas se revelaram
dezenas. Pressionada pelos manifestantes, a Câmara Municipal atendeu à demanda
popular instalando uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI)6 para investigar o

6
Projeto de Resolução 359/21: Apuração/Investigação do procedimento licitatório, modalidade
Concorrência Pública nº 006/2018, “tendo como fundamentos as denúncias de irregularidades
contidas no Procedimento de Investigação Preliminar – PIP nº 010/2021 do Executivo. A PIP

• 6
processo licitatório que resultou na concessão. Iniciada em 09 de março de 2021,
sua finalização foi assinada em 05 de outubro de 2021, cujo Relatório Final, dentre
outras medidas, recomenda que:

Sejam adotadas as providências administrativas necessárias para a anulação da


Concorrência Pública 006/2018 e do contrato de concessão dos serviços públicos de
abastecimento d’agua e esgoto sanitário devido às irregularidades apontadas, com a
assunção dos serviços pela Administração Pública (CÂMARA, 2021, p. 69-70).

Junto com o Relatório, os vereadores assinaram ainda, por unanimidade, uma


emenda aditiva indiciando o ex-prefeito Júlio Pimenta por improbidade administrativa
(SOARES, 2021).

Ato contínuo, neste mesmo dia, junto aos vereadores, movimentos sociais,
representantes de partidos, militantes e moradores fizeram uma caminhada para a
entrega do Relatório Final ao chefe do Poder Executivo — o prefeito —, e ao Poder
Judiciário, — o promotor público da Comarca, representante do Ministério Público do
Estado de Minas Gerais.

Entremeio a toda essa movimentação sociopolítica, a Saneouro fez ouvidos moucos


e continuou o processo de instalação dos hidrômetros. Concomitante a isto, em vários
pontos da cidade e em alguns distritos, funcionários do consórcio foram recebidos
hostilmente pelas respectivas populações e expulsos ou impedidos de instalar os
hidrômetros. Conflitos desta natureza pipocaram pelo Município, e, em um caso
específico, o incêndio de uma viatura da Saneouro fez com que a empresa exigisse
a presença da Polícia Militar, embora não haja notícias de prisões ou assemelhados
(SOARES, 2021). Mas os pontos de resistência não amainaram. Enquanto isso, nos
sites das empresas consorciadas reinava a paz dos cemitérios. Tudo ali transpirava
normalidade.

Em dezembro de 2021, a Saneouro anunciou que, a partir de janeiro de 2022,


passaria a cobrar as tarifas. Foi impedida judicialmente pela Câmara Municipal, pois
não havia o mínimo de 90% de hidrometração, condição sine qua non do contrato de
concessão para início da cobrança. Segundo informe da Prefeitura (COELHO, 2021),
havia, àquela altura, somente 73,57%, e afirmava, ainda, que este fato era resultado
da incapacidade técnica e/ou falta de estudos preliminares por parte da empresa. Em
maio de 2022, a Saneouro anunciou que já havia condições para a cobrança das

nº 010/2021 foi finalizada em fevereiro de 2021 pela Procuradoria Geral do Município, e


registrou indícios de irregularidade no procedimento licitatório e possível danos ao erário.

• 7
tarifas e que, a partir de julho, passaria a cobrá-las. Um parecer da Câmara Municipal
indicou 83% de hidrometração. Ato contínuo, a população, via seus representantes,
responde a isso afirmando que não havia esta possibilidade aritmética, dadas as
milhares de recusas e impedimentos, por parte da mesma, da instalação dos
hidrômetros. Desta vez, é a Saneouro que entra na justiça afirmando o seu direito
de passar a cobrar as tarifas. Incrementa o quiproquó. As associações vicinais de
bairros e distritos unem-se em torno de uma federação, a Força Associativa dos
Moradores de Ouro Preto (FAMOP), o que lhes proporcionou uma maior agilidade na
tomada de decisões. E é sob esta nova estrutura que a população retorna à Câmara
Municipal, exigindo a assinatura de um requerimento propondo um referendo,
conforme previsto no artigo 14 da Constituição Brasileira, na Lei Federal 9709/1998
e na Lei Municipal 23/2002. Assim, em 15 de junho de 2022, a Câmara Municipal de
Ouro Preto, atendendo à demanda da FAMOP, assinou o requerimento. Ainda
segundo as Leis, o referendo será convocado após publicação de um Decreto
Legislativo, que será encaminhado à Justiça Eleitoral depois de aprovado em plenário.
Após este processo, caberá à própria Justiça Eleitoral abrir e conduzir o referendo.

Fim de mais um capítulo da extensa e típica prática do fazer “urbanização sem


cidade” (BORJA, 2019). Porém, os cidadãos insurgentes estão a postos com o acuo
incessante aos vereadores, a ponto de eles não poderem estar em lugares públicos.
Como disse um vereador a este pesquisador: “A coisa está feia para o nosso lado”.

Cidade inteligente

Certamente tornou-se um truísmo dizer que o homem do século XXI é urbano. Se


este fato adveio de uma escolha, de uma fatalidade histórica ou de outro parâmetro
interpretativo, nada disso nos diz como andam as cidades.

Cidade Inteligente é a tradução automática de Smart City, como se pudéssemos


apenas aferir um sentido à palavra anglo-saxã. Tomada nesse sentido amplo, smart
se refere a qualquer tecnologia avançada a ser implementada em cidades com o
objetivo de aperfeiçoar o uso de seus recursos, produzir novas riquezas, mudar o
comportamento dos usuários ou prometer novos tipos de ganhos no que se refere,
por exemplo, à flexibilidade, segurança e sustentabilidade ‒ ganhos que decorrem
essencialmente do ciclo de retroalimentação inerente à implementação e ao uso de
dispositivos inteligentes providos de conectividade, sensores e/ou telas. Morozov e
Bria (2019) propõem a expansão desse conceito, imiscuindo nele a noção de política
e de sociedade, dotando-o de “realidade social”. Contudo, para efeitos analíticos,
tomaremos o primeiro sentido como sendo o de Cidade Inteligente, enquanto projeto
de cidade que se assenta em uma proposta asséptica.

• 8
Assim sendo, há nesta acepção um sentido claramente segregador, um evidente
desdobramento da lógica do condomínio fechado, que tanto prosperou nas cidades a
partir dos anos de 1990. Espaços liofilizados do território urbano com leis próprias
de uso, homogeneidade tanto étnica quanto de classe, distanciamento social e, já
demonstrado por Cardoso (2013), “como desistência cidadã da cidade”. Questão que
traz em si velhos problemas, uma vez que a acessibilidade só ocorre de maneira
argentária, funcional e operacional. Fora isso, só ilhas. Seu efeito perverso, como
não poderia deixar de ser, é a difusão da percepção da cidade como menos política.

A Cidade Inteligente (Smart City) é tomada aqui como espaço de erosão de direitos,
de desmonte de conquistas sociais. O impasse está colocado na medida em que, para
se sair desse lugar, é necessário um contramovimento que vise a expansão do direito
à cidade, no qual se fundamenta a proposta de “cidadania insurgente” de Holston
(1996, 2013).

Cidadania insurgente

Para o antropólogo James Holston, já no final de milênio, anos 1990, estávamos


diante da necessidade de desenvolver uma “imaginação social diferente” cujas
condições já estavam dadas nos chamados “espaços de cidadania insurgente”, nos
quais o termo insurgente referia-se “a novas e/ou outras fontes de cidadania e à
afirmação de sua legitimidade” (HOLSTON, 1996, p. 244).

Tal conceito afirma a dinâmica da cidadania em uma sociedade complexa – expansão


e erosão – advindas das incapacidades tanto da cidadania formal, quanto da
substancial. Incapacidades distintas que permitem e sugerem “como as formas de
cidadania insurgentes aparecem como prática social” (HOLSTON, 1996, p. 250). Isto
porque, “a cidadania muda à medida em que novos membros emergem para fazer
suas reivindicações, expandindo seu alcance, e em que novas formas de segregação
e violência se contrapõem a esses avanços, erodindo-a” (HOLSTON, 1996, p. 249).
Portanto, é na intercessão dos processos de expansão e erosão que são encontrados
os “lugares de cidadania insurgente”, que, cabe frisar, variam no tempo e no espaço.
Como exemplos, podemos tomar o universo dos sem-teto, as periferias
autoconstruídas, os condomínios verticais ou horizontais fechados, as invasões
urbanas, movimentos LGBTQIA+, etc. Todos estes exemplos são lugares de
insurgência porque introduzem na cidade novas identidades e práticas que perturbam
histórias estabelecidas. E, dada a sua dinâmica, essas novas identidades e as
perturbações inerentes a elas podem ser de qualquer grupo ou classe social. No
limite, “permitem entender a sociedade como uma contínua reinvenção do social, do
presente, do moderno e de seus modos de narrativa e comunicação” (HOLSTON,

• 9
1996, p. 250). E que, de acordo com Stengers (2015), trata-se de se apropriar
também e, principalmente, das narrativas.

Dada a distinção problemática entre a cidadania formal (status), a cidadania


substantiva (direitos e deveres) e a identificação da emergência da cidadania
insurgente, estaríamos às portas de cidadanias citadinas confrontando diretamente
o papel do Estado enquanto forma dominante da moderna comunidade política?
Afinal de contas, como nos lembra Holston (1996, p. 251), “o estado moderno
competiu explicitamente com a cidade pela filiação de seus cidadão, usurpando-lhes
as diferenças, substituindo a administração local da história pela nacional”. Tal
questão não é infundada, uma vez que, desde a passagem do milênio, houve uma
multiplicação em todo o mundo de novos movimentos pelos “direitos à diferença”.

Novos por que forçam o estado a responder às novas condições sociais demandadas
e são também sem precedentes, em muitos casos, porque criam novos tipos de
direitos, com base em exigências da experiência vivida, fora das definições
normativas e institucionais do estado e de seus códigos legais (HOLSTON, 1996, p.
251).

As respostas a essa multiplicação por parte dos poderes estabelecidos, e também


difusos, são sinais de um duplo fracasso. De um lado, em reconhecer de que a marca
da heterogeneidade é a condição social de fato na qual vivemos e por outro, fracasso
em conceitualizar a colisão entre a cidadania do Estado e alternativas insurgentes.
Pois se, de um ponto de vista, decorrente destes movimentos, há inegavelmente
expansões, criando novas fontes de direitos da cidadania e novas formas de
autogestão, por conseguinte, há erosões, promovidas pelas classes dominantes ao
se contraporem aos avanços dos novos cidadãos, com novas estratégias de
segregação, privatização e fortificação, os quais criam uma “zona de guerra” à sua
volta. Esta contraposição deve ser sempre levada em conta, uma vez que a cidade-
como-zona-de-guerra é uma “forma insurgente do social que subverte as
proclamadas igualdades e princípios universais da cidadania universal” (HOLSTON,
1996, p. 251). Isto é, a erosão, mormente, utiliza as armas democráticas para
promover e alcançar resultados antidemocráticos. “Achar o ponto de equilíbrio dessa
paradoxal relação entre o Estado – seus recursos – e a experiência do vivido – as
formas insurgentes do social – é atuar no campo do possível” (IDEM, 1996, p. 253).

Cidade fragmentada

Na passagem do milênio, uma nova ortografia foi impingida às cidades cuja cor
subjacente foi a especulação imobiliária. Para adquirir legitimidade, tal escritura
operou no chamado mundo do indistinto, um espaço indeterminado no qual as ações

• 10
pública e privada mesclam-se de tal modo que se torna imperceptível o que é próprio
do campo de cada uma delas. Tal prática denotou um panorama do poder sem centro.
Um sintoma do novo design do Estado, extemporâneo às atividades cotidianas das
pessoas. Isso nos revela um excelente capítulo do movimento do capital, totalmente
autônomo da zona civil, não nos escapando que o que se apaga e apazigua, com este
dispositivo, é a dimensão política, portanto, pública.

Assim, a cidade apresentada como um espaço de e com diferentes escalas de


consumo surge como um ideal a ser alcançado, algo capaz de fazer com que a maioria
absoluta aceite consensualmente as suas condições através de um deslizamento de
sentido em que tudo o que era distopia passa a ser desejado, em um abraçar
voluntário e fantasmático de um mundo apenas visto e percebido enquanto negócio.

Ante o fenômeno da globalização e de sua influência sobre as cidades, Sassen


elaborou o conceito ‒ que se provou ser mais uma categoria do que um conceito ‒
de cidades globais7, que passam a ser gestadas pelas necessidades do capital
financeiro. Essa categoria foi se esvanecendo seguindo a premissa de que todas as
cidades contemporâneas são parcialmente globais e locais, e que estão inseridas nas
redes econômicas, sociais e culturais em diferentes graus. A questão aqui é saber
em quais medidas e que efeitos trazem esses diferentes graus de inserção. De
qualquer modo, o que resulta do modelo concentracionário identificado por Sassen é
a crescente desigualdade que se produz nas cidades.

Simultaneamente, surgiu uma série de novas práticas de intervenção urbana, como


que reagindo às mudanças vertiginosas sob o manto da sopa de etiquetas gerada e
gestada pela Nova Economia com toda a retórica de sustentabilidade, qualidade de
vida e inovação – no sentido schumpeteriano do termo. A rigor, trata-se de um
urbanismo seletivo, que segue cegamente os preceitos da pós-modernidade: o fim
das grandes narrativas, das totalidades etc. As cidades foram se fragmentando, até
que chegamos à fase atual na qual as intervenções urbanísticas nomeiam as cidades
por nomes tão díspares quanto inadequados. Enquanto isso, o capital vai
desconfigurando a ideia mesmo de polis, sempre em nome da desregulamentação,
do livre mercado, de mais empregos.

7
Importante salientar que o conceito "Cidade Global" não foi cunhado por Sassen, mas por
Hall em 1966, ainda sem a vinculação teórica com a questão da globalização da
economia. Sassen teria retomado o conceito em seu livro The Global City, de 1991, com esta
vinculação e deu a ele uma popularidade muito grande (FERREIRA, 2003, p. 24).

• 11
Tendo isto em conta, a desterritorialização urbana em escala planetária, contínua e
acelerada, produz uma geografia do poder até então inimaginável, como vimos ao
rastrear o caminho decisório que está por trás do Consórcio Saneouro. Aos cidadãos
resta criar mecanismos práticos de mobilização cidadã que estanque esse processo,
como, por exemplo, a cidadania insurgente.

Fragmentação das práticas

A hegemonia neoliberal foi conquistada por uma guerra de narrativas. Como em


todas as guerras, a das narrativas não tardou a reverberar por todos os campos,
adaptando e criando termos. Com o intuito de atenuar os estragos do capitalismo
financeiro na sociedade, criou-se uma exaustiva economia de alternativas
customizadas de alcance global, como atestou Basch (2018, p. 08):

Economía colaborativa, Economía compartida, Economía del compartir, Economía del


acceso, Economía a demanda, Economía del móvil, Economía de pares, Economía de la
changa, Economía social y solidaria, Economía del regalo, Economía del bien común,
Economía circular, Economía directa, Economía consciente, Economía azul, Economía
naranja, Economía creativa…

Nessa transição, a grande vedete do urbanismo atendia pelo nome de Planejamento


Estratégico Urbano, uma simples aplicação de princípios de gestão privada de
negócios ao mundo complexo, público e cidadão das cidades. Seus três fundamentos,
as best practices, foram largamente estudados e debatidos ao longo da década de
1990 e início do 2º milênio: a cidade vista simultaneamente como empresa, como
mercadoria e como promotora de si mesma, o city-marketing. Um modelo replicado
nos quatro cantos do mundo, que se esvaiu a partir da avalanche de críticas e
metamorfoseou-se em inúmeras outras iniciativas: acupuntura urbana, com seus
parklets e ruas compartilhadas (shared spaces); new urbanism, planejando as
cidades em escalas menores, afastando-se da monumentalidade das cidades globais;
condomínios fechados horizontais e verticais; gentrificação; cidade sustentável;
small city; edge city; available city; green-up city; urbanismo ecológico; H2PIA;
cidade ao nível dos olhos; cidade como espaço sensual; cidade de pedestres, que
retoma a argumentação já feita por Jane Jacobs no início da década de 1960. E Smart
City.

Não importa a denominação. No bojo dessa acelerada transformação estavam as


subjetividades, que foram sendo reconfiguradas. Muito se diz sobre a transformação
tecnológica da sociedade a partir dos anos 1970/80, da sua rapidez e de sua
concretização global já na passagem deste milênio. Entretanto, pouco se diz ou se
pensa, de como esta transformação foi extremamente violenta. Violência percebida
na ruptura de referenciais com a terra, com a cidade, com a cultura e até mesmo

• 12
com a esfera “infraindividual”. “Todos estão falando de desmaterialização,
desterritorialização, desenraizamento, desregulamentação, desterritorialização”
(SANTOS, 2001, p. 27). Mas e o retorno do território? Não é disso de que se trata a
“Rebelião em Vila Rica”?

À guisa de conclusão

Essa gama de mudanças da face do capitalismo financeiro gerou uma gama de


interpretações em inúmeros campos: na Sociologia, na Ciência Política, na
Antropologia, na Psicanálise, na Economia do Trabalho, no Urbanismo, na
Arquitetura, nos Estudos Literários, na Crítica Cultural. Poder-se-ia dizer que o
intermezzo gramsciano trouxe mais confusão do que solidez. Mundo líquido,
capitalismo turbinado, capitalismo artista, era do acesso, pós-capitalismo, pós-
política, pós-socialismo... O embate aberto por essas interpretações estava, e ainda
está, em aberto.

Em última instância, o que era verdade apenas para as cidades globais, passou a
reverberar urbe et orbe. Como se diz na área business, as cidades globais
transformaram-se em benchmarking. Enquanto se disputava o varejo, o atacado
acabou se realizando. Podemos arriscar a dizer que o primeiro se originou em uma
ponta das necessidades globais, complementada na outra ponta pelas necessidades
locais.

Ao nos referirmos a Cidades Inteligentes, uma questão ficou no ar: como fazer uma
cidade para todos, democrática, calcada no direito à cidade, se o uso dos
procedimentos da democracia sempre encontrou limites, como nos lembra Bobbio
(1987, p. 11), “nos centros de poder tradicionalmente autocráticos, como a empresa
ou o aparato burocrático”? E acrescenta: “mais que uma falência, trata-se de um
desenvolvimento não existente”. Como estabelecer, então, os parâmetros de
exercício do direito à cidade, em um ambiente que cultiva a competição e, por
conseguinte, a hostilidade?

Ao finalizar este artigo, esperamos ter contribuído para o avanço da produção do


conhecimento face a três eixos específicos. No primeiro, o econômico, ajudar a
entender como o mercado financeiro global atravessou e capturou as cidades,
deitando raízes nos quadrantes mais improváveis do território nacional brasileiro, e
de como o mesmo moldou os espaços. Em um segundo eixo, o político, demonstrar
como as decisões políticas dos poderes instituídos estão referenciadas pelo eixo
econômico entendido, criando assim, pelo menos, um esboço da economia política
dessa construção. Por fim, no sentido social, como os atores que sofrem as
consequências diretas e indiretas da economia política identificada estabelecem

• 13
estratégias contra-hegemônicas para garantir e, no limite, provocar algum
soerguimento de seus direitos sobre a cidade e, consequentemente, sobre suas
próprias vidas.

Referências

BASCH, Marcela. De qué hablamos cuando hablamos de economía colaborativa (y de qué


queremos hablar). In: BENZAQUEN, Adriana; BASCH, Marcela (org.). Comunes: economías de
la colaboración. Buenos Aires: Goethe Institut Argentina, 2018, pp. 08-16.

BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia: em defesa das regras do jogo. Rio de Janeiro:
Paz & Terra, 1987.

BORJA, Jordi. Derecho a la Ciudad: de la calle a la globalización [2019].


<https://www.jordiborja.cat/derecho-a-la-ciudad-de-la-calle-a-la-globalizacion/>. Acessado
em 15 jul. 2020.

______. Saskia Sassen y El Mito de la Ciudad Ideal [2013].


<https://www.jordiborja.cat/saskia-sassen-y-el-mito-de-la-ciudad-global-ideal/>. Acessado
em 29 maio 2020.

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• 15
ÍNDIOS, NEGROS E POBRES1:
arte e inclusão no centro planejado de Belo Horizonte
INDIANS, BLACKS AND THE POOR: art and inclusion in the planned
center of Belo Horizonte/ INDIOS, NEGROS Y POBRES: arte e
inclusión en el centro planificado de Belo

Cidade, política e cultura

DIAS, Josana Mattedi Prates


Doutoranda em Design (UEMG), Mestre em comunicação Social (UFMG), Graduada em
Artes Plásticas (Guignard-UEMG), Graduada em Arquitetura e Urbanismo (UFMG);
Coordenadora e professora dos Cursos de Arquitetura e Urbanismo e Design de
Interiores do Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix
josanamatedi@gmail.com

1
Artigo oriundo de trabalho final apresentado à disciplina de pós-graduação em Design, História e Memória,
oferecida pela professora dra. Marcelina das Graças de Almeida, no 2º semestre de 2021, na Escola de
Design/UEMG. Doutorado com orientação da professora dra. Rita de Castro Engler.
RESUMO

O presente texto tem o propósito de refletir sobre a utilização da arte urbana


como veículo de representação de grupos excluídos, bem como vetor de
conformação de novos territórios de vida e de memória, que propiciam a
democratização da cidade e do espaço público. A pesquisa foi construída numa
perspectiva interdisciplinar, articulando uma breve história da cidade planejada
de Belo Horizonte e os estudos sobre arte contemporânea, memória e
território. Em especial, o texto analisará algumas intervenções artísticas
apresentadas no festival CURA (Circuito Urbano de Arte), que tem se
desenvolvido no espaço urbano belo-horizontino nos últimos anos. Como
inspiração, o texto apresentará a obra Bandeira Brasileira, de Leandro Vieira,
que substituiu as cores da bandeira nacional pelas cores verde, rosa e branco,
assim como lançou os dizeres “índios, negros e pobres”, no lugar do lema
positivista “ordem e progresso”, fomentador de uma lógica higienista de
exclusão social no planejamento urbano.

PALAVRAS CHAVE Arte urbana; Memória, Território, Cidade; Planejamento


urbano.

ABSTRACT

The purpose of this text is to reflect on the use of urban art as a vehicle for the
representation of excluded groups, as well as a vector of conformation of new
territories of life and memory, which provide the democratization of the city
and public space. The research was built in an interdisciplinary perspective,
articulating a brief history of the planned city of Belo Horizonte and studies on
contemporary art, memory and territory. In particular, the text will analyze
some artistic interventions presented at the festival CURA (Circuito Urban de
Arte), which has been developed in the urban space of Belo Horizonte in recent
years. As inspiration, the text will present the work Bandeira Brasileira, by
Leandro Vieira, which replaced the colors of the national flag with green, pink
and white, as well as launched the sayings “Indians, blacks and poor”, in place
of the positivist motto. “order and progress”, fostering a hygienist logic of social
exclusion in urban planning.

KEY-WORDS Urban art; Memory; Territory; City;rban planning.


INTRODUÇÃO
Este artigo tem o propósito de refletir sobre a utilização da arte urbana como veículo de
representação de grupos excluídos, bem como vetor de conformação de novos territórios
de vida e de memória, que propiciam a democratização da cidade e do espaço público.
Para tanto, investiga o planejamento da nova capital de Minas Gerais, Belo Horizonte, no
contexto da Proclamação da República no Brasil, destacando a lógica de conformação dos
espaços e dos lugares da memória, assim como o pensamento higienista de exclusão
social que pautou o processo de planejamento. O texto segue com a análise das
intervenções de arte contemporânea do grupo CURA (Circuito Urbano de Arte) e seu modo
de reconfiguração dos espaços planejados e da criação de novos lugares para a memória,
de modo a proceder a inclusão simbólica dos grupos excluídos no momento inicial de
conformação da nova capital.

Como uma inspiração do campo da arte, o texto já apresenta a obra Bandeira Brasileira,
com as cores verde, rosa e branco e os dizeres “índios, negros e pobres”, exibida pelo
carnavalesco Leandro Vieira, no ano de 2019, no desfile da escola de samba Mangueira.
Tal obra apresentou-se como marco para uma ideia de Brasil, em que os excluídos
ocupam a centralidade e não significam o entrave para a ordem e o progresso
republicanos.

Figura 1: Bandeira Brasileira, de autoria de Leandro


Vieira, 2019.
Fonte: https://www.instagram.com/p/CTh8VvHLi0f/

• 1
A bandeira de Leandro Vieira coloca em perspectiva o símbolo verde, amarelo, azul e
branco do país e o projeto político, fruto do pensamento progressista do século XIX,
marcado pela segregação e exclusão sociais, que conformam as grandes cidades
brasileiras ainda hoje. Ao mesmo tempo, se coloca como símbolo de um lugar, de uma
nação promissora, colorida e inclusiva, apresentada na grande festa popular que é o
carnaval, mas que, certamente, existe fora da festa, no cotidiano, em muito territórios
vividos do país.

É essa bandeira verde e rosa, entendida como símbolo de um lugar possível, que move a
investigação deste estudo, em busca dos territórios de memória e de resistência dos
excluídos na cidade planejada de Belo Horizonte.

TERRITÓRIO, MEMÓRIA E LIBERTAÇÃO


Quando a Bandeira Brasileira, de Leandro Vieira, com as cores verde, rosa e branco e os
dizeres “índios negros e pobres”, vira peça de museu em 2021, e o carnavalesco é alçado
ao lugar de artista pelo prêmio PIPA (WILLMERSDORF, 2021), ela passa a ser entendida
como obra rara, a ser estudada e exibida como bem de valor histórico e cultural. A obra
coloca-se como matéria para a memória do país e símbolo de seu território. Diz de uma
identidade nacional a ser reconhecida, vivida e lembrada.

Uma concepção de território refere-se a todo o tipo de espaço sobre o qual a nação detém
o poder e é soberana. Para Santos (2005), essa é uma antiga noção político-jurídica de
território, ligada à ideia de conquista herdada da Modernidade e entendida como a base
e o fundamento do Estado-Nação, que, ao mesmo tempo, o moldava.
Contemporaneamente, a noção requer permanentes revisões históricas, uma vez que a
comunhão global, em função das tecnologias da informação, transnacionalizou o
território. Nas duas abordagens da noção, entretanto, interessa, do mesmo modo, para
a análise social, o uso que os sujeitos ou grupos fazem do território, e não só o território
em si. É o modo como o território é usado, construído a partir de objetos e de ações, que
conforma a singularidade do espaço humano: o espaço habitado.

Para soberania de uma nação em um território, a língua, os símbolos, a construção da


identidade coletiva e da memória social são fundamentais. Le Goff (2013, p.435-6), neste
sentido, observa que a memória é um objeto do poder e é historicamente construída
segundo os valores daqueles que dominam. A perspectiva histórica existente nos livros é
sempre a dos conquistadores, daqueles que venceram, o que mostra que a memória está
em disputa, assim como os territórios, cabendo aos profissionais científicos da memória,
“antropólogos, historiadores, jornalistas, sociólogos” a “democratização da memória
social”, de forma que essa memória seja construída para libertação e não para a
dominação dos homens.
Para Gondar (2005), além da historiografia e das palavras orais e escritas (signos
simbólicos), a memória social se abre a uma variedade de sistemas de signos, envolvendo

• 2
as imagens, em volumes ou superfícies (signos icônicos) e todos os tipos de marcas
inscritas nos corpos ou na paisagem da cidade (signos indiciais). O uso de sistemas de
signos não verbais envolve outros profissionais, fazendo com que a memória também
esteja presente e em disputa nos espaços, nas arquiteturas, nos monumentos e em todo
o tipo de artefato, assim como nas paisagens, nos sabores, nos cheiros, nos lugares, os
mais inusitados (SEIXAS, 2001). No cotidiano, a memória e o lembrar estão mais
próximos das ações, da lida dos sujeitos com o tudo isso que configura o vivido e o
território. Desta forma, a cidade está repleta de lugares da memória conformados pelos
profissionais ou pelos sujeitos nas práticas do dia a dia.

Se se quer pensar numa democratização da memória dos dominados e em sua libertação,


é preciso observar se essa memória se estabelece na paisagem edificada da cidade, se
ela está disponível, como gostaria Benjamin, numa situação de combate ou perigo, para
ser recordada e atualizada (apud GAGNEBIN, 2018); e, ainda, compreender o fazer da
arte urbana, da arquitetura e do urbanismo, o modo estes como contribuem para o
apagamento das memórias e dos territórios vividos ou para a democratização do espaço,
das memórias e da vida nas cidades. Na impossibilidade de se pensar todo o território
nacional, busca-se a memória e os possíveis territórios demarcados pela arte, para índios,
negros e pobres, mesmo que efêmeros, no centro de Belo Horizonte.

A BELO HORIZONTE DA ORDEM E DO PROGRESSO


A cidade de Belo Horizonte foi planejada e construída no final do século XIX, com o
objetivo de abrigar a nova capital das Minas Gerais. Seu projeto foi desenvolvido pelo
engenheiro Aarão Reis, no contexto da proclamação da república no Brasil, segundo os
ideias positivistas que referenciavam a um novo tempo no país. Segundo Lemos (1998,
p.80), a chamada era republicana caracterizava-se pelas ideias de progresso,
industrialização e vida moderna que envolviam um novo pensamento econômico, assim
como a constituição de uma nova sociedade urbana. Antigas capitais, como Ouro Preto
(MG) e Goiás Velho (GO) eram consideradas inadequadas ao progresso e à modernidade.
Nesses estados, novas capitais foram planificadas para atender às novas demandas.
Capitais como Rio de Janeiro (RJ), São Paulo (SP) e Vitória (ES) foram readequadas. Os
projetos buscavam combater a obsolescência da organização espacial e fornecer a
infraestrutura adequada.

Para Heliana Angotti Salgueiro (1997), o planejador da cidade de Belo Horizonte, o


engenheiro Aarão Reis,

encarna o homem do século XIX, o politécnico que acredita que educação, instrução,
justiça, dignidade, ciência, técnica, trabalho, indústria, religião moral, intervenção na
cidade, território e natureza, levariam a humanidade a se solidarizar na partilha de todos
os progressos (SALGUEIRO, 1997, p. 174).

• 3
Guiado por esses ideias Aarão Reis elabora o projeto para a nova capital das Minas Gerais,
tendo em vista a qualidade de vida, a distribuição dos fluxos, dos percursos e a
organização visual da cidade e das suas funções. O planejador integrou uma malha
ortogonal, definida pelas ruas, a uma malha diagonal, definida pelas avenidas. Além de
romper com a uniformidade do traçado ortogonal das ruas, as avenidas criavam ligações
que facilitavam os deslocamentos e a visão da paisagem. Esses eixos monumentais

organizaram a visibilidade e os pontos hierarquizados topograficamente em função dos


usos, remetendo ao ideal perspéctico do barroco, restituído pelo neoclássico,
experimentado no plano urbanístico de Washington e na remodelação de Paris (LEMOS,
1998).

Figura 2: Planta de Belo Horizonte, de autoria de Aarão


Reis, 1895.
Fonte:
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Planta_BH.jpg
Essa “cidade ideal”, concebida segundo uma malha urbana principal, evidencia, para
Lemos (1998) a gênese da discriminação e da segregação próprias do urbanismo
capitalista moderno. Salgueiro (2021) também identifica os interesses políticos que
consideravam não somente a organização urbana, mas também o povoamento adequado.
Nas fotografias que retratam a Comissão Construtora e os habitantes do sítio escolhido
para implantação da cidade, observa-se que “os recém-chegados instalam-se como
mestres reformadores e desalojam os autóctones, da mesma forma que um século antes
os europeus haviam expulsado os índios” (SALGUEIRO, 2021, p. 85).

• 4
Para Salgueiro (2021), a construção de uma cidade com valores modernos implicava a
eliminação de todos aqueles que entravariam o progresso: à toilette topográfica, sucede
a toilette social. O planejamento e a organização envolviam demolições, desapropriações
e a inevitável exclusão dos habitantes do lugar.

Nos textos oficiais, Aarão Reis narra a difícil missão que culminou com seu pedido de
demissão em maio de 1895. Sem atritos, foi responsável pela desapropriação de mais de
quatrocentas propriedades, a maior parte edificada e cultivada, que englobavam, lotes
urbanos, casas e chácaras. O relato, evidencia a compreensão do planejador de que, num
curto espaço de tempo, muitos abandonariam seus lares e hábitos de longa data.
(SALGUEIRO, 2021).

Muitos desses excluídos se instalaram nos arredores da cidade planejada, mas sem uma
infraestrutura que pudesse abrigá-los, uma vez que esse tipo de investimento não foi
pensado para a nova capital. Para Salgueiro (2021), Belo Horizonte constitui-se como

um surpreendente exemplo de aplicação de um urbanismo baseado na exclusão social. A


forma de povoar e a direção tomada pelo crescimento efetivo são presságios dos subúrbios
miseráveis das cidades brasileiras de hoje: resultado que não passou pela cabeça dos
republicanos progressistas do final do século XIX (SALGUEIRO, 2021, p. 199).

Para Salgueiro (2021), nos anais da história de Belo Horizonte, está presente o argumento
higienista, uma das representações ideológicas mais fortes do período que justificava a
rejeição dos pobres e definiam seu lugar na periferia. A mestiçagem brasileira, que para
os positivistas ortodoxos significava a conciliação das raças (branca, indígena e negra),
era compreendida, na prática, de forma estereotipada e discriminatória, a partir das teses
da degenerescência racial. A mistura era vista como causa do atraso, que não interessava
a quem visava o desenvolvimento e o progresso.

Como memória de todos os excluídos, restou na malha urbana de Aarão Reis apenas os
nomes de algumas tribos indígenas, que, junto aos nomes de cidades, rios, montanhas,
datas históricas e cidadãos ilustres, foram entendidos como merecedores de serem
perpetuados na lembrança do povo (SARAIVA; CARVALHO; DINIZ, 2006). Pobres e pretos
não foram contemplados e ficaram fora da cidade planejada.

A BELO HORIZONTE DO(A) CURA


No mesmo sentido da obra de Leandro Vieira, algumas ações de arte contemporânea na
Belo Horizonte atual buscam ampliar os espaços de representação dos índios, negros e
pobres, outrora expulsos pelo planejamento urbano original. As ações do CURA (Circuito
Urbano de Arte) têm restituído os espaços de expressão a esses grupos excluídos, com o
propósito de se constituírem como território das memórias, no centro planejado, hoje
transformado pela altimetria da verticalização da área.

• 5
O CURA começou suas ações em julho de 2017, criando painéis pintados nas empenas
cegas dos edifícios do centro (CRUZ, 2017). As temáticas e os locais de intervenção, em
cada edição são objetos das pesquisas das organizadoras, a artista Priscila Amoni e as
produtoras Juliana Flores e Janaína Macruz, junto a curadores convidados, que selecionam
artistas e propostas a serem executadas, tendo índios, negros e pobres também como
protagonistas.

O projeto é compartilhado é apresentado à cidade por meio das redes sociais. Os


moradores do edifício que terá a empena pintada recebem o projeto para conhecimento
e aprovação. O processo da pintura, que se dá ao longo do tempo, transforma-se em um
evento, um ateliê a céu aberto, a ser contemplado e vivenciado por todos aqueles que
moram ou passam pelo local. As intervenções no espaço público são devidamente
acordadas com o poder público. Ao longo dos anos, o CURA vem reconfigurando a
paisagem, com temas contemporâneos, com ações que envolvem o entendimento da arte
urbana e da inclusão social.

Em tempos de pandemia e de grande crise no país, o CURA manteve as suas atividades,


ampliando a luta junto aos povos indígenas e negros, na apresentação da 5ª edição do
Circuito Urbano de Arte, realizada entre 22 de setembro e 4 de outubro de 2020. O evento
teve como curadoras a artista indígena Arissana Pataxó e a artista negra Domitila de
Paulo. E foi apresentado da seguinte forma:

Cura; substantivo feminino. De cuidar, tratar, reestabelecer saúde. Vinda da prática


de curandeirismo. A arte do CURA 2020, Circuito Urbano de Arte, contempla seu
próprio nome entre o substantivo e o verbo, que rege um desejo em emergência de
cuidar de nós e do que nos cerca. Replantar e cultivar novos hábitos, ideias e
concepções sobre como nos relacionamos com o todo. O cartaz do CURA 2020 foi
criado em conjunto pelas curadoras convidadas desta edição Arissana e Domitila.
Domitila desenvolveu uma colagem analógica com a obra Mulheres Xikrin da Arissana,
que demonstra um movimento corporal muito significativo e usado por povos em
danças e ritos. Um movimento de abraço coletivo circular que reflete a luta dos povos
indígenas e do povo negro no Brasil. A arte criada pelas duas também é um abraço
entre nações que se unem para ocupar, curar, cuidar e resistir. Existindo e sendo
criadoras das suas próprias histórias, fazendo através de suas mãos da arte à cura
(CURA, 2020).

• 6
Figura 3: Cartaz do CURA de 2020, de autoria de Arissana
Pataxó e Domitila de Paula.
Fonte: https://www.instagram.com/p/CEcsavIhsf6/?hl=pt-br

Nessa fala, a sigla do grupo foi associada ao substantivo “cura” e ao verbo “curar”, aos
conhecimentos ancestrais de negros e indígenas, a partir de um olhar feminino, materno
e acolhedor, anunciando as ações do ano de 2020, o que viria a seguir em 2021. Através
dessa proposta, a luta dos excluídos se transformaria em ação na cidade e no cotidiano.
A cura viria dessa ocupação do espaço que nunca a eles fora destinado, e que, por meio

• 7
da arte urbana, se conformaria como um compartilhar das memórias sociais que agora
estariam disponíveis, em grande formato, no panorama urbano, conformando uma cidade
com novas cores e novas personagens.

Figura 4: Entidades (Cobra Grande), de autoria de Jaider


Esbell, de 2020. Fotografia de Flávio Tavares do Jornal O
Tempo.
Fonte: https://www.instagram.com/p/CFe8lzOByCG/?hl=pt-
br
Foram inúmeras as intervenções em 2020, com destaque para a primeira escultura
urbana feita por um artista indígena em Belo Horizonte. A obra luminosa, de nome
Entidades, de Jaider Esbell, foi instalada nos arcos do Viaduto Santa Tereza. A presença
das cobras gigantes se configurou como um acontecimento surpreendente na cidade, num
momento crítico da pandemia. A Cobra Grande tem grande importância para o povo
Makuxi, de Esbell, que explicou o que ela representa em sua cultura:

o caminho das águas, da fartura, porque ela vive debaixo da terra, nos grandes rios
subterrâneos, mantendo o movimento da água sempre pulsando para que sejam
mantidas as fontes. É uma ideia de sacralizar mesmo esse animal que é tão banalizado

• 8
ainda na própria Amazônia, o quanto as pessoas não valorizam a sua sabedoria, a sua
medicina, o seu poder e também distendendo essa cosmologia para a nossa realidade
cotidiana e atual, que é o desafio que nós temos, de substituir o garimpo por outra
forma de economia, essa onda de tristeza secular que essa atividade econômica tem
causado pra toda humanidade (apud OBRA, 2020).

A escala, as cores, a forma e o significado de Entidades sobre os arcos do viaduto histórico


da cidade tiraram muita gente de casa para ver e fotografar os seres míticos, nunca antes
imaginados ou vistos na cena da cidade. Tanto durante o dia, quanto iluminadas, à noite,
criaram imagens que circularam na mídia e nas redes sociais, de uma Belo Horizonte
encantada pelos seres da floresta. Essa paisagem histórica, cujos arcos, foram
frequentemente escalados por poetas e escritores, liderados por Drummond, nos anos de
1920, numa ação deliberada do poeta contra a mesmice da capital mineira (VILLA, 2016),
foi novamente apropriada pela poesia, escapou da rotina e se encontrou, com a
ancestralidade dos povos originários, tão pouco, ou quase nunca, vivenciada nas cidades.

Ainda nessa edição, no Edifício Itamaraty, entre a Rua dos Tupis, e a Avenida Afonso
Pena, o artista negro Robinho Santana, de Diadema (SP), pintou o mural intitulado Deus
é mãe, com quase 2 mil metros quadrados, no qual há a imagem de uma mãe, com uma
filha no colo e com o filho agarrado ao seu braço, todos negros. A cena, com cores
quentes, como vermelho, amarelo e rosa, em diálogo com uma moldura amarela com
pixos de Poter, Lmb, Bani, Tek e Zoto, criou um grande impacto na paisagem urbana.

• 9
Figura 5: Deus é mãe, de autoria de Robinho Santana, 2020.
Fonte: https://www.instagram.com/p/CGmonaAhosZ/?hl=pt-
br
A pintura está situada na avenida mais importante e mais larga da cidade planejada. No
grande eixo que direciona o olhar para a Serra do Curral, que conforma o belo horizonte
que nomeia a cidade. Foi nesse contexto que a grande deusa negra, com seus filhos
pequenos, foi colocada e passou a compor parte das novas imagens que se quer fazer da
cidade, nesse espaço tradicional.

As duas obras, Entidades e Deus é mãe, ao exporem na cidade outros imaginários,


receberam ataques e foram ameaçadas. A obra de Esbell foi alvo do extremismo religioso

• 10
e de direitistas reacionários, que lideram ataques racistas por meio das redes sociais
(OBRA, 2020). A obra de Robinho Santana foi criminalizada em 2021 e as organizadoras
do CURA, junto aos cinco artistas, foram incluídos criminalmente no inquérito da Polícia
Civil que investigou a ocorrência de crime contra o meio ambiente. O motivo era a
presença da estética do pixo (CURA, 2021a). O CURA mobilizou a opinião pública e obteve
grande apoio popular e da mídia nas duas situações. Mas o embate demostra a dificuldade
do encontro com as representações daqueles que, para muitos, devem permanecer sem
história, sem memória, sem território e invisíveis.

Em 2021, ainda na pandemia, o destaque foi para a intervenção realizada na Praça Raul
Soares, que partiu da descoberta das referências marajoaras no grafismo do seu piso de
pedra portuguesa. Esse universo serviu como referência para uma grande anaconda que
foi pintada ao redor da praça, no asfalto, com cores contrastantes e fortes: amarelo, azul
e rosa, idealizada por Sadith Silvano e Ronin Koshi. Para o CURA, a grande guardiã das
águas e das florestas, foi invocada por muitas mãos que, em comunhão, fizeram emergir
a maior pintura Shipibo do mundo (CURA, 2021b).

Figura 6: Detalhe do estudo dos elementos marajoaras na


Praça Raul Soares em 2021.
Fonte: https://www.instagram.com/p/CUTXG3Up04z/?hl=pt-
br

Em dois de novembro, Dia de Finados, no início da noite, com a pintura em processo, foi
realizado um grande ritual coletivo de cura e encantaria envolvendo a experiência
ancestral, a defumação de limpeza, o cozimento de alimentos sagrados, o canto para a
Jussara sagrada e a pintura com genipapo dos grafismos marajoara. A praça foi
rebatizada Patú-Anu, tornando-se território encantado pela magia e força ancestral do
povo marajoara (CURA, 2021c). Coincidentemente, nessa mesma noite, em São Paulo, o
artista indígena Jaider Esbell se matou (ASSIS, 2021).

• 11
Figura 7: Vista aérea com a pintura realizada no asfalto, ao
reder da Praça Raul Soares, 2021. Foto de Rogério Argolo.
Fonte: https://www.instagram.com/p/CXUmU1grq-s/?hl=pt-
br

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na cidade, as ruas, as avenidas, as arquiteturas, os monumentos, as superfícies, os
ornamentos, em suma, todos seus marcos são repositórios de memórias que podem ser
acionadas a qualquer momento ao longo dos percursos dos sujeitos. O processo de
construção e planejamento desses espaços, entretanto, muitas vezes esteve atrelado aos
valores dos dominantes e das suas representações.

No caso de Belo Horizonte, talvez uma possível democratização da memória tenha se


dado por meio da arte urbana contemporânea. O CURA, por meio das intervenções

• 12
impactantes dos negros e indígenas, criou, em grande escala, experiências da malha de
Aarão Reis, que propiciaram a construção de outras memórias na vida cidade.

Outros universos de referência, com grandes dimensões, em cores fortes, tornaram-se


visíveis e certamente se constituirão como territórios de memória enquanto as obras
durarem. A esperança é que esse tipo de intervenção, assim como a Bandeira Brasileira
de Leandro Vieira, possa inspirar um futuro mais aberto, democrático, inclusivo, justo e
respeitoso em nosso país, restituindo a índios, negros e pobres seus espaços. Que a
consciência da importância desses grupos se amplie nas memórias, assim como o diálogo
e a mistura que, como se sabe, fazem do Brasil um país de muitas cores.

• 13
Figura 8: Detalhe da pintura no asfalto, ao redor da Praça Raul
Soares, 2021.
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• 16
MATÉRIAS DEMOLIDAS, MEMÓRIAS RESISTENTES
Narrativas sobre três cidades submersas
DEMOLITED MATERIALS, RESISTANT MEMORIES:
Narratives about three sunken cities
MATERIAS DEMOLIDAS, MEMORIAS RESISTENTES:
Narrativas sobre tres ciudades hundidas
Práticas, processos e institucionalidades

TREVISAN, Ricardo
Professor Doutor; FAU-UnB
prof.trevisan@gmail.com
TEIXEIRA, Carolina Guida
Graduanda; FAU-UnB
carolguidax@gmail.com
MÜLLER, Cristina Besen
Mestranda; FAU-UnB
crisbmuller@gmail.com
VIEIRA, Mariana Verlangeiro
Mestranda; FAU-UnB
mariana.verlangeirov@gmail.com
RESUMO
Frente às ações progressistas de desenvolvimento econômico-produtivo com
a instalação de inúmeras usinas hidrelétricas por rios do país, a partir da
segunda metade do século XX, validar a resistência memorial das cidades
afetadas por estas barragens é o objetivo central deste trabalho. Pelo uso de
fontes primárias e secundárias, embasadas por estudos históricos, o presente
artigo traz à baila três episódios da urbanização brasileira, que permitirão
compreender melhor as ações de demolição material e resistência memorial.
A partir das histórias das cidades barrageiras – ou cidades novas de
realocação – de Remanso (1976), na Bahia, Itacuruba (1988), em
Pernambuco, e Itá (1996), em Santa Catarina, estaremos atentos ao
momento em que suas antigas sedes foram inundadas permanentemente por
águas fluviais retidas. Uma história interrompida por uma decisão externa,
geralmente político-econômica, justificada para um bem maior: o progresso,
o desenvolvimento, a modernidade. Pequenas localidades que, devido a sua
proximidade com o rio, elemento de subsistência anterior, tiveram que ser
realocadas para outro local, com um novo ato fundacional. Identificar nesta
tríade de cidades a demolição material e, em contrapartida, revelar a
resistência memorial, podem favorecer uma melhor compreensão sobre esta
tipologia urbanística, com devida atenção às suas implicações e a seus
desdobramentos sobre o território.
PALAVRAS CHAVE Cidades novas; Cidade barrageira; Infraestrutura;
Resistência; Memória.

ABSTRACT
In view of the progressive actions of economic-productive development with
the installation of numerous hydroelectric plants along the country's rivers,
from the second half of the 20th Century onwards, validating the memorial
resistance of the cities affected by these dams is the central objective of this
work. Through the use of primary and secondary sources, based on historical
studies, this article brings to light three episodes of Brazilian urbanization
that will allow a better understanding of the actions of material demolition
and memorial resistance. Based on the stories of the dam cities – or
relocation new cities – in Remanso (1976), in Bahia State, Itacuruba (1988),
in Pernambuco State, and Itá (1996), in Santa Catarina State, we will be
attentive to the moment when their former headquarters were permanently
flooded by trapped river water. A history interrupted by an external decision,
usually political-economic, justified for a greater good: progress,
development, modernity. Small localities that, due to their proximity to the
river, an element of previous subsistence, had to be relocated to another
settlement, with a new foundational act. Identifying material demolition in
this triad of cities and, on the other hand, revealing the memorial resistance,
can favor a better understanding of this urban typology, with due attention to
its implications and its consequences on the territory.
KEY-WORDS New cities; Dam city; Infrastructure; Resistance; Memory.

• 2
INTRODUÇÃO
Alço os olhos [...](n)o adormecido rio incessante.
[...]
(que) Não está no tempo sucessivo,
mas nos reinos espectrais da memória.
Como nos sonhos,
atrás das altas portas não há nada,
nem sequer o vazio.
Como nos sonhos,
atrás do rosto que nos contempla não há ninguém.
Anverso sem reverso,
moeda de uma única efígie, as coisas.
Essas misérias são os bens
que o precipitado tempo nos deixa.
Somos nossa memória,
somos esse quimérico museu de formas inconstantes,
esse montão de espelhos rompidos. (BORGES, Cambridge, 1999, p. 382)

Figura 1 – Casa abandonada na região de Itá (SC), antes da inundação.


Fonte: Foto de Carmem Giongo (ÁVILA, 2019).

O vasto território brasileiro é esculpido por rios que conformam as bacias hidrográficas:
Amazônica, Tocantins-Araguaia, São Francisco, Platina, Parnaíba, Atlântico Nordeste
Oriental, Atlântico Nordeste Ocidental, Atlântico Leste, Atlântico Sudeste e Atlântico Sul.
Tamanha capilaride fluvial faz do Brasil o país com a maior reserva de água doce e
potável do planeta. Ademais, o potencial hídrico é responsável por gerar 70% da
energia elétrica a partir de usinas instaladas nas cinco regiões. São, segundo a Agência
Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), mais de duas mil barragens erigidas com esta
finalidade. Mas nem tudo é progresso e desenvolvimento. Para além dos notórios
impactos ambientais, estes equipamentos infraestruturais também causam impactos

• 3
sociais. O “processo de construção e implantação dessas barragens tem um custo social
que costuma ser invisível ao conjunto da sociedade. Comunidades inteiras são forçadas
a deixar suas casas e suas terras para dar lugar à barragem.” (ÁVILA, 2019, s/p). Em
prol do progresso, rupturas, separações, perdas são chagas marcadas naqueles que se
veem obrigados, de uma hora para outra, a sair de casa, a deixar suas terras, a se
mudar (Figura 1). Os bens materiais são abandonados. Mobiliários, edifícios, praças,
cemitérios, monumentos, mobiliários, terras produtivas etc. largados, rasurados,
apagados pelas águas que se avolumam após serem represadas. Restam aos antigos
moradores os escombros, as memórias, as recordações, os “espelhos rompidos” de uma
vida passada.

Com intuito de desvelar este processo, o presente artigo traz à baila três episódios da
urbanização brasileira, que permitirão compreender melhor as ações de demolição
material e resistência memorial. A partir das histórias das cidades barrageiras, ou
cidades novas de realocação, de Remanso (1976), na Bahia, Itacuruba (1988), em
Pernambuco, e Itá (1996), em Santa Catarina, estaremos atentos ao momento em que
suas antigas sedes foram inundadas permanentemente por águas fluviais retidas. Uma
história interrompida por uma decisão externa, geralmente político-econômica,
justificada para um bem maior: o progresso, o desenvolvimento, a modernidade.
Pequenas localidades que, devido sua proximidade com o rio, elemento de subsistência
anterior, tiveram que ser realocadas para outro local, com um novo ato fundacional.

A ocorrência de cidades novas de realocação foi comum no país a partir da metade do


século vinte, quando o crescimento da industrialização brasileira e das taxas de
urbanização do território demandavam consumo energético. Produzir energia se fazia
necessário e, como primeira alternativa, a construção de hidrelétricas foi assumida pelo
Estado. Barragens em rios para produção de energia, a partir de usinas hidrelétricas,
multiplicaram-se, garantindo consumo para regiões em processo de desenvolvimento
econômico. Todavia, no campo de alcance das margens dessas represas encontravam-
se antigos assentamentos, vilas e cidades que tiveram que ser removidas e
reassentadas. Além dos três casos em relevo, também podem ser citadas: Guadalupe
(PI) em 1963, Aripuanã (MT) em 1966, Nova Iorque (MA) em 1966, Igaratá (SP) em
1969, Pilão Arcado (BA) em 1974, Casa Nova (BA) em 1976, Santa Fé (BA) em 1976,
Sobradinho (BA) em 1976, São Simão (GO) em 1977, São Rafael (RN) em 1980, Nova
Ponte (MG) em 1982, Canindé do São Francisco (SE) em 1987, Petrolândia (PE) em
1988, Jaguaribara (CE) em 1997, Itueta (MG) em 2001. Cidades que receberam um
adjetivo – “nova” – à frente de seu nome para distinguir da antiga cidade, inundada
pelas águas retidas.

Nesse rol de exemplares, adotamos os conselhos do historiador Alfredo Bosi (1992, p.


19) para pinçar nomes e números frente ao “negrume que seria impossível sequer
vislumbrar no opaco dos tempos os vultos dos personagens e as órbitas desenhadas por

• 4
suas ações”. Ao intencionalmente definir três estudos de caso – cidades e datas –,
destacamos do conjunto aqueles capazes de nos clarear e ampliar o entendimento sobre
tais ocorrências. Remanso, Itacuruba e Itá serão os nossos “vaga-lumes”, guiados pelos
conselhos de Georges Didi-Huberman (2011, p. 45). Conformarão uma pequena
constelação a tecer histórias e possibilitar narrativas; uma diminuta nebulosa a criar
reflexões e prospectar caminhos futuros. Como diria o filósofo francês:

Essa imagem da constelação de vaga-lumes como a reunião de minúsculos fragmentos de


poder em uma unidade maior, como uma cristalização do ato de resistência, fornece-nos,
de fato, uma preciosa fórmula para o nosso futuro, ensina-nos um caminho a seguir: tal
qual o signo da constelação, nossa sobrevivência é um fenômeno que somente se
exprime por meio de um coletivo. E se a imaginação, que é uma manifestação da ordem
do poder, “nos mostra o modo pelo qual o Outrora encontra, aí, o nosso Agora para se
liberarem constelações ricas de Futuro, então podemos compreender a que ponto esse
encontro dos tempos é decisivo, essa colisão de um presente ativo com seu passado
reminiscente”. (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 61)

Na confluência histórica de Remanso, Itacuruba e Itá, busca-se “um choque, um rasgar


de véu, uma irrupção ou aparição do tempo” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 26).
Esperamos que ao emparelhar três objetos, de tempos e espaços distintos, as camadas
mnésicas aflorem e tragam consigo leituras originais, que possibilitem amalgamar peças
de um retrato em construção. Identificar nesta tríade de cidades a demolição material
e, em contrapartida, revelar a resistência memorial podem favorecer uma melhor
compreensão sobre esta tipologia urbanística, com devida atenção às suas implicações e
a seus desdobramentos sobre o território.

Embora existam várias peculiaridades relativas a cada uma destas cidades novas1 em
seus contextos de transposição espacial, por terem sofrido ações semelhantes no que
tange à esfera funcional da realocação, decidimos por analisar as semelhanças destas
três cidades a partir das diversas formas de resistência que as conectam. Deste modo, é
possível compreender algumas questões referentes ao impacto dos processos de
transferência destas e de tantas outras cidades que passaram por ações semelhantes.
Para explorar estas múltiplas facetas, especialmente da resistência, utilizamos como
metodologia uma revisão bibliográfica sobre as três cidades para delas extrair dados e
informações.

Estruturalmente, o trabalho perfaz três partes. A primeira, conceitual, compreende a


resistência como elo de conexão entre matéria e memória. A segunda apresenta a
tríade de casos, não de forma cronológica, mas cada qual com uma apropriação
particular sobre resistir: i) Resistência da barragem, que versa sobre a força da

1
O conceito de “Cidade Nova”, particularmente desenvolvido por Trevisan (2020), constitui-se de
núcleos urbanos: 1) empreendidos pelo desejo do poder público e/ou da iniciativa privada e
concretizados em ações específicas; 2) que buscam atender, ao menos de início, a uma ou mais funções
dominantes; 3) implantados num sítio previamente escolhido; 4) a partir de um projeto urbanístico; 5)
elaborados e/ou desenvolvidos por agente definido – eventualmente profissional habilitado; e 6) em um
limite temporal determinado, implicando inclusive um momento de fundação razoavelmente preciso.
Esses são seis atributos que definem o DNA de uma cidade nova, utilizados para identificar os
exemplares produzidos ao longo dos tempos.

• 5
barragem frente à demanda populacional de Itacuruba (PE); ii) Resistência social, que
debate a força de uma comunidade frente aos processos de realocação, com base no
caso de Remanso (BA); e iii) Resistência das ruínas, que investiga as estruturas que
permanecem da cidade submersa, a partir do caso de Itá (SC). Por fim, nas
Considerações Finais, refletimos sobre a Resistência das memórias destas cidades, as
quais passaram por extensas mudanças devido ao processo de realocação.

RESISTÊNCIA & MEMÓRIA


Rio que corre é água viva
Represa é água morta. (ACQUA Movie, vídeo)

O conceito de resistência permite diversas interpretações. A resistência pode ser


explicada como a força de reação à ação de outro corpo. No campo da eletricidade, tal
conceito é definido como a capacidade que os condutores têm de se opor à passagem
de uma corrente elétrica. Podemos igualmente compreender resistência como um ato
de autodefesa, oposição a um ataque, luta em defesa de um bem maior. No caso das
usinas hidrelétricas, o historiador Bruno Picoli (2011, p. 91) explica que “Um
empreendimento hidrelétrico nunca vem só. Assim como nunca vem de repente. Ao
contrário, é precedido (...) por um discurso redentor, sobretudo sedutor, de progresso
(...) um bem que vem para o bem”. Qualquer resistência a este empreendimento pode
ser considerado um ato anti-progresso, daqueles que estão “parados no tempo”.

Tensionando com esse discurso, a cientista social Mariana dos Santos (2014) explica
que a resistência é importante para que se consolide as demandas sociais. A formação
de uma identidade coletiva de resistência serve para contestar o poder dominante e
avançar a um projeto que garanta contrapartidas à população afetada. E uma maneira
de resistir, dos povos atingidos pelo represamento de um rio visando à instalação de
usinas hidrelétricas, é garantir que as memórias permaneçam, que estas se
sobressaiam, sobrevivam, às investidas de arruinamento dos bens materiais deixados
para trás. Para isso, devemos entender a importância da memória nesse processo
particular. Segundo o antropólogo francês Joël Candau:

A memória, ao mesmo tempo em que nos modela, é também por nós modelada. Isso
resume perfeitamente a dialética da memória e da identidade que se conjugam, se
nutrem mutuamente, se apoiam uma na outra para produzir uma trajetória de vida, uma
história, um mito, uma narrativa. (CANDAU, 2012, p. 16)

Os habitantes, ao garantirem a permanência do passado pelas memórias retidas


conjuntamente, possibilitam reviver as antigas sedes e, com isso, fazer que estas
subsistam “em espírito como páginas impressas nos livros que poderíamos abrir, ainda
que não os abríssemos mais” (HALBWACHS, 2004, p. 81). Na coletividade afetada,
recupera-se os fragmentos do passado, traz-se à vida as matérias inundadas. Como
lampejos, “memórias ocultas de um ‘outrora’” (JACQUES, 2018, p. 25) sobem à tona do

• 6
presente, com potência suficiente para sobrepor a morte imposta pelas águas barradas.
Mesmo que imprecisas, borradas e desconexas, tais memórias se tornam a única
ligação dos habitantes com suas origens e seu porto seguro para projeções futuras.

Quando Milton Santos (1999, p. 8) afirma que o território deve ser compreendido não
apenas em si próprio, mas como “território usado”, que se trata do “chão mais a
identidade”, a resistência se torna um instrumento de garantia das memórias. “É pela
identidade que se travam as grandes lutas. O modo de vida humano – sua cultura – é
ainda o mais eficiente elemento de agregação social” (MENDES DA SILVA, 2005, p. 36).
Ao terem suas terras submersas pelas águas, criando-se um descolamento sensorial
entre espaço e identidade, a população atingida cria mecanismos de defesa para
permanência da identidade e da cultura no prosseguimento da vida na nova localidade.
São estas resistências que veremos nos três episódios apresentados a seguir.

RESISTÊNCIA DA BARRAGEM, ITACURUBA (PE)

De forma semelhante a muitas cidades surgidas às margens do rio São Francisco, a


antiga cidade de Itacuruba, em Pernambuco, se desenvolveu de forma linear junto ao
leito. Sua fundação ocorreu inicialmente em 1870, como um ponto de apoio para
tropeiros e boiadeiros (MOREIRA; MAIA, 2020). Um século depois, em 1970, com o
propósito de expandir a oferta energética na região, porém, a construção da Usina
Hidrelétrica de Itaparica – também conhecida por Luiz Gonzaga – (Figura 2), cobriu com
suas águas o velho assentamento. Diante desse cenário, milhares de famílias foram
compulsoriamente transferidas para a nova cidade. Este empreendimento ficou a cargo
da Companhia Hidrelétrica do São Francisco (CHESF), criada em 1945, e da Companhia
de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (CODEVASF)2, fundada
em 1974. Ambas foram responsáveis pelo planejamento regional no denominado
“Polígono das Secas”, no Nordeste.

A obra da Usina de Itaparica, localizada entre os estados de Pernambuco e Bahia, teve


início em julho de 1979 e foi concluída em 1988. A escolha do sítio para a nova cidade
ocorreu em 1981, junto com o plano para a nova cidade. O projeto urbanístico, baseado
nos princípios modernistas, com zoneamento funcional, traçado regular e hierarquia
viária, foi finalizado em 1986, a partir de um convênio entre a CHESF e o governo do
estado de Pernambuco, através da Secretaria de Habitação (SEHAB/PE).

Neste processo de remoção da população itacurubense, antes da barragem ser


concluída, uma identidade coletiva foi consolidada. Em 1986, a fim de que as demandas
sociais e contrapartidas da população afetada fossem atendidas, trabalhadores da
antiga cidade acamparam no canteiro de obra da Usina de Itaparica, bloqueando por
seis dias a sua operação (Figura 3), o que promoveu o “Acordo de 86”. Esta resistência

2
Antes da CODEVASF, existia a Comissão do Vale do São Francisco (CVSF), de 1948.

• 7
garantia à população, a priori, boas terras para cultivo com irrigação contínua, assim
como casas, assistência técnica, financiamento de manutenção temporária,
indenizações favoráveis e participação efetiva nas decisões do reassentamento
(FIGUEIREDO, 2011). Contudo, a longo prazo, tais garantias foram relegadas por parte
do Estado, gerando uma elevada taxa de desemprego na região, sendo grande parte de
seus moradores, ainda hoje, dependentes de auxílios públicos e da VMT - Verba de
Manutenção Temporária.

Figura 2 – Usina Hidrelétrica de Itaparica, entre BA e PE. Figura 3 – Itacurubenses na ocupação do


Fonte: Souza, 2019. canteiro de obras. Fonte: Figueiredo, 2011.

Pode-se notar, no exemplo de Itacuruba, que a resistência da própria barragem


construída (Itaparica) foi maior que a resistência das necessidades e direitos básicos da
população. Dessa forma, o poder dominante não pôde ser barrado ou transcendido por
parte da população, como foi pretendido, mas, ao menos, esbarrou na força do coletivo
e nas reivindicações pretendidas.

RESISTÊNCIA SOCIAL, REMANSO (BA)

A criação de imenso lago, na microrregião de Juazeiro, no estado da Bahia, a partir da


construção da Usina Hidrelétrica de Sobradinho no rio São Francisco pela CHESF,
implicou na realocação de cidades, dentre as quais, Remanso, situada a
aproximadamente 720 km de Salvador. A antiga sede da cidade foi inundada (Figura 4),
dando origem à Remanso Novo em 1977, transposta para as margens do lago e a
menos de 10 km da antiga sede. Assim como Itacuruba, a cidade nova surgiu com o
propósito de abrigar os antigos moradores, sob a justificativa estatal de promoção
desenvolvimentista para o Nordeste. Quanto ao plano urbanístico, a partir do projeto do
arquiteto Roberto Cortizo Justo, a cidade recebeu um traçado diferenciado da pré-
existente, com uma trama viária regular, setorização funcional, sistemas de
infraestrutura etc. Novamente houve a promessa, por parte da Companhia, de uma
melhora das condições de vida dos moradores, sobretudo sob o aspecto econômico a
partir da perspectiva de progresso.

• 8
Figura 4 – Capela semi-inundada da Remanso Velho. Fonte: Revista Veja, 4 de abril de 1979, p. 50.

Apesar da intenção do plano e da responsabilidade legal da CHESF de indenizações


amigáveis ou judiciais pelo “preço justo”, o pesquisador Antonio Willamys Fernandes da
Silva (2020) aponta a complexidade social e humana relacionada a questões que
ultrapassam a esfera econômica. As terras férteis alagadas representavam a principal
fonte de trabalho de quase a totalidade da população, como podemos observar no
relato a seguir:

Rodolfo Rodrigues era dono de uma propriedade nas imediações do rio, antes da
construção de Sobradinho, e, baseado na sua experiência com o rio, a mesma dos
ancestrais, não aceitava a ideia de que as águas pudessem subir tanto ao ponto de
submergir as campinas do Juá Velho, as árvores, as casas... Negando a possibilidade, e
as propostas da CHESF, seu Rodolfo foi ficando. Ofereceram caminhões para a mudança.
Ofereceram dinheiro, terra. Mas ele não pretendia sair. Já no período do alagamento, as
equipes chegaram a visitá-lo de helicóptero, na tentativa de convencimento, e
encontraram o homem com um dique de areia, feito com enxadas e pás, com o qual
pensava poder resistir àquela enchente, como havia resistido a outras. Mas as águas
continuaram a subir, como nunca antes, e só então Rodolfo capitulou, retirando-se às
pressas, com a família e bens, perdendo nisso, metade do gado e objetos. (MENDES DA
SILVA, 2005, p.25-26)

A situação de vulnerabilidade da população ribeirinha das cidades realocadas, fragilizada


pelas repercussões nas mais diversas escalas, criava um cenário complexo: a falta de
qualificação profissional dificultava a possibilidade de reabsorção desta mão de obra em
diferentes setores econômicos ou mesmo a possibilidade de se adaptarem a novos
ambientes. Conforme argumenta Fernandes da Silva (2020),

Para os moradores, a mudança da área a ser inundada não era encarada como um
processo individual, mas sim grupal e coletivo, ou seja, existia uma preocupação enorme
com a desintegração do espírito comunitário. A insegurança e o temor manifestados
diante do desconhecido representam, em última análise, o rompimento daqueles laços

• 9
que se estabelecem em nível da comunidade, dos grupos de parentesco e de vizinhança.
(FERNANDES DA SILVA, 2020, p.52-53)

É neste contexto que a população dos atingidos pelas grandes obras sentiram a
necessidade espontânea de se organizar para exigir reparações, diante aos expressivos
processos de transformação por ela enfrentada. As reivindicações frente à expulsão da
população ocorreram no período da redemocratização política nacional, no final de
1970, que culminaram, por parte do Estado, em indenizações, na maioria dos casos.
Diante desta situação surge o Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB (DOS
SANTOS, 2014). A resistência social, uma vez mais, se coloca frente ao progresso e,
pelo coletivo, tenta reparar as perdas, reconstruir o futuro.

RESISTÊNCIA DAS RUÍNAS, ITÁ (SC)

Assim como Remanso e Itacuruba, Itá é uma cidade nova de realocação. Na verdade,
Itá pode ser lida como uma cidade duplamente nova, já que primeiramente foi fundada
no processo de colonização do oeste catarinense, e passou por realocação para
construção da Usina Hidrelétrica de Itá. A cidade nova de colonização de ascendência
italiana e alemã foi fundada em 1919 pela Empresa Colonizadora Luce Rosa e Cia. Ltda.,
em áreas previamente ocupadas por indígenas Kaingang e Xokleng às margens do Rio
Uruguai (NÓR, 2001). Em 1956, após disputas com o município de Seara, a localidade
foi promovida à categoria de município.

Segundo o geógrafo Marcilei Vignatti (2013), entre 1966 e 1979, o Comitê de Estudos
Energéticos da Região Sul iniciou um planejamento para a instalação de usinas
hidrelétricas ao longo da bacia do rio Uruguai. Em 1979, a Eletrosul (Companhia de
Geração e Transmissão de Energia Elétrica do Sul do Brasil), estatal do governo federal,
oficialmente anunciou a construção de uma usina hidrelétrica na região. O município de
Itá foi o mais afetado, tendo toda sua área urbana e parte da área rural completamente
alagadas. Para a socióloga Zilma Isabel Peixer (1993, p. 22), “A divulgação do projeto
foi acompanhada de uma perspectiva de inevitabilidade do mesmo”. Como a decisão de
realocar o centro urbano foi tomada sem a participação da população local, houve a
formação de resistência comunitária, principalmente dos trabalhadores rurais.

A primeira reação da população foi de choque e insegurança. Pois as informações


divulgadas eram imprecisas. Como demonstraram os estudos de Scherer-Warren e Reis
(1988), na área rural de abrangência da hidrelétrica de Itá, iniciou-se um processo de
resistência à realização da mesma. Foi se formando o Movimento dos Atingidos pela
Barragem. O movimento conseguiu uma grande mobilização dos agricultores atingidos,
em 1979 formou-se a Comissão Regional de Atingidos por Barragem (CRAB). (PEIXER,
1993, p. 22-23)

Apesar disso, em 1981 a Eletrosul e os moradores locais entraram em um consenso


pela realocação do município para a região chamada Sítio Altos de Itá, área de 132
hectares (1,32 km²) a 5 km de distância do antigo centro da cidade. Diferentemente da

• 10
região original, o novo sítio apresentava relevo acidentado, com três pontos planos. A
maioria do centro da “cidade velha” foi demolido, já que as estruturas tradicionais dos
grupos que colonizaram a região eram construídas em madeira (PICOLI, 2011) (Figura
5). No processo de demolição da cidade, esvaziaram até mesmo as covas do cemitério,
conforme reportagem de Aline Leonhart, de 2015, para a RBA TV, afiliada local da TV
Brasil.

Figura 5 – O antigo centro de Itá após o processo de demolição – ainda não inundado.
Fonte: Itá Ecoturismo.

Da velha Itá restou apenas as torres da igreja, marco histórico da resistência das
ruínas. Estas torres se preservaram por uma espécie de ‘teste de fé’ que ocorreu no
momento da demolição da igreja. Em entrevista realizada para a mesma matéria, uma
moradora relata que quando a equipe de obras tentou demolir as torres e a fachada
frontal, os equipamentos de serviço estragaram. No dia seguinte, retornaram ao local
para finalizar o serviço, mas os tratores que vinham sendo utilizados na obra também
pararam de funcionar. A equipe encarou isso como um sinal divino e desistiu da
demolição. Realizou-se dali consulta pública, na qual os moradores decidiram
transformar a fachada em ponto turístico (ITÁ, 2015).

A barragem de Itá entrou em operação no ano de 2000 e atingiu 3.560 famílias, das quais
827 sofreram deslocamento compulsório e foram reassentadas [...]. As outras famílias
receberam cartas de crédito e adquiriram terrenos em regiões de sua escolha ou
permaneceram residindo no entorno do reservatório em pequenas comunidades
reconstruídas pela empresa responsável pelo empreendimento. (GIONGO; MENDES,
2020, p. 318)

• 11
Segundo Peixer (1993), a maioria das residências em zonas rurais foram expropriadas,
enquanto os habitantes da área urbana optaram por serem realocados e receberem
como indenização novas residências no centro da Nova Itá, construídas em alvenaria,
de áreas iguais ou maiores às suas propriedades originais. Algumas edificações foram
transportadas e reconstruídas na nova Itá, como as casas Camarolli e Alberton, que
abrigam as Casas da Memória do município (ITÁ, 2021). Estas edificações foram
consideradas historicamente relevantes durante o Projeto Arca de Noé, em que a
Eletrosul, juntamente aos moradores de Itá, buscava compreender os aspectos
socioculturais e históricos municipais (FORCELINI, 2017).

O princípio geral de organização espacial e formal de Nova Itá foi baseado em uma leitura
sistemática da cidade antiga e dos núcleos da região no que diz respeito à morfologia dos
espaços urbanos e aos tipos de construção encontrados. Assim, além dos estudos sociais,
políticos e ambientais da região, foram detectadas a ordem, a natureza e as relações das
construções com seu espaço urbano, além das técnicas construtivas utilizadas, formas e
modos de organização espacial dos edifícios, sistemas ornamentais etc. (REVISTA
PROJETO, 1989)

Conforme matérias dos números 71 e 126 da Revista Projeto (1985 e 1989,


respectivamente), o projeto de reconstrução da nova Itá foi desenvolvido por uma
equipe multidisciplinar originária da Eletrosul, que utilizou como ferramenta projetual a
pesquisa histórica das construções típicas da região. A partir disso, o grupo profissional
desenvolveu um catálogo de elementos a serem incluídos nas novas residências,
contendo modelos de portas, empenas de telhados, janelas, guarda-corpos, entre
outros (Figura 6). O projeto ocorria com a participação de cada proprietário, para que
seus desejos individuais fossem respeitados ao longo da realocação.

Esse tipo de estratégia, pouco usual em processos de realocação de cidades – não


identificado em Itacuruba e Remanso –, possibilitou a formação de uma conexão
identitária dos habitantes com a Nova Itá, bem como uma espécie de perpetuação da
memória daquilo que foi inundado pelas águas do rio Uruguai. A inclusão das facetas
socio-histórico-culturais, durante a realocação de Itá, é coerente com o período em que
este projeto foi desenvolvido, entre 1981 e 1996. Os arquitetos e urbanistas que
participaram do projeto pareciam seguir uma perspectiva pós-moderna do patrimônio
histórico, na qual a reconstrução dos signos culturais locais funcionaria como uma
espécie de reconstituição arquitetônica das ruínas da velha Itá. Para concluir este
pensamento, cita-se um trecho da reportagem que apresenta detalhadamente os ideais
desenvolvidos pela equipe projetual:

Nova Itá torna-se um elo diferenciado dessa cadeia de cidades novas. Mais pelo processo
de trabalho, que leva em conta o fato de trabalhar ‘com e para’ uma população
organizada e estabelecida considerando sua realidade e sua história como dados de
projeto para a nova cidade. [...] Nesse caminho, onde “as pedras da cidade nova são as
velhas pedras”, memória e referência são conceitos-chave para fixar a população no seu
novo espaço, evitando o êxodo, consequência da ausência súbita de raízes. As perdas
físicas e afetivas são amenizadas e as novas aspirações computadas, graças a um sistema

• 12
de cruzamento entre tradição e modernização que pode ser considerado a base desse
trabalho. (REVISTA PROJETO, 1989)

Figura 6 – Seções do catálogo construtivo para Nova Itá. Fonte: Revista Projeto, n. 126, 1989.

CONSIDERAÇÕES FINAIS, RESISTÊNCIA DAS MEMÓRIAS

Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas,
inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança, unicamente aliança. A
árvore impõe o verbo “ser”, mas o rizoma tem como tecido a conjunção “e... e... e...” Há
nesta conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser. Entre as coisas
não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas
uma direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra,
riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio.
(DELEUZE; GATTARI, 1995, p. 4)

Ao subverter a lógica rizomática do rio, podemos considerar, metaforicamente, que toda


a água represada impôs o verbo “ser” às bacias hidrográficas abordadas neste trabalho,
uma vez que foram instaladas usinas hidrelétricas. Tais equipamentos infraestruturais
frearam a velocidade e vazão dos rios, controlando-os, com a finalidade de produzir
energia. Uma mesma matriz – o represamento das águas – gerou a eletricidade, a
iluminação, propriamente dita, das cidades novas e o “apagamento” ou “alagamento”
das cidades antigas. Dentro de uma perspectiva progressista, podemos considerar que a
“luz” das cidades antigas foi apagada para um bem maior: trazer a luz a outros lugares,
promovendo a geração de eletricidade, empregos e desenvolvimento para outras
regiões. Ao direcionarmos, porém, uma visão mais próxima – dentro do contexto

• 13
específico das terras de cada cidade, assim como da população que lá residia –
podemos observar que o mesmo verbo “ser” foi capaz de “sacudir e desenraizar” suas
prospecções passadas.

De repente, tirou-se o chão dos moradores das antigas cidades, antes amparados por
identidades de raízes profundas, cravejadas naqueles solos ribeirinhos (FIGUEIREDO,
2011). Dessa forma, ao serem expropriados, os moradores se viram obrigados a
enterrarem, na antiga região, grande parte de suas raízes e memórias. Suas vidas, que
antes corriam por caminhos conhecidos – feito os rios que fluíam continuamente
protegidos por seu leito –, passaram a seguir um outro tempo: um tempo em
suspensão que conduzia pessoas também suspensas, exiladas e carentes de raízes.
Entretanto, nem todas as raízes se perderam, algumas resistiram e resistem até hoje.
Tal como o rio caudaloso que foi represado, as memórias, em parte, seguem fluindo:
continuam por de baixo (no inconsciente) emergindo das profundezas de outras formas,
em outros lugares.

Tendo em vista que as cidades submersas não existem mais fisicamente – apenas nos
relatos, poemas, músicas, fotos e registros do que, antes, eram as cidades beira-rio –,
a resistência expressada pela memória dos antigos habitantes pode se manifestar de
várias formas. Nesse sentido, a memória representa a permanência da cultura de um
povo, mesmo quando a velha cidade se esvai. Esta resistência, presente em diversas
outras esferas, quando manifestada por meio da memória da população, constitui parte
do legado cultural daquele povo que ali residia.

Com isso, pode-se observar que a memória – seja na forma material (conformada por
ruínas, resquícios ou fragmentos) ou imaterial (arquivo memorial, iconografia, tradição
verbal) – é, em si mesma, uma forma de possibilitar a perpetuação e resistência do
passado no presente. Existe uma estrita relação entre a memória material e imaterial
da comunidade, de forma que a memória material promove o alicerce e a consolidação
da memória coletiva, imaterial, da população, possibilitando o desenvolvimento de sua
identidade e reforçando, assim, seu sentimento de pertencimento em relação a um
dado lugar (GOMINHO; CARNEIRO, 2020). Nesse sentido, as ruínas das antigas cidades,
como reminiscências que salvaguardam as histórias por trás do deslocamento daqueles
que ali viviam, desempenham um importante papel nesse processo de relutância parcial
da manutenção de uma identidade – ou de um fragmento de identidade – que fora
afogada.

Se as usinas hidrelétricas representam o progresso, as ruínas, por sua vez, conformam


resquícios de memórias materiais que um dia brilharam aos olhos dos habitantes. Elas
compõem representações que remetem aos lampejos memoriais pertencentes à
população, de locais que foram afogados e apagados. Tais lampejos, como fagulhas
desestabilizantes, perfuram as dicotomias engendradas por esses habitantes – que

• 14
oscilam entre as noções de desaparecimento e emergência, ruína e construção,
desabrigo e lar, desidentificação e identidade – costurando, assim, um tecido individual
e coletivo, inconsciente, tramado pelos habitantes, em constante reconfiguração. A
memória, nessa trama relacional, como os vagalumes, é evanescente e emite sinais
sobreviventes inconstantes, resistindo ao desaparecimento:

Primeiro, desapareceram mesmo os vagalumes? Desapareceram todos? Emitem ainda –


mas de onde? – seus maravilhosos sinais intermitentes? [...] como os vagalumes
desapareceram ou “redesapareceram”? É somente aos nossos olhos que eles
“desaparecem pura e simplesmente”. Seria bem mais justo dizer que eles “se vão”, pura
e simplesmente. Que eles “desaparecem” apenas na medida em que o espectador
renuncia a segui-los. Eles desaparecem de sua vista porque o espectador fica no seu
lugar que não é mais o melhor lugar para vê-los. Para conhecer os vagalumes, é preciso
observá-los no presente de sua sobrevivência. (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 45-52)

Dentre as três cidades, Itacuruba é a única cidade em que não restaram ruínas que
abriguem esses lampejos, apenas sobrevivências, entendidas como:

[...] uma forma de presença ou de "herança", de um tempo que ainda sobrevive, mesmo
que em breves lampejos mnemônicos, em outro tempo. Um tipo de anacronismo pautado
na questão da memória, da memória social, cultural, mas também, e sobretudo, da
memória involuntária, coletiva ou individual. [...] A memória involuntária, como nos
sonhos e também no despertar, opera por deslocamentos, por sobrevivências, por
montagens, criando nexos inesperados, de forma não linear, anacrônica e fragmentária.
(JACQUES, 2020, p. 127-128)

Por fim, de maneira semelhante, as resistências, que persistem no presente – as lutas


sociais em Remanso ou as ruínas e preservações patrimoniais de Itá – também são uma
tentativa de reintegrar e ressignificar essas memórias reprimidas e represadas (dentro
de suas múltiplas temporalidades) a fim de que, talvez, possa ser resgatado esse
passado, de uma outra forma, no futuro. Como apontado por Didi-Huberman (2011,
p.45-52), que essa ressignificação possa funcionar como o vagalume que, “no presente
de sua sobrevivência” pode acender e apagar a luz das memórias e narrativas. Que
essas, coletivamente, possam desenhar novas constelações, “ainda que essa noite seja
varrida por alguns ferozes projetores. Ainda que por pouco tempo. Ainda que por pouca
coisa a ser vista.”

• 15
REFERÊNCIAS
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2019. 105 min. Canal Arte 1.
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construção de barragens. Sul 21. 1º de abril de 2019. Disponível em: Entrevistas|O que
se faz na universidade|z_Areazero - Sul 21. Acessado em: 18 de julho de 2022.
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BOSI, Alfredo. O tempo e os tempos. In: NOVAES, Adauto (Org.). Tempo e história. São
Paulo: Companhia das Letras, 1992. pp.
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34, 1995.
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Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.
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populações deslocadas - o caso Itacuruba. Tese (Doutorado em Antropologia) - Programa
de Pós-Graduação em Antropologia, Universidade Federal de Pernambuco. Recife. 2011.
FORCELINI, Melody. “Colossal, Complexa, Imprescindível”: Tecnologia de Força Bruta e a
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GOMINHO, Kerollayne Cavalcante; CARNEIRO, Henrique Figueiredo. Velha Petrolândia:
memórias de uma cidade perdida no semiárido pernambucano. Desenvolvimento e Meio
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ITÁ: a cidade que estava no caminho do progresso. Produção: Aline Leonhardt. Intérpretes:
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• 16
PEIXER, Zilma Isabel. Utopias de progresso: ações e dilemas na localidade de Ita frente a
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PICOLI, Bruno Antônio. Sob os Desígnios do Progresso: a experiência dos camponeses
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TREVISAN, Ricardo. Cidades Novas. Brasília: EdUNB, 2020.
TREVISAN, Ricardo. Às Margens do São Francisco: CHESF e suas Cidades Novas de
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VIGNATTI, Marcilei Andrea Pezenatto. Modificações territoriais induzidas pelas usinas
hidrelétricas do rio Uruguai, no Oeste Catarinense. Tese (Doutorado) - Curso de
Geografia, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa
Catarina. Florianópolis. 2013.

• 17
MEMÓRIA E POLÍTICAS PÚBLICAS URBANAS
A memória dos trabalhadores da Mooca e a Operação Urbana
Consorciada Bairros do Tamanduateí
CLASS MEMORY AND URBAN PUBLIC POLICIES
Eixo: Cidade, política e cultura
RESUMO

Este trabalho tem como objetivo apresentar um debate acerca dos caminhos
e limites das políticas públicas urbanas atuais em prol da preservação da
memória da classe trabalhadora a partir do espaço urbano. Esse debate é feito
através de uma análise teórica acerca das relações entre memória, espaço
urbano e hegemonia, por meio da produção de Maurice Halbwachs e Michael
Pollak, dois teóricos que se debruçaram no estudo da memória. Sob a luz dessa
análise, são apresentados alguns dos caminhos e limites da Operação Urbana
Consorciada Bairros do Tamanduateí no que diz respeito à preservação da
memória coletiva dos moradores do bairro da Mooca.

PALAVRAS CHAVE Urbanismo; Memória; Operação Urbana; Mooca; Classe


Trabalhadora.

ABSTRACT OU RESUMEN

This paper aims to present a discussion about the paths and limits of current
urban public policies in favor of preserving the memory of the working class
from the urban space. This discussion is carried out through a theoretical
analysis of the relationship between memory, urban space and hegemony,
through the intelectual production of Maurice Halbwachs and Michael Pollak,
two theorists who have focused on the study of memory. In the light of this
analysis, some of the paths and limits of the Tamanduateí Neighborhoods
Urban Consortium Operation are presented with regard to the preservation of
the collective memory of Mooca’s residents.

KEY-WORDS Urbanism; Memory; Urban Operation; Mooca; Working Class.

• 2
MEMÓRIA, ESPAÇO URBANO E CONSTRUÇÃO DE HEGEMONIAS
Falar de memória a partir do espaço urbano exige, de modo geral, entender que o próprio
processo de formação do espaço reflexe lógicas de produção complexas e que estão
diretamente atreladas à configuração social e econômica do indivíduo e/ou dos grupos
em análise, sendo necessário, nesse sentido, se atentar às hegemonias historicamente
consolidadas e que impactam também na construção de memórias, sejam elas individuais
ou coletivas.
Maurice Halbwachs, em sua análise acerca da relação entre memória coletiva e espaço,
nos ajuda a compreender essa relação direta entre a memória e as diferentes dimensões
que configuram o espaço urbano, passando por aspectos materiais e imateriais, bem
como culturais, políticos e econômicos em um sentido mais amplo. Apesar de Halbwachs
utilizar os termos grupo econômico e sociedade local (1968, p. 139), não apresentando
abertamente um recorte de classe, sua abordagem permite que estas noções sirvam
também, de modo aproximado, a uma leitura a partir da diferenciação entre classes. De
modo geral, Halbwachs entende que a relação de significação do espaço por meio da
memória do indivíduo não se estabelece somente pelo fato de determinado grupo
compartilhar o mesmo espaço, mas também, e necessariamente, pelo fato de os
indivíduos que integram esse grupo compartilharem as mesmas condições de vida – e,
nesse sentido, a própria condição proletária, quando se pensa em termos de classe.
O sociólogo francês, que introduz sua reflexão ao abordar a relação entre indivíduos e
objetos, assim encontra nestes últimos referência mais ampla ao grupo ao qual os
primeiros pertencem, de modo que considera não ser possível dissociá-los, bem como
entende que um explica e transforma o outro, e vice-versa. A partir desse primeiro
entendimento, que explica também por que conseguimos decifrar familiarmente o
significado dos objetos – do que, grosso modo, se depreende uma linguagem
compartilhada entre os indivíduos –, Halbwachs ainda apresenta uma segunda
consideração, que se encontra na percepção de certa constância e “imobilidade” dos
objetos, que dariam a impressão de que estes não estão em transformação. Mas se a
permanência de tais objetos – ou do espaço, antecipando o raciocínio apresentado pelo
autor – não recusa suas transformações, elas, segundo essa mesma lógica, não poderiam
ser apreendidas somente por seus aspectos físicos.

Não estávamos errados ao dizer que [os objetos] estão em torno de nós como uma
sociedade muda e imóvel. Se não falam, entretanto os compreendemos, já que têm um
sentido que deciframos familiarmente. Imóveis, apenas o são aparentemente, já que as
preferências e os hábitos sociais se transformam, e se nos cansamos de um móvel, ou de
um quarto, é como se os próprios objetos envelhecessem. (HALBWACHS, 1968, p. 132)

As colocações de Halbwachs são especialmente pertinentes na análise da memória urbana


porque ele aproxima a categoria memória, comumente associada a fatores relativos à
experiência do indivíduo em escalas locais e em pequenos grupos, a dimensões que se
mostram mais amplas e que dialogam com a estrutura social e econômica como um todo.

• 3
Além disso, essa aproximação é feita a partir da materialidade dos objetos e, ao longo do
seu texto, se estende ao espaço, expresso em sua materialidade complexa.
Outro autor que possui uma vasta produção bibliográfica acerca da categoria memória e
que nos ajuda nessa aproximação com o tema é Michael Pollak. Como Pollak defende no
texto Memória, Esquecimento, Silêncio, publicado em 1989, a memória está em disputa.
Pollak, em termos gerais, argumenta sobre como a memória tem um papel social
decisório, na medida em que permite ao indivíduo situar-se historicamente em relação
aos acontecimentos sociais. O autor demonstra, ao mesmo tempo, a grande influência
que a história oficializada estabelece em relação a um povo, atravessando décadas,
séculos, e consolidando ideários.
Como é possível assimilar a partir das argumentações de Pollak, esse processo se dá de
modo profundamente associado a processos experimentados de modo individual, mas
que também se manifestam coletivamente e em larga escala, movendo-se entre uma
dimensão singular, um tanto íntima, e uma dimensão mais ampla, capaz de gerar
conexões, estabelecer um sentimento de pertencimento e uma noção de identidade, além
de demonstrar lógicas de dominação e subordinação social. A respeito disso, Pollak,
então, indica também como a manifestação tardia de uma experiência guardada na
memória pode ser reflexo de uma experiência traumática.
É exatamente o caráter clandestino, proibido, indicado por Pollak (POLLAK, 1989, p. 3)
que uma memória pode adquirir que demonstra essa condição de subordinação frente a
uma dominação hegemônica em curso, na medida em que a própria manifestação está
essencialmente acuada - e, exatamente por isso, ela acontece tardiamente. Outro fator
que colabora para isso é o próprio processo doloroso, marcado por traumas, enfrentado
pelos indivíduos envolvidos, que torna a memória algo a ser esquecido, deixado de lado,
ainda que seja importante, do ponto de vista social, retomá-la como um registro histórico
e objeto de reflexões e transformações. Como Pollak coloca: “[...] o silêncio tem razões
bastante complexas. Para poder relatar seus sofrimentos, uma pessoa precisa antes de
mais nada encontrar uma escuta” (1989, p. 4).
Quando, então, trazemos tais reflexões para a discussão de memórias relativas à classe
trabalhadora a partir da história urbana, alguns pontos são especialmente relevantes.
Antes de mais nada, é importante ressaltar o papel da memória social e da história urbana
no processo de construção e reconhecimento de narrativas diversas que, quando
combinadas, reforçam a percepção do conflito de classes, que se mostra inerente à
sociedade no sistema de produção capitalista. Se estamos falando de classe trabalhadora,
estamos fazendo uma referência direta a uma condição de subordinação enfrentada por
determinado grupo social. Em outras palavras, é essencial compreender que as diferentes
memórias coletivas que podem ser assimiladas e contadas a partir da história urbana
estão inseridas em um contexto histórico-social que não pode ser ignorado - o que,
entretanto, tem sido comum.
Nesse sentido, e as colocações de Pollak colaboram para analisar isso, a memória tem
um papel fundamental para evitar o apagamento histórico de grupos que estão
historicamente marginalizados, ainda que esteja constantemente influenciada por uma

• 4
representação histórica construída pela hegemonia dominante. Como o autor ressalta,
“se é possível o confronto entre a memória individual e a memória dos outros, isso mostra
que a memória e a identidade são valores disputados em conflitos sociais e intergrupais,
e particularmente em conflitos que opõem grupos políticos diversos” (POLLAK, 1992, p.
205). Essa compreensão é importante para que o estudo de uma memória social não
resulte apenas em um aglomerado de memórias pessoais, diversas entre si, carregadas
de curiosidade, mas sem um olhar crítico e sem uma abordagem que abarque a condição
de subordinação compartilhada entre diferentes grupos, situados em diferentes
localidades do mundo.
Assim, em termos gerais, nesse estudo encara-se a categoria memória como um produto
complexo de relações em diferentes escalas e que reflete aspectos não tão-somente
individuais e subjetivos, mas também sociais, econômicos e, em suma, objetivos dos
indivíduos e/ou grupos a ela associados.

POLÍTICAS PÚBLICAS URBANAS: ALIADAS OU INIMIGAS NA PRESERVAÇÃO


DA MEMÓRIA DA CLASSE TRABALHADORA?

Desde pelo menos a década de 1990, no Brasil, uma crescente preocupação com o
intitulado patrimônio industrial tem se mostrado presente em estudos acadêmicos acerca
do patrimônio cultural urbano e em políticas de preservação relativas a esse mesmo
patrimônio. Tal preocupação parece ter se desenvolvido e se intensificado, de modo geral,
à medida que os antigos espaços destinados a atividades industriais - como fábricas,
galpões, ferrovias, vilas operárias, oficinas, dentre outros - tornaram-se obsoletos e
passaram a constituir expressivas reservas de terra subutilizada, que despertaram o
interesse do mercado imobiliário.
Esse patrimônio industrial, então, tornou-se objeto de disputa na cidade, o que
intensificou o processo de especulação imobiliária e as consequentes desigualdades
socioespaciais a ela associadas, impactando as condições de vida da classe trabalhadora.
Dentre as contradições geradas por essa disputa, pode-se citar, por exemplo, a frequente
remoção de moradores antigos de bairros constituídos através do cotidiano operário, além
da demolição de espaços de memória operária – ou sua apropriação pelo capital –,
afetando as possibilidades de salvaguarda de um patrimônio associado à memória de
grupos que integram a classe trabalhadora.
Na cidade de São Paulo, esse processo se tornou particularmente notório, uma vez que a
urbanização paulistana, sobretudo no final do século XIX e ao longo das primeiras décadas
do século XX, esteve diretamente atrelada à instalação de indústrias na cidade e à
articulação destas com cidades do interior paulista e de outros estados. De fato, a partir
da análise do processo de ocupação urbana da cidade de São Paulo, é possível perceber
como a formação de bairros adjacentes ao núcleo central se estabeleceu em função da
instalação progressiva de uma rede ferroviária, sobretudo ao longo das várzeas dos rios,
acompanhada da construção de conjuntos industriais. Assim, ao voltar-se mais

• 5
recentemente para essas grandes glebas ocupadas por fábricas paulistanas agora
desativadas, o mercado imobiliário passou também a reformular o futuro de bairros
operários inteiros.
No cenário paulistano, essa reformulação tem tido um importante colaborador – o próprio
Estado, que tem como um de seus instrumentos de atuação as políticas públicas urbanas.
Pesquisadores do urbanismo e do patrimônio cultural já têm observado como a crescente
utilização das parcerias público-privadas, sob a forma das chamadas Operações Urbanas
Consorciadas (OUC), tem sido apresentada como uma suposta alternativa para efetuar a
preservação e requalificação do patrimônio industrial, este sob a ameaça do abandono,
da deterioração e da demolição. Segundo o Estatuto da Cidade,

Considera-se operação urbana consorciada o conjunto de intervenções e medidas


coordenadas pelo Poder Público municipal, com a participação dos proprietários,
moradores, usuários permanentes e investidores privados, com o objetivo de alcançar em
uma área transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização
ambiental. (ESTATUTO DA CIDADE, Artigo 32, Parágrafo 1)

As OUCs, assim, são uma das expressões mais recentes das políticas públicas urbanas e
estão incorporadas ao Plano Diretor. O debate acerca desse instrumento é recente, mas
tem se mostrado vasto, na medida em que permite trabalhar distintos aspectos do
processo de produção do espaço urbano. Na perspectiva do patrimônio cultural e da
memória urbana, esse debate abre caminhos para se recuperar aspectos importantes do
processo histórico de formação da cidade de São Paulo e se refletir sobre qual o lugar
dado à memória da classe trabalhadora no processo de formulação de políticas públicas
urbanas.

A preservação do patrimônio industrial monumental e o apagamento de


memórias no bairro da Mooca, em São Paulo

O apagamento da memória operária materializada no espaço urbano é perceptível em


diversas cidades do Brasil e do mundo, como reflexo de disputas que têm a cidade não
somente como palco mas também como objeto, levando-se em conta um contexto de
produção capitalista que se estabelece também através da produção do espaço urbano.
No caso da cidade de São Paulo, pode-se citar diferentes momentos em que esse
apagamento da memória se deu, assim como também é possível observar diferentes
maneiras como ele tem se estabelecido a partir da cidade: através de demolições, de
novas formas de morar, das formulações de políticas públicas urbanas, dentre outros
exemplos. O cenário determinado pela chamada Operação Urbana Consorciada Bairros
do Tamanduateí (OUCBT), antiga Operação Urbana Consorciada Mooca-Vila Carioca
(OUC-MVC), ilustra algumas dessas maneiras e elucida como o modo de gerir a cidade
pode definir a preservação ou, ao contrário, o apagamento de memórias urbanas relativas
à classe trabalhadora.

• 6
Em termos gerais, a OUCBT, que se originou da Operação Urbana Diagonal Sul - prevista,
por sua vez, pelo Plano Diretor Estratégico da cidade de São Paulo publicado em 2002 -,
define uma regulamentação urbanística de caráter extraordinário para alguns dos bairros
que se situam ao longo do Rio Tamanduateí, um dos principais rios da cidade e que,
apesar disso, atualmente se encontra retificado e tamponado em grande parte de sua
extensão. A área da operação urbana em questão engloba trechos dos bairros Cambuci,
Mooca, Ipiranga, Vila Carioca e Vila Prudente - que, de modo geral, foram construídos ao
longo da linha férrea instalada nas várzeas do rio que, por sua vez, dá nome à operação.
Inicialmente conhecida como São Paulo Railway, a primeira ferrovia do estado de São
Paulo foi inaugurada em 1867 e ligava a cidade de Jundiaí, localizada no planalto paulista,
à cidade de Santos, no litoral, se conectando a outras linhas construídas nas décadas
seguintes e que estabeleceram uma malha ferroviária capaz de escoar a produção cafeeira
do interior paulista para o porto de Santos e, assim, consolidar a cidade de São Paulo
como entreposto comercial, industrial e financeiro.
Para além das especificidades históricas desse período, o que é importante ressaltar nesse
processo é que o desenvolvimento de toda essa infraestrutura viária foi acompanhado
pela formação de bairros e de cidades, bem como pela complexificação de modos de vida
e de núcleos urbanos já existentes, a partir do crescimento urbano impulsionado, no caso
da cidade de São Paulo, pela industrialização. Desse cenário, pode-se observar que os
bairros adjacentes ao núcleo central da cidade - como Água Branca, Pari, Belém, Mooca,
para citar alguns - são bairros historicamente formados pela população operária que ali
residiu a partir das últimas décadas do século XIX, demonstrando-se também como esse
processo de formação urbana se direcionou sobretudo no sentido leste, estabelecendo o
que hoje se conhece como Zona Leste (ZL).
A OUCBT, no entanto, apesar de desenhar um projeto de cidade que se vê pautado no
desenvolvimento urbano e na preservação de símbolos do progresso, tem se apresentado
como uma ameaça à memória da classe trabalhadora e, no caso do bairro da Mooca, mais
especificamente à memória coletiva de seus habitantes.
De fato, a identidade do mooquense se encontra nos pequenos costumes da vida urbana
do bairro, alguns presentes apenas nas lembranças dos moradores mais antigos: está no
futebol mirim dos antigos campinhos de várzea, nos bailinhos de carnaval, nos cannolis
do Seu Antônio da Rua Javari, nos jogos do Juventus, nos ainda presentes entregadores
de pão, na tradicional festa da Rua San Gennaro, nos pequenos estabelecimentos
familiares – filhos e netos de marceneiros, alfaiates, sapateiros não são raros na região.
O mooquense não precisa conhecer a história da cidade de São Paulo nem reconhecer
qualidades técnicas e construtivas na arquitetura de seu bairro para identificá-lo como
seu lar. E é ele, afinal, que atribui os novos sentidos que o espaço, em constante
mudança, adquire com o tempo, dando continuidade a algumas tradições, ressignificando
outras, e também permeando aspectos culturais que consolidam as relações cotidianas e
a memória afetiva no convívio social: o futebol, a culinária, a religião e os espaços de uso
comum.

• 7
A Mooca industrial, nesse sentido, consiste no território consolidado ao longo do século
XX e que tornou possível a identidade local, a partir da combinação de diferentes culturas
estimulada pela convivência em espaços de trabalho e pelas relações de vizinhança.
Grandes indústrias da atualidade tiveram suas origens nesse processo, tais como a
Lorenzetti e a Ambev, e espalharam suas fábricas e produtos pelo Brasil. A Fábrica de
Calçados Clark, o Cotonifício Crespi, os Moinhos Gamba, dentre outras fábricas,
movimentaram as ruas da Mooca e impulsionaram sua ocupação. A concentração de
imigrantes fortemente influenciados pelas ideologias disseminadas na Europa, por sua
vez, foi essencial para impulsionar movimentos de grande expressão na cidade que
culminariam, por exemplo, na greve geral de 1917. Assim, a memória dos moradores
enquanto grupo local perpassa também a condição que compartilharam enquanto classe
trabalhadora com outros moradores da cidade de São Paulo e do Brasil.
Se, de um lado, o reconhecimento é o primeiro passo para a salvaguarda do patrimônio,
protegendo-o futuramente da ação do mercado imobiliário, por outro, ele não impede que
essa arquitetura seja inserida na lógica da cultura de consumo – através da qual, muitas
vezes, seus valores são deturpados pelo fachadismo, pela espetacularização do
monumento e pelo fetiche por tudo o que parece antigo, ainda que não seja
necessariamente autêntico. Quando se trata de uma arquitetura de exceção, as ações em
monumentos, algumas questionáveis do ponto de vista do restauro, podem aparecer de
modo pontual no território, e geralmente são notados em aspectos estéticos dos
elementos construtivos, em substituições de material pouco sensíveis à identidade do
monumento em questão, chegando à instalação de usos não condizentes com sua história
e arquitetura.
Já, quando aplicada também aos conjuntos urbanos, a interferência no patrimônio adquire
uma dimensão diferente, com potenciais igualmente danosos se direcionada segundo a
mesma lógica de mercado.
A habitual exaltação à arquitetura monumental, apreciada por sua excepcionalidade, tem
dividido espaço com o reconhecimento da arquitetura de menor escala, objeto de estudo
recente do campo do patrimônio cultural, abarcado a partir das mudanças conceituais que
remontam à Carta de Veneza, de 1964. Se, de um lado, o reconhecimento é o primeiro
passo para a salvaguarda do patrimônio, protegendo-o futuramente da ação do mercado
imobiliário, por outro, ele não impede que essa arquitetura seja inserida na lógica da
cultura de consumo – através da qual, muitas vezes, seus valores são deturpados pelo
fachadismo, pela espetacularização do monumento e pelo fetiche por tudo o que parece
antigo, ainda que não seja necessariamente autêntico. Quando se trata de uma
arquitetura de exceção, as ações em monumentos, algumas questionáveis do ponto de
vista do restauro, podem aparecer de modo pontual no território, e geralmente são
notados em aspectos estéticos dos elementos construtivos, em substituições de material
pouco sensíveis à identidade do monumento em questão, chegando à instalação de usos
não condizentes com sua história e arquitetura.

• 8
Já, quando aplicada também aos conjuntos urbanos, a interferência no patrimônio adquire
uma dimensão diferente, com potenciais igualmente danosos se direcionada segundo a
mesma lógica de mercado.
O que vemos na Mooca, nesse sentido, perpassa não somente a ameaça de
desaparecimento de uma arquitetura simbólica ou de sua alteração estética, mas também
a transformação de um cotidiano urbano que foi consolidado pela história de ocupação da
região e pela memória de sua população. Atualmente, uma reestruturação urbana se
mostra necessária e permite colocar o patrimônio em pauta, ainda que sua discussão seja
quase sempre superficial. Mais uma vez, o patrimônio, em seu papel coadjuvante de
sempre, surge como um empecilho, e não como uma saída, e a complexidade e sutileza
dos valores que apresenta são pouco apreendidas pelas formulações às quais a gestão
urbana se propõe. Parece difícil colocar em prática a manutenção de relações que a cidade
estabelece e que parecem frágeis, mas é verdade também que elas só existem (e
resistem) porque o espaço urbano possibilita.
Desde que a Operação Diagonal Sul foi indicada, em 2002, muitas transformações
ocorreram no território, de modo desordenado. O tombamento do conjunto industrial
principal realizado em 2007 foi, sem dúvida, essencial para salvaguardar o patrimônio
industrial que vinha sendo demolido pelos novos empreendimentos imobiliários. A
abordagem dos edifícios como elementos de um conjunto urbano também explicitou o
reconhecimento de seus valores para a paisagem da região, leitura que teria sido
prejudicada se os edifícios fossem interpelados isoladamente. Ainda assim, o
reconhecimento da arquitetura industrial da Mooca, representada nos órgãos de
preservação exclusivamente por complexos de grandes dimensões, revela uma seleção
que negligencia a arquitetura de menor escala – é possível observar, por exemplo, que o
único conjunto residencial indicado para proteção tem sua origem em uma abertura de
processo de tombamento de 1990, que até hoje não foi concluído.
É compreensível a urgência com que se atuou durante esse período, atendo-se a edifícios
mais simbólicos para a paisagem e para a memória coletiva, mas, em um momento no
qual o território passa a ser rediscutido e transformado, não se pode contar apenas com
o bom senso dos investidores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho teve como objetivo trazer algumas reflexões acerca da preservação da
memória da classe trabalhadora a partir da experiência de trabalhadores no espaço
urbano e das práticas de preservação do patrimônio industrial, tendo como base as
produções de Maurice Halbwachs e Michael Pollak, teóricos que se debruçaram no estudo
sobre a memória coletiva, bem como a relação desta com o espaço. A partir do exemplo
da cidade de São Paulo, e mais especificamente do bairro da Mooca, foi possível observar
os caminhos que as políticas públicas urbanas têm traçado, bem como seus limites para
a preservação efetiva da memória da classe, seja a partir de políticas de preservação de

• 9
um patrimônio cultural via tombamentos e projetos de restauro, seja por meio de
mecanismos alternativos que viabilizem essa preservação a partir do espaço urbano.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Congresso Nacional. Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001).
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva e o espaço. In: A memória coletiva. São Paulo:
Centauro, 2004.
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento e silêncio. Revista Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, pp. 3-15.
Disponível em: http://www.uel.br/cch/cdph/arqtxt/Memoria_esquecimento_silencio.pdf
POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro,
vol. 5, n. 10, 1992, pp. 200-212. Disponível em:
http://www.pgedf.ufpr.br/memoria%20e%20identidadesocial%20A%20capraro%202.pdf
SÃO PAULO (Município). Operação Urbana Consorciada Bairros do Tamanduateí. Projeto de
Lei nº 723/2015.
SÃO PAULO (Município). Relatório de Impacto Ambiental da Operação Urbana Consorciada
Mooca-Vila Carioca, 2014.
SÃO PAULO (Município). Plano Diretor Estratégico. Lei nº16.050/2014.

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MOVIMENTO E ESPAÇO URBANO EM “A CIDADE É UMA SÓ?”

MOVEMENT AND URBAN SPACE IN “HOOD MOVIE: IS THE CITY ONE


ONLY?”/MOVIMIENTO Y ESPACIO URBANO EN “A CIDADE É UMA SÓ?”
Cidade, política e cultura

CAMPOS, João Paulo


Mestre e Doutorando; USP
joaocampos@usp.nr
RESUMO

A tarefa deste ensaio é analisar a figuração do espaço urbano no filme A cidade


é uma só? (2011), de Adirley Queirós. Partimos da hipótese de que este filme
elabora uma narrativa que pensa as cisuras do Distrito Federal, revelando
aspectos da relação entre Brasília (Plano Piloto) e seus outros (Cidades-
Satélites). A obra apresenta um motivo recorrente na obra do cineasta
brasileiro: a perambulação dos personagens pelo espaço urbano entre Brasília
e Ceilândia, cidades vizinhas cujas relações desenhadas no filme revelam a
paisagem desigual de Brasília e seu entorno. Saltando à origem histórica do
conflito espacial em questão e desenvolvendo um jogo dramático que coloca
personagens em movimento entre o centro e a periferia, o filme de Queirós
constrói um registro que fricciona documentário e ficção, além de confrontar
passado e presente através da montagem, com o objetivo de subverter as
“narrativas do progresso” (TSING, 2015) da nação brasileira moderna.
Concluímos que este filme figura a periferia brasiliense como uma “presença
insurgente” (ADERALDO, 2018) capaz de questionar a utopia modernista que
serve como um “manto mito-poético” (HOLSTON, 1993) de Brasília, ofuscando
suas origens históricas e os conflitos de classe que explodiram neste processo.

PALAVRAS CHAVE Análise de filmes; Movimento; Espaço Urbano; Brasília;


Ceilândia.

ABSTRACT

The task of this essay is to analyze the figuration of urban space in the film A
cidade é uma só? (2011), by Adirley Queirós. We start from the hypothesis
that this film elaborates a narrative about the fissures of the Federal District,
revealing aspects of the relationship between Brasília (Pilot Plan) and its others
(Satellite Cities). The movie presents a recurring motif in the work of the
Brazilian filmmaker: the characters’ wandering through the urban space
between Brasília and Ceilândia, neighboring cities whose relationship reveals
the inequalities between the modernist city and its surroundings. Articulating
the origins of the space conflict and developing a dramatic game between
center and periphery, Queirós’ film builds an account that collides
documentary and fiction, in addition to confronting past and present through
montage, with the aim of subverting the “narratives of progress” (TSING,
2015) of modern Brazil. We conclude that this film depicts the periphery of
Brasília as an “insurgent presence” (ADERALDO, 2018) capable of questioning
the modernist utopia that serves as a “myth-poetic cloak” (HOLSTON, 1993)
of Brasília, obfuscating its historical origins and class strugges that exploded in
this process.

KEY-WORDS OU PALABRAS-CLAVE Film Analysis; Movement; Urban Space;


Brasília; Ceilândia.

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INTRODUÇÃO: “BRASÍLIA, O MURO QUE SEPARA”

Adrián Gorelik (2005) interpreta Brasília como a mais importante aventura


estética do modernismo. Para o autor, Brasília funciona como um museu da modernidade,
expressão da epopeia política e artística de que foi resultado. Uma das características
principais da cidade é a “notável auto-consciência que as construções da cidade revelam
acerca da epopéia que protagonizam” (GORELIK, 2005, p. 155). A cidade-monumento
seria, portanto, um caso bem sucedido de uma relação entre dirigismo estatal com
matizes nacionalistas e a atividade artística das vanguardas, aspecto comum da
modernidade arquitetônica da América Latina. Essa relação de mecenato estatal produziu
importantes alianças entre políticos, arquitetos e urbanistas, como o caso de Juscelino
Kubitschek, Oscar Niemeyer e Lúcio Costa.

A perspectiva histórica dos grandes feitos de heróis nacionais de Brasília encontra


suas entranhas nas cidades-satélites do Distrito Federal. Em sua etnografia crítica sobre
a “cidade modernista”, James Holston escreve que um “manto mitopoético” cobriu a
instauração de Brasília, ofuscando suas origens históricas, seu processo de construção e
ocupação (HOLSTON, 1993, p. 199). Começar de novo era o mote do projeto – uma
cidade-limiar, alvorada de um novo Brasil. Contudo, não foram mobilizados apenas
elementos utópicos no projeto da nova capital. “Fundada em um paradoxo, a sociedade
brasiliense desenvolveu-se a partir da interação entre seus elementos utópicos e
distópicos” (HOLSTON, 1993, p. 200). Para sua construção, foi contratada mão-de-obra
barata. Pobres de todo o Brasil chegavam ao novo mundo, principalmente do norte e
nordeste. Assim, Brasília já havia incorporado, antes mesmo de sua construção, o Brasil
que pretendia negar. Diante desse paradoxo, as autoridades usaram poderes
“administrativos e policiais para remover a força de trabalho da capital construída”
(HOLSTON, 1993, p. 200). A Ceilândia foi apenas um dos resultados dessa expulsão em
massa dos trabalhadores pobres que habitavam o Plano Piloto. Nos filmes de Queirós,
percebemos o interesse em mostrar que tal processo de instauração da modernidade
brasileira foi realizado à custa de trabalhadores que tiveram seus direitos de moradia na
nova cidade negados. As pessoas que construíram a “cidade radiosa” não tinham o direito
de morar dentro de seus contornos. Foram todos “jogados na periferia”, como canta a
personagem Nancy em A cidade é uma só? (Adirley Queirós, 2011).

No curta-metragem Rap: o canto da Ceilândia (2005) o cineasta brasileiro Adirley


Queirós se confrontava com uma problemática que se tornou um elemento de suma
importância para seus próximos filmes. Trata-se da relação entre as cidades vizinhas
Ceilândia e Brasília. Ao ser indagado sobre Brasília, Marquim do Tropa de Elite, um dos
interlocutores mais presentes nos filmes posteriores de Queirós, anuncia para os
espectadores: “Brasília? O muro que separa”. A cidade modernista aparece, portanto,
como signo da exclusão espacial e motiva a revolta dos habitantes da Ceilândia. Em A
cidade é uma só? Queirós volta a saltar para a origem desse conflito territorial, animando

• 3
no presente uma sensibilidade que pensa as fronteiras que separam Brasília e Ceilândia
- o Plano Piloto e a Cidade-Satélite. Cidades vizinhas, cidades inimigas.

A tarefa deste ensaio é analisar a figuração do espaço urbano no filme A cidade é


uma só?. Partimos da hipótese de que o filme de Adirley Queirós elabora um pensamento
sobre as cisuras do Distrito Federal, revelando aspectos da relação entre Brasília (Plano
Piloto) e seus outros (Cidades-Satélites). Nosso interesse é analisar como o cinema
constrói discursos sobre as cidades, tomando o filme em questão como corpus de estudo.
Como nossos pensadores do cinema pensam a cidade? (PEIXOTO, 2006, p. 178). Como
se dá a relação entre Brasília e Ceilândia no pensamento que A cidade é uma só? se
esforça em construir?

O filme em questão constrói uma imagem de Ceilândia através de sua relação com
Brasília. Um motivo importante da obra é a perambulação de personagens entre as duas
cidades. Nesse texto, perseguiremos as andanças urbanas de dois homens que dividem
seu tempo entre o trabalho e a campanha política para lançar um candidato favelado nas
eleições distritais do Distrito Federal do Brasil, a saber: Zé Bigode (interpretado por
Wellington Abreu) e Dildu (interpretado por Dilmar Durães). O primeiro é um grileiro em
busca de lotes para compra e venda; o segundo é um faxineiro que trabalha em Brasília
e se inicia na política na campanha supracitada. A personagem Nancy, por sua vez,
aparece de maneira distinta dos outros protagonistas da obra. Suas memórias são
registradas em entrevistas e na sua busca de materiais de arquivo sobre a Campanha de
Erradicação das Invasões, processo social que fundou a cidade de Ceilândia.

Para a discussão que pretendemos estabelecer neste ensaio o cinema é


considerado uma prática espacial (SHIEL, 2001). Uma máquina que apresenta uma
“habilidade contundente e distintiva de capturar e expressar a complexidade espacial, a
diversidade e o dinamismo social da cidade através da mise-en-scène, filmagens em
locação, iluminação, fotografia e montagem” (SHIEL, 2001, p, 1). Isso nos leva a uma
orientação teórico-metodológica que distingue o cinema primordialmente como um
“sistema espacial” com o “potencial de iluminar os espaços vividos da cidade e das
sociedades urbanas” (SHIEL, 2001, p. 6). O filme de Queirós apresenta o espaço urbano
para além de simples cenário: trata-se das cidades de Ceilândia e Brasília como forças
motrizes do filme.

Podemos dizer que Adirley Queirós apresenta um olhar muito próximo aos lugares
que filma. Trata-se de um registro ao nível da rua, com uma atenção especial às
movimentações cotidianas de Ceilândia, mas também aos trânsitos de personagens da
classe trabalhadora entre a Cidade-Satélite e Brasília. Isso ocorre pois o cineasta é um
exímio observador das cidades, por um lado, mas também por ele ocupar uma posição
privilegiada para registrar as dinâmicas urbanas do Distrito Federal.

Adirley Queirós vive e trabalha na Ceilândia. Desde seus estudos na Universidade


de Brasília o autor realiza uma pesquisa sobre a história da cidade e seus habitantes.

• 4
Trata-se de um autor que começa sua filmografia a partir de uma investigação prévia dos
espaços e pessoas que se tornaram protagonistas de seus filmes. Cerca de sete anos
atrás, o cineasta comentou em entrevista esse ímpeto investigativo: “Pesquisei muito
durante três anos, comecei a fazer entrevistas com muita gente. Tenho mais de 400 fitas:
um arquivo de pessoas da cidade” (MENA et al, 2015, p. 21). Queirós é, portanto, um
cineasta que realiza, desde a faculdade, uma reflexão sobre a Ceilândia e seu entorno.
Este processo rigoroso de pesquisa estrutura a elaboração de seus filmes. Em outras
palavras, é a partir deste desejo de conhecimento e pesquisa - que a experiência
universitária pode ter potencializado ou desdobrado - que Queirós realiza suas
surpreendentes obras. Isso nos permite dizer que seus filmes são responsáveis por criar
uma espécie de museu de Ceilândia – um atlas da periferia brasiliense construído sob o
prisma do confronto entre centro e periferia.

“Nem todas cidades são cinemáticas”, afirma Giuliana Bruno (1997). Grandes
metrópoles como Nova York e Paris, ou mesmo Rio de Janeiro e São Paulo, atraíram
artistas de toda sorte a filmarem, pintarem ou descreverem textualmente suas paisagens.
São cidades fotogênicas devido tanto a questões naturais quanto à exuberância
arquitetônica que caracteriza de maneira distinta cada uma dessas localidades. Outro
elemento que produz esse efeito magnético é o movimento intenso que estrutura o
cotidiano do espaço urbano desses centros metropolitanos – o movimento de
mercadorias, de pessoas, máquinas, imagens, obras de arte, atrações turísticas. Se é o
gesto reiterado de filmar o espaço urbano real, seja através do registro documentário ou
pelos expedientes da ficção, que faz a cidade se tornar cinemática, podemos dizer, sem
dúvidas, que a obra de Adirley Queirós é responsável por transformar Ceilândia numa
“cidade cinemática” (CLARKE, 1997). Seu cinema tem explorado, como veremos,
paisagens reais de Ceilândia e seu entorno para além de meros cenários. Neste ensaio,
portanto, pretendo conduzir o leitor e a leitora à uma viagem por caminhos imaginários
entre Ceilândia e Brasília. Vamos ao filme.

ANDANÇAS URBANAS ENTRE CEILÂNDIA E BRASÍLIA

A sessão começa e a primeira coisa que vemos é um letreiro anunciando que o


filme foi parcialmente produzido com recursos de um edital público cuja temática é
“Brasília: 50 anos”. No entanto, a obra conta a história de Ceilândia e sua relação com
Brasília a partir da perambulação de dois personagens ficcionais e pela escavação de
memórias de uma personagem real. Este material é articulado a imagens e sons de
arquivos sobre a origem de Ceilândia no desejo de historicizar a Cidade-Satélite.

• 5
Figura 1: Fotograma de A cidade é uma só?

Depois dos créditos iniciais escutamos o ronco gritalhão do motor de um carro


enquanto o mapa de Brasília se desenha sob o ecrã para logo ser incendiado por efeitos
digitais – um filme incendiário. Uma porta de carro se fecha estrondosamente e a cena
começa. Um homem de óculos escuros sai do carro velho para fazer uma ligação. O
personagem está negociando um lote no meio de uma mata. Os dois sujeitos da ligação
se encontram no lote: uma casa semi-construída com vistas para exuberantes
montanhas. Eles especulam sobre o futuro crescimento da região - o dono do lote diz:
“Tá vendo aí, ó? Tudo loteado. Ali, no caminhão verde, tem um lotão de 50 de frente que
vai até lá embaixo, no córrego. O cara dividiu tudo 5 por 10. Vai ganhar a maior grana.
Eu não vou ver, mas isso aqui, ó, logo vai estar loteado igual lá em cima. E não demora
ele abre aí um caminho, bota uma ponte e vai sair lá em Águas Lindas”. O homem de
óculos escuro responde “Será?” e se cala para mirar a paisagem. “Se não comprar agora,
não compra nunca mais”, diz o dono da propriedade. Dois aventureiros imaginando o
processo de periferização que nasceu com Brasília e não cessou 50 anos depois de sua
fundação. Os personagens observam e especulam um tecido urbano em constante
transformação - em plena expansão. A cena é cortada pelo som de obras e a subsequente
aparição da cartela com o título do filme: A cidade é uma só?. Trata-se de um filme cuja
força expressiva vem do chão das cidades do Distrito Federal – por seus caminhos vamos
descobrindo a construção de Brasília e Ceilândia.

O letreiro surge com a voz de Oscar Niemeyer na banda sonora: “Aí está Brasília,
tantos anos passados. A cidade que JK construiu com tanto entusiasmo. Uma cidade que
vive como uma grande metrópole”. Um corte nos transporta para dentro de um ruidoso
automóvel: enxergamos pelo para-brisas do carro o seu percurso por uma rua de terra:
um horizonte noturno parcialmente iluminado. Na banda sonora uma rádio troca estações
até chegar na voz de Juscelino Kubitscheck que entoa com brado: “Deste Planalto Central,
essa solidão que em breve se transformará em cérebro das altas decisões nacionais, lanço
os olhos, mais uma vez, sobre o amanhã de meu país e antevejo esta alvorada com uma
fé inquebrantável e uma consciência sem limites no seu grande destino”. Nota-se o tom
epopeico característico de JK, que expressa a construção de Brasília como uma grande
aventura nacional. O discurso que celebra o progresso representado pela fundação de

• 6
Brasília se choca com registros da atualidade da vida de trabalhadores da periferia
produzida pela fundação da nova capital brasileira.

Queirós confronta o discurso do herói nacional com a deambulação pelas ruas de


terra avermelhada: vemos pessoas andando no escuro e a fraca luz de postes. O plano-
sequência revela alguns aspectos do espaço urbano: ruas de terra mal iluminadas e casas
humildes. A cidade é uma só? começa, portanto, pelas beiradas: na periferia da periferia.
Estamos nos arredores de Ceilândia, região conhecida por Sol Nascente – a maior favela
da América Latina. O carro treme e a câmera balança, nos mostrando um vislumbre da
vida na periferia do Distrito Federal. O confronto entre a paisagem atual de Ceilândia com
o material sonoro de arquivo coloca este vestígio do passado numa posição crítica no
agora. Os sonhos de progresso realizados na construção de Brasília não resolveram os
problemas relacionados à pobreza e ao processo permanente de periferização da classe
trabalhadora. Uma navegação sensorial repleta de tensão entre imagem e som.

O que se segue é um duplo movimento: perseguimos a perambulação de Dildu e


Zé Bigode e a rememoração de Nancy Araújo. A montagem emaranha as trajetórias
desses três personagens que se deslocam no espaço e se afundam no tempo, nos
mostrando aspectos da relação entre Brasília e Ceilândia. Como afirma Cláudia Mesquita
(2011), o filme de Queirós junta dois gestos, o documentário mais tradicional que
persegue as memórias de Nancy e os jogos dramáticos levados a cabo pelos dois
personagens supracitados na Ceilândia da atualidade. Isto leva a autora a afirmar que A
cidade é uma só? é um “drama documentário”.

Em Ceilândia os protagonistas se encontram para atividades lúdicas como o baile


de hip hop e o parque de diversões. No primeiro, Dildu canta um rap com seu amigo
Marquinho e dança com emoção. No parque, Dildu passeia com a namorada, se diverte
com as máquinas e brinca de tiro ao alvo – “vamos matar os federais”, afirma o
personagem em tom jocoso. Ceilândia também funciona no filme como espaço da
campanha política de Dildu, que conta com a ajuda de Zé Bigode. Sua campanha evoca
o passado traumático da transferência urbana que fundou Ceilândia, além de prometer
serviços básicos de saúde e cultura para a população pobre de Ceilândia. Além disso, Zé
Bigode não cessa sua circulação pela periferia de Brasília. Ele navega pelas ruas da cidade
em busca de lotes e apartamentos, um negociante que nos conduz por paisagens de sua
quebrada.

Depois de terminar a panfletagem de seu material de campanha, Dildu caminha


com Zé Bigode num campo aberto do Eixo Monumental de Brasília. No horizonte vemos
a Praça dos Três Poderes. Tal qual uma miragem, conseguimos distinguir ao longe o
Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, paisagem que
sintetiza o poder da República. “Canseira! Hoje engrossa. Tô cansado”. Dildu e Zé Bigode
reclamam da longa distância do caminho que eles seguem e debocham dos prédios:
“Aquilo é um forno de biscoito? É um pão de queijo rachado?”, diz o personagem com

• 7
escárnio. Eles zombam das formas exuberantes dos monumentos modernistas,
desautorizando sua beleza e imponência.

Noutra cena os dois personagens se perdem em Brasília de carro e reclamam da


confusão das vias da cidade. Dildu começa a exclamar: “Ninguém tem sorte aqui. Nós
tem que sumir daqui. Nosso negócio é pra lá! Norte! Norte! Norte! Norte!”, indicando o
pertencimento deles à Ceilândia, que fica a norte do Plano Piloto. Brasília surge no filme,
portanto, como espaço alienígena, lugar da confusão, do desconforto e do escárnio dos
personagens Dildu e Zé Bigode. Além disso, o carro, símbolo maior da motricidade
urbana, se torna aqui veículo do caos e da perdição, arma que provoca a fantasia de
pacificidade e ordem do desenho urbano de Brasília.

Enquanto Dildu e Zé Bigode se movimentam pelo espaço, Nancy se afunda no


tempo de sua rememoração. Sua presença é responsável por historicizar Ceilândia. Entre
sua voz e imagens e sons de arquivo, vamos conhecendo a história da cidade a partir do
processo de transferência dos habitantes da antiga Vila IAPI para o que ficou conhecido
como Ceilândia. A Campanha de Erradicação das Invasões (CEI) toma forma por notícias
de jornais, relatos de Nancy e também pela reencenação do jingle que dá nome ao filme
de Queirós. Nos anos 1970, Nancy participou da campanha com outras crianças de um
colégio da Vila IAPI. Juntas elas cantaram o jingle “A cidade é uma só” na televisão, no
rádio e pela cidade de Brasília. O jingle celebrava a remoção como uma resolução
harmônica do problema urbano que a Vila IAPI representava para o governo e seus
registros foram supostamente perdidos. Durante o filme Nancy conta esta história numa
perspectiva crítica à ação governamental e organiza a reencenação do jingle de
propaganda do governo com crianças da atualidade, numa gravação que produz um novo
arquivo, inexistente até então. Há uma clara fricção de vozes no filme: a voz da
testemunha, Nancy, e a voz do poder, representada pelos materiais sonoros e visuais de
arquivos oficiais. Em vez de Na perspectiva de Queirós, a história é feita de confrontos.

Figura 2: Fotogramas de A cidade é uma só?

Um aspecto que caracteriza as articulações de materiais historiográficos em A


cidade é uma só? merece ser comentado. Nota-se que o filme não expõe apenas o

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discurso oficial do poder, e tampouco se engaja numa apologia militante do ponto de vista
dos oprimidos. O que importa para a obra é a articulação de duas perspectivas
dissonantes do evento histórico em questão, o que produz choques entre as vozes
inscritas no filme pela montagem. Uma concepção dialética da história e do cinema subjaz
esta orientação estético-política. Sob forte influência da documentarista Dácia Ibiapina e
de Vladimir Carvalho, o filme de Queirós procura expor contradições.

O espaço urbano figurado em A cidade é uma só? é produzido pela interação de


personagens distintos (Dildu, Zé Bigode e Nancy), o que se aproxima do conceito
alternativo de espaço elaborado por Doreen Massey (2008) em seu ensaio intitulado Pelo
Espaço. Trata-se de espaço como algo sempre em processo de reinvenção, no limiar
permanente de sua transformação. Multifacetada e aberta à heterogeneidade de
narrativas, esta acepção da espacialidade nos oferece um conceito que questiona a ideia
de espaço como simples superfície que as pessoas atravessam a favor de uma noção
dinâmica que enfatiza a importância das relações sociais para pensar o espaço
contemporâneo. É a partir da experiência urbana dos três personagens principais que a
cidade toma substância no filme de Queirós.

Uma cena notável mostra um primeiro plano de Dildu dormindo no ônibus noturno
depois de trabalhar como faxineiro num prédio de Brasília. Sua presença no transporte
público é recorrente no filme. Nesta cena, percebemos a fisionomia de um homem
exausto. Olhos cerrados e cabeça encostada no vidro do automóvel. Na banda sonora
escutamos um material de arquivo que entoa uma celebração da nova capital sobreposto
à imagem do personagem: “Os longos caminhos da civilização brasileira. Brasília, a
irradiar-se para o norte, para o centro e para o sul. Todo o vasto sistema circulatório de
um país cuja imensidade territorial faz com que a construção de estradas vitais suja uma
épica aventura”. Um corte nos transporta para o prédio em que Dildu trabalha. O homem
limpa o ambiente com movimentos enérgicos e depois enxuga o suor do rosto com a
manga da camisa. O discurso do passado encontra a atualidade da vida na periferia
brasiliense presentificada pelo semblante deste personagem esgotado pelo trabalho e a
candidatura. O passado dos vencedores é posto em crise pela montagem que o confronta
com o presente na perspectiva de um personagem da classe trabalhadora.

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Figura 3: Fotogramas de A cidade é uma só?

Nas cenas em que encontramos o personagem em paisagens desoladoras ele


emerge como um avatar do homem comum da periferia, um trabalhador marginalizado
que “habita um mundo coletivo compartilhado de individualidade indiscernível, por estar
imerso num tecido de silêncio e ruídos do dia-a-dia” (FURTADO, 2019, p. 126). Dildu é,
portanto, um representante dos humilhados e ofendidos de Brasília - um trabalhador
outsider, pobre e negro que não tem poder institucional. Como notou Gustavo Procopio
Furtado (2019), “em relação ao político entendido como um campo estratégico, com
instituições, normas, distribuições de poder e autoridade consolidadas, além de atores
sociais autorizados, Dildu não é um participante” (FURTADO, 2019, p. 127). Um anônimo
da periferia brasiliense que, apesar de sua situação de subalternidade, metamorfoseia a
sujeição expressa nas cenas de labuta e solidão em fúria em sua campanha política
frenética.

Em diversas cenas acompanhamos a campanha de rua de Dildu e seus


companheiros. O faxineiro é filiado ao fictício Partido da Correria Nacional, um partido
político que representa os marginalizados das periferias urbanas. Seguimos os
personagens em panfletagens em diversos espaços da cidade e escutamos suas propostas
berradas para os transeuntes. A campanha é sustentada, em larga medida, pela promessa
de luta por melhores condições de vida na periferia, assim como pela condenação dos
efeitos deletérios da segregação espacial no Distrito Federal. Trata-se de uma ação que
ensaia uma espécie de revanche da periferia contra Brasília - um acerto de contas em
relação à injustiça representada pela expulsão dos pobres da cidade para o que hoje é a
Ceilândia. “Uma de minhas bandeiras é a indenização pros antigos moradores do IAPI,
Morro do Urubu, Placa da Mercedes, Curral das Éguas… que foi abortado na Ceilândia sem
indenização”, diz Dildu rápida e intensamente no meio da rua ensolarada.

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Figura 4: Fotogramas de A cidade é uma só?

Os companheiros de militância passam de casa em casa, de esquina em esquina.


Eles distribuem panfletos e cantam o jingle, fazendo ecoar suas vozes num gesto que
bagunça os sentidos usuais da rua, deslocando formas corriqueiras de estar e se mover
pelo espaço urbano. “Mesmo que não dá nada ao menos a imagem nóis largou aqui”, diz
Dildu comentando a performance do grupo. É uma campanha precária, com poucos
recursos. “Campanha, quando o dinheiro é pouco, tem que ser assim. Candidato na rua
gastando a botina”. Sem dinheiro, o que resta é a perambulação em bando.

A campanha impossível do PCN toma a forma de uma performance que produz


estranhamento nos transeuntes e nos espectadores do filme. É uma ação que irrompe no
espaço urbano com uma força disruptiva que desloca o movimento cotidiano da cidade,
criando uma ação propositalmente absurda. Se, como afirma André Lepecki (2012), a
experiência do sujeito urbano contemporâneo é fundada por uma autonomia política e se
este movimento perpétuo segue uma coreografia “consensual” dirigida por instituições a
agentes sociais como a polícia, podemos considerar esta dança incendiária de Dildu e
seus companheiros como uma perturbação dos movimentos sensatos ou consensuais na
urbe. Interrompendo o fluxo cotidiano da cidade, a campanha de Dildu efetua um
desordenamento da cinética urbana consensual, gesto que desautoriza o emblema da
urbanidade contemporânea através de uma ação disruptiva que reinventa a cidade como
espaço do (im)possível. É uma ação “energizada pela ousadia do iniciar o improvável, no
chão sempre movente da história” (LEPECKI, 2012, p. 55). O filme de Queirós faz
irromper das fendas indeterminadas do cotidiano uma performance absurda que condena
as relações assimétricas de poder entre Brasília e Ceilândia e, mais profundamente,
perturba a fantasia de autonomia política a cinética que caracteriza o espaço urbano
contemporâneo através da invenção de movimentos improváveis. Trata-se de uma
performance que subverte o “bom senso” da urbanidade policiada através de uma
rebelião absurda - uma dança furiosa que muda a dinâmica espacial, estética e política
do lugar de onde emerge: as ruas de Ceilândia. Podemos dizer, portanto, que a campanha
de Dildu funciona como uma performance que expressa o dissenso ao reinventar
possibilidades de movimento no espaço urbano, friccionando o visível e o invisível, a
memória e o esquecimento, o movimento consensual ditado pela polícia e sua interrupção
violenta pela arte.

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É importante caracterizar o estilo dessa performance. “Correria” se torna o
conceito que orienta a coreografia dos corpos em ação no espaço urbano. A correria
caracteriza, portanto, seu discurso, sua prosódia, sua forma de encadear as propostas da
campanha, seu jeito agitado e inquieto de se mover. A periferia está não apenas no
conteúdo das propostas da campanha de Dildu, mas também no estilo da performance
elaborada em cena que coloca o corpo periférico como protagonista, mostrando, para
além da fúria, toda a sua beleza cinética, o que fez o antropólogo Marco Antonio Gonçalves
dizer que Queirós faz um cinema visceral (GONÇALVES, 2020).

No final de A cidade é uma só? nós vemos Dildu andando nas ruas de Ceilândia a
distribuir panfletos de sua campanha política. O personagem se desloca sozinho pelas
ruas da cidade batendo de porta em porta com seu material. De repente o homem alcança
um campo aberto e encontra uma carreata da campanha presidencial de Dilma Rousseff.
O corpo solitário do candidato a deputado distrital contrasta com a multidão de pessoas
e automóveis que formam o cortejo propagandístico da candidata à presidência. O abismo
que separa a utopia de Dildu da campanha de Dilma fica patente. Essa operação cênica
miniaturiza o personagem, que sozinho caminha na direção oposta do cortejo, o que
constrói um gesto de negação à política dos grandes partidos. No entanto, ele não desiste.
O trabalho na campanha continua, mesmo que solitário. Acompanhamos por mais uma
sequência a insistência do personagem que bate de porta em porta oferecendo seu
material. O filme acaba com Dildu caminhando sozinho a cantar nervosamente. “Só os
mala comanda aqui”, canta o homem andando nos descampados arenosos de Ceilândia
que contrastam com o azulado do horizonte que se desenha sob o sol acima de uma
estranha estrutura em arco.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: A PERIFERIA COMO PRESENÇA INSURGENTE

A antropóloga Andréa Barbosa (2012) estudou o cinema paulista da década de


1980, analisando como essa filmografia produziu imagens urbanas que, no entanto, não
coincidem com a cidade da vida cotidiana. Como escreveu Rubens Machado Jr., “no
momento em que vemos a cidade construída na tela, seja a que habitamos ou não,
podemos dizer que estamos diante de uma outra cidade, distinta daquela que a nossa
experiência direta guardou na memória” (MACHADO JR., 1989, p. 2). Isso aponta para
uma relação de alteridade entre experiência urbana subjetiva e representação fílmica das
cidades. O que o cinema faz com a cidade é, como nossa análise permite vislumbrar, uma
complexa trama e não pode ser reduzido ao reflexo de realidades sociais. O cinema, assim
como a literatura, produz duplos: recria realidades sociais sob perspectivas particulares.
O pensamento da autora é bastante influenciado pelos escritos de Jean Louis Comolli,
para quem os cineastas, ao filmarem as cidades, produzem deslocamentos e
transformações do que vemos e vivenciamos nestas - uma metamorfose maquínica da
cidade (COMOLLI, 2008). O trabalho de Andréa Barbosa nos revela, portanto, que o
cinema produz outra cidade, uma cidade cinemática com suas nuances, cores, ritmos e
conflitos.

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Em outro texto Barbosa realizou uma leitura de uma amostra de filmes da
chamada Retomada do Cinema Brasileiro (NAGIB, 2006), focalizando a reconstrução das
periferias ou favelas nas obras De passagem (Ricardo Elias, 2003) e Contra todos
(Roberto Moreira, 2004). São filmes que escolhem como “lugar diegético” - isto é, o
universo fílmico em que se desdobra a narrativa - as periferias, principalmente favelas de
São Paulo e Rio de Janeiro. A autora destaca que a reconstrução cinemática da periferia
levada a cabo nessas obras figura a favela como espaço da violência e exclusão social.
Além disso, Barbosa constata que esses filmes não figuram seus personagens como
agentes históricos - “eles seguem a vida em vez de fazerem a vida” (BARBOSA, 2006, p.
209). O cinema brasileiro da passagem dos anos 1990 para os 2000 produziu, portanto,
um deslocamento estético e político nas formas de representar esses espaços sociais. Se
a estética da fome de Glauber Rocha procurava operações estéticas - a luz estourada, o
corte seco - capazes de dar uma forma violenta à miséria de um país subdesenvolvido,
filmes como Central do Brasil (Walter Salles Jr., 1998) e Cidade de Deus (Fernando
Meirelles, Kátia Lund, 2002) transformam todo conflito histórico-social em relações de
tipicidade cultural - é o que Ivana Bentes chamou de “cosmética da fome” (BENTES,
2007).

Gustavo Souza (2012a) afirma que desde a década de 1990 os meios de


comunicação “de maior abrangência” também têm tecido uma imagem genérica da
“periferia” como espaço exclusivo da violência e exclusão. Isso ocorre através de
programas jornalísticos de televisão como Cidade Alerta e Brasil Urgente, bem como pelas
supracitadas representações dos espaços periféricos levadas a cabo por certos filmes de
ficção da Retomada.

As formas artísticas produzidas por moradores de periferias têm se esforçado, nos


últimos anos, em tecer novas perspectivas sobre as “quebradas”, dando forma não só ao
cotidiano de favelas e subúrbios, mas também a anseios políticos de coletivos e
movimentos sociais (SOTOMAIOR, 2015). O cinema realizado nesses contextos assume
um ponto de vista político e de experimentação formal (SOUZA, 2014).

Em sua pesquisa sobre os coletivos videoativistas em São Paulo, o antropólogo


Guilhermo Aderaldo (2013, 2018) demonstra como o uso tático de novas tecnologias de
comunicação possibilita que jovens subalternizados produzam novas formas de
mobilidade urbana e engajamento político numa cidade profundamente desigual. Os
filmes produzidos pelos coletivos estudados pelo autor apresentam a periferia como uma
“presença insurgente, responsável por nos lembrar continuamente da artificialidade
subjacente à conservação dos privilégios característicos daquilo que costumamos
designar como “centro”” (ADERALDO, 2018, p. 77). A periferia se torna, de acordo com
o autor, uma posição epistêmica e relacional capaz de disputar os saberes hegemônicos
relacionados às formas de conhecer e descrever a cidade e sua paisagem desigual. Dessa
forma, os coletivos de videoativistas trabalham para revelar contradições dos sistemas
de poder que produzem as cidades e as desigualdades entre seus habitantes, produzindo

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imagens da periferia em contraposição aos estereótipos produzidos pela televisão, por
exemplo.

O caso de Adirley Queirós se afasta deste corpus de trabalhos estudados por


Gustavo Souza e Guilherme Aderaldo. Seus filmes são autorais, resultados de longas
pesquisas de linguagem e são realizados para participar do circuito internacional de filmes
de arte. Nota-se que a partir de meados dos anos 2000 iniciou-se uma profunda
transformação no campo cinematográfico brasileiro. As novas tecnologias digitais, o
aumento de dinheiro público investido no setor por meio de editais e leis de incentivo
fiscal, a descentralização do investimento estatal, a criação de novos cursos de graduação
em cinema e, por fim, a expansão dos festivais impactaram profundamente o cinema
independente, processo histórico que fez surgir um novo cinema autoral no Brasil
(EDUARDO, 2018). Faz parte desse processo o estabelecimento de outros centros
irradiadores de produção para além do eixo Rio-São Paulo, processo que mudou o mapa
do cinema nacional. Queirós participa deste contexto em transformação, fazendo do
cinema de Ceilândia uma referência deste novo cinema autoral. No entanto, sua obra
fílmica também se posiciona contra um imaginário genérico e redutor da periferia, o que
permite uma aproximação entre os dois universos.

A cidade é uma só? promove uma reinvenção das imagens corriqueiras da periferia
pela abertura mnemônica da cidade que leva a cabo. De forma similar aos filmes do
neorrealismo italiano (NOWELL-SMITH, 2001, p. 105), este filme busca uma reconstrução
do espaço urbano marcado pela destruição decorrente de conflitos políticos de
abrangências distintas. Tudo se passa como se a obra, filmada em locações em Brasília e
Ceilândia, apresentasse as cidades como uma força pela “recalcitrância e inabilidade de
ser subordinada às demandas da narrativa” (NOWELL-SMITH, 2001, p. 104). As cidades
se tornam protagonistas, o que não quer dizer que são personagens. É nesse sentido que
afirmo que Ceilândia é, ao fim e ao cabo, a grande protagonista de A cidade é uma só?.
De acordo com Geoffrey Nowell-Smith (2001), o cinema neorrealista “é, acima de tudo,
um cinema de reconstrução, e nesse respeito sua estética segue a sua política” (NOWELL-
SMITH, 2001, p. 105). Este é o caso do filme de Queirós, que pela circulação dos
personagens no espaço nos oferece uma navegação por paisagens urbanas distintas e
através da rememoração de outra personagem elabora uma reconstrução imaginativa da
memória da antiga Vila IAPI na Ceilândia atual. Isso faz de Adirley Queirós um cineasta
urbano como Roberto Rossellini e Michelangelo Antonioni, juntando o ímpeto
reconstrutivo com a arte de compor paisagens. Em outras palavras, trata-se da reunião
da fábula social com o desejo de figurar espaços físicos como terrenos baldios, ruas,
viadutos, avenidas.

A expulsão dos habitantes da Vila IAPI pela Campanha de Erradicação das


Invasões nos anos 1970, origem de Ceilândia, é resgatada por Nancy e reinventada pela
contra-campanha de Dildu para as eleições distritais do Distrito Federal no Brasil. Seu
discurso articula aquilo que a rememoração de Nacy resgata. O testemunho fricciona o

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arquivo, dando caminho para os delírios do presente em forma de uma performance que
nos surpreende em cena.

As cidades reais que aparecem na obra são abordadas em chave realista entre o
documentário e a ficção (MESQUITA, 2011). O filme nos convida a uma perambulação
imaginária entre Brasília e Ceilândia da perspectiva de personagens da classe
trabalhadora que vivem na periferia da capital. A cidade é uma só? é, portanto, um filme
cuja força motriz é o movimento pelo espaço urbano através de paisagens de Ceilândia e
Brasília. Essa perambulação transforma, nos termos de Giuliana Bruno (2007), o voyeur
em voyager ou aquele que vê em aquele que viaja (BRUNO, 2007; MELLO, 2011). A
viagem pelos caminhos dos personagens de Nancy, Dildu e Zé Bigode toma a forma de
uma navegação saturada de tensão, pois revela aspectos normalmente invisíveis da
relação entre Ceilândia e Brasília. A contradição surge pela relação entre as cidades -
“sem nós aquilo é uma cidade fantasma” diz Dildu em sua campanha. A cidade é uma só?
nos convida, portanto, a reimaginar a dicotomia centro e periferia a partir da mobilidade
de seus personagens entre Brasília e Ceilândia, apresentando sujeitos periféricos como
uma presença insurgente capaz de nos revelar a partilha desigual do espaço de Brasília e
afirmar o pertencimento dos sujeitos à Ceilândia.

O testemunho de Nancy e a articulação de materiais de arquivo situam a Ceilândia


historicamente, fornecendo-nos uma chave de leitura da atualidade da vida na periferia
de Brasília dos anos 2010. Trata-se de um espaço que não é mero cenário ou superfície
que atravessamos. O espaço urbano de A cidade é uma só? é produzido pela interação
entre histórias distintas apresentadas entre os dados históricos oferecidos pela busca
mnemônica de Nancy e a figuração do espaço promovida pela perambulação de Dildu e
Zé Bigode. O filme promove, portanto, um distanciamento crítico da história de Brasília e
Ceilândia a partir destes dois gestos (MESQUITA, 2011).

A figuração da cidade que o ensaio buscou desvelar é construída a partir da


experiência urbana de Dildu, Zé Bigode e Nancy. Os conflitos que emergem são expostos
no plano espacial, “de suas inclusões e exclusões” (GONÇALVES, 2020, p. 28). Desse
modo, “os personagens se constroem em circulação, sendo os trajetos na cidade um
laboratório prático-reflexivo sobre o espaço e seus significados sociais profundos”
(GONÇALVES, 2020, p. 28). A relação dos corpos com o espaço das cidades é, portanto,
o caule do filme.

O movimento entre Brasília e Ceilândia revela a paisagem desigual do Distrito


Federal, o que questiona o projeto de sociedade que a fundação de Brasília buscou
realizar. Juntando passado e presente entre duas cidades, a obra produz uma perspectiva
que critica o ponto de vista dos heróis nacionais e a história oficial que celebra a cidade
de Brasília. Tal qual a cidade modernista, Ceilândia se torna, pelo cinema de Adirley
Queirós, uma grande aventura estética.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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MULHERES E IMÓVEIS URBANOS NA
VILA BOA DO SÉCULO XIX
por outras narrativas de história da cidade
WOMEN AND URBAN PROPERTIES IN
VILA BOA OF THE 19th CENTURY
by other narratives of the city´s history
Cidade, política e cultura

MOURA, Nádia Mendes


Doutora FAU USP
nadiammoura@yahoo.com.br
RESUMO
Ao estudar as cidades do período colonial e imperial, as mulheres, via de regra,
aparecem como esposas e filhas confinadas no espaço doméstico ou como
escravizadas circulando pelas ruas, desempenhando diversos tipos de serviços.
Algumas fontes primárias, entretanto, desafiam essa imagem já consolidada,
revelando informações que sugerem outros arranjos sociais. Ao dar visibilidade
a essas mulheres, pretende-se delinear outras formas de narrar a cidade de
Goiás do século XIX. A grande maioria das mulheres da antiga Vila Boa, tal
como da Capitania/Província de Goiás, não se casavam formalmente, o que
viabilizou com que mantivessem as suas propriedades sob seu domínio. Assim,
as mulheres representavam um contingente significativo de proprietárias de
imóveis, cadastrados na Décima Urbana – imposto predial urbano implantado
no início do século XIX, com a chegada da Família Real. A Décima Urbana, por
apresentar uma listagem de todos os imóveis com seus respectivos endereços
e proprietários, dentre outros dados, é uma rica fonte histórica para quem se
propõe a estudar a história da cidade. Neste artigo, outras fontes foram
mobilizadas, como os relatos dos viajantes europeus que por lá circularam no
Oitocentos e fizeram alguns registros sobre essas mulheres dos sertões.
Mesmo presentes na documentação de época, as mulheres permanecem
invisíveis nos estudos da história da cidade dos períodos colonial e imperial.
Este artigo tem por objetivo lançar luz nessas mulheres de modo a amplificar
suas vozes e mostrar que elas estão mais presentes e ativas nas cidades do
que parece.
PALAVRAS CHAVE História da cidade; Gênero; Propriedade de imóveis; Vila
Boa; Cidade de Goiás.

ABSTRACT
In the studies of cities in the colonial and imperial period, women often appear
as wives and daughters confined in the domestic space or even as enslaved
people walking the streets and performing different tasks. Some primary
sources, however, challenge this consolidated image, as they reveal
information that suggests other social arrangements. By giving visibility to
these women, the present article intends to outline other ways of narrating the
city of Goiás´ history in the 19th century. The vast majority of women in the
old Vila Boa, as well as in the Captaincy/Province of Goiás, were not formally
married, which made it possible for them to keep their properties under their
control. Thus, women represented a significant contingent of property owners,
registered in the Décima Urbana – urban property tax implemented in the early
19th century, with the arrival of the Royal Family. Comprising a list of all
properties with their respective addresses and owners, among other data, the
Décima Urbana is a rich source for those who intend to study the history of the
city. In this article, other sources were researched, such as the reports of
european travelers in the 19th century, who have been there and made some
records on these women from the backlands. Despite historical evidences,
these women remain invisible in studies of the history of the cities from the
colonial and imperial periods. This article aims to shed light on these women
in order to amplify their voices and show that they were more present and
active in cities than it may seem.
KEY-WORDS History of the city; Gender; Properties; Vila Boa; Cidade de
Goiás.
INTRODUÇÃO
Por muitos anos, a discussão em torno da história urbana e da história do urbanismo
abarcou pesquisas mais voltadas a balanços historiográficos, análises históricas das
formas urbanas, das redes urbanas, de políticas urbanas, planos urbanísticos e
planejamento urbano. Atualmente, percebe-se nas pesquisas uma tendência maior ao
abordar temas voltados aos modos de vida e ao cotidiano, às formas concretas de
construir a cidade, às culturas e representações a seu respeito, “vistos não só como
formas de apropriação, mas de produção do espaço urbano” (CASTRO, SILVA, LIRA, 2021
p. 57). O olhar está mais direcionado aos diversos atores que animam a vida desses
espaços e participam da sua constante construção, conforme pôde ser observado em
algumas comunicações da última edição do Seminário de História da Cidade e do
Urbanismo (SHCU), realizada remotamente em 2021. Ainda assim, poucos foram os
trabalhos relacionados a estudos de gênero, contribuição que este artigo pretende
prestar, ao tratar das mulheres na Cidade de Goiás1 e sua participação na vida urbana
enquanto proprietárias de imóveis no início do século XIX.
Já dizia Michelle Perrot (1989, p. 9), que “no teatro da memória, as mulheres são sombras
tênues.” O mesmo poderia ser dito ao se tratar do “teatro da história”, ainda que muito
tenha sido produzido sobre a história das mulheres no contexto da segunda onda do
feminismo. A respeito da relevância produção acadêmica dessa época, a historiadora
estadunidense Joan Scott (2019, p. 50, 51), aponta que as pesquisadoras feministas dos
anos 1970 e 1980 “assinalaram muito cedo que o estudo das mulheres acrescentaria não
só novos temas, como também iria impor uma reavaliação crítica das premissas e critérios
do trabalho científico existente”, o que implica não somente uma “história das mulheres”,
mas uma nova perspectiva de história.
As mulheres passaram a figurar nas pesquisas no Brasil sobretudo a partir dos anos 1980
no campo da história. Nesses estudos, contudo, Maria Stella Bresciani (1989, p. 8)
constatou que elas alcançavam o espaço público por duas vias: “[...] pela estreita porta
da excepcionalidade ou pela situação marginal que se vêem condenadas”. Estudos no
âmbito da história da família, da demografia histórica e da vida doméstica durante o
período colonial e imperial também avançaram nessa época, revelando diferenças
significativas entre as mulheres das sociedades do litoral, gerida pelas atividades
agroexportadoras, e aquelas que viviam em regiões mais interiorizadas, sobretudo as
habitantes das regiões mineradoras (SAMARA, 1989, 1999; ALGRANTI, 1997).
Na família patriarcal, ancorada na propriedade rural, enquanto a mulher branca estava
destinada ao papel da submissão e controle doméstico da casa-grande ou dos grandes

1
A cidade de Goiás foi a primeira capital de Goiás, quando ainda era conhecida por Vila Boa. Passou à
condição de cidade em 1818, tendo seu nome alterado para Goiás. Com a construção de Goiânia, na
década de 1930, perdeu o posto de capital.

● 1
sobrados urbanos, ela também era um “elemento importante da estratégia familiar” por
compartilhar (e em alguns casos, por elevar) o status do marido no contexto social.
Enquanto isso, as mulheres negras, indígenas e brancas empobrecidas faziam parte do
contingente de força de trabalho, escravizado ou não.
Na área da história da cidade e história do urbanismo as mulheres foram muito pouco
“ouvidas” enquanto sujeitos sociais. Ainda assim, estudos recentes vêm se abrindo para
um olhar mais atento à questão de gênero e a presença das mulheres no contexto urbano
durante o período colonial. Amparado em documentação de época, o artigo “Entre ruas e
casas: mulheres, racialização e redes de vizinhança na cidade de São Paulo, 1776”
(SANTOS, 2022) trabalha com a territorialização de dados demográficos do século XVIII,
provenientes dos Maços de População, revelando redes de vizinhança e solidariedade de
mulheres pobres, sobretudo negras (SANTOS, 2022). A espacialização 2 de fontes
históricas também foi trabalhada na tese “Sertões de Mar a Mar: Goyazes em suas
filigranas” (MOURA, 2018), onde foi cartografada a presença de corpos femininos a partir
das Décimas Urbanas3, imposto predial urbano implementado a partir da chegada da
família real no Brasil4.
As pesquisas históricas referentes a mulheres no âmbito da arquitetura, nesse recorte
temporal, ficam quase sempre centradas na esfera da domesticidade. Destaque para o
capítulo “Um sobrado como mediação: Ana Rosa de Araújo entre a reclusão e a vida social
(São Paulo, século XIX)”, em que o autor (MARINS, 2017) analisa as relações
estabelecidas entre espaço e domesticidade a partir do caso de Dona Ana Rosa (uma
herdeira rica, sem filhos e divorciada) e seu sobrado de rótulas, colocando em xeque o
senso comum de completa reclusão em que viviam as mulheres da elite daquela época.
Por muito tempo, a noção que se tinha era a dicotomia entre espaço doméstico ligado à
mulher e espaço público ao homem, afinal de contas, segundo Perrot (1989, p. 10), “a
cidade do século XIX é um espaço sexuado” e “o mundo público, sobretudo econômico e
político, é reservado aos homens”. Ora, se os estudos acerca da domesticidade vêm
revelando aspectos um tanto fluidos da “territorialidade” feminina, é de se imaginar que
a partir dos limites externos da casa, a lógica da dicotomia homem/mulher,
público/privado também não se repita com tanta rigidez...
Que outros papéis essas mulheres desempenhavam para além dos de mãe, criada, esposa
e concubina? Ou, mais especificamente, que disposições e representações de espaço
urbano constituíram? Este artigo pretende descortinar uma outra história da cidade, que
pode ser contada a partir das mulheres da cidade de Goiás do início do século XIX.

2
Via SIG/GIS histórico (Sistemas de Informação Geo-Históricos).
3
Os dados das Décimas Urbanas foram especializados em quatro núcleos da Capitania de Goiás: Vila Boa
(antigo arraial de Santana e atual cidade de Goiás), Meia Ponte (atual Pirenópolis), Pilar e Natividade.
4
Na Capitania de Goiás o imposto passou a ser aplicado a partir de 1810.

● 2
Fontes e Métodos
Tendo Bernard Lepetit (2001) como referencial teórico, o ato de deslocar o olhar para os
atores locais – no caso, atrizes locais – permite visualizar com maior clareza as relações
que estabelecem entre si e com o espaço urbano, que passa por constantes
transformações. Os relatos dos viajantes europeus que transitaram pela
Capitania/Província de Goiás5 no Oitocentos contribuíram para uma leitura daquela
época, na medida em que descrevem os costumes, as paisagens e a dinâmica cotidiana
dos atores/atrizes locais. A bibliografia que trata de gênero, história da família e história
das mulheres auxiliou na construção de um olhar crítico sobre esses relatos e também no
desenvolvimento do artigo como um todo.
A principal fonte analisada nesse artigo foi a Décima Urbana6, por fornecer informações
valiosas para o estudo das cidades do século XIX. Além de identificar todos os logradouros
dos núcleos urbanos, os imóveis eram listados lote a lote, com os respectivos nomes dos
proprietários/proprietárias e valor do imposto cobrado a partir do rendimento anual do
imóvel7 (com base de cálculo de 10% para se chegar ao valor do tributo). Quando os
imóveis estavam alugados, também eram listados os nomes dos inquilinos ou inquilinas.
Quanto à identidade dos proprietários e moradores, as Décimas fazem menção à
hierarquia dos religiosos, homens com patentes militares e categorização de Donas8, no
caso das mulheres. Infelizmente não há informações mais detalhadas, como ocorre nos
Maços de População, que fornecem dados quanto aos ofícios dos cadastrados, idade e
raça. Essa documentação, que poderia contribuir para o preenchimento de lacunas das
Décimas Urbanas, não foi encontrada em Goiás.
Não obstante, as Décimas Urbanas da Capitania de Goiás revelaram aspectos
interessantes da sociedade daquela época, como uma grande quantidade de mulheres
figurando como proprietárias de imóveis, situação que as colocava em pé de igualdade
com pessoas do sexo masculino. Essas proprietárias, por sua vez, tinham como
representantes pessoas de classes sociais diversificadas, conforme será tratado adiante.

GOIÁS NO INÍCIO DO OITOCENTOS


Com a ocupação e o povoamento das regiões mineradoras a partir do fim do século XVII,
muitos negociantes orbitavam pelas estradas a oeste (os conhecidos tropeiros). As
mulheres, segundo Maria Odila Dias (1995, p.30), “[...] tiveram presença predominante
na vida urbana, destacando-se mais pela pobreza de sua sobrevivência precária que pelo

5
O território da Capitania de Goiás corresponde aos atuais estados de Goiás, Tocantins, o Distrito Federal
e a região do Triângulo Mineiro (incorporada a Minas Gerais em 1816).
6
As Décimas Urbanas entre 1810 e 1822 estão arquivadas no Museu das Bandeiras (MuBan), localizado
na Cidade de Goiás. As Décimas Urbanas de anos posteriores estão no Arquivo Histórico do Estado de
Goiás, em Goiânia.
7
Calculado a partir de uma estimativa do valor do aluguel para imóveis próprios ou a partir do próprio
valor do aluguel cobrado, no caso das casas alugadas.
8
Mulheres brancas de origem nobre, normalmente viúvas, casadas ou filhas de homens com cargos de
destaque.

● 3
prestígio social, que assinalava antes homens peregrinos do que mulheres, que
permaneciam na vila [de São Paulo] de retaguarda do povoamento.” Esses homens
“paulistas”, assim como os mineradores oriundos de várias partes da colônia e do além-
mar, circulavam pela Capitania de Goiás e quase nunca firmavam laços matrimoniais, por
já serem casados em seu local de origem ou por não considerarem as mulheres locais
dignas de sua companhia formal, uma vez que não eram mulheres brancas de linhagem
portuguesa conhecida. Visitadores Diocesanos que transitaram pela Capitania ao longo
do século XVIII alertavam para o “mal das minas” ao se referir à concubinagem, segundo
relato do Cônego José Trindade da Fonseca e Silva (2006).
Com a queda da produção de ouro na passagem do século XVIII para o XIX, parte do
contingente do sexo masculino abandonou os antigos núcleos mineradores goianos.
Daqueles que ficaram, os grupos que mais se casaram na Província em idos de 1825
foram os libertos e os indígenas (KARASCH, 2001).
Os viajantes europeus que por lá passavam no início do século XIX se espantavam com
a pouca quantidade de casais unidos nos moldes tradicionais, conforme atesta o relato
do botânico Saint Hilaire (1975, p. 53) quando esteve na Cidade de Goiás 9 em 1819:

Em nenhuma outra cidade o número de pessoas casadas é tão pequeno. Todos os homens,
até o mais humilde obreiro, têm uma amante, que eles mantêm em sua própria casa. As
crianças nascidas dessas uniões ilegítimas vivem ao seu redor, e essa situação irregular
causa tão pouco embaraço a eles quanto se estivessem casados legalmente. Se por acaso
algum deles chega a se casar, passa a ser motivo de zombarias. Esse relaxamento dos
costumes data do tempo que a região foi descoberta. Os primeiros aventureiros que se
embrenharam nesses sertões traziam consigo unicamente mulheres negras, às quais o seu
orgulho não permitia que se unissem pelo casamento. A mesma razão impediu-os de
desposarem as índias. Em consequência, tinham apenas amantes. [...] Os descendentes
dos primeiros colonos goianos devem forçosamente ter seguido as pegadas de seus
antepassados; a libertinagem tornou-se um hábito, e o povo vê-se constantemente
estimulado a entregar-se a ela pelo mau exemplo dos que o governam.

Ao tratar da situação da vizinha Minas Gerais, Figueiredo (1997, p. 173) relatou uma
situação não muito diferente da Capitania/Província de Goiás: outro ponto que dificultava
a união perante a Igreja dizia respeito aos altos custos para a formalização do casamento,
sem falar nos entraves burocráticos e na lentidão da máquina pública daquela época.
Dessa forma, a sociedade buscou outras formas de organização familiar, que foram
legitimadas pelo Estado e pela Igreja. Nesse cenário, o concubinato era prática comum,
inclusive envolvendo párocos (GARDNER, 1975).
A Décima Urbana revelou que cerca de metade dos imóveis ali existentes eram de
propriedade de mulheres, de variadas classes sociais (MOURA, 2018). Além de “donas”,
as mulheres também foram identificadas como viúvas, crioulas, miseráveis, órfãs,
mendigas – ou apenas cadastradas com seu nome. Isso não era tão comum em outras

9
Um ano depois de Vila Boa passar a ser reconhecida como cidade de Goiás.

● 4
regiões da colônia, conforme apontam estudos de Nireu Cavalcanti (2004) e Beatriz Bueno
(2005), tendo como base as Décimas Urbanas do Rio de Janeiro de 1808/1810 e de São
Paulo de 1809, respectivamente. De acordo com Cavalcanti (2004, p. 274)

[...] a maioria esmagadora [de proprietários] era constituída de indivíduos do sexo


masculino, como consequência de um traço cultural da sociedade, que os considerava
sempre como os cabeças do casal10, titular e senhor dos bens, mesmo que originários de
herança recebida pela esposa.

Nesses casos, quando as mulheres eram proprietárias, elas eram herdeiras solteiras
(maiores de idade ou emancipadas) de famílias abastadas, ou viúvas. Ao se casarem
formalmente, as mulheres perdiam a autonomia sobre seus bens, conforme esclarece
Parente (2005, p. 71),

No Brasil, durante o século XIX, predominou o casamento realizado sob regime de


comunhão de bens, também conhecido como ''carta a metade". Nesse tipo de união, os
cônjuges tinham direitos iguais tanto sobre os bens que possuíssem à época do casamento
quanto sobre aqueles que viessem a adquirir no futuro. Porém, a administração do
patrimônio cabia exclusivamente ao marido. A mulher permanecia, assim, numa situação
de total e completa dependência, pois os seus bens, na forma de dotes (comuns entre as
moças de famílias mais abastadas no começo do século) ou de heranças (legítimas,
maternas ou paternas), eram, nesse regime, confiados ao "cabeça do casal."

Como muitas mulheres da Capitania/Província de Goiás não formalizavam a sua união,


conseguiam manter os bens de raiz sob seus domínios. Algumas delas moravam no
próprio imóvel, outras preferiam alugá-lo, gerando renda.

QUEM ERAM ESSAS MULHERES?


Mesmo figurando em documentos de época, por um bom tempo as mulheres foram
inviabilizadas nos livros de história. Por essa e por outras, a pesquisa em fontes primárias
é fundamental. Sobre isso, Madia Odila Dias (1995, p. 50) revela a importância (e as
dificuldades) de se trabalhar com fontes documentais nos estudos de gênero:

Os papéis propriamente históricos das mulheres podem ser captados nas tensões,
mediações, nas relações propriamente sociais que integram mulheres, história, processo
social, e podem ser resgatados das entrelinhas, das fissuras e do implícito nos documentos
escritos. Isso requer uma leitura paciente, um desvendar criterioso de informações omissas
ou muito esparsas, casuais, esquecidas do contexto e da intencionalidade formal do
documento.

A importância de dar voz às mulheres em sua totalidade, reconhecendo-as enquanto


personagens fundamentais na conformação da cidade, revela um campo de resistência,
tensões e luta. Sobre as mulheres empobrecidas da São Paulo do Oitocentos, Dias (1995,
p. 16) destaca a sua presença marcante na cidade, “embora institucionalmente informal

10
Situação que difere da Vila de São Paulo. Dias (1995, p. 40) assinala que 40% dos fogos em 1804 eram
constituídos por mulheres chefes de família, no entanto, elas não detinham a titularidade desses bens.

● 5
e socialmente pouco valorizada. O fato de não participarem da história política e
administrativa não diminui a importância do papel que desempenhavam.”
No caso dos sertões goianos do Oitocentos, como as mulheres delineavam a sua
existência no espaço urbano? Saint Hilaire (1975, p. 54) traz a sua impressão acerca
dessas figuras na cidade de Goiás em 1819:

Durante o dia só se vêem homens nas ruas da cidade de Goiás. Tão logo chega a noite,
porém, mulheres de todas as raças saem de suas casas e se espalham por toda parte.
Geralmente fazem o seu passeio em grupos, raramente acompanhadas de homens. [...]
Algumas vão cuidar de seus negócios particulares, outras fazer visitas, mas a maioria sai à
procura de aventuras amorosas.

Esse relato traz informações que, cruzadas com fontes primárias, dão pistas da forma
como esses espaços urbanos eram ocupados. Ainda que muito interessantes, as
narrativas dos viajantes devem ser lidas com cautela, uma vez que Saint Hilaire ignora
completamente a presença de mulheres durante o dia, mesmo que as ruas e becos
pudessem estar ocupados por escravizadas, libertas ou outros grupos femininos. Em outro
trecho, aponta que a cidade não tem vida social pois “cada um vive em sua casa e não
se comunica, por assim dizer, com ninguém” (SAINT HILAIRE, 1975, p. 52),
contradizendo o relato acima.
Ainda na cidade de Goiás do primeiro quartel do século XIX, Pohl (1975, p. 142), descreve
a movimentação dessas mulheres em suas atividades religiosas.

Expressamente para estes [brancos] é rezada uma missa às 5 horas da manhã, que tem o
nome de ‘missa da madrugada’. Nela aparecem principalmente as mulheres brancas
empobrecidas, envoltas num manto de qualidade inferior, para não se exporem aos olhares
desdenhosos das negras que comparecem mais tarde e entram altivamente ataviadas de
correntes de ouro e rendas.

Por esses poucos testemunhos é possível verificar a diversidade de tipos femininos.


Diversidade presente nas fontes e na produção historiográfica focada nas mulheres da
Capitania/Província de Goiás, que apresenta alguns estudos regionais relevantes, como
os realizados por Temis Parente (2005) ao tratar da vida cotidiana das mulheres dos
arraiais do norte (onde atualmente é o Tocantins), e por Mary Karasch (2001, 2002,
2012) que trabalha com abordagens diferentes em seus trabalhos, centrados nas
mulheres e suas atividades, como no caso das rainhas e juízas de irmandades negras.
Tendo como base as Décimas Urbanas de relevantes núcleos da Capitania de Goiás no
início do século XIX, é possível observar na tabela 1 a relação com o número total de
imóveis e a porcentagem dos grupos de proprietários formados por mulheres, homens e
outros representantes, não menos importantes, como irmandades religiosas, Hospício dos

● 6
Esmoleres da Terra Santa11 e o açougue (imóvel mais valorizado de Vila Boa), que
pertencia ao Senado da Câmara. A tabela 1 demonstra a importância das mulheres no
cenário imobiliário da Capitania de Goiás, de acordo com dados das Décimas Urbanas de
Vila Boa12 (1818), Pilar (1816), Meia Ponte13 (1819) e Natividade14 (1817).

Imóveis Imóveis Imóveis Total de


Núcleos Ano pertencentes % pertencentes % pertencentes % imóveis
Urbanos a mulheres
a homens a outros propr. cadastrados

Natividade 1817 97 49 94 47 715 4 198


Vila Boa 1818 317 44 344 47 6416 9 725
Meia Ponte 1819 131 42 169 55 817 3 308
Pilar 1816 118 42 111 39 5518 19 284

Tabela 1: Distribuição dos imóveis. Fonte: Décimas Urbanas.


(MUBAN - Pasta 1.1.4. “Lançamento da Décima e Receita”)

Mesmo que a tabela contabilize apenas informações de proprietários/proprietárias, outras


tantas pessoas eram inquilinas. A julgar pelo valor do rendimento anual dos imóveis
listados nas Décima Urbanas, percebe-se que os(as) proprietários(as) eram de diferentes
grupos sociais; no caso das mulheres, abarcava desde Donas a mulheres pobres. As
chamadas miseráveis (proprietárias ou inquilinas) estavam isentas da tributação do
imposto, o que revela um espectro amplo de proprietários(as) de imóveis urbanos.
Algumas dessas pessoas tinham sob seu poder mais de dois imóveis, ao passo que outras
possuíam apenas uma casa, em estado de ruína19 .
Para aferir a riqueza dessas pessoas, seria necessário ter conhecimento de outros bens,
como jóias, móveis e pessoas escravizadas. Tomando como exemplo o inventário de 1868
de Anna de Ayres da Silva, residente em Porto Imperial 20, Temis Parente (2005, p. 54)
descobriu que sua casa de pau-a-pique coberta com telhas com “uma porta de frente
duas janelas e três portas ao centro” foi avaliada em 50$000 réis, ao passo que um
escravizado de 43 anos foi cotado a 400$000. Mesmo considerados velhos, escravos de

11
Diferente do significado atribuído à palavra atualmente, hospício servia como uma hospedaria a
religiosos em trânsito, que arrecadavam doações financeiras dos fiéis para enviar à Terra Santa (MOURA,
2018, p. 224).
12
O Lançamento da Décima Urbana de 1818 está dividido em dois volumes distintos: um referente ao
bairro do Rozario e outro correspondente à margem sul do Rio Vermelho relativo à repartição de Santana.
13
Atual Pirenópolis.
14
Localizada no Tocantins.
15
Instituições Religiosas como irmandades e hospício.
16
Desses bens, 42 imóveis não apresentavam a identificação dos proprietários, 19 eram patrimônio de
irmandades religiosas e 3 eram do Senado da Câmara.
17
Instituições Religiosas como irmandades e hospício.
18
Desses bens, 52 imóveis não apresentavam a identificação dos proprietários e 3 eram patrimônio de
instituições religiosas e hospício.
19
Em comparação a outros núcleos da Capitania de Goiás, como Meia Ponte ou Pilar, Vila Boa apresentava
poucas casas nesse estado, apenas dez imóveis arruinados no total de 725 (MOURA, 2018).
20
Atual Porto Real, cidade situada às margens do Rio Tocantins, no estado de mesmo nome.

● 7
ambos os sexos poderiam trabalhar como guardas ou cuidadores, mantendo-se
economicamente ativos (KLEIN, 2013, p. 197).
Conforme observado no exemplo acima, para além das Décimas Urbanas, as mulheres
estão presentes em outros manuscritos, como personagens em testamentos e inventários
post-mortem. Extrapolando os limites urbanos, figuras do sexo feminino também foram
encontradas solicitando sesmarias, figurando entre proprietários de terras na Freguesia
de Meia Ponte ou mesmo circulando e transportando cargas estrada afora pela Capitania
de Goiás, conforme consta na documentação fiscal dos registros e passagens (MOURA,
2018, p. 153, 154).

Alguns Casos
Em 1818 Vila Boa vivenciou um momento importante da sua história: teve seu nome
alterado para Goiás e passou a ser reconhecida como cidade. A essa altura, a capital da
Capitania de Goiás já era sede de Prelazia, e era bem maior que os arraiais da capitania,
dotada de todo o aparato administrativo, como a Cadeia e o Senado da Câmara, a Real
Fazenda, o Quartel, o Palácio do governador, a Casa de Fundição, Açougue público, além
da Catedral de Santana, igrejas seculares, chafarizes e um dos primeiros Passeios
Públicos da colônia21. Vila Boa (conforme foi identificada na Décima Urbana de 1818) tinha
cadastrados 725 imóveis, ao passo que Meia Ponte, o maior arraial da capitania, possuía
apenas 308 casas (1819). Ampliando a comparação com outros núcleos urbanos e tendo
como base dados das Décimas Urbanas dessas localidades22, São Paulo em 1809 possuía
1.281 imóveis, o Rio de Janeiro em 1808 possuía 7.548 casas e Vila Rica em 1812, atual
Ouro Preto, 1.651 imóveis (MOURA, 2018, p. 264).

Nesse ambiente urbano, Dona Luiza Ferreira era proprietária de um dos imóveis mais
valorizados23 de Vila Boa, localizado na Rua Direita, 288. A Rua Direita 24 figurava entre
as principais vias locais, ligando a margem norte do Rio Vermelho, composta pelo Distrito
do Rosário, à porção Sul, do Santana. A Rua Direita apresentava características
semelhantes às da Rua do Rozario, marcada pela maior incidência de imóveis que
aparentavam desempenhar atividade comercial ou uso misto, ao passo que o Largo da
Matriz, que corresponde à continuação da Rua Direita, apresenta características que o
aproximava de usos residenciais, como rótulas nas janelas, conforme pode-se notar no
desenho de William Burchell (Figura 1). Como as Décimas Urbanas não apresentavam os
usos e atividades dos imóveis, a iconografia do século XIX ajuda a preencher lacunas,

21
Implantado no Governo do Capitão Geral da Capitania Luis da Cunha Menezes, em idos de 1782.
22
Beatriz Bueno (2005) trabalhou com a Décima Urbana de São Paulo, Nireu Cavalcanti (2004) com o Rio
de Janeiro, Angelo Carrara (2001) com núcleos da Capitania de Minas Gerais e Nádia Moura (2018) com
os núcleos da Capitania de Goiás.
23
Como a Décima Urbana de Vila Boa não apresenta o valor venal do imóvel, esta estimativa foi feita
baseada no valor do rendimento anual do bem.
24
Atual Rua Moretti Foggia.

● 8
numa tentativa de leitura da cidade de Goiás na passagem do período colonial para o
imperial.

Figura 1: Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte, casario com janelas com rótulas
e vista parcial do Palácio à direita, no Largo da Matriz (Burchell, 1827).
Fonte: FERREZ, 1981.

Voltando ao imóvel de Dona Luiza25, trata-se de um dos poucos sobrados da cidade,


identificado com “cinco janelas de frente” e fundos para o Córrego Manoel Gomes 26. Vila
Boa, tal como os arraiais da Capitania/Província de Goiás, era marcada pela
horizontalidade do casario térreo, com exceção de alguns poucos sobrados e dos edifícios
religiosos e oficiais, que se destacavam na paisagem.
Diferente do que ocorria nos arraiais da Capitania de Goiás, os imóveis mais valorizados
de Vila Boa estavam localizados nas regiões mais centrais do núcleo urbano 27, ao passo
que os imóveis mais desvalorizados estavam em localidades mais periféricas. Ainda
assim, havia uma gama de imóveis com valores variados no mesmo logradouro,
convivendo lado a lado. Essa heterogeneidade se aproxima do que Jacques Le Goff (1992,
p. 185) classifica como sociotopografia urbana, ou seja, a forma como grupos sociais
distintos se espacializam no sítio urbano.
Ainda na Rua Direita, o nome de uma proprietária de casa naquele logradouro chama a
atenção: Maria da Lapa. Além da casa 274 na referida rua, Maria também era dona de
uma casa na Rua do Ouvidor28 (115) e outra no Caes da Lappa29 (338), o que reforça a
noção de pertencimento daquela mulher a essa região da cidade, próxima ao Rio
Vermelho. Os três imóveis de Maria da Lapa estavam em uso, sendo que a casa do Caes
da Lappa estava alugada para Manoel da Costa enquanto os demais imóveis eram

25
Ela possuía apenas essa casa.
26
Procuração bastante que fazem e assignão o Capitão Jozé Joaquim Pulquerio dos Santos e sua mulher
Dona Maria Angelica, e Dona Anna Clara de Jezus aos nella nomeados como abaixo se declara. Fonte:
MUBAN - Livro de Notas nº 68 “Juiz Municipal – Joaquim Xavier dos Guimaraens Frances – 1835-1837
(folhas 121V, 122 e 122V).
27
Sobretudo no Largo do Rozario, Largo de São Francisco de Paula, Rua Direita, Largo da Matriz e Rua de
Almas e Marinho (MOURA, 2018).
28
Atual Rua Senador Eugênio Jardim.
29
Atual Avenida Dom Prudêncio.

● 9
ocupados pela proprietária. Pela vocação comercial da Rua Direita, fica a dúvida se ela
mantinha alguma atividade comercial nesse imóvel e habitava em sua casa na Rua do
Ouvidor ou vice-versa.
Tal como Maria da Lapa, outras tantas não apresentavam nomes de batismo na listagem
da Décima Urbana de 1818, o que dificulta a identificação dessas mulheres. Outro ponto
que interfere na sua identificação diz respeito a homônimas encontradas na
documentação. Há dez proprietárias com o nome de Anna Maria, sendo que nove
apresentam sobrenomes diferentes. Uma dessas “Annas” foi cadastrada sem sobrenome,
o que abre um campo de especulações: o fiscal teria omitido essa informação ou seria
mais um caso em que a mulher simplesmente não tinha sobrenome? A Anna Maria “sem
sobrenome” possuía 3 casas em Vila Boa: uma na Rua Rio da Prata30 (565), uma na Rua
Jogo de Bolla31 (621) e uma no Campo da Forca32 (196). Curiosamente, ela foi identificada
como “pobre” apenas no cadastro da casa do Campo da Forca, informação que não
apareceu na identificação dos outros dois bens. Tudo leva a crer, portanto, que seriam
pessoas diferentes, homônimas e sem sobrenome.
Em alguns casos, as mulheres mudavam de nome, acrescentando ao seu sobrenome “de
Jesus”, “da Anunciação”, “da Cruz”, “do Espírito Santo”, dentre outros. De acordo com
Dias (1995, p.35), as mulheres que não conservavam os nomes de família assim o faziam
por viverem em concubinato, por não terem “meios decentes de sobrevivência” ou por
serem bastardas. Outra hipótese é que seriam escravas forras.
Nesse contexto, o caso de Joaquina de tal (também cadastrada como Joaquina de tal
preta), chama a atenção. Joaquina é proprietária de três casas em Vila Boa, localizadas
na Rua de Pedra33 (672), Rua do Jogo da Bolla34 (638) e na Rua do Carmo35 (239), onde
residia. Mesmo que os imóveis das ruas do Jogo da Bolla e de Pedra não apresentassem
informação quanto à sua ocupação, é provável que estivessem ocupados, uma vez que
os impostos nesses dois casos foram cobrados. A investigação pelo sobrenome de
Joaquina seguiu com a análise das Décimas Urbanas dos anos de 1810 e 1820. Em 1810
apenas a casa nº 638 pertencia a uma certa Joaquina da Silva Freire e a Décima Urbana
a identificou como “preta forra”. No ano de 1820, sua casa na Rua do Carmo ficou isenta
de pagar o imposto pela proprietária ter sido cadastrada como “pobre” 36.

30
Atual Rua Senador Caiado.
31
A Rua do Jogo da Bolla era muito extensa. A casa de Anna Maria estaria localizada no trecho da Travessa
do Seminário.
32
Atual Rua 3 de maio.
33
Atual Rua Joaquim Rodrigues.
34
Atual Travessa do Seminário.
35
O nome dessa rua foi mantido.
36
O fiscal da Décima Urbana, responsável pelo cadastro dos imóveis do Distrito de Santana em 1820,
omitiu informações valiosas como o nome de proprietários de vários imóveis. Isso impossibilita confirmar
se Joaquina continuava sendo proprietária dos imóveis nas ruas do Jogo de Bolla e de Pedra.

● 10
Cotejando os dados das Décimas Urbanas com outras fontes documentais históricas, o
registro mais próximo foi o de uma escrava liberta 37 de nome Joaquina, cuja compra de
sua liberdade teria ocorrido em 181738. Segundo Eduardo Paiva (2008, p. 99), na
sociedade escravista, o estigma contra os alforriados começava pela composição dos
nomes, em que se impunha uma “fórmula de identificação”, uma “condição jurídica” e
uma “qualidade”, a saber: preta forra ou mulato forro, por exemplo.
Na Tabela 2 estão elencadas as proprietárias com dois ou mais imóveis listados na Décima
Urbana de 1818 de Vila Boa, tal como Joana de tal, Anna Maria e Maria da Lapa. Ao
acompanhar o valor do rendimento anual dos imóveis na tabela, percebe-se que as
proprietárias pertenciam a diferentes estratos sociais, de acordo com seus imóveis mais
ou menos valorizados. No caso de Martha Ferreira, mesmo possuindo dois imóveis
vizinhos na Rua do Jogo de Bola, o fiscal a cadastrou como “pobre”, isentando-a do
pagamento do imposto. Por outro lado, a Dona Potenciana Ludovica de Carvalho era
proprietária de um dos imóveis mais valorizados de Vila Boa, localizado no Largo de São
Francisco de Paula39 (347). O fiscal da Décima não especificou se este imóvel estava
ocupado, mas registrou que D. Potenciana residia na casa ao lado.
Os endereços das casas sinalizadas em salmão estão no Distrito do Rosário, região em
que o fiscal cadastrou com mais rigor as informações; por outro lado, os endereços dos
imóveis sinalizados em musgo estão no Distrito do Santana, região prejudicada pela
displicência do fiscal, que omitiu informações relevantes como a ocupação e a finalidade
do imóvel.

Rendi-
Finalidade mento
Logradouro Proprietária
do imóvel anual do
imóvel
Largo da Matriz, 379 uso próprio 32$400
Rua do Jogo de Bolla, 606 Dona Escolastica - 1$800
Rua do Jogo de Bolla, 607 Delfina/ - 1$800
Rua do Jogo de Bolla, 608 Dona Escolastica - 1$800
Becco de Joze Duarte, 704 [Delfina] - 7$200
Becco de Joze Duarte, 705 - 21$600
Lgo. de São Francisco de Paula, 346 Dona Potenciana uso próprio 7$200
Lgo. de São Francisco de Paula, 347 Ludovica de Carvalho - 57$600
Rua da Abadia, 141 uso próprio 14$400
Rua da Abadia, 142 Anna Felicia uso próprio 14$400
Rua da Abadia, 143 aluguel40 7$200
Rua do Carmo, 239 uso próprio 3$600
Joaquina de tal preta/
Rua do Jogo de Bolla, 638 - 7$200
Joaquina de tal
Rua de Pedra, 672 - 7$200

37
Serva da falecida Jozefa Maria Carvalho.
38
Lançamento de Huma Carta de Liberdade passada por Manoel Luis De Carvalho a huma Sua Escrava de
nome Joaquina, de Nação Mina, como abaixo se declara. Fonte: MUBAN - “Livro de Notas nº 55. Juízo
Geral – Juiz de Fora Lucio Soares Teixeira de Govea – 1818-1820” (folhas 53V, 54).
39
Localizada na confluência da Rua Professor Ferreira e Praça do Mercado.
40
Casa alugada para Anna Jacintha.

● 11
Rua das Almas e Marinho, 359 uso próprio 3$600
Rua das Almas e Marinho, 360 Margarida Jozefa dos - 11$400
Rua das Almas e Marinho, 361 Prazeres - 11$400
Rua das Almas e Marinho, 362 - 11$400
Rua do Ouvidor, 115 uso próprio 10$800
Rua Direita, 274 Maria da Lapa uso próprio 9$000
Caes da Lappa, 338 aluguel41 7$200
Rua de Manoel Gomes, 404 - -
Rua de Manoel Gomes, 405 Thereza Marques - -
Largo do Chafariz, 481 - -
Rua de Francisco Fernandes, 412 - 7$200
Rua de Francisco Fernandes, 419 - 21$600
(herança) Thereza
Rua atras do Quartel, 433 - 36$000
Marques/(herdeiros)
Becco de Joze de Mello, 441 - 7$200
Thereza Marques
Becco de Joze de Mello, 459 - 3$600
Rua da Fundição, 472 - 21$600
Campo da Forca, 196 uso próprio -
Rio da Prata, 565 Anna Maria uso próprio 1$800
Rua do Jogo de Bolla, 621 - 2$700
Rua do Jogo de Bolla, 612 - -
Martha Ferreira
Rua do Jogo de Bolla, 613 - -

Tabela 2: Proprietárias com mais de dois imóveis em Vila Boa em 1818.


Fonte: MOURA, 2018 (modif.).

Por essa pequena amostragem de proprietárias de imóveis, fica explicitado que algumas
eram Donas abonadas, ao passo que outras traziam aspectos da sua origem em seu
nome, ao destacar a cor da pele, deixando evidente que há uma intersecção das
categorias de classe e raça.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dos 725 imóveis listados na Décima Urbana de Vila Boa de 1818, 317 estavam nas mãos
de mulheres, o que equivale a 44% do total. Entre mulheres proprietárias e inquilinas, a
Décima Urbana revelou uma grande diversidade de marcadores sociais de diferença entre
os tipos femininos: de Donas a mulheres miseráveis, que não pagavam o imposto por sua
condição econômica, sem mencionar a diversidade racial (aspecto muito pouco abordado
na Décima Urbana, mas que pode surgir em outras fontes). Nesse prisma, a mulher passa
a ser vista não apenas em oposição à figura masculina, em posição subalterna, mas como
protagonista.
Mesmo que a Décima Urbana apresente lacunas enquanto fonte histórica, ela viabiliza
enxergar a cidade de Goiás sob um outro prisma, junto com outras fontes e bibliografia
de apoio, ao lançar luz nas mulheres desses sertões, no início do século XIX.
Como sugestão para pesquisas futuras, faz-se necessária a investigação de outras fontes
históricas como Maços de População, Inventários post-mortem, Testamentos e outros

41
Casa alugada para Manoel da Costa.

● 12
documentos de fundo cartorial, possibilitando, na medida do possível, adentrar no
universo das relações cotidianas da vida urbana do Oitocentos.
Outros desafios estão em jogo, considerando que essas fontes foram redigidas por figuras
do sexo masculino. Ainda assim, o primeiro passo foi dado para descortinar outras formas
de narrar a cidade sob a ótica dessas atrizes sociais, sempre respeitando as suas
diferenças e subjetividades em prol de uma história da cidade plural e diversa.

REFERÊNCIAS
Fontes Primárias

Arquivo do MUBAN – Museu das Bandeiras (Goiás - GO):


LANÇAMENTO da Décima e Receita (Villa Boa) – Caixa 23
LIVROS de Nota do Cartório do 1º Ofício de Registro Geral de Imóveis e Tabelionato de
Goiás.
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● 13
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● 14
O CAMINHO PARA UMA CIDADE SEM MEMÓRIA
O processo gradual de demolição e descaracterização de bens
históricos culturais da cidade de Pau dos Ferros/RN
THE WAY TO A CITY WITHOUT MEMORY/EL CAMINO A UNA CIUDAD
SIN MEMORIA
Cidade, política e cultura

FERREIRA, Anna Cristina Andrade


Doutora em Arquitetura e Urbanismo; Docente na Universidade Federal Rural do
Semiárido
anna.ferreira@ufersa.edu.br
ARAÚJO, Jayane Dutra de
Graduanda em Arquitetura e Urbanismo; Aluna na Universidade Federal Rural do
Semiárido
jayane.araujo@alunos.ufersa.edu.br
VALENTIM, Roberta de Sousa
Graduanda em Arquitetura e Urbanismo; Aluna na Universidade Federal Rural do
Semiárido
robertasousavalentim@outlook.com
RESUMO

A demolição e descaracterização dos bens de valor histórico e cultural em


decorrência do crescimento urbano desenfreado e a falta de planejamento
prévio é cada vez mais recorrente não só nos grandes centros urbanos, mas
em cidades de pequeno e médio porte. A proposta deste artigo é expor o
cenário atual da preservação do patrimônio histórico na cidade de Pau dos
Ferros, localizada no interior do estado do Rio Grande do Norte, e apontar as
ações depredatórias que direcionam o município para o caminho de uma cidade
sem memória. A despeito das edificações que sofreram com a ação de agentes
destruidores da memória local do processo de concepção de uma comunidade
e o papel de protagonista e antagonista da população na narrativa da perda da
memória desta cidade.

PALAVRAS CHAVE Preservação; Demolição; Descaracterização; Pau dos


Ferros; Memória.

ABSTRACT OU RESUMEN

The demolition and mischaracterization of assets of historical and cultural value


as a result of unbridled urban growth and the lack of prior planning is
increasingly recurrent in large urban centers. The purpose of this article is to
expose the current scenario in relation to the preservation of historical heritage
in the city of Pau dos Ferros, located in the interior of the state of Rio Grande
do Norte, 400km from the capital, and to point out the depredatory actions
that direct the city in the path of a city without memory. Despite the buildings
that suffered from the action of agents that destroyed the local memory of the
process of designing a community and the role of protagonist and antagonist
of the population in the narrative of the loss of memory of this city.

KEY-WORDS OU PALABRAS-CLAVE Preservation; demolition;


mischaracterization; Pau dos Ferros; memory.

• 2
INTRODUÇÃO
Com o advento da modernidade tornou-se comum ver edificações, que faziam parte da
história das cidades brasileiras, serem demolidas ou descaracterizadas devido à uma
necessidade desenfreada por uma ideia de progresso, e a busca pela modernidade
arquitetônica, que atropela a crônica local desses espaços.
No município de Pau dos Ferros. Uma cidade que foi fundada por meio da atividade
pecuária e hoje é um centro econômico e educacional da mesorregião do Alto Oeste
Potiguar, essa realidade não é diferente. Mesmo sendo uma cidade no interior do estado
do Rio Grande do Norte, que fica a 400km da capital Natal, sua evolução urbana
demonstra uma constante busca pela atualidade arquitetônica, visando o crescimento
econômico através da especulação imobiliária, em ascensão na região.
“A demolição é o ato ou efeito de demolir, desmantelamento, destruição, demolimento.”
(Oxford Languages, 2022). Na arquitetura, ou melhor dizendo, no cenário histórico das
cidades, o conceito de demolição parte desse mesmo pressuposto, sendo também
associado ao termo “renovação”. A renovação urbana abre caminhos para o
desenvolvimento das cidades, muitas vezes sem se preocupar com a história presente
nessas quadras e edificações, apagando gradativamente a memória cultural de uma
comunidade.
Um dos exemplos que evidenciam e escancaram a falta de apego do pauferrense para
com a sua história é a Igreja Matriz, que sofreu com a descaracterização no decorrer do
tempo, e atualmente possui em si características que não faziam parte da sua composição
original. Tanto externa quanto internamente, a edificação passou por várias modificações
no decorrer dos seus 283 anos de história, em sua estrutura, forro, cobertura e fachada.
Nela pode-se destacar a demolição do altar-mor original em 1969 e o acréscimo de uma
torre como obra mais recente concluída em 2015 através da campanha “Casa mãe”.

Figura 1: igreja da Matriz sem as torres e com o obelisco. Fonte: acervo Toinho Dutra (1956).

• 3
Figura 2: igreja da Matriz após as primeiras reformas. Fonte: acervo Toinho Dutra (1960).

Figura 3: igreja da Matriz atualmente. Fonte: Google Imagens (2022).

• 4
Outro exemplo que demonstra o desmantelamento do conjunto edilício tradicional da
cidade foi a demolição de algumas das residências mais antigas localizadas na Praça da
Matriz para a construção do Plaza Shopping, que ocorreu em 2014. A área escolhida para
a construção do shopping causou uma descaracterização da paisagem urbana central da
cidade, e não passou por nenhum tipo de avaliação de impacto, inclusive por se tratar de
uma área com edificações tombadas pela gestão municipal, o que demonstra que a
especulação imobiliária vem se sobrepondo à preservação histórica e cultural da cidade.

Figura 4: casas que existiam no local onde o Plaza Shopping foi construído. Fonte: Jayane Dutra (2022).

Figura 5: Plaza Shopping Center. Fonte: Google Imagens (2022).


Mediante a esse contexto, este artigo procura entender as circunstâncias que levaram a
este cenário atual, que direciona Pau dos Ferros para o caminho de uma cidade sem
memória, evidenciando causa, efeito e possíveis medidas a serem tomadas para frear
esta situação iminente.

• 5
PAU DOS FERROS: CONTEXTO HISTÓRICO E ATUAL
A sesmaria de Pau dos Ferros datada de 1733, entretanto, suas terras pertenceram ao
território da Vila de Portalegre até o dia 04 de setembro de 1856, quando a lei de nº 344
elevou à categoria de vila a povoação de Pau dos Ferros, estabelecendo os limites do
novo município (BARRETO, 1978, p.31 e 41).
Assim como boa parte das cidades do interior do estado do Rio Grande do Norte, Pau dos
Ferros tinha seus recursos baseado na pecuária, que ofereceu perspectivas de exploração
comercial e deu início a história da cidade. Muitas são as narrativas que permeiam a
origem de seu nome, mas em seu livro, José Jacomé cita a seguinte história:

A origem deste nome é a seguinte: No local onde está situada a cidade havia uma pequena
lagoa, à margem da qual crescia uma frondosa árvore. Essa lagoa servia de pouso de
comboieiros, boiadeiros e vaqueiros das fazendas espalhadas na região. Naquela árvore
gravavam os vaqueiros com ponta de faca os ferros ou marcas com que os fazendeiros
assinalavam seus gados. Há divergências na tradição quanto à natureza da árvore. Uns
dizem que era uma oiticica e outros afirmavam que era um jucá. A árvore ficou sendo
conhecida na circunvizinhança por “pau dos ferros”, nome que passou à fazenda, à
freguesia, e, finalmente ao município. (BARRETO, 1987, p.36)

Hoje, quase 166 anos após o sancionamento da lei que reconhece Pau dos Ferros como
município, a cidade, que se localiza a 400km da capital do Rio Grande do Norte, é
conhecida por todos como a “Princesinha do Oeste”. Tornou-se um centro comercial e
educacional que atende não só as cidades circunvizinhas que fazem parte do seu estado
de origem, como também, cidades que pertencem aos estados do Ceará e da Paraíba.

Figura 6: mapa de Pau dos Ferros e seus municípios vizinhos. Fonte: Google Imagens (2022).
Desde a sua formação, a cidade possuía edificações que marcaram as décadas através
de seus traços arquitetônicos, tornando-se lugares que fazem parte da memória coletiva1

1
A memória coletiva é compreendida/defendida por Halbwachs como processo de reconstrução do passado
vivido e experimentado por um determinado grupo social.

• 6
da população pauferrense. O conceito de lugares de memória surgiu em meados do século
XX, com o historiador Pierre Nora, para quem o “lugar de memória” pode ser
compreendido por meio de três características: material, funcional e simbólica. A
presença desses lugares de memória e os esforços pela sua durabilidade são uma
resposta a possibilidade do esquecimento. Como ressalta Nora, “se o que [os lugares de
memória] defendem não estivesse ameaçado, não se teria a necessidade de construí-los.
Se vivêssemos verdadeiramente as lembranças que envolvem, eles seriam inúteis”
(NORA, 1993, p. 13).
Com o passar dos anos a cidade passou por diversas transformações, se tornando um
centro econômico e educacional, o que ocasionou alguns problemas urbanos, como o
crescimento exponencial da população e, consequentemente, de sua territorialidade, de
forma desordenada e sem uma legislação de regulamentação, que só veio a ser
implementada recentemente com a elaboração do Plano Diretor, em vigor desde 2022.
Junto a essa falta de planejamento vieram as demolições e descaracterizações, não só na
área central como nos bairros mais antigos da cidade, onde muitos bens de valor histórico
foram demolidos ou descaracterizados, em prol do crescimento econômico e do
progresso.
Apesar da Lei Orgânica do Município de Pau dos Ferros, elaborada na década de 1990,
apresentar declarações pontuais acerca da preservação do patrimônio histórico e cultural,
como: na seção I. Art. 13 e parágrafo XLIII “proteger o patrimônio histórico cultural”; na
seção II. Art 14, parágrafo IV “Proteger os documentos, as obras e outros bens de valor
histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios
arqueológicos”; e no parágrafo V da mesma seção, “impedir a evasão, a destruição e a
descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico ou cultural”, apenas
cinco bens são tombados pelo município, pela Lei nº 1509/2015, na cidade de Pau dos
Ferros, que correspondem ao Obelisco (Figura 7); ao Prédio Sede da Prefeitura de Pau
dos Ferros (Figura 8); à Casa da Cultura Popular Joaquim Correia (Figura 9); ao Mercado
Público Municipal Antônio Soares de Holanda (Figura 10) e ao Quartel da Polícia Militar
(Figura 11). Bens estes que foram tombados com base em interesses políticos e
econômicos, sendo ignorados todos os outros bens que fazem parte da memória da cidade
e não possuem nenhum instrumento de preservação, a exemplo da Igreja Matriz.

• 7
Figura 7: Obelisco. Fonte: Google Imagens (2022).

Figura 8: Sede da Prefeitura de Pau dos Ferros. Fonte: Google Imagens (2022).

• 8
Figura 9: igreja da Matriz sem as torres e obelisco. Fonte: acervo Toinho Dutra (1956).

Figura 10: igreja da Matriz sem as torres e obelisco. Fonte: acervo Toinho Dutra (1956).

Figura 11: igreja da Matriz sem as torres e obelisco. Fonte: acervo Toinho Dutra (1956).

• 9
Esta situação, conforme será visto adiante, está contribuindo para o processo de perda
da história da cidade de Pau dos Ferros. Com o contínuo quadro de demolições das
edificações mais antigas para dar lugar ao novo ou a simplesmente nada, e as mudanças
de fachadas que descaracterizam completamente as edificações históricas.

A PERDA DA MEMÓRIA: BENS DEMOLIDOS E DESCARACTERIZADOS


Nesta sessão serão expostos os bens de valor histórico e cultural da cidade de Pau dos
Ferros que foram demolidos ou descaracterizados.

Antigo prédio da receita federal


A edificação funcionou como o Fomento Agrícola em 1954 e posteriormente como a
Receita Federal, tornando-se um bem importante para a história e desenvolvimento
econômico de Pau dos Ferros. O mesmo apresentava características do estilo art decó
sertanejo e era uma edificação térrea. Com o passar dos anos houve a desativação da
receita e o local permaneceu sem uso em estado de abandono, foi vendido em um leilão
no ano de 2020, e em fevereiro de 2021 foi demolido para dar espaço a um
estacionamento privativo de um supermercado.

Figura 12: antigo prédio da Receita Federal. Fonte: acervo Jânio Melo (2014).

• 10
Figura 13: antigo prédio da receita federal abandonado. Fonte: acervo Jânio Melo (2019).

Figura 14: demolição do antigo prédio da receita federal. Fonte: acervo Jânio Melo (2021).

Figura 15: estacionamento privativo do supermercado Nonato. Fonte: Google Earth (2022).

• 11
A “moderninha” da Rua Getúlio Vargas
A casa moderninha da avenida Getúlio Vargas, um dos poucos exemplares com
características de arquitetura moderna na cidade, construída na década de 1960, foi
demolida no ano de 2022 para dar espaço a uma lacuna urbana que serve de acesso para
um grande supermercado da cidade.

Figura 16: casa moderna da rua Getúlio Vargas. Fonte: acervo Memória do Sertão (2022).

Figura 17: Lacuna urbana criada pela demolição da casa para dar aceso a um supermercado. Fonte:
Google Earth (2022).

• 12
Prédio da BR-405, nº 880
Esta edificação que carrega traços do estilo art decó sertanejo, já estava descaracterizada
com a implementação de um portão de aço, foi completamente demolida para que o
terreno pudesse ser vendido sem o custo da demolição.

Figura 18: Prédio da BR-405, nº880. Fonte: Google Earth (2022).

Figura 19: terreno à venda do antigo prédio demolido da BR-405. Fonte: Jayane Dutra (2022).

• 13
Pavilhão da Praça da Matriz
O pavilhão da Praça da Matriz, foi erguido em 1947, uma construção com características
da arquitetura moderna, aonde antes aconteciam as festas da cidade. No ano de 2020 foi
feito um projeto de restauração por um arquiteto local que buscava transformar o
Pavilhão em um Café Central. No entanto, o conceito de restauração foi completamente
deturpado, visto que o projeto retirava todas as características originais da edificação.
Houve uma certa comoção da população durante o decorrer da obra e fez com que a obra
fosse interrompida antes de seu término, este projeto continua parado até hoje sem
previsão de retomada.

Figura 19: Pavilhão da Praça da Matriz. Fonte: Toinho Dutra (1965).

Figura 20: Projeto de restauração do Pavilhão. Fonte: Lucyvan Freitas (2020).

• 14
Figura 21: Projeto de restauração do Pavilhão. Fonte: Lucyvan Freitas (2020).

Figura 22: Projeto de restauração do Pavilhão. Fonte: Lucyvan Freitas (2020).

Figura 23: Pavilhão da Matriz atualmente. Fonte: Jayane Dutra (2022).

• 15
Castelinho da Matriz, nº214
O castelinho da matriz era um imponente exemplar da arquitetura eclética na cidade, foi
erguido no ano de 1917 e vinha sendo preservado até uma “ameaça” de tombamento no
ano de 2014, que fez o com que o dono da residência tomasse uma atitude drástica e
removesse todas as características que faziam de sua casa um bem de valor histórico
para a cidade de Pau dos Ferros. Em um relato do dono escrito por Thiago Holanda, ele
diz:

Infelizmente, a ameaça do tombamento legal me impediu de continuar preservando o


colorido e o vigor estilístico da minha casa. Não porque as nossas intenções, a minha e a
da vereadora-tombadora, não coincidissem, a princípio. Por mim, ainda teria feito muitas
renúncias, inclusive, financeiras para que aquela fachada permanecesse tão jovial quanto
o era no ano de 1917. Contudo, só o faria enquanto não me fosse negada a alternativa de
optar pelo inverso, de reinventá-la, de alterar as suas cores e ornamentos ou, até mesmo,
de destruí-la.
Se a minha liberdade de decidir o que era certo ou errado para a minha própria casa iria
ser substituída pela obediência servil de um “padrão estético” imposto pelos outros, sejam
governantes de ocasião ou outras figuras covardemente ocultadas pelo emblema do
“interesse público”, então tudo estaria invertido e já não mais existiria um autêntico direito
de propriedade. Antes que essa inversão ocorresse, preferi eu mesmo pôr pelo avesso os
termos do tombamento pessoal que havia feito naquele mês de dezembro de 1995. Ao
destruir a sua fachada, senti-me novamente a tombá-la tanto quanto na primeira vez.
Preservei a liberdade de ser o seu dono e da minha forma pessoal de amá-la. Nenhum outro
tombamento poderia ser mais legítimo. (HOLANDA, 2015, p.03)

Atualmente, a casa está ainda mais descaracterizada e parte dela deu espaço a uma loja
de roupas.

Figura 24: Castelinho da Matriz. Fonte: Thiago Holanda (2015).

• 16
Figura 25: castelinho da Matriz descaracterizado após ameaça de tombamento. Fonte: Thiago Holanda
(2015).

Figura 26: castelinho da Matriz descaracterizado após ameaça de tombamento. Fonte: Thiago Holanda

(2015).

Figura 27: castelinho da Matriz atualmente. Fonte: Jayane Dutra (2022).

• 17
Mercado Publico
O Mercado Público Municipal Antônio Soares de Holanda foi construído no ano de 1868,
manteve suas características originais e foi tombado no ano de 2015, no entanto, um
projeto de reforma que teve seu fim no ano de 2017, demoliu por completo seu interior,
mudando toda a configuração interna e foi adicionada uma estrutura metálica que destoa
das características arquitetônicas do edifício, destacando-se mais que ele próprio. Uma
ação totalmente oposta a proposta de tombamento que já havia sido realizada pelo
próprio município ao bem de valor histórico e cultural da cidade.

Figura 28: Mercado Público em 2014, antes de sua reforma. Fonte: Farias (2015).

Figura 29: Projeto de reforma do Mercado Público. Fonte: Blog Sertão Potiguar (2017).

• 18
Figura 30: Mercado Público com reforma Finalizada. Fonte: Google Imagens (2022).

Figura 31: Demolição da parte interna do Mercado Público. Fonte: Blog Nossa Pau dos Ferros (2015).

Figura 32: Interior do Mercado Público com reforma Finalizada. Fonte: Monique Lessa (2019).

• 19
Essas são só algumas das inúmeras edificações de valor histórico e cultural que compõe
a memória local da cidade de Pau dos Ferros e que padecem em consequência da busca
pela modernidade arquitetônica e vazia, atrelada a expansão urbana e o comercio
localista que se apodera de toda e qualquer oportunidade de ampliação de espaço e
modernização.
A função atribuída a essas edificações vai muito além de espaço e composição
arquitetônica, elas integram os lugares de memória coletiva que fomenta a concepção do
espaço ao se tornarem parte de um contexto histórico local. No livro A Lâmpada da
Memória, John Ruskin cita:

A memória pode ser verdadeiramente considerada como a Sexta lâmpada da Arquitetura;


pois, é ao se tornarem memoriais ou monumentais que os edifícios civis e domésticos
atingem uma perfeição verdadeira; e isso em parte por eles serem, com tal intento,
construídos de uma maneira mais sólida, e em parte por suas decorações serem
conseqüentemente inspiradas por um significado histórico ou metafórico. (RUSKIN, 2008,
p.55)

É na memória que se encontra todo o significado histórico e cultural de determinado meio,


pois, a memória é uma construção de fatos verdadeiros e significativos responsável por
impedir o esquecimento da concepção de uma comunidade. No caso de Pau dos Ferros,
a demolição e a descaracterização dos bens de valor histórico e cultural apaga
definitivamente todo e qualquer resquício e significado histórico presente nessas
edificações ao tirar sua identidade e valor. Ainda no livro A Lâmpada da Memória, John
Ruskin cita: “É como centralizadora e protetora dessa influencia sagrada, que a
Arquitetura deve ser considerada por nós com a maior seriedade. Nós podemos viver sem
ela, e ora sem ela, mas não podemos rememorar sem ela” (RUSKIN, 2008, p.54).
A arquitetura é uma peça fundamental no ato de rememorar a história local, visto que o
fato de ser construções sólidas capazes de ultrapassar o efeito do tempo permite que a
crônica seja lembrada em qualquer espaço de tempo. Em contrapartida, não é exequível
transporta-se para o lugar de memória se não há vestígios de identificação da história,
por isso, a arquitetura precisa ser vista como ferramenta de preservação pelas pessoas
que formam a comunidade, pois, elas possuem um papel de protagonismo, seja na
preservação ou demolição dos bens históricos culturais.

O PAPEL DAS POPULAÇÃO NA PRESERVAÇÃO DOS BENS DE VALOR


HISTÓRICO
A demolição e descaracterização dos bens de valor histórico são ações depredatórias da
memória contida nos espaços que compõe a cidade e no espirito de pertencimento da
população. A linha tênue entre preservar e demolir, tombar ou descaracterizar com base
nos valores culturais e históricos ou anseios pessoais e muitas das vezes individualistas,
segue sendo a razão para as mesmas ações, seja assertiva ou não, continuem
acontecendo mesmo em cidades interiorizadas como Pau dos Ferros. A causa sempre irá
advir das pessoas.

• 20
O crescimento desenfreado dos centros urbanos, a busca pela modernidade arquitetônica,
aspirações econômicas, a falta de apego e zelo pelo bem histórico, a busca pelo progresso
e a insuficiência de lei que de fato cubra todo o cenário histórico da cidade são só alguns
dos motivos que principia o caminho para uma cidade sem memória. Destaca-se que o
município pauferrense até possui uma legislação (Lei Nº 1.509/2005) sobre preservação,
mas ela contempla apenas bens arquitetônicos considerados mais pertinentes, ou seja, a
Prefeitura, o Mercado Público Municipal Antônio Soares de Holanda, o Quartel da Policia
Militar e o Obelisco, colocando o restante na direção do poderio imobiliário e comercial
que se apodera de toda e qualquer possibilidade de posse que venha a surgir,
principalmente no centro da cidade.
O crescimento imobiliário e comercial é, se não for o maior, responsável pela
desapropriação cultural e histórica de Pau dos Ferros. É através dele que cada vez mais
surgem lacunas urbanas e um déficit histórico e cultural na região. Obviamente, quando
se fala sobre culpabilidade na não preservação dos bens de valor histórico e cultural, as
pessoas que constituem o local não se isentam da culpa, afinal, por trás do mercado
imobiliário há pessoas movidas pela ganância e pela necessidade de derrubar para
construir algo novo e consequentemente, vazio.
Assim como há a atribuição negativa no quesito preservar, também há outra óptica, onde
o papel das pessoas é preservar e manter a memória intacta, seja se movimentando para
impedir que edificações históricas sejam demolidas e descaracterizadas ou sendo o
agente da ação ao não fazer e ainda conscientizar os demais a sua volta sobre a
importância de manter viva a crônica do espaço. Além do mais, edificações de valor
histórico não conseguem cuidar-se unicamente só e acabam se deteriorando com o passar
dos anos ao ficar à mercê do tempo, uso e degradação natural, por isso, a contribuição
das pessoas no resguardo de edificações que trazem consigo vestígios culturais e histórico
é primordial para que a memória não pereça.

CONCLUSÃO
O projeto de demolir e descaracterizar o município de Pau dos Ferros está desenrolando-
se a todo vapor e a memória local, do processo de concepção da cidade está aos poucos
se esvaindo para dar lugar a modernidade arquitetônica e as lacunas urbanas preenchidas
por estacionamentos, empreendimentos imobiliários, vias de acesso para rede de
supermercado ou lojas e boutiques que integra o ponto central da cidade.
Seja pela falta de informação sobre preservação e tombamento ou políticas públicas de
preservação que englobe todas as edificações com esse teor e não apenas as consideradas
pertinentes como na legislação (Lei Nº 1.509/2005) sobre preservação, Pau dos Ferros
encontra-se no caminho para uma cidade sem memória. A modernidade aplacada pelo
mercado imobiliário parece reger a cidade em um único som, onde só é tocado duas
notas, a de demolição e a descaracterização dos bens histórico e culturais.
Dentre as formas de frear esse aceleramento está a introdução de políticas de
conscientização e educação patrimonial que buscam acondicionar as edificações que

• 21
restam e que contribuem na construção da narrativa local. Outrossim, o Curso de
Arquitetura da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA), sede em Pau dos
Ferros, possui projetos de pesquisa como “Memória do Sertão: Estudo Arquitetônico de
Pau dos Ferros” que atua na realização de levantamentos de edificações residências,
comerciais, institucionais e religiosas do município para que ao menos haja registros sobre
a memória do lugar no processo de sua concepção.
Mediante a isso, este artigo tem como finalidade revelar como está a atual situação de
Pau dos Ferros no quesito preservação do patrimônio histórico e cultural, e também usar
o veículo para alertar sobre o rumo que a memória local está tomando ao ser descartada
sem que haja nenhum resquício de arrependimento ou culpabilidade dos agentes da ação
degradante. A ação que degrada o lugar de memória resulta na perca das características
históricas e culturais que caracterizam e distinguem a concepção de uma comunidade.

REFERÊNCIAS
BARRETO, José Jácome. Pau dos Ferros: História, tradição e realidade. Pau dos Ferros: 1987.
FARIAS, Fablênia Tatiany de. Comercio e cidade: processos e formas espaciais em Pau dos
Ferros/RN. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro
de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia.
Natal, 2015.
FERREIRA, Anna Cristina de Andrade et al. A cidade não para e a memória não perece: a
preservação patrimonial e as transformações urbanas na contemporaneidade. Porta Alegre:
Editora Fi, 2020.
HOLANDA, José Edmilson. Pau dos Ferros: crônicas, fatos e pessoas. Pau dos Ferros: Arte
Gráfica Pauferrense, 2006. 105 páginas.
HOLANDA, Thiago. Como o tombamento destruiu a história de uma arquitetura.
Disponível em: < https://caosplanejado.com/como-o-tombamento-destruiu-a-
historia-de-uma-arquitetura/> Acesso em: 19 agosto 2022.
MIRANDA, Lucas Mascarenhas de. Memória individual e coletiva. Disponível em: <
Memória individual e coletiva | Unicamp > Acesso em: 19 agosto 2022.
OLIMPIO, Monique Lessa Viera et al. Memória em risco: o processo de descaracterização
do centro histórico de Pau dos Ferros/RN. Belo Horizonte: Arquisur, Vol.1, 26.
PAU DOS FERROS. Lei N° 1509/2015, de 21 de outubro de 2015. Estabelece normas para
preservação e conservação das estruturas e semblantes culturais, históricos e
arquitetônicos, de prédios e monumentos de Pau dos Ferros/RN.
ROCHA, Ana Maria Goldim. PAIVA, Maria do Socorro de. BEZERRA, Maria do Carmo Costa.
Pau dos Ferros sua origem e desenvolvimento. Pau dos Ferros: 1972.
RUSKI, John. A Lâmpada da Memória. Cotia: Ateliê Editorial, 2008.

• 22
OCUPAR E MORAR NO CENTRO
Disputa por vazios urbanos de interesse patrimonial pelos
movimentos populares na área central de Natal/RN

TO OCCUPY AND TO LIVE IN THE CITY CENTER


Dispute for urban voids of patrimonial interest by social
movements in Natal/RN central area

Eixo temático 3: Cidade, política e cultura

BRASIL, Amíria Bezerra


Doutora em Arquitetura e Urbanismo; Universidade Federal do Rio Grande do Norte
amiria.brasil@ufrn.br
ALMEIDA, Miró Aires
Graduado em Arquitetura e Urbanismo; Universidade Federal do Rio Grande do Norte
aires.miro@gmail.com
CAVALCANTI, Higo Vinícius Araújo
Graduando em Arquitetura e Urbanismo; Universidade Federal do Rio Grande do Norte
higo.cavalcanti.087@ufrn.edu.br
RESUMO

Em decorrência do processo de urbanização brasileiro, marcado pela


desigualdade de acesso à terra e gerador de uma profunda segregação
socioespacial, temos hoje o tecido das cidades marcado por vazios urbanos.
Uma das manifestações da luta por moradia, dada a falta de acesso, se dá nas
ocupações urbanas, que se relacionam diretamente com os vazios, dotando-
os de novos usos e significados. Este artigo discute as ocupações que vêm
sendo realizadas na área central de Natal, onde os movimentos de luta por
moradia têm intensificado sua atuação e a discussão quanto aos vazios
urbanos tem crescido em números. Foram identificadas quatro ocupações
organizadas realizadas pelo MLB/RN e algumas do MNPR/RN, que contribuem
para o debate e também tem se constituído como alternativas de moradia e
acesso a direitos básicos. Os movimentos têm declarado a intenção de se
firmar no centro da cidade e pautado o acesso a esse espaço pela população
pobre, assim como reivindicado seu direito à cidade e à moradia digna. Os
vazios, nesse contexto, surgem como possibilidades de mudança, cujo rumo
vem sendo disputado pelos movimentos populares, que seguem na luta pelo
direito à cidade.

PALAVRAS CHAVE Ocupações urbanas; Vazios urbanos; Áreas centrais;


População em Situação de Rua; Moradia no centro.

ABSTRACT OU RESUMEN

As a result of the brazilian urbanization process, marked by unequal access to


land and responsible for a deep sociospatial segregation, today we have the
urban fabric of the country’s cities marked by urban voids. One of the
manifestations of the struggle for housing, given the lack of access, is the
urban occupations, which are directly related to urban voids, endowing them
with new uses and meanings. This article discusses the occupations that have
been carried out in the central area of Natal, where the housing struggle
movements have intensified their activities and the discussion about empty
properties has advanced in numbers. Four organized occupations carried out
by the MLB/RN and some achievements of the MNPR/RN were identified, which
contribute to the debate and have also constituted housing alternatives and
access to basic human rights. The movements have declared their intention to
establish themselves in the center of the city and discussed the access to this
space by the poor population, as well as claiming their right to adequate
housing. The voids, in this picture, emerge as possibilities for change, whose
course has been disputed by the movements, which continue in the struggle
towrds the right to the city.

KEY-WORDS Urban Ocupations; Urban voids; Central areas; Population in


street situation; Central housing.

• 2
INTRODUÇÃO

O processo de urbanização brasileiro, durante o século XX, foi marcado por desigualdade
de oportunidade de acesso à terra e da produção do espaço, a partir do que Ermínia
Maricato chamou de urbanização com baixos salários (MARICATO, 1995). Esse processo
gerou grande segregação socioespacial, manifestada a partir de produção formal de parte
da cidade e produção informal e ilegal de grandes partes delas. Como um dos resultados
desse processo temos os vazios urbanos que representam a especulação imobiliária e da
terra e o grande abismo de garantia de direitos entre os proprietários fundiários e
imobiliários e aqueles que não podem pagar para acessar a cidade.
A produção do espaço urbano no Brasil é então, marcada por uma disputa de acesso à
terra, à moradia e a todos os serviços que a cidade oferece. Uma disputa que é desigual
entre os que tem condições de pagar por tudo isso e aqueles que precisam de política
públicas para alcançar os direitos garantidos constitucionalmente.
A luta pelo direito à cidade se manifesta de diversas formas nas cidades atuais e uma das
maneiras, a que trataremos nesse artigo, são as ocupações urbanas. Essas são
manifestações e tentativas de garantir o direito à cidade e à moradia digna (como garante
o art. 6º da Constituição Federal de 1988) por movimentos populares organizados. As
ocupações urbanas tensionam a disputa pela cidade e escancaram o fato de que tem
tanta gente sem casa e tanta casa sem gente.
Essa disputa se torna mais visível em áreas de interesse do mercado imobiliário e dos
grupos economicamente favorecidos, como os centros históricos. No Brasil, os centros
históricos das cidades são marcados atualmente por muitos vazios urbanos, sejam
terrenos ou na maioria das vezes edifícios abandonados, em áreas bem localizadas e
servidas de infraestrutura, serviços e oferta de emprego. Esses vazios têm sido alvo de
ocupações urbanas de luta por moradia.
Esses movimentos populares, parte das vezes, se colocam somente como pressão para
negociações por unidades habitacionais em programas habitacionais públicos, mas acima
de tudo demonstram o questionamento acerca de quem pode morar nas áreas centrais.
Dessa forma, esse artigo tem como objetivo discutir as ocupações urbanas no bairro da
Ribeira e em seu entorno, em especial parte do bairro Rocas, em Natal capital do Rio
Grande do Norte, e analisar como elas representam formas contra hegemônicas de
planejar/ocupar a cidade.
O artigo é resultado em parte de projetos de pesquisa denominados “Vazios Urbanos em
Natal” e “Dinâmicas socioespaciais e planejamento territorial: vazios urbanos e
segregação urbana como reflexo do não cumprimento da função social da propriedade e
da cidade”, em parte de ações de extensão do departamento de Arquitetura da UFRN e
um trabalho final de graduação desenvolvido a partir do trabalho desse grupo1. Nosso

1 O trabalho final de graduação (TFG) intitulado “OCUPAR O CENTRO: Diretrizes para


regularização de vazios urbanos em áreas centrais como Habitação de Interesse Social”,
desenvolvido pelo aluno Miró Aires Almeida tratou das nossas experiências de pesquisa e
extensão com os vazios urbanos no centro histórico de Natal/RN e com as ocupações urbanas.

• 3
trabalho tem tido a intenção de apoiar os movimentos populares e intervir no processo
de planejamento urbano hegemônico para a cidade, na tentativa de contribuir com a
garantia do direito à cidade e à moradia, bem como a proteção e preservação ambiental,
cultural e patrimonial.
O artigo se divide em três partes que tratam inicialmente da formação dos vazios urbanos
em Natal, posteriormente das ocupações urbanas e movimentos de luta por moradia no
Brasil e por fim das ocupações urbanas na Ribeira e Rocas em Natal. Finalizamos com as
considerações finais.

A FORMAÇÃO DOS VAZIOS URBANOS NO CENTRO HISTÓRICO DE NATAL


As cidades brasileiras, ao longo do século XX, cresceram marcadas pela mercantilização
da terra, desigualdade socioespacial e especulação imobiliária em um processo de
urbanização com baixos salários, como destaca Ermínia Maricato (1995). Dessa forma,
foram deixados inúmeros vazios urbanos ao longo das cidades, que poderiam ser
ocupados aproveitando melhor a infraestrutura disponível, reduzindo deslocamentos
diários, e tornando as cidades mais sustentáveis. Esse processo é resultado das disputas
existentes entre os agentes produtores do espaço e aqueles que não conseguem acessar
a cidade por meios mercantis os bens de moradia (CORREA, 2004). A tensão existente
no processo de produção das cidades brasileiras tem feito crescer modos contra
hegemônicos de disputar as cidades, aqui representados pelas ocupações dos vazios
urbanos em áreas centrais pelos movimentos de luta por moradia no Brasil e em especial
em Natal, na Ribeira e em seus arredores.
O bairro da Ribeira faz parte do centro histórico de Natal, capital do Rio Grande do Norte,
junto com o Alecrim, Cidade Alta e Rocas. Aquele bairro possui uma grande quantidade
de vazios urbanos hoje, que se formaram e consolidaram com a saída de importante
atividades econômicas e institucionais dessa área para outras da cidade, principalmente
a partir de meados do século XX (figura 01).
Na Ribeira está localizado o primeiro porto de Natal, ampliado e em funcionamento até
hoje, às margens do Rio Potengi, e em seu entorno se deram as primeiras ocupações e
se localizaram as primeiras atividades econômicas e institucionais da capital. A moradia
da população de renda alta localizou-se na Cidade Alta, e com o crescimento desses dois
bairros, o Alecrim se conformou com residências e comércio popular. Rocas se
desenvolveu a partir das atividades portuárias, com algumas atividades econômicas e
institucionais e moradia dos trabalhadores do porto e da pesca.
No início do século XX foram feitas intervenções públicas de saneamento alinhadas com
os ideários higienistas da época, e o bairro da Ribeira recebeu equipamento culturais, de
educação e lazer e alguns usos residenciais que não eram o principal há época (SILVA,
2002). Também no início do século começou-se a planejar e projetar o crescimento da
cidade, a partir do Plano da Cidade Nova, organizado por Jeronimo Pinheiro da Câmara e
pelo agrimensor Antonio Polidrellli. Essa nova área incorporada à cidade, que deu origem
aos bairros de Tirol e Petrópolis, estruturou a malha da cidade e delimitou o mercado

• 4
formal de terras e o parcelamento fundiário a partir dos anos 1940, e foi impulsora do
crescimento da cidade (FERREIRA, 2016).

Figura 1: Localização da Ribeira e demais bairros do centro histórico de Natal. Fonte: autores (2022).

Natal continuou crescendo ao longo do século XX impulsionada pela consolidação de


loteamentos privados e implementação de conjuntos habitacionais. A medida em que a
cidade ia se expandindo importante atividades foram deixando a Ribeira e mudando-se
para outros bairros mais distantes (TINOCO et al., 2008). Até meados do século passado
os principais sistemas de transporte localizavam-se na Ribeira, como o porto (de
passageiros e mercadorias) – que ainda permanece, com um novo terminal de
passageiros construídos dentre as obras para a Copa do Mundo de 2014 –, a estação
rodoviária – que hoje se localiza no bairro Nossa Senhora de Nazaré – e a estação
ferroviária – que permanece, mas teve o seu uso bastante reduzido. Também se
localizavam na Ribeira importantes prédios institucionais (tanto da Prefeitura quanto do
Governo do Estado), hotéis e equipamentos culturais (TINOCO et al., 2008).
O processo de esvaziamento de centro urbanos pode ser entendido como a saída das
classes de alta renda, decadência econômica e obsolescência das estruturas físicas desses

• 5
espaços (CASTILHO E VARGAS, 2006; VILLAÇA, 2011). Em Natal, a expansão da cidade
e a saída de importantes atividades econômicas e institucionais da Ribeira (e Rocas) foram
provocando esse esvaziamento do bairro, deixando um importante parque edificado vazio
e muitos terrenos ociosos. Além dos imóveis completamente vazios, muitas estruturas
permaneceram em uso apenas parcial e sem os investimentos necessários para
conservação adequada, em decorrência da mudança de perfil econômico de seus
ocupantes.
A produção habitacional de interesse social pública ao longo dos anos, tanto relacionadas
ao período do Banco Nacional de Habitação (BNH) – meados do século XX –, quanto as
mais recentes – início do século XXI –, relacionadas ao Programa Minha Casa Minha Vida
(MCMV) não foram ocupando os vazios deixados no centro histórico, nem no caminho da
expansão urbana formal. Foram localizadas nas periferias (FERREIRA, 2016),
contribuindo com a consolidação de uma diversidade de vazios urbanos ao longo da
cidade.
Apesar do esvaziamento do bairro, mas em consequência da relevância histórica e
patrimonial da Ribeira e de seus arredores, o plano diretor de 20072 reafirma um
zoneamento especial de proteção da paisagem e do conjunto arquitetônico (Zona Espacial
de Patrimônio Histórico – ZEPH), definido desde o plano diretor de 1984. Além disso, o
IPHAN também definiu um perímetro de tombamento de conjunto, que sobrepostos
mantém as características do traçado e edificações de diversos períodos da Ribeira e parte
das Rocas (figura 02).
Devido à relevância patrimonial da área, os vazios urbanos da Ribeira e entorno – em
especial parte das Rocas – tem especificidades, conforme serão mostrados aqui. Para
tanto, esses vazios foram caracterizados, identificados e categorizados a partir das
pesquisas “Vazios Urbanos em Natal” e “Dinâmicas socioespaciais e planejamento
territorial: vazios urbanos e segregação urbana como reflexo do não cumprimento da
função social da propriedade e da cidade”.
A caracterização dos vazios urbanos vai além da não construção ou ocupação do lote, e
para tanto partimos de diversos autores (BORDE, 2012; CAVALCANTI, 2018) e do marco
normativo brasileiro (BRASIL, 1988 e BRASIL, 2001) e de Natal (NATAL, 2007) para
definir os vazios. De acordo com o Plano Diretor de Natal (2007) os vazios urbanos são
conceituados como:
áreas públicas ou privadas, com edificações abandonadas, ociosas ou utilizadas para
alguma forma de ocupação transitória ou móvel, cujo coeficiente de utilização seja inferior
a 0,1 (zero virgula um) e que não atenda às funções socioambientais do imóvel expressos
nesta Lei (Natal, 2007).
A definição de função socioambiental de acordo com o Plano Diretor (NATAL, 2007) é:
Art. 5º - A propriedade urbana atenderá a sua função sócio – ambiental quando os direitos
decorrentes da propriedade individual não suplantarem ou subordinarem os interesses
coletivos e difusos, devendo satisfazer, simultaneamente, os seguintes requisitos, além de
outros estabelecidos em lei: [...]. (NATAL, 2007).

2 O plano diretor de Natal de 2007 foi recentemente revisto e ainda está em processo de
aprovação, portanto não será considerado neste artigo.

• 6
Figura 2: Zona Especial de Patrimônio Histórico de Natal e Perímetro de Tombamento do IPHAN. Fonte:
autores (2022).
A partir desses conceitos do plano diretor, e considerando as pesquisas que fizemos, nós
conceituamos os vazios urbanos como: “terrenos localizados em município passíveis de
uso e/ou ocupação que não exerçam sua função socioambiental de propriedade, podendo
ser: “A. Não construído”, “B. Subutilizado” ou “C. Não usado".” (ATAÍDE et al, 2021).
A partir desse conceito e com referência no que estabelece o Estatuto da Cidade (BRASIL,
2001), classificamos os vazios urbanos como:
Os lotes não edificados (A) são aqueles com área construída igual a zero; os lotes
subutilizados (B) são aqueles cujo coeficiente de aproveitamento é inferior ao mínimo, que
em Natal equivale a 0,1 para todo o território (NATAL, 2007); e os lotes não utilizados são
aqueles que, edificados ou não, não apresentam qualquer utilização (SILVA, BRASIL e
ATAÍDE, 2022, p. 5).
Essas categorias propostas ainda se subdividem de acordo com as especificidades de
Natal, sendo então definidas pelos projetos de pesquisa de acordo com o quadro 01.

• 7
Quadro 01: Matriz classificatória de vazios urbanos. Fonte: Projeto de pesquisa Vazios Urbanos em Natal
(2022), formatado por Almeida (2022).

Figura 3: Vazios Urbanos na Ribeira e Rocas (perímetro tombado do IPHAN e entorno). Fonte: autores
(2022).

• 8
Na Ribeira, e em seu entorno imediato, os vazios se distribuem de forma concentrada nas
ruas de traçado colonial (não construídos e não utilizados) e de forma pontual em grandes
lotes (não construídos) nos limites da área tombada. Por vezes os lotes encontram-se de
forma contígua a outros lotes (ATAÍDE et al, 2021), de acordo com a figura 03.
Com essa diversidade de vazios urbanos e muitos edifícios em situação de degradação,
mas devido à relevância histórica e patrimonial do bairro, a Ribeira teve inúmeras
propostas de requalificação nos últimos anos a partir do poder público, tanto para os
espaços urbanos, quanto para os edifícios, entretanto nenhuma delas foi implementada
em completude o que contribuiu para o rápido avanço do processo de degradação da
área.
O esvaziamento da Ribeira tem sido questionado nos últimos anos por Movimentos de
luta por moradia, tanto nos espaços de discussão/participação, quando a partir de
ocupações de imóveis e espaços vazios. A disputa pela cidade tem sido tensionada em
diversas partes da cidade por essas ocupações, e trataremos aqui especialmente das da
Ribeira e entorno, entendendo como modos contra hegemônicos de produzir o espaço
urbano. As pesquisas aqui citadas têm gerado produtos de acompanhamento e propostas
de qualificação das ocupações, juntando a academia – departamento de arquitetura da
UFRN – aos movimentos populares, como modos de intervir nas disputas existentes.

OCUPAÇÕES URBANAS: RESSIGNIFICANDO OS VAZIOS ATRAVÉS DO


CUMPRIMENTO DA FUNÇÃO SOCIAL
As ocupações urbanas têm se constituído, nos últimos anos, como meios para atender as
necessidades dos grupos excluídos das políticas de acesso à moradia, e que não
conseguem adquiri-las através das trocas mercantis. As ocupações urbanas em áreas
centrais têm atuado sobre os vazios urbanos em áreas infraestruturadas e servidas de
serviços e empregos.
Neste artigo, discutiremos as ocupações de edificações em áreas centrais, especialmente
as da Ribeira e entorno, ligadas a movimentos sociais que disputam a cidade e lutam por
moradia digna. Organizá-las é uma das estratégias de base adotadas por vários
movimentos que atuam nas cidades brasileiras, como o Movimento Sem Teto do Centro
de São Paulo (MSTC), o Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM) e, em Natal, o
Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) e o Movimento Nacional de
População em Situação de Rua (MNPR). O MSTC e o MNLM são responsáveis pela
organização de duas ocupações de destaque, nos centros de São Paulo (Ocupação Nove
de Julho, MSTC), e do Rio de Janeiro (Ocupação Manoel Congo, MNLM – figura 04).

• 9
Figura 04: Fachada da Ocupação Manoel Congo. Fonte: autores (2022).

As ocupações são organizadas como forma de reivindicação por políticas de provisão


habitacional, pressionando o poder público e atraindo visibilidade às pautas dos
movimentos sociais, além de possibilitar uma forma de moradia para famílias que não
conseguem arcar com esse custo (CAVALCANTI et al, 2021). Para pessoas em situação
de vulnerabilidade, morar em uma ocupação é uma alternativa que permite se estabelecer
financeiramente e/ou residir em áreas bem servidas de infraestrutura e pouco acessíveis
financeiramente.
As áreas centrais se enquadram nesses casos e dão maior visibilidade às ocupações do
que as periféricas. Geralmente constituem localizações privilegiadas no contexto urbano,
dispondo de acesso a linhas de transporte, opções de comércio, serviços, equipamentos
de cultura e lazer e oferta de emprego. Embora a população de baixa renda tenha ocupado
os centros urbanos após seus processos de esvaziamento, as intervenções que se
propuseram a requalificar esses espaços raramente são voltadas ou contemplam essa
parcela da sociedade. A não efetivação de políticas voltadas para provisão e qualificação
de moradia popular, como no caso da Ribeira, é um exemplo desse processo.
De durações variadas, algumas ocupações se mantêm por poucos meses, enquanto
outras atravessam décadas. Elas podem resultar na conquista do terreno ou edificação,
na remoção via pedido de reintegração de posse por parte dos proprietários ou mesmo
na estadia das famílias sem segurança de posse definitiva ou pedido de remoção
(COMARÚ e BARBOSA, 2019). Uma vez que os movimentos adentram terrenos e

• 10
construções ociosas, geralmente há muitos anos, não há preparo prévio para o uso
habitacional, independente do estado do imóvel.
Assim, se faz necessário preparar minimamente o espaço para morar: a limpeza, retirada
de entulho e adaptações básicas (ligações de água e eletricidade, cozinha, banheiros,
etc.) são esforços realizados pelos próprios movimentos sociais, com dinheiro e força de
trabalho próprios, muitas vezes em regime de mutirão. Por se tratar de pessoas de baixo
poder aquisitivo, as melhorias são espaçadas, realizadas quando as famílias conseguem
juntar recursos suficientes para adquirir o material necessário (ALMEIDA, 2022). No
entanto, a incerteza da permanência no local coloca em risco esse investimento realizado
pelas famílias: as conquistas de anos podem ser perdidas em poucos minutos, com a
saída forçada do lugar onde moram. Apesar de seguirem o princípio jurídico do
cumprimento da função social da propriedade e não visarem edificações com uso, as
ocupações muitas vezes enfrentam despejos e má repercussão, ou mesmo criminalização,
na mídia.
Resultando em remoção, aquisição ou concessão de uso do imóvel, os processos judiciais
que envolvem as ocupações podem se prolongar por anos. Durante o período de espera
e mediação de conflitos, os ocupantes seguem morando nos imóveis, adaptando-os aos
poucos. Tendo em vista esse aspecto, é importante encarar as ocupações também como
formas de moradia, que precisam ser qualificadas e abrigar adequadamente as famílias
que nelas habitam (ALMEIDA, 2022). Em várias ocupações são constituídos espaços
coletivos e atividades comunitárias, abarcando aspectos do morar que vão além da
unidade de moradia em si. Cozinhas e lavanderias coletivas, espaços para reuniões e
comemorações, hortas, bibliotecas, quadras esportivas e galerias de arte são alguns dos
ambientes estruturados em ocupações organizadas distribuídas pelo país. Através desses
espaços, elas têm possibilitado movimentos rumo a outros direitos essenciais, como
saúde, cultura e educação (MÜHLE, 2020).
Em algumas das ocupações, como a Nove de Julho (MSTC, SP), tem sido organizados
eventos abertos à população em geral, como na figura 05. Essas ações ampliam a
visibilidade do movimento, permitem aproximação de públicos diversos com o que vem
sendo proposto ali e contribui para reverter a imagem negativa dos movimentos sociais
envolvidos perante a opinião pública. Além disso, são também um meio de levantar
fundos para financiar melhorias e manutenção do local.

• 11
Figura 05: evento “banquetaço” na Ocupação Nove de Julho. Fonte: Luiz Miyasaka/MSTC/Divulgação,
através do Portal G1 (2019).

As ocupações se conformam como movimentos insurgentes no planejamento urbano


contemporâneo (HOLSTON, 2013), estruturadas a partir de ações organizadas pelos
movimentos que questionam a segregação socioespacial formada e aprofundada
historicamente no processo de urbanização do Brasil. Pressionando o poder público em
busca de seus direitos, os ocupantes transformam os locais onde se inserem em vários
âmbitos. Fisicamente, reativam estruturas ociosas com recursos próprios e, por vezes,
conseguem levar ao direcionamento de investimentos públicos para atender a demanda
levantada. Também afetam a dinâmica urbana de onde se inserem, levando novas
pessoas a participar do cotidiano local, dos deslocamentos diários, do comércio e da vida
na rua. No campo das ideias, a prática dos movimentos evidencia a quantidade de vazios
urbanos existentes, mostra novas formas de fazê-los cumprir sua função social e coloca
em questão a soberania da propriedade privada perante as necessidades da coletividade.
No centro do Recife, a CAUS cooperativa (assessoria técnica popular junto a comunidades
organizadas e movimentos sociais do Recife) desenvolveu um trabalho em que identificou
e marcou com lambes os edifícios vazios e indicou as grandes dívidas de impostos que
eles têm e o quanto a Prefeitura deixa de arrecadar com o abandono, conforme figura 06.
Diante desse quadro, podemos encarar as remoções como demolições literais e
conceituais. Além de retirar as famílias residentes, geralmente sem prover alternativas
seguras de moradia, constituem uma demolição da presença e das reivindicações que os
movimentos sociais levantam através das ocupações. Quando uma ocupação organizada

• 12
é removida de uma edificação que passou anos abandonada, o direito à propriedade
privada é colocado acima do direito à moradia e da função social da propriedade.

Figura 06: Colagens de lambes em edifícios vazios no centro do Recife. Fonte: CAUS Cooperativa
(2019).

Em alguns casos, no entanto, a organização dos movimentos sociais, a articulação entre


eles, universidades e assessorias técnicas e o trabalho coletivo realizado tem alcançado
conquistas e aberto precedentes importantes no que diz respeito à regularização e
requalificação de edificações ocupadas. A partir dessas parcerias e de diferentes fontes
de recursos, vem surgindo experiências cujos processos de adequação para uso
habitacional respeitam o valor patrimonial das edificações ocupadas e garantem maior
qualidade de vida para os moradores. A presença dos movimentos, dessa forma, é ponto
de partida para a recuperação de edificações ociosas em áreas centrais e é força motriz
para sua preservação, enquanto moradia.
As já citadas ocupações Manoel Congo e Nove de Julho são alguns dos exemplos de maior
notoriedade, localizadas em duas das maiores metrópoles brasileiras. Mas como tem se
dado essa frente de luta por moradia em cidades de outra escala, em outras regiões do
país, como em Natal, capital do Rio Grande do Norte?

MOVIMENTOS DE LUTA POR MORADIA: OCUPAÇÕES NA ÁREA CENTRAL DE


NATAL
Em Natal, como em outras cidades brasileiras, as ocupações urbanas são realidade há
anos. O movimento de luta por moradia que organiza ocupações de forma mais expressiva
na cidade é o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), de abrangência
nacional e em atuação na capital do Rio Grande do Norte desde 2004 (BURITI, 2018).
O MLB é um movimento composto por famílias sem teto de várias cidades brasileiras, que
“luta pela reforma urbana e pelo direito de morar dignamente” (MLB Brasil, 2022)3,
colocando a moradia digna como motor principal dessa reforma. O movimento aponta o
ato de ocupar como forma de confrontar a ordem estabelecida, que também carrega um

3 Definições do próprio movimento, disponíveis em sua página virtual:


<https://www.mlbbrasil.org/quem-somos>. Acesso em 15 ago. 2022.

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caráter educativo: parte do trabalho de realização das ocupações consta na mobilização
da população e desenvolvimento de trabalho coletivo.
Seguindo as diretrizes nacionais do movimento, o núcleo do MLB RN organiza ocupações
de terrenos e edificações ociosas como estratégia principal de atuação. A pressão que
constituem, reforçada pela organização de atos e divulgação das ações em plataformas
digitais, dá visibilidade às ações do movimento, força o diálogo com o poder público e
muitas vezes resulta na conquista de unidades habitacionais. Do início da atuação do
movimento até o escasseamento de políticas públicas habitacionais nos últimos anos, o
objetivo das ocupações era justamente tensionar para conseguir a inserção das famílias
ocupantes em programas de moradia locais (ALMEIDA, 2022).
Os anos 2000 foram marcados pela atuação do MLB RN na Região Administrativa Oeste
de Natal, área periférica da cidade ocupada por população de baixa renda, até que em
2015, o movimento organizou sua primeira ocupação na área central da cidade. O quadro
02 apresenta as ocupações organizadas pelo MLB na cidade de 2004 a 2022, destacando
as quatro que ocorreram no centro de Natal:

UNIDADES HABITACIONAIS
ANO OCUPAÇÃO
CONQUISTADAS
2004 Leningrado 400
2004 Camboim 176
2004 Peão 45
2006 8 de outubro 65
2006 Luiz Gonzaga 55
2006 Frei Tito 50
2006 Ernesto Che Guevara 85
2007 Emmanuel Bezerra 140
2007 Maruim 176
2009 Santa Clara 190
2009 Nísia Floresta 176
2010 Anatália Alves 235
2010 Conj. Res. Praia Mar 130
2010 Margarida Alves 50
2011 Djalma Maranhão 130
2011 Nova Esperança 117
2012 8 de março 212
2014 Tiradentes 100
2015 Padre Sabino 110
2018 Olga Benário 295
2018 Pedro Melo 16
2020 Emmanuel Bezerra -
2021 Valdete Guerra -
2021 Margarida Maria Alves -
2022 Palmares -
Quadro 2: Ocupações organizadas pelo MLB em Natal, destacadas as na área central. Fonte: elaborado
por Almeida (2022), partindo de informações de Buriti (2018).

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A Ocupação Padre Sabino (figura 07), que marca essa aproximação com o centro de
Natal, se deu em um terreno e um conjunto de galpões vazios da antiga Rede Ferroviária
Federal S/A (RFFSA) no bairro das Rocas. Remanescentes do conjunto do patrimônio
ferroviário local, se encontravam sem uso e em estado precário até a entrada do
movimento, que resistiu no local por três anos, até conquistar apartamentos no Conjunto
Residencial Village de Prata, no bairro Planalto. Mediante negociações com a prefeitura,
110 das 150 famílias que construíram a Padre Sabino se mudaram para o conjunto,
edificado com recursos do Programa Minha Casa Minha Vida (MCMV) na região Oeste da
cidade, distante do bairro das Rocas. O terreno foi incorporado à edificação do IFRN
vizinho a este imóvel.

Figura 07: Plenária Nacional do MLB de 2017 na Ocupação Padre Sabino. Fonte: Mídia Ninja (2017).

Algumas das famílias que não foram contempladas permaneceram nas imediações, no
bairro da Ribeira, através da organização da ocupação Pedro Melo (figura 08). Esta teve
início em 2018 no antigo Albergue Municipal da cidade, equipamento desativado há alguns
anos, localizado no perímetro tombado pelo IPHAN, e atravessou o início da pandemia da
Covid-19. Apesar de ter sofrido várias tentativas de despejo por parte da prefeitura,
mesmo durante período de isolamento social, se estabeleceu com 21 famílias e se
manteve por cerca de três anos, até conquistar 16 unidades no Residencial Village de
Prata (CAVALCANTI et al, 2021). A edificação do Albergue possuía áreas molhadas
coletivas e quartos individuais, onde passaram a viver famílias inteiras, que precisaram
reativar as ligações de água e esgoto do prédio por conta própria.

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Figura 08: Edificação onde se estabeleceu a Ocupação Pedro Melo. Fonte: Saiba Mais (2021).

A Ocupação Emmanuel Bezerra, por sua vez, teve início através da entrada do movimento
em uma edificação de relevância patrimonial no bairro da Ribeira em 2020 já durante a
pandemia. O prédio da antiga Escola de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN) se encontra vazio e em estado precário de conservação, mas se trata de
uma edificação tombada pelo IPHAN e teve ampla repercussão na mídia quando foi
ocupada. Composta por 60 famílias, a Emmanuel Bezerra foi contestada pela UFRN,
proprietária do imóvel. Vários projetos de extensão/pesquisa da UFRN e alguns mandatos
de vereadores e de uma deputada federal manifestaram-se a favor da ocupação e
contribuíram com as negociações com o governo do Estado e da Prefeitura em busca de
uma solução para as famílias e pela conservação do edifício. Em decorrência, seis meses
após ter sido iniciada, a ocupação foi realocada para galpões privados desocupados,
alugados pela prefeitura, no mesmo bairro (ALMEIDA, 2022).
Esses imóveis, no entanto, não foram preparados pelo poder público para receber as
famílias e coube novamente ao movimento o trabalho de adaptá-los para morar. Nessa
frente, o movimento buscou assessoria técnica do Escritório Modelo de Arquitetura e
Urbanismo (EMAU Maré) da UFRN, para propor possibilidades de melhorias habitacionais
autoexecutáveis. No entanto, as melhoras ainda não puderam ser feitas, e as famílias já
perderam tudo por duas vezes esse ano em chuvas fortes que alagaram os galpões (figura
09). Apesar de 38 das famílias terem sido inscritas pela Prefeitura de Natal para receber
unidades habitacionais em um conjunto do PROMORADIA que seria construído pelo
Governo do Estado, o programa foi cancelado e as famílias seguem nos galpões até o
segundo semestre de 2022, sem perspectiva de receber o que foi acordado e sem saber
por quanto tempo mais os galpões ficarão alugados pela Prefeitura.

• 16
Figura 09: Ocupação Emmanuel Bezerra alagada em chuvas fortes. Fonte: Instagram MLB RN (2022).

Em março de 2022, teve início a ocupação mais recente do movimento, nomeada


Palmares, em outro conjunto de galpões abandonados no bairro das Rocas (figura 10).
Os galpões fazem parte do conjunto da RFFSA e são considerando de interesse
patrimonial, estando localizados no perímetro de entorno do conjunto tombado pelo
IPHAN. É composta por pessoas que já residiam nesse e em outros bairros da área central,
totalizando 88 famílias, e se encontra em conflito judicial quanto à permanência no local.
O imóvel ocupado é de propriedade da União e, no intuito de servir como estacionamento
para alguns prédios institucionais, se encontra cedido à prefeitura, que prontamente
acionou a justiça solicitando o despejo do movimento. A união, entretanto, não se
pronunciou em relação à solicitação da Prefeitura. O movimento, por sua vez, demanda
a estadia nos galpões e em um vasto terreno não edificado anexo, de mesma propriedade,
para construção de moradias definitivas. As famílias que compõem a Palmares já viviam
nessa área e nela organizam sua vida, em relações interpessoais e oportunidades de
trabalho, o que reforça sua vontade de permanecer ali.
Como forma de apoio a essa reivindicação, entraram em contato com o Departamento de
Arquitetura da UFRN buscando assessoria técnica para desenvolvimento de estudos de
viabilidade para permanência, explorando as possibilidades de construção de unidades

• 17
habitacionais. Esses estudos foram elaborados enquanto ferramenta de negociação do
movimento com o Poder Público, enquanto parte do desenvolvimento do Trabalho Final
de Graduação de Almeida (2022), orientado pela professora Amíria Brasil.

Figura 10: Ocupação Palmares. Fonte: autores (2022).

Analisando esse recorte da atuação do movimento nos últimos anos, vemos mudanças
em sua estratégia. Enquanto as primeiras ocupações na área central assumiam uma
postura de tensionar por negociação, visando pressionar para conseguir a inserção de
famílias em programas habitacionais, na mais recente a intenção é de permanecer e se
estabelecer no local ocupado (ALMEIDA, 2022). Mesmo perante os entraves à sua forma
de atuação, o núcleo local do MLB segue tensionando o cenário político natalense através
de suas ações, colocando suas demandas ao mesmo tempo em que criam uma alternativa
de moradia através das ocupações.
Por meio de suas redes sociais, o movimento também levanta o debate sobre o acesso
da população pobre às áreas centrais, em sintonia com a intenção de ocupar o centro que
vem se firmando. Através da parceria com a universidade e a partir da assessoria técnica,
vão sendo desenhadas novas formas de atuação pelo movimento, com apoio do
conhecimento técnico formal, além do desenvolvimento de peças técnicas que deem
respaldo e fortaleçam os argumentos do movimento em processos judiciais. A disputa
pelo espaço que promovem, suas conquistas e necessidades vão sendo registradas e
pesquisadas, no intuito de auxiliar essa luta.
Outro movimento social atuante na área central da cidade é o Movimento Nacional da
População em Situação de Rua (MNPR), que atua na direção da conquista de políticas
públicas voltadas para permitir o acesso desse grupo populacional a direitos
constitucionais fundamentais e se organiza em Natal desde 2012 (LIMA, 2020). Suas
demandas focam principalmente na reivindicação de políticas de saúde e assistência social
para a população em situação de rua, mas também habitacionais (ALMEIDA, 2015).

• 18
A região administrativa Leste concentra boa parte da população em situação de rua da
cidade, especialmente nos bairros Alecrim, Cidade Alta e Ribeira, onde existem alguns
dos poucos serviços assistenciais que os contemplam (NATAL, 2018). Em decorrência da
falta de moradia, as pessoas em situação de rua também ocupam espaços da cidade, mas
de forma diferente do MLB. Ao invés de ocupações organizadas em imóveis abandonados,
costumam ocupar transitoriamente lugares como marquises de prédios sem uso e espaços
intersticiais, como baixias de viadutos, principalmente para dormir e guardar as poucas
coisas que possuem. Embora se trate de ocupações temporárias, essa população já foi
removida violentamente pela prefeitura em diversos momentos, inclusive durante a
pandemia, sem alternativa de moradia oferecida. O Viaduto do Baldo (figura 11), entre
os bairros da Cidade Alta e do Alecrim, é um dos espaços onde costumam se abrigar e do
qual já sofreram despejos várias vezes, tendo seus pertences retirados e destruídos.

Figura 11: Ação de remoção das pessoas abrigadas sob o Viaduto do Baldo. Fonte: Saiba Mais, 2022.

Assim, nos bairros da região leste é onde tem ocorrido boa parte da atuação do MNPR/RN,
pressionando o poder público através de atos e eventos realizados com o apoio de
diversos setores da UFRN e alguns mandatos políticos, além de se inserir em diferentes
instâncias políticas locais, dentre as quais destacamos o Conselho Municipal de Assistência
Social (CMAS) e o acompanhamento do Conselho Municipal de Habitação de Interesse
Social (CONHABINS). Uma das conquistas de sua atuação é a própria instalação de
serviços que os atendam, vinculados ao Sistema Único de Saúde (SUS) e ao Sistema
Único de Assistência Social (SUAS) (LIMA, 2020). Até 2021, funcionavam três albergues
na Cidade Alta e um Centro POP em Barro Vermelho, equipamento de suporte
especializado em pessoas em situação de rua (CAVALCANTI et al, 2021).
Em decorrência da mobilização do MNPR, através do CONHABINS e do Ministério Público
do Rio Grande do Norte (MP/RN), no ano de 2018 foi solicitada à Secretaria Municipal de
Tributação (SEMUT) a identificação dos imóveis vazios e em dívida para que possam ser
convertidos em HIS ou equipamentos de apoio à população em situação de rua, em
bairros da área central. Na solicitação também constava pedido de cessão de dois imóveis

• 19
do União para equipamentos de atendimento à população em situação de rua
(CAVALCANTI et al, 2021).
Embora a Secretaria de Patrimônio da União (SPU) tenha direcionado os imóveis para
outros agentes, a ação ampliou a visibilidade sobre a ociosidade do parque edificado na
área central e movimentou discussões quanto aos imóveis diretamente solicitados em
parcerias entre a UFRN e o MNPR. Para eles, foram construídas propostas de reconversão
desses vazios, através de reuso para atender às necessidades do movimento (Figuras 12
e 13).

Figuras 12 e 13: Oficina de ideias para reativação de imóvel vazio no evento Tanta Casa Sem Gente
Tanta Gente Sem Casa, organizado pelo Departamento de Arquitetura da UFRN, em parceria com o
MNPR/RN, e fachada do imóvel em questão. Fontes: Saulo Cavalcante (2019) e Louise Cavignac (2019).

Assim, o MNPR também se configura como um movimento social que tem tensionado a
pauta sobre moradia na área central. Através da demanda colocada judicialmente quanto
ao uso de imóveis vazios e dos estudos desenvolvidos em parceria com a universidade, a
questão dos vazios urbanos no centro de Natal surge mais uma vez enquanto ponto de
interesse na construção de uma cidade mais democrática e do combate à segregação
socioespacial. Também se discute a condição de abandono do patrimônio material da área
central de Natal e a ociosidade de tantos imóveis de relevância patrimonial. Sintetizando
a atuação dos movimentos, a figura 14 apresenta alguns dos pontos que marcaram a
área central nos últimos anos.

Nos últimos anos, a Prefeitura de Natal tem anunciado uma nova fase de investimentos
e intervenções no centro histórico. Focada principalmente na Ribeira, pauta reverter o
quadro de esvaziamento do bairro, mas através de caminhos similares aos traçados
anteriormente: intervenções pontuais voltadas para estabelecer o uso institucional,
recuperação de algumas edificações de destaque no perímetro tombado e investimentos
em comércio/serviços (ALMEIDA, 2022). No conjunto de esforços realizados nesse
sentido, destacamos a criação de uma comissão municipal de Arrecadação de Imóveis

• 20
Abandonados4 por parte da prefeitura e de um levantamento dos vazios passíveis de
aplicação deste instrumento.

Figura 14: Linha do Tempo das ações dos movimentos populares na Ribeira e Rocas. Fonte: autores,
2022.

Destacamos também, no entanto, que a moradia popular mais uma vez não foi incluída
no processo que se propõe a “revitalizar” o centro, e que as tensões promovidas pelo MLB
e pelo MNPR se fazem extremamente importantes na reivindicação pelos rumos dessas
mudanças, para que atendam a população que tem se estabelecido na área central nas
últimas décadas e necessita de moradia digna e assistência social.

4
Disciplinada pela portaria nº 036/2022-GS/SEMURB, 12 de agosto de 2022.

• 21
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dentre os vários processos que podem levar à conformação de vazios urbanos, na Ribeira
a saída de muitas atividades econômicas e de usos institucionais, como o centro
administrativo do Governo do Estado e importantes prédios da prefeitura, foram
determinantes para seu esvaziamento. Os impactos do declínio econômico da área central
foram sentidos fortemente no bairro, sendo a ociosidade de seus imóveis um dos aspectos
marcantes. Hoje, ela se materializa nos terrenos vagos e, principalmente, nas muitas
edificações sem uso ou parcialmente utilizadas existentes no local.
Esse parque edificado subutilizado, boa parte dele de valor patrimonial, denuncia a má
gestão do solo urbano na cidade e coloca em risco a preservação do conjunto tombado,
visto que este se degrada rapidamente, sem a manutenção devida. Apesar de seu impacto
negativo, essa ociosidade também se faz oportunidade de mudança, na medida em que
os novos usos que venha a receber podem ser voltados a atender as necessidades das
parcelas mais pobres da população.
Nesse sentido, as ocupações urbanas de moradia são ações de grande peso na
reivindicação dos rumos dessa mudança. Quando se leva em conta que interesses
públicos e privados vem se voltando mais uma vez para o centro, é essencial que a
população participe desse processo e tenha sua voz ouvida. No entanto, em um contexto
de participação social dificultada pelas últimas gestões municipais, as ocupações partem
por outro caminho para fazer com que suas demandas sejam ouvidas e atendidas:
enquanto a moradia popular no centro não é pautada pelo poder público, os movimentos
estão trabalhando para atender suas necessidades imediatas de morar ao mesmo tempo
em que discutem e dão visibilidade à questão.
Especialmente nas áreas centrais, a atuação dos movimentos de luta por moradia também
tensiona a temática dos vazios urbanos. À medida em que ocupam imóveis ociosos e/ou
os discutem, imaginam formas de reativá-los e dão visibilidade para a existência de
grande quantidade de vazios no centro de Natal. Nos últimos anos, a atuação intensificada
nos bairros centrais tem chamado muita atenção da sociedade civil e do poder público
para a ociosidade existente e para a degradação do patrimônio edificado, o que é essencial
para desenvolver a pauta.
Embora isso já venha se refletindo em movimentações para o levantamento de imóveis
vazios pela prefeitura, é necessário seguir na luta para garantir que a habitação de
interesse social esteja entre os novos usos a serem contemplados. A aplicação da
Arrecadação de Imóveis Abandonados, instrumento sinalizado, é um caminho importante
a ser seguido e tem grande potencial para contribuir com a reativação do parque edificado
ocioso. Nesse esforço, os processos de identificação e categorização que vem sendo
desenvolvidos pelos grupos de pesquisa aqui apresentados tem muito a contribuir, no
intuito de entender as particularidades do fenômeno dos vazios e trabalhá-las
adequadamente.
Embora seja essencial a aplicação do instrumento previsto pela prefeitura, é também
essencial o apoio às formas de transformar esse quadro que são organizadas pelos
movimentos populares. Assim, outro caminho importante, que também precisa ser

• 22
tomado, é o da assessoria técnica. As iniciativas dos movimentos e ocupações
estabelecidas, em parceria com a assessoria, tem grande potencial transformador da
realidade existente, caminhando rumo à efetivação da função social das propriedades
ociosas, ressignificadas enquanto moradia digna e/ou equipamentos públicos. É
necessário, no entanto, que as ações das assessorias junto aos movimentos sejam
devidamente apoiadas por políticas públicas que estruturem e ampliem as possibilidades
dessa atuação.

REFERÊNCIAS
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rua e as particularidades de Natal/RN. Dissertação (mestre em Ciências Sociais) –
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CAVALCANTI, Emanuel Ramos. Cidades vacantes, cidades expectantes: produção e
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• 23
(doutorado em arquitetura e urbanismo) Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo,
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LIMA, Isadora Maria Ferreira de. Uma porta de saída: experiência participativa junto ao
Movimento Nacional de População em Situação de Rua – MNPR/RN na criação de um
instrumento de luta por moradia. Trabalho final de graduação (Graduação em Arquitetura
e Urbanismo) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal, 2020.
TINOCCO, Marcelo Bezerra de Melo et al. Ribeira: plano de reabilitação de áreas urbanas
centrais, PRAC/Ribeira. Natal: Editora da UFRN, 2008.
VILLAÇA, Flávio. Espaço Intra-Urbano no Brasil. São Paulo: Studio Nobel, 2001.

• 24
OS IMPACTOS DO PLANO DIRETOR DE DESENVOLVIMENTO
INTEGRADO (1970) NO MUNICÍPIO DE MAUÁ-SP
THE IMPACTS OF THE INTEGRATED DEVELOPMENT MASTER PLAN
(1970) IN MAUÁ-SP
Cidade, política e cultura

NUNES, Jayne
Mestranda; FAUUSP
jayne.nunes.santos@usp.br
RESUMO

O município de Mauá, localizado na Região Metropolitana de São Paulo, tem o


seu desenvolvimento ligado ao crescimento industrial e ao processo de
metropolização que tem início na década de 1940. Até então a bibliografia
dedicada ao estudo da metrópole vinha indicando uma ocupação
predominantemente desordenada, sem um planejamento prévio e de modo
irregular.

No entanto, os documentos pesquisados parecem demonstrar algo distinto:


apesar de haver ocupação irregular, a cidade, em sua maior parte foi sendo
ocupada por loteamentos regulares aprovados através de projetos pela
prefeitura. Além disso, a partir da década de 1970 foram elaboradas uma
série de leis que tinham o intuito de estabelecer normas para o
desenvolvimento adequado da cidade, incluindo o Plano Diretor Integrado
promulgado em 1970. O intuito do artigo é estudar e analisar este plano e
explicitar quais foram os impactos desta lei no desenvolvimento urbano da
cidade.

PALAVRAS CHAVE Mauá; História da cidade; Metropolização.

ABSTRACT

The city of Mauá, located in the Metropolitan Region of São Paulo, has its
development linked to industrial growth and the process of metropolization
that began in the 1940s. Until then, the bibliography dedicated to the study
of the metropolis had indicated a disorderly occupation, without pre-planning
and irregularly.

The documents researched seem to demonstrate, however, something


different: despite there being irregular occupation, the city, for the most part,
was occupied by regular subdivisions approved through projects by the city
hall. In addition, from the 1970s onwards, a series of laws were drafted to
establish norms for the proper development of the city, including the
Integrated Master Plan enacted in 1970. The goal of this article is to study
and analyze this plan and explain the impacts of this law on the urban
development of the city.

KEY-WORDS Mauá; City history; Metropolization.

• 1
INTRODUÇÃO
A cidade de Mauá está localizada na região sudeste da metrópole de São Paulo, sendo
parte da chamada Região do Grande ABC, composta também pelas cidades de Santo
André, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul, Diadema, Ribeirão Pires e Rio
Grande da Serra. Até 1937, esta região inteira correspondia ao município de São
Bernardo e em 1938 há a transferência da sede do município para Santo André, o que
marca o início do processo de emancipação dos então distritos, começando com São
Bernardo do Campo, em 1944, São Caetano do Sul em 1948, seguido de Mauá e
Ribeirão Pires em 1953, Diadema em 1959 e, por fim, Rio Grande da Serra, em 1964.
Em paralelo a essa série de emancipações, tanto o governo federal quanto o estadual
adotaram políticas que privilegiavam os transportes rodoviários, com a via Anchieta
sendo aberta em 1947, além dos incentivos para as indústrias nas proximidades desta
via, principalmente do setor automobilístico. É neste período também, em 1954, que é
instalada a Refinaria de Petróleo de Capuava (RECAP), em Mauá. Como consequência,
tanto da instalação das indústrias automobilísticas quanto da refinaria de Capuava, as
cidades da região começam a atrair indústrias menores ligadas a essas áreas, como
empresas de autopeças e indústrias químicas.
Nota-se que a presença da indústria na Região do Grande ABC desde o início do século
XX teve grande influência na sua formação tanto espacial quanto econômica. A
instalação das indústrias nos distritos de Santo André contribuiu para o
desenvolvimento econômico do município, que, no entanto, não investia em melhorias
nas infraestruturas e serviços de todo o seu território. Os distritos, por sua vez,
considerando a localização das indústrias e o repasse que viriam delas, manifestaram o
desejo de se emancipar. Um artigo publicado em um jornal de Mauá, em 1953, retrata
bem a visão do período:

O distrito de Mauá, que congrega 18 grandes indústrias que produzem mais de um milhão
e 200 mil cruzeiros por dia de trabalho, e que, com o início do funcionamento de outras,
ainda em período de montagem, poderá quadruplicar sua produção dentro de três ou
quatro anos, deseja dirigir seus próprios destinos. É preciso que possa cuidar do seu
próprio grupo escolar que, além de deficiente, está aos pedaços (...). A conservação da
estrada e das ruas pelas próprias indústrias (...) estão em desacordo com as somas
pagas anualmente pelas indústrias à União, ao Estado e ao Município. A faculdade de
poder um município receber a ajuda direta do Estado para a realização de obras vedadas
a um distrito, já é razão mais do que suficiente para que o povo de Mauá queira a sua
emancipação. Não podemos imputar nem a Câmara Municipal, nem a Prefeitura, a
inexistência de obras públicas em Mauá. A vastidão do território e os vultosos problemas
que assoberbam a Administração são motivos que impedem tais serviços (...).
(Egmont Fink, Folha do Povo, 9 de maio de 1953)1

1
Notícia retirada do livro De Pilar a Mauá (MEDICI, 1986)

• 2
Portanto, o processo de emancipação das cidades não pode ser entendido desvinculado
dessa industrialização que se inicia no início do século e que vive um real incremento
nos anos 1940, tampouco a forma de seu desenvolvimento posterior se desvincula do
crescimento desta atividade. É evidente a mudança de escala dessa industrialização na
segunda metade do século XX, com a transformação da área do Grande ABC em polo
industrial da metrópole. E o que se nota é que o significativo aumento do número de
indústrias na região, principalmente nas cidades de Santo André, São Bernardo do
Campo e São Caetano do Sul, vai levar a um encarecimento dos terrenos e das
moradias nessas cidades (MEDICI, 1986).
Esse aumento de indústrias e consequentemente, de empregos, aliado ao grande
número de loteamentos populares, atrairia uma grande população de baixa renda, ao
mesmo tempo em que a instalação das rodovias interestaduais (Dutra; Rio-Bahia)
facilitou a chegada de um grande número de migrantes, principalmente de Minas Gerais
e do Nordeste (SAKATA, 2006).
Neste contexto, não é surpresa observar um grande aumento na população e na
abertura de novos loteamentos nas décadas de 1960 e 1970 na cidade de Mauá – e
coincidente ainda com o período de expansão da mancha metropolitana em geral, como
mostra a bibliografia - durante um período de intensificação da industrialização. Pode-se
considerar como hipóteses para justificar tal crescimento, além do processo de
metropolização de São Paulo, combinado com a instalação das indústrias
automobilísticas, metalúrgicas e químicas a partir de 1950, as vantagens em se
comprar lotes nesse município, como indicado por Médici (1986) em De Pilar a Mauá.
Segundo o autor, no maior loteamento feito na cidade, o do Jardim Zaíra, para se
incentivar a compra dos lotes, o dono oferecia aos compradores a possibilidade de
dividir o valor do terreno em diversas parcelas fixas, além de oferecer 5.000 blocos,
uma porta, uma janela e um vitrô, o que seria suficiente para a construção de uma casa
simples. Esse tipo de “incentivo” se repetia em outros loteamentos na cidade e iria
contribuir para uma ocupação rápida daqueles terrenos, que respondia ainda à
demanda crescente de moradia por uma imensa população que aportava naqueles anos
na metrópole em busca de emprego.
Neste cenário de crescimento descontrolado, em 1970 aprova-se uma série de leis
visando estabelecer normas para o desenvolvimento adequado da cidade, incluindo o
Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado, a Lei de Zoneamento, Lei de loteamentos
e o Código de Edificações, todas promulgadas em 1970. Estas leis tinham como objetivo
orientar a ocupação da cidade e continham regras com relação a tamanho de lotes,
zoneamento e regras para a construção dos edifícios.
O objetivo deste artigo é analisar o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado de
Mauá, aprovado em 1970, considerando o contexto da região naquele período,
buscando entender de que modo esta lei influenciou na formação da cidade.
Para isso, utilizaremos os textos das leis, dados do IBGE, textos escritos pela equipe
responsável pelos estudos que embasaram o plano, bem como bibliografia específica
sobre a cidade, a Região do Grande ABC e a metrópole paulista.

• 3
O texto está estruturado em três partes. Na primeira, apresentarei o contexto da cidade
no período que antecede a aprovação das leis; na segunda parte, apresentarei as leis e
seus principais pontos e, por fim, farei uma análise do que foi implantado e seus
impactos.

O CRESCIMENTO DA CIDADE DE MAUÁ


O período entre 1950 e 1970 é marcado por um crescimento vertiginoso, como é
possível observar pelos dados do IBGE na tabela 1. Mauá passa de 9472 habitantes, em
1950, para 102188 habitantes, um crescimento de mais de 20%. Observa-se também
que, se na década de 1960, um pouco mais da metade vivia em zona rural, na década
de 1970, 99,85% da população já estava vivendo na zona urbana. Isso é resulta em um
aumento no número de domicílios, que passam de um pouco mais de seis mil, em 1960,
para quase vinte mil, na década seguinte.

TABELA 1 – Crescimento Populacional por década

População Crescimento populacional em População População Densidade


Ano Domicílios
total relação ao período anterior urbana rural demográfica

2010 417064 1,39% 417064 0 6741,41 125418

2000 363392 2,36% 363392 0 5869,78 98963

1991 294631 3,32% 294631 0 4759,10

1980 205817 7,25% 205817 0 2630,68 44641

1970 102188 13,45% 102031 157 1310,10 19922

1960 28924 11,81% 14128 14796 370,82 6156

1950 9472 6,7% 121,44

1940 4973 2653 2320 63,76

Tabela 1 – Crescimento populacional por década. Fonte: IBGE (1940, 1950, 1960, 1970, 1980, 1991,
2000 e 2010). Tabulação elaborada pela autora.

• 4
Esse aumento na população também é refletido no número de loteamento aprovados no
mesmo período, com mais de 100 projetos aprovados pela prefeitura entre 1950 e
1970, como mostra o Gráfico 1.

GRÁFICO 1 – Loteamentos aprovados no Município de Mauá dividido por década

Gráfico 1 – Loteamentos aprovados por década. Fonte: Prefeitura do


Município de Mauá. Gráfico feito pela autora.

Tal crescimento populacional coincide com o período de expansão da mancha


metropolitana em geral, como mostra a bibliografia2, durante um período de
intensificação da industrialização 3. Isso demonstra como nesse período houve um
crescimento significativo da ocupação da cidade, estruturando-se a partir daí o seu
território.
Esta explosão populacional trouxe consigo diversos problemas, visto que a cidade não
estava pronta para tamanho afluxo de pessoas. Além disso, os loteamentos realizados
entre a década de 1950 e 1970 seguiam uma lei que não era pensada exclusivamente
para a cidade de Mauá, mas para uma cidade da qual não fazia mais parte: a lei
municipal 271/1929, do então município de São Bernardo. Esta lei instituía regras para
abertura de novos loteamentos, determinando a porcentagem de área reservada a

2
LANGENBUCH, Juergen Richard. A estruturação da Grande São Paulo: estudo da geografia urbana. Rio
de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia, Departamento de Documentação e Divulgação Geográfica e
Cartográfica, 1971; MEYER, Regina; GROSTEIN, Marta Dora; BIDERMAN, CIRO. São Paulo Metrópole.
São Paulo: EDUSP/ IMESP, 2004; REIS FILHO, Nestor Goulart. São Paulo: Vila Cidade Metrópole. São
Paulo: Prefeitura do Município de São Paulo, 2004.

3
Além das indústrias do complexo petroquímico de Capuava, Mauá também contava, na década de
1970, com indústrias que produziam itens elétricos e eletrônicos, como bulbos (vídeos) para televisores,
metalúrgicas, cerâmica, porcelana, produtos químicos e outros ramos completam o parque industrial do
Município. Além disso, a cidade contava com cerca de 250 estabelecimentos comerciais. Fonte: Jornal do
Comércio (1974).

• 5
equipamentos públicos, áreas livres (5% da gleba) e sistema viário (20% da gleba),
bem como a largura das vias (12 metros). Esta lei foi aplicada em Mauá mesmo depois
de sua emancipação, seguindo vigente até 1970, quando é aprovada a lei 1.134, o
Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado, que instituiu novas regras.
Uma reportagem, publicada no Diário do Comércio em março de 1974, destaca o
“crescimento populacional explosivo” nos dez anos anteriores, mas ressalta também a
preocupação da prefeitura, no sentido de garantir um desenvolvimento da cidade que
suportasse esse grande aumento de habitantes:
Esse crescimento populacional pouco comum tem trazido problemas à cidade, como é
fácil de supor-se. A atual administração Municipal, todavia, tem procurado, por todos os
meios, vencer as dificuldades que se constituem em produto do próprio
desenvolvimento, mediante a realização de obras de grande alcance. O atual prefeito,
Amauri Fioravanti, tem Planos em execução para que o Município possa montar uma
Infraestrutura capaz de suportar a expansão que a cidade experimenta. (Diário do
comércio, 31 de março de 1974)
A equipe responsável pelas análises que embasaram o plano diretor integrado de Mauá,
liderado por Aziz Ab’Sáber, então diretor do Instituto de Geografia da USP, escreve em
um artigo publicado na revista Geografia e Planejamento em 1969 que a cidade naquele
momento tinha inúmeros problemas urbanos, decorrentes do “espantoso e desordenado
crescimento urbano caótico”, incentivado pela presença de indústrias, tanto na cidade
quanto nas cidades próximas, da disponibilidade de transporte, dada a linha de ferro e a
estação Mauá e os preços de lotes mais baixos, em comparação com as outras cidades
do Grande ABC, em especial, Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano do
Sul. Dizem em certo trecho:
A “explosão” demográfica ultrapassou a toda e qualquer previsão dos administradores
mauaenses, fazendo acumular problemas sobre problemas, num desafio sério para os
que se dedicam ao planejamento. (AB’SABER; APRIGIANO; PALHETA, 1969)
Nesse contexto, buscando criar diretrizes para um desenvolvimento mais sustentável da
cidade, em 1969 a prefeitura, que conforme Ab’Sáber contou em um Simpósio em
2002, contava com um quadro técnico reduzido, buscou o Instituto de Geografia da USP
para fazer a base do que seria o plano diretor de desenvolvimento integrado, aprovado
em 1970.

O PLANO DIRETOR DE DESENVOLVIMENTO INTEGRADO


O estudo no qual o plano se baseou foi elaborado por uma equipe multidisciplinar,
composta de arquitetas, urbanistas, geógrafos, sociólogos e economistas do Instituto de
Geografia da USP, liderados pelo geógrafo Aziz Ab’Sáber. A equipe fez um estudo do
uso do solo e da organização da cidade, de modo a definir melhores diretrizes para a
reestruturação do espaço e o crescimento da cidade, considerando todo o contexto de
explosão populacional ocasionada pelo desenvolvimento industrial da região, com o
objetivo de regular o processo de urbanização.

• 6
A ideia não era impedir o avanço da ocupação, por mais que se destaque no texto que a
geografia da cidade estava longe do adequado (segundo os autores e autoras, cerca de
70% da cidade seria inadequada para fins urbanos, dada a sua característica física de
mar de morros), mas sim criar medidas para organização do espaço, bem como
diversificar o tipo de ocupação, garantindo o desenvolvimento econômico saudável e
fortalecendo a indústria e o comércio da cidade. Além disso, destacava-se a
necessidade de equipamentos de educação, lazer e saúde, para garantir boas condições
de vida para a população de Mauá. Outra questão importante seria o fomento para a
criação de subcentros na cidade, que atendesse de três a quatro bairros e estimular a
criação de novos centros comerciais e residenciais.

O que previa o plano diretor


O plano abrange quatro setores básicos: econômico, social, físico-territorial e
administrativo e previa um período de quinze anos.
Os principais objetivos do plano eram:
• Atender todas as necessidades dos cidadãos de Mauá e se tornar um centro
regional, servindo também ás cidades vizinha;
• Dar condições físicas e econômicas para a instalação de mais indústrias;
• Assegurar uma estrutura urbana adequada ao crescimento demográfico previsto
e às funções do município – em especial, a função industrial;
• Proporcionar um sistema viário básico de modo a permitir a circulação rápida,
segura e eficiente de pessoas e cargas, entre as várias zonas da cidade e entre o
município e a área regional;
• Proporcionar os equipamentos físico-sociais necessários a uma vida equilibrada e
saudável da população residente;
• Aperfeiçoar a administração municipal de forma a permitir o aumento dos
investimentos públicos e a ampliação dos serviços urbanos;
• Racionalizar o uso da terra para a perfeita adequação entre a estrutura e o bem
estar da população.

Diretrizes
Foram definidas também diretrizes, divididas em quatro categorias, que correspondem
aos quatro setores básicos do plano: econômico, social, administrativo e físico-
territorial.
I. Setor econômico
• Consórcio com os demais municípios para a defesa dos interesses comuns da
economia da região;
• Estímulo à pequena e média indústria de tipo urbano complementares da
indústria já instalada na região e no município.
II. Setor social

• 7
• Implantação de um sistema profissional;
• Orientação da população para usufruir dos novos equipamentos da comunidade

III. Setor administrativo


• Reorganização da administração municipal, com perfeita delimitação de funções
de todos os seus órgãos;
• Aprimoramento do pessoal, com amplos programas de treinamento dos
servidores;
• Atualização constante do cadastro fiscal;
• Criação de uma assessoria de planejamento, com a função de coordenar e
controlar a execução do Plano Diretor.
IV. Setor físico-territorial
• Implantação da estrutura urbana, com a hierarquização das vias de circulação
existentes e propostas;
• Zoneamento de uso orientado no sentido de incentivar a ocupação de áreas mais
adequadas à urbanização e à expansão da cidade;
• Transferência de núcleos residenciais existentes na zona industrial de Capuava;
• Preservação e criação de áreas verdes para a proteção contra a poluição do ar;
• Reserva de área para implantação de indústrias;
• Destinação de áreas verdes para atividades recreativas;
• Expansão das funções centrais entre o vale do Tamanduateí e a Av. Barão de
Mauá;
• Criação de um centro de interesse urbano entre os bairros Parque São Vicente e
Matriz.

Do desenvolvimento econômico
A parte do desenvolvimento econômico foi completamente focada para o estímulo à
instalação de indústrias, acompanhando a vocação da cidade e da região. Para isso,
propunha-se:
• Desapropriar áreas adequadas a este fim;
• Concessão do direito do uso e de isenções fiscais a indústrias de setores
interessantes para o município.

Do uso do solo
Para o uso do solo, a cidade foi dividida em três áreas:
I. Área urbana: limitada pelo perímetro fixado pela planta oficial de zoneamento;
II. Área de expansão urbana: destinado ao crescimento da área urbana;
III. Área rural: a área restante do município.
As áreas urbanas e de expansão foram divididas em zonas de uso predominante,
determinando quais seriam os usos permitidos, permissíveis e proibidos, além das

• 8
normas e padrões dos lotes, bem como índices de aproveitamento, ocupação e
afastamentos exigidos4.
O plano também abordava a questão das construções, residenciais e industriais,
definindo que nenhuma edificação, seja uma nova construção, uma reforma ou uma
demolição, poderia ser feita sem autorização prévia dos órgãos responsáveis da
prefeitura5 e que o não cumprimento das normas dispostas tanto no plano diretor
quanto no código de edificações acarretaria em multa, embargo da obra e até mesmo, a
demolição do edifício.

Do sistema viário
Para o sistema viário, era importante definir as hierarquias das vias, tanto as existentes
como as previstas em projetos, de modo a pensar novas centralidades na cidades, a
partir das vias.
Neste sentido, o sistema viário foi divido em:
I. Vias regionais:
Tinham faixa mínima de 60 metros. Entre elas estão a Avenida Papa João XXIII e a
Avenida do Estado.
II. Vias intermunicipais ou expressas:
Variavam entre 20 e 40 metros e incluem a Avenida Capitão João, a Avenida João
Ramalho e a Avenida Comendador Wolthers.
III. Vias principais;
Tinham faixa mínima de 30 metros. Entre elas estão a Avenida Presidente Castelo
Branco, Avenida Washington Luiz, Estrada da Adutora (atual Estrada Mauá e Adutora
Rio Claro), Avenida Barão de Mauá e Estrada do Carneiro.
IV. Vias secundárias;
Variavam entre 14 e 30 metros de largura. Entre elas estão a Rua General Ozório, a
Avenida Itapark, a Rua Bartolomeu de Gusmão, a Rua João Pessoa, a Rua Bocaina,
Avenida da Saudade e Avenida Queirós Pedroso6.
V. Vias de distribuição;
VI. Vias de pedestre.

4
As diretrizes para o uso do solo são mais detalhadas na lei 1133/1970, que trata especificamente do
zoneamento da cidade, enquanto que normas para os loteamentos na lei 1134/1970, que trata
especificamente de loteamentos.

5
As normas de edificações, na forma da lei 1126/1970, estabelecem os requisitos para a elaboração de
projetos e o processo de sua aprovação pela prefeitura.

6
O plano cita outras vias que estavam previstas em projeto, e não tinham sido nomeadas ainda.

• 9
Das áreas sociais

Estava indicada no plano a fixação de glebas, logradouros e áreas de proteção


paisagísticas, com o intuito de criar uma paisagem urbana própria7. Para isso, se
estabeleceu as seguintes medidas:
I. Limitações administrativas ao uso da propriedade, para a melhor preservação do
local;
II. Estímulos tributários para usos e atividades adequados;
III. Penalidades pelo não cumprimento das medidas que regulamentarem a
preservação do existente nessas áreas.
A localização de escolas, parques, jardins e outros equipamentos sociais deveriam ser
pensados de modo a estimular a criação de centros comunitários em cada setor da
cidade. Além disso, essas áreas deveriam assegurar uma área mínima de
16m²/habitante.
O plano previa que deveria haver uma recuperação, parcial ou total, da valorização de
propriedades privadas beneficiadas pelas ações previstas no Plano Diretor, mas não é
detalhado como isso seria feito.
Para garantir a execução do plano, foram criados órgãos permanentes de planejamento,
a Comissão Municipal de Planejamento e a Assessoria Técnica Municipal de
Planejamento.
A Comissão Municipal de Planejamento seria um órgão consultivo e assessoramento do
município, que teria como funções avaliar as atividades relativas ao planejamento
estratégico, coordenar a elaboração e execução do Plano Diretor do Município, além de
acompanhar os planos anuais e plurianuais de investimento em obras públicas. A
comissão era composta de 6 membros escolhidos pelo prefeito, sendo este também
parte da comissão.
Já a Assessoria Técnica de Planejamento seria a responsável pelos relatórios sobre o
andamento da execução do previsto no Plano Diretor.
O plano previa também uma grande campanha de divulgação para os moradores, de
modo a esclarecer os objetivos e as diretrizes.

OS IMPACTOS DA LEI NO DESENVOLVIMENTO URBANO DE MAUÁ


Flávio Villaça, no artigo “Dilemas do Plano Diretor”, define plano diretor como
[...] um plano que, a partir de um diagnóstico científico da realidade física, social,
econômica, política e administrativa da cidade, do município e de sua região,
apresentaria um conjunto de propostas para o futuro desenvolvimento socioeconômico
e futura organização espacial dos usos do solo urbano, das redes de infraestrutura e de

7
Áreas especificadas na planta principal de zoneamento.

• 10
elementos fundamentais da estrutura urbana, para a cidade e para o município,
propostas estas definidas para o curto, médio e longo prazos, e aprovadas por lei
municipal. (VILLAÇA, 1999)
Partindo desta definição, pode-se dizer que o plano aprovado em Mauá constitui um
plano diretor, apesar de o autor dizer que, nas condições da definição posta acima,
“nunca houve plano diretor no Brasil fora do discurso”.
Considerando as diretrizes e os objetivos do plano, comparando com como a cidade se
desenvolveu, alguns pontos merecem a atenção.
O plano diretor dá grande ênfase aos sistemas viários, e de fato, essas vias previstas no
plano foram abertas, quando ainda não existente, ou receberam melhorias, como
consta em notícias da época8. Os subcentros da cidade se desenvolveram nas vias
principais e até mesmo nas secundárias, com destaque para a Avenida Castelo Branco,
que serve de centralidade para o Jardim Zaira, a Avenida Barão de Mauá, que começa
no centro da cidade, passando por diversos bairros e a Avenida Itapark, afora outros
subcentros que fizeram a cidade mais dinâmica, para além da imagem de “cidade
dormitório9”.
Destaca-se também toda parte relacionada à indústria. Os planos de incentivo a atração
de indústrias para a cidade, bem como a definição de uma zona industrial nova,
mostraram-se efetivos, com a instalação de indústrias na zona industrial exclusiva do
Sertãozinho (que estava indicado no plano e é detalhado em uma lei complementar
aprovada em 1975).
Mauá se tornou um centro para as cidades próximas – com destaque para Ribeirão Pires
e Rio Grande da Serra – mas isso trouxe problemas, notadamente a superlotação do
hospital municipal, que atende pessoas não somente de Mauá, mas dos outros dois
municípios também.
É notável a falta de um plano de habitação e apesar de ter um código de obras, faltou
fiscalização. Construções irregulares, reformas e desmembramento de lotes sem
autorização explodiu, o que pode ser comprovado pelas dezenas de leis de
regularização do solo que são aprovadas a partir do final da década de 1970 10. A falta
de políticas de habitação, combinadas com a falta de preservação e reflorestamento das

8
“Mauá: da Porcelana a Petroquímica 1974” - Diário do Comércio, 31 de março de 1974.

9
O termo “cidade-dormitório” está associado a “um conjunto de percepções que não é baseado em
dados formais e, dessa forma, considera um conjunto de situações muito distintas”, como explicam
pesquisadores da Unicamp que buscaram precisar o conceito. Seu uso estaria normalmente associado às
cidades em que uma parcela grande da população trabalha em outra cidade, além de apresentarem uma
economia pouco dinâmica (OJIMA, SILVA, PEREIRA, 2008). Busca-se questionar a aplicação deste
conceito de maneira pouco refletida à cidade de Mauá, considerando o desenvolvimento econômico e
social do município, contribuindo para a precisão do fenômeno histórico no sentido indicado por Meyer,
Grostein e Birderman (2004), que definem Mauá como “cidade industrial de baixa atividade”.

10
Para um tabelamento completo dessas leis, ver SANTOS, 2018.

• 11
áreas impróprias para a ocupação, culminou na invasão dessas áreas, resultando em
um problema crescente, principalmente nos períodos chuvosos, onde aumenta o risco
de deslizamento.
Sobre a comissão de planejamento e a assessoria técnica, não há registros sobre a sua
atuação.
No plano também estava previsto, no artigo 47, que o “custo das obras do plano
diretor, que proporcionarem valorização especial de propriedades privadas, deverá ser
recuperado, parcial ou totalmente, mediante contribuição de melhoria na forma de lei”.
Porém, não fica claro como esse valor seria medido e repassado a prefeitura nem se
haveria algum instrumento que garantisse esse repasse. Também não há registros de
que foi feito.
Muito do que foi proposto não foi efetivado, mas é interessante observar como as partes
do plano que foram postas em prática, refletiram na estruturação, na produção do
espaço e no ambiente construído da cidade de Mauá, seja no desenho das quadras da
cidade11, a partir dos loteamentos aprovados depois das leis aqui citadas, na hierarquia
das vias, que guiou as novas subcentralidades ou no esforço em atrair mais indústrias,
que consolidou Capuava como área industrial e definiu uma nova área, que viria ser o
Sertãozinho.
Aziz Ab’Sáber, em um evento na cidade em 2002 12 , 33 anos depois dos estudos para o
desenvolvimento do plano, destaca como Mauá se modernizou e como isso, nos anos
1950, pareceria utopia. A cidade não fica congelada em um período, ela se desenvolve,
se moderniza e estudar outras cidades e outros recortes pode precisar melhor as
dinâmicas internas e trazer novas visões, que aprofundam e ampliam os estudos de
uma região tão complexa como a metrópole paulista.

11
Para uma análise detalhada dos loteamentos aprovados em Mauá, ver SANTOS, 2019.

12
1° Simpósio Nascentes – O rio e a cidade, realizado em Mauá, entre os dias 21 e 22 de março de
2002.

• 12
REFERÊNCIAS
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elaboração de um projeto. In: Simpósio Nascentes: O rio e a cidade, Mauá : Prefeitura do
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• 14
OURO PRETO, A PAISAGEM E OS ARTISTAS
Uma leitura possível
OURO PRETO, LANDSCAPE AND ARTISTS A possible reading
Cidade, política e cultura

LOPES, Myriam Bahia


Doutora; UFMG
mblopes@ufmg.br
RANGEL, Gabriela Lopes de Moura
Mestranda; UFMG
gabrielalmrangel@gmail.com
RESUMO

O artigo integra a pesquisa Percepção da Paisagem por Meio da Arte: o papel


da FAOP na cidade de Ouro Preto (1960-2020) – que estuda a paisagem de
Ouro Preto buscando compreender o papel da arte para a percepção da cidade.
O artigo delimita os conceitos de paisagem e estuda a paisagem de Ouro Preto
na visão de artistas ligados à história da FAOP: Nello Nuno e Annamélia Lopes
(artistas, professores e fundadores da escola de arte) e Jorge dos Anjos (aluno
que se tornou professor). A pesquisa bibliográfica se dá nos campos da
paisagem e da arte, define os pressupostos conceituais e possibilita o recorte
da produção artística analisada. A análise das obras, permite o estudo
comparativo da expressão artística buscando a identificação de permanências
e rupturas. Partindo da hipótese que, a abordagem da paisagem no estudo da
arte contribui para intensificar ou mesmo multiplicar os elos das pessoas com
os seus territórios e a partir da paisagem, procuramos entender a relação
desses artistas com a cidade de Ouro Preto.

PALAVRAS CHAVE Paisagem 1; Arte 2; Artistas 3; Ouro Preto 4.

ABSTRACT

The article is part of the research Perception of Landscape through Art: the
role of FAOP in the city of Ouro Preto (1960-2020) – which studies the
landscape of Ouro Preto seeking to understand the role of art for the perception
of the city. The article delimits the concepts of landscape and studies the Ouro
Preto landscape in the vison of artists linked to the history of FAOP: Nello Nuno
and Annamélia Lopes (artists, professors and fouders of the art school) and
Jorge dos Anjos (a student who became a professor). The bibliography
research takes place in the fields of landscape and art, defines the conceptual
assumptions and makes possible the cut of the artistic production analyzed.
The analysis of the works allows a comparative study of the artistic expression,
seeking the identification of permanences and ruptures. Starting from the
hypothesis that the approach to landscape in the study of art contributes to
intensify or even multiply the links of people with their territories and from the
landscape, we seek to understand the relation of these artists with the city of
Ouro Preto.

KEY-WORDS Landscape 1; Art 2; Artists 3; Ouro Preto 4.


INTRODUÇÃO
Para pensar cidade, memória e preservação é essencial entender a relação que as pessoas
estabelecem com o território, suas percepções, como a pessoa afeta e é afetada pelo
entorno. Como se aproximar das várias vivências, referências e valores que estruturam
o ser e sua interação com esse ambiente? Como se articula o presente e o futuro num
espaço de preservação como a paisagem da cidade de Ouro Preto? Essas são algumas
das reflexões lançadas a partir do estudo das expressões da arte, seu exercício e
vivências, da pergunta de como se constituem, integram e modificam as percepções,
relações e interações com e na cidade.
Em 1968, a Fundação de Arte de Ouro Preto/FAOP foi criada com o propósito de ser uma
instituição irradiadora de cultura e de atuar nas áreas da preservação do patrimônio
cultural e do ensino da arte. Para a FAOP a arte e a cultura são instrumentos centrais de
formação e transformação social. Nessa direção ela tornou-se um polo agregador e
formador de artistas na cidade (FAOP, c2015).
O artigo integra a pesquisa Percepção da Paisagem por Meio da Arte: o papel da FAOP na
cidade de Ouro Preto (1960-2020) que estuda a paisagem de Ouro Preto buscando
compreender a contribuição da arte para a percepção da cidade. Apresenta os conceitos
e noções adotados na pesquisa, em especial a paisagem e o entendimento da relação
entre arte e a vida. O texto contextualiza a autora nessa produção. A partir do eixo central
da pesquisa discorre sobre artistas referenciais para a história da arte em Minas Gerais.
A partir do encontro de dois eixos temáticos a paisagem e a arte nos apoiamos na história
antropológica1 . A revisão bibliográfica possibilita a conceituação e a definição do recorte
abordado na pesquisa, quer dizer, espacial, Ouro Preto e o circuito de - três artistas, de
suas obras e atividades didáticas; o recorte temporal delimita o estudo e análise dessa
relação entre arte e paisagem. A Pesquisa Documental tem como fonte o acervo da FAOP
(documental e artístico), obras de arte e arquivos dos artistas pesquisados e analisa a
presença da paisagem de Ouro Preto na visão de artistas ligados à história da FAOP: Nello
Nuno e Annamélia - artistas, professores e fundadores da sua escola de arte; Jorge dos
Anjos que foi aluno e professor da FAOP. A indicação de continuidades e transformações
na paisagem/cidade virá como resultado do entendimento, via análise dessas obras e da
articulação de elementos das transformações ocorridas nos processos artísticos, na vida
urbana e em sua percepção.

1
O campo da história antropológica pode ser indicado rapidamente numa linha da história dos
sentidos que liga a École dos Annales a autores como Alain Corbin, Claudine Haroche, Georges
Vigarello. Sem esquecer dos importantes estudos de Jean Pierre Vernant e P. Vidal Naquet.

• 1
PRESSUPOSTOS
Sendo a arte campo simbólico onde podemos elaborar, pensar, imaginar, reconstruir,
inventar o mundo e a nós mesmos, propomos estudar as interações entre os artistas e a
paisagem da cidade Patrimônio Cultural da Humanidade. Pensar a Ouro Preto, cidade
cenário/cidade viva com suas complexidades e seus conflitos, suas interações e
percepções por meio da arte e trabalhar no ponto de encontro entre a percepção da
paisagem e da cidade.
Buscar o olhar da arte para a paisagem:

Sem necessitar de aparatos tecnológicos e de maiores requisitos de saberes científicos, o


artista pode capturar, representar, e mesmo presentificar a realidade, ordenando e
reescrevendo o mundo, reformulando simbolicamente sua estrutura para que a percepção
da vida se torne mais clara e mais feliz (SAMPAIO, 2013, p.11).

Olhar a paisagem por meio da arte:

O que uma imagem dá a ver, o que mostra e, sobretudo: como mostra? São as questões
das quais gostaria de partir. Pensar a imagem será, portanto, refletir sobre o
entrelaçamento entre as imagens e aquilo que elas mostram. A lógica das imagens – aqui
está a nossa tese – é uma lógica da mostração: as imagens nos dão a ver alguma coisa,
nos colocam alguma coisa “sob os olhos” e sua demonstração procede, portanto, de uma
mostração (BOEHM, 2015, p.23).

Partimos destes dois pressupostos, buscando o olhar da arte para a paisagem e olhando
a paisagem por meio da arte, estabelecendo uma relação dialógica que servirá de base
para as análises, explorando o “presentificar a realidade” e a “mostração” próprios da
arte.
Quando nos relacionamos com as obras de arte, independente de sermos criadores ou
não, as questões presentes, seja em uma pintura, uma fotografia, um livro, uma música,
um filme etc. aviva em nós, a partir de nossas próprias experiências sentimentos,
memórias, lembranças, aquilo que nos toca mais profundamente. As obras de arte são
objetos não acabados que se completam em significado na relação com o outro. São as
vivências, as experiências, as referências que o outro trás quando se relaciona com os
trabalhos de arte que completam a sua narrativa, dando significado e sentido para a obra
no mundo.
Desta maneira buscar como as obras que retratam/abordam a paisagem/território de
Ouro Preto nos tocam, que sentimentos são ativados e como essa vivência afeta a
conexão com a própria cidade é fundamental para entender a relação: corpo, paisagem,
história. É o corpo inserido na paisagem, sendo formado por ela e esse mesmo corpo se
distanciando e interpretando a vivência por meio da arte.

Arte e vida
Arte é essencial à vida humana. O ser humano como ser simbólico, cultural, tem
necessidade de entender, elaborar e se colocar no mundo, compreender suas questões
existenciais e a sua relação com o externo: o outro, o mundo, a realidade. A arte é uma

• 2
das dimensões do humano que estabelece, constrói e aprofunda as relações e as
percepções para além da vida orgânica do ser, tocando nas questões intangíveis da
existência:

Apreender a obra ou fazê-la são atos que pressupõe o que depende do mistério. As certezas
cientificistas de nosso tempo, os racionalismos pouco sábios, não toleram a ideia de que
algo lhes escape, temem as trevas e creem na luz universal, tão enganosamente torva.
Entretanto é inútil excluirmos o mistério, ele está em nós e entorno de nós. E as obras de
arte nos ensinam a dura tarefa de conviver com ele (COLI, 2013).

Por compor o campo do mistério, do sensível, a partir das percepções, dos sentimentos,
do imaginário, do não verbal, de sentidos que ultrapassam a dimensão racional, no
entanto se relacionam e transitam por ela, a arte elabora questões existenciais profundas,
de uma forma diferente da ciência, da filosofia, da religião, pois se trata de outro campo
do conhecimento e de relação com a realidade.
Segundo Viviane Mosé (2021) a arte é capaz de nos reconstituir e restituir a nossa
inteireza, a nossa liberdade de ser, transbordando tudo aquilo que sem ela fica retido,
represado, em uma contenção impossível, na dicotomia entre o indivíduo e a necessidade
de coletividade, de integrar-se ao todo, ao mundo. Na relação com a arte somos
restituídos à nossa condição de seres únicos, unidos com o todo, reelaborando as alegrias
e as dores da existência.
Para se realizar a arte precisa ganhar o mundo e se relacionar com as pessoas. A obra é
a ponte que permite uma conexão profunda na relação com o outro, sua vivência e leitura,
elabora novos e inéditos sentidos. A experiência da arte vivenciada no convívio cotidiano,
sendo a presença da obra o ciclo permanente de conexão, elaboração, transformação e
renovação de sentidos para a vida. Viver a arte é dialogar, relacionar com o intangível da
vida, é criar pontes e conexões entre pessoas, e entre as pessoas e o mundo. Nesse
sentido a obra de arte pode ser um importante instrumento de conexão das pessoas entre
si e com os seus territórios.

Artista, professora e pesquisadora


É importante contextualizar a produção textual, artística e pedagógica de Gabriela Rangel,
autora da pesquisa e do texto, pois esclarece as escolhas. Ouropretana, filha dos artistas
Nello Nuno e Annamélia Lopes, fundadores da Escola de Arte Rodrigo Melo Franco de
Andrade/EARMFA que integra a Fundação de Arte de Ouro Preto/ FAOP. A arte, a cidade,
sua paisagem e a FAOP são essenciais na sua formação como pessoa e profissional, neste
convívio Gabriela se constituiu artista e professora.
A paisagem de Ouro Preto vivida e representada pela visão de diferentes artistas fez e
faz parte desse cotidiano. Contribuiu para a construção, entendimento e percepção das
várias camadas que compõe esse ambiente, para nele situar a autora. Impregnada em
seu imaginário e estruturante do seu ser.

• 3
PAISAGEM E ARTE

A paisagem
A cisão entre o ser humano e a natureza, esse distanciamento para olhar o entorno, como
se não pertencêssemos a ele, inaugura a noção de paisagem como a entendemos. O
homem, diferente dos demais animais, consegue tomar distância, ver de fora, e essa
distância está na base da noção de paisagem, pois nos permite a visão de conjunto –
“distância de visada” – que ajuda a identificar um território, um lugar, uma região.
A paisagem permite uma espécie de enquadramento que dá unidade visual à percepção,
referência de nossa presença no espaço. Podemos supor que apenas o sentido da visão
está envolvido nesse processo, pelo contrário, diz respeito ao corpo e a outros sentidos,
o tato, a audição, o olfato e até o paladar, à presença deste corpo no espaço, sendo assim
é uma referência dinâmica e relacional. Estamos aterrados pela paisagem, nossa
referência de horizontalidade e verticalidade, o chão que nos sustenta e o céu para nos
lançarmos, entre um e outro, o caminho da arte como forma de percepção, de
entendimento, de elaboração do espaço que nos constitui.
A segunda metade do séc. XX com o aumento cada vez maior da velocidade dos meios
de transporte, a aceleração desmedida e a verticalização das cidades, desregularam os
ritmos da vida, que perdem a escala humana, contribuindo para mudança na forma de
perceber, situar, comunicar, ser e relacionar com o espaço. A visão panorâmica construída
pela pintura e fortalecida pela fotografia que marcou o séc. XIX, torna-se cada vez mais
fragmentada, múltipla e até volátil, refletindo na produção plástica e visual.
A obra “Transe e Mergulho I” de Eneida Sanches e Tracy Collins traduz essa
transformação. Constituída por uma mulher - feita por centenas de pequenos fragmentos
da gravura em metal “olho de boi” - mergulhando em um quadrado também de
fragmentos da mesma estampa, ao lado de um plano em movimento. Dois tempos se
avizinham. O tempo congelado na captura do salto e fluxo contínuo de tempo no
deslocamento veloz da paisagem. O vídeo que dá a sensação de cachoeira é feito por
Tracy Collins a partir de imagens filmadas de dentro do carro se deslocando pelas estradas
durante viagens pelo interior do Brasil. A sensação é de um mergulho sem fim no espaço.

• 4
Figura 1: Eneida Sanches e Tracy Collins,
Transe e Mergulho I, 2000, mural/instalação,
280 x 380 x 10 cm. Foto: Tracy Collins.
Fonte: Captura de tela pela autora (2022)
Disponível em:
www.lazygoatorks.com/works. Acesso em:
22 ago. 2022.

Após tantos estudos, revisões e proposições, ainda hoje, temos o sentido da visão
dominante quando nos referimos à paisagem, principalmente neste período de domínio
da imagem na sociedade. Entretanto a paisagem é percebida e nos constitui por meio de
todos os sentidos e da vivência no espaço. Capturada pela sensibilidade do artista, fica
encantada em um tempo que parece congelado. No entanto a paisagem é dinâmica como
a vida, transformada e constituída a todo momento pela ação dos seres no território. As
duas questões a transformação dinâmica do território e o desejo de permanência do
espaço em um determinado tempo, estão no cerne do desafio da preservação do
patrimônio cultural e serão um dos centros dos conflitos e de reflexão em locais como a
cidade de Ouro Preto.
Alan Corbin (2001) destaca que “a paisagem é uma forma de experimentar e apreciar o
espaço. No entanto, esta leitura, que varia de acordo com indivíduos e grupos está
constantemente em mudança. Devemos, portanto, estar cientes dessa historicidade
quando abordamos o assunto” (2001, p. 7). O autor esclarece que dessa forma seu
entendimento é fluido, não havendo conceito hegemônico aplicável a todas as situações
e culturas. Assim é importante delimitar os pontos de abordagem no decorrer da
pesquisa, no contexto da arte, dentro dos recortes espaciais e temporais definidos, pois
segundo o autor:

A paisagem é uma maneira de ler e analisar o espaço, de representá-lo, se necessário, fora


da apreensão sensorial, de esquematizar a fim de oferecê-la à apreciação estética para

• 5
carregá-la com significados e emoções. Em suma, a paisagem é uma leitura, inseparável
da pessoa que contempla o espaço considerado. Então temos que esvaziar a noção de
objetividade aqui (CORBIN, 2001, p. 7).

Dessa forma buscaremos compreender, como cada artista, dentro de seu tempo, contexto
e singularidades abordou a paisagem de Ouro Preto, e a ofereceu à arte, ao ensino e à
comunidade.
Tomiaka Nilsson (2018) nos convida a pensar sobre as relações e interações do sujeito
com a paisagem, se é algo externo, ou está também no sujeito:

Sem alongar nos conceitos já plasmados, importa a implicação em nela [a paisagem]


reconhecer ou não o sujeito à qual ela interessa e as relações e interações nela produzidas.
Interessa também considerar se a paisagem é apenas algo externo ao sujeito, ou está
também no sujeito que a vê, pensa, percebe (2018, p. 55).

Buscaremos compreender essas relações, interações e implicações, em suas diversas


camadas e possibilidades. Nesse estudo partimos da observação e análise de obras de
artistas de diferentes gerações. Como pista para esse caminho a ser percorrido Joaquim
Sabate Bel (2016, p. 33) na curadoria da exposição César Manrique: a Consciência da
Paisagem, diz: "Essa experiência mostra as modalidades segundo as quais os artistas,
mediante suas obras e intervenções constroem uma paisagem que, por sua vez,
contribuem para instituir seu próprio olhar."
Anne Cauquelin (2007, p. 44) em seu livro A Invenção da Paisagem discorre sobre como
a noção de paisagem construída no renascimento está presente, marcando a forma de
relacionarmos e vermos o espaço. A autora destaca que essa forma de percepção está
tão impregnada no olhar ocidental que “vemos a Grécia com olhos de quadro”. Entretanto,
afirma a autora “não há, entre os gregos antigos, nem palavra nem coisa semelhante, de
perto ou de longe, àquilo que chamamos de ‘paisagem’”.

Nessa qualidade, o que vale como paisagem não tem nenhuma das características que
estamos acostumados a lhe atribuir: relação existencial com seu preexistir, sensibilidade
ou sentimento, emoção estética ausente. Sua apresentação, portanto, é puramente
retórica, está orientada para a persuasão, serve para convencer, ou ainda, como pretexto
para desenvolvimentos, ela é cenário para um drama ou para evocação de um mito
(CAUQUELIN, 2007, p. 49).

Fazendo a análise histórica do conceito a autora revela que apesar do paradoxo, foi o
debate sobre o ícone em bizâncio que possibilitará a “figuração da paisagem”, onde a
“imagem artificial” o ícone/paisagem, substitui a “a própria natureza” e a invenção da
perspectiva marca em definitivo a nossa forma de ver:

Pela janela pintada na tela ilusionista, vê-se o que é preciso ver: a natureza das coisas
mostradas em sua vinculação. Então, o que se vê não são as coisas, isoladas, mas o elo
entre elas, ou seja, uma paisagem. Os objetos, que a razão reconhece separadamente,
valem apenas pelo conjunto proposto à visão. Porque a invenção da perspectiva estabelece
regras de uma redução e de um ajuntamento. Toda a natureza (o exterior) está lá, em uma
apresentação que reduz sua dimensão ao que pode ser captado no feixe visual; mas essa
redução só pode se dar à medida que a totalidade for mantida, a unidade constituída – uma

• 6
unidade mental, isto é, uma construção. A razão, critério do verossímil pré-renascentista,
transformou-se em lógica visual (CAUQUELIN, 2007, p. 85 e 86).

A autora destaca que desde então estabelecemos uma relação de dependência entre o
ver e o compreender: “uma constante revolução agita o par compreender-ver.
Compreendo porque vejo, e à medida que vejo, mas só vejo por meio e com o auxílio do
que compreendo que preciso ver naquilo que vejo” (CAUQUELIN, 2007, p. 85).
Desde que a paisagem, conquistou a autonomia temática na história da arte, a imagem
tem essa prerrogativa de substituir a realidade, e muitos dos entendimentos que temos
do real, são construídos e constituídos pelas imagens. Ao mesmo tempo a arte tem essa
capacidade para além de reproduzir ou representar de produzir o real, ampliando nosso
entendimento e percepção.

A produção de imagens, essa atividade intensa de ficção que nos habita e cuja extensão e
importância desconhecemos, deriva bastante da magia: a realidade do mundo na qual
cremos tanto só nos é perceptível por meio de um véu de imagens, a ponto de – querendo
rasgar esse véu – nós nos encontramos muitas vezes confrontados com o vazio. Artifício
da imagem necessária para que se assegure a perenidade, para que dure o prazer, a tensão
da vida. Necessária transformação da realidade em imagem e, outra vez, da imagem em
realidade: nesse duplo movimento, algo, um sopro é transmitido: a retórica pôs sua pitada
de sal. Pois, revirada, a realidade não é mais exatamente a mesma: ela é duplicada,
reforçada pela ficção (CAUQUELIN, 2007, p. 109 e 110).

Tendo a realidade reforçada pela ficção, retomando o entendimento da arte como uma
ponte que nos conecta com o mundo e com o outro, e trazendo a noção de “doador” posta
por Cauquelin (2007) que destaca a nossa posição de testemunhas e doadores nessa
relação de “ver o ‘real’ fora de nós” e o ofertarmos ao outro, recebemos dos que nos
antecederam paisagens, realidades, sonhos e os ofertamos aos que virão, em um ciclo
sem fim de possibilidades, trocas, percepções e entendimentos. Criando e recriando
possibilidades, vivências e olhares. Formando, transformando e possibilitando relações
com o outro e com o território que Cauquelin (2007) assim descreve:

Essa transmissão de olhares tem, para cada um de nós, a potência da origem, aqui o sonho
de minha mãe, ali o rio de margens tranquilas, seu sinuoso curso ensolarado, acolá um
texto, uma sequência de filme, o desenho das nuvens. A natureza como paisagem se dá
pelo olhar dos outros, quando a doadora, só com um movimento da mão, faz o gesto de
desvelamento e inaugura aquilo que por um longo tempo será para nós o “real”
(CAUQUELIN, 2007, p. 191).

Os artistas que trabalham a paisagem desvelam e inauguram o “real” como descreve


Cauquelin (2007) e afirma Sampaio (2013), assim partiremos de algumas obras para nos
aproximar da paisagem na arte mineira e na cidade de Ouro Preto.

A paisagem em Minas Gerais


Inicialmente em Minas Gerais os registros imagéticos do território são encontrados em
mapas cartográficos, guias de viagens e nos registros de artistas estrangeiros em missões
científicas. Além disso, a paisagem aparece como cenário de cenas religiosas nas igrejas,

• 7
oratórios, ex-votos e como ornamento em residências. A paisagem é abordada em estilos
acadêmicos e realistas, com referências europeias e locais, pelo viés erudito e popular.
Segundo Márcio Sampaio (2017), nessa trajetória a paisagem ganha autonomia como
“gênero artístico com sua problemática como expressão de um tempo e uma cultura, quer
seja local, quer seja universal, e que traz em seu bojo questões filosóficas e científicas.”
(GUIGNARD..., 2017, p. 67).
A partir da década de 1940, com o projeto modernista de Juscelino Kubitschek que
convida Guignard para criar e dirigir uma escola de arte em Belo Horizonte, o tema
paisagem ganha força e características que irão marcar a forma de ver Minas Gerais,
assim exposto por Ferreira Gullar (GUIGNARD..., 2017, p. 68):

a fixação de Guignard em Minas Gerais, concorrendo para a fixação de uma temática em


sua obra, deu a essa obra uma qualidade adicional às qualidades propriamente estéticas.
A identificação com um mundo cultural característico, com uma realidade regional que,
invertendo-se os termos de relação, continua agora como o suporte da linguagem que a
revelou pictoricamente. A pintura de Guignard e a paisagem mineira são hoje uma coisa
só, completando-se.

Márcio Sampaio (GUIGNARD..., 2017, p. 68 e 69) esclarece que a pintura de Guignard se


refere “a um conjunto de valores culturais e formais que sua sensibilidade assimila e
transforma segundo sua visão particular do mundo, que implica tanto a alegria como a
dor de viver”, completa que esse sentimento foi transmitido aos seus alunos e que sua
influência contribuiu inclusive para a “reavaliação da ‘paisagem’ colonial e da arte barroca
no Estado”. Além do gosto pela paisagem, Guignard também trouxe a força do desenho
como linguagem para a arte mineira. Márcio Sampaio (GUIGNARD..., 2017, p.69)
também nos lembra da afirmação de Frederico Morais que o mestre “nos ensinou a ver e
perceber a paisagem de Minas”.

Figura 2: Guignard, Tarde de São


João, 1959. Fonte: Gabriela Rangel
(2022).

• 8
Após esse período muito marcado pela presença do mestre Guignard, a paisagem na arte
mineira moderna amplia seu enfoque no fim da década de 60, refletindo os conflitos e a
visão crítica da sociedade posta pelas revoluções culturais no período. Segundo Márcio
Sampaio (GUIGNARD..., 2017, p. 69) “emerge outra Minas, desgastada pelo progresso,
depredada pelo novo processo mineratório e por essa outra paisagem, a urbana, da
indústria e das construções”, e indo além com “paisagens mentais, fantásticas, e daquelas
formas de montanhas tragicamente recortadas e remontadas, os signos e os mapas de
uma cartografia obsessiva, que vão surgir por volta de 1969.” É nesse contexto que
iniciamos o estudo sobre o olhar dos artistas para a paisagem de Ouro Preto, sendo
escolhidos Guignard por “ensinar a ver e perceber a paisagem de Minas” (GUIGNARD...,
2017, p. 69); Nello Nuno e Annamélia, representantes da geração pós-guignard,
escolhem viver em Ouro Preto e fundam a escola de arte da FAOP, responsáveis pela
formação de outras gerações de artistas; e Jorge dos Anjos, artista contemporâneo que
foi aluno e depois professor da escola de arte da FAOP.

A paisagem de Ouro Preto por Guignard, Nello Nuno, Annamélia Lopes e


Jorge dos Anjos
Alberto da Veiga Guignard (1896 - 1962) inaugura a visão lírica da paisagem mineira e
apresenta ao mundo a cidade de Ouro Preto, local onde viveu, conviveu, ensinou e
retratou seus moradores. Gélcio Fortes em seu texto Passos de Guignard em Ouro Preto
relata:

de forma emocionada, Guignard descreve seu primeiro contato com a cidade, quando
chegou em trem noturno, varando a madrugada e ficando à espera do dia clarear. O
espetáculo que presenciou marcou definitivamente o seu imaginário: uma cidade que surgia
entre nuvens e aos poucos revelava sua geografia pontuada por igrejinhas no alto dos
morros (MUSEU..., 2018a, p. 8).

Figura 3: Guignard, Vista do Caminho de


Mariana, 1962, óleo s/ tela, 46 x 55 cm.
Fonte: Fotoreprodução Gabriela Rangel
(2022), MUSEU..., 2018, p. 46 e 47.

• 9
Compreendemos nesse relato o impacto e a permanência dessa primeira visão do artista
para a cidade, inspiração que irá acompanhá-lo, contribuindo para a “presentificação” da
paisagem, entre sonhos e realidade, em sua constituição psicológica e espiritual, descrita
por Márcio Sampaio (GUIGNARD..., 2017, p. 69):

o pintor criou uma nova visão de espaço de paisagem, em que a fantasia se funde com o
real, em perspectivas que detonam os princípios renascentistas, para, nas sucessões de
planos dinâmicos, inventar uma paisagem nova, emotiva, inteiramente diversa da
paisagem dos pintores acadêmicos, de ateliê, infensos aos estímulos reais da natureza e
do cenário urbano.

Gélcio Fortes conta que inicialmente Guignard se mantinha mais fiel ao modelo ao retratar
a cidade de Ouro Preto, com o tempo se liberta trazendo interpretações mais livres e
soltas, “um território mítico, onde a cidade flutua entre névoas e linhas puras sobre o
branco do papel, pontuada por palmeiras e araucárias que extraía da sua observação do
cotidiano” (MUSEU..., 2018a, p. 9).

Figura 4: Guignard, Paisagem de Ouro Preto, s/


data, grafite s/ papel, 25 x 35 cm. Fonte:
Fotoreprodução Gabriela Rangel (2022), MUSEU...,
2018, p. 39.

Priscila Freire no texto A Ouro Preto que Guignard preservou revela que o artista trouxe
“para nossos olhos uma cidade ficcional e poética [...] de uma Ouro Preto perdida e ainda
intocada, quase desconhecida.” A autora diz que “através de seus desenhos, aquarelas,
quadros à óleo, observamos toda uma cidade que nem sempre a fotografia relembra. Ao
acompanhar os passos de Guignard por Ouro Preto temos de volta esta visão onírica,
fantástica, que ele imprimiu à sua obra”. E finaliza afirmando: “por mais que Rodrigo
[Melo Franco de Andrade] tentasse preservar Ouro Preto em seus aspectos mais
significativos, foi Guignard que obteve a maior vitória, construindo signos eternos da
cidade de que tanto falou a sua sensibilidade” (MUSEU..., 2018b, p. 9). Assim Priscila
Freire confirma a dimensão e capacidade da arte de revelar, transmitir e perpetuar,
valores significativos da vida, permitindo que os mesmos atravessem o tempo. As

• 10
paisagens de Guignard são pontes entre gerações que despertam a sensibilidade e a
conexão com a cidade.

Figura 5: Guignard, Noite de São João, 1961,


óleo s/ madeira, 50 x 46 cm. Fonte:
Fotoreprodução Gabriela Rangel (2022),
MUSEU..., 2018, p. 62.

Dentre os artistas que escolheram Ouro Preto como morada, o pintor Nello Nuno (1939
– 1975) realizou uma produção breve e intensa, muito importante e significativa para a
arte, antecipando a retomada da pintura dos anos 80. Segundo Sampaio (2013, p. 15)
“Nello Nuno pertence à geração mineira que começa a se firmar por volta de 1962, ano
da morte de Guignard. É o momento em que se delineia uma nova atitude em relação à
forte influência exercida na década anterior pelo grande mestre.” No início de sua
trajetória Nello Nuno recebe influências do mestre absorvendo a temática e a forma de
pintar, “o mesmo clima, a mesma silenciosa poesia que impregna algumas de suas
paisagens. Desses experimentos ficou uma saborosa vista de Lagoa Santa.” (SAMPAIO,
2013, p. 18). O autor esclarece que, entretanto, Nello Nuno logo busca seu próprio
caminho:

logo se livrou dessas influências e, carregando as tintas e soltando o movimento da mão,


começou a fazer seus quadros bem distantes da pintura guignardiana. Com seus pincéis
‘pouco disciplinados’, mas deles fazendo extensão natural de gestos vigorosos, ia
introduzindo na tela alguma coisa que ficava por sobre as imagens que se iam formando
(SAMPAIO, 2013, p. 15).

No contexto dessa busca por novas formas de expressão faz-se presente os processos e
transformações sociais que se operam no contexto vivido pelos artistas. O trânsito e
circulação de informações, o diálogo entre grupos de artistas de diferentes regiões, o
contato com os críticos de arte, a presença e circulação de exposições internacionais,
como a Bienal de São Paulo, apontam para novos horizontes e possibilidades. Em 1964 a
ditadura militar, seu endurecimento no final da década e o processo de aceleração da

• 11
industrialização e urbanização no país, a presença da comunicação em massa. Em Ouro
Preto, os festivais de inverno, a confluência de artistas e intelectuais, a criação da FAOP,
geram desejos de mudança e rompimento com as referências do passado próximo. Esse
é o período que Nello Nuno e Annamélia mudam-se para Ouro Preto, vivem intensamente
a cidade e todos esses movimentos que marcam as diversas fases da produção do casal
de artistas.
Personalidade viva e inquieta Nello Nuno aborda a paisagem de diferentes modos. Em
1967, o Roteiro Histórico, Artístico e Etílico realizado em bico de pena durante o período
de carnaval retrata o trajeto para a sua casa-ateliê passando pelos bares e botecos da
época. Ainda do mesmo período, as paisagens da série Os Dragões, ricas em detalhes,
figuras, símbolos, signos, cria uma paisagem brincante inspirada pela obra literária de
Murilo Rubião.

Figura 6: Nello Nuno, O casamento –


autorretrato com Anna Amélia, 1968,
pintura óleo s/ tela, 100 x 80 cm.
Fonte: Fotoreprodução Gabriela Rangel
(2022), SAMPAIO, 2013, p. 60.

Segundo Sampaio (2013, p. 42):

as paisagens começam a ganhar uma nova coloração, de início exuberante, como os


cenários de ‘Os dragões’ – os fundos de quintal, onde todos os elementos vegetais e os
planos se misturam; depois, no início dos anos 70, essas mesmas paisagens, já mais
sintéticas, são tratadas com leveza, deliciosamente coloridas, numa ressonância bem-
humorada do tropicalismo então emergente na cena cultural brasileira [...] é o início de
uma nova jornada criativa, cujo percurso abre clareiras nas quais Nello Nuno inventará
espaços impensados, uma antiperspectiva, que, como em Matisse, instaura um novo
território, um espaço ‘bidimensionalizado’ em que reina soberana a cor.

• 12
Nesse processo de tratar a pintura da cidade como um poema visual em cor, Nello Nuno
chega a uma redução formal tão grande que a informação da paisagem se perde e o
casario em cores complementares e contrastes de formas e contra formas, lembram
pesos, deixando as pessoas confusas, buscando paisagens, sem percebê-las na essência
formal construída pelo artista.

Figura 7: Nello Nuno, Verde que te quero vermelho,


1973, pintura óleo s/ tela, 58 x 80 cm. Fonte:
Fotoreprodução Gabriela Rangel (2022), SAMPAIO,
2013, p. 123.

A criação de Nello Nuno é livre e exuberante, pinta como uma brincadeira, essa alegria e
leveza está presente em muitas de suas obras e paisagens. Busca o caminho da
simplificação, do apuramento técnico, das qualidades plásticas e da primazia da cor.
Sintetiza o tema e a composição, cria uma Ouro Preto poética, em processo de abstração.
Em uma das paisagens realiza a fusão de Ouro Preto com seu autorretrato, materializando
a simbiose arte-vida-lugar.

• 13
Figura 8: Nello Nuno, Autorretrato como
Ouro Preto, 1975, pintura óleo s/ tela, 80 x
80 cm. Fonte: Fotoreprodução Gabriela
Rangel (2022), SAMPAIO, 2013, p. 72.

Sobre o gênero da pintura de paisagem em Ouro Preto, Cleia Schiavo Weyrauch (ONZE...,
1983) na apresentação da exposição Onze Artistas de Ouro Preto, nos lembra:

o pintor de Ouro Preto, no processo de recriação da realidade, comunica-se com o presente,


prenhe de um passado carregado de história e de um futuro pleno de incertezas. Na prática,
ao traduzir em formas e cores suas emoções presentes, cria, difunde beleza num constante
processo de intervenção social colorida. Conscientes ou não de seu papel, ao somarem com
suas obras mais beleza ao cotidiano, colaboram no sentido de atenuar seus descompassos.
Atuam como transmissores de sensações positivas, como fotógrafos de um mundo em
transformação.

Refletindo sobre essas várias temporalidades presentes na obra de arte, apresentamos a


artista Annamélia Lopes (1936), fundadora e primeira professora da Escola de Arte da
FAOP. Sua obra nos conecta com a Ouro Preto em seu passado, presente e futuro.
Durante os anos 80 e 90, por meio da gravura em metal, traduz a Ouro Preto barroca
com suas luzes e sombras, densidades e mistérios, nos coloca na ambiência oitocentista,
revelando suas dores, mistérios e esperanças. Em entrevista ao jornalista Walter
Sebastião (BLOG..., 2018a), publicada no Jornal Estado de Minas, no dia 15 de março de
2008, a artista fala sobre sua paisagem “são poesia e tragédia, delicadeza e violência.
Trabalho com contrastes, a plástica do casario me atrai, mas gosto dela inserida no verde,
com as flores.”

• 14
Figura 9: Annamélia Lopes, Escola de Minas e Rua das
Flores, gravura em metal aquarelada, s/ data. Fonte: Foto:
Arquivo da artista. Blog de Anna Amélia, 28 nov. 2018.
Disponível em:
http://annameliarte.blogspot.com/2018/11/. Acesso em:
11 jul.2022.

Márcio Sampaio (BLOG..., 2018b) em seu texto Pórtico Barroco, diz que a artista “vem
revelando aspectos da paisagem de Ouro Preto, sua topografia e suas construções, ruas,
becos, praças, morros, vegetações – imprimindo a atmosfera peculiar dessa cidade
emblemática, impregnada de silêncios e mistérios.” O autor nos diz que Annamélia

soube assimilar o páthos singular da expressão barroca, transportando-o para o espaço


contemporâneo. Na gravura em metal e no desenho, vem realizando uma leitura da
paisagem ouropretana, lírica, de saboroso detalhismo, com o qual potencializa um sentido
de fantasia feliz, mas, trabalhando com a xilogravura, naturalmente expressionista, vai
tocar o reverso dessa paisagem, para desvelar o drama estabelecido pelos conflitos de luz
e sombra, pela exposição de mundos opostos, pelo jogo dramático das contingências
humanas (BLOG..., 2018b).

• 15
Figura 10: Annamélia Lopes, Inominável,
xilogravura e colagem, s/ data. Foto: Arquivo
da artista. Fonte: Blog de Anna Amélia, 23
nov. 2018. Disponível em:
http://annameliarte.blogspot.com/2018/11/.
Acesso em: 12 jul.2022.

Em meados dos anos 2000, Annamélia retoma a pintura à óleo, traduzindo para as telas
os aspectos da paisagem e da ambiência de Ouro Preto presentes em suas gravuras. Em
entrevista com a artista, Walter Sebastião (BLOG..., 2018a) revela que a série surgiu a
partir de um desafio de um galerista, que após comprar suas gravuras, perguntou se ela
conseguiria “o mesmo clima das paisagens na pintura”, foi assim que ela começou as
releituras das obras em óleo. A artista na entrevista fala também que gosta da
“visualidade algo ingênua, primitiva, como realizados de brincadeira” dos desenhos e
assim ela os “aproveita quando quer trabalhar a cor de forma mais direta”, assim cria e
recria diferentes visões e realidades a partir do mesmo ponto de partida.

Figura 11: Annamélia Lopes, Meus amigos, meus


inimigos, salvemos Ouro Preto, 2007, pintura óleo s/
tela, 70 x 50 cm. Foto: Arquivo da artista. Fonte:
Blog de Anna Amélia, out. 2018. Disponível em:
http://annameliarte.blogspot.com/2018/10/blog-
post.html. Acesso em: 11 jul. 2022.

No processo do constante revisitar Ouro Preto, Annamélia retoma mapas que fez para
ilustrar um guia sobre a cidade. Incialmente realiza pinturas que traduzem de forma mais
fiel o traçado da cidade, aos poucos vai se libertando em uma cartografia imaginária. A
partir de alguns marcos da paisagem a artista revela uma Ouro Preto construída de
sonhos e fantasias, povoada por animais, personagens e poesia. No texto Annamélia –
uma nova cartografia, Sampaio (BLOG..., 2018c) nos conta sobre a série:

• 16
cores fortes que respondem a uma pulsação mais emocional contaminam as formas
arquitetônica, desfazem o rigor da técnica cartográfica, para nos brindar com uma outra
paisagem impregnada de poesia. Um ‘thopos’ em que natureza e construção se
complementam com fantasia e afetividade. Espaço simbólico a indicar a existência de uma
cidade que será sempre o lugar bom para se viver e sonhar.

Figura 12: Annamélia Lopes, Festa na Roça, 2017,


pintura óleo s/ tela, 70 x 50 cm. Foto: Arquivo da artista.
Fonte: Blog de Anna Amélia, 30 set. 2019. Disponível
em: http://annameliarte.blogspot.com/2019/09/para-
quem-deseja-conhecer-ou-adquirir.html. Acesso em: 12
jul. 2022.

Jorge Luiz dos Anjos (1957) foi aluno de Annamélia e Nello Nuno, iniciando seus estudos
na primeira turma da FAOP. No período de formação, o seu olhar se volta para o entorno
e identifica duas vertentes da cidade, a da tradição barroca com seu casario, igrejas e
montanhas e a moderna da fábrica de Saramenha, bairro onde residia. A pintura emerge
trazendo as duas realidades e as suas inquietações existenciais, Jorge dos Anjos assim
as descreve: “nos primeiros trabalhos ainda muito figurativos, havia um querer fazer
crioulo, um gosto pela iconografia africana que apontava a direção, os caminhos e trilhas
a seguir”2.

2
Jorge dos Anjos – depoimento a Janaína Melo, 2002.

• 17
Jorge dos Anjos desenvolve uma série de pinturas com a presença da fábrica, o cotidiano
da cidade e do ambiente doméstico, trazendo a referência de sua gente e seu lugar.
Sampaio (2010, p. 18 e 19) esclarece que “Jorge trata-a [paisagem] com severidade,
fazendo denúncias, interpondo lhe outros assuntos, usando-a como pano de fundo para
discutir as questões cruciais da vida”, entretanto observa que “ainda consegue abrir
frestas por onde infiltrar imagens líricas, recuperando de certa maneira a memória de
vivências mais felizes” e completa “tudo reduzido em síntese formal, evertida a
perspectiva, o espaço revertido ao plano, onde forma e fundo possuem o mesmo valor.”

Figura 13: Jorge dos Anjos, Uma festa que durou um


mês, 1978, pintura óleo s/ tela, 101 x 161 cm. Foto:
Miguel Aun. Fonte: Fotoreprodução Gabriela Rangel
(2022), SAMPAIO, 2010, p.17.

Jorge dos Anjos passará por um processo de profundo questionamento de si e


transformação da sua pesquisa com o aprofundamento da busca de suas referências
ancestrais africanas. E que cada vez mais fortalecidas e elaboradas fazem corpo em seu
trabalho.

Figura 14: Jorge dos Anjos, da série Visagens,


1984, nanquim s/ papel, 70 x 100 cm. Foto:
Arquivo do artista. Fonte: Fotoreprodução Gabriela
Rangel (2022), SAMPAIO, 2010, p.22.

• 18
É do período de transição, a série Visagens, inúmeros desenhos figurativos/gestuais feitos
em nanquim sobre grandes superfícies de papéis brancos. O alto contraste dos desenhos
revela toda energia, força e presença de suas referências ancestrais. Os elementos
aparentemente caóticos da série, irão se desdobrar, simplificar, destacar criando símbolos
e signos, com uma identidade toda própria, gerando pinturas de grandes dimensões e
cores muito intensas, que se transformam em totens - em uma parceria com os artesãos
da taquara de Lavras Novas – as parcerias são uma constante em seu processo de criação.

Figura 15: Jorge dos Anjos, Balaios,


1995, tinta automotiva s/ cestaria de
taquara, 220 x 60 cm. Foto: Miguel Aun.
Fonte: Fotoreprodução Gabriela Rangel
(2022), SAMPAIO, 2010, p.24.

Sua obra vai se descolando do plano, até que os signos saltam do fundo e ganham
autonomia no espaço em chapas de ferro recortadas, dobradas, pintadas com cores fortes
ou na pureza da oxidação do material original.

• 19
Figura 16: Jorge dos Anjos, [s/ título], 1986,
chapa de aço cortada, dobrada e pintada, 180 x
201 x 35 cm Foto: José Israel Abrantes. Fonte:
Fotoreprodução Gabriela Rangel (2022),
SAMPAIO, 2010, p.114.

O ferro do chão das montanhas de minas vira arte e ocupa a paisagem. A linguagem
própria do artista ganha corpo em diferentes materiais ferro, pedra-sabão, madeira,
concreto, tela, feltro, plástico e se desdobra em um rico diálogo com o território, suas
obras estão inseridas em diversos espaços públicos, convidam à reflexão e à interação.

Figura 17: Jorge dos Anjos, produção dos totens


em pedra sabão em parceria com a comunidade de
Mata dos Palmitos, Ouro Preto, 2002. Foto: Marcílio
Gazzinelli. Fonte: Fotoreprodução Gabriela Rangel
(2022), SAMPAIO, 2010, p.37.

Ao ocupar o centro histórico de Ouro Preto com suas esculturas monumentais, em uma
homenagem ao mestre Antônio Francisco Lisboa em 2014, Jorge dos Anjos provoca a

• 20
olhar novamente a cidade, convida a sair do piloto automático, a avivar as nossas
percepções, para perceber e interagir de outra forma com o lugar, conectando e religando
as pessoas com a paisagem/território.

Figura 18: Jorge dos Anjos, intervenção escultórica em


homenagem à Antônio Francisco Lisboa na Praça Tiradentes
em Ouro Preto, 2014. Foto: Eduardo Trópia. Fonte: Captura
de tela. RIBEIRO, 2017, p.231. Disponível em:
http://www.cbha.art.br/coloquios/2017/anais/pdfs/Marilia
%20Andres%20Ribeiro.pdf. Acesso em: 12 jul. 2022.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao revisitar a trajetória e a obra dos artistas Guignard, Nello Nuno, Annamélia e Jorge
dos Anjos, percebemos que a arte é uma forma significativa de aproximação das pessoas
com os lugares. A obra de arte permite olhar, interagir, analisar, pesquisar, conhecer,
explorar, revelar, significar, relacionar de uma maneira profunda, significativa e simbólica
com a paisagem e as suas diversas camadas, confirmando a afirmação de Sampaio (2013,
p. 11) quando nos diz que “o artista pode capturar, representar e mesmo presentificar a
realidade, ordenando e reescrevendo o mundo [...] para que a percepção da vida se torne
mais clara e mais feliz”.
O artista nessa relação desvenda e revela aspectos, visões, possibilidades e por meio de
sua produção doa a sua percepção, que passará também a constituir a visão de mundo
do outro que o ressignificará a partir de suas próprias vivências, referências, trajetórias.
Institui, assim, um ciclo de renovação permanente, sempre reinaugurado na relação com
o outro.
Concluímos que por meio da arte podemos aproximar das várias vivências e referências
que constituem o ser e sua interação com o ambiente, sendo possível perceber e construir
valores de significância com o território. Por articular passado, presente e futuro, a arte
pode ser um importante instrumento para preservação da paisagem, pois conecta,

• 21
aproxima, revela e constrói camadas de significado, memória e afeto fortalecendo a
relação do sujeito com os territórios, no caso em análise a cidade de Ouro Preto.

REFERÊNCIAS
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“Estado de Minas” – sábado 15 de março de 2008. Artes Visuais. 27 set. 2018a. Disponível
em: http://annameliarte.blogspot.com/2018/09/. Acesso em: 11 jul. 2022.
BLOG DE ANNAMÉLIA. Pórtico Barroco. Blog de Anna Amélia. 28 nov. 2018b. Disponível em:
http://annamelia.blogspot.com/2018/11/. Acesso em: 11 jul. 2022.
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2018c. Disponível em http://annameliarte.blogspot.com/2018/10/sao-francisco-da-serie-
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CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem. São Paulo: Martins, 2007.
COLI, Jorge. A espiritualidade da arte. Entrevistador: Alex Antunes. Entrevista concedida ao
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MOSÉ, Viviane. A arte é o único prazer livre do ser humano: e agora? Com Viviane Mosé. 2021.
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• 22
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TOMIOKA NILSSON, Maurice Seiji. Mobilidade Yanomami e interculturalidade: ecologia,
alteridade, e resistência cultural. Tese (doutorado) – Diversitas, Universidade de São Paulo.
São Paulo, 2018.

• 23
POTENCIAIS PARA CIDADE ABERTA NO MALETTA
Da influência do planejamento urbano de Chicago
às premissas para ruptura das cidades fechadas

The Open City of Maletta: Using Chicago’s urban planning influence to


explore potentials for the rupture of closed cities / La ciudad abierta
de Maletta: De la influencia de la planificación urbana de Chicago a
los locales por la ruptura de las ciudades cerradas
Eixo temático: Cidade, política e cultura

COLLINS, Lydia

Bolsista de pesquisa Fulbright, pesquisadora do Grupo PRAXIS-EA/UFMG

Lydia.Collins512@gmail.com

FREITAS, Daniel Medeiros

Doutorado; Escola de Arquitetura da UFMG, pesquisador do Grupo PRAXIS–EA/UFMG

daniel-freitas@ufmg.br
RESUMO

O artigo parte do conceito de lugar e das premissas de cidade aberta para


discutir os potenciais dos espaços urbano e arquitetônicos de uso público. Em
um primeiro momento, resgata a influência e pontos comuns de Chicago no
planejamento urbano local. Em seguida, analisa a situação específica do
Maletta por meio de entrevistas e visitas ao local. O artigo aponta para a
importância dos modelos urbanos na definição de formas urbanas rígidas e da
segregação espacial, e avança na discussão de estratégias para romper com
essa herança e constituir novas imaginações sociais e espaciais a partir de
rupturas e permanências observadas no estudo de caso.

PALAVRAS CHAVE Sentido do Lugar, Edifício Arcângelo Maletta; Projeto


Original de Belo Horizonte; Planejamento Urbano de Chicago; Cidade Aberta.

SUMMARY

The article starts from the concept of place and the premises of an open city
to discuss the potential of urban and architectural spaces for public use. First,
the article presents Chicago’s historical influence on local urban planning. It
then analyzes Edifício Arcângelo Maletta’s (Maletta) specific situation through
interviews and site visits. The article points to the importance of urban models
in the definition of rigid urban forms and spatial segregation and, via ruptures
and consistencies observed in the case study, advances the discussion of
strategies to break with this heritage and build new social and spatial.

KEY WORDS Sense of Place, Arcângelo Maletta Building; Belo Horizonte


Original Plan; Chicago Urban Planning; open city.

• 1
INTRODUÇÃO

“Apanhado no espírito de profecia, um republicano de 23 anos, da Mata, interrompeu um


discurso para prever que ‘um dia esta nova cidade se tornará a Chicago do Brasil’.” (Annaes
do Congresso Constituinte, 1891, p. 88).

A citação acima ilustra um padrão de séculos de intercâmbio de imaginação social e


princípios de desenho urbano. Numa época em que as elites do novo mundo elaboravam
planos encomendados para as novas metrópoles republicanas, a fala do jovem político
brasileiro é emblemática da importação de padrões de desenvolvimento urbano e seria
recorrente nas décadas seguintes de crescimento da influência do urbanismo norte
americano em nosso contexto. Situado no estudo da influência de imaginações sociais na
conformação de modelos urbanísticos, o artigo apresenta resultados de uma pesquisa em
andamento que utiliza a conexão entre a história do planejamento de Chicago e Belo
Horizonte para desvelar o modo como as duas cidades incorporaram, em diferentes
contextos, princípios identificados como de uma cidade fechada.

Nas palavras do sociólogo Richard Sennett (2018), uma cidade fechada se caracteriza por
ser socialmente segregada, fisicamente rígida e culturalmente resistente à mudança –
características que podem ser rastreadas nas concepções culturais e políticas que
motivaram os primeiros rascunhos de seus planos urbanos e que foram amplificadas ao
longo do tempo por meio das políticas urbanas e dos projetos arquitetônicos. Neste texto,
parte-se do histórico de duas cidades fechadas em direção às possibilidades de construção
de cidades abertas. Para tal, selecionamos um dos estudos de caso trabalhados na
pesquisa – o sentido do lugar no edifício Arcângelo Maletta, localizado na área central de
Belo Horizonte – para sistematizar os primeiros resultados da análise em curso que, ao
final da pesquisa, pretende englobar um conjunto mais amplo de situações históricas e
contemporâneas que se apresentam como potenciais rupturas no tecido urbano planejado
das duas cidades. Neste texto, a influência histórica de Chicago nos desdobramentos do
projeto original de Belo Horizonte cumpre os seguintes objetivos: ilustrar a inflexão da
herança do urbanismo europeu para o norte americano no Brasil; e discutir a ruptura
estética e funcional modernista; lembrar das influências da cidade por meio das Escolas
de Chicago de sociologia (anos 1920) e na economia (anos 1950).

Guiados por experiências compartilhadas de urbanismo e ensino relacionadas às duas


cidades, a pesquisa mais ampla propõe desenvolver uma lente de análise com o objetivo
de identificar espaços que resistam aos princípios de planos urbanos segregados,
insustentáveis e fortemente desiguais. Para tal, por meio da articulação entre cinco
premissas para uma cidade aberta oferecidos por Sennett (2018) e de cinco critérios
delineados por nossas próprias experiências profissionais e pessoais, propõe-se avançar

• 2
na construção de critérios que possam ser incorporados à leitura dos lugares e, de modo
mais específico, ao ensino de práticas de projeto e planejamento do ambiente construído.

O artigo está organizado em três partes. Na primeira explicitamos o referencial teórico


metodológico utilizado na pesquisa e adaptado para o estudo de caso apresentado. Na
segunda discutimos a perspectiva histórica utilizada na pesquisa. Na terceira e última
parte apresentamos o estudo do Maletta. O texto concluí apresentando os resultados
preliminares da análise e confirmando a pertinência da abordagem em curso, sobretudo
o potencial metodológico e de comparação entre contextos, articulando a influência dos
modelos urbanos no uso dos espaços de acesso público com os potenciais de abertura e
ruptura dos rígidos esquemas formais e funcionais das escolas de urbanismo e
arquitetura.

REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO

Nosso referencial teórico-metodológico se situa na interface entre a geografia cultural


mais próxima da fenomenologia e suas contribuições para o conceito de lugar enquanto
espaço de identidade e resistência (CRESWELL, 1994), e espaço da vida cotidiana
(MASSEY, 1994), sobretudo o modo como este conceito foi incorporado ao campo do
planejamento e projeto de espaços urbanos (DEL RIO, 1990). Do ponto de vista da análise
histórica, o artigo mobiliza a tradição de história das ideias recorrentes nos campos da
teoria do planejamento e da arquitetura (CHOAY, 2007), com especial atenção para a
correlação entre a imaginação política e social e os princípios funcionais e formais das
cidades planejadas (SENNETT, 2018). Por fim, em relação à análise das situações
contemporâneas in loco, a pesquisa da qual este artigo faz parte privilegia práticas de
leitura do lugar e entrevistas semiestruturadas como estratégia mais adequada para o
registro de narrativas e percepções sobre os espaços estudados, complementando essa
análise com nossa vivência técnico-especialista ampliada por meio de nossas percepções
e experimentações de diferentes técnicas de registro espacial1.

Como ponto de partida, consideramos o sentido de lugar (sense of place) a partir da


tradicional sistematização proposta por Canter (1977) e suas três esferas de constituição
do conceito. A Forma, definida como o sistema de objetos conformado pelos elementos
urbanos e arquitetônicos que afetam (limitam ou potencializam) as ações no espaço. Ao

1 A pesquisa selecionou outros três casos em Belo Horizonte: o Mercado Novo e seu entorno,
o Sulacap e o Viaduto Santa Teresa, além de análises preliminares a situações análogas, como
Galeria do Ouvidor, Shopping Cidade, Praça Sete de Setembro, entre outros. A primeira parte
da pesquisa, realizada em Belo Horizonte, foi iniciada em março/2022 e tem previsão de
conclusão em dezembro/2022.

• 3
olhar para a forma, nos perguntamos: Como isso foi projetado? Quem idealizou, impôs e
construiu? Qual é o seu contexto físico e como ela dialoga com este contexto? Como ela
afeta o modo como as pessoas agem no espaço? A segunda esfera, Atividade, identifica
os sistemas de ações, usos e apropriações que os usuários do espaço realizam. Para
entender as atividades, nos perguntamos: Quais são os usos? Como eles mudaram ao
longo do tempo? Quem tem poder de decisão? Quem frequenta o espaço? Por fim, a
terceira esfera, Sentido, é definida como a percepção das pessoas em relação ao espaço
e aos usos que dele fazem. Perguntamos na análise do sentido: Como as pessoas
diferentes se sentem neste espaço? Ele é acessível? Para quem e quando? A quem
pertence esse espaço e quem poderia ser considerado intruso? Quais os limites desse
espaço? O que mudou com o tempo? O que as narrativas das pessoas têm de semelhante
e de específico?

Para melhor operacionalizar o conceito de sentido de lugar e trazê-lo para mais perto das
situações estudadas, utilizaremos a discussão proposta por Sennett no trabalho Construir
e Habitar, publicado em 2018. Analisando o modo como as cidades são construídas, o
autor argumenta contra o que chama de cidade fechada – segregada, rígida e incapaz de
se adaptar às mudanças e controlada. Seu avesso, a cidade aberta, seria aquela onde o
conflito e a complexidade são constantemente mobilizados como ferramenta de
construção da cidade e na qual os planejadores admitem a sobreposição de múltiplos
usos, potencialmente fomentando a negociação contínua por meio de seus elementos.

Cabe destacar que parte dos exemplos de cidades fechadas utilizados por Sennett são
relacionados ao século XX e motivados pelo domínio da racionalidade de mercado sobre
a forma urbana. No entanto, o autor torna possível identificar nas cidades barrocas – e,
por extensão, nas cidades planejadas da virada do século e no urbanismo modernista –
um sólido conjunto de premissas que, conforme proposto por Sennett (2018), nos
impedem de atrelar a experiência do tempo ao lugar. A proposição do autor, e a
justificativa para o modo como nos utilizamos dela, reage de modo propositivo a esta
impossibilidade que, acreditamos, decorre do agravamento das determinações da
racionalidade econômica sobre o espaço, mas é legitimada e amplificada por problemas
internos ao campo do planejamento e arquitetura. Isso tudo resulta no que Sennett
chama de cidades quebradiças (brittle cities), cada vez mais fechadas à experiência do
lugar e aos potenciais da vida urbana. Entendemos que o modo como o autor
operacionaliza os potenciais de ruptura que ele recolhe de sua longa trajetória
profissional, boa parte dela situada em Chicago, dialoga com os potenciais que nossa
pesquisa vem registrando nos estudos de caso localizados no centro de Belo Horizonte.

Para viabilizar formas urbanas abertas, Sennett (2018) defende ampliar o papel do
conflito e da complexidade enquanto ferramentas de construção da cidade, incentivando
a negociação contínua e permitindo a existência de dissonâncias e incoerências na cidade.
No lugar de rejeitar o que não se encaixa no plano, as cidades abertas seriam um reflexo

• 4
mais direto das formas como vivemos - não lineares, incompletas, conflituosas e em
constante processo de autodescoberta. Para o autor, as formas abertas poderiam ser
definidas a partir de cinco premissas:

1. Centros urbanos síncronos, definidos pela sobreposição de usos e atividades


verdadeiramente distintas. Por exemplo, um mercado aberto durante o dia e que
funcione como local de shows à noite e onde vendedores possam vender seus
produtos. Esta sincronicidade requer um convite à mistura ao invés de imposição
de usos, as pessoas seriam atraídas porque ele oferece algo não facilmente
acessado em outro espaço.

2. Elementos de orientação para frequentadores, uma vez que a complexidade


enriquece a experiência, mas essa experiência pode ser diminuída se a
desorientação for muito forte, sendo importante a existência de elementos
urbanos com a função de permitir e comunicar a especificidade do lugar.

3. Formas incompletas que materializem as partes de um todo e sejam capazes


também de, com o tempo, evoluir para atender à necessidade de mudança dos
usuários, não esgotando as possibilidades de usos futuros no momento de projeto
e construção.

4. A importância de membranas porosas, usando uma metáfora da biologia para


barreiras que permitam à matéria fluir, mas sem uma relação totalmente fluida
com o exterior. Ao construir membranas nas bordas dos espaços que envolvem
tanto porosidade quanto resistência, os planejadores podem melhor mediar as
tensões entre os lugares.

5. Formas urbanas que plantem sementes para construção de lugares, estimulando


resultados específicos a cada contexto e multiplicidade de cidades abertas.

A partir das premissas acima, selecionamos cinco critérios que nortearam nossa escolha
de estudos de caso: (1) espaços de uso público interno para ampliar as possibilidades de
estudo comparado (uma vez que os espaços públicos ao ar livre em um clima como o de
Belo Horizonte diferem consideravelmente das realidades sazonais de Chicago); (2)
espaços com maior diversidade de raça, classe e idade; (3) espaços localizados dentro
da cidade planejada, o que nos permite estudar como as pessoas resistem às condições
rígidas e introduzem novas formas, usos e significados; (4) espaços com reutilização de
edifícios antigos em centros urbanos densos (lugares com múltiplas camadas de história);
(5) espaços que produzem cultura (artística, culinária, política, música, dança, pintura e
lazer) para entender como o trabalho cultural dialoga com outros usos e como a cidade
pode estimular a criação de novas culturas. A seguir, apresentamos uma breve história

• 5
compartilhada de Chicago e Belo Horizonte para em seguida operacionalizar as premissas
de uma cidade aberta no Maletta.

BELO HORIZONTE E CHICAGO: PLANOS RÍGIDOS E CIDADES FECHADAS

Em 1893, as elites de Minas Gerais planejaram construir uma nova capital a fim de se
afastar do passado colonial representado por Ouro Preto. A cidade, posto avançado de
Portugal no estado e construída ao longo de uma rota de mineração no alto das colinas,
era considerada um “fim de linha” no qual todas as estradas terminavam no asfixiado
conjunto de ruas de paralelepípedos, quarteirões apertados e forte política colonial.
Voltando-se para o futuro, as elites mineiras desejavam um estado inserido no século XX
e que fosse “empório comercial, centro industrial e santuário intelectual” (Annaes do
Congresso Constituinte, p. 88). Após anos de intenso debate, elegeu-se uma região
localizada no centro do estado, no vale do arraial Curral Del Rey, para abrigar a futura
capital. Com recursos garantidos e com a escolha do engenheiro Aarão Reis para
comandar a Comissão Construtora da Nova Capital (CCNC), os proponentes começaram
a buscar situações urbanas existentes para servir de modelo para o projeto.

Na mesma época, a cerca de 8 mil quilômetros ao norte, Chicago era uma das metrópoles
que mais crescia no mundo. A localização chave às margens de um dos maiores
suprimentos de água doce do planeta e no extremo oeste da expansão americana,
tornava a cidade o espaço ideal de porta de entrada para o ocidente. Nesta época, Chicago
já era a segunda maior cidade dos EUA graças à onda de migrantes que alimentavam
suas fábricas, matadouros, armazéns de frigoríficos, siderúrgicas e fábricas de cimento.
Após o incêndio de 1871, impulsionada pela recuperação que fez emergir uma nova malha
urbana, a cidade rapidamente se tornou o principal símbolo de progresso e inovação no
coração do capitalismo da virada do século. A construção dos edifícios mais altos do
mundo, o aterramento de partes do Lago Michigan para construir portos e a ampla
estrutura ferroviária fez de Chicago a principal articulação entre as costas leste e oeste
da América do Norte, conectando regiões rurais díspares e atraindo milhões de novos
moradores da Europa, Ásia e sul dos Estados Unidos (Cronon, 1991). A fama global do
rápido crescimento e transformação foi amplificada em 1893 por meio da Columbian
World 's Exposition, quando a cidade sediou uma luxuosa exibição de tecnologia e estilo
em uma monumental estrutura neoclássica projetado pelo urbanista Daniel Burnham. A
escala da feira superou sua antecessora, a exposição de Paris quatro anos antes, exibindo
exposições de trinta e seis nações e quarenta e seis estados americanos (Wade, 1983).

Na época, a CCNC de Belo Horizonte se alinhava aos padrões convencionais de projeto


urbano, se aproximando das soluções de Versailles (elaboradas por Le Notre em 1661),
Paris (elaboradas por Haussmann em 1860) e de Washington DC (elaborados por Charles

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L’Enfant em 1791). Do ponto de vista da forma urbana, em síntese, o design de inspiração
barroca foi transposto por meio da malha ortogonal sobreposta a largas avenidas
diagonais que conectam locais estratégicos, incluindo edifícios governamentais e
monumentos. Adelman (1974) identifica como uma tendência dessa transposição a
prioridade da estética sobre a função/conteúdo. Para o autor, o desenho de Aarão Reis
se comprometeu com rígidas diretrizes geométricas internas, em alguns casos ignorando
a topografia e as funções urbanas, criando situações com declives acentuados e
interrupções do traçado2.

Concomitantemente, Chicago veio a se tornar uma espécie de irmã mais nova dos
modelos urbanos europeus que, tal como Nova York, transplantava de modo radical a
grelha ortogonal e organizava as camadas dos novos sistemas do capital industrial e de
controle social. Neste momento, a ampla difusão da estética urbana de Chicago e demais
cidades americanas contribuiu para que o modelo europeu fosse considerado, aos olhos
dos planejadores e das elites mineiras, já obsoleto e aquém dos novos símbolos de
modernidade. A construção do viaduto Santa Tereza e a demolição do prédio dos correios
para construção do edifício Sulacap é apenas um entre muitos exemplos do deslocamento
da influência de modelos externos em nosso contexto (Figura 1).

Figura 1: O prédio do Correios de Belo Horizonte,


demolido e substituído pelo complexo do edifício Sulacap
Sudameris no início da década de 1940.
Fonte: Arquivo Público de Belo Horizonte / Google Earth

Importante lembrar que, mais do que inspirar a estética urbana, a solução formal dos
modelos europeus se orientava pela lógica do mercado de terras e pela repressão a
revoltas sociais (MUMFORD, 1961). As largas avenidas que cortavam o denso labirinto de
ruas eram pensadas para facilitar o rápido movimento de tropas em áreas da cidade com

2Uma descrição mais completa das concepções do Projeto Original de Aarão Reis e uma análise
mais aprofundada das críticas ao papel dos modelos e desdobramentos da urbanização pode
ser encontrada em CASTRIOTA (1998), LEMOS (1988) e MONTE-MOR (1994).

• 7
convulsões e, ao mesmo tempo, fomentar, por meio do poder do Estado, diversas
oportunidades de investimento imobiliário e contrato de obras públicas. Conforme
Adelman (1974), “os historiadores da arquitetura argumentam que onde quer que os
homens tenham desejado simbolizar a autoridade e a vontade do Estado [...], eles
adotaram a linguagem do projeto cívico barroco” (p. 52). Para Sennett (2006), trata-se
da gênese de um modelo de cidade fechada no qual cada elemento tem seu lugar e
qualquer coisa que não se encaixe perfeitamente ao plano é rejeitada. Uma das
consequências é o que o autor identifica como expulsão das "experiências que se
destacam porque são contestadoras ou desorientadoras; coisas que ‘não se encaixam’
são diminuídas em valor” (p.4)

Cabe lembrar que, nesta época, tanto no Brasil quanto nos EUA havia uma enorme
demanda de reestruturação dos sistemas econômicos e sociais relacionados ao fim da
escravidão. Nos Estados Unidos, o fim da escravidão em 1865 motivou a Reconstrução
Americana que buscava criar direitos para os escravos libertos. O movimento teve vida
curta e, em 1877, uma resistência violenta e persistente encerrou a Reconstrução e
implementou as Leis Jim Crow, conjunto de medidas de reforço da segregação racial e
que permaneceriam vigentes até a era dos Direitos Civis em 1950. Neste momento, afro-
americanos libertos começaram a migrar para as cidades do norte onde encontravam
barreiras sociais e políticas reforçadas pela forma urbana, impedindo seu crescimento
econômico. Para muitos autores (Rothstein, 2017; Du Bois, 1899; Massey and Denton,
1998), essa é a raiz da segregação física de classes baseada na raça e que continua a
definir as cidades americanas modernas. Por exemplo, a exclusão dos afro-americanos
da já citada Columbian Exposition, fez com que o conjunto neoclássico pintado na cor
branca fosse apelidado de “Cidade Branca”, “o grande elefante branco americano” ou “a
feira mundial do americano branco” (Rudwick e Meier, 1965, p.354). O discurso do
abolicionista Frederick Douglass resume a perpetuação do racismo na cidade liberal
“progressista” e o modo ela como zomba do “atraso” dos estados escravistas do Sul:

“Em sua bajulação a esses cruéis assassinos, você nos dá um tapa na cara, e com o mesmo
preconceito superficial que nos mantém na posição inferior em sua avaliação, esta
exposição negou o mero reconhecimento a oito milhões e um décimo de seu próprio povo.
[...] Por que, em nome do céu, você leva ao peito a serpente que ele picou e esmaga a
raça que agarrou o sabre e ajudou a tornar a nação uma e [portanto] a exposição possível?”
(TOPEKA CALL, 1893)

No Brasil, a abolição da escravatura não mudou as condições econômicas, sociais, e


politicais dos afro-brasileiros. Em Minas Gerais, cuja economia havia sido construída e
estruturada na escravidão, a adequação da mineração e da agricultura à abolição se
estruturam em bases muito semelhantes. Segundo Pereira (2019), “a 'modernização da
mineração' proposta pelos liberais locais não rompeu completamente com a tradição
colonial – portanto, não rompeu com os valores políticos e ideológicos que sustentavam
a dinâmica de uma sociedade escravista” (p.22). A reprodução da sociedade escravista

• 8
persiste, por exemplo, no esforço de embranquecer a população, subsidiando a imigração
europeia e simultaneamente excluir muitos dos trabalhadores afrodescendentes e nativos
que detinham a maioria dos empregos na construção civil da plena cidadania legal e
direitos à terra (Conrad, 1972). Ao propor a nova capital, desejava-se romper com o
domínio imperial português e criar condições para “suplantar o passado colonial – não
necessariamente o passado escravista – e construir um futuro republicano” (McDonald,
2019, 2). Tal como observado em Chicago, foram reproduzidos semelhantes sistemas de
controle sobre uma grande parcela da população, sobretudo via exclusão intencional de
seu acesso à cidade e ao poder político. Nos dois casos, a forma urbana guarda um
precedente colonial fortemente enraizado na exclusão e na exploração de uma parcela da
população expulsa para a periferia dos centros urbanos.

Em Belo Horizonte, o crescimento urbano orientado pela especulação imobiliária da época,


forçou trabalhadores que construíram a cidade e imigrantes a viver fora do centro
planejado. Em nome da integridade do plano, a Comissão Construtora negava títulos da
terra aos trabalhadores (McDonald, 2019, p.2). Para Adelman (1975), os planejadores da
época projetaram cidades para reduzidas funções, desconhecendo as mudanças recentes
da urbanização, argumentando que “a extensão não planejada de ruas e casas na zona
suburbana e colonial não foi culpa de Reis. A rapidez do crescimento populacional da
cidade causou mudanças na forma de Belo Horizonte que nenhuma previsão poderia ter
evitado.” (p.67). No entanto, as políticas sociais e econômicas que Reis e a CCNC
colocavam em prática ilustram o contrário desse papel passivo do urbanista frente aos
resultados socioespaciais futuros. Há suficientes indícios de que os planejadores tomaram
a decisão de não planejar para a população de pobres e trabalhadores orientados pelo
rígido traçado e pela definição estrita de quem tem e não tem o direito de ocupar o interior
da Contorno. Discordando do argumento de Adelman, as causas da segregação eram
conhecidas e foram tratadas de modo excludente como estratégia de criação de uma
cidade nos moldes dos modelos internacionais da época. Os ideais utópicos da CCNC
insistiram nas premissas da cidade fechada, seja por meio do controle rígido e estético
da Paris de Haussmann, seja por meio da funcionalidade monumental de Chicago, seja
pelo modo como lidou com problemas sociais e com a ação do mercado.

Em tempo, a comparação histórica entre as cidades nos possibilita avançar em uma


segunda camada de análise, a troca de percepções entre pesquisadores formados em
contextos diferentes, mas que se retroalimentam por meio da análise de situações
urbanas compartilhadas. Trata-se de uma dimensão que foi discutida na pesquisa por
meio de autores influentes no campo e que vivenciaram as transformações e influências
de Chicago sobre nosso urbanismo e, também, no intercâmbio mais próximo entre
integrantes da pesquisa que originou esse artigo. Ao nosso ver, refletir sobre a história e
sobre os espaços cotidianos em companhia do olhar estrangeiro desloca percepções
naturalizadas, ao mesmo tempo em que busca analogias e construções de narrativas que
dão novo sentido ao que se observa. Deixando a discussão das influências dos autores

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para outra oportunidade e caminhando mais próximo da percepção dos integrantes da
pesquisa, observou-se que o deslocamento pela desajeitada malha ortogonal de Belo
Horizonte nos envia diversos sinais de que o desenho se comporta como fragmento de
futuros imaginados para outros contextos que, em contato com nossa frágil república
oligárquica, consolida e naturaliza as bases de segregação e poder. Ao longo de nossa
história, diferentes modelos urbanos vêm sendo transpostos para nossa realidade por
meio de planejamentos tecnocráticos e centralizadores desatentos à escala local; rígidos
planos de zoneamento funcionalista que tão bem materializam nosso autoritarismo
político; modelos rodoviaristas que deixaram cicatrizes profundas no tecido urbano;
requalificações urbanas e reconfigurações radicais da cidade à racionalidade do mercado,
entre outros.

A análise de casos isolados com a do Maletta busca entrar no que o ativista negro
americano Terry Marshal, em resposta à violência racial nos EUA, chama de “batalha da
imaginação”. Para o Marshal, “A imaginação é crucial para o movimento social. Se as
pessoas não podem imaginar um mundo maior, então elas não podem lutar por ele”
(SHILLINGFORD, 2015). O modo como as pessoas convivem e reinventam um edifício
modernista no centro planejado de uma capital revela um modo específico de interação
com o espaço, diferente das complexas relações espaciais em territórios populares como
favelas, ocupações urbanas e áreas de loteamento popular periférico, diferente também
dos espaços livres de uso público localizados na cidade ou mesmo na área central. Dentro
desse tipo de arquitetura que abriga uma vida urbana, as premissas da cidade aberta
parecem se configurar de uma maneira que nos permite enxergar com maior nitidez a
importância da conformação dos lugares e tensionar de modo mais próximo a correlação
entre forma, atividade e sentido.

POTENCIAIS PARA A CIDADE ABERTA NO MALETTA

Optamos por registrar o estudo de caso do Maletta por ter sido o primeiro concluído dentro
da pesquisa e o que melhor atende aos nossos critérios - espaço interno, uso diverso,
localizado no centro planejado, espaços reaproveitados e local de produção cultural -,
além de ser a situação com maior acesso a entrevistas e informações secundárias.
Especificamente para este estudo de caso, a pesquisa realizou oito entrevistas
identificadas no texto da seguinte forma: (1) historiador local, (2) dona de restaurante,
(3) dono de uma escola de panificação, (4) cabeleireira, (5) empresária de moda, (6)
dono de apartamento, (7) assistente social e (8) consultor de pequenas empresas. A
análise foi complementada por conversas informais com amigos e conhecidos que
frequentam os eventos, bares e lojas do Maletta, além de dez visitas ao local realizadas
no primeiro semestre de 2022, e informações de fontes secundárias. As transcrições das
entrevistas foram inicialmente sistematizadas de acordo com as esferas do sentido de

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lugar - forma, atividade e sentido -, e, em um segundo momento, analisadas a partir de
observações in loco a partir das premissas de Sennett.

O Maletta é um dos principais edifícios do centro de Belo Horizonte. Foi construído no final
da década de 1950, no local onde havia sido construído e demolido, sem razão justificável,
outro importante edifício da cidade planejada, o Grande Hotel, luxuoso e monumental
edifício localizado em ponto nobre da nova capital, situação na qual é possível notar como
a jovem arquitetura eclética de inspiração europeia já era considerada obsoleta em
relação ao fascínio dos modernos edifícios verticais. O Maletta, uma dos primeiros e mais
radicais exemplares da arquitetura moderna na cidade, foi planejado para ser o maior
centro de compras da época e tinha como objetivo criar uma cidade dentro de sua
estrutura de 81 mil metros quadrados, 19 andares de espaço comercial, 642 salas, 72
lojas, além dos 31 andares residenciais com 319 apartamentos (COSTA, 2022). Com o
passar dos anos, o edifício ganhou notoriedade como ponto de encontro cultural, no qual
intelectuais e artistas passavam pelas residências dos andares superiores e frequentavam
os bares dos andares inferiores. Durante a ditadura militar (1964-1985), o edifício era
considerado um dos portos seguros para a resistência local. A proposta de criar uma
cidade dentro de outra cidade ainda hoje é um referencial importante na percepção das
pessoas diante ao modo como as formas, usos e sentidos colocam para dialogar uma
complexa sobreposição de lojas, residências, escritórios, bares e locais de circulação
intensa (Figura 2).

Figura 2. Corredor de entrada e a Cantina


de Lucas à direita, restaurante tradicional.
Fonte: Acervo próprio.

Sessenta anos após a construção do complexo, buscamos entender como o edifício ainda
incorpora, complexifica ou rejeita os elementos da Cidade Aberta, identificando situações
que, dentro da aparente rigidez da arquitetura e da cidade planejada, abrigam maior
abertura e fluidez. Cientes das inúmeras possibilidades de interpretação, não estamos
tomando como ponto de partida que o Maletta é um edifício perfeitamente “aberto”, mas
treinando nosso olhar para identificar potenciais de abertura nos espaços e, também,
suas contradições, conflitos e restrições.

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O edifício possui dois acessos para a cidade, um deles sem porta, permitindo
permanentemente que a cidade transborde para dentro do prédio ou que o prédio se
derrame sobre a cidade. Como observou um dos entrevistados, "ao subir as rampas que
marcam as entradas, você não está saindo da Rua da Bahia ou da Avenida Augusto de
Lima, mas, de muitas maneiras, continua subindo essas ruas para dentro do prédio". Em
termos formais, os dois acessos são marcados de modo discreto e, se você não estiver
atento, pode passar direto sem perceber a entrada (Figura 3). No entanto, observando
mais de perto, você notará que sempre haverá pessoas aglomeradas em torno das
entradas e da rampa aberta, convidando você a entrar no edifício. Os elementos acima
conformam um espaço de fácil orientação (segunda premissa de Sennett), fundamental
para que frequentadores assíduos ou não se sintam confortáveis para explorar a
complexidade dos usos internos.

Figura 3. Entrada do Maletta vista pela Avenida


Augusto de Lima.
Fonte: Acervo próprio.
Durante as entrevistas, as pessoas utilizaram diferentes metáforas para representar o
Maletta para os integrantes da pesquisa. Para um dos entrevistados, "o Maletta tem vida
própria, é antropomórfico", destacando o modo como o edifício dialoga com a cidade e se
comunica permanentemente com as ruas que o cercam. O proprietário de um dos
apartamentos observou: “O Maletta troca de roupa ao longo do dia, à medida que as
muitas pessoas que frequentam o prédio passam por seus corredores”. Segundo o mesmo
entrevistado, "Se for de manhã, o Maletta está vestindo a roupa dos moradores que estão
saindo para o trabalho, voltando do turno da noite, ou frequentando as lojas para suas
compras diárias". As falas acima confirmam uma percepção entre os entrevistados de que
a arquitetura e a inserção do Maletta possuem uma especificidade que o distingue dos
demais edifícios da área central. Grande parte das metáforas citadas busca lidar com a
sincronicidade das funções do edifício (primeira premissa de Sennett), fundamental para
conformar narrativas capazes de lidar com a diversidade de usos sem simplificações ou
regras de restrição.

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A organização da vida comunitária também exerce papel importante na rotina e percepção
do edifício. De acordo com um dos entrevistados, "há um certo sentimento de
solidariedade entre os moradores e, durante a pandemia, muitos vizinhos se organizaram
para apoiar os vizinhos mais vulneráveis". Além disso, o proprietário do apartamento
entrevistado informou que, também durante a pandemia, os moradores puderam pagar
aluguel atrasado, estratégia emblemática de uma certa agilidade das relações sociais da
comunidade que permite que novas ações dessa natureza se viabilizem de forma rápida.
Os entrevistados creditam isso à história do edifício como um local de resistência e
coletivismo, mas também à forte e consolidada estrutura de administração do edifício.
Apelidada de “microeconomia”, a associação do condomínio organiza serviços de reparo,
limpeza e até uma brigada de bombeiros.

Importante registrar que a administração mantém segurança em cada acesso, tornando


o edifício semipermeável ao público. Nos espaços comerciais do primeiro e segundo andar
há uma nota da associação do condomínio proibindo a entrada de vendedores ambulantes
(Figura 4). Segundo um dos entrevistados, isso ocorreu em função de pequenos furtos
realizados por pessoas se passando por vendedores. A permeabilidade entre o público e
privado no Maletta dialoga de modo próximo ao conceito de membrana de Sennett, no
qual as fronteiras entre os espaços não devem ser completamente fluidas ou
impermeáveis, mas propor uma porosidade continuamente negociada. Para Sennett: “A
porosidade existe em diálogo com a resistência: um diálogo que às vezes significa que a
célula está aberta a ser inundada e às vezes é retentiva” (p. 250). Aqui, o limite poroso
é uma ferramenta que o corpo administrativo do edifício está usando para definir quem
tem acesso ao espaço interior semipúblico, quem pode inundar o espaço. Embora não
seja levantado nas entrevistas, observamos que a identidade do Maletta como um lugar
aberto a todos é tensionada nesse caso. Somente depois de passar pelo segurança, a
partir de critérios relacionados ao potencial de consumo, pertencimento ou não à
comunidade residente e estigmas relacionados à raça e classe social, você pode entrar
no prédio.

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Figura 4. Aviso de proibição de acesso a vendedores ambulantes
e, à direita, segurança contratado para controlar o acesso.
Fonte: Acervo próprio.

Uma vez dentro do prédio, você é recebido por um conjunto de lojas, restaurantes e
bares, quase sempre movimentado e com atividades que dialogam com o centro síncrono
nos termos de Sennett (2018). No coração do primeiro andar, você se depara com uma
escada rolante de grandes dimensões, a primeira de Belo Horizonte (Figura 5). Na época
da construção houve um investimento financeiro significativo nesta infraestrutura, atípica
em espaços construídos para moradores de classe baixa e média. Porém a escada está
quebrada há décadas, sem previsão de volte a funcionar. Ainda assim é um elemento
cuja forma e escala permitem aos visitantes se orientar dentro do espaço do edifício,
demarcando claramente o acesso ao segundo piso. Próximo à escada, fora do eixo visual
principal, há ainda uma rampa circular confortável, uma segunda opção de acesso.

Figura 5. Escada rolante do Maletta.


Fonte: Acervo próprio.

• 14
No segundo andar, encontramos uma feira que a associação de pequenos negócios
patrocina todos os meses na ampla área de circulação central na qual dezenas de pessoas
se distraem olhando roupas de brechó, artesanatos, livros e discos usados (Figura 6). O
ambiente é animado ainda que desconfortável, com iluminação deficiente, problemas de
manutenção e ruído de conversa e trânsito. Um dos entrevistados comentou que “as
pessoas vão a Maletta não pela qualidade da acústica ou iluminação, mas pela
disponibilidade de socialização em um lugar, porque é um espaço que produz identidade”.
Na mesma linha, a empresária de moda disse sem rodeios: “O Maletta está mal
preservado”. No entanto, na mesma frase, completou que este foi um excelente lugar
para iniciar seu negócio, em grande parte pela história do edifício e por ser um ponto de
encontro de cultura, gastronomia, literatura e arte.

Figura 6. Feira de artesanato e economia popular no


segundo piso do Maletta.
Fonte: Acervo próprio.
Em um canto mais escondido, encontra-se um estúdio de cabeleireiro dirigido por um
casal de empreendedores. Quando questionados sobre sua decisão de se instalar no
Maletta, eles também creditaram sua história às especificidades do edifício enquanto um
local de resistência e cultura. A visão por trás do estúdio é “fornecer serviços holísticos
para cabelos cacheados, especialmente para mulheres negras”. Ao refletir sobre a cultura
em que foram criados e que privilegia os padrões de beleza eurocêntricos, eles
informaram que seu trabalho é um ato de resistência e queriam estar em um lugar que
tivesse esse valor também.

• 15
A brisa das varandas no entorno convida você a sair do espaço central e percorrer os
corredores que passam por mais restaurantes e bares, até chegar a uma ampla varanda
com vista para a Augusto de Lima (Figura 7). Neste espaço, que circula a fachada voltada
para a rua, você encontra mesas e cadeiras quase sempre ocupadas por pessoas
fumando, bebendo, conversando e apreciando a vista. A varanda se abre para a copa das
árvores, dando a sensação de estar em uma casa de árvore, mesmo estando acima de
um dos cruzamentos mais movimentados da cidade. “Você se sente em cima das
árvores”, disse a dona do restaurante que ocupa uma das lojas da varanda. A entrevistada
conta que sua preferência sempre foi ter um restaurante no centro da cidade. “Aqui tem
tudo. É acessível a todos os tipos de pessoas, idosos, estudantes e profissionais. Você
pode encontrar qualquer coisa no Centro.” Mas nem tudo é tão ameno. Ela também relata
a presença persistente da poluição sonora e atmosférica que a lembra da proximidade da
rua, situação que exige a limpeza diária do espaço para livrá-lo da poeira.

Figura 7: Desenho das lojas na varanda, estratégia


investigada na pesquisa para registrar percepções do
olhar estrangeiro sobre os lugares analisados.
Fonte: Acervo próprio.

Na hora do almoço, quando profissionais liberais, trabalhadores de serviços, estudantes


idosos e moradores começarem a ocupar as mesas dos corredores, você observará o
segundo traje do Maletta. Como disse um entrevistado, “não há realmente nada de
especial na comida ou nos corredores onde você come, as pessoas vão lá para se
socializar, porque é um lugar especial, porque tem identidade”. Seguindo pela varanda,
você encontra uma escola de panificação com características mais evidentes de
remodelação recente do espaço, incluindo janelas semitransparentes com aros de metal
escuro e plantas em cascata sobre a entrada. O proprietário adquiriu o espaço em 2013,
lançando uma galeria de arte no entorno exclusivamente comercial do segundo piso do
Maletta. Na época, havia principalmente gráficas e lojas vazias no local. Com o tempo, o

• 16
espaço tornou-se um bar e, em 2017, o proprietário iniciou o processo de adaptação do
espaço para o uso atual. Segundo o entrevistado, ele teve uma boa experiência com a
associação do condomínio durante a reforma, impressão também compartilhada pelos
outros empresários entrevistados.

Observa-se aqui a terceira premissa de cidade aberta - a forma incompleta. Embora o


edifício possua uma forma externa rígida, necessária para suportar os mais de trinta
andares de espaço de uso misto, ele conseguiu manter uma estrutura interna vibrante e
adaptável. Os corredores são ladeados por essas formas incompletas, como módulos de
“caixas de sapato”, pequenos e acessíveis o suficiente para que empresas diversas e de
baixo rendimento sobrevivam. Como evidenciado pelas múltiplas vidas da loja que hoje
abriga a escola de panificação, o espaço possui boa capacidade de adaptação a diferentes
formas e atividades. A garantia de boa visibilidade e acessos amplos e de qualidade
contribuem para essa condição.

No entanto, quando levantamos esse atributo aparentemente positivo para outros


entrevistados, alguns responderam com uma pergunta: “mas se adaptar a quem?” A
crítica seria uma resposta à chegada de novos usos cada vez mais sofisticados ao local.
Conforme observado por um arquiteto local, este não é o mesmo efeito de gentrificação
tal como experimentado nos EUA, uma vez que no Maletta não há necessariamente uma
diferença grande de preços. O que parece ocorrer é que o público popular tradicional nem
sempre se sente confortável nos espaços mais novos, sendo mais uma ameaça
comportamental do que um deslocamento financeiro. O dono da escola de panificação
confirmou que não houve mudança na mensalidade do condomínio e acredita que se
houvesse as empresas iriam embora e não haveria dinâmica comercial suficiente para
uma rápida substituição dos negócios.

Assim, quando olhamos para as formas incompletas em relação às mudanças culturais


que acontecem, fica evidente que elas podem ser alteradas a depender dos desejos
sociais. A inversão dos usos do espaço da escola de panificação coincide com o comentário
de um entrevistado de que os últimos dois anos começaram a dar sinais de um novo
despertar. À medida que mais atividades fluem para o Maletta pós-pandemia, alguns
temem a perda da cultura que garante sua identidade. Importante notar o modo como
essa tensão espacial coloca em jogo uma disputa e um debate mais amplos, e que
reverbera na forma espacial, convidada a exercer um papel de mediação do convívio entre
diferentes, podendo potencializar ou invisibilizar relações sociais diversas a depender do
modo como o espaço é adaptado por aqueles que exercem poder sobre sua conformação.

• 17
Em suporte à resiliência do Maletta, o proprietário do apartamento comentou que o
edifício tem uma capacidade incomparável de manter sua identidade. Segundo o
entrevistado, mesmo durante a pandemia, que obrigou alguns negócios a fechar, a
dinâmica do edifício não mudou e continua a encarnar uma cultura de resistência. O baixo
custo de aluguel, uma base consistente de clientes e a localização central garantem que
as empresas recebam os clientes, ao mesmo tempo em que lhes dão espaço para inovar
dentro da cultura do edifício.

Figura 8. Bares localizados nos corredores e varanda


do segundo piso do Maletta
Fonte: Acervo próprio.
À noite, a diversidade do Maletta fica ainda mais evidente. De quinta a domingo, os bares
abrigam diferentes públicos, raças, gêneros e sexualidades, em centenas de mesas e
cadeiras de plástico que se espalham pelas calçadas e pelas varandas (Figura 8). Esta é
a última mudança de roupa do Maletta. De modo geral, os clientes mais jovens vão para
a varanda do segundo andar ou para os bares da Rua Bahia e os não tão jovens
frequentam os bares mais antigos do andar principal. Com base no preço relativamente
baixo da comida e da bebida, os bares são acessíveis a muitos moradores, mas há quem
diga que o segundo andar ficou mais caro nos últimos anos.

Trabalhando para lidar com essa mudança de identidade está um grupo de pequenos
empresários que se reúne uma vez por semana para participar de sessões de capacitação
oferecidas por um serviço municipal (Figura 9). Motivados tanto pelo crescimento de seus
negócios após os efeitos da pandemia, quanto pela sustentação da cultura do Maletta, o
grupo definiu três valores centrais para a associação: comunicação, resistência e
diversidade. Assim, os empresários vivem uma contradição – conciliar o aumento do
público com a preservação da cultura de resistência que originalmente os atraiu para o
edifício e sustenta seus negócios. Este tipo de organização, quando se articula com a
identidade das áreas públicas do edifício, conforma uma maior capacidade de ação dos
envolvidos sobre a forma urbana e arquitetônica, um potencial de acessar dispositivos de
criação de cidades mais cidade abertas.

• 18
Figura 9. Reunião semanal do grupo de pequenos
empresários do Maletta
Fonte: Acervo próprio.

Os elementos de cidade aberta observados no Maletta – usos sincrônicos, orientação,


membrana porosas e formas incompletas – possuem papel fundamental na especificidade
do edifício. Nossa interpretação, no entanto, é que o caráter particular é apenas metade
do trabalho de criação de cidades mais justas, sendo importante conciliar essa
1 dimensão
com o papel que o espaço deseja e pode exercer na sociedade. No caso de Maletta, há
uma sólida identidade social enraizada no passado de resistência e vida comunitária.
Talvez isso seja uma identidade em si mesma, a capacidade de se adaptar àqueles que
habitam o espaço mantendo uma estrutura orientada por valores de conexão e
socialização. Para construir resistência, precisamos de estrutura, tanto física quanto
social.

RESULTADOS

Tomando como ponto de partida a operacionalização do conceito de lugar através de


premissas para uma cidade aberta, discutimos os desdobramentos de duas cidades
planejadas enquanto possibilidade de contextualizar situações contemporâneas de uso e
percepção do espaço urbano-arquitetônico. A discussão histórica, insuficiente neste artigo
para esgotar o que vem sendo desenvolvido pela pesquisa, cumpre o papel de colocar em
evidência a relação entre o papel dos modelos urbanos, a consolidação da cidade fechada
e as determinações políticas e econômicas. Optamos por nos concentrar no momento de
inflexão de uma influência europeia para a norte americana, mais próxima da concepção
do Maletta e do debate que ele nos possibilita.

Sobre a escolha do Maletta e, de modo mais amplo, das áreas centrais planejadas como
objeto de análise, buscamos demonstrar como este recorte nos ensina a identificar o
modo como diferenças e potenciais rupturas podem ou não florescer dentro de estruturas

• 19
fechadas e sistemas que as reprime. Neste sentido, observamos uma tendência dentro
dos estudos urbanos recentes sobre Belo Horizonte de, diante de uma demanda de
deslocamento legítimo do olhar para fora da cidade planejada, reduzir a complexidade da
área central enquanto cidade formal ou lugar de segregação, o que, argumentamos,
invisibiliza diversas ações de pessoas de classe baixa e média que, cotidianamente,
enfrentam as imposições, conflitos e contradições desse espaço urbano. O centro é
relevante porque sua diversidade que existe em conflito e em harmonia demonstra uma
ruptura importante de segregação.

As informações obtidas nas entrevistas e sua relação com a análise preliminar dos espaços
urbano-arquitetônicos nos permite avançar na identificação de formas e atividades mais
ou menos permeáveis à cidade aberta. Neste sentido, a escala do Maletta, possível de ser
identificada em diferentes pontos da área central, foi adequada tanto para a leitura do
lugar quanto para abrigar os potenciais de imaginação espacial investigados. Três
desdobramentos da pesquisa dialogam com a abordagem apresentada: a possibilidade
de delinear estratégias projetuais para a prática profissional e ensino; a necessidade de
aprofundar nas questões raciais e de gênero, com ênfase na mediação que esse tipo de
espaço exerce nas relações sociais; e avançar na representação e espacialização das
narrativas e dinâmicas espaciais, superando limitações cartográficas e de desenho
projetual. Por fim, pretendemos aprofundar os potenciais de diálogo e comparação com
o contexto urbanístico norte americano, avançando na comparação entre os estudos de
caso de Belo Horizonte e Chicago atentos à dimensão histórica, influência de modelos
urbanos e novas imaginações sociais, sempre com ênfase na mediação social e cultural
exercida pelos espaços localizados na interface entre cidade e arquitetura. Por fim, é
nossa intenção aprofundar a análise das maneiras pelas quais a lente de pesquisadores
estrangeiros ilumina elementos da forma urbana que se tornam invisíveis para os
moradores locais e vice-versa, uma construção de percepções e modos de ver a cidade a
partir do outro que resulta da sobreposição e tensão entre narrativas e formas de
representar os lugares.

• 20
REFERÊNCIAS

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.com.br/ editorias/cidades/2022/06/30/ uma-cidade-dentro-da-outra-edificio-maletta-foi-
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• 22
A IMPRENSA PERIÓDICA DE SÃO JOÃO DEL-REI (1827-1844)
E SUA CONTRIBUIÇÃO PARA O CAMPO DA HISTÓRIA DA
ARQUITETURA E URBANISMO1
LA PRENSA PERIÓDICA DE SÃO JOÃO DEL-REI (1827-1844) Y SU
CONTRIBUCIÓN PARA EL CAMPO DE LA HISTORIA DE LA
ARQUITECTURA Y URBANISMO
Memórias, representações, arquivos

ALCÂNTARA, Victória G. M.
Graduanda em Arquitetura e Urbanismo; Universidade Federal de São João del-Rei
victoria.g.m.alcantara@gmail.com
GUIMARÃES, Marcos V. T.
Doutor; Universidade Federal de São João del-Rei
mvtguimaraes@gmail.com

1Pesquisa realizada com o apoio do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica


da Universidade Federal de São João del-Rei (PIBIC/UFSJ) e da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG).
RESUMO

O núcleo urbano de São João del-Rei apresenta um vasto acervo


arquitetônico, que nem sempre pode ser classificado precisamente quanto à
época de construção e/ou alteração. Ainda que a origem da povoação esteja
ligada à exploração aurífera no século XVIII, o pesquisador pode encontrar
lacunas ao analisar alguns períodos, tanto pelos limitados remanescentes,
quanto por dificuldades em encontrar documentações claras acerca das
estruturas arquitetônicas. Nos estudos urbanos, outros desafios se
apresentam: por exemplo, a mudança na denominação dos logradouros pode
dificultar a localização no espaço urbano, tornando complexa a compreensão
das transformações ao longo do tempo. Desse modo, a busca por fontes
primárias, que possam trazer à tona informações ainda não discutidas na
atualidade, torna-se uma prolífica vertente de pesquisa. Nesse sentido, o
presente trabalho buscou verificar a contribuição que os periódicos de época
podem trazer às pesquisas sobre história da arquitetura e urbanismo são-
joanenses. A própria disponibilidade de fontes definiu o ponto inicial do
recorte temporal do estudo, pois a imprensa periódica na Vila de São João
del-Rei foi inaugurada em 1827. Tal levantamento de dados foi possível pela
disponibilidade de edições dos periódicos na Hemeroteca Digital Brasileira, da
Biblioteca Nacional. A leitura dos materiais possibilitou uma melhor
compreensão sobre diversas obras públicas que estavam em curso na época,
tais como chafarizes, cemitérios e a cadeia nova. Também foi encontrada
uma gama de anúncios de venda ou aluguel de casas térreas, sobrados e
fazendas, o que possibilita um panorama da localidade na época.

PALAVRAS CHAVE imprensa periódica; história da arquitetura; São João


del-Rei; obras públicas; século XIX.

RESUMEN

El núcleo urbano de São João del-Rei tiene un vasto acervo arquitectónico,


que no siempre se puede clasificar con precisión en cuanto a la época de
construcción y/o transformación. Aunque el origen de la Villa está ligado a la
extracción de oro en el siglo XVIII, el investigador puede encontrar brechas a
la hora de analizar algunas épocas, tanto por los escasos elementos restantes
como por las dificultades para encontrar una documentación clara sobre las
estructuras arquitectónicas. En los estudios urbanos, se presentan otros
desafíos: por ejemplo, el cambio de nombre de las calles puede dificultar su
ubicación en el espacio urbano y la comprensión de los cambios a lo largo del
tiempo. De esta manera, la búsqueda de fuentes primarias, que puedan
sacar a la luz información aún hoy no discutida, se convierte en una prolífica
línea de investigación. En ese sentido, el presente trabajo buscó verificar la
contribución que los periódicos pueden traer a la investigación sobre la
historia de la arquitectura y el urbanismo en São João. La disponibilidad de
fuentes definió el punto de partida del marco temporal del estudio, ya que la
prensa periódica de la Villa fue inaugurada en 1827. Esta recogida de datos
fue posible gracias a la disponibilidad de ediciones de los periódicos en la
Hemeroteca Digital Brasileira, de la Biblioteca Nacional. La lectura de los
materiales permitió una mejor comprensión de varias obras públicas que
estaban en marcha en ese momento, como fuentes, cementerios y la nueva
cárcel.

PALABRAS-CLAVE prensa periódica; historia de la arquitectura; São João


del-Rei; obras públicas; siglo XIX.
INTRODUÇÃO
A formação da povoação de São João del-Rei se insere no contexto da exploração do
ouro em Minas Gerais, mais especificamente no início do século XVIII (GUIMARÃES,
2016, p.11). A abertura de caminhos foi acompanhada pelo estabelecimento de locais
em que os viajantes poderiam comprar víveres, tal como foi feito por Tomé Portes del-
Rei, que além das vendas, ao apossar-se da passagem do Rio das Mortes2, começou a
cobrar pela sua transposição. Com a descoberta de ouro no sopé da Serra do Lenheiro,
em 1704, teve início a exploração do local e consequentemente, sua povoação.
Inicialmente, as moradias eram simples, cobertas de palha e construídas próximas aos
locais de mineração. Não demorou muito, porém, para que houvesse um
reconhecimento oficial da importância do Arraial, que foi elevado à categoria de Vila em
1713 (MALDOS, [20--?], p.3), tornando-se, portanto, a Vila de São João del-Rei.
Apenas um ano depois, outro importante título seria concedido a São João del-Rei: com
a divisão de Minas Gerais em comarcas, essa Vila foi estabelecida como a cabeça da
Comarca do Rio das Mortes, exercendo influência direta sobre um extenso território
(GUIMARÃES, 2016, p.37).
Já nesse início o Córrego do Lenheiro se mostrava como um importante marco na
paisagem da Vila, delimitando a povoação primitiva e sua posterior expansão: a
margem esquerda, na qual localizam-se as Igrejas de Nossa Senhora do Carmo, Nossa
Senhora do Rosário e a Matriz de Nossa Senhora do Pilar, foi a primeira a ser povoada.
A margem direita, que corresponde à área em que estão situadas a Igrejas de São
Francisco, a Capela de Nosso Senhor do Bonfim e a Casa da Intendência, foi ocupada
posteriormente e seu traçado era mais regular, quando comparado ao da outra margem
(ANDRADE, 2013, p.26). A transposição do córrego era feita então por duas pontes: a
do Rosário e a ponte Nova (GUIMARÃES, 2016,p.62). Maldos destaca que o governo
tentou intervir diversas vezes nessa distribuição, publicando documentos indicando que
a ocupação da Vila deveria ser na margem direita, chegando mesmo a declarações de
que só seriam autorizadas novas construções nessa área e que deviam ser cobertas de
telha ([20--?], p.3-4).
O primeiro século de existência da Vila foi marcado, portanto, pelo crescimento
populacional, acompanhado de transformações urbanas importantes, capitaneadas
muitas vezes pelo Senado da Câmara. Os legisladores dispunham de maneiras variadas
para a realização de obras públicas, que serão exploradas posteriormente, à luz das
informações coletadas nos periódicos. Em relação às moradias particulares, muitas

2Corresponde atualmente ao bairro Matosinhos. A cobrança pela passagem teve início em


1702 e canalizava o acesso às minas auríferas, por onde passavam viajantes vindos de São
Paulo e Rio de Janeiro (ANDRADE, 2013, p.20).

• 1
pessoas entravam em contato com a Câmara pedindo a concessão de terras, sendo que
muitas delas eram atendidas (MALDOS, [20--?], p.9). Destaca-se nesse período
também a existência de alguns cargos voltados para o ordenamento urbano, como era o
caso dos arruadores, cuja função se estendia desde a fiscalização do alinhamento das
construções e reforma de passeios até a abertura de vias (GUIMARÃES, 2016, p.64).
A segunda metade do século XVIII foi marcada por uma diminuição na produção de
ouro, contudo, o aspecto comercial da Vila não arrefeceu. Ano após ano, eram
concedidas licenças para novas casas de comércio e ofícios (MALDOS, [20--?], p.16-
17). Nesse período, a Comarca do Rio das Mortes fortaleceu suas atividades
agropecuárias. Enquanto outras regiões de Minas Gerais perdiam população com a
decadência do ouro, a Comarca capitaneada pela Vila de São João del-Rei viu sua
população passar de 82.781 habitantes em 1776 para 213.617 em 1821 (ANDRADE,
2013, p.31). Já no início do século XIX, a mudança da Família Real Portuguesa para o
Rio de Janeiro repercutiu fortemente na Comarca, pois a partir de 1808, a demanda por
produtos agro-pastoris produzidos em Minas Gerais foi intensificada. Nesse contexto, o
mercado são-joanense recebeu também muitos produtos importados provenientes da
Corte (ibidem, p.31). Em 1822, a Vila de São João del-Rei contava com cerca de 5.000
habitantes, número próximo ao de São Paulo na época, onde viviam aproximadamente
7.000 pessoas (GUIMARÃES, 2016, p.15). O crescimento da povoação foi tão expressivo
que em 1838 São João del-Rei foi elevada à categoria de cidade (ibidem, p.11). Nesse
período, a imprensa periódica já atuava, pois a Tipografia do Astro de Minas, primeira
da localidade, foi inaugurada em 1827 (MOTTA, 2000, p.122).
A investigação sobre a arquitetura e urbanismo de São João del-Rei no século XIX pode,
portanto, dispor dos periódicos de época, nos quais é possível obter informações sobre
como se deram as transformações urbanas ao longo do tempo e a visão dos habitantes
da época sobre esses processos, tendo sempre em mente que a redação dos textos não
era neutra e era atrelada aos ideais propagados por cada periódico específico. A
inclusão dessas publicações como possíveis fontes de dados está atrelada a uma
mudança relativamente recente no cenário global da historiografia (LUCA, 2000).
Especialmente no recorte em análise, os periódicos exerciam uma função de
democratização da cultura, na medida em que circulavam não apenas entre os que já
possuíam o hábito da leitura, atingindo um público amplo que desejava se informar de
maneira rápida (MACULAN, 2011, p.174), ainda quando uma grande parte da população
era analfabeta. Além disso, não limitavam sua influência aos seus assinantes: com a
disponibilização de edições em locais públicos, como a biblioteca, as notícias e artigos
atingiam ainda mais pessoas (JINZENJI, 2008, p.33).
A grande variedade de assuntos abordados nos periódicos são-joanenses da primeira
metade do século XIX faz com que sua consulta seja prolífica para diversas áreas de
pesquisa. Como exemplo pode-se observar os estudos de Mônica Jinzenji, que
investigou o papel da mulher na sociedade são-joanense a partir do periódico Mentor
das Brasileiras (1829-1832) (JINZENJI, 2008). Nesse sentido, o presente estudo teve
como objetivo coletar dados referentes à arquitetura e urbanismo em 8 periódicos

• 2
publicados entre 1827 e 1844 em São João del-Rei e analisar suas possíveis
contribuições para estudos futuros.

A IMPRENSA PERIÓDICA EM SÃO JOÃO DEL-REI


A primeira tipografia estabelecida em Minas Gerais foi a “Officina Patrícia de Barbosa e
Cia.”, em Ouro Preto, inaugurada em 1823. Esse empreendimento possibilitou a
impressão do primeiro periódico das minas: o Compilador Mineiro (MOREIRA, 2006,
p.98). Em São João del-Rei, a imprensa periódica teve início apenas em 1827 (MOTTA,
2000, p.122) e estava ligada diretamente a uma figura muito influente na Vila: Baptista
Caetano de Almeida. Além de ter participado ativamente da vida política, exercendo
diferentes funções públicas, atuou como difusor de ideias então definidas como liberais
moderadas3. Foi o responsável pela primeira biblioteca pública de São João del-Rei,
onde posteriormente foram disponibilizados diversos periódicos, incluindo o Astro de
Minas, impresso em sua tipografia (MACULAN, 2011, p.146).
Entre 1827 e 1839, foram publicadas 1769 edições do Astro de Minas, que reuniam
correspondências dos assinantes, traduções variadas, textos de cunho político e moral,
anedotas e anúncios diversos (MOTTA, 2000, p.123-125) (Figura 1).

Figura 1: cabeçalho da primeira edição do Astro de Minas. Fonte: ASTRO, 1827, n.1, p.1.

3
O “partido liberal moderado” frequentemente mencionado nos periódicos em análise não
deve ser compreendido sob uma perspectiva contemporânea do termo “partido”, não
representando uma organização que objetiva eleger determinados candidatos. Na realidade,
o partido liberal moderado, em linhas gerais, era o grupo de pessoas que defendiam a
monarquia constitucional, contrapondo-se, portanto, aos absolutistas e republicanos
(MACULAN, 2011, p.25).

• 3
As correspondências podiam ser feitas de maneira anônima, dando espaço para
reivindicações e denúncias, como é possível perceber na 4ª edição do periódico, na qual
um correspondente, identificado como “O amigo do útil de mistura com o agradável”
relatava o estado de abandono em que a Vila se encontrava:
[...] A ponte do Rio das Mortes pequeno há quatro meses não dá passagem, e se não fora
a rigorosa seca, não teríamos um só carro com víveres; [...] a estrada para Matosinhos
em estado de não dar passagem logo que forem abundantes as chuvas; a Rua do Pau do
Ingá a descer para a do Barro em muito pior estado = a água do Chafariz Público dividida
por quantos querem, e somente em utilidade dos sócios que se estão aproveitando para
os seus moinhos, deixando muitas vezes o público com falta [...] (ASTRO, 1827, n.4,
p.3).

Nota-se, portanto, que o periódico representava um espaço de fala no qual os


moradores podiam expressar sua insatisfação com relação às obras públicas que não
correspondiam às necessidades dos habitantes. Os caminhos em ruína, pontes e
chafarizes foram matéria de diversas discussões no Astro de Minas, que serão
exploradas nas seções seguintes.
Nos anos seguintes, outros periódicos foram publicados, cada qual sob uma influência
política, que era demonstrada nas entrelinhas de seus artigos. A própria tipografia do
Astro de Minas foi responsável por uma segunda publicação: o Mentor das Brasileiras
(1829-1832), cujo foco era a instrução das mulheres nos mais diversos assuntos.
Contudo, não visava a emancipação de suas leitoras, mas garantir que se tornassem
“boas influências” para seus filhos e maridos (JINZENJI, 2008, p.26). Entre 1829 e 1832
foram publicados 129 números que apresentavam artigos sobre moral, política, alguns
textos sobre modas, fábulas e anedotas. Apesar de ser direcionado ao público feminino,
era redigido por homens (ibidem, p.89). O Mentor das Brasileiras foi analisado nesse
estudo, porém, não foram encontradas menções à arquitetura e urbanismo nele.
A heterogeneidade de posições políticas na Vila/Cidade de São João del-Rei pode ser
observada em periódicos como O Amigo da Verdade (1829-1831) e o Constitucional
Mineiro (1832-1833), que se opuseram fortemente às ideias propagadas pelo Astro de
Minas (Figuras 2 e 3).

Figura 2: extrato da 4ª edição do Amigo da Verdade.


Fonte: AMIGO, 1829, n.4, p.1.

• 4
Figura 3: extrato da 3ª edição do Constitucional Mineiro.
Fonte: CONSTITUCIONAL, 1832, n.3, p.4.

Outras publicações, como A Legalidade em Triumpho, O Americano, Despertador


Mineiro e A Ordem compunham o cenário das publicações periódicas são-joanenses.

MÉTODO
Inicialmente, foi feita uma pesquisa sobre as origens de São João del-Rei, seu
desenvolvimento e o estado da povoação no período de 1827 a 1844 (ver MALDOS [20-
-?]; GUIMARÃES, 2016). Paralelamente, foram consultados materiais que auxiliaram na
definição de estratégias para a pesquisa em periódicos, como as considerações de
Bacellar (2015) e Luca (2015).
A Biblioteca Nacional, por meio do site da Hemeroteca Digital Brasileira, disponibiliza
um vasto acervo, incluindo periódicos são-joanenses da época estudada. Assim, foi
possível definir quais publicações seriam analisadas e o número de edições de cada uma
(Tabela 1).

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Periódico Período Nº de edições disponíveis

Astro de Minas 1827-1839 1062

Amigo da Verdade (O) 1829-1831 51

Mentor das Brasileiras (O) 1829-1832 129

Constitucional Mineiro (O) 1832-1833 59

Legalidade em Triumpho (A) 1833 4

Americano (O) 1840 16

Despertador Mineiro 1842 8

Ordem (A) 1842-1844 38

Total 1367

Tabela 1: Relação de edições de periódicos são-joanenses publicados entre 1827 e 1844 disponíveis na
Hemeroteca Digital Brasileira.

Os periódicos foram analisados individualmente e todos os temas relacionados à


arquitetura e urbanismo foram compilados em uma planilha, na qual também foram
transcritos os trechos referentes em grafia moderna. A partir de então os trechos foram
correlacionados e divididos em tópicos: obras públicas, estradas e caminhos, anúncios,
entre outros.

APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS


O Astro de Minas representou a maior parte da amostra e também a maior quantidade
de informações sobre arquitetura e urbanismo. Não obstante, foi possível observar
correlações entre trechos do Astro e outros periódicos, que serão discutidas a seguir.

Estradas, pontes e caminhos


Em linhas gerais, os periódicos apresentavam uma perspectiva pessimista sobre esse
tema. A grande demanda por obras e a falta de verbas eram relatadas com frequência.
Ainda assim, mesmo quando havia fundos suficientes para a realização de alguma
melhoria, nem sempre o processo era simples: A ponte do Elvas, por exemplo, foi alvo
de discussões no Astro de Minas. Em 1828, o periódico publicou uma correspondência
na qual eram narrados os perigos aos quais estavam expostos os viajantes que
precisavam atravessá-la. Na verdade, naquele momento, sequer havia ponte, pois ela
havia caído. Assim, era preciso usar uma canoa para atravessar o curso d’água (ASTRO,
1828, n.52, p.2-3). Diante dessa necessidade, José Ferreira da Silva foi encarregado
pela Câmara para realizar uma subscrição voluntária em favor dessa obra. Infelizmente,
os benefícios dessa construção não duraram muito tempo:

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[...] José Ferreira da Silva [...] foi insultado por Francisco Antonio do Nascimento, e seu
sogro Joaquim Antonio das Neves [...] e isto por ocasião de lhe mandar pedir três linhas
da mesma ponte que ele desfez em carvão, que são do povo; pois este foi o que fez a
ponte, e são agora necessárias para a mesma ponte, por estarem sãs, e ele as puxou de
cima da mesma ponte, quando o rio estava para a levar, e uma afundou, e depois, que
vazou o rio, ele a tirou de seco junto a mesma ponte; por isso para evitar colisões com
estes homens, que moram junto ao mesmo rio, ele faz saber ao respeitável público, que
se despediu desta tarefa oficiando a mesma ilustre Câmara, e mandando a lista de todos,
os que subscreveram, para incumbir isso a pessoa hábil, que satisfaça aos desejados fins
[...] (ASTRO, 1828, n.106, p.4).

O texto, ao indicar que a ponte foi “desfeita em carvão” parece denunciar um incêndio
criminoso cometido por moradores daquele local. Assim, é possível conjecturar que
mesmo que a obra fosse reclamada por parte da população, outra parte poderia se
incomodar com tal construção, pois, aparentemente a ponte era próxima à casa desses
moradores, que talvez não estivessem satisfeitos com o aumento do fluxo de pessoas
pela área.
Tais percalços não foram suficientes para que a Câmara desistisse da obra: em 1830,
foi designado um novo encarregado da subscrição para a construção da ponte (ASTRO,
1830, n.402, p.3). Contudo, em 1833, em uma das reuniões da Câmara, há uma
menção à “[...] Ponte do Elvas, que tem de ser construída na seca próxima [...]”
(ASTRO, 1833, n.808, p.4). Dessa forma, a ponte não havia sido concluída ou havia
caído novamente. Apenas em 1834 são publicadas boas notícias sobre essa obra:
[...] já dá passagem aos viandantes a pé, exigindo para melhor segurança da mesma oito
cavilhões de ferro, um canal, e seis paredões para neles descansarem as linhas: a
Câmara tomando em consideração esta requisição, resolveu nomear para louvados da
dita obra ao cidadão Francisco de Paula de Almeida Magalhães; e ao mestre de pedreiro
Boaventura Pestana para apresentarem o orçamento da despesa dos seis paredões
apontados com declaração de sua profundidade, e grossura; assim também dos seis
cavilhões de ferro, e da abertura do canal indicado no mesmo ofício, e que se envie aos
nomeados uma cópia do ofício do rematante, ficando adiada a resolução sobre o mesmo
[...] (ASTRO, 1834, n.1051, p.2-3).

Mesmo que ainda fossem necessários alguns melhoramentos, a passagem de pedestres


estava assegurada, o que já era um avanço.
Na esteira desse tema, cabe mencionar que a manutenção de estradas também era um
grande desafio. Nesse ponto, destaca-se o periódico O Americano (1840), que relatou
parte dos trâmites relacionados à abertura da Estrada do Paraibuna. Anteriormente, o
Astro de Minas já havia publicado que o Governo Provincial pretendia contrair um
empréstimo para a realização dessa estrada, que ligaria o Paraibuna à Vila de
Barbacena, seguindo até Ouro Preto, tendo ainda uma bifurcação para São João del-Rei
(ASTRO, 1837, n.1480, p.4). O Americano, porém, concentrou-se nesse tema e
demonstrou a insatisfação da Assembleia Provincial (AMERICANO, 1840, n.10, p.4), da
Câmara de Barbacena (idem, 1840, n.15, p.2-4) e mesmo de moradores com o
andamento da obra (idem, 1840, n.24, p.3). Uma das queixas principais nesses artigos
era a falta de regularidade: parte da estrada tinha a largura total definida por lei, parte
apresentava somente metade dessa largura e ainda outras porções sequer haviam sido
começadas. Além disso, o orçamento inicial, de 555 contos, foi ultrapassado muito

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antes do fim das obras, de acordo com a análise apresentada no número 11 do
periódico. Segundo o texto, até 1840, aproximadamente 768 contos de réis foram
empregados na abertura da estrada (idem, 1840, n.11, p.2-4).
Os relatos sobre a Estrada do Paraibuna também contém críticas ao engenheiro
responsável, que era acusado de dar ordens confusas: “[...] a um ordena que vá alisar
a estrada, porque os deputados descem, ou sobem, [...] a outros continuem a levantar
a estrada, apareçam ou não obstáculos, [...] e o Tesouro é como o mesmo rio
inesgotável [...]” (AMERICANO, 1840, n.14, p.3). Assim, os empregados não sabiam
exatamente como proceder e o dinheiro público era despendido como se fosse
interminável. Mas os trabalhadores não escaparam das críticas na imprensa periódica:
em 1839, o Astro de Minas deu espaço a denúncias contra a ociosidade deles, que
“[...]se conserva[va]m de braços cruzados, contemplando os passageiros [...]”(ASTRO,
1839, n.1767, p.3).
Não foram localizadas na amostra informações sobre a conclusão dessa obra, é
possível, portanto, que sua finalização tenha sido depois de 1844.
Outros casos de reparos em estradas e pontes foram noticiados, como a estrada para o
Arraial de Matosinhos, que precisava de manutenção em 1844 (ORDEM, 1844, n.173,
p.3) e a ponte da Água Limpa, cujo aterro precisava ser consertado no mesmo ano
(idem, 1844, n.178, p.4).

Obras públicas
Apesar do século XIX ter sido um período de crescimento econômico para a Comarca do
Rio das Mortes e consequentemente para São João del-Rei (GUIMARÃES, 2016, p.50-
51), a carência de obras públicas é percebida pelas diversas discussões no Astro de
Minas a esse respeito. Contudo, a Câmara apresenta-se na maioria das vezes solícita e
empenhada em prover o necessário à população, como é possível perceber nos casos a
seguir.
No ano de 1827, uma correspondência publicada no Astro de Minas versa sobre as
necessidades da Vila e cita que o primeiro chafariz havia sido construído naquele ano,
com as contribuições da população e dos próprios vereadores (ASTRO, 1827, n.11, p.3).
Posteriormente, é possível encontrar menções a outras obras ou consertos, como um
andaime no curso d’água que alimentava o chafariz no Largo de São Francisco, que
devia ser reparado (idem, 1830, n.377, p.1). Nota-se que a população em geral estava
recebendo menos água devido a desvios que eram feitos pelos “sócios”. Não foi possível
localizar exatamente a que sociedade o texto se refere, mas é dito que ela deveria se
responsabilizar pela construção dos andaimes necessários (idem, 1830, n.384, p.1).
Contudo, a obra foi promovida pela Câmara em 1832, com a justificativa de que era um
caso de urgência (idem, 1832, n.653, p.2).
Em 1833, são publicadas notícias sobre um novo chafariz que devia ser construído no
rocio entre a Rua do Curral e o cais da praia, entre as duas pontes. Para a realização
desse projeto, um dos vereadores sugeriu a adoção de uma subscrição voluntária, na
qual os moradores seriam convidados a doarem quanto pudessem para coadjuvar a

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construção (ASTRO, 1833, n.808, p.4). Todavia, no ano seguinte foi publicado um texto
que demonstrava dificuldades nessa construção:
[...] Tendo mostrado a experiência, que o último risco do chafariz da praia desta Vila não
pode ser exequível sem um extraordinário dispêndio não só motivado pela grandeza da
obra no seu todo, como pela grande dificuldade, ou absoluta impossibilidade de se obter
para os alcatruzes de pedra azul, e não sendo prudente, que se continue um plano de
semelhante natureza = Proponho que a Câmara examinando novamente o plano do novo
risco, e achando certo, quanto fica expedido dê uma nova e diversa direção à obra do
chafariz mencionado, que vá de acordo com a possibilidade dos seus meios pecuniários,
com a possível decência e ornato público [...] (ASTRO, 1834, n.1084, p.4).

Assim, apesar das diligências da Câmara em angariar fundos para a construção, fazia-se
necessária uma revisão do projeto, provavelmente para a substituição de materiais, em
busca de alternativas mais baratas. O periódico apresenta ainda informações sobre
outros chafarizes, como o do Beco de Francisco Izidoro, que precisava de reparos em
1835 (ASTRO, 1835, n.1203, p.3) e uma discussão sobre a possibilidade de utilização
das águas de uma nascente ao fundo da chácara de João Bernardo para o
abastecimento público no ano de 1837 (idem, 1837, n.1503, p.4).
As transcrições das reuniões da Câmara possibilitam o acompanhamento das discussões
acerca de variadas questões urbano-arquitetônicas, como a situação dos cemitérios,
que foi analisada em conjunto com as autoridades eclesiásticas locais. Em 1828, uma
mudança na legislação deixava a cargo das Câmaras o estabelecimento de cemitérios
fora dos templos (ASTRO, 1829, n.217, p.1-2). Nesse sentido, foram proibidos
sepultamentos no interior dos templos a partir de 1º de janeiro de 1830 e o cemitério
geral seria ao lado da Casa do Conselho (idem, 1829, n.222, p.1-2). Em uma edição
posterior, a Irmandade do Santíssimo Sacramento apresentou uma outra possibilidade:
com o fechamento do beco da cadeia e abertura de uma via com a demolição de alguns
edifícios, o cemitério poderia ser no Adro da Matriz (idem, 1829, n.298, p.1). Tal
requerimento foi aprovado pela Câmara e pelo vigário responsável (idem, 1829, n.299,
p.1).
A proibição deveria valer desde janeiro de 1830, mas em 1833 foi lido um requerimento
no qual se pedia a extensão desse prazo:
[...] Veio à mesa uma representação do Rev. Vigário desta Freguesia, José Lameda
d’Oliveira, em que pedia a prorrogação do prazo findo para sepultarem-se os cadáveres
no recinto dos Templos: a Câmara não encontrando Lei, ou ordem expressa que proibisse
a pretendida prorrogação, resolveu: que se continuasse a sepultar no Adro da Matriz visto
ainda não estar pronto o cemitério geral; e que isto mesmo se participasse por ofício ao
dito pároco; e ficasse extensivo a todas as Matrizes, e Capelas filiais do Termo onde ainda
se não houvessem feito os cemitérios, enquanto a Câmara representava ao Exmo.
Presidente em Conselho sobre este objeto [...] (ASTRO, 1833, n.827, p.5).

O texto demonstra que ainda seria demarcado um cemitério geral, não sendo o adro da
Matriz uma solução definitiva.
Dentre as obras a cargo da municipalidade, destaca-se a cadeia, devido ao grande
número de informações a seu respeito na imprensa periódica. Seu estabelecimento
remonta a 1741 e era localizada na Rua Direita, onde atualmente encontra-se o Museu
da Arte Sacra (MALDOS, [20--?], p.16). No período em análise, o prédio estava em

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péssimas condições, como é relatado pelo correspondente do Astro de Minas, em um
texto no qual discorre a respeito de várias obras públicas necessárias à Vila: “[…] A
cadeia em total ruína, de sorte que é melhor ser preso em uma das betas da Serra do
Lenheiro, que na enxovia ou Sala Livre […]” (ASTRO, 1827, n.4, p.3). Nesse sentido, a
Câmara da Vila elevou ao Imperador um pedido de verbas para a construção de uma
cadeia nova, texto em que são explicitados detalhes sobre o edifício antigo:
[…] é da mais absoluta necessidade a construção de uma cadeia nesta Vila: e é
principalmente sobre este tão importante objeto, e sobre os expostos que a Câmara
suplica a atenção de V. M. I. - A cadeia desta Vila é o mais ridículo edifício, construído de
adobes casa térrea, muito baixa, úmida, e imunda; sendo que pela sua muito fraca
construção é continuadamente arrombada pelos presos, que nela se não podem
conservar, e pela sua insalubridade é causa imediata de moléstias de pronta morte, que a
alguns presos tem sobrevindo, logo que para ali entram - A humanidade, Senhor, e todos
os direitos dos homens reunidos em sociedade reclamam a mais séria atenção sobre tal
objeto; e a Câmara desta Vila incorreria em justa censura de desumana se não
apresentasse e levasse ao conhecimento de V. M. I., bem certa de que V. M. I. sempre
atento aos gemidos de seus fiéis súditos se apressará também a acudir seus males. A
Câmara se oferece a construir uma boa cadeia em lugar arejado e saudável se V. M. I. se
dignar conceder-lhe por espaço de dois anos o rendimento da sisa arrecadada nesta Vila,
o qual anda anualmente por cinco contos de réis - Com este subsídio concedido à Câmara
por V. M. I. por espaço de dois anos somente pode-se construir um edifício próprio para
uma cadeia, que só sirva para conter os facinorosos, e não de dar cabo da humanidade.
[...] (ASTRO, 1827, n.11, p.3).

Porém, aparentemente as verbas não foram concedidas ou não foram suficientes para a
realização das obras, pois em 1829, em uma das descrições das reuniões da Câmara, é
citada a possibilidade de criação de uma subscrição voluntária para coadjuvar a
construção da cadeia. Nesse caso, os moradores seriam convidados a doarem qualquer
quantia em auxílio da obra pública (ASTRO, 1829, n.214, p.2). De fato, no número
seguinte do periódico, já foi publicado o edital dessa subscrição (ASTRO, 1829, n.215,
p.2). O tema é recuperado em diversas edições posteriores, sendo apontados também
alguns outros meios que Câmara poderia dispor para angariar fundos: por exemplo, a
arrematação ou venda da Casa do Conselho (ASTRO, 1829, n.216, p.1).
Paralelamente, a cadeia antiga continuava a funcionar e era preciso fiscalizá-la com
frequência, a fim de que as condições já ruins do edifício não piorassem. Além disso,
havia uma lei que obrigava as Câmaras a emitirem relatórios periódicos sobre o estado
de suas prisões e casas de caridade (ASTRO, 1829, n.221, p.2). Nesse sentido, por
diversas vezes, os extratos das reuniões da Câmara são acompanhados dos relatórios
das denominadas “Comissões de Visita”. Logo na primeira publicação fica clara a
insatisfação dos examinadores com relação à cadeia:
[…] Conquanto a Comissão se persuada da impossibilidade do melhoramento de um
edifício quase inteiramente arruinado, tanto pela sua antiguidade, como pela sua má
construção, contudo julga do seu dever propor os seguintes melhoramentos, únicos
compatíveis com o estado atual deste edifício. É de suma necessidade uma guarda efetiva
de primeira linha. Quanto ao asseio, e limpeza deve-se responsabilizar o carcereiro para
que seja obrigado a prover de água todas as prisões, varrê-las todos os dias, e ao menos
uma vez por mês lavá-las, não consentindo nelas o uso de fogo […] (ASTRO, 1829,
n.221, p.2).

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Além da cadeia da Vila e da Santa Casa de Misericórdia, a prisão militar também era
examinada. Em relação a esse edifício, em um primeiro momento, é dito que estava em
bom estado (ASTRO, 1829, n.221, p.2). Porém, os relatórios seguintes indicam a
necessidade de reformas urgentes (ASTRO, 1829, n.299, p.1; idem, 1830, n.381, p.2;
idem, 1830, n.421, p.1; idem, 1830, n.457, p.1; idem, 1831, n.533, p.4; idem, 1831,
n.569, p.3; idem, 1832, n.652, p.3-4). É possível inferir que existiam duas prisões
militares na Vila, pois em um dos relatórios há uma diferenciação entre a prisão do
Quartel da Guarda Municipal Permanente e a do Quartel do Destacamento (idem, 1832,
n.727, p.3). Contudo, a intervenção direta da Câmara nesse caso era vedada, pois essa
prisão era de responsabilidade dos superiores militares da região.
O ano de 1829 foi marcado pelo esforço da Câmara para possibilitar a construção da
cadeia nova, que foi documentado pelo Astro em diversas edições. Baptista Caetano de
Almeida, dono da Tipografia do Astro de Minas e vereador na época cedeu um terreno
próximo à Ponte da Intendência para que ali fosse feita a obra (ASTRO, 1829, n.299,
p.1). Contudo, em uma edição anterior, ainda em 1829 é dito que devia ser escolhido
[...] um engenheiro, ou pessoa hábil que possa tirar a planta do lugar em que se deve
construir a nova cadeia, e sobre ela formar o risco de uma obra que sendo elegante não
seja de muito custo atendendo as poucas forças do Conselho a fim de que na seção
seguinte se dar começo a esta obra [...]” (ASTRO, 1829, n.222, p.2).

É provável, portanto, que a doação do terreno seja anterior à menção no periódico. O


desenvolvimento do projeto continuou com a realização do orçamento da obra, que foi
estimada em vinte e quatro contos de réis, sendo que a construção em si seria feita por
arrematação (ASTRO, 1829, n.299, p.1). Contudo, as expectativas da Câmara a esse
respeito foram frustradas:
[...] Assim mais correu-se o pregão da arrematação da obra da nova cadeia, e não
comparecendo nesta praça, assim como nas antecedentes, quem lançasse, resolveu a
Câmara proceder na conformidade do art. 47 da Lei do 1º de outubro de 1828 [...]
(ASTRO, 1829, n.331, p.2).

Tal artigo determina que na falta de empreiteiros, as obras poderiam ser feitas a jornal,
isso é, por diárias (BRASIL, 1828). Mas ainda assim, seriam necessárias muitas
discussões sobre o tema. Em 1830, Baptista Caetano tomou a palavra em uma sessão
da Câmara e sugeriu que fosse elevada uma representação à Assembleia Geral,
participando que apesar de começada, a obra da cadeia não poderia ser finalizada com
os escassos recursos de que dispunham. A subscrição voluntária, cuja meta era vinte e
quatro contos de réis, apenas chegou a três contos. Além disso, a Casa do Conselho,
quando vendida, não passaria de cinco contos (ASTRO, 1830, n.384, p.1-2). Além
disso, aparentemente, estavam enfrentando dificuldades em receber o dinheiro doado
pelos subscritores, pois pouco depois foi publicado um pedido para que os assinantes
entregassem as quantias prometidas ao encarregado da obra (idem, 1830, n.406, p.4).
No ano seguinte, um ofício do Presidente da Província reforçava o dever das Câmaras
Municipais de construírem cadeias e definia que estes edifícios deviam ser divididos em
três alas: uma ala feminina, outra masculina e uma destinada aos condenados a galés
(trabalhos forçados). Além disso, as alas deviam contar com subdivisões: uma para os

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condenados, outra para os presos em custódia ou pronunciados (ASTRO, 1831, n.578,
p.4). Já em 1832, a Câmara proclamava mais uma vez as dificuldades da obra e
indicava
[...] Que se representasse ao mesmo Conselho Geral, que esta Câmara não pode
continuar, por falta de meios com a obra da cadeia principiada, sem que se lhe aplique da
quantia orçada para tal fim coisa, com que possa dar algum andamento, vista a
necessidade urgente desta obra pelo péssimo estado da atual [...] (ASTRO, 1832, n.659,
p.2).

Entretanto, em 1833, o Presidente da Câmara se mostrou insatisfeito com as decisões


do Presidente da Província, que ordenou a entrega de 4:000$000 para coadjuvar a
construção da cadeia de São João del-Rei. Os vereadores encaminharam uma resposta
na qual pediam o valor total que a Câmara devia receber de acordo com uma resolução
do ano anterior, sem o qual não seria possível continuar a edificação (ASTRO, 1833,
n.911, p.3). O assunto das divisões da cadeia foi recuperado pela Câmara em 1834,
quando um dos vereadores indicou
[...] que devendo estar separada a casa de correção com trabalho da de simples prisão, e
detenção, que a Câmara procedesse ao exame do terreno destinado para a casa de
correção, e prisão a fim de ser destinado esse terreno somente para casa de prisão, e
detenção dos presos, com os peritos, que a mesma nomear para apresentação do plano
competente, e que requeria urgência sobre a sua indicação para dar-se começo à nova
cadeia, visto que existente não preenche os fins marcados na Lei, e está em quase total
ruína [...](ASTRO, 1834, n.1096, p.4, grifo nosso).

O trecho dá a entender que a obra não havia sido começada, mesmo que em edições
anteriores fosse afirmado o contrário. Porém, é possível que este número se refira à
construção das divisões na cadeia e não do projeto do prédio em si.
A Presidência da Província não estava indiferente a essa questão e admitia que as
cadeias de São João del-Rei e São José estavam em condições péssimas, totalmente
contrárias às estabelecidas na Constituição. Além disso, a Província como um todo
necessitava de outro estabelecimento ligado ao sistema prisional: as Casas de Correção.
Inspirada em modelos internacionais, uma dessas casas deveria ser construída no
Arraial de Matosinhos (ASTRO, 1835, n.1131, p.1-2). Porém, não foram encontradas
menções posteriores a esse objeto nos periódicos estudados.
Por fim, a cadeia foi mencionada uma última vez no Astro de Minas em 1838, quando a
Câmara decidiu repassar a quantia de 5:000$000 réis ao Procurador para a continuação
das obras. A edição apresenta ainda uma indicação de um dos vereadores de que fosse
construído um sobrado sobre a nova cadeia, a fim de servir como sala de reuniões
(ASTRO, 1838, n.1653, p.3).
O edifício que viria abrigar a câmara e a cadeia da cidade, situado ao pé da ponte hoje
denominada da Cadeia, apresenta atualmente uma inscrição em sua fachada, na qual se
lê o ano de 1849, sendo provavelmente o período de conclusão da obra.

Obras particulares
No período estudado, diversos anúncios de venda ou aluguel de moradias foram
publicados. A análise desses textos permite um panorama parcial do casario são-

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joanense, pois os anúncios apresentavam diferentes graus de detalhamento, como se
nota nos trechos a seguir:
Vende-se com toda brevidade uma morada de casas assobradadas na Rua do Curral desta
cidade número 306 muito bem construídas; quem a quiser comprar dirija-se às mesmas
para as ver, e para tratar a estalagem de Joaquim José dos Santos na Rua da Misericórdia
e ao Sr. Duarte José Pereira que está autorizado pelo proprietário (ORDEM, 1842, n.22,
p.4).

Nesse caso, sabe-se apenas o endereço e que o imóvel era um sobrado. Notam-se,
ainda, denominação de logradouros e respectiva numeração, além de nomes de pessoas
associados a estabelecimentos comerciais, que, em seu conjunto e em possíveis
cruzamentos com outras fontes de pesquisa, poderiam representar indícios atrelados a
questões urbanas. Em outra ocasião, aborda-se propriedade na zona suburbana da vila:
Quem quiser comprar um sítio com terras de cultura, e belíssimos campos de criar, na
passagem denominada o Carvoeiro, subúrbios desta Vila, contendo algumas capoeiras
das quais se podem tirar madeiras, e linhas, dirija-se a José Maria da Câmara
testamenteiro do Cap. Manoel Francisco de Andrade, que as venderá por preço cômodo.
(ASTRO, 1830, n.438, p.4).

A descrição já é mais detalhada, apresentando algumas características que poderiam


chamar a atenção de potenciais compradores. Contudo, há um anúncio específico cujo
nível de detalhamento é muito maior. Trata-se de um texto sobre duas fazendas no
Termo de Pouso Alegre. Apesar de não serem em território são-joanense, era comum a
publicação de anúncios de outras localidades, especialmente no caso de fazendas
(Figura 4).

Figura 4: extrato do Astro de Minas, edição 1751. Fonte: ASTRO, 1839, n.1751, p.4.

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Toda a seção de anúncios desse número foi ocupada por uma descrição extremamente
detalhada sobre as propriedades. Além das distâncias das fazendas até as vilas/cidades
mais próximas, são apresentadas as medidas dos campos cultivados, as culturas que
poderiam ser plantadas, dimensões dos pastos, características e medidas aproximadas
das casas, além das diversas benfeitorias que existiam em cada uma das propriedades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A grande diversidade de assuntos tratados nos periódicos são-joanenses entre os anos
de 1827 e 1844 permitem que seus textos sejam consultados em pesquisas de temas
diversos, incluindo história da arquitetura e urbanismo. Nesse campo, é possível
acompanhar o desenvolvimento de obras públicas ao longo dos anos, discussões sobre
as construções que deveriam ser feitas, meios empregados para a obtenção de fundos e
até mesmo informações sobre as legislações vigentes. Dessa maneira, os periódicos
também podem fornecer informações para pesquisadores que estejam investigando
algum edifício específico ou alguma categoria, como pontes, ruas, abastecimento de
água e até mesmo casario.

REFERÊNCIAS
Fontes impressas
AMERICANO (O), São João del-Rei, 1840. Disponível em: Hemeroteca Digital, Biblioteca
Nacional.
AMIGO da Verdade (O), São João del-Rei, 1829-1831. Disponível em: Hemeroteca Digital,
Biblioteca Nacional.
ASTRO de Minas, São João del-Rei, 1827-1844. Disponível em: Hemeroteca Digital,
Biblioteca Nacional.
CONSTITUCIONAL Mineiro (O), São João del-Rei, 1832-1833. Disponível em: Hemeroteca
Digital, Biblioteca Nacional.
DESPERTADOR Mineiro, São João del-Rei, 1842. Disponível em: Hemeroteca Digital,
Biblioteca Nacional.
LEGALIDADE em Triumpho (A), São João del-Rei, 1833. Disponível em: Hemeroteca Digital,
Biblioteca Nacional.
MENTOR das Brasileiras (O), São João del-Rei, 1829-1832. Disponível em: Hemeroteca
Digital, Biblioteca Nacional.
ORDEM (A), São João del-Rei, 1842-1844. Disponível em: Hemeroteca Digital, Biblioteca
Nacional.

Bibliografia
ANDRADE, Marcella. O tombamento dos bens arquitetônicos e urbanísticos de São João del-
Rei: embates em torno da preservação e do progresso. Dissertação (Mestrado) - Programa
de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
São Paulo. 224p. 2013.
BACELLAR, Carlos. Uso e mau uso dos arquivos. In: PINSKY, Carla (Org.). Fontes Históricas.
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• 15
ARQUIVOS URBANOS
um experimento historiográfico em Salvador
ARCHIVOS URBANOS: un experimento historiográfico en Salvador
Memórias, representações, arquivos

SILVA, Deise Lima da


Graduação; UFBA
deiselimaarq@gmail.com
MORTIMER, Junia Cambraia
Doutorado; UFBA/PPGAU
junia.mortimer@ufba.br
RESUMO

Propomos neste artigo delinear a ideia de “arquivos urbanos” enquanto


repositórios documentais inventados na dobra de cidade e corpo, imagem e
território, compostos por fragmentos de inúmeras naturezas, mas sobretudo,
conforme propomos, arquivos formados a partir da população, de suas práticas
na cidade e de suas narrativas, o que torna também a oralidade especialmente
importante para este trabalho. Tendo em vista o campo de debates em torno
de arquivos na confluência entre cidade, arquitetura e fotografia, nos
aventuramos num processo de intensas conversações e coletas (de objetos,
imagens, álbuns, relatos), buscando lançar subsídios para a narração de um
território negro popular de Salvador por seus próprios habitantes. Por meio de
um experimento de pesquisa, concernente à região de Pau da Lima, no miolo
de Salvador, propomos uma reflexão que aborda o arquivo enquanto estratégia
política e estética no enfrentamento de uma cidade racista e excludente, cuja
historicidade das lutas urbanas se dá também em práticas cotidianas, entre
fluxos de afetos familiares e imaginações fabulatórias.

PALAVRAS CHAVE arquivo urbano, Salvador, história oral, fotografia,


fabulação.

ABSTRACT OU RESUMEN

Nos proponemos en este artículo esbozar la idea de “archivos urbanos” como


depósitos documentales inventados en el pliegue de ciudad y cuerpo, imagen
y territorio, compuestos por fragmentos de innumerables naturalezas, pero
sobre todo, como proponemos, archivos formados a partir de la población,
desde sus prácticas en la ciudad y sus narrativas, lo que también hace que la
oralidad sea especialmente importante para este trabajo. Teniendo en cuenta
el campo de debates en torno a los archivos en la confluencia de ciudad,
arquitectura y fotografía, nos adentramos en un proceso de intensas
conversaciones y colecciones (de objetos, imágenes, álbumes, reportajes),
buscando lanzar subsidios para la narración de un negro territorio popular en
Salvador por sus propios habitantes. A través de un experimento de
investigación sobre la región de Pau da Lima, en el corazón de Salvador,
proponemos una reflexión que aborda el archivo como estrategia política y
estética frente a una ciudad racista y excluyente, cuya historicidad de luchas
urbanas también está en las prácticas cotidianas, entre flujos de afectos
familiares e imaginaciones de fabulación.

KEY-WORDS OU PALABRAS-CLAVE archivo urbano, Salvador, historia oral,


fotografia, fabulación

● 2
INTRODUÇÃO

Como podemos contar a história de uma cidade historicamente racista, a partir de uma
perspectiva que busca enfrentar apagamentos e exclusões segundo a chave da
inventividade? Por meio de quais documentos? No que consiste um documento para o
campo da história da arquitetura e urbanismo? Onde estão esses documentos válidos de
se narrar essas histórias, que não pela perspectiva da ausência e da negatividade? Como
lidar com os vestígios de vida, existência, produção e apropriação dos espaços que
encontramos nos territórios e que passam ao largo das instituições arquivísticas, voltadas
para uma prática profissional formalizada? Como reunir esses vestígios? Como construir
esses arquivos urbanos, em torno de fragmentos documentais que nos contam de uma
cidade negra e popular, sem perder de vista suas complexidades, entre o público e o
privado? Como aproximar, de modo radicalmente horizontal, as técnicas arquitetônicas
profissionais dos territórios populares, construídos a partir de uma cultura arquitetônica
que se dá de outra forma? Como valorizar os saberes já estabelecidos no território e
contribuir para o fortalecimento das potências locais, minimizando as problemáticas?

Propomos neste artigo delinear a ideia de “arquivos urbanos” enquanto repositórios


documentais inventados na dobra de cidade e corpo, imagem e território, compostos por
fragmentos de inúmeras naturezas, mas sobretudo, conforme propomos, arquivos
formados a partir da população, de suas práticas na cidade e de suas narrativas, o que
torna também a oralidade especialmente importante para este trabalho (SANTHIAGO
2013, MARTINS 2003). Tendo em vista o campo de debates em torno de arquivos na
confluência entre arquitetura e fotografia (MORTIMER 2020, 2018), nos aventuramos
num processo de intensas conversações e coletas (de objetos, imagens, álbuns, relatos),
buscando lançar subsídios para a narração de um território negro popular de Salvador por
seus próprios habitantes (SILVA, 2022). Por meio de um experimento de pesquisa,
concernente à região de Pau da Lima, no miolo de Salvador, propomos uma reflexão que
aborda o arquivo enquanto estratégia política e estética no enfrentamento de uma cidade
racista e excludente, cuja historicidade das lutas urbanas se dá também em práticas
cotidianas, entre fluxos de afetos familiares e imaginações fabulatórias.

ARQUIVOS, CIDADE E ARQUITETURA


O arquivo, entre outras coisas, se caracteriza como um lugar onde se encontram vestígios
de vivências e a partir de onde podemos fazer conexões (FARGE 2017). É uma coleção
de documentos com diversas naturezas, que reunidos contam a história de uma pessoa,
grupo, instituição, cidades, seu propósito é dar a ver para gerações presentes e futuras
a memória daquela parcela da sociedade, seja para preservar um valor cultural, ou
guardar dados informativos.

O termo arquivo pode ser utilizado para indicar – conjunto de documentos; móvel para
guarda de documentos; local onde o acervo documental deverá ser conservado; órgão
governamental ou instituição cuja finalidade é a guarda e a conservação de documentos;

● 3
títulos de periódicos. Assim, não há uma conceituação de arquivo que seja definitiva.
(FERNANDES; ALBUQUERQUE, 2017. p.741-742)

O estudo de arquivos de arquitetura vem possibilitando, desde a década de 1990 uma


renovação no campo da arquitetura e do urbanismo que incide até mesmo no que
entendemos como arquitetura e urbanismo. Como argumenta Costa (2020):

No Brasil, as décadas de 1980 e, principalmente, de 1990 foram marcadas por uma virada
historiográfica no campo da arquitetura e do urbanismo, proporcionada, entre outros
fatores, pelo incremento de pesquisas em arquivos, renovando fontes e documentos
(COSTA, 2017a, p. 261).

Além disso, a renovação documental “incorporou arquivos pessoais, e hoje esses acervos
de objetos, imagens, diários e cartas têm contribuído para ressituar os processos de
produção do espaço por meio de práticas e hábitos urbanos reunidos nesses restos
materiais.” (MORTIMER, 2020, p. 5)

A discussão em torno de arquivos de arquitetura e de que documentos os constituem é


evidentemente vinculada à discussão do que é arquitetura. bell hooks propõe abordar a
arquitetura enquanto cultura cotidiana, o que ela observa a partir da realidade de sua
família, negra e da classe trabalhadora. Não se trata, portanto, de restringir a arquitetura
ao âmbito da disciplina institucionalizada, realizada por profissionais liberais certificados.
Trata-se de evidenciar, nos termos da autora, a poética do espaço, enquanto práxis
cotidiana e projeto de futuro, que permeia os processos de apropriação e produção dos
espaços nos territórios populares negros. Há uma relação direta entre espacialidade e
liberdade.

As habitações eram vistas como em constante estado de mudança. Significativamente, a


ausência de privilégios materiais não significava que os negros pobres e da classe
trabalhadora (como os meus avós) não pensassem de forma criativa sobre o espaço.
Embora a falta de privilégios materiais limitasse o que poderia ser feito com o ambiente,
era sempre possível fazer mudanças. (hooks, 1995, p. 148, tradução nossa)

Sobre essa constante mudança, mencionada por hooks (1995), percebemos a realidade
de muitos territórios negros populares de Salvador, mais especificamente o entorno de
onde mora uma das autoras deste texto, que todos os dias observa transformações nas
casas de sua rua, seja de maior porte, como um novo pavimento, sejam pequenas
reformas, como pinturas das paredes ou instalação de azulejos. Quando não são os
próprios donos da residência que se munem de ferramentas, são os pedreiros da rua que
se encarregam; é muito raro ver profissionais desconhecidos e ainda mais improvável é
a presença de arquitetas ou engenheiras.

Na favela, as casas – a maior parte das infraestruturas em volta delas – são construídas
pelas próprias pessoas que moram nestes lugares a partir de regras, demandas e
constrangimentos particulares, dos quais a regulamentação estatal participa como um
elemento entre outros. Compreender como as pessoas concebem, constroem e
transformam as casas torna-se, portanto, um elemento que permite pensar a própria favela
– como forma urbana – e sua história (MOTTA, 2016, p. 211).

● 4
Endossando a preocupação com a história do território, via memória de seus sujeitos, na
conversa com LaVerne Wells-Bowie, bell hooks enfatiza a importância de honrar essas
memórias para preservar as práticas desenvolvidas, na relação passado-presente-futuro.

No geral, temos que pensar profundamente sobre os legados culturais que podem nos
sustentar, o que pode nos proteger contra o genocídio cultural, o que está destruindo
diariamente nosso passado. Precisamos documentar a existência de tradições vivas,
passadas e presentes, que podem curar nossas feridas e nos oferecer um espaço de
oportunidade onde nossas vidas podem ser transformadas. (hooks, 1995, p. 162. tradução
nossa).

Por meio desse processo de documentação de tradições vivas, a que se refere bell hooks
- procedimento importante na construção do que chamamos de arquivo urbano - podemos
perceber a arquitetura enquanto uma prática cultural. Sobre isso, La Verne (1995) aponta
que é preciso pensar a arquitetura de forma mais ampla, expansiva e enfatiza toda a
relação do construído com a vida das pessoas.

Antes que a arquitetura fosse esse bastião que é agora, a arquitetura era algo muito
informado por como as pessoas viviam suas vidas, quais eram seus sistemas de crenças,
como elas se relacionavam umas com as outras, suas circunstâncias sociais e econômicas
(hooks, 1995, p. 156. tradução nossa).

A proposta de estudar o território de Pau da Lima na perspectiva de construção de um


arquivo urbano é um procedimento teórico-metodológico de que lançamos mão para nos
conectar mais diretamente com um entendimento de cidade e apropriação do espaço
urbano partindo também dos próprios moradores do bairro. Essa abordagem, no entanto,
não significa o abandono de métodos de pesquisa em arquivos já constituídos, como
aqueles do EPUCS (Escritório do Plano de Urbanismo da Cidade de Salvador), do Arquivo
Histórico Municipal de Salvador, da Fundação Gregório de Mattos ou da Santa Casa de
Misericórdia. Tanto que enquanto pesquisamos e consolidamos o arquivo urbano de Pau
da Lima, identificamos igualmente iniciativas que animam o presente trabalho, entre as
quais, destacamos o Acervo da Laje e o Arquivo Afro-Fotográfico Zumvi. Ambas as
iniciativas relacionam práticas de arquivo e territórios populares negros e buscam, cada
uma a seu modo, contribuir na memória do povo negro desta cidade e sua fundamental
participação na configuração espacial de Salvador.

O “Arquivo Afro Fotográfico Zumvi”, presente no bairro da Fazenda Grande do Retiro, nos
mostra o quanto é importante resguardar e preservar a história, enquanto gesto de
resistência em meio às adversidades enfrentadas pelo nosso povo. Enquanto um arquivo
institucionalizado, com acervo principal composto de negativos e ampliações, além de
outros documentos, como cartões postais etc, o Zumvi preserva desde a década de 1990,
as fotografias de mais de 30 anos do Movimento Negro Unificado, também do movimento
de mulheres negras na luta por direitos, além dos registros dos blocos afro, da feira de
São Joaquim, das irmandades, entre outras temáticas1. Adentrar um arquivo significa se

1
Desde 2020, desenvolvemos colaborações com o Zumvi Acervo Afro-Fotográfico, no projeto "Cidade,
imagem, arquivo", desenvolvido no âmbito do grupo de pesquisa LEIA/CNPq (PPGAU/UFBA).

● 5
deparar com inúmeras histórias, lugares e gestos. Quando se trata de um arquivo
fotográfico negro em Salvador, entrar no arquivo significa tocar e ser tocada pelas
imagens que emergem dele. Essas imagens revelam histórias de lutas, apontam lugares
de reconhecimento e esboçam gestos de construção de uma cidade dentro de outra.

Já o “Acervo da Laje” reúne, em duas casas, no bairro São João do Cabrito, obras de arte
de artistas locais e anônimos, peças compradas, doadas, ou encontradas no lixo pelas
ruas, que contam a história do Subúrbio Ferroviário de Salvador. Os fundadores, Vilma
Santos e José Eduardo Santos, zelam com primor cada uma das centenas de peças, entre
elas mais de 300 peças já foram catalogadas e digitalizadas no site. O acervo funciona
como um espaço de museu e pesquisa, que surge do desejo de mostrar para o mundo as
belezas desse território da cidade, muitas vezes invisibilizado ou enxergado por um viés
de escassez e limitações. Fundado há mais de 10 anos, o Acervo da Laje é um grande
exemplo do que é possível descobrir sobre a cidade no cotidiano, e que muitas artistas
estão presentes nos territórios negros e não são vistos enquanto tais. Apesar de ter uma
proposta museal, o Acervo ainda não é visto dessa maneira nos circuitos tradicionais, por
onde circula grandes investimentos financeiros e midiáticos, diante das circunstâncias de
existência do Acervo, o que pode ser lido por conta das práticas racistas ainda presentes
na nossa sociedade. Localizado no Subúrbio, se propõe a contar, resgatar e preservar a
história, os artefatos, as obras de arte do povo negro residente desse território, não
interessa aos olhares daqueles que detêm o poder nesse meio.

Tendo em vista essas duas iniciativas arquivísticas e suas relações com os territórios
negros populares de onde vêm, almejamos, com este artigo – fruto de pesquisa em
estágio inicial – participar desse esforço coletivo em torno da história da cidade de
Savaldor e contribuir com essa lacuna crítica, no que concerne ao debate urbanístico e
arquitetônico sobre o miolo da cidade, mais especificamente, Pau da Lima. Já iniciamos a
montagem desse arquivo, em uma primeira ocasião de pesquisa 2, e mapeamos duas
importantes instituições com potenciais acervos para a investigação: a Associação de
Moradores de Pau da Lima (AMPLI) e a Paróquia Nossa Senhora Auxiliadora. Além disso,
conversamos com 6 interlocutores, os quais denominamos, como explicaremos adiante,
de Narradores de Pau da Lima. Para essas interlocuções, escolhemos pessoas, a partir de
um circuito afetivo e familiar, com as quais pudéssemos descobrir um pouco mais a
respeito de temas diversos, dentre os quais mobilizações coletivas, comércio local,
toponímia das ruas e história da construção, tudo relacionado às transformações espaciais
desta região da cidade.

2
Iniciamos esta pesquisa no âmbito do Trabalho Final de Graduação desenvolvido na FAUFBA, em 2022.
Conferir: SILVA, Deise Lima da. Arquivos Urbanos de Salvador: entre o Arquivo Fotográfico Zumvi e o
bairro de Pau da Lima. 2022. Trabalho final de graduação (Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2022.

● 6
MIOLO DE SALVADOR
A região de Pau da Lima, pela setorização municipal, configura a Prefeitura-Bairro IX de
Salvador e integra, além do bairro de Pau da Lima, os bairros de: Canabrava, Jardim
Cajazeiras, Jardim Nova Esperança, Nova Brasília, Novo Marotinho, Porto Seco Pirajá, São
Marcos, São Rafael, Sete de Abril, Trobogy, Vale dos Lagos, Vila Canária. O bairro se
formou no final da década de 1950, a partir de propriedades rurais que foram loteadas,
sendo ocupada inicialmente por muitos migrantes de baixa renda, do interior do estado,
que vieram em busca de melhores oportunidades na capital; e também por
soteropolitanos negros e pobres, que, não dispondo de espaços em áreas centrais da
cidade, precisaram estabelecer suas vidas numa região mais afastada e ainda com os
mínimos recursos, naquele momento. As primeiras residências, entre 1950 e 1960, em
sua grande maioria, eram edificadas em taipa utilizando a técnica da roça e o barro do
próprio terreno.

É importante falar sobre este bairro, Pau da Lima, porque percebemos que, apesar da
efervescência urbana que o caracteriza - a qual uma das autoras tem testemunhado e
participado ao longo de toda vida – este bairro está pouco presente nos debates
acadêmicos, quando se trata de arquitetura. É como se todas essas dinâmicas de
produção e apropriação do espaço, público e privado, e esses vários modos de fazer
cidade, não fossem reconhecidos enquanto cultura arquitetônica. Porém, aqui neste
território que habito, há sempre muita imaginação e muitas práticas de transformação
dos espaços, seja de habitação ou de trabalho. Por que não entender tal produção e
apropriação do espaço como cultura arquitetônica? (HOOKS 1995, p. 156). É este o
argumento central de bell hooks, no texto “Arquitetura na Vida Negra: Espaço de
Conversa com LaVerne Wells-Bowie”, em torno da construção de cidade que se dá nos
territórios negros, onde vemos que a potente apropriação do espaço e a dimensão estética
que dizem respeito a pessoas comuns, que podem enxergar em suas construções uma
relação direta com a liberdade, que atravessa as limitações materiais impostas por uma
sociedade racista.

Essa cultura arquitetônica, nós a percebemos em Pau da Lima, mas também em todos os
bairros populares de Salvador, que são maioria em termos de extensão territorial e
população na cidade, e que são territórios negros (FIGUEIREDO; ESTÉVEZ; ROSA; 2020).
Pau da Lima é um bairro majoritariamente negro, com população de baixa renda, com
renda média como apontada pelo Obervatório SSA abaixo do salário mínimo:

Em 2010, o bairro Pau da Lima contava com uma população total de 24.693 habitantes, a
maior parte se autodeclarou parda (55,01%) e preta (30,62%), do sexo
feminino (52,48%) e se encontrava na faixa etária de 20 a 49 anos (53,16%). No que diz
respeito aos domicílios, 3,17% dos responsáveis não eram alfabetizados e apesar de 41,5%
estar na faixa de 0 a 1 salário mínimo, a renda média dos responsáveis por domicílio no
bairro era de R$1.007,00 (Observatório SSA, 2018).

Na história recente da capital baiana, fica evidente a concentração de recursos e


investimentos em localidades mais centrais da cidade, nos bairros da Barra, Graça e
Corredor da Vitória, ou no vetor de crescimento dos condomínios de alto-padrão, nas

● 7
proximidades da Avenida Paralela, todos de maioria branca. Identificamos essa
concentração de recursos beneficiando a população branca quando observamos também
a expulsão de população negra e de baixa renda em prol de um discurso de modernização
voltado para o turismo, como o caso das reformas no Pelourinho na década de 1990, que
não contribuíram para o desenvolvimento social da população ali residente, vista como
indesejável (SANTANNA, 2017, p.111).

Uma grande quantidade de equipamentos culturais se encontra distante do território de


Pau da Lima, e esse deslocamento se torna inevitável para ir a Faculdade, visitar museus,
assistir a uma peça ou show, entre outras atividades. Diante disso, uma narrativa pelo
viés da ausência seria bastante imediata, e até mais simples e óbvia, ao tratar desse
território. No entanto, o que pretendemos é chamar atenção para toda uma cultura não
somente construtiva, mas arquitetônica, que podemos acessar por meio da riqueza de
informações guardadas com os moradores, em especial pela memória deles, que nos
encaminha para novas possibilidades de entendimento dos processos de produção e
apropriação do espaço em Salvador, e para uma ampliação de perspectiva no contexto
da construção da cidade. Propomos, para tanto, a construção do que chamamos de
Arquivo Urbano de Pau da Lima, o qual vislumbramos enquanto um repositório de
documentos e informações do bairro, que se inicia com pesquisas em determinadas
instituições e com a interlocução junto a um circuito afetivo familiar, mas que visa a se
expandir numa construção coletiva, envolvendo inúmeros agentes da comunidade Nesse
sentido, esta pesquisa visa a contribuir com o campo da história de Salvador, mais
especificamente da história da arquitetura e do urbanismo desta cidade.

ARQUIVO URBANO DE PAU DA LIMA

Figura 1: Montagem do Arquivo Urbano de Pau da Lima. Fonte: acervo da autora (2022).

● 8
O que vamos apresentar aqui são fragmentos do Arquivo Urbano de Pau da Lima, arquivo
em processo de construção. Optamos por apresentar tais fragmentos documentais por
meio de cinco narradoras e de uma fabulação, realizada a partir dessas interlocuções.

Tendo em vista a grande dimensão territorial do bairro de Pau da Lima e sua


complexidade, foi preciso realizar um recorte espacial para o desenvolvimento do trabalho
que ora apresentamos. Para isso, decidimos por estudar a Rua São Domingos, onde mora
uma das autoras - que agora assume a primeira pessoa do singular - e as ruas conectadas
a ela, como a Rua da Redenção e a Rua Celina Ferreira, além das travessas. Abordo
também uma localidade da Avenida São Marcos, no entorno da Rua São Domingos e outra
localidade no final de linha de Pau da Lima.

Partindo para as interlocuções, escolhi pessoas com as quais eu pudesse descobrir um


pouco mais a respeito de temáticas diversas. Com a interlocutora Ana Eloy, ex-líder AMPLI
e atualmente comerciante, encontramos fontes para pensar a dinâmica da associação de
moradores e, também, a efervescência do comércio local. Com Nete Neves, liderança
paroquial, trazemos para nosso arquivo os processos de construção da capela, importante
marco na paisagem local, registrados em filmes 35mm ainda não revelados, e a
espacialidade das celebrações religiosas, em casas e garagens. Com Terezinha Peruna,
pedagoga aposentada, adentramos a espacialidade do quintal, um dos poucos que ainda
existem na região, e o cultivo das plantas medicinais como fator de organização da casa.
Com Susana Ferreira, cozinheira, foi possível incluir no nosso arquivo fragmentos em
torno da toponímia da região, além dos desafios de comércio de rua, por meio da barraca
de lanches artesanais que ela gerencia. Com José Lima, meu pai, trazemos para o arquivo
a histórias da construção das primeiras casas na região, muitas feitas em taipa pelo seu
pai, Alexandre Lima, um homem do interior da Bahia, que ergueu muitas residências na
capital.

Ao final das conversas, propus uma fabulação e entreguei narrativamente uma caixa do
tamanho do mundo perguntando o que cada um colocaria dentro dela com relação ao
bairro, à região, à rua São Domingos. Esse exercício funciona como um sintetizador de
toda a conversa, um ativador de memória de modo mais resumido e intenso. Em algumas
conversas, derivou para uma lista de coisas, acontecimentos, pessoas; noutras, uma
única frase. Seguimos aqui o argumento Ursula Le Guin, a propósito de um outro jeito de
ler a história da humanidade, por meio de um objeto e de um gesto:

Se é humano colocar algo que você quer, porque é útil, comestível, ou bonito, numa bolsa,
numa cesta, ou num pedaço de casca ou numa folha enrolada, ou num ninho tecido com
seu próprio cabelo, ou com o que você tenha à mão, e então levá-lo para casa com você,
sendo a casa outro tipo de bolsa ou saco, um recipiente para pessoas, e então mais tarde
tirá-lo e comê-lo ou compartilhá-lo ou armazená-lo para o inverso em um recipiente mais
sólido ou colocá-lo num patuá ou no altar ou no museu, o lugar sagrado, o espaço que
contém o que é inviolável, e depois, no dia seguinte, provavelmente voltar a fazer mais do
mesmo - se isto é humano, se é isso que é preciso, então afinal eu sou humana. (GUIN,
2021, P. 20-21)

● 9
Proponho, então, compreender a "caixa" que mencionei para o exercício de fabulação
como "cesta", uma cesta sem tampa, apontando para o sentido de coleta, como nos traz
a reflexão de Úrsula. Quem sabe uma cesta feita na Ilha de Maré por seu Nôca, cesteiro
mais antigo da ilha, fotografado por Lázaro Roberto (Arquivo Zumvi) na década de 1990.

CINCO NARRADORAS E UMA FABULAÇÃO

Ana Eloy

Figura 2: Fachada da venda de Ana Eloy. Fonte: Acervo da autora (2022).

Ana Eloy atuou por muitos anos na liderança da Associação dos Moradores de Pau da
Lima (AMPLI), participando de diversas atividades na década de 90 e início dos anos 2000.
Eu já desejava conversar com Ana, por conta da venda, uma pequena mercearia que ela
possui no nível térreo da sua casa. Essa venda abastece toda a rua com uma variedade
de materiais, desde produtos alimentícios e bebidas, até produtos de limpeza e higiene
pessoal. Quando perguntei qual a memória mais forte que ela teve de vivência no bairro,
ela me contou sobre uma caminhada pela paz organizada na AMPLI. Quando perguntei a
Ana o que ela guardaria numa caixa de memórias ela recordou lugares, gestos e pessoas.

E me disse: Eu colocaria os anos de lutas que nós travamos na comunidade para


reivindicar melhorias; colocaria a nossa evolução aqui, com minha mãe que a duras penas

● 10
conseguimos ter a nossa residência, colocaria a mercearia “Casa São Domingos”; as
escolas públicas que estudei, colocaria também nossa vizinha falecida, Dona Elza, que
muito ajudou minha família.

Nete Neves

Figura 3: rolos de filme não revelados de Nete Neves. Fonte: Acervo da autora (2022).

Nete é minha madrinha, mora no bairro desde 1984, migrante da cidade de Paulo Afonso,
no interior do estado. Decidi conversar com ela porque atua ativamente na Comunidade
Católica presente na região e saberia me informar a respeito da construção da capela na
rua São Domingos. O que mais me chamou atenção na conversa, foi o seu gesto de
escrever a história da comunidade e encher um caderno com histórias escritas misturadas
com as fotos 10x15 de momentos importantes, que ela registrou. Ela possui também 12
rolos de filmes não revelados.

Quando eu perguntei o que ela guardaria numa caixa de memórias, me disse que colocaria
a história da comunidade e todas as lutas e pessoas empenhadas em fazer acontecer a
igreja ali.

Nos filmes não revelados, guardados por minha madrinha, está latente uma memória
visual de apropriação do espaço urbano, através da construção de uma capela no bairro.

● 11
Na ausência das imagens reveladas, a imaginação ganha espaço e podemos fabular a
respeito do que está registrado ali.

Podemos ver uma reunião de pessoas simples, usando camisas da festa do padroeiro,
calçando sandálias, e alguns pés marcados com a cor da terra daquele terreno, que viria
a ser mais tarde “a casa de Deus”. Vemos também um padre, depois da primeira Missa
no terreno, animando as pessoas a depositarem em uma cápsula do tempo os registros
daquele dia. Na cápsula podemos ver uma moeda de um real, a primeira página do jornal
daquele dia, um folheto com a liturgia, a folha de cânticos, uma lista com o nome de
todos os presentes e as preces daquela celebração. Daqui a algumas centenas de anos,
quando uma imensa reforma precisar acontecer e tirar tudo do lugar, os tataranetos
daquelas senhorinhas da primeira Missa verão esses artefatos e dirão: encontramos um
tesouro!

Terezinha Peruna

Figura 4: plantas do quintal de Terezinha Peruna. Fonte: Acervo da autora (2022)

Ela serviu na igreja por muitos anos como ministra da Eucaristia, e para realizar o serviço
precisava visitar os doentes em suas casas, subia e descia escadas, ladeiras, ia para onde
precisasse. Para ir à capela, ela desce uma pequena ladeira e sobe alguns degraus para
atravessar da sua rua para a rua São Domingos.

● 12
Na conversa ela me contou que veio do interior no ano de 1976, quando se casou, e foi
morar na Rua Rio Alves, a algumas ruas de distância de onde vive hoje, e lá viveu durante
vinte anos. Já na rua Celina Ferreira ela e o marido construíram sua própria casa há mais
de vinte anos, no terreno onde funcionava uma oficina, e na vizinhança tinham poucas
residências. No meio da conversa, ela me mostrou o seu quintal, me mostrou as suas
plantas medicinais, e me deu as folhas para cheirar. Quintais são raros na vizinhança, os
lotes são pequenos, e muitas vezes subdivididos em mais de uma casa, de acordo com
as necessidades das famílias. Utilizando alternativas para ter algum verde em casa,
apesar da falta de espaço, são cultivadas hortas nas lajes, pequenas varandas e
jardineiras, além das plantas em vasos dentro de casa.

Suzana Ferreira

Figura 5: fachada da venda de Suzana Ferreira. Fonte: Acervo da autora (2022)

Dona de uma barraca na Avenida São Marcos, localizada entre a Rua São Domingos e a
Rua Redenção, Suzana vende lanches artesanais, que ela mesma produz. A barraca existe
desde 1996 e desde então faz parte do lanche de crianças, adolescentes e adultos por ali,
entre passantes e clientes assíduos.

Suzana é filha de Celina Ferreira. Celina Ferreira é o nome da rua onde dona Terezinha
mora. Segundo Suzana, os nomes das ruas da região foram escolhidos por seu avô
Marcos, o dono da fazenda que deu origem ao bairro, como forma de homenagear os
seus parentes ainda vivos naquele momento.

● 13
Quando perguntei o que ela guardaria numa caixa de memórias, ela me disse que
guardaria a “roça” , que foi onde ela cresceu, brincou e se divertiu muito.

Há mais de 12 anos essa região foi vendida, mas pertencia a sua família. Hoje estão
localizadas uma loja da Marisa, uma agência da Caixa Econômica Federal e uma loja da
Narciso. Costumávamos chamar a área de “roça”, onde estava o remanescente da
fazenda que deu origem ao bairro. O terreno da “Roça” é numa das esquinas da Rua da
Redenção e ficava em frente à casa de seu Marcos, onde eu atravessava, durante minha
infância, por um portão que estava sempre aberto, para cortar caminho. Era divertido
atravessar aquele lugar, que era ao mesmo tempo a casa de alguém e uma passagem
urbana: assim que passava do corredor avistava um campo de terra batida, onde os
meninos costumavam jogar o “baba”. Ali eu também via os grandes caminhões “pipa”
que eram abastecidos na fonte do terreno para fornecer água para as casas da região,
quando faltava o abastecimento da companhia de águas e esgotos do estado.

José Lima

Figura 6: Estrela natalina na residência de José Lima. Fonte: Acervo da autora (2022)

Uma das pessoas com quem também conversei foi painho. Nos seus 72 anos, ele mora
há mais de 50 em Pau da Lima, aonde chegou com os seus pais, vindo do interior, e onde
escolheu continuar vivendo depois que constituiu família.

● 14
Nossa casa fica no mesmo lote da casa dos meus avós, nos fundos, com acesso por um
beco lateral. É como se fossem duas casas em uma, separadas apenas por uma varanda,
onde fica a escada para a laje.

Minha avó gostava muito de plantas, mas depois da morte de meu avô e com a idade já
avançada ela parou de cultivar. Por um tempo ficamos apenas com um pequeno verde na
frente de casa. Mas quando painho se aposentou ele decidiu cultivar um viveiro de plantas
na laje, retomando a tradição de minha avó. Ele é responsável também por outra tradição
na laje, a estrela de Natal. É uma forma de celebração que transborda da sala de casa
para a rua, um símbolo de alegria e esperança partilhado, que já existe há mais de 25
anos.

Quando decidi conversar com painho, eu sabia que ele teria muitas histórias interessantes
para contar, e já imaginava como seriam algumas delas. Porém, a que eu mais gostei de
ouvir foi a maior surpresa de todas as escutas que fiz durante essa pesquisa.

Uma fabulação

Figura 7: Meninos em Ilha de Maré. Fonte: Lázaro Roberto - Arquivo Zumvi (1990)

Em Castro Alves, interior da Bahia, ele era conhecido como o melhor carpinteiro da região.
O pessoal das fazendas chamava para construir cancela, porteira, curral, casas de taipa,
e também para pintar. Às vezes, no lugar da serra, martelo e outras ferramentas de
construção, ele pegava na enxada e ia cuidar da lavoura, todo o tipo de plantação. O que
ele gostava mesmo era de construir, mas na década de 1960 os recursos estavam cada
vez mais escassos na região e nos povoados vizinhos, por conta da grande seca, que

● 15
tomava todo o nordeste. Já não tinha tanta gente produzindo nas lavouras e nem gente
com recursos precisando dos seus serviços.

Quando as coisas ficaram muito difíceis no povoado onde constituiu família, ele tomou a
decisão que mudaria para sempre a sua história. Alguns parentes tinham ido morar na
capital e estavam mandando cartas dizendo que tinham emprego e moradia garantidos e
o convenceram a migrar. Então, nosso personagem partiu para a cidade grande com sua
esposa e seus três filhos, carregando uma mochila nas costas, suas tradições e muita fé
em dias melhores. Era o final dos anos 60 e, assim como eles, muitas outras famílias do
interior da Bahia começaram a se deslocar para aquela cidade que tinha sido a primeira
capital do Brasil.

Naquele momento as promessas de melhorias eram altas em Salvador, mas a realidade


muitas vezes não era a mais fácil. Nada foi fácil, mas determinação nunca faltou. Saindo
da Rodoviária Velha, seu ponto de chegada, seu Alexandre foi com a família para um
lugar a que chamavam de Pau da Lima. Disseram para ele que ali tinha um homem
chamado Marcos, que estava dividindo suas terras e queria fazer umas casas para vender.

“Me chamo Alexandre Ferreira Lima, seu Marcos Ferreira…” Ele se apresentou e
completou: “O sobrenome é o mesmo, só que não somos parentes, mas uma coisa a
gente tem igual… o senhor quer construir e eu também quero. O senhor entra com a terra
e o ordenado pelo serviço e eu entrego uma casa pronta para morar em poucos dias,
fechamos negócio agora?”

E como se não bastasse essa proposta, ele ainda perguntou qual era o lote mais barato,
porque a primeira casa que ele ia construir seria para morar com sua mulher e seus filhos.

“Esse Alexandre é retado, gostei dele!” Deve ter sido o que passou na cabeça de seu
Marcos, porque ele aceitou a proposta de imediato.

Pouco tempo depois, seu Alexandre se tornou o construtor que seu Marcos tanto estava
aguardando, para dar início ao seu projeto de casas e loteamento da sua fazenda.

Com o dinheiro que trouxe do interior, seu Alexandre realmente comprou o terreno mais
barato, no final de uma ladeira, e fez ali sua primeira casa de taipa na cidade grande.
Para a estrutura pegou varas de tudo quanto é planta. Até as varas de dendê ele trazia
da mata onde hoje é o chamado “Coroado”, perto da UPA. A cobertura era de palha, tudo
muito pequeno e simples, mas era o seu abrigo e assim começou a viver na cidade.

Logo depois seu Marcos começou a divisão dos lotes, em alguns vendia o terreno puro,
em outros vendia a casa feita. Todas as casas que seu Alexandre fazia eram de taipa, a
técnica que ela aprendeu na roça e dominava completamente. Quando os filhos estavam
trabalhando em outro lugar, contratava algum ajudante, fazia a estrutura com muito
esmero, trançava as varas deixando o espaço de um palmo de vazio para o barro. Depois

● 16
da estrutura toda feita, cobria com a telha de eternit e para o fechamento fazia mutirão.
Era mulher, homem, menino, chegava todo mundo para ajudar.

O barro usado vinha da escavação para instalação da fossa séptica. Com cerca de 3m de
profundidade era possível retirar uma grande quantidade de barro, suficiente para
misturar com mais alguma quantidade do próprio terreno e utilizar nas paredes da casa.
Misturava bem e pisava bastante o barro até ficar com uma textura grudando bastante.
Quando o barro estava no ponto, geralmente o trabalho era de dois em dois em cada
trecho das paredes. Um na parte de dentro, um na parte de fora, uma coreografia ritmada
de sopapos de um lado e de outro. Depois das paredes todas fechadas com o barro, ele
esperava alguns dias até que estivesse completamente seco para então fazer o reboco
com areia e arenoso. Passava bem essa massa e deixava a parede lisinha, depois pintava
com tinta de saco.

Olhando rapidamente, ninguém sabia que as casas eram de taipa, só se sabia mesmo
que era de taipa por causa das forquilhas. Para fazer as casa de taipa, seu Alexandre
botava esteios de um lado e do outro, com uma peça em cima, para poder aguentar a
estrutura. Colocava também, quatro peças de madeira atravessando, para conseguir
fazer a cobertura, então o povo só sabia porque a peça de madeira ficava em cima. As
madeiras das laterais também eram cobertas de massa. Ele picotava a madeira toda,
jogava a massa e depois cobria.

Fazia tudo igual como as casas no interior, porque era o costume de fazer assim por lá.
Por isso que seu Marcos pagava ele para fazer, porque as poucas pessoas na cidade
grande que tinham essa técnica não estavam disponíveis para trabalhar. Alexandre
chegou e fez todas as casas que Marcos decidiu vender. Foram cerca de 10 casas, no
mínimo, algumas bem no início da rua, outras já no final. Bem espalhadas para manter
também os lotes vazios, que ele ainda pretendia vender. Assim a rua São Domingos, cujo
primeiro construtor foi seu Alexandre, foi se consolidando e os espaços começaram a ser
ocupados por novas famílias. Aos poucos, outras casas foram sendo construídas, algumas
também em taipa, outras já de alvenaria. Os primeiros moradores, depois de algum
tempo residindo no lugar e com as condições de vida mudando, já começavam a reformar.

Com o dinheiro recebido das primeiras casas, seu Alexandre conseguiu juntar recurso
suficiente para comprar um terreno melhor, mas se conseguisse por um preço baixo seria
o ideal. Também nesse momento, sua esposa o ajudou, conversando bastante com a
esposa de Marcos, entre uma reza e outra. Dona Maria, a esposa de seu Alexandre,
sempre foi rezadeira: já rezava na roça e trouxe a tradição de lá. Ser rezadeira significava
ter na palavra, na fé e nos gestos o poder de cura. E muitas pessoas recorriam a ela
quando estavam com algum mal estar, algum desconforto sem explicação aparente. E ela
rezava, na sala de casa, sempre antes do pôr do sol, usando nas mãos um ramo de folhas
colhidas na hora, das plantas que tinha em casa. Algumas vezes, a esposa de seu Marcos
recorria às rezas de dona Maria e numa dessas, na hora do cafézinho, Dona Maria
aproveitou para fazer o pedido. E a senhora prometeu que conseguiria com o marido um

● 17
bom terreno, no plano, para a sua família morar. E assim ela fez: em pouco tempo eles
construíram a casa, em terreno plano, longe dos desconfortos da ladeira, e passaram a
morar ali com os três filhos e mais uma filha recém adotada.

Na nova casa, seu Alexandre e Dona Maria, meus avós, viveram até a morte. Minha vó
fez questão de que tivesse plantas na parte da frente, para usar em suas rezas. E vinha
gente de todo canto, pobre e rico, novo e velho, homem ou mulher, para que ela rezasse;
bastava ter fé.

CONCLUSÃO
Ao reunir os vestígios provenientes dos relatos das pessoas, aos lugares e aos objetos
com que seguimos manuseando nosso repositório documental, vamos aos poucos criando
um arquivo que é vivo por ser movente: a todo momento são adicionados novos
elementos, com os quais vislumbramos novas camadas de significação em torno da
história desta região de Salvador. Memórias que se entrelaçam, histórias que se
desenrolam, tudo isso constitui um rico material capaz de dar a ver realidades presentes
em Pau da Lima. Histórias que não estão nas abordagens urbanísticas pautadas pela
sequência de planos que configuram a Cidade da Bahia. Mas que dão forma a essa cidade,
com imensa presença e resistência.

A dimensão desse procedimento teórico-metodológico que realizamos, a criação de um


arquivo urbano, é ainda incipiente e já vemos a urgente necessidade de dar continuidade
a esse experimento, ampliando o circuito de interlocutores para além da familiaridade,
mas sem perder de vista a presença dos afetos. E incluindo ainda instituições, como, por
exemplo, a Associação de Moradores de Pau da Lima (AMPLI) e a Paróquia Nossa Senhora
Auxiliadora; a “Mansão do Caminho”, instituição fundada pelo líder espírita Divaldo
Franco, que possui em sua área escola, creche, centro médico, com todos os serviços
gratuitos que atendem a comunidade desde a sua fundação, que se confunde com a
fundação do próprio bairro por ter ocorrido no mesmo período, além das atividades do
centro espírita. Há também a comunidade “Fraternal” fundada por uma família de
moradores antigos do bairro, onde o acolhimento e valores humanos/religiosos são a
essência do lugar. Por muito tempo o teatro infanto juvenil foi a principal atividade que
possibilitou o ingresso de jovens nas artes cênicas. Buscaremos também o Jardim
Botânico de Salvador (JBS), localizado na região, que é um importante equipamento
público municipal, que preserva um remanescente da Mata Atlântica e diversas espécies
da flora e fauna. Ele passou por reforma recente, porém o contato com a comunidade
local ainda é mínimo, no âmbito da pesquisa almejamos promover ações no JBS que
integrem a comunidade, como uma exposição para mostrar materializações desse
arquivo.

Para o desenvolvimento coletivo da montagem desse arquivo urbano, propomos realizar


em futuro próximo, enquanto parte do desdobramento desse procedimento teórico-

● 18
metodológico, oficinas de arte-memória-educação3 com moradores da região da
Prefeitura-bairro Pau da Lima, acima de 15 anos, abrangendo tanto estudantes de escola
pública, quanto adultos e idosos que se interessem em fazer o resgate da memória do
bairro, nas quais serão produzidos coletivamente novos materiais para ampliação deste
Arquivo Urbano.

REFERÊNCIAS
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mulheres? Reflexões sobre experiências teórico-metodológicas com e desde as margens
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SANTHIAGO, Ricardo. História oral e as artes: percursos, possibilidades e desafios. Revista
História Oral. 2013. Disponível em:

3
Essas oficinas serão realizadas no âmbito de um projeto aprovado em edital de incentivo à cultura.

● 19
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SANTOS, Bianca Silva Almeida. Reconectar: diretrizes projetuais para a reestruturação da
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NEVES, Maria Clarete (Nete) [abr. 2022]. Entrevistadora: Deise Lima da Silva. Salvador, BA,
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PERUNA, Terezinha [mai. 2022]. Entrevistadora: Deise Lima da Silva. Salvador, BA, 03,
Mai. 2022.
SILVA, José [abr. 2022]. Entrevistadora: Deise Lima da Silva. Salvador, BA, 25, Abr. 2022.

● 20
ESTAÇÕES FERROVIÁRIAS DA ESTRADA DE FERRO MOSSORÓ
A SOUSA NA CONTEMPORANEIDADE:
Levantamento de campo de suas características
THE RAILWAY STATIONS OF MOSSORÓ TO SOUSA RAILWAY IN
CONTEMPORARY TIMES/ LAS ESTACIONES FERROVIARIAS DEL
FERROCARRIL DE MOSSORÓ A SOUSA EN LA CONTEMPORANEDAD
Eixo: Memórias, representações, arquivos

MEDEIROS, Gabriel Leopoldino Paulo de


Professor Doutor do curso de Arquitetura e Urbanismo, UFERSA.
gabriel.leopoldino@ufersa.edu.br
ALVES, Jassira Rodrigues Pereira
Estudante do Curso de Arquitetura e Urbanismo, UFERSA.
jassira.alves@alunos.ufersa.edu.br
SILVA, Arthur Oliveira
Estudante do Curso de Arquitetura e Urbanismo, UFERSA.
arthur.aladiah@gmail.com
SOUZA, Juliana de Castro
Estudante do Curso de Arquitetura e Urbanismo; UFERSA
juliana.souza@alunos.ufersa.edu.br
RESUMO

As estações ferroviárias visitadas e registradas por esta pesquisa, da Estrada


de Ferro de Mossoró a Sousa, foram construídas entre as décadas de 1910 e
1950 e constituem patrimônio edificado do Rio Grande do Norte e da Paraíba.
A pesquisa de campo realizada em fevereiro de 2021 permite notar os métodos
mais usuais, assim como os materiais empregados - tijolos, telhas, madeiras
– e a disposição de seus espaços internos e ornamentos, basilares em sua
conformação arquitetônica. O objetivo do presente trabalho é realizar uma
breve discussão sobre a importância dessas construções tradicionais e seu
atual estado de preservação/conservação. A pesquisa parte da necessidade de
levantar a discussão sobre políticas de salvaguarda desse patrimônio,
constatando a situação contemporânea dos bens. Busca ainda correlacionar a
edificação desses bens ao processo de ocupação, expansão e o surgimento da
estrada de ferro.

PALAVRAS CHAVE Estações; Levantamento de campo; Patrimônio


Ferroviário; Nordeste-Brasil; Mossoró.

ABSTRACT

The railway stations visited and photographed by this research, from Mossoró
to Sousa Railway, were built between the 1910s and 1950s and constitute built
heritage in Rio Grande do Norte and Paraíba. The camp research carried out in
February 2021 shows the most common construction methods employed, as
well as the materials used - bricks, tiles, wood – and the internal layout and
ornamentation, essential items in their architectural conformation. The
objective of the present work is to carry out a brief discussion about the
importance of these traditional buildings and their present
preservation/conservation status. The research departs from the necessity to
discuss about policies to safeguard this heritage, realizing their contemporary
situation. It also seeks to correlate the construction of these buildings with the
process of occupation, expansion and the emergence of the railroads.
KEY-WORDS: Stations; Camp Research; Railway Heritage; Northeast-Brazil;
Mossoró.

• 3
INTRODUÇÃO

As ferrovias surgiram na primeira metade do século XIX, sendo a primeira linha férrea do
mundo inaugurada em 27 de setembro de 1825, na Inglaterra. Fazia o trajeto de 40 km
ligando as cidades de Stockton e Darlington, no condado de Durham. Na segunda metade
do século XIX, o impulso de construção de linhas férreas no Brasil por parte dos ingleses
ganha substrato, quando se promulga a Lei n. 2.450, de 1873, que garantia juros de 7%
sobre o capital investido, dinamizando assim o aparecimento e desenvolvimento de vias
férreas, que se tornava um atrativo negócio (OLIVEIRA, 2019).

As primeiras linhas férreas no país surgiram com o objetivo de integrar o território


brasileiro em vias de consolidação territorial (OLIVEIRA, 2019), que na transição entre
XIX e XX ainda dependia de estradas carroçáveis, que tornavam imensas as dificuldades
de transporte e de desenvolvimento das diversas regiões. A lentidão atrapalhava
consubstancialmente o comércio e desenvolvimento urbano brasileiros.

No Nordeste, e especificamente no Rio Grande do Norte, as motivações para construção


das primeiras estradas de ferro não foram diferentes. Nos primeiros anos do século XX,
a economia norte-rio-grandense assentava sua base produtiva na cotonicultura, cujo
principal expoente era a região do Seridó, na produção salineira – concentrada no Oeste
Potiguar e no litoral central do estado – e, em menor medida, no cultivo da cana-de
açúcar, mais significativamente no litoral oriental e tendo por centros principais o
município de Ceará-Mirim e os vales úmidos ao sul da capital Natal (ANDRADE, 1994;
FELIPE, 2011 apud ARAÚJO, MEDEIROS, 2019). Com a produção estadual concentrada
em parte do interior, a economia enfrentou entrave na circulação de suas mercadorias
pela ausência de acessos capazes de articular os centros comerciais e as zonas
interioranas com os portos, o que ocasionava a urgente necessidade da instalação de vias
capazes de interligar suas diferentes regiões.

A parcela oriental teve, em certa medida, primazia no quesito ferroviário, tendo em vista
que as primeiras linhas férreas do RN foram construídas partindo da capital Natal, sendo
elas a Estrada de Ferro de Natal a Nova Cruz e a Estrada de Ferro Central do Rio Grande
do Norte, primeiros trechos datados de 1881 e 1906, respectivamente (ARAÚJO,
MEDEIROS, 2019). A terceira ferrovia, que partia de Mossoró, foi resultado de uma luta
política das elites da região e do estado, que se mobilizaram em prol de importante via
para o desenvolvimento não somente do sertão potiguar, mas de toda uma porção do
alto sertão paraibano e cearense que carecia de interligação direta com o litoral. Essa
ferrovia iniciou sua construção na década de 1910, porém somente seria finalizada na
década de 1950, apesar de ter sido operante até fins da década de 1980. Portanto, perfez
uma trajetória de 70 longos anos de operação e trouxe desenvolvimento a essa porção
do país.

• 4
Dentro dessa conjuntura de criação das ferrovias potiguares, este trabalho procura
compreender a situação contemporânea de algumas das estações de trem dessa ferrovia
de Mossoró-RN a Sousa-PB. Por seu caráter histórico, artístico e cultural, achou-se
primordial realizar visitas para levantamento e registros fotográficos de suas condições
de preservação e conservação atuais, destacando algumas de suas características
arquitetônicas. As visitas in loco às edificações foram realizadas em fevereiro de 2021, e
consistiram no levantamento das plantas das edificações, bem como, na captura
fotográfica dos bens, onde se verificou questões sobre seus estados de preservação e
conservação.

É importante ressaltar que esta pesquisa faz parte de um projeto maior, intitulado
“Formação de redes urbanas no Oeste Potiguar: caminhos, desenvolvimento urbano e
arquitetura (1756-1950)”, da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA),
Campus Pau dos Ferros e coordenado pelo Prof. Dr. Gabriel Leopoldino. Esse projeto
possui, em linhas gerais, o intuito de estudar e entender o surgimento e evolução de
cidades do Oeste Potiguar e a consequente conformação de redes urbanas, suas relações
econômicas e sociais, e sua influência no desenvolvimento dos povoamentos de forma
independente e contínua ao longo da história.

O material apresentado neste artigo foi estruturado nos seguintes itens: 1) A questão
contemporânea do patrimônio ferroviário no Brasil; 2) Contextualização e histórico das
estações ferroviárias no Oeste Potiguar; e 3) Tópicos por estação visitada na linha
Mossoró-Sousa (Mossoró, Demétrio Lemos/Antônio Martins, Alexandria e Sousa); e 4)
Conclusão.

A questão contemporânea do patrimônio ferroviário no Brasil

A questão do patrimônio ferroviário no Brasil envolve a gestão e manutenção dos bens


oriundos do espólio da Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA), extinta no ano de 1999
durante o segundo governo de Fernando Henrique Cardoso. Os bens inoperantes do
espólio – pois os bens operantes passaram à iniciativa privada – tornaram-se a partir da
Lei 11.483, de 31 de maio de 2007 – durante o governo Lula – responsabilidade do
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que passou a receber e administrar
os bens móveis e imóveis de valor artístico, histórico e cultural, oriundos da RFFSA, bem
como, foi incumbido de “zelar pela sua guarda e manutenção”. Desde então, o IPHAN tem
realizado um trabalho de avaliação daqueles bens que são detentores de valor histórico,
artístico e cultural e os têm incluído em uma Lista do Patrimônio Ferroviário Brasileiro.

Segundo o próprio IPHAN, o patrimônio ferroviário oriundo da RFFSA “engloba bens


imóveis e móveis, incluindo desde edificações como estações, armazéns, rotundas,
terrenos e trechos de linha”, até parte do material rodante, como máquinas e locomotivas,
vagões, carros de passageiros, maquinário, mobiliários, relógios, sinos, telégrafos, bem

• 5
como os acervos documentais das companhias e projetos. No ano de 2010, foi emitida
pelo IPHAN a Portaria Nº 407, de 21 de dezembro de 2010, que estabelecia critérios e
diretrizes de trabalho para atender a Lei 11.483. Essa portaria dispunha parâmetros de
“valoração e procedimento de inscrição na Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário,
visando à proteção da memória ferroviária, em conformidade com o art. 9º da Lei nº
11.483/2007”. Nela ficaram estabelecidos os seguintes critérios:

Art. 3º Fica instituída a Comissão de Avaliação do Patrimônio Cultural Ferroviário, para fins
de aplicação do art. 9º da Lei nº 11.483/ 2007. § 1º A Comissão de Avaliação do Patrimônio
Cultural tem como atribuição decidir acerca do valor histórico, artístico e cultural de bens
móveis e imóveis. § 2º A Comissão de Avaliação do Patrimônio Cultural Ferroviário será
presidida pelo Diretor do Departamento do Patrimônio Material e Fiscalização - DEPAM.
(IPHAN, Portaria Nº 407, de 21 de dezembro de 2010).

Nesse contexto, foi criada dentro do Departamento de Patrimônio Material do Iphan –


DEPAM – a Coordenação Técnica do Patrimônio Ferroviário – CTPF –, responsável por
normatizar as ações de patrimonialização, a partir do processo de valoração com os
pedidos de inscrição na Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário - LPCF – através da
Comissão de Avaliação do Patrimônio Cultural Ferroviário - CAPCF.

Mais recentemente, neste ano de 2022 o IPHAN emitiu a Portaria IPHAN nº 17, de 29 de
abril de 2022, que: “Dispõe sobre os critérios de valoração e o procedimento de inscrição
de bens na Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário”. Essas ações dão continuidade às
iniciativas anteriores de salvaguarda e proteção à memória ferroviária e estão em
conformidade com o art. 9º, da Lei nº 11.483, de 31 de maio de 2007, que: “Dispõe sobre
a revitalização do setor ferroviário, altera dispositivos da Lei no 10.233, de 5 de junho de
2001, e dá outras providências”. O referido artigo 9º da Lei de 2007 determina que:

Art. 9 - Caberá ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN receber e


administrar os bens móveis e imóveis de valor artístico, histórico e cultural, oriundos da
extinta RFFSA, bem como zelar pela sua guarda e manutenção. § 1 - Caso o bem seja
classificado como operacional, o IPHAN deverá garantir seu compartilhamento para uso
ferroviário. § 2 - A preservação e a difusão da Memória Ferroviária constituída pelo
patrimônio artístico, cultural e histórico do setor ferroviário serão promovidas mediante: I
- construção, formação, organização, manutenção, ampliação e equipamento de museus,
bibliotecas, arquivos e outras organizações culturais, bem como de suas coleções e acervos;
II - conservação e restauração de prédios, monumentos, logradouros, sítios e demais
espaços oriundos da extinta RFFSA.

Portanto, desde 2007 há uma atribuição ao IPHAN, em especial aos departamentos


estaduais do Instituto, de realizar o levantamento desses bens e prezar pela sua
conservação e preservação, assim como estimular ações no âmbito da memória
ferroviária. Esta tarefa se mostrou recentemente de uma abrangência hercúlea, pois ao
todo segundo o próprio IPHAN são “são mais de 52 mil bens imóveis e 15 mil bens móveis,
classificados como de valor histórico pelo Programa de Preservação do Patrimônio
Histórico Ferroviário (Preserfe), desenvolvido pelo Ministério dos Transportes” (IPHAN,
2022).

• 6
O IPHAN a partir da Portaria Nº 17 tem buscado coletivizar mais as iniciativas de
valoração, permitindo a abertura de processo e inclusão na Lista do Patrimônio Ferroviário
(que atualmente conta com 591 bens) a qualquer pessoa física ou jurídica dentro do
âmbito nacional. A portaria determina que:

“Art. 2º Toda pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, é parte legítima para
provocar a instauração do processo de valoração. Art. 3º O pedido de valoração será
dirigido ao Superintendente do Iphan na Unidade da Federação onde está localizado o bem.
§1º Quando o bem estiver localizado em mais de uma Unidade da Federação, o interessado
poderá dirigir o pedido de valoração a qualquer Superintendência com circunscrição sobre
a área geográfica do bem. §2º Os pedidos de reconhecimento de valor poderão ser
protocolizados de forma física nas unidades do Iphan ou através dos meios digitais do
governo federal no endereço eletrônico www.gov.br/iphan. Art. 4º São passíveis de inclusão
na Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário os bens móveis, incluindo material rodante e
bens integrados, e imóveis oriundos da extinta Rede Ferroviária Federal S/A” (IPHAN,
Portaria IPHAN nº 17, de 29 de abril de 2022).

Recentemente, um dos autores deste trabalho, o Prof. Gabriel Leopoldino, foi convidado
pelo IPHAN-RN para uma das palestras que têm composto a série de estudos que o
IPHAN-RN tem realizado recentemente para estabelecer critérios para valoração dos bens
e compreender de forma mais precisa o universo de edificações que compõem o
patrimônio ferroviário no Rio Grande do Norte. Essas ações, portanto, estão em
desenvolvimento, embora tenham adotado um ritmo lento que parece se intensificar
somente mais recentemente, visto as próprias dificuldades políticas de cerceamento que
o IPHAN vem enfrentando nos últimos anos.

É importante frisar que constam como bens listados na Lista do patrimônio cultural
ferroviário do IPHAN, dos estados do Rio Grande do Norte e da Paraíba, alguns bens,
entretanto, nenhum daqueles analisados pelo presente artigo consta na lista. Constam
seis bens edificados do Rio Grande do Norte, todos localizados em Natal. Com relação à
Paraíba, são catorze bens, porém entre eles não consta a estação de Sousa. Isso
demonstra que ainda não houve mobilização das populações e da administração local na
abertura de processos de valoração desse bens e inclusão na lista acima referida até o
presente momento. Isso demonstra a importância de se atentar para o avançado processo
de descaracterização e o péssimo estado de conservação de algumas dessas estações que
correm risco de desaparecimento.

Contextualização e histórico das estações ferroviárias no Oeste Potiguar:


linha férrea de Mossoró a Sousa/PB

Ainda no final do século XIX o estado do Rio Grande do Norte tinha como principal vetor
no transporte de mercadorias e pessoas as estradas carroçáveis, transporte feito sobre o
lombo de cavalos, mulas e burros, o que alentava a comunicação entre litoral e sertão.
Segundo José Silas, “a edificação das ferrovias traria um grande avanço, facilitando o
escoamento da produção agrícola, o transporte de pessoas e a locomoção de mercadorias

• 7
rumo aos grandes centros e ao porto” (2020, p. 25). Este fator denotava a importância
que da ferrovia tanto para o traçado das cidades, como a dinâmica do território,
favorecendo auxílio eficaz para amenizar os efeitos em regiões atingidas pelas secas
(TAKEYA, 1955).

As estradas construídas no Rio Grande do Norte, no período, são, em sua maioria, frutos
do programa federal de obras contra as secas. Tanto os estudos preliminares como as
verbas para construção provinham do âmbito do governo federal. Os traçados dessas vias
de comercialização seguiram, no geral, as rotas já existentes e tradicionais, uma vez que
se destinavam a escoar a produção agrícola no interior em direção ao litoral. (TAKEYA,
1955, p. 86).

Segundo Medeiros e Ferreira (2007), as estações de trem do Rio Grande do Norte foram
implementadas entre fins do século XIX e a primeira metade do século XX e constituíam,
ao todo bens pertencentes a três linhas: a Estrada de Ferro de Natal a Nova Cruz, a
Estrada de Ferro Central do Rio Grande do Norte (que possuía ramal até a cidade de
Macau) e a Estrada de Ferro de Mossoró a Sousa. A ordem obedece a cronologia de suas
construções, sendo a data de inauguração do primeiro trecho delas, respectivamente,
1881, 1906 e 1912. Ao todo, essas linhas férreas passavam por 28 cidades do estado,
cada uma contando com sua estação.

No final da primeira metade do século XX as comunidades de Alexandria, Patu, Almino


Afonso, Antônio Martins e Frutuoso Gomes – antigamente Mombaça – recebiam o
prolongamento da Estrada de Ferro Mossoró-Sousa. Inicialmente, a linha férrea partia da
localidade de Porto Franco, passava por Mossoró e encerrava na comunidade de
Alexandria1, na época ainda pertencente a Pau dos Ferros. Incumbida da construção,
arrendada ao Governo da União, ficou a firma Albuquerque & Cia. Posteriormente o
Governador do Estado renunciou a todos os direitos da concessão para que a obra fosse
tocada pelo Governo Federal (CASCUDO, 1955, p. 319).

O novo percurso deveria atravessar cidades como Caraúbas, Patu, Almino Afonso, Demétrio
Lemos (atual Antônio Martins) e Barriguda (atual Alexandria). A mudança do projeto
obedeceu a um estudo comparativo de viabilidade, efetuado pelo engenheiro Edison
Junqueira Passos (...). A estrada, como suas precedentes, vinha efetuar uma função de
integração de áreas de produção, sobretudo mineral e agrícola, privilegiando a cidade de
Mossoró, que constituiria o polo para onde convergiriam as mercadorias, e cujo porto,
responderia pelo o escoamento das mesmas. Cumpre salientar também entre os trabalhos
públicos de iniciativa (MEDEIROS, 2007, p. 70).

Apesar de construída por último, a Estrada de Ferro de Mossoró a Sousa era um projeto
antigo, datado desde a década de 1870. A lei provincial nº 646, de 14 de dezembro de
1870, autorizava o contrato com os engenheiros Luís José da Silva e João Carlos

1
O município foi emancipado em 7 de novembro de 1930 com a denominação de João Pessoa e apenas
em 24 de novembro de 1936 elevou-se a categoria de cidade com intitulado nome de Alexandria.
Pertenceu uma parte do seu território a cidade de Pau dos Ferros/RN e a outra a Martins/RN

• 8
Greenbalgh de uma estrada ferroviária ligando Mossoró ao “Porto de descarga dos navios
que entrarem no Rio” (CASCUDO, 2001).

Além desta primeira, houveram outras tentativas, sendo a terceira delas a maior
influenciadora para a construção efetiva da ferrovia. Foi a concessão ao comerciante suíço
Johan Ulrich Graf2, em 26 de agosto de 1875. O presidente da Província do Rio Grande
do Norte, sob a lei provincial nº 742, autorizava o contrato de construção de uma “Estrada
de Ferro partindo do porto, ou da cidade de Mossoró, aos limites da província, em direção
às cidades de Apodi e Pau dos Ferros” (GRAF, 1980).

No entanto, apesar da importância futura para construção da estrada e da concessão


ferroviária dada à Graf, uma das causas para o projeto não ter seguido adiante foi o fato
de o governo imperial estar impedido de afiançá-la, uma vez que, de acordo com a lei
2.450 de 1873, o Império podia financiar somente uma concessão de ferrovia por
província, e a Estrada de Ferro Natal-Nova Cruz já havia obtido a sua (VASCONCELOS,
2018b, p. 38 apud OLIVEIRA, 2019).

Somente 42 anos depois é que a estrada foi completada e chegou ao seu destino final:
na cidade de Sousa, na Paraíba, em 29 de dezembro de 1951 (OLIVEIRA, 2019). No
projeto inicial, desenvolvido por Johan Ulrich Graf, a Estrada de Ferro de Mossoró a Sousa
chamava-se Ferrovia Mossoró-São Francisco, passando, logo em seguida, a ser chamada
de Companhia Estrada de Ferro de Mossoró S.A e depois de Estrada de Ferro de Mossoró,
até chegar ao nome pelo qual ficou conhecida. O mapa a seguir representa as cidades
pelas quais o trem passava em sua viagem de ida e de volta. A ida começava por Sousa
até Mossoró, a volta o percurso inverso (trajeto de 240 km). No quadro pode-se perceber
que as viagens possuíam trens que tinham percursos menores, com menos paradas –
como aqueles que iam somente de Souza a Alexandria nos sábados e cuja viagem durava
duas horas.

Os horários estão dispostos na Figura 2. A viagem completa possuía 13 paradas, sendo 8


horas e 45 minutos de duração na ida – que partia de Sousa –, enquanto a volta durava
9 horas e meia, partindo de Mossoró. Havia viagens de trem com menos paradas, como
a entre Sousa e Alexandria, que demorava duas horas e acontecia somente aos sábados.
Três paradas eram em território paraibano – Sousa, São Pedro e Santa Cruz – e dez
paradas no Rio Grande do Norte – Alexandria, Ulrick Graff (no município de Alexandria),
Demétrio Lemos (atualmente Antônio Martins), Mineiro (município de Mombaça), Almino

2
Em homenagem ao suíço Johan Ulrich Graf, que foi um comerciante residente na vila de Mossoró desde
1866, onde estabeleceu uma casa compradora e exportadora de produtos, e que ao mesmo tempo,
importava fazendas (tecidos) e outras mercadorias estrangeiras para aquela vila e região. Foi o idealizador
do projeto da estrada de ferro Mossoró-Sousa em agosto de 1875, onde teve a ideia de construir uma
estrada de ferro que, fizesse a ligação da beira-mar até o alto sertão da Paraíba, para transportar sal
abundante na nossa região, como também outros produtos, como minerais de boa qualidade, muito
abundante na região de São Sebastião (atual cidade de Governador de Dix-Sept Rosado) (OLIVEIRA,
2005).

• 9
Afonso (antiga Mombaça), Patu, Jordão (município de Caraúbas), Caraúbas, Governador
Dix-Sept Rosado e Mossoró.

Figura 1: Mapa da linha Mossoró-Souza e horários das paradas. Fonte: Estações Ferroviárias do Brasil,
Giesbrecht.

Com a chegada das estações e das linhas férreas, havia pessoas que se estabeleciam
para venda de produtos locais, como bolos, cafés, tapiocas, entre outros alimentos para
os passageiros que passavam pela cidade. A região contemplava uma agricultura que
tinha como maior fonte de riqueza o cultivo e manejo do algodão. Nessa época, o principal
polo comercializador era a cidade de Campina Grande/PB, reconhecida regionalmente
como um dos maiores núcleos no comércio de algodão. Havia também o transporte e
comercialização de produtos agrícolas como milho, feijão, arroz, cana de açúcar, batatas,
entre outros, bem como o deslocamento de animais para as “feiras dos bichos” que
ocorriam em algumas cidades da região.

• 10
Figura 2: Caminhão carregado de algodão. Produto abundante na época ao lado da estação ferroviária
de Alexandria. Fonte: VERAS, 2007.

Na visita de campo, através da experiência de vivenciar e remontar o contexto histórico


dessas edificações com advento da ferrovia, foi possível perceber a representatividade de
um mecanismo que se fez tão importante na metade do século XX como meio de
integração e comunicação de povos que passavam por problemas socioeconômicos,
principalmente em relação às secas no Oeste Potiguar, como foi a grande seca de 1970,
que afetou grandes populações que se concentraram nos centros urbanos. A seguir, far-
se-á uma explanação breve sobre a situação contemporânea de quatro das estações da
linha Mossoró-Sousa, com destaque para as edificações dessas duas cidades, que eram
as mais importantes da linha.

Estação de Mossoró

Celebrada como um grande marco para o desenvolvimento da cidade, a estrada de ferro


de Mossoró a Sousa teve a inauguração do seu primeiro trecho no ano de 1915, partindo
de Porto Franco, em Areia Branca (hoje, Grossos), até Mossoró. Apesar de ser conhecida
no Rio Grande do Norte como Estrada de Ferro de Mossoró a Sousa, a parada feita em
Mossoró era a última da linha, sendo sua estação a ponta final deste grande
empreendimento. Localizada no centro da cidade, entre os cruzamentos da Avenida Rio
Branco e da Avenida Augusto Severo, a estação de Mossoró possui uma arquitetura
diferenciada do restante das estações da linha, provavelmente por sua construção ter se
dado sob a administração do governo federal (MEDEIROS, 2007). Seu estilo arquitetônico
é voltado para o ecletismo com influência do historicismo inglês, sendo uma das
edificações do tipo mais bem conservadas do estado do Rio Grande do Norte.

• 11
Figura 3: Estação de Mossoró em 1915. Fonte: GIESBRECHT, 2021.

Figura 4: A locomotiva “Alberto Maranhão” estacionada no pátio supostamente não-inaugurado no Porto


Franco em 1915. Fonte: GIESBRECHT, 2021.

• 12
Figuras 5 e 6: Plantas atuais da estação de Mossoró (Pavimentos térreo e superior). Fonte: Autores

Estação de Demétrio Lemos / Antônio Martins

A Estação Ferroviária Antônio Martins, antigamente Demétrio Lemos, está situada no


Bairro Muquém da Estação, na rua João Bosco Amorim de Carvalho, área mais afastada
do centro do município, no km 84 da linha Mossoró-Sousa. Foi inaugurada em 1942 em
homenagem ao coronel do exército Demétrio do Rego Lemos (1867-1843). Atualmente a
estação encontra-se em estado de abandono sem abrigar nenhum uso e com sua
estrutura em estado de deterioração. Apesar disso, particulares têm intentado junto ao
IPHAN realizar projeto privado de intervenção que está em vias de discussão, para torna-
la um centro cultural e de exposições. Pôde-se observar na visita realizada em 2021
vestígios de que outrora as dependências foram utilizadas como estábulo para animais.

• 13
A estrutura ainda mantém o piso original de ladrilho hidráulico em alguns ambientes. Sua
alvenaria está em avançado nível de corrosão o que pode trazer danos irreparáveis, caso
não seja feito uma intervenção de urgência. Além disso, a cobertura está em diversos
pontos deteriorada e a ponto de ruir, como se pode observar nas imagens.

Também foi possível perceber no bairro, residências habitadas por pessoas de baixa
renda, apesar de que o local já foi residência de pessoas de classes mais abastadas,
especialmente em relação à casa de fazenda próxima à estação, que segundo a moradora
Dona Ritinha, ainda pertence a uma importante família da região, produtora agropecuária
e que se utilizava dos serviços da estação em tempos de operação. A família tocava,
sobretudo, negócios relacionados ao comércio agrícola e transporte de gados.

• 14
Figuras 7 a 12: Fotos da estação de Antônio Martins. Fonte: Acervo próprio.

Desde 2007 há esse projeto de transformação da edificação para implantação do museu


e biblioteca, além da revitalização do entorno, com praça, anfiteatro e um espaço
destinado para comemoração de eventos. Entretanto, nada foi concretizado ainda e a
edificação encontra-se em estado mais avançado de precariedade do que foi levantado
há 14 anos, na visita feita pelo Prof. Gabriel Leopoldino em 2007.

• 15
Figura 13: Planta da estação de Antônio Martins. Fonte: Acervo próprio.

Estação de Alexandria

A Estação Ferroviária de Alexandria fazia parte da antiga Estrada de Ferro Mossoró-Sousa


como o ponto terminal no território potiguar, uma vez que se localiza muito próxima à
divisa com a Paraíba. De acordo com Veras (2007), a ferrovia Mossoró-Sousa enfrentou
muitas dificuldades de ser concretizada na cidade. A própria ferrovia inicialmente se
denominava Mossoró-Barriguda, primeiro nome do município de Alexandria, uma vez que
fica ao pé da serra da Barriguda, como se pode observar na imagem abaixo.

A Estação Ferroviária foi inaugurada em 1948, portanto a última no território potiguar.


Está situada no centro da cidade, na Rua Dr. Rafael Fernandes. Alexandria é atualmente
importante núcleo da região conhecida como a “tromba do elefante”, no Alto Oeste
Potiguar, distante 377 quilômetros da capital do estado, Natal.

Figura 14 – Estação Ferroviária final da década de 1950. Fonte: GIESBRECHT, 2021.

• 16
Figura 15 a 23 - Estação de Alexandria. Fonte: Acervo próprio (2021).

Seu partido arquitetônico é idêntico a outras estações intermediárias da linha, havendo


variações apenas no posicionamento das plataformas de embarque e desembarque.
Segundo Medeiros (2007): “Essa tendência pode ser atribuída ao fato delas terem sido
construídas sob o mesmo impulso nas obras de prolongamento”. Atualmente a estação
funciona como biblioteca, e segundo vendedor próximo da edificação, atende alunos da
rede pública de ensino. Na época do levantamento encontrava-se fechada em virtude da
Pandemia de Covid-19.

Em seu entorno foi possível observar alguns exemplares arquitetônicos. Percebe-se que
parte significativa do patrimônio histórico na cidade formou-se através do elemento
articulador do sistema ferroviário, o caso da própria estação e das demais casas de turma
edificadas na zona. De modo geral, estas habitações ficaram estabelecidas nas
proximidades das estações e eram destinadas a abrigar os funcionários responsáveis pelo
funcionamento da estação.

• 17
Figura 24 a 27 - Casas de turmas nas proximidades da estação de Alexandria. Fonte: Acervo próprio.

ESTAÇÃO DE SOUSA

A estação de Sousa fazia parte do ramal paraibano que foi aberto ao tráfego entre 1923
e 1926, partindo da estação de Arrojado, na linha da antiga E. F. Baturité. Posteriormente,
passou também a fazer parte da E.F. Mossoró-Sousa. O ramal foi prolongado para cidade
de Patos em 1944 e em 1958 fez união com a cidade polo de Campina Grande incorporado
pela Rede Ferroviária do Nordeste. Localizada a oeste do estado paraibano,
aproximadamente 400 km da capital João Pessoa, a edificação encontra-se no Bairro da
Estação, entre a avenida Nelson Meira e a rua Vicente Gonçalves Ribeiro Neto, no km 243
da linha, partindo da volta, sentido Mossoró a Sousa.

• 18
Figura 28 - Mapa com a ferrovia que ligava Sousa ao litoral nordestino. Fonte: GIESBRECHT, 2021.

Figura 29 - Localização da Estação de Souza/PB. Fonte: Adaptado pelo Google Earth

Assim como nas demais cidades, a chegada da estação de trem a Sousa conduziu uma
nova dinâmica que representou não apenas um impacto urbano mas também social e
econômico, ao demandar a locação de firmas comerciais, novos tipos de serviços e
também da própria estrutura industrial de grandes complexos ferroviários (MEDEIROS,
2007, p.7).

• 19
Figura 30 - Inauguração da estação de Sousa em 1922, 4 anos antes de sua abertura oficial. Fonte:
GIESBRECHT, 2021.

Figura 31 – Traçado das ferrovias e rodovias paraibanas em 1920. Fonte: GIESBRECHT, 2021.

Há anos a estação ferroviária foi tombada pelo IPHAEP - Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico do Estado da Paraíba, por sua importância cultural para o Estado, sob decreto
n° 22.082 de 03/08/2001. Mas apesar de ser patrimônio histórico da região, foi possível
constatar o total abandono à preservação artística, cultural e histórica da edificação.
Segundo relatos, logo após sua desativação a mesma teria sido invadida por vândalos

• 20
que usurparam todo mobiliário existente, bem como os documentos históricos da época
de sua fundação e os livros de atas com as informações sobre o transporte de passageiros
e mercadorias que chegavam e partiam.

Assim como a estação ferroviária de Alexandria, o bairro atualmente onde encontra-se a


edificação é conhecido como “bairro da estação” e foi possível observar que os demais
exemplares arquitetônicos como casas de turmas e depósitos servem hoje como sub-
habitações em lastimável estado de salubridade.

Na visita de campo, com os componentes do grupo de pesquisa História da Arquitetura e


do Urbano no Sertão (HAUS-UFERSA), ficou evidente a necessidade de percorrer o trajeto
e vivenciar o espaço. Ao se comparar com o levantamento produzido em 2007 – “As
cidades e os trilhos - Resgate histórico da implantação das ferrovias no Rio Grande do
Norte e inventário de suas estações”, trabalho de conclusão de curso de Gabriel
Leopoldino – percebeu-se o agravamento do grau de má conservação dos exemplares,
apesar de eles ainda serem passíveis de recuperação, pois guardam traços estilísticos de
evidente valor artístico e cultural.

Entre todas as edificações visitadas, com exceção de Almino Afonso/RN que já se encontra
em estado avançado de deterioração, praticamente de ruína. A estação ferroviária de
Sousa foi o maior exemplo de descaso e abandono dos exemplares estudados, tanto por
parte da administração pública do município, quanto da própria população, que segundo
conversa com alguns moradores, pouco sabem sobre a história e a situação atual da
edificação. A edificação também enfrentou possivelmente incêndios que podem ser
constatados pelos registros fotográficos realizados pela equipe.

Figuras 32, 33 e 34 - Imagens da parte interna da estação, onde se constatou possíveis incêndios.
Fonte: Acervo próprio (2021).

• 21
Atualmente a estação abriga sub-moradias com pessoas em situações calamitosas, com
necessidade de imediata intervenção por parte da administração pública, para que se
resolva a questão humana e sanitária do local. Teme-se, entretanto, a desculpa sanitária
como estratégia de aniquilação do bem.

Figuras 35 a 36 - Situação atual do interior da estação de Sousa. Fonte: Acervo próprio (2021).

Sua fachada encontra-se em bom estado de conservação, pois ainda é possível identificar
o estilo arquitetônico voltado ao ecletismo, com elementos de cornijas, platibandas,
adornos, além de apresentar uma conformidade simétrica. Mas julga-se necessário a
revitalização da edificação.

• 22
Figuras 37 a 42 - Fachadas da estação e armazéns de Sousa/PB. Fonte: Acervo próprio.

Sua planta é caracterizada por grandes espaços para o tráfego de pessoas, bem como
grandes esquadrias, onde se fazia necessária a abertura por duas folhas. Havia ambientes
para acomodação dos ferroviários, bem como, cozinha, bilheteria, banheiros, além de
armazéns que foram anexados na estação, que servia de curral para os animais que eram
transportados.

• 23
Fonte: Acervo próprio (2021).

Figura 30 - Planta baixa da estação ferroviária de Sousa.

Figura 43 - Planta baixa da estação ferroviária de Sousa. Fonte: Acervo próprio (2021).

CONCLUSÃO

Este trabalho possibilitou perceber, mesmo ainda com um levantamento preliminar de


informações, a relevância do saber vernacular como o testemunho de algo secular, assim
como defendido no Conselho da Europa de 1976 ao incluir que todas as construções
“isoladas ou agrupadas, que estejam ligadas às atividades agrícolas, pastoris, florestais
e pesqueiras que apresentam algum interesse histórico, arqueológico, artístico, lendário,
científico, social ou de caráter típico pitoresco" (ICOMOS, 1999) devem ser preservadas
para garantir a condição de compreender o motivo das técnicas adotadas, do contexto
histórico e social no qual estava inserida, dando ainda mais importância a
representatividade cultural ao momento de sua construção.

Faz-se notar que é de suma importância manter as características originais para ter
condições de estudar o quadro social. Porque o excesso de modificação pode gerar
dificuldade na precisão dos dados relativos à sua aparência e a busca incessante por
“novidades' pode acabar relegando ao esquecimento a memória de como se deu o início
da história, pois funcionam como uma maneira de reconstituir o mapa sócio espacial,
possibilitando — entender os costumes de uma época que não foi alcançada pela geração
atual.

De acordo com o que foi brevemente apresentado neste trabalho de levantamento e


dadas as condições históricas avaliadas, pode-se dizer que duas das edificações visitadas
estão bem conservadas (Mossoró e Alexandria), enquanto outras duas encontram-se
pessimamente conservadas (Antônio Martins e Sousa), embora os quatro exemplares
ainda guardem características originais preservadas. Apesar disso, em todos os casos é
imprescindível a criação de políticas públicas que realizem ações bem planejadas para a
educação patrimonial da população, de forma a que este acervo passe a ser valorado

• 24
devidamente e incorporado à identidade local, visto a importância fundamental que
desempenharam para o desenvolvimento de seus respectivos núcleos.

REFERÊNCIAS

CASCUDO, Luis da Câmara. História do Rio Grande do Norte. Natal: Achiani, 1955.
GIESBRECHT, Ralph Mennucci. Disponível em:
<http://www.estacoesferroviarias.com.br/index.html>. Acesso em: 02 dejulho. 2021.
GIESBRECHT, Ralph Mennucci. Rede Ferroviária do Nordeste (1951-1975): Município de
Alexandria, RN. 2014. Disponível em:
<http://www.estacoesferroviarias.com.br/rgn/alexandria.htm>. Acesso em: 02 de julho.
2021.
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<http://www.suassuna.net.br/2017/04/historia-da-linha-ferroviaria-mossoro.html>. Acesso
05 de julho 2021.
ICOMOS. Carta sobre o património contraído vemáculo, Cidade do México: 12º
Assembleia Geral do ICOMOS, out.1999, Disponível em <http:/hanna patrimônio cultural
ptmediafuploads/ccfcartas abrepatrimoniorernacul ol999 pdfo. — Acesso em 25 jun 2021.
MEDEIROS, Gabriel Leopoldino Paulo de. As cidades e os trilhos Resgate histórico da
implantação das ferrovias no Rio Grande do Norte e inventário de suas estações. Natal,
novembro de 2007.
MEDEIROS, Gabriel, L. P., & FERREIRA, Angela, L. A. AS ESTAÇÕES DE TREM DO RIO
GRANDE DO NORTE Um estudo sobre a sua implantação no ambiente urbano e inventário de
suas condições atuais. Disponivel em :
<http://hcurb.ct.ufrn.br/_assets/modules/projetosvinculados/projetovinculado_48.pdf>.
Acesso em 13 de Jul.
OLIVEIRA, Manoel Tavares de. Estrada de Ferro Mossoró-Sousa : um sonho, uma
realidade, uma saudade. Coleção Mossoroense. Serie “C”- Volume 1494-Outubro de 2005.
SILVA, José Silas Oliveira da. Implantação, Operação e Desativação da Ferrovia Mossoró-
RN-SousaPB. Pau dos Ferros: UERN/Ed. Universitária, 2020.
SILVA, Jéssica Naiara. A estação do bairro: nos trilhos da memória contada vida,
cotidiano Disponível em: <http://dspace.sti.ufcg.edu.br:8080/jspui/handle/riufcg/10036>.
Acesso em 12 de Jul 2021.
SILVA, Jéssica Naiara Trabalho na ferrovia sousense (1960-2000). Cajazeiras, 2017.
Disponível em: <http://dspace.sti.ufcg.edu.br:8080/jspui/handle/riufcg/10036>. Acesso em
12 de Jul 2021TAKEYA, Denise Montei. Europa, França e Ceará: origens do capital
estrangeiro no Brasil. Natal: UFRN/Ed. Universitária, 1995.
Trem de Mossoró a Souza - Trens de passageiros do Brasil. Disponível em
<https://www.estacoesferroviarias.com.br/trens_ne/mossoro-souza.htm> Acesso em: 07 de
julho 2020.
VERAS, George Antônio de Oliveira. Alexandria - Retratos de uma História. AlexandriaRN:
Ed. do autor, 2007.

• 25
CAMADAS DESIGUAIS DE TEMPOS
São Paulo: Por uma Metodologia para Mensurar Dinâmicas das
Demolições e Reconstruções

UNEVEN TIME LAYERS


São Paulo: For a Methodology to Measure Dynamics of Demolitions
and Reconstructions

CAPAS DE TIEMPO DESIGUAL


São Paulo: Por una Metodología para Medir la Dinámica de
Demoliciones y Reconstrucciones

Memórias, representações, arquivos

BUENO, Beatriz
Professora Associada; Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - USP
beatrizbueno@usp.br
RESUMO

Em São Paulo, a despeito de sua fatura esmerada, existem edifícios de excepcional


valor arquitetônico desconectados entre si por uma trama urbana carente de
imageabilidade. A maioria agoniza para sobreviver, ameaçado de demolição ou
reformas criminosas. Individualmente são obras muito bem construídas, que passam
despercebidas no contexto urbano esquizofrênico que as envolve, embora outrora, em
conjunto, desenharam a cidade monumental e cosmopolita que se reescreveu em meio
século e, sem piedade, se descartou na outra metade. Esse patrimônio merece atenção
e salvaguarda e seu processo de fatura carece de luz. Nas entranhas da degradação
sobressai o charme de um patrimônio resiliente, à espera de iniciativas
governamentais e individuais para sua atualização e reutilização. Eis o objetivo desta
comunicação: apresentar metodologias para criação de narrativas visuais para
mensurar e demonstrar dinâmicas de transformação do centro histórico de São Paulo,
chamando a atenção para um patrimônio arquitetônico e documental pouco conhecido,
de excepcional valor cultural, hoje em risco, à espera de projetos de reuso.

PALAVRAS CHAVE Arqueologia da Paisagem; São Paulo; Patrimônio Arquitetônico e


Documental; História da Urbanização; Estudos Visuais.

ABSTRACT

In São Paulo, despite its neat construction, there are buildings of exceptional
architectural value disconnected from each other by an urban fabric lacking in
imageability. Most agonize to survive, threatened with demolition or criminal reforms.
Individually, they are very well-built works, which go unnoticed in the schizophrenic
urban context that surrounds them, although in the past, together, they designed the
monumental and cosmopolitan city that was rewritten in half a century and, without
mercy, was discarded in the other half. This heritage deserves attention and
safeguarding and its billing process lacks light. In the depths of degradation, the charm
of a resilient heritage stands out, waiting for governmental and individual initiatives to
update and reuse it. This is the objective of this communication: to present
methodologies for the creation of visual narratives to measure and demonstrate the
dynamics of transformation of the historic center of São Paulo, drawing attention to a
little-known architectural and documentary heritage, of exceptional cultural value,
today at risk, to the waiting for reuse projects.

KEYWORDS Landscape Archeology; Sao Paulo; Architectural and Documentary


Heritage; History of Urbanization; Visual Studies.

RESUMEN

En São Paulo, a pesar de su cuidada construcción, existen edificios de excepcional valor


arquitectónico desconectados entre sí por un tejido urbano carente de imaginabilidad.
La mayoría agoniza por sobrevivir, amenazada de demolición o de reformas criminales.
Individualmente, son obras muy bien construidas, que pasan desapercibidas en el
esquizofrénico contexto urbano que las rodea, aunque en el pasado, juntas, diseñaron
la ciudad monumental y cosmopolita que se reescribió en medio siglo y, sin piedad,
fue descartada, en la otra mitad. Este patrimonio merece atención y salvaguarda y su
proceso de facturación carece de luz. En lo más profundo de la degradación, se destaca
el encanto de un patrimonio resiliente, a la espera de iniciativas gubernamentales e
individuales para actualizarlo y reutilizarlo. Este es el objetivo de esta comunicación:
presentar metodologías para la creación de narrativas visuales para medir y demostrar
la dinámica de transformación del centro histórico de São Paulo, llamando la atención
sobre un patrimonio arquitectónico y documental poco conocido, de valor cultural
excepcional, hoy en riesgo, a la espera de proyectos de reutilización.

PALABRAS CLAVE Arqueología del Paisaje; San Pablo; Patrimonio Arquitectónico y


Documental; Historia de la Urbanización; Estudios Visuales.

• 3
INTRODUÇÃO

A ideia é analisar a cidade de São Paulo, sua urbanização e arquitetura em processo de


formação/transformação/ escrita/ reescrita, em interface à atuação do mais longevo,
moderno e plural escritório de arquitetura-engenharia-construção da capital nos seus 100
anos de existência (dando empiricidade a esta afirmação), entretecendo a história da
arquitetura, da construção civil à história do processo de urbanização da cidade por onde
passou e deixou sua marca na paisagem.

Teoria e método se articulam interdependentes, na qual a história da urbanização e da


arquitetura entendidas como processo social fazem- se por meio de uma história visual,
animada através da seriação de imagens, entrelaçada à biografia de atores sociais
invisibilizados pela História e pela Historiografia. Ao optar por uma história em processo
– seus ritmos, dinâmicas, agências e inflexões - buscar-se revelar o processo de
metamorfose da cidade de São Paulo e o papel e os modos de atuação de escritórios como
o de Ramos de Azevedo e colaboradores, em meio a comitentes e o poder público no
processo de urbanização.

Nesse sentido, busca-se fugir de uma História da Arquitetura e da Urbanização tradicional,


com foco em mutações materiais – escrita e reescrita da cidade – associada à ação de
protagonistas mais e menos visíveis (do poder público ao formular leis e planos
urbanísticos a comitentes, de engenheiros-arquitetos a artífices e pedreiros relegados ao
lodo dos canteiros), em busca das lógicas de atuação, redes de sociabilidades, redes
profissionais, rede de obras e de negócios em movimento, pondo luz num patrimônio
arquitetônico e documental em risco de dilapidação e em uma cidade resiliente ao reuso,
porém sem imageabilidade.

Nesse sentido, para uma História da Urbanização animada/ viva/ em movimento/ em


ação/ em processo, teoria e método se articulam interdependentes, valendo-se do
expediente das tecnologias mobilizadas pelas humanidades digitais. Vivemos uma
oportunidade para repensar práticas de pesquisa e incorporar novas metodologias visuais
de estudo e acesso a coleções e arquivos no âmbito das humanidades digitais, elaborando
recortes da história urbana por meio de “narrativas animadas”, não verbais (BLAU, in
KURGAN, 2019), usando programas que permitem a associação de documentos textuais
e visuais, tanto estáticos como móveis. A hipótese aqui apresentada é repensar as formas
de apresentação do material pesquisado, organizando-o em eixos temáticos e explorando
mídias diversas capazes de articular a historiografia e a massa de documentação
disponível, a fim de produzir novas leituras. A manipulação gráfica deve permitir a
construção de narrativas experimentais visuais, que vão da arqueologia das formas aos
processos de seu crescimento e transformação. No cruzamento disciplinar da arqueologia,
história, geografia, urbanismo e arquitetura, ambiciona-se lançar mão das possibilidades
analíticas das ferramentas da digital culture e media studies (MANOVICH, 2001, 2013,
2020) aplicando-as ao estudo da cidade. Por meio da superposição de layers narrativos
de séries de documentos diversos, devem ser levantados aspectos característicos de São

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Paulo - em torno da cartografia regressiva, mapping em vários sentidos, por exemplo dos
cenários sucessivos da verticalização e das formas de expansão e ocupação do território,
destacando os atores envolvidos na produção da arquitetura da cidade.

“Não estamos diante apenas de uma nova metodologia, mas de uma linguagem de
knowledge design (SCHNAPP, 2014) e de práticas experimentais de comunicação que
articulam visualmente os tempos da cidade e oferecem outras formas de conhecer e
transmitir a história urbana. Incorporar metodologias digitais ao estudo da cidade pela
visualização sequencial de imagens do passado e contemporâneas graças aos softwares,
deve permitir vislumbrar as possibilidades de sua sobrevivência e os limites do seu futuro.
O processo analítico de exibir visualmente questões múltiplas demonstra as possibilidades
da tecnologia em montar narrativas interdisciplinares ou ‘contar histórias’ aumentando a
visibilidade da pesquisa fora dos relatos convencionais da história urbana e de suas
consensuais representações, afigurando-se como um modelo colaborativo de produção de
conhecimento e de curadoria” (ANGOTTI-SALGUEIRO, 2022).

Jeffrey T. Schnapp (http://jeffreyschnapp.com/) é fundador e coordenador do MetaLAB,


mantendo vínculos tanto com a Graduate School of Design, como com a Faculty of Arts
and Sciences da Universidade de Harvard, estendendo-se a Berlim em 2022, com sede
no Institut für Theaterwissenschaft. Schnapp faz parte de um grupo de pesquisadores da
GSD Harvard University que, junto dos curadores Eve Blau e Robert Gerard Pietrusko,
desenvolveu a exposição Urban Intermedia : city, archive, narrative (2018, vide you tube)
na Escola de Arquitetura (Graduate School of Design), Department of Urban Planning and
Design, financiada pela Andrew W. Mellon Foundation (https://www.gsd.harvard.edu),
com projeções de grandes dimensões e instalações, configurando-se num experimento
metodológico colaborativo, inovador e instigante para a História Urbana. Ao associar
arquitetos e historiadores a designers digitais e outras disciplinas acadêmicas a exposição
propôs perspectivas inovadoras para a história da urbanização que queremos testar,
experimentar e apresentar em caráter piloto neste XVII SHCU. Acredita-se que o uso de
tecnologias para articular mídias digitais e físicas – documentos de arquivos, digital datas,
fotografias, cartografias, desenhos arquitetônicos, textos, gráficos, animações, filmes e
vídeos – em diálogo umas com as outras – media hybridize – seja capaz de gerar novas
linguagens “intermedia” e, com elas, novos caminhos para aquisição e produção de
conhecimento sobre as cidades. Projetadas em telões, narrativas visuais contam histórias
por meio dos materiais de pesquisa - sem escrita ou narração verbal -, deixando-as
abertas para múltiplas leituras e construções interativas de significados (BLAU, in
KURGAN, 2019).

POR UMA NOVA METODOLOGIA APLICADA AOS ESTUDOS URBANOS

O objetivo é explorar e incorporar novas metodologias visuais de estudo e acesso a


coleções e arquivos no âmbito das Humanidades Digitais. Sob inspiração de uma nova
história urbana construída por meio de “narrativas animadas”, “não verbais” (BLAU, in
KURGAN, 2019), objetiva-se usar programas e softwares que permitam a associação de
documentos textuais e visuais, de forma a desenvolver formas de apresentação do
material pesquisado, explorando mídias diversas capazes de produzir novas leituras.

• 5
A manipulação gráfica deve permitir a construção de narrativas experimentais visuais,
que vão da arqueologia das formas aos processos de seu crescimento e transformação.
Deve-se lançar mão das possibilidades analíticas das ferramentas da digital culture e
media studies” (MANOVICH, 2001, 2013 e 2020) aplicando-as ao estudo da cidade. Por
meio da superposição de layers narrativos de séries de documentos diversos, devem ser
levantadas camadas desiguais de tempos de São Paulo, com ênfase nas suas dinâmicas
e ritmos de metamorfose e verticalização, com foco em algumas ruas e canteiros de
obras.

Esses e outros recortes das histórias de São Paulo farão parte futuramente das exposições
multimídia em elaboração no Liceu de Artes e Ofícios para 2023 (“Com a cidade nos
olhos”), e comparativa “São Paulo-Buenos Aires Intermedia” prevista para o Museu
Paulista em 2024/5 em colaboração com outros pesquisadores.

Cronologias, cartografias interativas, perfis estratigráficos de ruas e animações dos


canteiros de obras serão realizados em caráter experimental e piloto para exibição no
XVII SHCU 2022, em vídeos curtos de 2 a 3/5 minutos cada.

O objetivo é desenvolver um conjunto de ferramentas multimídias, vídeos curtos, capazes


de funcionar articuladamente no âmbito de um projeto educativo por meio de exposições
e vivências em campo - com celular em punho -, com vistas a pôr luz em saberes e
fazeres relacionados ao patrimônio arquitetônico do centro da cidade de São Paulo, com
especial atenção para as obras do Escritório Técnico Ramos de Azevedo, Severo & Villares,
promovendo assim uma reflexão mais ampla sobre o papel da arquitetura e de escritórios
de arquitetura-engenharia-construção na produção das cidades, treinando olhos menos
avisados para proteger um patrimônio documental e arquitetônico, bem como paisagístico
e urbanístico, em risco de desaparecimento. Em relação à Educação Patrimonial, a ideia
é criar instrumentos de treinamento de professores, educadores e incentivá-los a
desenvolverem práticas que promovam mudanças significativas no estabelecimento de
ações dialógicas com alunos e a população em geral sobre memórias dotadas de vida e
história.

Como supramencionado, a metodologia tem precedentes nos trabalhos de Eve Bau, em


especial na exposição Urban intermedia: city, archive, narrative, realizada na
Universidade de Harvard, disponível no youtube.

Ponto de partida, será apresentar os storyboards ou esboços sequenciais das narrativas


visuais eleitas. Storyboards são organizadores gráficos, envolvendo uma série de
ilustrações ou imagens, dispostas em sequência, com vistas a idealizar e pré-visualizar o
filme, a animação, incluindo elementos interativos. Trata-se de um roteiro desenhado
como uma história em quadrinhos, para criar uma narrativa animada, entrecruzando,
sobrepondo, musicalizando a história da urbanização de São Paulo de outros pontos de
vistas.

A ideia é partir do inventário e estudo retrospectivo, articulando passado e presente, de


125 edificações remanescentes no Centro Histórico de São Paulo produzidas no âmbito

• 6
de um efervescente mercado imobiliário rentista vigente desde o século XIX até a Lei do
Inquilinato (1942), como pontos de partir para uma “história urbana animada”.

Buscando uma análise arqueológica e filológica da cidade, a qual chamo de “Arqueologia


da Paisagem”, buscar-se minuciosa reconstituição hipotética de um processo a partir de
seus fragmentos, entendendo a paisagem urbana como uma sucessão de camadas
desiguais de tempos passados consideradas como inércia ativa no presente. As
aproximações com a Geo-História, com a Geografia Retrospectiva são evidentes.
Baixando o olhar da grande escala à micro-escala do lote, numa espécie de micro-história
em série, por meio de exercícios estratigráficos, animar-se-á o processo de “escrita” e
“reescrita” das ruas 15 de Novembro, Direita, São Bento e de edificações do Vale do
Anhangabaú – como por exemplo o Clube Comercial construído em 1927 e demolido
décadas seguintes -, em processo de materialização e desmaterialização, pensando-os
como um canteiro de obras em permanente transformação, buscando descortinar as
motivações e as lógicas que presidiram o rápido processo de mudanças, substituições e
descartes, bem como buscando encontrar as rugosidades desses tempos no mosaico que
se tornou a paisagem contemporânea da Colina Histórica.

Com foco em algumas edificações (Palácio da Justiça, Palácio do Comércio, Clube


Comercial, Light, Faculdade de Direito), envereda-se por pormenores dos canteiros de
obras e processos construtivos, entrecruzando cartografias antigas e atuais, projetos
arquitetônicos, séries iconográficas, filmes, etc, com ênfase na coleção de negativos de
vidro que documentam o cotidiano dos canteiros de obras do Escritório Técnico Ramos de
Azebvedo, Severo & Villares, pondo luz na feição/ face/ perfil social dos atores envolvidos
com as edificações, do gabinete ao canteiro, faces raramente exploradas pela
historiografia, demonstrando tratar-se de obras coletivas.

Essa linha de estudo da urbanização tem assim algumas peculiaridades ao fugir da


perspectiva em vôo de pássaro mais habitual e aproximar a lente nas ações individuais,
atentando para o processo social de transformação material da cidade, com foco no papel
da arquitetura comum na composição da tessitura urbana e buscando aquilatar seus
agentes produtores, lógicas de produção, dinâmicas, ritmos e temporalidades por meio
de uma História Urbana animada.

Sem fetichizar as geotecnologias - pois de nada adiantam sem uma boa questão -
acreditamos tratar-se de ferramentas poderosas para dar a ver o que de outra forma não
se vê. A serialização e entrecruzamento sincrônico e diacrônico de fontes visuais e
textuais por meio das geotecnologias, não só permitem representar novas questões,
como formular novas indagações, descobrir novos temas de pesquisa, repensar as cidades
de outros pontos de vistas. Produto e vetor, as geotecnologias são assim uma alternativa
incontornável no século XXI que vem revolucionando os estudos de História da
Urbanização, introduzindo-lhes variáveis como movimento, processo, gente, tempo e
espaço em perspectiva dinâmica. Nesse novo cenário historiográfico, a dimensão espaço
- em seus processos de produção e apropriação social - ganha vida e a cidade converte-
se em artefato privilegiado como permamente work in progress.

• 7
O método consiste em entrecruzar fontes seriais variadas e espacializá-las no Mapa Digital
da Cidade (2004), com vistas a pôr luz no “bota-abaixo” que transformou a cidade num
verdadeiro canteiro de obras no âmbito de um aquecido mercado imobiliário rentista
motivador do investimento na transformação material da cidade.

A transformação da cidade do ponto de vista do seu processo ainda permanece


inexplorada pela historiografia. Com raras exceções, a imagem que temos é aquela
cristalizada nos cartões postais com os resultados finais alcançados, sem que percebamos
os ritmos, os percalços, os estímulos e os atores envolvidos – proprietários, construtores
e usuários - na substituição de uma cidade de taipa de pilão por outra de tijolos e, não
raro, por outra de concreto armado num curto período de décadas.

Da mesma forma, propõe-se animar a geografia, cronologia e canteiros de obras do


Escritório Técnico Ramos de Azevedo, Severo & Villares, nos seus 100 anos de existência.

A proposta integra-se assim na linha de estudos desenvolvidos pelo Grupo de Pesquisa


“Arqueologia da Paisagem”, registrado no Diretório do CNPq, ensaiando novos voos
historiográficas em caráter experimental.

Esta comunicação contará com o apoio do CESAD e da VídeoFAU, e valer-se-á das


digitalizações realizadas em projetos anteriores, da Coleção de Negativos de Vidro do
Escritório Técnico Ramos de Azevedo & Cia e Ramos de Azevedo Severo & Villares,
pertencente ao Acervo da Biblioteca da FAUUSP, entrecruzada à Série Obras Particulares
do Arquivo Municipal de São Paulo, e a filmes, iconografias e cartografias seriadas da
cidade de São Paulo, mobilizando acervos como da Casa da Imagem, BMMA, BNRJ, IMS,
Museu Paulista, Museu da Energia, entre outros.

Serão testados vários softwares, a saber por exemplo: 1) o “bota-abaixo” da São Paulo
palimpsesto pode ser mostrado por meio de animações, como por exemplo usando o
Adobe Premiere Pro e entrecruzando os projetos arquitetônicos - rua a rua, lote a lote,
ano a ano – à planta digital da cidade (MDC, 2004), cuja estrutura fundiária está
georreferenciada. O resultado é um interessante exercício já ensaiado que associa o
palimpsesto a um piano cujas teclas movimentam-se ao sabor dos pianistas em jogo; 2)
o cotidiano dos canteiros de obras poderá ser animados por meio coleções de imagens -
como os 4.600 negativos de vidro do Escritório Técnico Ramos de Azevedo, Severo e
Villares -, com uso do Windows Story Remix , dando a ver não só os processos
construtivos empregados em São Paulo no século passado, como também racionalidades
e arcaísmos, atores envolvidos com o trabalho pesado (em geral afrodescendentes e
imigrantes), materiais, técnicas e sistemas construtivos e inúmeros outros aspectos até
então invisíveis. Espécie de Lego animado, seriações dessa natureza revelam facetas
desconhecidas do work in progress em permanente movimento.

• 8
Figura 1. Animação da série de negativos de vidro do Acervo da Biblioteca da FAUUSP,
com uso do Windows Story Remix.

O SIG Histórico (GAUTHIEZ, 2016), por meio do software-livre Quantum Gis, será
mobilizado para criar um banco de dados georreferenciado no Mapa Digital da Cidade
(2004), e gerar cartografias temáticas sobre tipologias, usos, proprietários e a geografia
das obras em seu processo de metamorfose.

Também em caráter experimental, para a produção de narrativas visuais, serão


mobilizados os softwares usados na exposição Urban Intermedia, com ênfase no pacote
de programas da Adobe Creative. O After Effects é o principal software para as animações,
mas outros aplicativos incluem o Max/MSP/Jitter, e para processamento da documentação
Photoshop, Illustrator, Media Encoder, inDesign. As imagens são reestruturadas enquanto
narrativas sob as tecnologias disponíveis combinadas. Os textos de Lev Manovich são
centrais para se entender a metodologia e as categorias dos Visual cultural digital studies
e data Science que direcionam as formas de montagem, especialmente o livro Software
takes command (MANOVICH, 2013, p. 44-46 e 246-249).

Experimentos como Wired! and Visualizing Venice: Scaling up Digital Art History
(LANZONI, 2015) também serão mobilizados, por se tratar de uma outra experiência
colaborativa e multi-institucional desenvolvida em 2010 pela Universidade de Veneza, a
Duke University, a Universidade de Pádua e a Nesting scrl of Venice, mostrando como o
espaço urbano envolve múltiplas temporalidades, valendo-se de ferramentas digitais para
dar visualidade a fontes cartográficas e iconográficas.

• 9
POR UMA HISTÓRIA URBANA ANIMADA: DESDOBRAMENTOS EM EDUCAÇÃO
PATRIMONIAL

Com narrativas visuais mais animadas, cheias de vida, capazes de seduzir os olhos e a
mente, ensinando jovens e a população a pensar com os olhos, almeja-se:

1) oferecer subsídios para uma formação sobre Educação Patrimonial e a


importância de Acervos e Coleções de Arquitetura e Urbanismo, de Escritório
como o de Ramos de Azevedo Severo & Villares, de instituições de formação
profissional como o Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo e de uma plêiade de
atores invisibilizados promotores e executores de exemplares da memória
cultural de São Paulo e outras cidades.
2) Ampliar o conhecimento de professores, jovens, estudantes e público
acadêmico e leigo no que concerne Educação patrimonial.
3) Subsidiar público acadêmico e leigo com conteúdo sobre a memória da cidade
de São Paulo e de outras do estado e do Rio de Janeiro durante o final do
século XIX a meados do século XX.
4) Possibilitar sugestões de práticas pedagógicas em relação à Educação
Patrimonial que contribua para o desenvolvimento da valorização do
patrimônio arquitetônico e documental da cidade.
5) Oferecer pistas sobre os saberes e fazeres relacionados à arquitetura eclética,
art nouveau e art déco do centro de São Paulo e de outras cidades, ampliando
a experiência de participação como agente ativo na preservação do patrimônio
histórico.

Os encaminhamentos metodológicos envolvendo o uso de recursos interativos e


multimídia são uma estratégia que contribuem para um enriquecimento educacional,
aprofundando o estudo de bibliografia atualizada sobre os Visual Studies aplicados à
História Urbana e de edifícios públicos e privados de São Paulo e outras cidades e
treinando o olhar para ver, reconhecer a importância e ensejar iniciativas de zeladoria
compartilhada de nosso patrimônio arquitetônico e documental, e por conseguinte
urbanístico e paisagístico, pondo luz em gerações de atores invisibilizados pela História e
pela historiografia, muitos deles imigrantes e afrodescentes envolvidos com os canteiros
das obras do período, de forma a gerar pertencimento.
Parte dessas faces, com ênfase na contribuição dos italianos no estado de São Paulo, foi

revelada na Plataforma https://arquitalianasaopaulo.iau.usp.br/

CONSIDERAÇÕES FINAIS: SENSIBILIZAR O OLHAR EM POLÍTICAS PÚBLICAS

Em suma, a contribuição da presente comunicação reside na apresentação de pesquisas


em andamento no desenvolvimento de metodologias de investigação e extroversão de
amplo alcance social e político, com vistas a divulgar e valorizar o patrimônio
arquitetônico e documental da cidade de São Paulo e de outras do estado e do Rio de

• 10
Janeiro, através da mobilização de coleções e acervos públicos e privados relativos às
diversas instâncias de “memórias” de sua construção. Serão capturados da cultura técnica
e artística paulista oitocentista desenhos, riscos, esboços, fotografias, manuais de estilo,
pranchas impressas, álbuns seriados, catálogos comerciais e de politécnica, cópias de
esculturas de gesso, instrumentos, moveis, utilizados na execução, ensinamentos e
aplicações práticas arquitetônicas e dos métiers e das artes mecânicas, treinando mentes,
mãos e olhos. Ao disseminar conceitos e diretrizes da Educação Patrimonial, divulgando
o patrimônio cultural e artístico da capital e outras cidades, especialmente para jovens e
professores, a ideia é fomentar um ideal de zeladoria compartilhada em cada cidadão/
usuário da cidade que possa desdobrar-se em Políticas Públicas, tal como já feito junto à
SP Urbanismo - Manual Centro Histórico: Manutenção, Conservação, Reforma e Restauro
- sob a coordenação da arquiteta Regina Monteiro, em parceria com o Museu da Cidade,
o DPH e a Sub-Prefeitura da Sé. Ampliar o conhecimento sobre exemplares arquitetônicos
existentes nas cidades e formar público para conhecer e valorizar o patrimônio
arquitetônico do Centro de São Paulo é uma forma de geração de pertencimento.
A cidade de São Paulo, no seu desenvolvimento contou com a participação de
importantes arquitetos em meio a outros tantos agentes que contribuíram para o seu
desenho e urbanização. Parte significativa dessa história se encontra em documentos
pertencentes a coleções particulares e/ou em acervos públicos. Coleções de desenhos
arquitetônicos e fotografias como as do Acervo da Biblioteca da FAUUSP e do Arquivo
Histórico Municipal de São Paulo, carecem de luz, pela riqueza de um patrimônio
documental ainda carente de maior exploração.

Este material é desconhecido do grande público e também de boa parte dos


pesquisadores. Esses preciosos documentos nos contam sobre a história do fazer
arquitetônico entre o século XIX a XX, documentando novas tipologias, programas
edilícios, materiais e sistemas construtivos, bem como as escalas de projeto e as técnicas
de representação arquitetônica vigentes.

Em meio a plantas, cortes, elevações, perfis, detalhes, projetos elétricos e de


hidráulica, sobressaem desenhos de mobiliário, que chamam a atenção para uma faceta
pouco conhecida dos escritórios de arquitetura daquela época, demonstrando que a obra
era pensada em seu conjunto, contemplando inclusive a arquitetura dos interiores e o
design dos objetos.

Em paralelo, preciosa coleção do Liceu de Artes Ofícios também carece de luz, assim
como o próprio edifício da instituição que foi o verdadeiro panteão de formação de
artesãos em São Paulo.

Ao documentar a cidade em processo de metamorfose em meio à importância da


atuação profissional de engenheiros, arquitetos e artífices, pondo luz em personagens
invisibilizados nos gabinetes dos escritórios de arquitetura-engenharia-construção e no
cotidiano dos canteiros de obras, a ideia é mostrar mecanismos, dinâmicas, ritmos e
atores nos processos de produção das cidades, contando uma história da urbanização de
outro ponto de vista.

• 11
A contribuição científica, intelectual e tecnológica da presente comunicação consiste
na mobilização de metodologia inédita no tratamento documental por meio do uso de
novos instrumentos multimídia para a compreensão da história da urbanização, seus
atores e práticas de produção da cidade. No entanto, é na contribuição social que reside
o diferencial da comunicação, ao extrapolar fronteirsas acadêmicas e visar a produção de
material visual destinado a exposições de amplo alcance e impacto social.

REFERÊNCIAS

ANGOTTI-SALGUEIRO, Heliana. Proposta para Mesa 57: São Paulo e Buenos Aires: Narrativas
Visuais para Repensar Presente e Passado. III Congresso Iberoamericano de História
Urbana, Madri, novembro 2022.
BLAU, Eve. Urban intermedia: city, archive, narrative. Exposição Universidade de Harvard,
2018 (youtube).
BLAU, Eve. Urban intermedia: city, archive, narrative. In: KURGAN, Laura et all. (eds.). Ways
of knowing cities. NY: Columbia Books and Architecture and the city, 2019.
BLAU, Eve. City as open work. In: City of Zagreb Master Plan 2003. Summary (Zagreb: City
Department for City Development Planning and Environment Protection, 2003.
BLAU, Eve. The city as protagonist: architecture and the cultures of Central Europe. In:
Shaping the great city: modern architecture in Central Europe, 1890-1937. Munich/
London/ NY, 1999.
GAUTHIEZ, Bernard; BUENO, Beatriz; FONSECA, Fernanda; DE BIAGGI, Leca; KANTOR, Iris;
KUVASNEY, Eliane; OLIVA, Jaime; CHAREIRE, Olivier; DUTENKEFER, Eduardo; ROCHA,
Letícia; ZOBOLI, Luciano. “Un conte de deux villes: une géohistoire comparée de São Paulo
et Lyon, 500 000 habitants en 1920”. Confins (Paris), 2021.
KURGAN, Laura et all. (eds.). Ways of knowing cities. NY: Columbia Books and Architecture
and the city, 2019.
LANZONI, Kristin; OLSON, Mark; SZABO, Victoria. “Wired! and Visualizing Venice: Scaling up
Digital Art History”. Artl@s Bulletin, volume 4 [Issue 1 Spatial (digital) Art History], 2015.
MANOVICH, Lev. Software takes command. New York: Bloomsburry, 2013, p. 44-46 e 246-
249.
MIGLIACCIO, Luciano; BERTOCCI, Stefano; BUENO, Beatriz; SANTOS, Regina; MARTINS,
Renata. “LABSAMPA - Cooperação científica e tecnológica entre a Faculdade de Arquitetura
e Urbanismo da Universidade de São Paulo e o Dipartimento di Architettura dell’ Università
degli Studi di Firenze para a documentação da arquitetura histórica de São Paulo”. Gestão
& Tecnologia de Projetos, v. 16, p. 1-17, 2021.
SCHNAPP, Jeffrey T. (http://jeffreyschnapp.com/).

• 12
CAMINHOS DO ALGODÃO E DO FLAGELO
O papel das secas e das estradas de ferro no processo de urbanização
de Fortaleza (1870-1932)
PATHS OF COTTON AND SCOURGE: THE ROLE OF DROUGHTS AND
RAILWAYS IN THE MODERNIZING PROCESS OF URBAN SPACE IN
FORTALEZA (1870-1932)/CAMINOS DEL ALGODÓN Y DEL FLAGELO:
EL PAPEL DE LAS SEQUÍAS Y DE LOS FERROCARRILES EN EL
PROCESO DE MODERNIZACIÓN DEL ESPACIO URBANO DE
FORTALEZA (1870-1932)
Memórias, representações, arquivos

ALMEIDA, Isabelle de Lima


Mestranda em Arquitetura e Urbanismo; UFRN
isabell.almeid@gmail.com
NASCIMENTO, José Clewton do
Doutor em Arquitetura e Urbanismo; UFBA
Professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo; UFRN
jotaclewton@gmail.com
RESUMO

Este artigo propõe-se a investigar o papel cumprido pelas secas e pelas


estradas de ferro no processo de urbanização de Fortaleza, capital do Ceará.
Para isso, estabelece-se um recorte temporal que se inicia em 1870, data do
começo da construção da primeira ferrovia no Ceará, e finaliza-se em 1932,
ano da estruturação de campos de concentração de flagelados da seca no
sertão e em Fortaleza. Sendo assim, o período sob estudo abarca três
grandes secas que marcaram a história do Ceará: 1877, 1915 e 1932. Este
trabalho divide-se em três partes: a primeira aborda as origens da Estrada
de Ferro de Baturité, que desencadeou o aceleramento das relações do litoral
com o sertão cearense; já a segunda diz respeito à funcionalização da seca
no processo de modernização do espaço urbano de Fortaleza, transformando,
assim, os flagelados em proletários da seca através do emprego de sua força
de trabalho nas obras de melhorias urbanas e na nascente indústria
fortalezense; por fim, debate-se o surgimento de uma nova organização
socioterritorial em Fortaleza a partir da consolidação de indústrias e bairros
populares ao longo da estrada de ferro, o que levou à territorialização e
reterritorialização das diferentes classes sociais no espaço urbano
fortalezense. Conclui-se que, por meio do estudo da historicidade da
constituição do espaço urbano de Fortaleza, possibilita-se compreender o
surgimento de configurações socioterritoriais até hoje presentes na capital
cearense.

PALAVRAS CHAVE Flagelados da Seca; Ferrovia; Migrações;


Industrialização; Segregação socioespacial.

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo investigar el papel que jugaron las sequías y
los ferrocarriles en el proceso de urbanización de Fortaleza, capital de Ceará.
Para eso, se establece un marco temporal que comienza en 1870, fecha del
inicio de la construcción del primer ferrocarril en Ceará, y termina en 1932,
año de la estructuración de campos de concentración para los flagelados de
la sequía en el interior y en la capital. Así, el período estudiado abarca tres
grandes sequías que marcaron la historia de Ceará: 1877, 1915 y 1932. Este
trabajo se divide en tres partes: la primera trata de los orígenes del
Ferrocarril de Baturité, que desencadenó la aceleración de las relaciones
entre la costa y el interior; el segundo se refiere a la funcionalización de la
sequía en el proceso de modernización del espacio urbano de Fortaleza,
transformando a los flagelados en proletarios de la sequía mediante la
utilización de su mano de obra en obras de mejoramiento urbano y en la
naciente industria en Fortaleza; finalmente, discutimos el surgimiento de una
nueva organización socio-territorial en Fortaleza a partir de la consolidación

• 2
de industrias y barrios populares a lo largo de la vía férrea, que llevó a la
territorialización y reterritorialización de diferentes clases sociales en el
espacio urbano de Fortaleza. Se concluye que, a través del estudio de la
historicidad de la constitución del espacio urbano de Fortaleza, es posible
comprender el surgimiento de configuraciones socio-territoriales que aún
están presentes en la capital de Ceará.

PALABRAS-CLAVE Flagelados de la sequía; Ferrocarril; Migraciones;


Industrialización; Segregación socio-espacial.

• 3
INTRODUÇÃO
A Vila do Forte, assentamento urbano que deu origem à atual cidade de Fortaleza,
capital do Ceará, era descrita por viajantes do século XVIII como apenas “um forte, um
riacho e poucos moradores” (COSTA, 2017, p. 55). Elevado à condição de vila no ano de
1726, o núcleo urbano colonial desenvolveu-se às margens do Riacho Pajeú e do Forte
Schoonenborch, construção holandesa do século XVII.
Durante o período colonial, a atividade econômica da pecuária era predominante no
Ceará. Desse modo, a importância da Vila do Forte era diminuta frente às demais vilas
da capitania, que se concentravam no sertão cearense (ANDRADE, 2012). Foi somente
com o desenvolvimento da produção do algodão para exportação e com a emancipação
do Ceará em relação a Pernambuco, em 1799, que Fortaleza tornou-se capital,
adquirindo, assim, as características de um centro urbano (COSTA, 2017). A vila
convertia-se, então, em um polo comercializador e exportador da economia do algodão
no Ceará. Ainda assim, no início do século XIX, Fortaleza não passava de uma diminuta
aglomeração localizada na margem esquerda do Riacho Pajeú, sendo elevada à
condição de cidade apenas em 1823 (CASTRO, 1994).
Segundo Aldigueri (2017, p. 143), “a transformação de Fortaleza em centro urbano tem
como fundamento o espaço rural”. Assim, à medida que a lavoura algodoeira se
expandia no sertão, Fortaleza projetava-se como centro urbano e estabelecia-se como
um espaço geográfico privilegiado no Ceará, tornando-se um ponto de convergência de
diversas estradas. A partir de Fortaleza, e mais especificamente do antigo Forte, saíam
as “radiais nascidas no centro da cidade, todas velhos caminhos de comunicação com o
interior da Província” (CASTRO, 1994, p. 58). Nesse sentido, entende-se que o processo
de urbanização de Fortaleza constitui-se a partir dos caminhos que, ao conectar o
sertão ao litoral, realizavam o escoamento da produção algodoeira.
Assim, Fortaleza assumia um papel hegemônico na rede urbana cearense. Com o seu
incipiente desenvolvimento econômico, a capital cearense passava a atrair
investimentos em sua estrutura portuária e ferroviária, equipamentos que visavam
incluir a cidade no panorama internacional do circuito capitalista comercial. Nesse
sentido, a construção da ferrovia, já na segunda metade do século XIX, reforça a
predominância de Fortaleza na rede urbana do Ceará (COSTA, 2017).
À época do surgimento da sua primeira estrada de ferro, o Ceará vivia um período de
forte desenvolvimento econômico, marcado por volumosas chuvas e pela elevação dos
preços do algodão no comércio internacional (ANDRADE, 2012). Tal momento finaliza-se
com a grande seca de 1877-79, que assola o chamado "polígono das secas" das
províncias do Norte, posteriormente denominadas como Nordeste brasileiro. Segundo
Neves (1995, p. 93), “a seca é um fenômeno que desestrutura periodicamente a vida
dos sertanejos”, tradicionalmente inseridos em um sistema de organização familiar do
trabalho que tem como base a agricultura de subsistência. Como resultado, durante os
períodos de estiagem, milhares de famílias deixavam suas terras originárias em busca
de novas formas de sobrevivência, migrando do sertão para o litoral, e em especial para
a capital.

• 4
A migração, inicialmente realizada através de antigos caminhos de poeira, passaria mais
tarde a acontecer por meio das estradas de ferro, que já no final do século XIX
começavam a adentrar o sertão cearense. Dessa maneira, a via férrea teria sido capaz
de até mesmo formular uma “geografia da migração” no Ceará (RIOS, 2014). Silva
(2009, p. 95) defende que o processo de migração para a capital origina-se “sobretudo
com a estrutura fundiária vigente, que tem suas bases na grande propriedade”, fator
que inviabiliza o acesso à terra por parte dos pequenos agricultores sertanejos. Ocorria,
então, uma “precarização progressiva dos laços que ligavam os grupos camponeses à
terra”, que se dava em meio a um contexto de inserção das relações capitalistas de
trabalho no espaço rural (CÂNDIDO, 2013, p. 12).
Sendo assim, entende-se que o processo de modernização urbana de Fortaleza é
marcado por dois fatores que se relacionam entre si: as secas e as vias férreas,
elementos fundamentais para a compreensão da formação socioterritorial da urbe
fortalezense. Durante os períodos de estiagem, evidenciava-se um intrínseco vínculo
entre a estrada de ferro e o controle social da população migrante, seja por meio da
utilização da força de trabalho dos flagelados nas obras da ferrovia ou das estratégias
de segregação dos retirantes, que eram mantidos isolados em abarracamentos ou
campos de concentração estrategicamente localizados nas proximidades da via férrea
(RIOS, 2014).
Por meio do estudo da historicidade da constituição territorial do espaço urbano de
Fortaleza, possibilita-se compreender o surgimento de configurações socioterritoriais
através de “uma tradição de isolamento da miséria na capital cearense” (RIOS, 2014, p.
11). Concretizava-se, então, um processo de urbanização de cunho elitista e
excludente, que seguia os novos parâmetros da modernização capitalista. Conforme
Ferreira e Dantas (2001), a segregação do retirante no espaço urbano era então um
elemento fundamental para o processo de estruturação e constituição da cidade
moderna brasileira.
Assim, este artigo busca tecer uma narrativa acerca do processo de modernização e
industrialização da capital do Ceará, que tem como fio condutor a relação entre as secas
e a estrada de ferro. Para isso, estabelece-se um recorte temporal que se inicia em
1870, data do começo da construção da primeira ferrovia no Ceará, e finaliza-se em
1932, ano em que as políticas públicas de isolamento do flagelo atingiram um elevado
nível de organização e centralização. Sendo assim, o período sob estudo abarca três
grandes secas que marcaram a história do Ceará: 1877, 1915 e 1932.
O presente artigo encontra-se estruturado em três grandes partes: a primeira aborda as
circunstâncias que deram origem à Estrada de Ferro de Baturité, que desencadeou o
aceleramento das relações do litoral com o sertão cearense; já a segunda diz respeito à
funcionalização da seca no processo de modernização do espaço urbano de Fortaleza,
transformando, assim, os flagelados em proletários da seca através do emprego de sua
força de trabalho nas obras de melhorias urbanas e na nascente indústria fortalezense;
por fim, debate-se o surgimento de uma nova organização socioterritorial em Fortaleza
a partir da consolidação de indústrias e bairros populares ao longo da estrada de ferro,

• 5
o que levou à territorialização e reterritorialização das diferentes classes sociais no
espaço urbano fortalezense.

A ESTRADA DE FERRO E O ACELERAMENTO DAS RELAÇÕES DO LITORAL


COM O SERTÃO
O processo de instalação das estradas de ferro no Ceará teve início em 1870, ano no
qual a Companhia Cearense da Via Férrea de Baturité foi criada por um grupo formado
por empresários cearenses e negociantes ingleses. A Companhia tinha como objetivo
escoar a lavoura algodoeira para o Porto de Fortaleza e desenvolver a indústria
cearense (ANDRADE, 2012). Assim, a construção da ferrovia teve início em 1872 com a
realização de uma solenidade de inauguração no Campo da Amélia – atualmente
conhecido como Praça da Estação, local onde mais tarde, em 1880, seria inaugurada a
Estação Ferroviária Professor João Felipe (COSTA, 2017). Um ano após o início das
obras, iniciou-se o funcionamento do primeiro trecho da via férrea, que trafegava até o
distrito de Arronches, atual bairro da Parangaba (CÂNDIDO, 2002).
O mapa de Adolfo Herbster de 1875 é a primeira cartografia de Fortaleza a representar
o traçado da estrada de ferro (Figura 1). Inicialmente localizada no eixo da Avenida
Tristão Gonçalves – área central de Fortaleza, próxima à Praça José de Alencar –, a via
férrea seguia em direção ao sul até a localidade de Arronches pelo trajeto da atual
Avenida Carapinima.
O prolongamento da infraestrutura ferroviária seguiu em direção ao sertão até o ano de
1876, quando a estrada chegou ao município de Pacatuba, finalizando a primeira seção
da ferrovia. Com a seca de 1877, a Companhia Cearense da Via Férrea de Baturité
enfrentou dificuldades financeiras e as obras foram paralisadas. Já em 1878, as obras
foram retomadas a partir da iniciativa do Governo Imperial, que buscava empregar a
mão de obra1 dos milhares de retirantes da grande seca de 1877-79 que se
encontravam concentrados em abarracamentos na periferia de Fortaleza. Antes da seca,
as condições de trabalho nas obras da ferrovia já eram bastante precárias. Com a
retomada das obras, as relações de trabalho se aproximavam da condição de
escravidão, uma vez que os retirantes trabalhavam em troca de comida e vestimenta
(CÂNDIDO, 2002). Por meio dessas condições de trabalho, a estrada de ferro foi
prolongada na direção sul até a cidade de Baturité, finalizando o trecho da segunda
seção da via férrea em 1882 (COSTA, 2017).
Ainda com o estímulo da seca de 1877-79, iniciaram-se os trabalhos da Estrada de
Ferro de Sobral a partir do porto da cidade de Camocim, localizada no litoral oeste do

1 As Comissões de Socorros e Obras Públicas foram criadas em 1877 através de um projeto


de progresso que “pretendeu corrigir o desequilíbrio econômico entre o Norte e o Sul a partir
da proposta de aproveitar a força de trabalho disponível durante as secas para realizar
obras públicas, haja vista que elas significavam progresso material” (SOUSA, 2015, p. 179).
Empregava-se, assim, a mão de obra retirante na “construção e reforma de pontes,
estradas, prédios públicos, praças, escolas, cemitérios, igrejas e [...] açudes” (SOUSA, 2015,
p. 216).

• 6
Ceará. Já a terceira seção da Estrada de Ferro de Baturité, que seguia até a cidade de
Quixadá, foi construída na seca de 1888-89. Portanto, a cada seca, as obras das
ferrovias cearenses eram impulsionadas. Como resultado, já no início do século XX, a
malha ferroviária do Ceará era bastante abrangente. Ambas as estradas foram
unificadas em 1909, fundando a Rede de Viação Cearense (RVC). Em 1917, iniciou-se
em Fortaleza a construção do ramal da Estrada de Ferro de Sobral que se conectava à
capital (CAPASSO, 2007), e em 1926 a Estrada de Ferro de Baturité chegava até a
cidade de Crato, no Cariri, região sul do Ceará (COSTA, 2017).

Figura 1: Cartografia de Fortaleza em 1875. Em destaque, o antigo traçado da Estrada de Ferro de


Baturité (linha vermelha contínua), o traçado da Estrada de Ferro de Baturité a partir de 1917 (linha
vermelha tracejada) e a Estação João Felipe (n. 01).
Fonte: Adolfo Herbster (1875) modificado pelos autores.
Assim, Fortaleza expandia o seu raio de influência até o sul e o oeste do Ceará, áreas
fronteiriças com os estados de Pernambuco e Piauí (Figura 2). Nesse processo, a cidade
passava a concentrar as atividades políticas e econômicas do estado, aprofundando o
processo de enfraquecimento das antigas vilas coloniais do sertão (COSTA, 2017). Silva
(2009, p. 91) define tais acontecimentos como o “aceleramento das relações do sertão

• 7
com o litoral, via Fortaleza”, que tem como base o transporte ferroviário. Estreitavam-
se, assim, as distâncias entre a capital e cada cidade sertaneja que ganhava uma
estação de trem (RIOS, 2014).

Figura 2: Ramais ferroviários da Rede de Viação Cearense em 1927. Em destaque, a Estrada de Ferro de
Baturité e a Estrada de Ferro de Sobral.
Fonte: Viana (2019) modificado pelos autores.
Ao longo dos caminhos de ferro por onde trafegavam as locomotivas que seguiam até a
capital, consolidava-se uma verdadeira “geografia da migração”, que tomava maiores
proporções durante os períodos de estiagem. No sertão, os retirantes caminhavam a pé
por longos trechos de estradas de poeira até alcançar os caminhos de ferro. Assim,
partindo das estações ferroviárias do sertão, milhares de retirantes da seca seguiam em
direção a Fortaleza (RIOS, 2014).
Tal “geografia da migração" transformou as estações ferroviárias do sertão em espaços
de grande tensão, uma vez que amplas levas de flagelados da seca aglomeravam-se
nesses lugares com o intuito de conseguir uma passagem de trem até a capital. A partir
desses espaços, teve início a implementação de medidas de controle e aprisionamento

• 8
dos retirantes. Mais tarde, em 1932, tais políticas de isolamento culminaram nos
campos de concentração, estrategicamente erguidos nas proximidades das estações
ferroviárias localizadas no sertão e na capital. Assim, procurava-se “diluir as tensões
que se constituíam nos ‘pontos de trem’”, bem como frear a “geografia da migração”
para a capital por meio da ferrovia (RIOS, 2014, p. 22).
Já os retirantes que conseguiam chegar até Fortaleza também passavam a encarar uma
série de políticas de isolamento do flagelo. Ainda na seca de 1877-79, os flagelados
eram mantidos nos abarracamentos localizados na periferia do núcleo urbano
consolidado da capital, e em especial nas margens da linha férrea e nas proximidades
da faixa litorânea. Já a partir da seca de 1915, iniciava-se a implementação dos campos
de concentração na capital. Por fim, em 1932, dois campos de concentração foram
construídos às margens das estradas de ferro de Baturité e de Sobral (RIOS, 2014).
Segundo Rios (2014, p. 29), “os trens despejavam os flagelados na parte da cidade que
ficava mais próxima do mar, onde se localizavam as últimas estações férreas de
Fortaleza”. Como resultado, as famílias retirantes recém-chegadas à capital iniciavam a
construção de suas palhoças localizadas entre o trilho e a praia2. Tais áreas da cidade
passavam, assim, a ser compreendidas como o “lugar dos pobres” (ALDIGUERI, 2017).
De acordo com Andrade (2012), o Censo de 1887 registrava 118 palhoças ao longo do
percurso da via férrea3. No mapa de Fortaleza de 1888 (Figura 3), por exemplo, é
possível observar um conjunto de palhoças localizadas entre a Estação João Felipe e a
faixa litorânea, onde hoje encontra-se localizado o Arraial Moura Brasil. Além disso, ao
fim de cada seca, uma parcela considerável de retirantes permanecia em Fortaleza,
“engrossando as fileiras da pobreza” na cidade (RIOS, 2014, p. 31). Logo, as margens
do trilho e as faixas de praia foram gradualmente transformando-se em assentamentos
informais, processo que pode ter iniciado no final do século XIX e que se acelerou nos
anos 1930 com o aumento dos fluxos migratórios (SILVA, 2009). Com isso, “os
retirantes deixaram de ser flagelados e passaram a ser favelados” (RIOS, 2014, p. 31).
A estrada de ferro, originalmente concebida com o objetivo de consolidar o modo de
produção capitalista no Ceará, trazia, portanto, não só os ganhos econômicos do
algodão para a capital da Província, mas também os “indesejáveis” retirantes do sertão
(RIOS, 2014). No entanto, a presença dos flagelados na cidade significou uma
oportunidade de realizar obras tidas como necessárias para a melhoria da infraestrutura
urbana de Fortaleza. Logo, o flagelo foi funcionalizado e integrado ao processo de
modernização da capital (ALDIGUERI, 2017).

2 Segundo Rios (2014, p. 31), no final do século XIX, “a presença dos pobres [...] às
margens da praia afastou o interesse da especulação imobiliária por um longo período. [...]
não havia grande valorização dessas áreas urbanas”.

3 O romance “A Normalista”, de Adolfo Caminha, é ambientado na Rua do Trilho, antigo


percurso da Estrada de Ferro de Baturité e atual Avenida Tristão Gonçalves.

• 9
Figura 3: Cartografia de Fortaleza em 1888 com ampliação nos arredores da Estação Ferroviária. Em
destaque, a Estação João Felipe (n. 01) e o Arraial Moura Brasil (n. 02).
Fonte: Adolfo Herbster (1888)4 modificado pelos autores.

AS SECAS E A FUNCIONALIZAÇÃO DO FLAGELO NO PROCESSO DE


MODERNIZAÇÃO DE FORTALEZA
Durante a seca de 1877-79, Fortaleza recebeu centenas de milhares de flagelados da
seca. De acordo com Rodolfo Teófilo (apud RIOS, 2014), a cidade registrava um total de
160 mil habitantes no ano de 1878, sendo aproximadamente 120 mil destes compostos

4 HERBSTER, Adolphe. Planta da cidade da Fortaleza capital da provincia do Ceará. Paris


[França]: Becquet Frères, 1888. 1 planta, col. ; litografada, 82 x 80. Escala [1:4.400]
Disponível em:
http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_cartografia/cart522732/cart522732.jpg.
Acesso em: 6 mai. 2021.

• 10
por retirantes. Portanto, durante a grande seca iniciada em 1877, a capital cearense
recebeu uma população migrante equivalente ao triplo de seus residentes. Segundo
Neves (1995), os retirantes chegavam em Fortaleza a pé por meio de caminhos e
veredas que conectavam o sertão ao litoral, uma vez que a ferrovia, naquela seca, não
seguia para além da cidade de Pacatuba. Dessa maneira, após caminhar exaustivos
percursos, a população em fuga do sertão chegava à urbe em condições miseráveis,
expondo suas mazelas aos habitantes da capital.
Com o enorme contingente populacional que chegava à cidade naquela seca, o Governo
Provincial tomava as primeiras iniciativas de controle dos flagelados da seca no espaço
urbano. Surgiam, assim, os ensaios inaugurais de uma política de isolamento que seria
“aperfeiçoada” a cada seca sucessiva. Para isso, estabeleceram-se locais determinados
para o alojamento dos retirantes: os abarracamentos. Tais espaços distribuíam-se ao
redor de todo o núcleo urbano consolidado de Fortaleza, seguindo, inicialmente, um
ordenamento espacial aleatório (NEVES, 1995). Assim, alguns abarracamentos foram
instalados a leste da cidade, ou seja, a barlavento. De acordo com a teoria miasmática
então vigente, as doenças trazidas pelos retirantes seriam, portanto, espalhadas por
toda a cidade, uma vez que os miasmas seriam carregados pelos ventos que seguem
predominantemente a direção leste-oeste. Logo, os abarracamentos a barlavento
deveriam ser desinstalados e reativados na porção oeste da cidade (RIOS, 2014).
Segundo Andrade (2012), no ano de 1878, existiam 13 abarracamentos em Fortaleza,
cuja população totalizava 114.404 retirantes. Destacam-se, aqui, os locais de
isolamento do flagelo localizados entre o trilho e a praia: Boa Esperança, posicionado à
beira mar e a sotavento, com população de 2.476 pessoas, incluindo homens, mulheres
e crianças; Jacarecanga, situado na atual Praça Gustavo Barroso, com 7.039 flagelados;
Via Férrea, abarracamento composto por choupanas dispersas ao longo do percurso da
estrada de ferro, totalizando 2.085 retirantes; Lagoa Seca, com 2.236 pessoas alojadas
nas proximidades do bairro do Alagadiço, porção oeste da cidade; além de tantos outros
abarracamentos que, juntos, totalizavam uma centena de milhares de sertanejos
recém-chegados à capital cearense.
Com a presença de tamanho contingente populacional na cidade, logo iniciaram-se os
apelos da elite urbana de Fortaleza para que a mão de obra migrante fosse aproveitada
nas obras que eram consideradas fundamentais ao desenvolvimento comercial e
industrial do Ceará: o prolongamento da estrada de ferro e a melhoria do Porto de
Fortaleza. Já os retirantes, desprovidos de seus tradicionais meios de subsistência,
também reivindicavam trabalho. Com isso, originaram-se as frentes de trabalho, que se
baseavam em um discurso de assistencialismo aos flagelados da seca. Com isso, a
cidade se transformou em um verdadeiro canteiro de obras: os retirantes construíam
açudes, abriam estradas, realizavam o calçamento das ruas, trabalhavam na expansão
da ferrovia, dentre tantas outras obras de melhorias urbanas. Segundo Rios (2014, p.
12), os retirantes empregados nessas obras “trabalhavam em troca de um prato de
comida”, representando, assim, uma mão de obra quase gratuita. Aldigueri (2017, p.
155) defende que “o flagelo foi funcionalizado no processo de urbanização e valorização

• 11
da área central”, visto que a força de trabalho dos migrantes confinados nos
abarracamentos era explorada para a modernização do espaço e da infraestrutura
urbana da capital cearense. Tal funcionalização do flagelo, iniciada ainda na seca de
1877, seria desenvolvida a cada seca sucessiva e, já em 1932, encontraria-se
consolidada.
Ao final daquela grande seca, Fortaleza contava com um saldo de milhares de mortos
após surtos de varíola que dizimavam os retirantes confinados nos abarracamentos.
Com isso, buscava-se a reorganização do espaço urbano com base nas teorias médicas
então vigentes. Ainda em 1879, um novo Código de Posturas foi elaborado, substituindo
o anterior, datado de 1870. Pretendia-se, assim, disciplinar o processo de expansão
urbana e o comportamento dos habitantes da capital. Tal necessidade mostrava-se
latente, uma vez que, com o fim da seca, Fortaleza havia ganhado milhares de novos
habitantes: retirantes que não retornaram ao sertão e passaram a habitar o “lugar dos
pobres” na cidade, entre o trilho e a praia (ALDIGUERI, 2017).
Com a imensa nova leva de habitantes, o processo de planejamento da ampliação da
malha urbana de Fortaleza passava a ser fortemente guiado pelos ideais sanitaristas.
Nesse processo, as edificações consideradas insalubres, como hospitais, cadeias,
cemitérios, lazaretos e matadouros, eram transferidas para além do núcleo urbano
consolidado de Fortaleza, passando a ocupar, principalmente, a porção a sotavento da
cidade (Figura 4). Com isso, inauguram-se o Hospital de Caridade (atual Santa Casa de
Misericórdia), o Cemitério São João Batista e a Cadeia Pública (atual Centro de Turismo
do Ceará) (COSTA, 2017).
Mesmo com as novas medidas sanitárias adotadas como critérios de reorganização do
espaço urbano, Fortaleza voltaria a repetir a trágica mortandade de retirantes a cada
seca. É o caso da seca de 1915, durante a qual um expressivo número de migrantes
sertanejos foi dizimado pela varíola. Na seca do Quinze5, como ficou conhecida, a
política de isolamento do flagelo foi aprofundada. É nessa seca que surge a primeira
experiência de campo de concentração do Ceará, localizado no bairro do Alagadiço, nas
proximidades do antigo Matadouro e da Estrada de Ferro de Baturité. Nessa seca, a
rede ferroviária cearense já era bastante abrangente, e com isso os retirantes
chegavam em maior volume à capital (RIOS, 2014). De acordo com Neves (1995), os
flagelados que migravam para Fortaleza naquela seca de 1915 encontravam-se em
melhores condições de saúde em relação aos seus antecessores de estiagens passadas.
Isso se deu por conta das estradas de ferro, que, ampliadas durante as secas de 1877 e
1888, permitiram que o retirante realizasse a viagem entre o sertão e o litoral de
maneira menos custosa à sua saúde. Como resultado, as estações ferroviárias no
interior do Ceará converteram-se em uma espécie de “ante-sala” do campo de
concentração. Chegando à capital, os flagelados eram confinados no sítio cercado do
Alagadiço, que, naquela seca, registrou uma alta mortalidade.

5O romance “O Quinze”, de Rachel de Queiroz, retrata a grande seca de 1915 nas cidades
de Quixadá e Fortaleza.

• 12
Figura 4: Cartografia de Fortaleza em 1888. Em destaque, o antigo traçado da Estrada de Ferro de
Baturité (linha vermelha contínua), o traçado da Estrada de Ferro de Baturité a partir de 1917 (linha
vermelha tracejada), a Estação João Felipe (n. 01), o Hospital de Caridade (n. 02), o Cemitério São João
Batista (n. 03) e a Cadeia Pública (n. 04).
Fonte: Adolfo Herbster (1888)6 modificado pelos autores.
Já na seca seguinte, em 1932, a experiência dos campos de concentração foi ampliada
e estendida ao sertão do Ceará. Assim, o controle do flagelo poderia iniciar ainda no
interior do estado, freando, em partes, a “geografia da migração” estabelecida a partir
das estradas de ferro. Já em Fortaleza, foram implementados dois campos: o primeiro,
de curta duração, localizado nas proximidades do Matadouro Modelo e do Açude do
Tauape; já o segundo era conhecido como campo do Urubu e situava-se à beira-mar,

6 HERBSTER, Adolphe. Planta da cidade da Fortaleza capital da provincia do Ceará. Paris


[França]: Becquet Frères, 1888. 1 planta, col. ; litografada, 82 x 80. Escala [1:4.400]
Disponível em:
http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_cartografia/cart522732/cart522732.jpg.
Acesso em: 6 mai. 2021.

• 13
entre o Pirambu e a área portuária. Ambos os campos localizavam-se nas proximidades
da linha férrea, sendo o primeiro ao longo da Estrada de Ferro de Baturité e o segundo
às margens da Estrada de Ferro de Sobral. Dessa maneira, Fortaleza encontrava-se
sitiada: para chegar às ruas da capital, o retirante precisava ultrapassar os campos de
concentração do sertão, e, chegando ao litoral, ainda contava com a barreira dos
campos ali existentes (NEVES, 1995). Na cartografia de 1945 (Figura 5), é possível
observar o posicionamento dos campos de concentração em relação às estradas de
ferro que então cortavam a malha urbana de Fortaleza.

Figura 5: Cartografia de Fortaleza em 1945. Em destaque, as estradas de ferro de Sobral e Baturité


(linha vermelha contínua), além das seguintes localizações: Oficina do Urubu (n. 01) e Antigo Matadouro
(n. 02), Matadouro Modelo (n. 03) e Estação João Felipe (n. 04).
Fonte: Serviço Geográfico do Exército (1945) modificado pelos autores.
Fortaleza aprofundava, portanto, suas políticas de isolamento e segregação da miséria
no espaço urbano. Logo, entende-se que em 1877 houve um ensaio difuso e
descentralizado, cuja consolidação se dava progressivamente a cada nova seca,
atingindo a experiência “ampla, interiorizada e centralizada dos campos de
concentração” em 1932 (NEVES, 1995, p. 117). Acompanhando tal “evolução”,
Fortaleza avançava no aformoseamento e na modernização de seu espaço urbano à
custa da força de trabalho flagelada, que, ao fim de cada estiagem, permanecia na

• 14
capital, ampliando a população e a extensão dos bairros pobres da cidade. Formava-se,
assim, uma parte da cidade “constituída, em grande parte, por secas anteriores”:
retirantes que, ao permanecer na capital, continuavam a experimentar a segregação
socioespacial (RIOS, 2014, p. 83).
De proletários da seca alojados nos abarracamentos e campos de concentração, a
população retirante transformava-se no operariado urbano habitante da periferia
fortalezense (CÂNDIDO, 2013). Naquele contexto, Fortaleza industrializava-se e as
fábricas eram então implantadas às margens das estradas de ferro, território já
habitado pela população mais pobre da cidade. Assim, a nascente indústria cearense
empregava a força de trabalho dos operários urbanos constituídos pela população
migrante de secas anteriores. No entanto, a cada seca, novos contingentes
populacionais chegavam à capital vindos do sertão. Aproveitando-se da mão de obra
quase gratuita dos fugitivos da seca, já amplamente utilizada nas obras públicas de
melhorias urbanas, a burguesia industrial fortalezense passava a empregar retirantes
em suas fábricas. Assim, formava-se um excedente de mão de obra na cidade, que
possibilitava demitir os “trabalhadores mais rebeldes” (RIOS, 2014, p. 38). Como
resultado, exercia-se um controle simultâneo dos proletários da seca e dos operários
urbanos.

A INDUSTRIALIZAÇÃO DE FORTALEZA E A ORGANIZAÇÃO


SOCIOTERRITORIAL DO ESPAÇO URBANO
No final do século XIX, Fortaleza já se expandia para além de seu núcleo fundacional
através de bairros formados ao longo das antigas estradas que partiam do Forte. Muitos
desses bairros contavam, inclusive, com linhas de bonde, que serviam principalmente
aos arrabaldes elitizados da cidade (CAPASSO, 2007). Nesse contexto, o local de
moradia da população já indicava um início de estratificação social do espaço urbano: os
de maior renda concentravam-se no Centro e nos arrabaldes bucólicos, mas acessíveis
por linhas de bonde, como os bairros elitizados de Jacarecanga, Benfica e Alagadiço; já
a população mais carente, que não podia pagar pela terra urbana, dependia da
autoconstrução informal de suas palhoças nas proximidades do trilho e da praia e na
periferia do núcleo urbano consolidado (COSTA, 2017).
A elite urbana concentrava-se, portanto, na porção oeste da cidade, e em especial no
bairro de Jacarecanga, situado entre o riacho homônimo e o Cemitério São João Batista.
Ali, a burguesia comercial e agrária do Ceará construía suas moradias: chalés, chácaras,
solares e sobrados. Segundo Capasso (2007), a ocupação urbana em direção ao oeste
se deu por meio do prolongamento da malha urbana ortogonal da área central da
cidade, que seguia o mesmo desenho quadriculado até o Boulevard de Jacarecanga,
atual Avenida Filomeno Gomes. Sendo assim, o bairro elitizado de Jacarecanga
consolidava-se mesmo com o obstáculo representado pela Rua do Trilho. Em 1917, o
trajeto da ferrovia foi deslocado para além do Riacho Jacarecanga, a mais ou menos um
quilômetro de distância do antigo percurso. Aproveitava-se, então, a abertura do ramal

• 15
da Estrada de Ferro de Sobral para realizar tal mudança na organização do espaço
urbano de Fortaleza. O novo trajeto ferroviário passava a cruzar o bairro do Alagadiço e
tornava o acesso entre o Centro e Jacarecanga totalmente desimpedido de obstáculos.
Mesmo com a presença de bairros burgueses na porção oeste da cidade, instalaram-se,
ali, as primeiras usinas da cidade, atraídas pela estrada de ferro, que trazia insumos do
sertão e escoava a produção industrial para o porto (Figuras 6 e 7). Assim, em 1919,
inaugurou-se a Fábrica Gurgel ao longo do trecho da Estrada de Ferro de Baturité recém
transferido do centro para o bairro do Alagadiço. Já em 1926, surgia a Fábrica São José,
inserida às margens da Estrada de Ferro de Sobral. Ambas as fábricas trabalhavam com
fiação e tecelagem, estando, portanto, diretamente relacionadas com a economia do
algodão. Em 1928 surgia, ainda, a Oficina do Urubu, instalação de reparo dos vagões e
locomotivas da Rede de Viação Cearense (RVC). Assim, diversos estabelecimentos fabris
passaram a se concentrar ao longo da via férrea e da Estrada do Urubu, atual Avenida
Francisco Sá. Com a formação de um polo industrial, intensificava-se a ocupação da
porção oeste de Fortaleza por parte da população mais pobre, que já se encontrava
naquele território em razão da permanência de retirantes de secas prévias nas áreas
anteriormente ocupadas por abarracamentos (COSTA, 2017). Provocava-se, assim, uma
profunda alteração no espaço urbano por meio da industrialização, trazendo consigo
uma série de consequências socioterritoriais para a cidade.

Figuras 6 e 7: Fábricas Gurgel (inaugurada em 1919) e São José (inaugurada em 1926),


respectivamente localizadas nos bairros Farias Brito (antigo Alagadiço) e Jacarecanga às margens da
estrada de ferro.
Fonte: Andrade (2012).
Crescia, assim, a população operária, e os bairros de Jacarecanga e Alagadiço mudavam
rapidamente de perfil socioeconômico. Já a partir dos anos 1920, vilas operárias
começaram a ser construídas nas proximidades das indústrias têxteis. As vilas Gurgel e
São José, vinculadas às fábricas homônimas, contavam respectivamente com 42 e 86
unidades habitacionais (Figura 8). Além das vilas fabris, mais uma solução habitacional
era oferecida: as vilas de aluguel construídas por empreendedores particulares. As vilas
consolidavam-se, assim, como um tipo bastante recorrente de habitação proletária
(ANDRADE, 2012). Para além dessa provisão habitacional a partir do mercado rentista
de locação, intensificava-se, também, a ocupação ao longo das faixas de praia, em
especial nos arraiais Pirambu e Moura Brasil, assentamentos precários formados a partir
das políticas de isolamento das secas anteriores. Iniciava-se, assim, o processo de

• 16
“favelização” em Fortaleza, que se intensifica principalmente a partir dos anos 1930
(SILVA, 2009).

Figura 8: Porção oeste da área central de Fortaleza. Em destaque, as atuais linhas oeste e sul do Metrô
de Fortaleza (linha vermelha contínua) – instaladas, respectivamente, nos ramais ferroviários das
estradas de Sobral e Baturité –, o traçado da antiga Estrada de Ferro de Baturité (linha vermelha
tracejada) e as seguintes localizações: Vila São José (n. 01), Fábrica São José (n. 02), Usina Gurgel (n.
03) e possível localização da Vila Gurgel (n. 04).
Fonte: Prefeitura Municipal de Fortaleza (2016) modificado pelos autores.
A partir da industrialização, o bairro de Jacarecanga, reduto da burguesia local, passa a
ser abandonado por seus moradores, que buscavam se afastar das fábricas e dos
operários (CAPASSO, 2007). Assim, inicia-se um processo de reterritorialização das
classes altas na cidade. Estas passam a procurar os bairros litorâneos da área leste da
cidade: Praia de Iracema, Meireles e Aldeota (COSTA, 2017). Logo, a burguesia buscava
isolar-se não só das indústrias e dos bairros operários, mas do próprio Centro da
cidade. Nesse sentido, a própria centralidade da cidade altera-se, privilegiando, então, o
bairro da Aldeota, uma vez que “as elites sempre deslocam os centros principais em
favor da sua direção” (CAPASSO, 2007, p. 7). Capasso (2007, p. 6) denomina esse
processo como “a mobilidade dos territórios elitizados da cidade ao longo do século XX”.
Aprofundava-se, assim, a diferenciação e a segregação socioespacial na cidade de
Fortaleza (ANDRADE, 2012).

• 17
Dessa maneira, a estratificação socioespacial da cidade de Fortaleza, que já vinha sendo
desenhada ao longo de todo o século XIX, estabelece-se, definitivamente, no início do
século XX. Andrade (2012) defende que ainda nos anos 1920 se delineava tal perfil da
cidade, mas que seria somente a partir dos anos 1930 que tal processo seria
consolidado. Já Rios (2014) aponta que a diferenciação social do espaço urbano é
institucionalizado com o Código de Posturas de 1932, que setoriza a cidade em zonas
distintas, expressando os interesses da burguesia para a cidade. Assim, Fortaleza se
expandia por meio da definição de territórios a serem ocupados por cada classe social,
aprofundando os espaços de isolamento da pobreza na urbe.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio do presente trabalho, possibilitou-se explorar uma temática fundamental para
a compreensão das origens de fenômenos urbanos contemporâneos como a segregação
socioespacial. Entende-se, portanto, que políticas públicas do passado marcaram e
moldaram a organização do espaço urbano da capital cearense. Os fatos históricos aqui
analisados contam com repercussões presentes na atualidade, uma vez que a cidade
contemporânea é produto de determinadas condições materiais, sociais e culturais do
passado. Sendo assim, as secas e as vias férreas estabelecem-se como elementos
cruciais na linha do tempo da história dos processos de urbanização, industrialização e
favelização de Fortaleza. O processo histórico de territorialização e reterritorialização
das diferentes classes sociais no espaço urbano fortalezense definiram a organização
socioterritorial ainda hoje vigente. Complementarmente, os marcos urbanos das
ferrovias, indústrias e equipamentos urbanos construídos no passado a partir da mão de
obra dos flagelados e proletários da seca continuam a constituir importantes
referenciais históricos presentes na paisagem e na estrutura urbana da Fortaleza
contemporânea.

• 18
REFERÊNCIAS
ALDIGUERI, Camila. Metamorfoses da terra na produção da cidade e da favela em Fortaleza.
Tese (Doutorado) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2017.
ANDRADE, Margarida. Fortaleza em perspectiva histórica: poder público e iniciativa privada
na apropriação e produção material da cidade (1810-1933). Tese (Doutorado) - Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.
CÂNDIDO, Tyrone. “Os trilhos do progresso: episódios das lutas operárias na construção da
Estrada de Ferro de Baturité (1872-1926)”. Revista Trajetos, Fortaleza: Vol. 1, N. 2, pp.
83-101. 2002.
________. “Proletários da seca: (des)arranjos nas fronteiras do trabalho (1877-1919)”. In:
SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 27., 2013, Natal. Anais... Natal, 2013.
CAPASSO, Marcelo Mota. “O centro tradicional de Fortaleza: processo de expansão”. In:
ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM
PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL, 12., 2007, Belém. Anais... Belém, 2007.
CASTRO, José Liberal de. “Contribuição de Adolfo Herbster à forma urbana da cidade de
Fortaleza”. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: Vol. 108, pp. 43-90. 1994.
COSTA, Maria Clélia. Capítulos de geografia histórica de Fortaleza. Fortaleza: Imprensa
Universitária, 2017.
FERREIRA, Angela Lúcia; DANTAS, George Alexandre. “Os indesejáveis na cidade: as
representações do retirante da seca (Natal, 1890-1930)”. Scripta Nova. Barcelona: Vol. 5,
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NEVES, Frederico. “Curral dos bárbaros: os Campos de Concentração no Ceará (1915 e
1932)”. Revista Brasileira de História. São Paulo: Vol. 15, N. 29, pp. 93-122. 1995.
RIOS, Kênia. Isolamento e poder: Fortaleza e os campos de concentração na Seca de 1932.
Fortaleza: Imprensa Universitária, 2014.
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Wanderley; SILVA, José da; COSTA, Maria Clélia. De cidade a metrópole:
(trans)formações urbanas em Fortaleza. Fortaleza: Edições UFC, 2009. pp. 87-141.
SOUSA, José Weyne. “Secas e socorros públicos no Ceará: doença, pobreza e violência
(1877-1932)”. Projeto História. São Paulo: N. 52, pp. 178-219. 2015.
VIANA, Antônio Kinsley. “Entre os trilhos, a estação e as memórias: o papel da estrada de
ferro para o desenvolvimento da cidade de Cedro-CE”. ParaOnde!?. Porto Alegre: Vol.12,
N.1, pp. 130-140. 2019.

• 19
CIDADE E AS LEIS NATURAIS DA EVOLUÇÃO:
Patrick Geddes e Gaston Bardet
CITY AND THE NATURAL LAWS OF EVOLUTION:
Patrick Geddes and Gaston Bardet
Memórias, representações, arquivos

PEREIRA, Juliana
Profa. Dra. do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de
Pernambuco; DAU/UFPE
juliana.mpereira@ufpe.br
PONTUAL, Virgínia
Profa. Dra. do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Urbano da Universidade
Federal de Pernambuco; MDU/UFPE
virginiapontual@gmail.com
VALENTIM, Davi
Mestre em Desenvolvimento Urbano; MDU/UFPE
davi.dornelles@gmail.com
RESUMO

O presente artigo trata da contribuição dos urbanistas Patrick Geddes e Gaston


Bardet para a compreensão das cidades a partir de sua investigação empírica.
A busca por métodos que permitissem identificar « leis naturais da evolução »
marcou a obra destes teóricos que rechaçavam a aplicação de modelos e
soluções prontas embasadas no funcionalismo. Atualmente, a recuperação do
pensamento destes urbanistas nos permite somar à complexidade e
heterogeneidade da noção historiográfica cristalizada de urbanismo moderno.
A investigação histórica, balizada pelo movimento sujeito-contexto, teve como
fontes documentais : as notas de aula, trabalhos, exercícios, álbuns,
fotografias, reportagens de jornal coletados no Centre d’archives d’architecture
du XXe siècle - Cité de l'architecture et du patrimoine (Fond Bardet), assim
como revistas de urbanismo e livros consultados na Bibliothèque Citè
d’Achitecture et du Patrimoine, Bibliothèque Poëte et Sellier de l’École
d’Urbanisme de Paris, Bibliothèque d’Hôtel de Ville, Bibliothèque Fourney e
Bibliothèque Nationale de France (BnF).

PALAVRAS CHAVE Evolução das cidades; Urbanismo; Patrick Geddes; Gaston


Bardet.

ABSTRACT

This article addresses the contribution of urban planners Patrick Geddes and
Gaston Bardet to the understanding of cities based on their empirical
investigation. The search for methods that made it possible to identify «natural
laws of evolution» marked the work of these theorists who rejected the
application of ready-made models and solutions based on functionalism.
Nowadays, the recovery of the thinking of these urbanists allows us to add to
the complexity and heterogeneity of the crystallized historiographical notion of
modern urbanism. The historical investigation, guided by the subject-context
movement, had as documentary sources: class notes, works, exercises,
albums, photographs, newspaper reports collected in the Centre d’archives
d’architecture du XXe siècle - Cité de l'architecture et du patrimoine (Fond
Bardet), as well as urbanism magazines and books consulted in the
Bibliothèque Citè d’Achitecture et du Patrimoine, Bibliothèque Poëte et Sellier
de l’École d’Urbanisme de Paris, Bibliothèque d’Hôtel de Ville, Bibliothèque
Fourney and Bibliothèque Nationale de France (BnF).

KEY-WORDS Evolution of cities; Urbanism; Patrick Geddes; Gaston Bardet.

• 1
INTRODUÇÃO
O presente artigo é parte de uma tese desenvolvida sobre o pensamento urbanístico de
Gaston Bardet e explora sua filiação ao botânico Patrick Geddes (1854-1932) . O objetivo
aqui é trazer à tona uma contribuição que possa somar à complexidade e heterogeneidade
da noção historiográfica de urbanismo moderno.
Para tal, buscou-se, inicialmente, compreender como a noção de “evolução das cidades”,
cunhada a partir da filosofia bergsoniana foi transposta para o urbanismo por Geddes,
bem como, que conceitos e ferramentas puderam ser formulados a partir desta. Em
seguida, lançou-se o olhar sobre Bardet, por meio do livro “Principes Inédits d'Enquêtes
et d'Analyses Urbaines”, obra na qual são visíveis seus esforços para formulação de um
método de análise que possibilitasse instrumentalizar as leis naturais desta evolução.
A leitura de ambos urbanistas foi balizada pelo entendimento de que o objeto de estudo
só tem sentido quando lido em seu contexto, por isso, na medida do que permite o espaço
de um artigo, procurou-se trazer as interlocuções, referências, instituições e movimentos
de pensadores dos quais eles se aproximaram e se afastaram. Mas, antes de tudo, quem
foram esses teóricos do urbanismo do século XX?
Patrick Geddes (1854-1932)1, escocês, ingressou na Edinburg University para estudar
botânica e ciências naturais, porém não prosseguiu, ao perceber que as plantas seriam
estudadas em laboratório ao invés de livremente na natureza. Em 1875, foi admitido na
School of Mines para estudar zoologia com o renomado professor darwinista, Thomas
Henry Huxley, figura marcante na sua formação. Ao concluir o curso, atuou em pesquisa
científica no México (1879-80); foi nomeado professor de botânica na University College
of Dundee (1888-19); organizou o curso de verão na Exposição Internacional de Paris
(1900); participou da Town Planning Conference em Londres (1910); organizou a Cities
and Town Planning Exibition (1913-16); assumiu a cadeira Sociology and civics at the
University of Bombay (1920-23).
Gaston Bardet (1907-1989)2 formou-se em arquitetura na École National Supérieur de
Beaux Arts (1930) e, logo em seguida, ingressou no Institut d’Urbanisme de l’Université
de Paris (IUUP), onde diplomou-se com láurea (1932) e tornou-se professor (1937). Fez
parte de diversas instituições como: Société Française des Urbanistes (SFU), Société de
Statistique de Paris (SSP) e, Societé pour la Protection des Paysages de France, além de
comitês editoriais diversos. Ensinou no Institut d’Urbanisme de l’Université d’Alger
(Argélia, 1945-47); coordenou o Institut Supérieur d’Urbanisme Appliqué (Bruxelas,
1947-74); viajou e proferiu conferências de urbanismo em pelo menos 18 países (1947-
76). Publicou 12 livros de urbanismo e mais de 70 artigos publicados em revistas
especializadas. Isso demonstra que houve interesse significativo por suas ideias naquele
momento.

1
Sobre Geddes, recomenda-se a leitura de Rojas (2012), Welter (2002), Garrido (2017), Hall (1994) e
Mumford (2004).
2
Sobre Bardet, ressaltam-se os artigos de Cohen (1978, 1989, 1996), Frey (1999, 2001), Pontual (2016),
Pereira e Pontual (2018, 2020), além dos estudos de Manzione (2006) e Pereira (2019).

• 2
Além do livro de Bardet já citado e do livro “Cities in Evolution” (GEDDES,1949), serviram
como fontes documentais para esta investigação: as notas de aula, trabalhos, exercícios,
álbuns, fotografias, reportagens de jornal coletados no Centre d’archives d’architecture
du XXe siècle - Cité de l'architecture et du patrimoine (Fond Bardet), assim como revistas
de urbanismo e livros consultados na Bibliothèque Citè d’Achitecture et du Patrimoine,
Bibliothèque Poëte et Sellier de l’École d’Urbanisme de Paris, Bibliothèque d’Hôtel de Ville,
Bibliothèque Fourney e Bibliothèque Nationale de France (BnF).

A “EVOLUÇÃO DAS CIDADES” POR PATRICK GEDDES


Patrick Geddes (1854-1932) foi um dos nomes que ajudou a estabelecer as bases teóricas
do urbanismo enquanto campo disciplinar. Assim como Marcel Poëte3, teve uma formação
peculiar e muitas afinidades com a filosofia de Henri Bergson 4, o que suscita muitas
comparações. Entretanto, há uma diferença crucial a ser demarcada entre os dois:
enquanto o francês não admite a existência de “leis da evolução” e prega o estudo da
evolução como uma experiência única em cada cidade, o escocês assume e dedica boa
parte das suas reflexões ao desenvolvimento de métodos para identificá-las.
Ao analisar a obra de Geddes, Welter (2002) ressalta a complexidade do seu pensamento
e abordagem: tratava-se de um botânico observador da vida na perspectiva evolucionista,
tão pragmático quanto aberto aos fenômenos metafísicos. É importante sublinhar que
ele se considerava, sobretudo, um botânico. É daí que deriva sua marca mais pessoal na
compreensão da cidade e do território. Desse modo, seu pensamento não foi só
urbanístico, mas sobre a evolução da vida aplicável às cidades, porque as enxergou como
manifestação maior da vida em sociedade.
Para Bardet (1948, p.20), Geddes foi um dos percussores do “urbanismo essencial”, isto
é, fundamentado no conhecimento do “ser urbano”. Ele também ressaltou a importância
de noções como a “cirurgia conservadora”, “diagnosticar antes de intervir” e da “Regional
Survey”, entre as formulações mais originais do botânico. Ainda, reconheceu o mérito de
Geddes por ter direcionado o urbanismo para uma ciência de observação e não limitada

3
Marcel Poëte (1866-1950) foi arquivista-paleógrafo, especializado no período medieval pela École de
Chartes (1890), tornou-se diretor da Bibliothèque Historique de la Ville de Paris (1903. Além de integrar
o Musée Social, participou, da Comissão de Extensão da Paris Antiga (1911-1913) e da direção da revista
La Vie Urbaine (1919), um dos mais importantes meios de divulgação de planos e estudos dos urbanistas
franceses no início do século. Poëte foi protagonista na criação do primeiro curso de urbanismo na França,
fundando o Institut d’Urbanisme de l’Université de Paris (IUUP, 1924). A obra escrita de Poëte, foi
preponderantemente publicada entre (1903-1930), com destaque os seguintes livros: Introduction à
l’urbanisme. L’évolution des villes, La leçon de l’antiquité (1929) e Paris, son évolution créatrice (1938).
4
Henri Bergson (1859-1941) foi um importante filósofo metafísico francês de abordagem vitalista,
conhecido como o “filósofo da duração”. Entre seus principais livros estão: “Matéria e memória”,
“Introdução à Metafísica” e “As duas fontes da moral e da religião”, recebeu Nobel de Literatura em 1927
por “A evolução criadora”. Na concepção vitalista os fenômenos vitais não são totalmente explicáveis
através de causas mecânicas, admitindo-se, portanto, a existência de uma energia universal ou “élan vital”
que permeia todo organismo vivo (BERGSON, 2005).

• 3
à cidade, mas ampliada à região, considerando e articulando todos os pontos de vista
possíveis: espiritual, geográfico, histórico, econômico e sociológico.
Bardet (1948) afirma que foi na França que Geddes se tornou sociólogo. De fato, o
botânico nunca escondeu a afinidade com o ambiente intelectual francês, tendo estudado
na Sorbonne em 1879, quando se aprofundou na sociologia, geografia e na filosofia. Além
disso, participou da Exposição Universal de 1900 e não passou despercebido na Town
Planning Conference (TPC), em 1910, na qual teve uma galeria dedicada à explicação do
método Regional Survey e da Outlook Tower.
Segundo Simões Jr. (2014), a TCP foi o principal evento de difusão internacional de ideias
urbanísticas antes da 1ª Guerra Mundial. Além do propósito de discutir experiências no
campo do urbanismo em formação, apresentou a Housing and Town Planning Act - recém-
aprovada normativa urbanística inglesa. Entre as figuras mais importantes que
participaram do evento, estavam: Ebenezer Howard, Raymond Unwin, Thomas Adams
(Grã-Betanha); Joseph Stübben, Rudolf Eberstadt, Werner Hegemann (Alemanha);
Eugene Hénard, Augustin Rey, Louis Bonnier (França); Daniel H. Burnham, Charles
Mulford Robinson (EUA).
Em 1900, Geddes conheceu pessoalmente Henri Bergson na Exposição Universal de Paris.
De acordo com Welter (2002), a filosofia bergsoniana já era conhecida do botânico, pois
ganhara espaço a partir do contato com círculos intelectuais abertos ao estudo da
teosofia. Bergson representou para Geddes um alento aos questionamentos pessoais,
com a possibilidade de acolher fenômenos metafísicos e comportamentos religiosos numa
filosofia. Ao agregá-la à perspectiva científica e pragmática de sua formação, o botânico
não só buscou a compreensão da vida, como também possibilidades de evolução,
questionando-se sempre: “Como a vida pode ser melhorada? ”(Welter, p.20)
Na conferência intitulada “Um botânico olha para o mundo”, proferida por Geddes aos
estudantes de Dundee em 1927, fica explícita sua compreensão sobre o pensamento
bergsoniano:

Afinal, o que é o Élan vital de Bergson a não ser uma apreciação de como crescem as
flores ? Nossas teorias mais antigas tendiam antes de tudo para o efeito visual das flores
artificiais, ou como as moscas artificiais eram preparadas – mecanicamente belas, sem
dúvida – mas não eram flores ou moscas vivas e verdadeiras !
Aqui, nesse jardim, a coleção é relativamente pequena, porque só mantemos o que cresce
sistematicamente. Algumas plantas, como vocês vêem, crescem aqui até a desordem
selvagem – mas isso também é vida mais abundante. Vocês também podem ver no jardim,
lá fora, como a doutrina de Bergson sobre a Duração é uma fuga do tempo que passa
mecanicamente pelo relógio, para apreciação da fase e do tipo de crescimento a que chegou
cada ser vivo (GEDDES, 1994, p.265).

Assim como as flores, são as cidades. Para Geddes, a noção de “elã vital” aplicada ao
urbanismo estava na percepção de que cada aglomerado urbano teria um ciclo, uma
duração, uma essência própria, portanto, deveria ser apreendido particularmente, pela
experiência – ou intuição, para colocar nos termos de Bergson.
Logo no início do livro intitulado “Cidades em evolução”, o botânico deixou claro que a
noção de evolução ía além da recuperação do passado e da análise dos processos sociais

• 4
do presente. Era uma pesquisa de tendências futuras, balizada pela pergunta: “Para
onde? ” Tal pesquisa teria como desafio atrelar o conhecimento da história à compreensão
do presente para antever e preparar o futuro, sempre considerando as limitações de não
controlar por completo o “fluxo mutável da vida” (GEDDES, 1994, p.35).
Tomado pelo propósito de dar continuidade à vida, a prioridade dos estudos de Geddes
sempre foi o futuro. Era, acima de tudo, um otimista. No entanto, guardava grandes
ressalvas a visões futuristas construídas sobre rupturas bruscas e abstracionismos,
resultante da fé absoluta nas ciências dominantes desde o Iluminismo. A cultura, a
história, a economia e todas as relações existentes deveriam ser levadas em conta para
reagir ao que considerava uma “cegueira artificial” propagada na cidade industrial
(GEDDES, 1994, p.41).
Geddes apresentou, então, dois extremos. De um lado, reformas como as de Paris, Roma
e Viena, provocando transformações violentas e expurgando o que havia de bom e de
ruim no “ser urbano”. De outro, visões românticas tentando preservar o passado ao custo
de sacrificar as demandas do homem do presente. Como conciliar direções tão distintas?
O botânico propôs a emergência de uma ciência renovada – a qual denominou civics –,
fundamentada numa “visão sinóptica” da cidade e da natureza.
Na França, Geddes foi introduzido ao pensamento social cristão de Fredéric Le Play, cujo
método se centrava na tríade “lugar, trabalho e família” (lieu-place-famille). A visão
reformadora desse sociólogo foi impulsionada pelas demandas urgentes do meio que
abrigava as populações mais pobres; melhorá-las significava modificar o curso da
degradação social da cidade industrial. A pesquisa social considerava a família enquanto
célula fundamental e priorizava conhecer as condições do habitat e da vida operária.
A tríade de Le Play inspirou Geddes a formular “máquinas de pensar”. Novas matrizes
geravam possibilidades de investigações do território por meio da ampliação das
variáveis, tanto em escala como em possibilidades de interação. A partir da nova tríade
“conquista, sinergia e nação”, ele desenvolveu o tão célebre quanto complexo diagrama
“Notação da vida”.
Apresentado na Figura 1, a seguir, o diagrama é uma síntese visual da teoria das cidades
de Geddes. A leitura do mesmo deve ser realizada no papel dobrado em quatro partes,
iniciando pelo quadrante superior esquerdo e seguindo as setas no sentido anti-horário.
A cidade da ação é produtora e produto dos processos econômicos, sociais e culturais que
nela de desenvolvem, assim como as ações individuais e associações coletivas se
retroalimentam. As fases evolutivas têm vários níveis, onde o ápice é a Eutopia. O
objetivo do botânico era demonstrar como fatores ambientais, antropológicos, sociais e
políticos estão intrínsecos na vida urbana.

• 5
Figura 1: Diagrama Notação da vida. Fonte: GEDDES, 1945, p.194

A aproximação com a geografia também se deu pelo contato com dois anarquistas: Piotr
Kropótkin e Elisée Reclus (ROJAS, 2012). O primeiro foi uma importante referência , tanto
para Geddes quanto para Howard, ao propor um “Comunismo Anarquista sem Governo”.
Kropótkin se embasou na cooperação entre indivíduos livres como uma tendência da
natureza e resgatou historicamente as comunas europeias do século XII (HALL, 1994,
p.168). Ao desenvolver a filosofia anarquista para as condições do século XX, ele foi
defensor da reestruturação socioeconômica do campo pela articulação da agricultura às
indústrias decentralizadas no território.
Já o Reclus, permitiu a Geddes conceber a “visão sinóptica”, síntese do conhecimento
geral e empírico sobre o homem e o meio em que vive. Não por coincidência, esse
geógrafo escreveu um breve ensaio intitulado “The Evolution of Cities”, em 1895, no qual
já trazia suas impressões sobre o crescimento tentacular das cidades sobre os países
europeus. Como cidade ideal, cogitou a possibilidade de concentrar a propriedade
comunal, as instituições educacionais e culturais no centro histórico urbano, expandindo-
se contínua e hierarquicamente por meio de nós culturais menores no território. Desse
modo, o campo passaria a ter vida social e cultural tão elevadas quanto os centros
urbanos (WELTER, 2002).
Na geografia, o estudo de Vidal de La Blache ampliou o interesse de Geddes pela região
e pela relação entre as condições naturais e o desenvolvimento social. Para Hall (1994,
p.166), ambos construíram uma concepção de região como “base da reconstrução total
da vida social e política”. Através do estudo da região se alcançava “o conhecimento de
um ambiente ativo e vivenciado” e neste ponto está a mais significativa contribuição.

• 6
A noção de região em Geddes relaciona os aspectos naturais, físicos, socioculturais,
econômicos e espirituais. Uma região corresponde a uma unidade desses aspectos. Ela é
identificada e mutável, semelhante ao “organismo vivo” que não se limita ao aglomerado
urbano. A região, quando identificada, deveria ter suas características fortalecidas, o que
as permitiria crescer em equilíbrio.

Figura 2: Seção do Vale (1909). Fonte: Welter,2002, p.60.

No diagrama “Seção do Vale”, desenvolvido pela primeira vez em 1909, Geddes sintetiza
os aportes teóricos desenvolvidos, utilizando o apelo visual para atingir o maior público
possível. Conforme disposto na Figura 2, a seção transversal das montanhas até o rio
relaciona condições físicas, atividades humanas e tipos de assentamento. Representa
uma visão territorial unindo cidade e campo, ao invés de contrapô-los, podendo também
ser lido como uma visão evolucionista.
Segundo Welter(2002), a “Seção do Vale” foi inspirada num levantamento botânico
desenvolvido pelo amigo de Geddes, Charles Flavan, em Montpellier. Nele, foram
mapeadas as distribuições de espécies de plantas, concluindo que as mais adaptadas às
condições naturais do ambiente eram dominantes, além de se associarem entre si em
hierarquia. Transpondo para a análise da região, Geddes apresentou no diagrama um
sistema de assentamentos com características próprias, que se influenciam de modo
hierárquico entre si e, quando adaptados ao meio, têm o desenvolvimento potencializado.

O regionalismo não vai contra a vida. O potencial de uma região, longe de ser diminuído
pelo aumento da cultura e das artes técnicas é, ao contrário, enaltecido. Recursos
potenciais entram em ação.[...] Quanto mais o homem cultivar os valores naturais do solo
e do subsolo, mais ele incorporará suas criações, mais ele multiplicará as diferenças entre
as regiões, tornando-as mais sutis (BARDET, 1990, p.82).

Aparentemente simples, esse diagrama reuniu diversas e complexas referências de


Geddes, que mais tarde também foram apropriadas por Bardet, para formular a
concepção de região nas alternativas aos centros urbanos adensados. Décadas depois,
estes preceitos foram fundamentais para que o urbanista formulasse a ideia do
“urbanismo rural” e de “vilarejos centrais”.
Se fosse necessário definir com uma frase de Patrick Geddes toda sua técnica de pesquisa,
sem dúvida seria: “Aprendemos com a vida”. É por isso que seu urbanismo é tantas vezes
definido como experimental, não no sentido de que propõe experimentos, mas que se

• 7
fundamenta na experiência. Para ele, o urbanista deveria viver a cidade que almejaria
conhecer, já que cada cidade tinha vida única:

Daí decorre uma nova exigência para quem estuda as cidades, a de partilhar o ambiente e
as condições de vida do povo e, quanto possível, também o seu trabalho; é compartilhar
com suas dificuldades e seus prazeres, e não apenas com os de gente das classes cultas
ou governantes (GEDDES In GAUDIN, 2014, p.281)

Com o intuito de conduzir a experiência do pesquisador na “vida“ da cidade e da região,


Geddes formulou as Surveys (Quadro 1). Aparentemente, um roteiro para o levantamento
de aspectos a serem observados/vivenciados antes da elaboração de qualquer plano ou
intervenção urbanística. Mais que isso, pode-se afirmar que foi a tentativa de Geddes
atingir o duplo conhecimento do “organismo urbano”: pela inteligência e pela intuição.

SITUAÇÃO, TOPOGRAFIA E VANTAGENS NATURAIS


Geologia, clima, fornecimento de água, etc.
Solos, vegetação, vida animal, etc.
Pesca fluvial e marítima
Acesso à natureza (costa marítima, etc.)
MEIOS DE COMUNICAÇÃO, TERRA E ÁGUA
Natural e histórico
Estado atual
Desenvolvimentos previstos
INDÚSTRIAS, MANUFATURA E COMÉRCIO
Indústrias nacionais
Manufaturas
Comércio etc.
Desenvolvimentos previstos
POPULAÇÃO
Movimento
Profissões
Saúde
Densidade
Distribuição do bem-estar (condições familiares, etc.)
Educação e atividades culturais
Requisitos previstos
CONDIÇÕES URBANAS
Históricas: fase por fase, desde as origens. Remanescentes importantes e
associações, etc.
Recentes: em especial, desde o levantamento 1932, indicando áreas, linhas de
crescimento e expansão e mudanças locais, sob condições modernas, por exemplo,
de ruas espaços abertos amenidades, etc.
Áreas do governo local (municipal, paroquial, etc.)
Atuais: planos urbanos existentes, em geral e em detalhe:
- Ruas e avenidas
- Espaços abertos, parques, etc.
-Comunicações internas, etc.
- Água, drenagem, iluminação, eletricidade, etc.
-Habitação e saneamento (de localidades, em detalhe)
- Atividades existentes visando a melhoria urbana, municipal e particular

• 8
PLANEJAMENTO URBANO [PLANOS URBANÍSTICOS] – SUGESTÕES DE PLANOS
Exemplos de outras cidades e capitais britânicas e estrangeiras
Contribuições e sugestões para o esquema de planejamento urbano, em relação
a:
- Áreas
- Possibilidades de expansão urbana (subúrbios, etc.)
- Possibilidades de melhoria urbana e desenvolvimento
- Sugestões detalhadas de atendimento das cidades (alternativas possíveis)
Quadro 1 : Esboço geral dos tópicos da Regional Survey.
Fonte: Adaptado de GEDDES, 1994. 166-167.

O Quadro 1 mostra uma sugestão de Geddes para dar início ao levantamento urbano.
Cabe advertir que não era um roteiro absoluto. Segundo o botânico, o quadro surgiria
“naturalmente” em cada cidade/região, assim como possíveis complementos. São
notáveis as ressonâncias das mais diversas concepções presentes em sua formação: a
classificação, hierarquização e categorização presentes nas ciências biológicas estão
associadas às observações sociais; a visão sinóptica busca por todos os pontos de vista
possíveis captar o urbano; o conhecimento do meio natural está vinculado aos aspectos
urbanísticos. De igual modo, amarradas ao estudo do passado (fases históricas) estão as
sugestões para as projeções futuras.
Além de compreender, as técnicas de pesquisas desenvolvidas por Geddes demonstram
forte preocupação de traduzir a vida da região. Isso pode ser observado no apelo visual
e na constante criação de sínteses gráficas, esquemas e mapas, apoiando suas
formulações teóricas.5 Essa técnica também foi adotada por Bardet e tal marca no seu
pensamento urbanístico reforça a filiação às ideias do botânico.
Geddes apostou na divulgação dos estudos como estratégia para formar uma cultura
urbanística. Os desenhos e esquemas gerais, juntamente com cartografias históricas,
fotografias panorâmicas e outros artefatos, apresentavam o enfoque transdisciplinar das
inúmeras exposições mobilizadas pelo botânico.6 Ao seu ver, as exposições deveriam
exercer o papel de “museu-orientador”, dispondo sobre as origens do lugar, os principais
componentes da comunidade e também divulgando sugestões para aprimorar as
atividades econômicas predominantes exercidas a serviço do planejamento urbano
(GEDDES, 1994, p.199).
A Outlook Tower (Figura 3), construída em 1892, permanece até hoje em pé como
representação dos esforços de Geddes por uma pedagogia urbana. Inspirado no Globo
Terrestre de Elisée Reclus, ele construiu a torre no centro de Edimburgo para abrigar uma
mostra permanente sobre a evolução da cidade. O material exposto tornava-se completo

5
Sobre o pensamento visual em Geddes, cf: GARRIDO (2017)
6
Edimburgo (1910), Londres, Belfast e Dublin (1911), Ghent (1913), Madras (1915), até perder todo seu
material num naufrágio a caminho da Índia (1915).

• 9
com a vista panorâmica da torre, que permitia vivenciar diariamente cada transformação.
Assim, o público é levado a constatar empiricamente toda teoria supracitada.

Figura 3: Esquema da Outlook Tower.


Fonte: GARRIDO, 2017, p.263.

Sem dúvidas, Geddes foi uma forte referência para o pensamento urbanístico de Gaston
Bardet. Entretanto, nunca constou na bibliografia de suas obras, ao ponto de dificultar a
identificação específica da produção do botânico que foi lida por ele. As primeiras menções
a Geddes estão em “Problémes d’Urbanisme”, porém, aparecem ao longo do texto e
relacionadas aos nomes de Lewis Mumford e Patrick Abercrombie. O mesmo acontece em
outros livros, até mesmo em “Le Nouvel Urbanisme”(BARDET, 1948), que apresenta um
capítulo dedicado às pesquisas de Geddes.
Em entrevista, Bardet (In COHEN, 1978) afirmou ter descoberto os livros de Geddes em
Montpellier, mas não especificou quais tampouco quando. Ainda assim, é possível afirmar
que ele tinha conhecimento das surveys desde seus primeiros artigos, tanto por
intermédio da leitura de Agache e dos urbanistas da Société Française d’Urbanistes,
quanto pela leitura de Raymond Unwin.

• 10
O professor Geddes publicou sobre o tema, alguns ensaios úteis e frutíferos, e embora
nunca seja fácil de dar às enquetes o entendimento que ele preconiza, elas são
indispensáveis para que haja continuidade entre a vida anterior e as necessidades atuais
e futuras das cidades que devem ser traduzidas no plano de desenvolvimento e extensão;
sua importância é indubitável (BARDET, In COHEN, 1978, tradução nossa).
Não há registros de interlocuções entre Poëte e Geddes, entretanto, o conhecimento da
produção mútua é evidente, até mesmo pelos ambientes intelectuais em comum. Os
croquis de estudo encontrados na biblioteca que Bardet herdou do sogro são reveladores
e datam de 1918 (Figura 4). É importante também destacar a existência de muitos livros
de Patrick Abercrombie, com dedicatórias « ao amigo Poëte ».

Figura 4: Croquis da Seção do Vale e Notação da vida, encontrados na biblioteca de Bardet.


Fonte: Fond Bardet, cx.22

Embora Bardet nunca tenha especificado o que leu exatamente de Geddes, minha leitura
de “Cidades em Evolução” trouxe à tona inúmeras convergências. Além de partilhar
aportes teóricos (Bergson, De La Blache, Réclus, Kropótkin), o urbanista adotou uma
abordagem regional contra o excesso de abstração, imposição de modelos e objetificação
do urbano. Assim, como o botânico, enxergava no equilíbrio cidade-campo uma
possibilidade do desenvolvimento social e humano.
Nota-se que a visão de Geddes sobre a cidade de seu tempo é muito próxima daquela
apresentada por Bardet, nos escritos a partir de 1945, inclusive com a utilização das
mesmas expressões – “cidade tentacular”, “crescimento urbano em mancha de óleo”,
“megalópoles”, etc. Talvez, a crítica incisiva do francês ao crescimento desordenado das

• 11
cidades e às consequências do maquinismo tenha sido mais pessimista, até porque a
vivência da 2ª Guerra Mundial e suas consequências assim o impuseram.
Bardet acreditava no aprendizado aplicado, pela experiência e apreensão do mundo
empírico. Neste sentido, as surveys foram fundamentais para a formulação da topografia
social e dos princípios de enquete e análise urbana. Nos próximos itens, veremos que
Bardet parte das preocupações de Geddes para dar um passo além: identificar os
problemas e aprimorar os princípios metodológicos, conduzindo os urbanistas na
elaboração de análises urbanas complexas e, consequentemente, intervenções bem-
sucedidas.

DA TEORIA À APLICAÇÃO: PRINCÍPIOS PARA ENQUETES E ANÁLISES


URBANAS DE GASTON BARDET
Por muitos motivos, “ Principes inédits d'enquêtes et d'analyses urbaines ”(1943) é uma
obra particular no conjunto de Gaston Bardet. O primeiro deles é o caráter de “manual
prático”, quase um guia ilustrado. Sem grandes discussões teóricas, o autor introduz a
noção de urbanismo com ciência-arte-filosofia e anuncia que o objetivo do livro é se
debruçar sobre as técnicas de pesquisa, isto é, os instrumentos de aplicação da teoria
trabalhada no livro anterior « Problèmes d’Urbanisme » (1941).
Nitidamente incomodado com a falta de precisão dos planos urbanísticos – após 20 anos
de aprovação da Lei Cornudet7 – cujos resultados iam da tábula rasa às cirurgias
conservadoras, Bardet fez um convite à produção de levantamentos que embasassem e
constituíssem um escopo documental das cidades. A seu ver, seguindo um roteiro de
investigações completo, complexo e coerente, seria mais difícil compor planos
urbanísticos desconexos com a realidade.

Se insistirmos no valor da enquete, é porque ela domina todo o problema. Uma vez que o
urbanista determinou locais adequados para seus conjuntos monumentais, ele pode, como
arquiteto consultor, mostrar seu talento como compositor e procurar expressar, em volume,
a condição social da população que analisou anteriormente. [...] Por isso, todos os talentos
técnicos que o arquiteto ou o engenheiro poderão empregar não servirão nada se o
diagnóstico não estiver correto, se negligenciar o plano de topografia social, por exemplo
(BARDET, 1943, p.77).

Na condição de Secretário-geral da Société Française d’Urbanistes, Bardet iniciou seu livro


delimitando a formação necessária para ser um profissional regulamentado naquele

7
A Lei Cornudet foi aprovada em 19 de março de 1919 e revisada em 12 de julho 1924, estipulava a
obrigatoriedade planos urbanísticos em cidades : (I) População acima de 10.000 habitantes; (II) Inseridas
no Departamento do Sena; (III) População entre 5.000 e 10.000, com crescimento igual ou superior à 10%
no intervalo entre dois recenseamentos consecutivos; (IV) Dotadas de interesse turístico sazonal –
balneárias, marítimas, termais, esportivas e outros casos que impliquem no aumento de 50% da população
em períodos do ano; (V) Dotadas de características pitorescas, artísticas, históricas ou arqueológicas; (VI)
Grupos de habitação e loteamentos criados por associações particulares; (VII) Atingidas por guerras ou
desastres naturais. Disponível em: http://www.urbaniste.com/. Acesso em 24 jul. 2019.

• 12
momento: um diploma de arquiteto (estudos gerais), um diploma do IUUP (semelhante
à especialização), além do registro na l’Ordre des Architects (BARDET, 1943, p.242). No
entanto, considerava pouco producente que tais urbanistas contassem apenas com
regulamentações como a Lei Cornudet e instruções ministeriais para definir o plano
urbanístico, sem diretrizes sobre os levantamentos, análises e pesquisas.
Tais fatores somaram-se à urgente demanda por profissionais preparados para o desafio
de reconstruir as cidades quando a 2ª Guerra Mundial chegasse ao fim. Nesse contexto,
Bardet propôs um manual prático para guiar as pesquisas urbanísticas, com o ambicioso
objetivo de dotar os estudos e levantamentos de linguagem mais universal. O grande
trunfo da obra é reunir a capacidade de criar sínteses visuais às ferramentas da estatística
e aos métodos de investigação das ciências sociais.
O segundo motivo que torna “Principes Inédits [...]” um livro peculiar está na percepção
totalizadora do urbano, ou visão sinóptica, para utilizar o conceito de Geddes. Os
problemas do urbanismo, esmiuçados em categorias distintas no livro anterior, são
trabalhados aqui de modo indissociável. Bardet propôs substituir a noção de “plano de
ordenamento e extensão” (plan d’aménagement et d’extension) por “estudo de
aglomeração e do território comunal” (étude d’agglomération et du territoire comunal).
Mais do que uma revisão terminológica, isso significou um deslocamento conceitual.
Evitar o conceito de “extensão” significava combater o espraiamento indiscriminado da
mancha urbana no território e priorizar a descentralização em núcleos consolidados e
hierarquizados, segundo a noção de região. Adotar o conceito de “estudo” marcou a
restrição de Bardet à concepção de “plano” como uma “intervenção” ou “projeto” fixo e
estável, ao invés de orgânico, mutável. Dessa forma, a base do urbanista seria dar
continuidade à “evolução urbana”, empregando técnicas modernas sem destruir os
“verdadeiros valores” de cada localidade (BARDET, 1943h, p.73).
Nesse livro-manual, Bardet estava exclusivamente focado em responder inquietações que
davam um passo à diante daquelas levantadas por Geddes: Se era preciso conhecer a
vida de uma aglomeração urbana, como alcançar tal conhecimento? Quais seriam as
etapas? Que aspectos, dados e informações a pesquisar e analisar? Como traduzir e
representar as características sociais e a natureza mutável das aglomerações?
Diante de tais questões, os princípios de enquete e análise urbana foram enunciados por
Bardet (1943) como inéditos, por incorporar ferramentas da estatística. Como membro
da Société de Statistique de Paris, ele acreditava que a disciplina forneceria aos estudos
urbanos resultados mais fiáveis, especialmente nas pesquisas sociais. Por outro lado, ao
apresentar o trabalho numa conferência naquela sociedade profissional em 1944, ele se
dispôs a contribuir, com seu estudo, para a “valorização” dos resultados estatísticos por
meio das sínteses visuais (BARDET, 1944).
Obstinado a demonstrar que a noção de “alma da cidade” – cunhada por Marcel Poëte –
não era uma simples “linguagem poética”, Bardet (1943,p.97) defendeu o uso da
estatística para a identificação de padrões característicos e anomalias nas pesquisas de
cada local. Para ele, as análises urbanas teriam por finalidade maior a comparação,
portanto, a precisão da unidade estatística seria fundamental para embasar qualquer juízo

• 13
de valor. Assim como Geddes, ele se esforçou para distanciar o urbanismo do campo
abstrato, baseando-se em dados e fatos, representações da realidade observada. No
entanto, Bardet cai num certo paradoxo, ao escolher fugir da abstração traduzindo uma
noção metafísica como a “alma da cidade” por meios tão positivistas como gráficos e
números.
Não sendo o propósito do livro discutir teoria, Bardet se restringiu a recomendar uma
“bibliografia básica” na introdução. Entre os autores indicados (à exceção dele mesmo),
o conhecimento básico sobre o urbanismo compreendia: a geografia humana francesa -
Jean Bruhnes, Pierre Deffontaines; a história e características regionais do país – Marc
Bloch, Roger Dion, Gaston Roupnel; a evolução das cidades – Marcel Poëte, Pierre
Lavedan; a prática do urbanismo – Alfred Agache, Jacques Gréber, Raymond Unwin.
A falta de Le Play e Geddes é notável, visto que a filiação aos dois é facilmente identificável
no objetivo do livro. Logo na primeira página, Bardet apresenta um roteiro no mínimo
familiar aos que já conheciam a obra do escocês (ver Quadro 2). Ao desenvolver o
argumento, outros pontos em comum se revelam, além do engajamento em dar diretrizes
para o urbanismo aplicado. Assim como seus mestres, o autor se mostrou bastante
preocupado com as formas de representação, a fim de divulgar o resultado das enquetes
de modo mais amplo possível, criando uma lista de cartografias obrigatórias em escalas
pré-definidas.

I - O QUADRO GEOGRÁFICO
Posição de aglomeração da região
Comunicação geral exterior
Deslocamento da população
Movimento de mercadoria
II- O SITIO
Topografia
Geologia
Geologia agrícola
Hidrologia
Climatologia
Humanização do sítio
III- OS HOMENS
Densidade da população em relação ao território comunal
Acréscimos sucessivos da população depois da origem
Análises quantitativas da população
Modos e costumes especiais dos habitantes
Acréscimos sucessivos da população depois da origem
IV- EVOLUÇÃO DOS AGLOMERADOS
Nascimento dos aglomerados
Desenvolvimento do principal núcleo aglomerado
Esquemas de evolução
Psicologia diretora: desejos e anseios
V- ZONEAMENTO DE FUNÇÕES
Bases do zoneamento
Zoneamento de fato
Zoneamento ativo

• 14
VI - EDUCAÇÃO E LAZER
Educação moral
Educação do espírito
Educação escolar e pós-escolar
Lazer
Festas
VII - ESTÉTICA E VOLUMES SOCIAIS
Estética e fisionomia local
Edifícios públicos e edifícios semi-públicos
Edifícios privados
Regulamentos de higiene e de pavimentação
Programa de organização
VIII - ATIVIDADE ECONOMICO-SOCIAL
Riqueza do lugar ou do quadro
Movimento geral de economia local
Atividade social
Situação financeira da cidade
Futuro financeiro da cidade
IX- SAÚDE E HIGIENE
Saúde da aglomeração
Saúde dos habitantes
Plano sanitário
Espaços livres
As ‘utilidades’ urbanas
Regulamentos de higiene e controle
X– VIAS E TRANSPORTES
Comunicações interiores
Fluxo das pistas
Estado das vias
Transportes
Quadro 2: Roteiro de Enquete Urbana.
Fonte: A autora (2019), adaptado de BARDET, 1943, p. 71-72.

Ao comparar o roteiro da Regional Survey (Quadro 1) com o da Enquete Urbana (Quadro


2), a filiação de Bardet a Geddes fica ainda mais evidente, mas não é a única. O urbanista
incorporou outras referências teóricas e fez modificações relacionadas aos problemas de
urbanismo minuciosamente explicados no livro anterior. Nos itens I, II, III e VIII estão
dispostos aspectos que permitem construir a compreensão do homem relacionado ao
meio, tal qual proposto no “Diagrama do Vale” e bastante difundido na geografia francesa
por La Blache.
Do mesmo modo, estão presentes: o estudo da “evolução criadora”, seguindo os
ensinamentos de Poëte (Quadro 2, item III); o “zoneamento” posto em voga pelas
discussões dos CIAM’s (item V); os preceitos higienistas ainda presentes nas discussões
da SFU e do IUUP (item IX); além da dimensão estética tomando os conceitos de Sitte e
Unwin (item VII).
Sobre educação e lazer (item VI), os pontos que concernem à educação moral e de
espírito merecem ser sublinhados. Primeiramente, quando se referiu à “educação moral”,
Bardet considerou atividades religiosas da aglomeração estudada, tomando o cristianismo
como parâmetro. Isso foi uma permanência ao longo das análises desenvolvidas por ele

• 15
– a orientação prioritária de levantar: o número de templos, batismos, primeiras
comunhões, casamentos e enterros religiosos comparados aos civis; o número de
vocações sacerdotais; festas e manifestações da vida religiosa; outros cultos não
católicos; manifestações ateístas. Já a “educação de espírito” estava relacionada ao
acesso da população à cultura: bibliotecas, museus, exposições, publicação de jornais e
revistas, sociedades científicas e artísticas locais – outra preocupação permanente do
autor (BARDET, 1943, p.83).
Segundo Bardet (1943), o estudo das aglomerações urbanas poderia ser dividido em três
etapas, que poderiam se sobrepor: 1) “enquete bibliográfica”, com fontes documentais,
bibliográficas e estatísticas; 2) “enquete pessoal”, numa abordagem corpo-a-corpo,
sobretudo em busca de “autoridades sociais” – conceito tomado de Le Play; 3) “enquete
monográfica”, para descrição de cada zona, grupo ou peculiaridade local.
Para desenvolver as enquetes urbanas, Bardet (1943) realizou um cruzamento de
instruções advindas de diferentes campos e, entre as fontes utilizadas, destacou: “Theorie
et Pratique des Enquêtes” (Pierre Marrousem); “Questionaire d’enquête” (Direction
d’Éxtension de Paris); “La vie d’un village” (BOUCHET, FAUVEL,s/d). Esse último, ainda
preservado na biblioteca dele, guarda muitas semelhanças com as enquetes urbanas, pois
trata-se de um questionário explicado para guiar as observações do pesquisador.
O estudo sugerido por Bardet (1943) é exaustivo. Passo a passo, ponto a ponto é
explicado sumariamente, a cada tópico há indicações de onde buscar informações, como
analisar e como representar. Ele demonstrou-se enfronhado nos arquivos em geral, do
Serviço Nacional de Estatística e nos recenseamentos. Ao apresentar a análise
comparativa dos métodos dos recenseamentos realizados na França entre 1794 e 1936,
facilitou a interpretação de seus resultados: uma contribuição imensa aos futuros
investigadores.
Para compreender a “evolução dos aglomerados”, Bardet – assim como Geddes –
recomendou ir além da consulta aos arquivos, consultar os eruditos e fontes diversificadas
da história política, econômica e artística. Para construir as representações e cartografias,
demonstrou grande preocupação em representar não só o estado atual como a
dinamicidade, a exemplo dos esquemas gráficos construídos por ele para ilustrar o livro
« Paris, son évolution créatice » (POËTE,1937).

• 16
Figura 5 : Esquema estático da evolução de Ajaccio. Fonte: BARDET, 1943, p.149.

A Figura 5, acima, exemplifica um esquema de evolução estático da comuna de Ajaccio,


onde cada hachura representa uma camada histórica acrescentada entre os séculos XVI
e XX, contendo os focos atrativos (cidadela) e repulsivos (campo romano), assim como
os canais de fluxo (costa marítima, ferrovias e grandes avenidas).
A Figura 6, abaixo, representa a « evolução dinâmica de Louviers », definida pelo autor
como “fogos de artifício da vida urbana, cujos elementos se associam e se dissociam
segundo a evolução e multiplicação das funções.” Isoladamente, essa representação pode
fazer pouco sentido, entretanto, acompanhada da enquete monográfica, torna-se uma
ferramenta de síntese.

Figura 5 : Esquema dinâmicos da evolução de Louviers. Fonte : BARDET, 1943b, p.154.

• 17
Conhecer os movimentos da transformação urbana fazia parte de uma primeira
aproximação com o lugar, seguido da pesquisa sobre as características gerais: espaços
livres, ruas características, mirantes, ângulos das ruas, perspectivas, etc. Para tal, Bardet
recomendou, além da experiência em si, uma consulta à Comission Départamentale des
Sites et Monuments Naturels, para que então fosse confeccionado o “Plano de
Caracterização do Sítio”.
Para compreensão da estrutura ativa dos aglomerados, Bardet desenvolveu a Topografia
Social (TS), ferramenta pela qual militou durante anos, aprimorando-a como meio mais
eficaz de captar as dinâmicas econômicas e sociais no espaço. Para construir uma Carta
de TS, o pesquisador deveria considerar as atividades agrícolas, comerciais, industriais,
artesanais, os tipos de habitação e a “vida familliar” (jornada, condição social, hábitos,
atividades intelectuais e espirituais).
A princípio, a TS deveria ser representada numa carta colorida e em escala que permitisse
abarcar o território estudado lote a lote.8 A ferramenta poderia ser aplicada em porções
territoriais diversas – de uma quadra à cidade inteira – e originar outros gráficos , como
as pirâmides etárias e os complexos “perfis psicológicos”. Bardet, a comparava a um
microscópio, que permitiria enxergar em detalhes as formas e movimentos da vida
urbana.

Vinte planos de análise concebidos como os pontos anteriores não podem substituir o mapa
sintético da topografia social, nem do ponto de vista prático, nem pela riqueza das
descobertas que o urbanista fará, explorando esta maravilhosa mescla dos modos de vida
que os tecidos urbanos ainda não degenerados oferecem em tecidos intersticiais
simples[...] É a única pintura real e completa da cidade, a única que convém aos urbanistas
praticantes (BARDET, 1943, p.111, tradução nossa).

Ao apresentar a TS na sociedade de estatística, Bardet afirmou que, após elaborar os


esquemas para Poëte, buscou sem sucesso, durante dois anos, uma forma de representar
a “fisionomia urbana resultante de uma coletividade viva”. Até que, ao finalizar a escrita
de “Problèmes d’Urbanisme”, conseguiu formular os “Perfis psicológicos” – esquemas que
dispunham a cada ponto do eixo as atividades urbanas, também denominadas “tipo de
vida” (Figura 7).

8
Este não era um recurso acessível para as publicações da época, por isso, toda a cartografia de TS neste
livro está em preto e branco.

• 18
Figura 7: Esquema base de um perfil psicológico. Fonte: Bardet, 1943h, p.152.

Tais perfis permitiram que o urbanista pudesse comparar a cidade na “duração”, mas não
no espaço, por isso Bardet teve a ideia de marcar a localização de cada “tipo de vida”
levantado no mapa. Na primeira tentativa, o resultado foi um mapa pontilhado que
indicava a concentração populacional, mas ainda não atingia o objetivo do urbanista, que
continuou buscando aprimorar a representação.
Os “Perfis psicológicos” foram gráficos desenvolvidos para acompanhar periodicamente
(a cada recenseamento, por exemplo) as variações socioeconômicas de uma
aglomeração. Para construção dos perfis, o urbanista apresentou 14 categorias de
atividades (ver Figura 7). À esquerda estão as profissões “elementares” (pesca,
agricultura, lenhador), pouco a pouco substituídas por “intervenções maquinistas”
(transporte, indústrias, construção). A definição dessas categorias foi realizada com base
em documentos estatísticos e continuou sendo aprimorada nos estudos seguintes. Em
1944, Bardet acrescentou as categorias de arrendatários e desempregados/indigentes.
Os perfis psicológicos (ou sociológicos) 9 eram, segundo Bardet, uma forma de conhecer
a população em aspectos qualitativos e quantitativos, pois através deles seria possível
mapear a distribuição da população ativa. Portanto, depois de identificadas as tendências
gerais e históricas, seria possível conhecer as “variações residuais”, isto é, as dinâmicas
passíveis de serem modificadas no território.
Na Figura 8, ele apresenta a comparação de duas comunas: Saint-Brice (à esquerda)
mostra os trabalhadores ativos na cidade (preto) e fora dela (cinza); Groslay (à direita)
destaca o número de patronato (branco) e salariado (preto).

9
Segundo o registro do debate, após a apresentação na Société d’Estatistique o termo “perfil psicológico”
foi bastante questionado pela inadequação, sugerindo-se “perfil sociológico”. A sugestão foi acatada por
Bardet, que adotou a nomenclatura nas publicações posteriores.

• 19
Figura 8 : Comparação de perfis sociológicos. Fonte: Bardet, 1944d, p.253.

Antes de explicar a TS, é importante sublinhar que os “Cartogramas de TS” apresentados


por Bardet nos artigos e livros são, na verdade, sínteses de um longo processo de
pesquisa e vivência, o que dificulta nossa interpretação sobre o resultado. Outro ponto
que deve ser observado é a qualidade da reprodução, pois esses mapas precisam ser
coloridos e ter escala legível para total assimilação, o que não aconteceu na maior parte
dos livros do autor.
Ao iniciar a elaboração do cartograma, o urbanista deveria estar munido dos
recenseamentos, do mapa da aglomeração analisada e das observações levantadas
durante a enquete. As etapas a seguir seriam representadas em folhas transparentes e
sobrepostas, até alcançar o Cartograma Síntese da TS (Figuras 9 e 10):
I) Mapa base (fond de plan topografique): representar o sítio natural e parcelamento do
solo. Nesse mesmo mapa, o urbanista deveria destacar os edifícios e espaços públicos;
os edifícios e espaços semipúblicos; as vias comerciais;
II) Primeiro decalque: pontuar no local de habitação cada habitante (ou família, a
depender da população da área estudada), com auxílio do recenseamento. Sugere-se a
utilização de 20 símbolos para representar os “tipos de vida” e 4 cores para indicar o uso
do lote (residencial/verde, comercial/vermelho, agrícola/amarelo e produção artesanal ou
industrial/ azul). Crianças e pessoas não ativas, seriam representadas por pequenos
pontos em preto ;
III) Segundo decalque: repetir a etapa anterior, marcando esses mesmos habitantes no
local de trabalho, possibilitando visualizar a “multiplicidade essencial da vida urbana”
(BARDET, 1944d, p.256-257).

• 20
Figura 6 : TS da comuna de Aumalle (cartograma síntese). Fonte : Fond Bardet, cx. 09.

Figura 10: TS de uma cidade com 10.000 hab (cartograma síntese). Fonte: Bardet In FREY, 2001, p.32-33.

• 21
Uma vez configurada a TS e demais investigações listadas, o urbanista estaria pronto
para definir o zoneamento dividido em duas partes. O “zoneamento de fato”
corresponderia ao aglomerado existente, incorporando os diversos aspectos levantados,
tanto físicos quanto econômicos e sociais. Já o “zoneamento ativo” estabeleceria a cidade
desejável, definindo os perímetros de proteção (natural, social ou histórica), prevendo
um sistema de espaços livres e áreas de transição entre os perímetros de construção e
diversos graus de adensamento (que mais tarde se tornariam escalões).
Esses princípios são fundamentais para compreender que o pensamento urbanístico de
Gaston Bardet não rechaçava a ferramenta do zoneamento, mas a compreendia como
um procedimento completamente distinto do que foi propalado pela Carta de Atenas de
1931. Embasado nas observações sociais, estatísticas e geográficas, o zoneamento se
distanciava da abstração e, seguindo um modus operandi, deixava de ficar à mercê de
subjetividades, posições ideológicas e interesses imobiliários. O urbanista que se
dispunha a se embasar nas enquetes e topografia social, e com isso ampliava,
indiscutivelmente, seu conhecimento e propriedade sobra a vida urbana.

O novo urbanismo que nosso século deve elaborar será experimental ou não será. Nenhuma
ciência é possível sem um documento mensurável e comparável. Nenhuma ciência é
possível se não representarmos social e geograficamente os indivíduos que compõem as
cidades (BARDET, 1943h, p.152, tradução nossa).

A leitura de “Principes Inédits d'Enquêtes et d'Analyses Urbaines”, nos permite concluir


que, na contínua busca de referências para consolidar o conhecimento sobre o urbanismo,
Bardet ampliou o leque de saberes que lhe serviram de aporte. O estudo da Geografia lhe
possibilitou ter uma compreensão mais complexa sobre o território, assim como a
Estatística representou uma possibilidade de registrar e universalizar a dimensão social e
a “evolução urbana”. Foi a observação dos casos estudados, dos planos realizados, dos
temas trabalhados no IUUP, das questões enfrentadas na SFU que tornou possível
classificar e teorizar os problemas do urbanismo. Ao mesmo tempo, a teoria da “evolução
das cidades”, a dimensão social e a noção de “região” o motivaram a desenvolver métodos
de registar, sintetizar e comparar as pesquisas urbanas.
É na busca por leis naturais da evolução das cidades que o pensamento urbanístico de
Patrick Geddes e Gaston Bardet se econcontram, deixando evidente a marca da filiação.
Para formular uma abordagem teórico-metodológica, ambos partem da experiência para
configurar um pensamento urbanístico num duplo e intricado processo de análise/síntese,
aplicação/teoria, parcial/total, inteligência/intuição. A busca por um roteiro de
investigação representava a inquiteação de ambos de tirar o urbanismo da subjetividade,
do gosto, da abstração, do formalismo e do funcionalismo.
O campo de práticas ainda recente, precisava dar conta de captar e conduzir a « evolução
urbana » para que as intervenções pudessem respeitar a pré-existência ao passo que
adequavam-se às demandas dos tempos presentes e futuros. Ao mesmo tempo, soluções
pragmáticas amplamente difundidas na Carta de Atenas de 1931, não pareciam se
aprofundar na dimensão social, visto por ambos teóricos como a base de todo e qualquer

• 22
decisão. Ora um conjunto de disciplinas, ora uma ciência, ora uma doutrina, o urbanismo
pode ter tido vários significados para Geddes e Bardet, mas somente uma finalidade
maior, claramente posta em nas palavras deste último: “É necessário, antes de tudo,
embasar o urbanismo sobre a essência do homem”.

• 23
REFERÊNCIAS
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• 24
COIMBRA BUENO E CIA. LTDA.:
Nebulosas de um acervo em construção
COIMBRA BUENO & CIA. LTD.:
Nebulae from a collection under construction
COIMBRA BUENO Y CIA. LIMITADO:
Nebulosas de uma colección em construcción
Memória, Representações e Arquivos

PESCATORI, Carolina
Professora Doutora; FAU-UnB
pescatori@unb.br
TREVISAN, Ricardo
Professor Doutor; FAU-UnB
prof.trevisan@gmail.com
RESUMO
A empresa urbanizadora Coimbra Bueno e Cia. Ltda, fundada pelos irmãos
engenheiros Jeronymo Coimbra Bueno e Abelardo Coimbra Bueno em 1934, é
majoritariamente conhecida no campo da história do urbanismo pela
construção de Goiânia. No entanto, sua atuação foi extremamente
diversificada, indo da produção agropecuária à empreitadas industriais, da
produção de habitação de interesse social à qualificação de uma “civilização
sertaneja”, de planos para inúmeras cidades brasileiras à criação da Fundação
Coimbra Bueno pela Nova Capital do Brasil. O artigo tem como objetivo
apresentar um mapeamento temático preliminar e questões relacionadas à
atuação da Coimbra Bueno e Cia. Ltda a partir das primeiras incursões para
organização e mapeamento do acervo físico da empresa. Estruturalmente, o
trabalho se ancora nas seguintes balizas: “Instrumentalização”, com aporte
teórico para manuseio do material histórico; “Aproximação”, com narrativa
sobre a ação operacional do acervo; e “Nebulosas: achados e promessas”, com
os temas identificados e definidos até o presente momento. Finaliza-se o artigo
com considerações acerca dos percursos futuros a serem trilhados pela
pesquisa.

PALAVRAS CHAVE Empresas urbanizadoras; Empreendedores; Acervos;


Goiânia; Brasília.

ABSTRACT
The urbanization company Coimbra Bueno e Cia. Ltd, founded by the
engineers and brothers Jeronymo Coimbra Bueno and Abelardo Coimbra
Bueno in 1934, is mostly known in the field of urban planning history for the
construction of Goiânia. However, its performance was extremely diversified,
ranging from agricultural production to industrial projects, from the
production of social housing to the qualification of a “sertanejo civilization”,
from plans for numerous Brazilian cities to the creation of the Coimbra Bueno
Foundation by Nova Capital do Brasil. The paper aims to present a
preliminary thematic mapping and issues related to the performance of
Coimbra Bueno e Cia. Ltda, developed during the first forays into the
organization and mapping of the company's archive. Structurally, the work is
anchored in the following guidelines: “Instrumentalization”, with theoretical
support for handling historical material; “Approximation”, with a narrative
about the operational action of the collection; and “Nebulas: findings and
promises”, with the themes identified and defined so far. The paper ends with
considerations about the future paths to be followed by the research.
KEY-WORDS Urbanization companies; entrepreneurs; archives; Goiania;
Brasilia.

 2
INTRODUÇÃO
Pensar por nebulosas, é assim, um convite a uma ideia instável e dialógica de saber que,
mesmo quando feita de configurações, conceitos, categorias e noções, entende-as como
esforços de uma teorização mais ou menos precisa, mas jamais neutra, e cuja estabilidade
e consenso são momentâneos. Esse saber – como nuvens –, antes de tudo, é movediço,
formado por inúmeras camadas diáfanas e vaporosas de outros saberes, inclusive os
rechaçados ou não considerados como tal. [...] Esse saber assume o seu caráter metafórico
e paradoxal: pensar a partir do que justamente é e permanece pouco claro, que menos
esclarece do que tenta fazê-lo. Ele é, assim, um desvio, um corte, uma disjunção em relação
tanto a uma visão setorial, positiva e progressiva de ciência, quanto à negatividade
atribuída ao que permanece como um índice misterioso e obscuro nas atividades de
pesquisa, mas nem por isso é destituído de presença e de contornos que são confrontados
não à prova, mas à argumentação e ao esforço de confrontação e compartilhamento.
(PEREIRA, 2018, p. 249-250)

“Coimbra Bueno e Cia. Ltda.: nebulosas de um acervo em construção” traz à baila as


primeiras descobertas sobre um acervo há muito afastado do conhecimento público.
Poder varrer com os olhos os documentos, fotos, mapas, planos, registros - todos
empoeirados pelo passar dos anos -, dissipa aquilo obliterado e desconhecido da maioria.
Esse processo revelou informações, dados, conexões, possibilidades provenientes de uma
incorporadora que não se ateve apenas à construção de Goiânia, nos anos 1930. Em mais
de sessenta anos de atuação, seu espólio é plural e diverso, da posse de fazendas às
empreitadas industriais, da produção de habitação de interesse social à qualificação de
uma “civilização sertaneja”, de planos para inúmeras cidades brasileiras à criação da
Fundação Coimbra Bueno pela Nova Capital do Brasil. Ao embrenhar-nos num percurso
inédito da historiografia brasileira, sabemos das dificuldades apresentadas num primeiro
instante. Mesmo que “pensar por nebulosas” seja pautado por incertezas e bases
movediças, ele favorece a experiência de criar os limites preliminares, de definir
parâmetros de análise, de reescrever a História a partir de novos olhares. Portanto,
explorar o incógnito a fim de gerar novos contornos sobre a história urbana do século XX,
a partir de personagens secundarizados pela historiografia, é o propósito deste artigo.

A dupla de irmãos engenheiros Jeronymo Coimbra Bueno (1909-1996, Figura 1) e


Abelardo Coimbra Bueno (1911-2003, Figura 2) formou a incorporadora Coimbra Bueno
e Cia. Ltda. (Figura 3) logo após a diplomação de ambos na Escola Politécnica do Rio de
Janeiro, em 1933. Sobrinhos do interventor Pedro Ludovico Teixeira (1891-1979) –
responsável pela mudança da capital de Goiás –, viram em Goiânia a oportunidade de
decolarem profissionalmente. Mais empreiteiros que projetistas, assumiram em 1934 a
direção-geral das obras de Goiânia (DINIZ, 2007), ficando a companhia responsável pela
edificação dos Correios, do Palácio do Estado, do Grande Hotel, da Secretaria-Geral e de
mais dez casas funcionais. No mesmo ano, o projeto da nova capital passa para os
cuidados da Coimbra Bueno, com os irmãos encarregados tanto da construção do núcleo
urbano original como também de novos bairros externos a ele. Descontente com os
propósitos especulativos e por divergências pessoais, o autor do projeto urbanístico Attilio
Corrêa Lima (1901-1943) retira-se do processo em 1935, abrindo espaço para o

 3
engenheiro Armando Augusto de Godoy (1876-1944) – indicação direta de Jeronymo
Coimbra Bueno – para revisão e continuidade do projeto.

Figuras 1 e 2 - Irmãos Jeronymo e Abelardo Coimbra Bueno. Fonte: Acervo Coimbra Bueno / FAU-
UnB.

Figura 3 - Logo da Coimbra Bueno e Cia. Ltda. – a construtora de Goiânia.


Fonte: Acervo Coimbra Bueno / FAU-UnB.

É sabido que Goiânia, nova capital de Goiás, foi o empreendimento de maior


reconhecimento público na história desta companhia. No entanto, a atuação desta
incorporadora foi mais ampla e diversificada, indo muito além de Goiânia. Administrada
pelos irmãos engenheiros, após a empreitada na capital goiana, a empresa participou,
segundo poucas informações disponibilizadas pela literatura especializada, da execução
de planos e projetos para outros assentamentos urbanos nos estados de São Paulo, Rio
de Janeiro, Goiás, Paraná, Bahia e Mato Grosso, identificando oportunidades, adquirindo
terrenos e viabilizando projetos de expansão urbana por novos loteamentos e de novas
cidades, em direta associação com políticas de Estado (federal e estadual).

 4
Os projetos desenvolvidos no escritório da Coimbra Bueno no Rio de Janeiro receberam
contribuições de vários profissionais, incluindo estrangeiros ilustres à época, como o
arquiteto francês Donat Alfred Agache (1875-1959) e o arquiteto greco-francês Georges
Candilis (1913-1995). Com eles, a companhia participou do planejamento urbano de
Campos dos Goytacazes (RJ), São João da Barra (RJ), Curitiba (PR) e do planejamento
regional costeiro entre Santos e Rio de Janeiro, onde, segundo Abelardo, tinham total
autonomia para condução dos planos e projetos.

Além da construção de Goiânia e do planejamento e execução de outros planos urbanos,


consta em suas biografias grandes ações de incentivo à transferência da capital federal
para o interior do país, sendo eles os maiores propagandistas de tal “sonho” nas décadas
de 1940 e 1950 (MANSO, 2001). Em 1939, criaram a “Fundação Coimbra Bueno Pela
Nova Capital do Brasil”, por meio da qual desenvolveram diversas atividades políticas e
de propaganda em prol da transferência. Contudo, estas informações foram extraídas de
fontes secundárias, sem maiores aprofundamentos ou detalhamento da veracidade dos
dados. O quebra-cabeça da Coimbra Bueno demandava um número maior de peças para
conformarmos melhor a figura a ser composta. E este cenário começa a ser alterado com
a aquisição do acervo particular em 2020 pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de Brasília (FAU-UnB).

A doação dos arquivos da empresa Coimbra Bueno, particularmente aqueles pertencentes


ao irmão Abelardo Coimbra Bueno e disponibilizados pela viúva Maria Marcina Pimentel
Coimbra Bueno e pelo filho Abelardo Coimbra Bueno Júnior, ocorreu em julho de 2020,
em plena Pandemia de COVID-19. Por este motivo, ficaram armazenados até que fossem
acessados com a segurança sanitária necessária. Em paralelo, deu-se início à formulação
de um projeto de pesquisa: “Acervo Coimbra Bueno e Brasília: documentação e
promoção”, contemplado com apoio financeiro da Fundação de Apoio à Pesquisa do
Distrito Federal (FAP-DF) em dezembro de 2021. O projeto, em andamento, volta-se à
organização do material recebido, sua triagem, catalogação e possível desenvolvimento
de um acervo virtual público e edição de livro de registro documental. Além disso, o
projeto em seu desenvolvimento corrobora para a formação de professores,
pesquisadores e estudantes no manejo, organização e desenvolvimento de abordagens
científicas de material documental proveniente de acervos particulares.

Nos primeiros seis meses de trabalho (fevereiro a agosto de 2022), o material obtido já
demonstra seu grande potencial para alimentar a construção de outras narrativas
históricas que envolvam a Coimbra Bueno a partir da elaboração de pesquisas de
graduação e pós-graduação embasadas nos valiosos documentos. Dentre as
possibilidades detectamos alguns temas já bem conhecidos, como a construção de
Goiânia, mas que pode receber novas abordagens e possibilidades interpretativas; e
outros menos conhecidos, como: a sua atuação urbanística e imobiliária em diversas
outras cidades brasileiras; a formação da Fundação Coimbra Bueno pela Nova Capital do

 5
Brasil; sua atuação no setor agropecuário, com a gestão de diversas fazendas nos estados
de Goiás, Bahia e Rio de Janeiro; a diversidade de negócios desenvolvidos pela empresa;
o funcionamento do escritório e as redes profissionais e políticas onde a Coimbra Bueno
atuou, identificando outros empreendedores e profissionais ligados à empresa.

Nesse sentido, este artigo tem como objetivo narrar os trabalhos realizados até o
momento no acervo, apresentando um mapeamento temático preliminar e questões
relacionadas à atuação da Coimbra Bueno e Cia. Ltda. Estruturalmente, o trabalho se
ancora nas seguintes balizas: “Instrumentalização”, com aporte teórico para manuseio
do material histórico; “Aproximação”, com narrativa sobre a ação operacional do acervo;
e “Nebulosas: achados e promessas”, com os temas identificados e definidos até o
presente momento. Finaliza-se o artigo com considerações acerca dos percursos futuros
a serem trilhados pela pesquisa.

INSTRUMENTALIZAÇÃO

Compreender a cidade pela história, sob o ponto de vista urbanístico, permite-nos


entender sua configuração atual, criticá-la e projetar seu desenvolvimento. A pesquisa
histórica não se restringe apenas em entender o processo de desenvolvimento de uma
cidade, como pode também trazer, à tona, exemplos urbanísticos e arquitetônicos que
nos auxiliem no planejamento das mesmas. A narrativa histórica deve ser compartilhado
e acrescido de instrumentos de outras ciências, como a geografia, a sociologia e a
economia, para permitir um entendimento mais preciso da pluralidade de elementos
presentes no perímetro urbano. A interdisciplinaridade (Escola dos Annales), a partir de
uma “confrontação cruzada das interrogações das ciências humanas” consiste em uma
das possibilidades e maneiras de se refletir e estudar a cidade.

Bernard Lepetit (2001) utilizou-se dessa interdisciplinaridade como método de


investigação urbana, destacando o método sociológico como o mais importante para se
compreender a história de uma cidade. Nestor Goulart Reis Filho (s/d; s/p) compartilha
da mesma posição ao afirmar que “qualquer elemento espacial é dotado de significação
social e a vida social, no meio urbano, não tem a possibilidade de se organizar sem uma
estrutura espacial que a limita e por ela mesma é engendrada e transformada em resposta
às suas características”. Assim como há uma relação entre o espaço e a estrutura social,
ou entre o espaço e qualquer outra estrutura urbana (econômica, política, cultural etc.),
outros tipos de relações vão existir. Dentre estas, situa-se a relação hierárquica e cambial
interligando as estruturas de uma escala urbana às estruturas de uma escala regional ou
global. Com ela, é possível ao historiador buscar respostas para suas dúvidas, indo além
dos limites da cidade que estuda, e ao planejador adequar seu plano a uma escala regional
ou global, por exemplo.

Uma abordagem em história se constrói também por meio de narrativas, que funcionam
dentro da ideia de trama – entrelaçamento de eventos e relações contextuais e/ou

 6
particulares, cujas “evidências” são colhidas dos vestígios escondidos nos documentos
históricos. Essencialmente, a pesquisa em acervos históricos, na busca por documentos,
é a principal forma de construir a trama, que dependerá, ainda, da capacidade do
pesquisador de criar costuras e relações, na tentativa sempre incompleta, sempre
circunstancial da tessitura historiográfica. Desta forma, a pesquisa histórica se organiza
a partir dos documentos, sua localização e identificação, a avaliação do material coletado
frente ao arcabouço teórico e histórico conjuntural, e, enfim, a escrita da narrativa
histórica per se (GROAT; WANG, 2002). Estas etapas, ainda que não perfeitamente
subsequentes e sim sobrepostas, compõem uma prática metodológica da pesquisa em
história.

Os documentos históricos incluem: os planos governamentais federais, estaduais e


municipais que se articulem com o fenômeno estudado; fotos históricas em acervos;
reportagens de jornais locais e nacionais; documentos governamentais relacionados
(atas, decretos, leis, memorandos); mapeamentos por imagem de satélite e outros que
permitam, em uma escala temporal, reconhecer formas de ocupação vigentes em
determinados períodos, suas configurações e transformações; documentos das/sobre as
empresas identificadas (atas, contratos, fotos, acordos, plantas, mapas,
correspondências, etc.); documentos sobre/dos urbanistas envolvidos nos projetos,
implantações e negociações para a construção de cidades e/ou bairros. Portanto, o acervo
Coimbra Bueno consiste em um verdadeiro campo a ser explorado.

Paralelamente a um olhar histórico e teórico, esta pesquisa propõe uma abordagem


pragmática de triagem, catalogação, organização e arquivamento de documentos
presentes em um acervo (BACELLAR, 2008; PINSKY, 2008). Com auxílio de
pesquisador(es) e técnico(s) em Ciência da Informação e Biblioteconomia (UnB),
buscamos no aprendizado coletivo (cursos de formação e embasamento técnico) a
aproximação aos materiais encontrados e consultados por professores e estudantes
envolvidos nesta pesquisa, como: documentos (registros oficiais e pessoais), entrevistas,
cartas, dados quantitativos, estudos projetuais, mapas, plantas, relatórios etc. A
sistematização destes materiais, após catalogados e organizados, passarão por processo
de digitalização e divulgação em site a ser criado (Acervo Coimbra Bueno). Já as fontes
bibliográficas encontradas serão processadas articuladamente, de modo a propiciar a
compreensão das mudanças históricas como um processo.

APROXIMAÇÃO

O acesso ao acervo Coimbra Bueno não ocorreu por acaso. Em outubro de 2019, a
mestranda Rubiana Cardoso Campos Lemos, devido à temática de pesquisa que
desenvolve - “Coimbra Bueno e Cia. Ltda. e sua história a partir de duas cidades novas:
Luiziânia (SP) e Rubiataba (GO)” -, entrou em contato com o filho de Abelardo Coimbra
Bueno pela rede social Facebook e agendou um encontro presencial em sua residência,
na cidade do Rio de Janeiro. Durante a entrevista com a viúva e seu filho, eles

 7
demonstraram interesse em doar todo material armazenado à Universidade de Brasília,
caso contrário descartá-lo-iam sem qualquer hesitação.

Cientes da importância de tal conteúdo para a história do urbanismo brasileiro, acionamos


a diretoria da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, que na pessoa do diretor, professor
Marcos Thadeu Queiroz Magalhães, tomou as medidas cabíveis para o transporte da
carga. O conteúdo, recluso em apartamento da família na cidade do Rio de Janeiro, estava
acondicionado em cerca de 200 caixas de arquivo morto (caixas de papelão), livros,
revistas e outros documentos, em razoável estado de conservação, mas sem uma
organização previamente definida (Figuras 4 e 5). Com peso estipulado em 2 toneladas,
segundo a empresa de transporte VTCLOG, todo material foi encaixotado em 41 caixas
de 1,00x0,50x0,60 metros de volume e conduzido para Brasília em julho de 2020.

Figuras 4 e 5 - Armazenamento do acervo em apartamento da família Coimbra Bueno.


Fonte: Acervo Coimbra Bueno / FAU-UnB.

Ao chegarem na FAU-UnB, as caixas foram depositadas em uma sala do Programa de


Pós-Graduação (Figura 6). Em 31 de janeiro de 2022 recebemos da sra. Maria Marcina
Pimentel Coimbra Bueno o “Termo de Doação de Acervo Pessoal” devidamente
assinado.

 8
Figura 6 - Caixas com acervo na FAU-UnB. Fonte: Acervo Coimbra Bueno / FAU-UnB.

Operacionalização do acervo: Oficina de Manejo dos Documentos

Em oficina virtual sobre manejo de documentos, ofertada pela bibliotecária Lívia Lins
Cardoso Borges (Cediarte-FAU/UnB), em 2 de fevereiro de 2022, os participantes do
projeto tiveram a oportunidade de aprender a como lidar com o material recebido. Em
“Manuseio e Acondicionamento de documentos”, diretrizes para a correta manipulação
dos documentos foram repassadas, entre outras: a manutenção das mãos limpas e uso
de luvas em látex descartáveis; o uso correto de Equipamentos de Proteção Individual
(EPIs), como avental, óculos de acrílico e máscara descartável, visando à preservação da
saúde e à integridade do acervo; o não manuseio de líquidos no espaço do acervo; o não
apoio de cotovelos sobre o acervo devido à fragilidade dos documentos históricos; o
evitável empilhamento de caixas e sua superlotação; a proibição de anotações nos
documentos, muito menos o uso de post-it; o afastamento do armazenamento dos
documentos, livros e caixas a 7 cm das paredes para evitar umidade, bem como dar
suporte por paletes para aqueles acondicionados diretamente sobre o chão; a não
utilização de flash em fotos; e a separação do material que estiver em avançado grau de
deterioração ou contaminado. Numa primeira etapa, de “Vistoria e Diagnóstico”, deve ser
feita uma avaliação geral, com definição do ponto inicial para os procedimentos (p.ex.
relevância de publicação).

Em seguida, na etapa de “Organização”, algumas medidas a serem tomadas foram nos


repassadas, como: selecionar uma sala de triagem adequada para o processo de avaliação
e registro, com ventilação adequada (arejamento) e iluminação (preferencialmente
natural); estipular a organização pela divisão de coleções; ordenar por subgrupos e tipos
de materiais, cronologia, dimensões, forma, peso e origem; trabalhar com uso de
ferramentas como fichas e planilhas para melhor sistematização; colocar livros sempre

 9
na vertical (com uso de bibliocanto) em prateleiras; acondicionar documentos em grandes
formatos (mapas, plantas, fotos etc.) em mapotecas, grandes envelopes ou pastas (pouco
maiores do que o documento) - lembrando de nunca dobrar ou enrolar, abrindo sempre
numa grande mesa. Sugeriu-se ainda evitar o uso de mobiliários em madeira, preferindo-
se armários metálicos abertos, com prateleira a 15 cm do chão.

Também fomos informados sobre os “Quatro inimigos do papel”: 1) físico (luminosidade,


umidade, temperatura), 2) químico, 3) biológico (microorganismos), e 4) ambiental
(quem irá manusear). Sobre luminosidade, esta pode causar alteração nos documentos
(amarelamento), dando-se preferência à iluminação indireta. Quanto à umidade e
temperatura, recomenda-se utilizar aparelhos de desumidificador (40-70%) e ar-
condicionado (temperatura entre 20 e 22 graus Celsius). Quando encontrada infestação
de traças, baratas, cupins, brocas etc., esta deve ser combatida por profissionais
especializados, utilizando-se produtos químicos. Caso os materiais estejam muito
danificados e necessitem de restauro, este serviço deve ser feito por equipe especializada
de bibliotecários e museólogos. Por fim, salientou-se as vantagens para digitalização do
acervo, como: recuperar materiais em degradação (evitando-se manipulação recorrente),
permitir acesso rápido a múltiplos interessados e facilitar a recuperação da informação.

Desse modo, a equipe responsável pelo acervo reservou, com aval do coordenador do
Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPG-FAU/UnB), professor Caio
Frederico e Silva, duas salas para o acervo, uma para seu armazenamento (Figura 7) e
outra para seu manuseio (Figura 8).

Figuras 7 e 8 - Salas para armazenamento e manuseio do acervo.


Fonte: Acervo Coimbra Bueno / FAU-UnB.

A Equipe e as primeiras descobertas

A equipe do projeto é coordenada por dois professores pesquisadores do PPG-FAU/UnB


(autores deste artigo), e conta com participação de catorze discentes de pós-graduação
e graduação desta Instituição de Ensino Superior. São eles: Anie Caroline Afonso Figueira
(doutoranda, bolsista técnica FAP-DF), Isadora Banducci Amizo (doutoranda, voluntária),
Simone Buiate Brandão (doutoranda, voluntária), Clarissa de Melo e Lemos (mestranda,

 10
voluntária), Mariana Verlangeiro Vieira (mestranda, voluntária), Richardson Thomas da
Silva Moraes (mestrando, bolsista técnico FAP-DF), Carolina Guida Teixeira (graduanda,
voluntária), Clara Ismênia Lima dos Santos (graduanda, bolsista FAP-DF), Leonardo
Nóbrega Queiroz de Paiva (graduando, bolsista CNPq), Letícia Rodrigues da Costa
(graduanda, bolsista), Mariana Bastos e Silva Vaz (graduanda, bolsista CNPq), Mariana
Verdolin dos Santos (graduanda, bolsista CNPq), Talita Rocha Reis (graduanda,
voluntária), Vitor Ayub (graduando, bolsista FAP-DF). Os trabalhos vêm ocorrendo
presencialmente desde abril de 2022, aos sábados pela manhã, com a participação
constante dos integrantes da equipe.

Na primeira fase, de abertura das caixas, retirada e identificação do material, todos


perfizeram os mesmos procedimentos. Com três temas preliminarmente definidos: 1)
Goiânia, 2) Planos urbanos no Brasil, e 3) Brasília, os materiais foram separados nestas
categorias e depositados na sala de armazenamento. Nessa triagem inicial, vale salientar
que materiais não diretamente relacionados ao interesse da pesquisa (p.ex. canhotos de
talões de cheque, contas pessoais de luz, IPTU, água, telefone, boletos adquiridos para
pagamento de eletrodomésticos, folderes turísticos promocionais etc.) foram
devidamente descartados. Com a abertura das caixas, os três temas previamente
estipulados logo foram superados. A atuação da Coimbra Bueno e Cia. Ltda., em muito,
superou as expectativas, ampliando o campo de abordagem. Só para documentos do
escritório da Coimbra Bueno, uma enorme frente foi aberta, assim como para outras
produções que não atreladas diretamente ao planejamento urbano, como atividades
econômicas ligadas à agroindústria, à exploração de recursos minerais (petróleo), à
produção de refrigerante.

Após as 41 caixas abertas e a separação do material por temas (Figura 9), o processo
encontra-se numa segunda fase de triagem, na qual os conteúdos são revisitados e
agrupados por temas mais específicos, sendo armazenados em caixas de arquivo morto
(caixas de papelão) (Figura 10). Conquanto nos encontremos no meio do processo, muito
já foi olhado, muito já foi descoberto, o que nos permite compartilhar alguns achados e
prospectar algumas promessas.

 11
Figura 9 e 10 - Material retirado das caixas e, posteriormente, arquivados por temas.
Fonte: Acervo Coimbra Bueno / FAU-UnB.

NEBULOSAS: ACHADOS E PROMESSAS

Como método organizacional dos temas identificados e delimitados, optamos pela


construção de nebulosas (PEREIRA, 2018), as quais permitem uma melhor visualização
do conjunto do acervo avaliado (Figura 11).

Figura 11 - Nebulosas do Acervo Coimbra Bueno. Fonte: Autores, 2022.

Certamente, as nebulosas herdam da ideia de rede. As nuvens que as compõem e mesmo


as camadas de cada uma delas resultam, como se disse, de nexos e associações. Mas elas
integram essa premissa que rege as interações sociais e culturais para desconstruir seu
caráter mecânico, insistindo em observar essas interações de modo situado e exibindo,

 12
segundo o que se interpreta, descontinuidades, vazios, meros restos de vapores,
condensações, ou o anúncio de turbulências. (PEREIRA, 2018, p. 252)

Além de documentação primária sobre Goiânia, identificamos a ação da incorporadora em


inúmeras obras urbanizadoras pelo país, o envolvimento com outros negócios - de
atividades agropecuárias e industriais a participação no cenário político do país -, a
amplitude administrativa do escritório e a conexão direta com a mudança da capital para
a hinterlândia brasileira. Em diversos documentos e textos do acervo, pode-se perceber
nos irmãos Coimbra Bueno a intenção de difundir uma visão de país moderno, coeso e
com forte identidade sociocultural, evidentemente baseada em uma visão elitista,
estereotipada e bastante conservadora da cultura sertaneja, bem como em visão
sociopolítica desenvolvimentista das prioridades nacionais. O discurso de uma “civilização
sertaneja”, em vários momentos, permeia os documentos e as atividades empreendidas
por ambos e ainda precisa ser mais apurado.

A seguir percorremos cada uma das nebulosas elaboradas, garantindo um conhecimento


preliminar do conteúdo coletado e identificando e expondo alguns achados já descobertos.
Salienta-se que ainda estamos na fase de triagem e qualquer possibilidade de associação,
conexão, análise mais profunda e original ainda é prematura e arriscada de ser feita.

Goiânia, uma capital de muitas imagens

Goiânia apresenta-se como objeto à parte no acervo. Constituído de um conjunto de


imagens (fotos, mapas, cartões postais etc.) sobre a construção da cidade e de seus
edifícios, bem como os primeiros anos da capital goiana (Figura 12), foram igualmente
encontrados material iconográfico de Campinas (antiga vila goiana), da proposta original
do Centro Cívico e da praça da Matriz no Setor Sul, da Colônia Leprosária Santa Marta,
do Setor Aeroporto, da Usina hidrelétrica etc.

Figura 12 - Fotografias e cartões postais de Goiânia. Fonte: Acervo Coimbra Bueno / FAU-UnB.

 13
Encontramos uma variedade enorme de fotos aéreas, mostrando os principais marcos
urbanísticos da cidade e sua expansão por bairros residenciais. Fotos que também
retratam os primeiros anos da capital, da construção das edificações públicas e daquelas
mais corriqueiras (p.ex. habitações) também conformam a coleção. Algumas imagens
revelam o cotidiano da nova cidade, com a vivência dos moradores nos espaços modernos
da época. Percebe-se também o interesse por trás das lentes em promover a nova capital,
seu urbanismo e sua arquitetura, a fim de atrair público para nela se estabelecer.

Nesta nebulosa, os documentos encontrados foram categorizados em subgrupos: Goiás,


Construção de Goiânia, Inauguração, Escritório e Personagens, A Cidade, As Edificações
e Equipamentos. Por sua vez, cada categoria recebeu uma classificação por tipos de
materiais: fotos, mapas, planos e documentos.

Escritório e redes

Após diplomados em 1933, os irmãos iniciaram imediatamente suas carreiras com a


empresa Coimbra Bueno & Penna Chaves Ltda. (Figura 13), junto com o colega Roberto
Penna Chaves (1911-1975), neto do ex-presidente Afonso Penna, com foco na construção
civil e no urbanismo. Mas a sociedade logo foi desfeita, por divergências de Roberto com
a empreitada de Goiânia. Desse fato nasce a Coimbra Bueno e Cia. Ltda., na qual
Jeronymo ficaria responsável por todas as obras, pela fiscalização das construções, pela
padronização dos materiais e pela garantia de qualidade daquilo edificado; enquanto
Abelardo ficaria responsável pela comunicação Goiânia-Rio-São Paulo para a compra de
materiais e por serviços burocráticos (GODINHO, 2015).

Figura 13 - Sede do escritório Coimbra Bueno & Penna Chaves em Goiânia.


Fonte: Acervo Coimbra Bueno / FAU-UnB.

 14
No Rio de Janeiro, a sede da empresa chegou a contar com 22 profissionais (Figura 14)
e a participação ilustre de arquitetos estrangeiros como Alfred Agache (Figura 15) para o
desenvolvimento de planos urbanos de cidades em diversos estados. Ademais foram
identificados no acervo dados sobre a existência de outras empresas ligadas ao setor
imobiliário como a Companhia Imobiliária Bangú e a Firma Anchieta Participações Ltda.,
cujo endereço era o mesmo da sede da Coimbra Bueno e Cia. Ltda. no Rio.

Figuras 14 e 15 - Escritório da Coimbra Bueno no Rio de Janeiro e foto de Alfred Agache (ao centro),
com Abelardo Coimbra Bueno (terno claro). Fonte: Acervo Coimbra Bueno / FAU-UnB.

Além das redes profissionais estabelecidas por Jeronymo e Abelardo, é de conhecimento


as relações político-sociais que ambos constituíram ao longo de suas carreiras. Jeronymo
foi governador de Goiás (1947-1950) e senador pelo estado, enquanto Abelardo mantinha
representação em importantes entidades da época, sendo membro do Rotary Club do Rio
de Janeiro, do Touring e da Sociedade Brasileira de Amigos das Nações Unidas.

Nesta nebulosa, o material triado foi separado nos seguintes subgrupos: Pessoal, com
documentos pessoais dos irmãos e familiares; Equipe de trabalho e Funcionários,
contendo, dentre outros, as fichas funcionais de todos os trabalhadores que passaram
pelas empresas dos Coimbra Bueno; Referências, com reportagens, livros, álbuns etc.
que deram repertório aos irmãos; Documentos Gerais, com contratos, fotos, escrituras,
registros etc.; e Ação Política e Moral, com materiais direcionados a questões acerca da
“Civilização Sertaneja” e a interlocuções com políticos importantes, como Getúlio Vargas,
Juscelino Kubitschek e Fernando Collor de Mello.

Planejamento urbano no Brasil: Cidades novas, bairros e planos

Se Goiânia foi o marco na história da Coimbra Bueno e Cia. Ltda., o acervo explorado
abriu um leque de ações que muito nos impressionou. São planos e projetos, de
urbanismo e de arquitetura, que perfazem trabalhos em distintas regiões do país. Vão de
ações e reconhecimento das fronteiras norte do país, com atuação na região do Tapajós
(PA), à construção de edifícios em cidades do interior de São Paulo, como Pinhal,
Penápolis, Barretos e Santos, e em Campo Grande (MS) e Araxá (MG). Mesmo as capitais
de São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Belo Horizonte foram alvo de ações da
incorporadora.

 15
Dentre os planos urbanísticos elaborados e, muitos, executados pela Coimbra Bueno
encontramos aqueles localizados em municípios do estado do Rio de Janeiro: Paraty,
Cachoeiras de Macacu, Caxambu (Petrópolis), Senador Camará, São Gonçalo, Magé,
Araruama, Itaboraí, Maricá, Cabo Frio, Atafona (São João da Barra), Campos dos
Goytacazes, Macaé e Arraial do Cabo. Em Goiás, identificamos planos para as cidades de
Rio Verde (terra natal da família Coimbra Bueno), Jataí, Anicuns, Caldas Novas e o plano
urbanístico para a cidade nova de Rubiataba. Em Mato Grosso, o plano urbano para a
capital Cuiabá e, em São Paulo, o plano urbanístico para a cidade nova de Luiziânia (Figura
16), somam-se ao projeto do Centro Industrial de Aratú, na Bahia.

Destacam-se pela presença de arquitetos e planejadores de renome os planos para


Curitiba (PR), com a autoria de Alfred Agache (Figura 17), o Projeto da Área Metropolitana
do Grande Rio, de Constantínos Apóstolos Doxiádis (1913-1975), e o masterplan da
região costeira de Santos ao Rio de Janeiro, assinado por Georges Candilis.

Figuras 16 e 17 - Planos urbanos para Luiziânia (SP) e Curitiba (PR).


Fonte: Acervo Coimbra Bueno / FAU-UnB.

Nesta nebulosa, os subgrupos deram-se pelo nome das cidades encontradas, cada qual
recebendo seu próprio arquivo. Informa-se ainda que um número razoável de imagens
foi encontrado sem qualquer identificação e passarão por nova verificação - caso não
sejam identificadas a cidade de origem, serão armazenadas juntas em arquivo separado.

Outros campos de atuação

Nota-se na produção dos irmãos Coimbra Bueno ações direcionadas ao setor de habitação
de interesse social. Inúmeros projetos encontrados apontam para o envolvimento na
produção de moradias populares na região metropolitana do Rio de Janeiro, com os
conjuntos habitacionais de Vila Terra Brasil (autoria da Companhia Imobiliária Bangú,
RJ); Núcleo Residencial dos Aeroviários; Conjuntos Residenciais Rio Amazonas, Rio
Tapajós, Rio Negro e Rio Araguaia. Ainda neste campo, descobriu-se o protótipo para o
embrião de uma casa popular, denominada Jirau, sem menção à autoria do projeto
(Figura 18).

 16
Figura 18 - Proposta de moradia popular: Casa Jirau. Fonte: Acervo Coimbra Bueno / FAU-UnB.

Para além dos campos urbanístico e arquitetônico, a Coimbra Bueno e Cia. Ltda. envolveu-
se com outras atividades produtivas. Articulados com entidades e programas nacionais e
estaduais de desenvolvimento agropecuário (p.ex. INCRA), os Coimbra Bueno eram
detentores da posse de inúmeras propriedades rurais. No acervo foram identificadas as
seguintes fazendas: Fazenda São José (Cachoeiras de Macacu, RJ), Fazendas Pinta e
Campo Grande (Cachoeiras de Macacu, RJ), Fazenda Vargem Grande (Cachoeiras de
Macacu e Itaboraí, RJ), Fazenda do Carmo (Itaboraí, RJ), Fazenda Salto (Caçu, GO),
Fazenda São Pedro (Caçu, GO), Fazenda Aguá Boa (Caçu, GO), Fazenda São Simão (Caçu,
GO), Fazenda Retiro (Goiânia, GO), Fazenda das Pedras (GO), Fazenda São Bento
(Imbassaí, BA) e Fazenda Invernada (não identificado). Para gerenciar estas propriedades
rurais, a Coimbra Bueno tinha o domínio da AgroBrasil Empreendimento Rurais S.A. e
Prainha Sociedade Agroindustrial S/A. O campo de atuação da Coimbra Bueno também
se fez presente na indústria de polipropileno, tendo uma planta produtiva no Rio de
Janeiro, e na indústria de refrigerante, com a produção da bebida Café-Cola.

Nesta nebulosa, os subgrupos identificados nortearam a divisão dos arquivos. As fazendas


foram isoladas por caixas arquivo particulares. Adotou-se o mesmo procedimento para os
demais temas, das indústrias às obras de moradias.

Fundação Coimbra Bueno pela Nova Capital do Brasil

O apoio explícito dos Coimbra Bueno à transferência da capital nacional para o Planalto
Central teve início quando escreveram uma carta à Getúlio Vargas (1882-1954),

 17
Presidente da República, na qual se colocavam à disposição para consulta a respeito da
nova Capital da República. Tal carta foi respondida por Getúlio em discurso realizado em
Goiânia, em 1940, inaugurando a “Cruzada Rumo ao Oeste”. A fundação era financiada
por toda a família Coimbra Bueno, onde as irmãs Elisa Coimbra Bueno Lynch e Lysia
Coimbra Bueno Pereira eram responsáveis pela “Organização das Voluntárias”, uma das
entidades não estatais de assistência social do Brasil naquele período (DEPARTAMENTO
DE IMPRENSA NACIONAL, 1961).

Em documento encontrado no acervo, está a justificativa da Câmara dos Deputados para


o Decreto n°. 49.873, de 11 de janeiro de 1961, o qual traz o reconhecimento por parte
do Presidente Juscelino Kubitschek aos irmãos Coimbra Bueno na fundação de Brasília.
Conforme exposto,

A luta pela Mudança se iniciou nos idos de 1939, com a fundação do jornal “Rumo ao Oeste”,
que veio divulgar as imensas possibilidades do Brasil Central e a necessidade de ocupação
do território legado pelos bandeirantes; ampliou-se com a instalação da “Rádio Brasil
Central”, cujo poderoso equipamento em ondas curtas, médias e tropicais, indispensáveis
à pregação mudancista em todo o território nacional, foi muito além do que comportava
Goiânia; ao mesmo tempo penetrou por toda parte, por meio do “Jornal de Brasília”, que
circulava como integrante do seminário “Singra”, distribuído por todos os Estados do Brasil
com uma tiragem de várias centenas de milhares de exemplares. Mais recentemente, já
vitoriosa a ideia da interiorização da capital, a cruzada não se deteve, e lançou, em
manifesto, as bases do prosseguimento da obra, com a campanha da “Civilização
Sertaneja”, destinada a completar os objetivos de Brasília, e integrada depois por
proeminentes entidades culturais do país ao ser constituída a “1ª Comissão de Estudos da
Civilização Sertaneja”. [...] No Governo do Marechal Eurico Dutra [1946-1951], convocados
para opinar sobre a mudança em caráter provisório para Belo Horizonte, Uberaba ou
Goiânia, a ela se opuseram intransigentemente, não só por não terem sido planejadas com
esse objetivo, como por outras convicções de ordem técnica. Entretanto, possuíam
extensas áreas e propriedades em Goiânia e no Triângulo que lhes dariam uma fortuna
incalculável, embora comprometendo a causa mudancista. Passaram a se dedicar como
voluntários, sem qualquer remuneração, à organização da “Comissão de Estudos para a
Localização da Nova Capital do Brasil”, a segunda que então se formava, pois a anterior
havia sido constituída em 1892, sob a denominação de “Comissão Exploradora do Planalto
Central do Brasil”. (BRASIL, 1961, p. 352)

Fato é que a trajetória profissional de ambos os irmãos está atrelada à história de Brasília,
porém renegada pela historiografia especializada sobre a fundação da Nova Capital. Do
desbravador artigo Arqueologia de uma cidade: Brasília e suas cidades satélites (1982),
de Gustavo Lins Ribeiro, passando por Senzala e casa grande (1998), de Sylvia Ficher,
ao recente Além do Plano. A concepção das cidades-satélites de Brasília (2018), de Maria
Fernanda Derntl. Do livro As cidades satélites de Brasília (1988), de Adirson Vasconcelos,
à ampla e consistente produção de Aldo Paviani (1985, 2005, 2010a e 2010b). Das
leituras morfológicas em Brasília: da Carta de Atenas à cidade de muros (2003), dos
professores Frederico de Holanda, Maria Elaine Kohlsdorf e Gunter Kohlsdorf, à
prospecção cronológica em Brasília, uma história de planejamento (2003), de Geraldo
Batista, Sylvia Ficher, Francisco Leitão e Dionísio França. Das coletâneas Brasília 50+50:
Cidade, história e projeto (2014) e Território e sociedade: as múltiplas faces da Brasília
metropolitana (2019), às teses De Plano Piloto a metrópole: a mancha urbana de Brasília

 18
(2009), de Jusselma Brito, e As regiões administrativas do Distrito Federal de 1960 a
2011 (2011), de Graciete Costa. Nenhuma delas aborda ou ao menos menciona o
envolvimento dos irmãos Coimbra Bueno na empreitada da nova capital.

Assim, ao trazer a memória e as produções dos Coimbra Bueno à baila, podemos escrever
um novo capítulo sobre a transferência da capital. Ademais, este projeto poderá ampliar
o escopo da produção urbanística no país, revelando projetos até então pouco (ou nunca)
estudados, bem como compreender o perfil destes engenheiros no contexto profissional
das décadas de 1930 a 1970, quando a Fundação Coimbra Bueno Pela Nova Capital do
Brasil é encerrada.

Nesta nebulosa, ainda a ser explorada, já apontam alguns subgrupos para sistematização
dos materiais, como: documentos oficiais, documentos referenciais (p. ex.: processo de
mudança da capital da Argentina, no qual Abelardo foi consultor), Jornal de Brasília
“Singra”, dentre outros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS (OU INICIAIS?)

Evidentemente, o percurso narrado neste artigo não intenciona oferecer quaisquer


conclusões fechadas ou finais dado o estágio inicial da pesquisa e do trabalho de
organização do acervo, que ainda não terminou. No entanto, achamos pertinente partilhar
os achados até o momento, bem como apontar algumas possibilidades de interpretação
do rico material do acervo Coimbra Bueno, esperando receber contribuições e debater
ideias com a comunidade acadêmica mais ampla.

Neste momento, as próximas etapas da organização do acervo incluem o escaneamento


e a digitalização de imagens e documentos principais; elaboração de site; divulgação ao
público e escrita de livro, que esperamos realizar nos próximos anos. Em relação aos
temas, caminhos e tramas que o mergulho no acervo nos mostrou (ou apenas apontou),
fica claro que as possibilidades são maiores do que aquelas pensadas inicialmente. Por se
tratar de uma pesquisa em aberto, que procura pensar o lugar dessa empresa
urbanizadora e de seus personagens no campo do urbanismo e da história urbana por
meio de nebulosas, acreditamos que ainda há uma varredura mais minuciosa de novas
tramas e narrativas por fazer e ampliar. Essas outras nebulosas podem configurar novas
histórias; no encontro de novas peças, o quebra-cabeça pode ganhar novos formatos.

 19
REFERÊNCIAS
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Bassanezi (Ed.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2008. pp. 23-79.
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história de planejamento. In: Anais X Encontro Nacional da Anpur. Belo Horizonte: Anpur,
2003.
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BRITO, Jusselma Duarte de. De Plano Piloto a metrópole: a mancha urbana de Brasília. Tese
(Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade de Brasília. Brasília, 2009.
COSTA, Graciete Guerra da. As regiões administrativas do Distrito Federal de 1960 a 2011.
Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade de Brasília. Brasília, 2011.
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história e projeto. Brasília: EdUNB, 2014.
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https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/19.221/7150. Acesso em: janeiro
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DINIZ, Anamaria. Goiânia de Attilio Corrêa Lima (1932-1935) - Ideal estético e realidade
política. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e
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GODINHO, Iúri Rincon. A construção: Cimento, Ciúme e Caos nos primeiros anos de Goiânia.
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LEPETIT, Bernard. Por uma nova história urbana. São Paulo: EDUSP, 2001.
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REIS FILHO, Nestor Goulart. Urbanização e teoria. São Paulo: Laboratório de Artes Gráficas
da FAU-USP, s/d.

 20
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e Debates. São Paulo, n. 5, março/junho 1982.
VASCONCELOS, Adirson. As cidades satélites de Brasília. Brasília: Editora do autor, 1988.
VASCONCELOS, Ana Maria Nogales et al. (Org.). Território e sociedade: as múltiplas faces da
Brasília metropolitana. Brasília: EdUNB, 2019.

 21
CONTRA-MAPEAMENTO COMO INSTRUMENTO POLÍTICO E
MÉTODO DE PESQUISA URBANA
COUNTER-MAPPING AS A POLITICAL TOOL AND URBAN RESEARCH
METHOD
EL CONTRAMAPEO COMO HERRAMIENTA POLÍTICA Y MÉTODO DE
INVESTIGACIÓN URBANA

Memórias, representações, arquivos

CAMPOS, Clarissa
Doutora em Arquitetura e Urbanismo; Professora Adjunta, Departamento de
Arquitetura, Urbanismo e Artes Aplicadas, Universidade Federal de São João del-Rei
clarissadecampos@gmail.com
RESUMO

O presente artigo tem como objetivo discutir o contra-mapeamento de


territórios urbanos enquanto ferramenta política e método de pesquisa. Mais
especificamente, procurou-se focar em processos relacionados a disputas
territoriais urbanas e justiça sócio-espacial, em que práticas coletivas de
mapeamento de base comunitária foram a principal estratégia para discutir,
analisar, elaborar e/ou comunicar problemas, demandas e outras narrativas.
A análise proposta visa melhor compreender algumas de suas potencialidades
emancipatórias, pedagógicas e analíticas, no sentido da (re)construção de
horizontes socialmente mais justos. Do ponto de vista metodológico, serão
apresentados os resultados iniciais de uma busca e revisão sistemática de
literatura realizada a partir da base de dados Scopus, como parte da pesquisa
de pós-doutorado em desenvolvimento pela autora. Dentre os principais
elementos discutidos, destacam-se aspectos de terminologia e sua relevância
para o campo, características convergentes que justificam o uso do termo
contra-mapeamento de forma ampla, bem como limites e obstáculos
identificados. Ao final, sugerem-se possibilidades para discussão futura, com
base em lacunas identificadas na literatura consultada.

PALAVRAS CHAVE Contra-Mapeamento; Revisão Sistemática de Literatura;


Disputas Territoriais Urbanas; Justiça Sócio-Espacial

ABSTRACT

This article discusses counter-mapping of urban territories as a political tool


and research method. More specifically, emphasis was placed on urban
territorial disputes and struggles for social-spatial justice, which use collective
processes of community-based mapping as their main strategy to discuss,
analyse, elaborate and/or communicate problems, demands and other
narratives. The proposed analysis aims at better understanding some of their
emancipatory, pedagogical and analytical possibilities, towards the
(re)construction of more socially just horizons. From a methodological point of
view, the article presents initial results of a systematic literature search and
review based on the Scopus database, as part of the post-doctoral research in
progress by the author. Among the main issues addressed are terminology
aspects and their relevance to the field, significant features justifying the use
of the term counter-mapping in a broad sense, limits and obstacles identified.
Finally, possibilities for future discussion are suggested, based on gaps found
in the consulted literature.

KEY-WORDS Counter-Mapping; Systematic Literature Review; Urban


Territorial Disputes; Socio-Spatial Justice
INTRODUÇÃO
O presente artigo procura dialogar com o que sugere a proposta do XVII Seminário de
História da Cidade e do Urbanismo, quando este anuncia a catástrofe em curso no Brasil
de 2022: vivemos a demolição de horizontes. 1 Para tanto, propõe-se discutir o contra-
mapeamento de territórios urbanos enquanto ferramenta política e métohado de
pesquisa. Mais especificamente, procurou-se focar em disputas territoriais urbanas e
outras iniciativas relacionadas a justiça sócio-espacial que usam processos coletivos de
mapeamento de base comunitária como principal estratégia para discutir, elaborar e
comunicar problemas, demandas e narrativas próprias. Espera-se, a partir da análise de
princípios compartilhados, possibilidades e limites implicados em tais processos, melhor
compreender algumas de suas potencialidades emancipatórias, pedagógicas, analíticas,
no sentido da (re)construção de horizontes socialmente mais justos.

Para além da capacidade positiva do termo horizontes de representar uma ação (a busca
perpétua por algo que se deseja), ele simboliza também alguma expectativa de realização
desse desejo: insinuando suas possibilidades quase palpáveis, suas formas turvamente
delineadas, seus aspectos incertamente nomeados. Essas possibilidades, por sua vez,
constroem-se socialmente. Da mesma forma, diversos autores têm contado a história das
cidades, do espaço das cidades, a partir de análises e teorias em grande parte
fundamentadas na sua interpretação como uma construção social. Na visão desses
autores, o espaço das cidades não se trata de um mero mediador de relações sociais. Ao
contrário, o espaço é considerado elemento crucial para a conformação dessas relações,
sendo reciprocamente influenciando por elas (como primeiramente sugerido por
LEFEBVRE, 1991, 2016).

Similarmente, o espaço urbano pode ser interpretado como componente indissociável da


conformação de relações de poder, se considerarmos que o poder existe quando colocado
em prática, a partir da forma como indivíduos e populações circulam, se localizam e se
relacionam com o espaço (como proposto por FOUCAULT, 1995). Esta forte reciprocidade
entre espaço, relações sociais e de poder, por sua vez, é bem conhecida pelos diversos
agentes que nele atuam – seja para garantir os interesses políticos e econômicos de uma
minoria privilegiada, ou no contexto de lutas por maior justiça sócio-espacial (seguindo o
termo proposto por SOUZA, 2010). Horizontes são, afinal, idealizados por grupos
diversos, distribuídos ao longo de todo o espectro político e ideológico.

Disputas pelo espaço estabeleceram-se historicamente de formas as mais diversas.


Dentre elas, as suas representações cartográficas, foco do presente artigo, tem sido, há

1
https://www.17shcu.com/ Acesso em 28 jun. 2022.

• 3
séculos, importantes ferramentas de domínio e controle. Argumenta-se portanto que
representações cartográficas de um dado território não devem ser apreendidas como
constatações inequívocas de um espaço real. Ao contrário, há uma clara disputa entre
distintas representações do espaço que articulam-se diretamente às próprias disputas
territoriais (ACSELRAD; COLI, 2008). Informações comunicadas por meio de mapas
podem transmitir ideias, convencer pessoas (ACSELRAD; COLI, 2008) e contribuir para
naturalizar as mais diversas relações sociais e de poder ao localizá-las, distribuí-las e
vinculá-las ao espaço. Dessa forma busca-se estabelecer controle não apenas sobre o
ambiente natural, mas também sobre a propriedade da terra, direitos e normas sociais
(HALDER; MITCHEL, 2018).

A ideia de contra-mapeamento se origina justamente da concepção de que mapas são


instrumentos poderosos (HALDER; MITCHEL, 2018). O termo contra-mapeamento
utilizado neste artigo refere-se então a uma ampla gama de processos críticos de
mapeamento coletivo e de base comunitária. O contra-mapeamento implica numa
contraposição pelo inverso: se mapear, ao invés de ser mapeado. Trata-se de uma afronta
à ideia de uma narrativa única acerca do espaço e das relações que a partir dele se
desenvolvem pois tem como pressuposto o contar de uma história pelos próprios agentes
constitutivos de um dado território.

Importante salientar que nesse caso, no entanto, a prática precede o termo – contra-
mapeamento foi o nome dado pela antropóloga e socióloga Nancy Lee Peluso em 1995,
quando trabalhou com o povo indígena Dayak na Indonésia, utilizando mapas para
reivindicar/reaver suas terras (PELUSO, 1995 apud HALDER E MITCHEL, 2018).2 Práticas
similares, no entanto, podem ser traçadas desde a década de 70, enquanto a maior parte
dos debates acadêmicos em torno do campo surgiu no final da década de 80 (HALDER;
MITCHEL, 2018).

Mais recentemente, em especial ao longo da última década, foi possível observar um


incremento no número de publicações científicas acerca do tema (incluindo-se outras
terminologias, como se verá adiante). Dentre estas, práticas de contra-mapeamento são
muitas vezes interpretadas como ferramentas políticas, implicando, portanto, em
objetivos que ultrapassam o mero levantamento e representação gráfica de dados
territoriais. Em alguns casos, processos de contra-mapeamento visam a crítica e
contestação de formas de pensar o espaço (como em HALDER; MITCHEL, 2018;
MANSELL; DAKHLOUL; ISMAIL, 2018). Em outros, pretende-se confrontar formas de
controle, expor mecanismos subjacentes, criar novas narrativas e propor diálogos

2
Peluso, N. L. 1995. Whose woods are these? Counter-Mapping Forest Territories in Kalimantan,
Indonesia. Antipode, 27 (4): 383-406.

• 4
possíveis(ver por exemplo FÓRUM DE JUVENTUDES DO RIO DE JANEIRO, 2018;
ICONOCLASISTAS, 2018; MESQUITA, 2018; ORTEGA et al., 2018).

O contra-mapeamento tem sido frequentemente aplicado também em processos


pedagógicos e de pesquisa, como método em geral articulado ao reconhecimento de
saberes localmente constituídos e a uma participação tanto quanto possível ativa de todos
os envolvidos (como discutido em ARCHER; LUANSANG; BOONMAHATHANAKORN, 2012;
GORDON; ELWOOD; MITCHELL, 2016; LITERAT, 2013; TAYLOR; HALL, 2013). Estas
possibilidades tem sido endereçadas a partir de diferentes contextos e escalas, desde
grupos localizados e com número limitado de participantes, até processos mais
abrangentes que visam eventualmente influenciar a elaboração de políticas urbanas.

Do ponto de vista metodológico, este artigo apresenta e discute parte dos resultados
alcançados durante a residência pós-doutoral da autora, em andamento desde
dezembro/2021. A pesquisa tem sido realizada no âmbito do Programa de Pós-Graduação
em Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal de Minas Gerais (NPGAU – UFMG)
e do Institute for Housing and Urban Research, Universidade de Uppsala, Suécia (IBF –
UU).3 Nessas instituições, a pesquisa se articula ao grupo de pesquisa Cosmópolis, Escola
de Arquitetura, UFMG, do qual a autora participa como pesquisadora, e ao projeto de
cooperação em pesquisa Urban Struggles for the Right to the City and Urban Commons
in Brazil and Europe, do qual participa como membro da equipe Brasileira. 4

Mais especificamente, serão apresentados os resultados iniciais de uma revisão


sistemática de literatura que, embora em andamento, já permite propor algumas
generalizações. Revisões sistemáticas implicam na identificação e aplicação objetivas de
recursos bibliográficos por meio de um protocolo previamente formatado, que assegure
tanto quanto possível rigor e replicabilidade ao processo, ao mesmo tempo em que
procura evitar parcialidades (CAMPBELL et al., 2017; KELLY, 2011). Em certos campos
do conhecimento, como as Ciências Sociais, é possível, no entanto, que parte das
informações acerca de um determinado fenômeno não esteja concentrada
exclusivamente em bases de dados de revistas científicas. Portanto, como sugerido por
KELLY (2011), o desafio é desenvolver a metodologia de uma revisão sistemática que
retenha sua qualidade essencial de rigor e confiabilidade, mas ao mesmo tempo é aberta
a formas alternativas de evidências.

3
Sob a supervisão da Profa. Rita de Cássia Lucena Velloso, no primeiro, e do Prof. Miguel A. Martínez
López, no segundo.
4
Programa STINT-CAPES edital 28/2018, coordenado pelos professores supramencionados. O presente
trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil
(CAPES) – Número do Processo 88887.648776/2021-00.

• 5
Igualmente importante, diferentes autores têm identificado limites significativos em
revisões sistemáticas, apontando para a impossibilidade de um processo completamente
exaustivo. Primeiramente, plataformas de busca e bases de dados são dinâmicas e seus
conteúdos são alterados diariamente (COOK; COCHRANE; CORBETT, 2020). Resultados
de busca também variam de acordo com o domínio institucional do/a pesquisador/a
devido a diferenças em tipos de assinatura e conteúdo disponibilizado (COOK;
COCHRANE; CORBETT, 2020). Possibilidades e limites de acesso institucional ou pessoal
podem influenciar também na escolha de bases de dados a consultar. Adicione-se que a
construção de bases de dados não é em si uma atividade neutra e objetiva (KELLY, 2011)
e portanto há sempre a chance de que informações relevantes poderão não ser incluídas
no processo. Aliás, o próprio processo de publicação pode ser tendencioso, deixando parte
da produção de conhecimento não publicada ou oculta (KELLY, 2011).

Finalmente, atividades de pesquisa são em geral circunscritas por limitações de tempo,


recursos e pessoal, o que impacta diretamente em seu escopo. Outros fatores, como
palavras-chaves e outros termos faltantes, ou até mesmo variações simples em uma
expressão de busca em base de dados pode levar a lacunas no processo. A exemplo,
neste artigo, a terminologia utilizada em referência a formas específicas de contra-
mapeamento é amplamente diversa, como será discutido adiante. Por outro lado, embora
suas limitações não devam ser ignoradas, a aplicação de levantamento e revisão
sistemática trata-se de importante estratégia de pesquisa científica. Para além do seu
potencial de replicabilidade, esta permite identificar o que tem sido considerado como
conhecimento relevante em um determinado campo, de que forma esse conhecimento
tem sido sistematizado, a partir de onde se estabelecem discussões, bem como suas
temporalidades. Ademais, a possibilidade de identificação de lacunas na literatura
científica consultada pode contribuir para a proposição de vias para futuras discussões no
campo, como se pretende realizar a partir da análise ora proposta.

A revisão sistemática discutida neste artigo tem sido conduzida em sua maior parte a
partir de materiais obtidos do Scopus. A escolha por esta base de dados se baseou em
outros exemplos de revisão sistemática de literatura no campo das Ciências Sociais
(CAMPBELL et al., 2017; KELLY, 2011; MARTÍN GARCÍA et al., 2021) as quais avaliaram
o Scopus como tendo impacto científico relevante no campo. Nos próximos itens serão
apresentados em maiores detalhes a estratégia metodológica adotada e a discussão inicial
de resultados, incluindo-se aspectos de terminologia e sua relevância para o campo,
características significativas e convergentes entre práticas diversas que justificam o uso
do termo contra-mapeamento de forma ampla, bem como potencialidades e limitações
frequentemente encontradas na literatura consultada.

• 6
METODOLOGIA
A busca sistemática detalhada nesta seção teve como principal objetivo possibilitar uma
análise crítica acerca da literatura científica relacionada a práticas de contra-mapeamento
no contexto de lutas urbanas. Dessa forma, procurou-se melhor compreender o que tem
sido considerado como conteúdo relevante no campo, bem como as teorias, métodos e
resultados publicados, enquanto ao mesmo tempo buscou-se identificar possíveis lacunas
na literatura existente. Ademais, procurou-se verificar tanto quanto possível desde
quando práticas de contra-mapeamento tem sido tema recorrente em trabalhos
acadêmicos, com quais contextos estes se relacionam, e quais são algumas das possíveis
vias para futuras discussões sobre este assunto.

O acesso à base de dados Scopus foi realizado por meio do Portal de Periódicos da CAPES. 5
A ferramenta de busca na internet Google Scholar também foi utilizada para pesquisas
exploratórias iniciais, devido ao seu conteúdo multidisciplinar, bem como abundância de
fontes de consulta (Khasba & Giles, 2014 apud Campbell et al., 2017, p. 3)6. A estratégia
de busca incluiu ainda a seleção de referências a partir da leitura de artigos previamente
selecionados (apenas quando estas eram mencionadas ao longo do texto) e discussões
com pares, em diferentes oportunidades.

Protocolo de busca e questões para o levantamento sistemático


Em um primeiro momento (identificado como Fase 1), uma busca exploratória no Google
Scholar permitiu identificar algumas das bases de dados mais apropriadas para revisões
sistemáticas de literatura científica no campo das Ciências Sociais, bem como alguns dos
métodos e estratégias adotadas. Assim, além dos nomes das bases de dados consultadas,
foram verificados protocolos adotados, operadores e conectores booleanos, seleção de
palavras-chave, critérios de elegibilidade, dentre outros.7 Este processo informou a
elaboração do seguinte procedimento geral para realização da revisão sistemática:

A) Realizar busca exploratória de palavras-chave e outros termos.


B) Elaborar a expressão de busca.

5
O Portal de Periódicos da CAPES soma “mais de 49 mil periódicos com texto completo e 455 bases de
dados de conteúdos diversos, como referências, patentes, estatísticas, material audiovisual, normas
técnicas, teses, dissertações, livros e obras de referência.” Portal de Periódicos da CAPES
<https://bit.ly/3N2TjKm> Acesso em 05 jul. 2022.
6
O Google Scholar cobria em 2014 estimadamente 100 milhões de documentos na língua inglesa. Khasba,
M., & Giles, C. (2014). The number of scholarly documents on the public web. PLOS ONE 9 (5), e93949.
Doi:10.1371/journal.pone.0093949
7
A expressão de busca ["systematic review" OR "systematic literature review" AND ("social sciences" OR
"human sciences")] foi elaborada pela autora e aplicada para fins de identificação de artigos contendo os
termos selecionados em seus títulos. No entanto, uma vez que esta busca excede o escopo do artigo
proposto, a apresentação de resultados e discussão se limitará à Fase 2, adiante.

• 7
C) Definir filtros e critérios de elegibilidade.
D) Realizar busca.
E) Salvar o histórico de buscas.
F) Arquivar todos os resultados recuperáveis (isto é, passíveis de serem acessados, com
texto completo) em um gerenciador de referências e citações.8
G) Excluir resultados redundantes.
H) Primeira etapa de triagem: títulos.
I) Segunda etapa de triagem: resumos.
J) Leitura completa de artigos selecionados.

A busca sistemática para o tema específico (contra-mapeamento e termos correlatos)


será endereçada como Fase 2. Como previamente mencionado, seu principal objetivo foi
melhor compreender a relevância acadêmica, conteúdo e contextualização do tema ao
longo do tempo, bem como possivelmente identificar lacunas para discussões futuras. As
seguintes questões foram propostas como forma de estruturar a análise posterior:

Desde quando o tema vem sendo publicado em formato científico?


Quais são os períodos mais relevantes em termos de publicações?
Quais são os tópicos de discussão mais relevantes?
Quais contextos ou regiões têm sido mais frequentemente discutidos em publicações?

A Fase 2 também incluiu uma etapa de pesquisa exploratória com o objetivo de identificar
alguns dos termos mais utilizados em referência ao tópico de interesse (contra-
mapeamento). Apenas em poucas ocasiões este processo incluiu a leitura de textos
completos, uma vez que a maior parte dos termos foi selecionada a partir de títulos,
resumos e palavras-chave. Outros termos foram utilizados para refinar os resultados de
busca no que diz respeito à precisão (ou seja, como forma de limitar o número de
documentos identificados, viabilizando assim sua análise pela pesquisadora). Estes se
relacionaram ao contexto de interesse, aos objetivos dos processos de mapeamento e ao
conteúdo das publicações (incluindo-se outras revisões sistemáticas acerca do tema). O
Quadro 1 apresenta os termos inicialmente selecionados.9 As palavras-chave foram
escritas na língua inglesa a fim de ampliar tanto quanto possível a capacidade de
descoberta da base de dados – sem com isso restringir os resultados a documentos
redigidos na língua inglesa, como se verá adiante.

8
Para os fins desta revisão sistemática, o aplicativo gratuito Zotero foi utilizado como gerenciador de
citações e referências.
9
Em “tópico de interesse”, os únicos termos inseridos como teste (isto é, propostos pela autora e não
identificados nas fontes recuperadas) foram “insurgent mapping” e “insurgent cartography”.

• 8
Tópico de Interesse Contexto Objetivo Conteúdo

Alternative Urban- Alternative narratives Methods


Critical Social movements Legitimation Strategies
Counter Movements Strengthening Tools
Insurgent Insurgencies Systematic review
Participatory Struggles Systematic literature
Community Squatting review
Social
-mapping
-cartography

Quadro 1: Termos selecionados e propostos. Fonte: da autora.

Elaboração e teste das expressões de busca


A elaboração das expressões de busca foi realizada seção por seção (de acordo com o
inicialmente previsto no Quadro 1) de forma a testar a sensibilidade do banco de dados
(número de publicações identificadas) em relação a cada grupo de palavras-chave.
Nenhum filtro temporal foi aplicado, em consonância com as questões previamente
apresentadas. A expressão de busca #1 foi utilizada para realizar a busca sistemática por
fontes bibliográficas acerca do tema proposto e é composta pelas seções A e B. A
expressão de busca #2, por sua vez, foi utilizada para buscar e identificar outras revisões
sistemáticas existentes acerca do tema.

- Expressão de busca #1, seção A: tópico de interesse

Termos que deveriam aparecer no título das publicações, uma vez que se relacionam ao
tema central de pesquisa. São os termos listados na coluna “tópico de interesse” no
Quadro 1. O símbolo asterisco (*) foi utilizado para incluir uma maior possibilidade de
variações dos termos, resultando em 644 documentos identificados:

TITLE("alternative map*" OR "critical map*" OR "counter map*" OR "insurg* map*" OR "particip*


map*" OR "communit* map*" OR "social map*") OR TITLE("alternative cartograph*" OR "critical
cartograph*" OR "counter cartograph*" OR "insurg* cartograph*" OR "particip* cartograph*" OR
"communit*cartograph*" OR "social cartograph*")

Em seguida, um primeiro filtro foi aplicado, com o objetivo de limitar os resultados a


artigos de periódicos, artigos completos publicados em eventos, capítulos de livros e
livros.10 Essa operação reduziu o número de documentos identificados para 599 e um
novo trecho foi automaticamente adicionado à expressão de busca:

10
As outras opções disponíveis e não utilizadas eram resenha, editorial, nota, pesquisa resumida, carta,
indefinido.

• 9
AND (LIMIT-TO (DOCTYPE,"ar") OR LIMIT-TO (DOCTYPE,"cp") OR LIMIT-TO (DOCTYPE,"ch") OR LIMIT-
TO (DOCTYPE,"bk"))

A seguir, um segundo filtro foi aplicado para proporcionar maior precisão à busca, ao
limitar as áreas de conhecimento a Ciências Sociais, Artes e Humanidades, e
Multidisciplinar. Essa operação resultou em 366 resultados, bem como o trecho a seguir
foi adicionado à expressão de busca:

AND (LIMIT-TO (SUBJAREA,"SOCI") OR LIMIT-TO (SUBJAREA,"ARTS") OR LIMIT-TO


(SUBJAREA,"MULT"))

Finalmente, as palavras-chave previamente selecionadas foram testadas, de forma a


avaliar a possibilidade de simplificar ou reduzir o número de termos de busca. Esse
procedimento consistiu em excluir palavras-chave da expressão de busca uma a uma,
seguido da realização de uma nova busca cada vez que uma exclusão era realizada. Os
únicos termos removidos que não resultaram em um menor número de documentos
encontrados foram “insurg* map*”, “insurg* cartograph*” e "communit*cartograph*".
Dado o propósito de simplificar a expressão de busca, tomou-se a decisão de excluir os
termos assim identificados.

- Expressão de busca #1, seção B: contexto

A seção B da expressão de busca #1 foi composta por termos que deveriam constar do
título, resumo ou palavras-chave das publicações, uma vez que se referiam ao contexto
almejado pela busca sistemática – nomeadamente, fenômenos urbanos. Estes, portanto,
são aqueles listados na coluna “contexto” do Quadro 1. Este procedimento foi realizado
também como estratégia para proporcionar maior precisão à busca, em especial devido
à limitação de pessoal disponível para análise do material. 11 A adição resultou em 55
documentos descobertos:

AND TITLE-ABS-KEY("urban") OR TITLE-ABS-KEY("urban" AND("social movement*" OR "movement*"


OR "insurgenc*" OR "struggl*" OR "squat*"))

No entanto, uma vez que o procedimento de testagem de palavras-chave foi aplicado a


esta seção da expressão de busca, a remoção do primeiro termo “urban” resultou em
apenas três documentos descobertos. Ao mesmo tempo, a subtração dos termos
restantes não impactou o número de documentos descobertos. Dessa forma, decidiu-se
utilizar a forma simplificada AND TITLE-ABS-KEY("urban"), a qual resultou nos mesmos
55 documentos descobertos utilizando-se a expressão completa. Finalmente, um filtro de
linguagem foi aplicado, limitando os documentos àqueles publicados nas línguas inglesa,
portuguesa e espanhola, de domínio da autora – resultanto em 52 documentos

11
A busca sistemática aqui descrita foi realizada somente pela autora, sem a participação de outras/os
pesquisadoras/es.

• 10
descobertos.12 O resultado final da expressão de busca #1, incluindo as seções A e B,
utilizada no Scopus é a que se apresenta a seguir:

TITLE("alternative map*" OR "critical map*" OR "counter map*" OR "particip* map*" OR "communit*


map*" OR "social map*") OR TITLE("alternative cartograph*" OR "critical cartograph*" OR "counter
cartograph*" OR "particip* cartograph*" OR "social cartograph*") AND TITLE-ABS-KEY("urban") AND
(LIMIT-TO (DOCTYPE,"ar") OR LIMIT-TO (DOCTYPE,"cp") OR LIMIT-TO (DOCTYPE,"ch") OR LIMIT-TO
(DOCTYPE,"bk")) AND (LIMIT-TO (SUBJAREA,"SOCI") OR LIMIT-TO (SUBJAREA,"ARTS") OR LIMIT-TO
(SUBJAREA,"MULT")) AND (LIMIT-TO (LANGUAGE,"English") OR LIMIT-TO (LANGUAGE,"Spanish") OR
LIMIT-TO (LANGUAGE,"Portuguese"))

Embora os campos “objetivo” e “conteúdo” do Quadro 1 incluam termos relevantes para


análise e discussão desta busca sistemática, optou-se por não os inserir, em sua maioria,
na expressão de busca. Essa decisão se baseou principalmente em dois fatores: 1)
considerou-se que 52 documentos eram passíveis de serem triados, tanto em relação aos
seus títulos quanto seus resumos, por apenas uma pessoa, dentro do limite de tempo
disponível para a realização da pesquisa (uma maior precisão da busca não era
necessária); e 2) o uso de termos tão específicos poderia não ser suficientemente
abrangente, ou mesmo resultar em parcialidade da análise.

- Expressão de busca #2: outras revisões sistemáticas acerca do tópico

A expressão de busca #2 foi utilizada como tentativa de se identificar outras revisões


sistemáticas já existentes acerca do tema de interesse (como previsto no Quadro 1). O
procedimento consistiu em adicionar um novo trecho à expressão de busca #1, seção A,
conforme se apresenta a seguir. Nesse caso, no entanto, optou-se por não especificar o
contexto, isto é, por não limitar a busca a documentos que continham o termo “urban”
em seus títulos, resumos ou palavras-chave, de forma a aumentar a sensibilidade da
busca (ampliando tanto quanto possível o número de documentos identificados). A busca,
no entanto, resultou em apenas dois documentos:13

TITLE("alternative map*" OR "critical map*" OR "counter map*" OR "particip* map*" OR "communit*


map*" OR "social map*") OR TITLE("alternative cartograph*" OR "critical cartograph*" OR "counter
cartograph*" OR "particip* cartograph*" OR "social cartograph*") AND TITLE-ABS-KEY(“systematic
review*” OR “literature review*” OR “systematic literature review*”) AND (LIMIT-TO (DOCTYPE,"ar")
OR LIMIT-TO (DOCTYPE,"cp") OR LIMIT-TO (DOCTYPE,"ch") OR LIMIT-TO (DOCTYPE,"bk")) AND
(LIMIT-TO (SUBJAREA,"SOCI") OR LIMIT-TO (SUBJAREA,"ARTS") OR LIMIT-TO (SUBJAREA,"MULT"))

Triagem e critérios de elegibilidade


Das 54 publicações encontradas (52 decorrentes da expressão de busca #1 e duas da
expressão de busca #2), apenas duas não foram possíveis de serem recuperadas (ou

12
Busca conduzida em 19 e 20 de abril de 2022.
13
Busca realizada em 20 de abril de 2022

• 11
seja, o texto completo não era acessível para a autora). Uma vez que não foram
identificados documentos redundantes no gerenciador de citações e referências (Zotero),
todas as 52 publicações restantes foram sujeitas a duas rodadas de triagem.
Primeiramente, seus títulos foram verificados com o objetivo de identificar documentos
que pudessem estar claramente fora do escopo da pesquisa – nenhum foi encontrado. A
seguir, a análise qualitativa dos resumos permitiu selecionar documentos para leitura dos
textos completos. Estes foram selecionados quando 1) continham discussões amplas
acerca do tema, do ponto de vista teórico, conceitual ou metodológico; ou 2)
apresentavam análises empíricas de casos em contextos urbanos, e relacionavam contra-
mapeamento (ou outros termos similares, como se verá adiante) a iniciativas de base
comunitária, coletivas, participativas, insurgentes ou análogas.

Todos os documentos que não contemplaram as condições acima foram excluídos. Em


sua maioria, estes se referiam a contextos majoritariamente rurais ou estudos
estritamente voltados à coleta de dados. Por outro lado, optou-se por reter para análise
publicações relacionadas a iniciativas governamentais ou institucionais que tinham como
foco grupos marginalizados, excluídos ou desfavorecidos, ou a outras questões que
envolvessem de alguma forma processos participativos. Esta escolha foi feita com o
intuito de melhor compreender eventuais diferenças em termos conceituais,
metodológicos ou de resultados, em relação a iniciativas populares. Após a triagem foram
selecionados ao todo 26 publicações para leitura dos textos completos e análise em
profundidade. Os Quadros 2 e 3 a seguir detalham os critérios de busca bem como o
número de publicações excluídas e selecionadas para análise, respectivamente.

Base de dados Filtros aplicados


Busca
Nome Plataforma Busca Documento Área Linguagem
#1 Título Artigo de periódico Ciências Sociais Inglês

& Artigo de conferência Artes e Espanhol


Humanidades
Scopus Elsevier
Título- Capítulo de livro Português
#2 palavras- Multidisciplinar _
chave- Livro
resumo
Quadro 2: Critérios de busca. Fonte: da autora.

Documentos
Excluídos após
Excluídos antes da triagem
Busca triagem Selecionados
Encontrados Triados
Não Títulos Resumos para análise
Redundantes
recuperáveis
#1 52 0 2 50 0 25 25
#2 2 0 0 2 0 1 1
Quadro 3: Número de publicações excluídas e selecionadas para análise. Fonte: da autora.

A seguir será apresentada a discussão inicial de resultados já alcançados a partir da


análise em andamento dos documentos selecionados.

• 12
ANÁLISE E DISCUSSÃO DE RESULTADOS PRELIMINARES
Em relação às questões básicas elaboradas para a realização da revisão sistemática de
literatura, podem ser feitos alguns apontamentos iniciais. Os documentos identificados
na base de dados Scopus a partir da expressão de busca sugerida iniciam nos anos 2000,
sendo que há um claro incremento do número de publicações científicas acerca do tema
nos últimos 10 anos, representando mais de 95% do total de documentos selecionados.
Assim, é possível perceber um crescente interesse pelo tema na comunidade científica.
Do total de documentos salvos ao final da busca, cerca de 50% são provenientes de
países da Europa, aproximadamente 30% da América do Norte, e 14% da América do
Sul.14 Esses dados refletem um importante desequilíbrio na literatura científica em torno
do tema proposto em relação ao Sul e ao Norte globais. Se por um lado existem exemplos
relevantes de processos de contra-mapeamento em países do Sul (ver por exemplo
AYSON, 2018; COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO DO ACRE; GAVAZZI, 2018; ELSHERIF, 2018;
FÓRUM DE JUVENTUDES DO RIO DE JANEIRO, 2018; ICONOCLASISTAS, 2018), por outro
há ainda uma carência de estudos e publicações nesses contextos que permitam uma
melhor compreensão das práticas e métodos utilizados, que por sua vez fundamentem a
formulação de teorias próprias.

Em relação aos tópicos de discussão considerados relevantes, a análise dos documentos


já realizada permitiu a sistematização de alguns princípios e convergências entre
diferentes formas e processos de contra-mapeamento. A exemplo, estes são
frequentemente considerados como ferramentas de pensamento, criatividade e
comunicação de narrativas próprias de forma coletiva, para suporte e fortalecimento de
demandas localmente constituídas (ELSHERIF, 2018; ICONOCLASISTAS, 2018; TAYLOR;
HALL, 2013). Outras vezes, são vistos como possibilidades de romper com narrativas
cartográficas enrijecidas ao expor histórias em disputa (ORTEGA et al., 2018) ou de
combater silenciamentos impostos (de forma violenta) em áreas periféricas ou
segregadas na cidade (FÓRUM DE JUVENTUDES DO RIO DE JANEIRO, 2018). Contra-
mapeamentos também tem sido considerados como parte importante de estratégias por
maior justiça sócio-espacial, ou mesmo de processos pedagógicos que possibilitam a
reflexão crítica acerca de fenômenos espaciais (TAYLOR; HALL, 2013), dentre outros.
Finalmente, foi possível identificar alguns limites inerentes à coletivização das práticas de
mapeamento em contextos de lutas urbanas, como se apresentará em maiores detalhes
adiante.

14
Documentos encontrados por país ou território: a) Europa – Inglaterra 9, Itália 4, Alemanha 3, Espanha
2, Irlanda 2, Suíça 1, Portugal 1, Noruega 1, Holanda 1, França 1, Finlândia 1, Dinamarca 1, República
Tcheca 1; b) América do Norte – Estados Unidos 13, Canada 3, México 2; c) América do Sul – Brasil 3,
Chile 3, Argentina 2.

• 13
Terminologia e conteúdo
Primeiramente e de forma geral destaca-se a grande pluralidade de termos identificados
em referência a práticas de mapeamento e seus resultados, quando estas implicam em
processos coletivos de representação cartográfica de um dado território – ultrapassando
em muito os termos listados na seção metodológica do presente artigo. HALDER &
MITCHEL (2018) argumentam que isso se relaciona a quão aberto e diverso o campo se
tornou, devido em especial às práticas de grupos sem treinamento cartográfico formal.
Acrescente-se que embora variem em escala, processos de contra-mapeamento são em
geral intimamente relacionados a demandas específicas e localmente constituídas.

Como consequência, há uma notável pluralidade de objetivos, métodos, estratégias e


resultados. Ademais, ao longo desses processos podem ser necessários ajustes os mais
diversos, relacionados às expectativas dos grupos participantes, obstáculos, imprevistos
ou novas oportunidades. Tudo isso torna o contra-mapeamento um tipo de prática
inerentemente criativa, em parte também justificando o uso de terminologia variável para
nomear diferentes processos e criações singulares. O Quadro 4 sistematiza todos os
termos encontrados até o momento.

Ocorre no entanto que, em grande parte, estes termos são utilizados indistintamente,
muitas vezes como sinônimos. Se, por um lado, isso reflete um campo de ação vibrante
e multifacetado, por outro há ainda uma carência de elaboração de conceitos bem
fundamentados, que esclareçam o significado e conteúdo que se deseja atribuir aos
termos utilizados. Argumenta-se que esta é uma questão importante não apenas do ponto
de vista acadêmico, no sentido de melhor sistematizar o conhecimento que se desenvolve
neste campo em formação, mas também em termos de socialização deste conhecimento
entre diferentes iniciativas e grupos, e sua adequada comunicação.

Diferentemente, foi observado também o emprego de determinados termos de forma


abrangente o suficiente para serem considerados como categorias gerais (no mesmo
sentido sugerido no presente artigo, ao empregar o termo contra-mapeamento). Termos
usados dessa forma (marcados em negrito e com suas respectivas fontes listadas no
Quadro 4), apontam para uma percepção de que embora muito diversas, essas práticas
compartilham características significativas suficientes para justificar o seu agrupamento
sob a mesma expressão. Embora nem sempre apresentados dessa forma, os principais
exemplos encontrados foram contra-mapeamento, contra-cartografias, cartografia crítica
e mapeamento crítico. Por outro lado, mesmo nesses casos os termos são raramente
diferenciados entre si, não tendo sido identificada qualquer proposta de sistematização
do campo em termos de terminologias, seus conteúdos e significados.

• 14
Termo Fonte Termo Fonte

Alternative (HALDER; MITCHEL, 2018) Digital (COOK; COCHRANE; CORBETT, 2020)


Cartography Geographies
Artistic (MESQUITA, 2018) Ethno (HALDER; MITCHEL, 2018)
Cartography Cartography
Balloon Mapping (MANSELL; DAKHLOUL; ISMAIL, Ethnomapping (COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO DO ACRE;
2018) GAVAZZI, 2018; HALDER; MITCHEL,
2018)
Bioregional (HALDER; MITCHEL, 2018) Green (HALDER; MITCHEL, 2018)
Mapping Mapping
Citizen (COOK; COCHRANE; CORBETT, Indigenous (BROWN; KYTTÄ, 2018; COMISSÃO
Cartography 2020) Mapping PRÓ-ÍNDIO DO ACRE; GAVAZZI,
2018; COOK; COCHRANE; CORBETT,
2020)
Civic Mapping (DEVULAPALLI; JONNALAGADDA, Locational (COOK; COCHRANE; CORBETT, 2020)
2018) Crowdsourcing
Cognitive (MESQUITA, 2018) Mapping Back (HALDER; MITCHEL, 2018)
Mapping
Collaborative (GEOCOMUNES, 2018) Map Activism / (GORDON; ELWOOD; MITCHELL,
Cartography Maptivism 2016)
Collaborative (BROWN; KYTTÄ, 2018; COOK; Neogeography (COOK; COCHRANE; CORBETT, 2020)
Mapping COCHRANE; CORBETT, 2020;
GEOCOMUNES, 2018; GORDON;
ELWOOD; MITCHELL, 2016)
Collective (HALDER; MITCHEL, 2018) Participatory (COOK; COCHRANE; CORBETT, 2020)
Mapping Action
Mapping
Community- (COOK; COCHRANE; CORBETT, Participatory (BROWN; KYTTÄ, 2018)
based Mapping 2020) Three-
Dimentional
Modeling
Community (COOK; COCHRANE; CORBETT, (Public) (BROWN; KYTTÄ, 2018; COOK;
Information 2020) Participatory COCHRANE; CORBETT, 2020;
Systems Mapping GORDON; ELWOOD; MITCHELL, 2016;
HALDER; MITCHEL, 2018; LITERAT,
2013; MOSS; IRVING, 2018)
Community (ARCHER; LUANSANG; (Public) (BROWN; KYTTÄ, 2018; COOK;
Mapping BOONMAHATHANAKORN, 2012; Participation / COCHRANE; CORBETT, 2020;
COOK; COCHRANE; CORBETT, HALDER; MITCHEL, 2018)
Participatory
2020; DEVULAPALLI;
JONNALAGADDA, 2018; HALDER;
GIS
MITCHEL, 2018)
Counter- (HALDER; MITCHEL, 2018; Qualitative (COOK; COCHRANE; CORBETT, 2020)
Cartography/ KOLLECTIV ORANGOTANGO+, GIS
Cartographies / 2018; MESQUITA, 2018; ORTEGA
et al., 2018)
Cartographic
Counter- (HALDER; MITCHEL, 2018) Radical (HALDER; MITCHEL, 2018)
Hegemonic Cartography
Mapping
Counter- (COOK; COCHRANE; CORBETT, Remapping (HALDER; MITCHEL, 2018)
Mapping / Map / 2020; ELSHERIF, 2018; HALDER;
MITCHEL, 2018; MESQUITA,
Maps
2018; ORTEGA et al., 2018;
TAYLOR; HALL, 2013)
Conflict Mapping (COOK; COCHRANE; CORBETT, Social (FÓRUM DE JUVENTUDES DO RIO DE
2020) Cartography JANEIRO, 2018)
Critical (HALDER; MITCHEL, 2018; Subversive (HALDER; MITCHEL, 2018)
Cartography MESQUITA, 2018; ORTEGA et al., Mapping
2018)
Critical (DEVULAPALLI; JONNALAGADDA, Volunteered (BROWN; KYTTÄ, 2018)
Mapping 2018; HALDER; MITCHEL, 2018; Geographic
MESQUITA, 2018) Information
Systems
Crowdsourced (COOK; COCHRANE; CORBETT,
Cartography 2020)

Quadro 4: Terminologia. Fonte: da autora.

• 15
Ressalta-se no entanto que, embora com aplicabilidade mais restrita, o termo
mapeamento participativo teve suas possibilidades enquanto disciplina coerente e
unificada problematizadas por COOK;COCHRANE; CORBETT (2020). Por outro lado, cabe
observar que diferente dos demais termos de maior abrangência identificados que se
referem a variadas formas de processos coletivos de mapeamento, e por mais obvio que
possa parecer, mapeamento participativo se limita a “práticas participativas que
incorporam uma dimensão espacial” (COOK; COCHRANE; CORBETT, 2020, p. 24 tradução da
autora). Esta é uma diferenciação significativa uma vez que, como demonstrado na
literatura consultada, práticas coletivas não são, nesse caso, sinônimo de participação
popular. Como se apresentará em maiores detalhes a seguir, nos trabalhos consultados
a noção de práticas coletivas variou de processos altamente inclusivos em todas as suas
fases, a práticas individuais de mapeamento seguidas da distribuição gratuita de seus
resultados ao público geral.

Características fundamentais compartilhadas


Como mencionado anteriormente, formas coletivas de mapeamento de base comunitária
em contexto de lutas urbanas podem variar em escala, formato, conteúdo, objetivos,
métodos, estratégias. Não obstante esta ampla variedade, a literatura consultada permite
identificar certos princípios fundamentais compartilhados entre estas práticas que, em
grande medida, justificam categorizá-las, como se convencionou neste artigo, enquanto
diferentes formas de contra-mapeamento. De forma sintética, sugere-se que estes
referem-se em especial às ideias assim sistematizadas: 1) se mapas podem ser
instrumentalizados em favor do estabelecimento de relações de poder de alguns grupos
sobre outros, o contra-mapeamento representa uma possibilidade de subverter formas
opressivas de poder; 2) esta potência está estreitamente relacionada a processos
coletivos, preferencialmente com o envolvimento dos grupos interessados em todas as
suas etapas; 3) embora práticas de contra-mapeamento tenham na produção de um
mapa o seu produto final, há em geral uma visão holística sobre o tema que valoriza todo
o processo de discussão, elaboração e comunicação, em suas diferentes etapas.

Processos de contra-mapeamento em geral partem de um posicionamento crítico que


relaciona representações cartográficas tradicionais a formas opressoras de controle
territorial e social. Assim, apesar de sua aparência de neutralidade e objetividade, estas
se tratam, na verdade, de representações de visões de mundo dominantes, contribuindo
para a produção (e reprodução) de realidades opressoras (HALDER; MITCHEL, 2018).
Mapas podem então ser instrumentalizados em favor de formas de dominação e
exploração, ao criar representações hegemônicas do espaço (ICONOCLASISTAS, 2018;
MESQUITA, 2018). Práticas de contra-mapeamento seriam o contraposto a esta suposta
neutralidade na produção de mapas, por meio de visões plurais e perspectivas
diversificadas de comunidades locais (MESQUITA, 2018; ORTEGA et al., 2018).

• 16
Nesse sentido, é possível afirmar que em geral se reconhece e se aposta em uma
capacidade coletiva dessas práticas para combater ou questionar formas opressivas de
poder. Importante salientar, no entanto, que este caráter coletivo pode apresentar
diferentes significados, graus e níveis de integração a comunidades locais. Assim, em
suas formas mais limitadas, práticas em grupos muito reduzidos, com participação
indireta, ou mesmo mapeamentos individuais tem sido eventualmente consideradas como
um tipo de contra-mapeamento. Em geral isto se dá quando estas são articuladas à
inserção de informações coletadas por agentes externos a um dado território (por
exemplo, por meio de entrevistas ou questionários) ou à distribuição e recepção coletiva
dos mapas produzidos, de forma gratuita (como se exemplifica em AMANN; DAYRIT, 2018;
MESQUITA, 2018).

Estas, no entanto, representam uma minoria de casos na bibliografia consultada. Em


geral, o que se observa são processos mais abrangentes, com participação direta do grupo
interessado na elaboração do mapeamento em si, e também em outras etapas anteriores
ou posteriores ao mesmo. A depender do caso, estas podem incluir a realização de
discussões, entrevistas, apresentações, interlocuções com outros agentes ou grupos
(comunitários, institucionais, governamentais etc), disseminação de formas de fazer,
socialização de métodos e estratégias, compartilhamento de ferramentas e muitos
outros.

Nesse sentido, em práticas de contra-mapeamento o mapa não é um fim em si mesmo.


Ao contrário, estas implicam em processos com diversas etapas. A depender dos objetivos
que se deseja alcançar, das características dos grupos participantes, do contexto a partir
do qual as atividades se realizam, dentre outros, atividades anteriores ou posteriores ao
mapeamento podem ter diferentes funções. Estas podem, por exemplo, ser consideradas
como parte integrante em métodos de pesquisa ou ferramentas pedagógicas, atreladas a
uma melhor compreensão de realidades sócio-espaciais (como exemplificado em
GORDON; ELWOOD; MITCHELL, 2016; LITERAT, 2013; ORTEGA et al., 2018; TAYLOR;
HALL, 2013). Podem ainda contribuir para reflexão, socialização de conhecimento e
mobilização comunitária (como em COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO DO ACRE; GAVAZZI, 2018;
MANSELL; DAKHLOUL; ISMAIL, 2018). Ou mesmo servir à construção de narrativas
próprias que legitimem ou fortaleçam demandas, ao contar a história a partir dos grupos
atuantes em um dado território (como descrevem BROWN; KYTTÄ, 2018; ELSHERIF,
2018) – dentre outros.

Principais limites identificados


Se processos de contra-mapeamento são em geral considerados em suas diversas etapas,
há no entanto uma carência em termos de apresentação em profundidade de aspectos
metodológicos e estratégias adotadas nas publicações consultadas. De forma similar ao
que se sugere em relação à necessidade de melhor estabelecer o conteúdo e significado

• 17
dos termos utilizados para se referir a essas práticas, descrições adequadas das maneiras
como se deram os processos analisados são essenciais ao desenvolvimento do campo.
Não apenas do ponto de vista epistemológico de construção de conhecimento científico,
mas como forma de contribuir diretamente para a socialização desta e de outras formas
de conhecimento, constituídas na prática, a partir das experiências relatadas. Da mesma
forma, muitas vezes limites, obstáculos e contradições inerentes às práticas de contra-
mapeamento não são mencionadas ou são apenas brevemente endereçadas. Em geral,
impactos decorrentes destas questões ou a forma como estas foram encaminhadas não
são discutidas em detalhes (ou sequer apresentadas). Uma melhor compreensão dos
limites e contradições inerentes ao campo, bem como das estratégias adotadas no seu
enfrentamento podem contribuir para a continuidade de processos de contra-
mapeamento, sua capacidade obter resultados e mesmo de alcançar maiores escalas.

Quando citadas, questões conflituantes se referiam em sua maioria a ética e segurança


de dados mapeados15, incluindo questões relativas a informações sensíveis, possibilidade
de uso indesejado dos mapas produzidos, titularidade e propriedade intelectual de dados
(ver, por exemplo, BROWN; KYTTÄ, 2018; HALDER; MITCHEL, 2018; ICONOCLASISTAS,
2018; MANSELL; DAKHLOUL; ISMAIL, 2018; MESQUITA, 2018; MOSS; IRVING, 2018;
ORTEGA et al., 2018; PAPPSATT-KOLLEKTIV; MORAWSKI, 2018). Foram mencionadas
ainda possibilidades de desequilíbrios internos de poder, necessidade de gerenciamento
de interesses conflitantes, risco de instrumentalização dos processos por grupos
poderosos, dificuldades no estabelecimento de relações de confiança e de se superar
sentimentos de ceticismo por parte das comunidades participantes (BROWN; KYTTÄ,
2018).

Alguns autores têm apontado ainda para questões relacionadas à qualidade dos dados
mapeados, tais como acuidade e precisão, não apenas do ponto de vista técnico, mas em
especial da adequada compreenção e comunicação de mensagens e intenções originais
de grupos participantes. Estas podem impactar na possibilidade de se evitar distorções,
bem como de se ampliar a representatividade de amostras coletadas em relação à
comunidade como um todo (BROWN; KYTTÄ, 2018; HALDER; MITCHEL, 2018). Também
foram mencionadas questões relativas à comunicação entre participantes, inclusive
quanto à linguagem utilizada (BROWN; KYTTÄ, 2018), assim como à capacidade limitada
dos mapas de representar construções sociais e suas complexidades em constante
transformação (MOSS; IRVING, 2018). Além destas, alguns trabalhos destacaram as
condições de motivação e engajamento de participantes, bem como de disponibilidade

15
Dentre as fontes consultadas há casos tanto de mapeamentos realizados presencialmente, com ou sem
o auxílio de tecnologias computacionais, ou remotamente, por meio do uso de internet, sistema de
posicionamento global (GPS) e ferramentas computacionais as mais diversas.

• 18
de tempo e de recursos em projetos de longa duração (BROWN; KYTTÄ, 2018; ORTEGA
et al., 2018).

CONCLUSÕES
A ideia de contra-mapeamento parte de uma postura crítica acerca de representações
cartográficas tradicionalmente instrumentalizadas no contexto de estratégias de
dominação e controle territorial e social por grupos privilegiados. Nesse sentido, o termo
contra-mapeamento refere-se a diferentes práticas de mapeamento coletivo e de base
comunitária que, em contraposição às primeiras, compõem estratégias em direção a
horizontes de maior justiça sócio-espacial.

Uma revisão preliminar dos documentos selecionados a partir da busca sistemática


descrita neste artigo permitiu identificar duas abordagens principais ao tema do contra-
mapeamento, ora com ênfase em sua aplicação enquanto ferramenta política, ora
enquanto método de pesquisa e em atividades pedagógicas. Embora tenha sido
identificada uma ampla terminologia acerca do tema, o que aponta para um campo ainda
em formação, argumenta-se que princípios significativos em comum entre práticas
diversas justificam o uso do termo contra-mapeamento de forma abrangente.

Foi possível verificar um importante incremento do número de publicações científicas


acerca do tema nos últimos 10 anos, o que aponta para um correspondente interesse
pela comunidade científica. Por outro lado, há um claro desequilíbrio em termos de
número de publicações entre o Sul e o Norte globais, com significativa carência de estudos
a partir do primeiro, que fundamentem a formulação de teorias próprias. Além desta,
dentre as lacunas identificadas na literatura consultada, destaca-se a necessidade de
melhor compreenção dos termos utilizados tanto em conteúdo como significado, o que
poderia contribuir para a melhor sistematização do campo, inclusive no sentido de uma
tipologia própria.

O conhecimento em maiores detalhes dos métodos e estratégias adotadas em processos


de contra-mapeamento também constitui uma carência do campo, assim como de limites
e obstáculos enfrentados em suas diversas aplicações. A elaboração de revisões
sistemáticas acerca do tema, ainda bastante escassas, poderia contribuir para suprir esta
lacuna. Para além da sua elaboração em termos de conhecimento científico, no entanto,
destaca-se a possibilidade de contribuir para a socialização de conhecimentos adquiridos
em processos de contra-mapeamento, sua capacidade obter resultados e alcançar
maiores escalas. O que está em disputa aqui, afinal, é a potência contida nas
representações do espaço como parte de estratégias para a (re)construção de horizontes
socialmente mais justos.

• 19
REFERÊNCIAS
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• 20
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SOUZA, M. L. DE. Com o Estado, apesar do Estado, contra o Estado: os movimentos urbanos
e suas práticas espaciais, entre luta institucional e ação direta [With the State, despite the
State, against the State: the urban movements and their spatial practices, between
institutional struggle and direct action]. Cidades: Revista científica, v. 7, n. 11, p. 13–47, jun.
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TAYLOR, K. H.; HALL, R. Counter-mapping the neighborhood on bicycles: Mobilizing youth to
reimagine the city. Technology, Knowledge and Learning, v. 18, n. 1–2, p. 65–93, 2013.

• 21
FABULAR A ENCRUZILHADA:
Reflexões sobre cidade e história a partir de uma coleção de imagens
FABULATION OF A CROSSROAD
Memórias, representações, arquivos

MONTEIRO, Isadora Carraro Tavares


Doutoranda; NPGAU - UFMG
isa.tavares.monteiro@gmail.com
RESUMO

O que é possível dizer sobre Juiz de Fora tendo como ponto de partida 15
imagens de uma mesma encruzilhada? O ensaio propõe uma reflexão sobre
cidade, imagem e história a partir de uma coleção de fotografias tiradas no
cruzamento entre as ruas Halfeld e Batista de Oliveira, durante um intervalo
de pouco mais de cem anos. Partindo de seu mais recente evento emblemático
— o atentado a Jair Bolsonaro durante a campanha para as eleições
presidenciais de 2018 —, rebobino e avanço no tempo para buscar nas imagens
outros olhares sobre aquela esquina e sobre o que convencionou-se chamar
de história de Juiz de Fora. Provocada pelas reflexões de Saidyia Hartman,
Ariella Azoulay e Didi-Huberman, proponho também um exercício prático de
recorte e zoom, que se debruça sobre uma das imagens da coleção para fabular
um lugar para as mulheres e os negros na fiação dessa história.

PALAVRAS CHAVE Fabulação; Cidade; Imagem; História Urbana; Juiz de


Fora.

ABSTRACT

What is it possible to say about Juiz de Fora having 15 images of the same
crossroads as a starting point? In this essay, I propose a reflection on the
relation between city, image and history from a collection of photographs taken
at the intersection of Halfeld and Batista de Oliveira streets during an interval
of just over a hundred years. Starting from its most recent emblematic event
- the attack on Jair Bolsonaro during the campaign for the presidential elections
of 2018 – I rewind and advance in time to seek in these images different
glances on that corner and on what was agreed to be the history of Juiz de
Fora. Provoked by the thoughts of Saidyia Hartman, Ariella Azoulay and Didi-
Huberman, I also propose a practical exercise of clipping and zooming that
focuses on one of the images in the collection, to fabulate a place for women
and black people in the weave of the city’s history.

KEY-WORDS OU PALABRAS-CLAVE Fabulation; City; Image; Urban History;


Juiz de Fora.
INTRODUÇÃO

Figura 1: Constelação de imagens da esquina da Rua Halfeld com a Rua Batista de Oliveira, no centro de
Juiz de Fora. Imagens são identificadas individualmente a seguir: I. Jair Bolsonaro, instantes antes da
facada; autor desconhecido – 2018; II. Canivete distribuído como souvenir na inauguração do calçadão
da Rua Halfeld; autor desconhecido – 1975; III. Esquina das então Rua Direita e Rua do Comércio, com
Morro do Imperador ao fundo; autor desconhecido – 1910; IV. Esquina da Rua Halfeld com Rua Batista
de Oliveira, com Morro do Imperador ao fundo; autor desconhecido – 1960; V. Apreensão de bicicletas;
Bastos Barreto – 1958; VI. Olimpíadas Infantis; Acervo Simón Eugénio Sáenz Arévalo – 1956; VII.
Corrida de garçons; Arquivo Maria do Resguardo – 1964; VIII. Filme “Mulheres Liberadas”, em cartaz no
Cineart Palace; Acervo Solange Pereira Gama – 1983; IX. Parada do Orgulho Gay de Juiz de Fora; Felipe
Couri/Arquivo Tribuna de Minas – 2016; X. Desfile de 7 de setembro; Acervo Simón Eugénio Sáenz
Arévalo - Década de 1950; XI. Cartazes do movimento Salve Cine Palace; Marcela Calixto – 2017; XII.
Grande enchente de 1940; autor desconhecido – 1940; XIII. Enchente de 1952; Acervo Maria do
Resguardo – 1952; XIV. Cineart Palace é leiloado e dá lugar a uma loja de departamentos; autor
desconhecido - 2017; XV. 1ª Marcha da Visibilidade Trans JF; Estela Loth – 2022.

Encontrei as fotografias que abrem este ensaio em janeiro de 2022, durante uma busca
pelos termos Rua Batista de Oliveira e Rua Halfeld.1 O arquivo onde se deu a busca em

1
O presente trabalho foi realizado com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado Minas Gerais
(FAPEMIG).

• 1
questão é o blog independente Maurício Resgatando o Passado, site que reúne mais de
30 mil fotografias antigas de Juiz de Fora, curadas e legendadas pelo orgulhoso
proprietário do domínio, o senhor Maurício Lima. Ao clicar enter, a busca indicou
resultados na casa das centenas, nem sempre muito precisos: a rolagem da página fez
passar pela minha tela centenas de diferentes ângulos daquele cruzamento, capturados
ao longo de mais de um século, retratando cotidiano e excepcionalidades de toda
natureza: pessoas pacatas caminhando, letreiros de cafés e lojas de roupa, enchentes
recorrentes, desfiles de sete de setembro, a Parada LGBT de 2016, um Morro do
Imperador ainda sem cristo, dezenas de cartazes indicando as próximas atrações do Cine
Palace e um pequeno canivete branco, souvenir da inauguração do calçadão da Rua
Halfeld, em 1975 — imagem que o meu sistema mental de indexação ironicamente
arquiva junto com as imagens de Bolsonaro esfaqueado, naquela mesma esquina, 43
anos depois.

Foi este episódio, em específico, o grande motivador da busca. Logo após a facada que
tomou os noticiários em setembro de 2018, jornais de alta circulação se apressaram para
traçar um perfil político daquela cidade média da Zona da Mata mineira 2, em uma
tentativa de entender o contexto e o porquê de um presidenciável de extrema direita ter
sofrido um atentado na cidade que, alguns meses depois (ainda não sabiam eles), o
elegeria com 52,36% dos votos válidos (MAPA..., 2018). A minha inquietação não era
exatamente a mesma dos jornais no momento em que busquei pelas imagens, mas
sempre me intrigou, como juizforana, a participação de Juiz de Fora em acontecimentos
de escala nacional, muitos deles de natureza bastante contraditória: para além do quase
assassinato do atual presidente da república, penso na participação fundamental da
cidade na implementação do golpe militar, tendo sido o ponto de partida das tropas do
general Olímpio Morão Filho em direção ao Rio de Janeiro, em março de 1964
(MEMÓRIAS..., 2015); penso na construção da Usina de Marmelos, a primeira hidrelétrica
do país (FONSECA, 2013), publicizada aos quatro ventos como a prova física do glorioso
passado industrial que custou a alcunha de Manchester Mineira, apelido que não perde
espaço nos livros didáticos, nos jornais e no discurso público sobre a história de Juiz de
Fora até os dias de hoje; penso, em outro lado do espectro, na (hoje impensável) posição
“pioneira” da cidade na luta da população LGBT, tendo sido o primeiro município a aprovar
uma lei de “combate às práticas discriminatórias, em seu território, por orientação sexual”
(JUIZ DE FORA, 2000) e tendo recebido, em 1977, o primeiro Miss Brasil Gay, evento
incluído na agenda turística da cidade há mais de quarenta anos (BARROS, 2016).

2
O artigo Cidade palco de ataque a Bolsonaro tem tradição de apoiar PT, da Folha de São Paulo, é um
bom exemplo. (CIDADE…, 2018)

• 2
A seleção de imagens que escolhi para compor essa reflexão também é uma amostra
desse caráter político contraditório. Colocadas lado a lado, as fotografias compõem uma
dança de “avanços e retrocessos” que parece rir de qualquer noção de linearidade
histórica. Na mesma esquina, com poucos anos de diferença entre um clique e outro, há
o registro de uma apreensão de bicicletas por oficiais fardados e também o de uma corrida
de velotróis, evento que a legenda da foto atribui às Olimpíadas Infantis de Juiz de Fora;
de um lado, a parada militar em comemoração ao 7 de setembro, na década de 1950, e
de outro, a marcha da visibilidade trans, em 2021; um cinema de rua que, de uma foto
para outra, se torna uma filial recém inaugurada de uma loja de departamentos — sem,
é claro, deixar de enfrentar resistência, como indica a fotografia com os cartazes de
protesto “Salve Cine Palace!”. O irônico canivete também anuncia uma transformação: a
rua onde, um dia, transitaram carroças e depois carros, seria então um calçadão exclusivo
para pedestres, no coração da cidade — mudança que parece antecipar as ousadas
reformas urbanas europeias do século XXI.

Quantos outros movimentos ou acontecimentos políticos e culturais da cidade já haviam,


de uma forma ou de outra, passado pela esquina da Rua Halfeld com a Batista de Oliveira?
Seria possível, através das imagens de arquivo que encontramos sobre esse cruzamento,
contar uma história sobre o intervalo de mais de cem anos que elas registram? Se não
contar uma história, seria possível construir uma crítica de suas evidentes ausências e
apagamentos? Entre as camadas desse cruzamento palimpséstico, há vestígios das
mulheres, dos negros, dos operários e das sexualidades “desviantes”, a partir dos quais
uma fabulação crítica da nossa história urbana — para usar o termo de Saidyia Hartman
(2008) — possa ser construída?

Olho para essas imagens com as recomendações de Ariella Azoulay (2019) em mente:
além de observar o que mostram com clareza e de refletir sobre o que só revelam após
uma segunda ou terceira interpretação, procuro nestas imagens também o que elas se
recusam a mostrar; o que, apesar de abundar em outros registros (muitas vezes, menos
prestigiosos na hierarquia do regime das evidências), resiste a aparecer na foto. Olho
para essas imagens, também, na companhia de Saidiya Hartman (2008), com a certeza
de que o arquivo não é o suficiente para contar a história dos “vencidos” e que é preciso
trabalhar com e contra ele, simultaneamente, para começar a dar conta dessas vidas
para além da escassez de evidências históricas.

A pergunta de Didi-Huberman em “Diante do tempo” parece fazer uma boa transferência


destas questões sobre o arquivo e o tempo para o campo específico das imagens: “como
estarmos à altura de todos os tempos que essa imagem, diante de nós, conjuga em tantos
planos? E como dar conta do presente dessa experiência, da memória que ela convocava,
do futuro que ela [insinua]?” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 16). A partir das provocações
dessa pergunta, ensaio abaixo um exercício de recorte e de zoom — na imagem e no

• 3
espaço — para fabular, a partir de seus elementos, um trânsito entre os muitos tempos
que abriga em seus planos.

UM EXERCÍCIO DE FABULAÇÃO: VIAGEM NO TEMPO

Figura 2: Mulher amamentando bebê em frente ao Cine Palace, no cruzamento das


ruas Halfeld e Batista de Oliveira. Fonte: Acervo Solange Pereira Gama, 1982
(estimado).

De todas as imagens resultadas da busca, esta me chamou especial atenção. As fachadas


de mármore preto, a porta pantográfica e os cartazes denunciaram sua localização e logo
reconheci o Cine Palace, último cinema de rua de Juiz de Fora, como pano de fundo da
imagem. À esquerda, em um dispositivo especial, que parece ter sido customizado
especialmente para a ocasião, é possível ver o cartaz do filme Mulheres Liberadas
(MULHERES..., 1983), com o selo de “liberado pelo conselho superior de censura” e uma
placa que parece, ao mesmo tempo, um alerta e um chamariz publicitário: “este filme
mostra ao público cenas altamente eróticas que o tornaram um clássico”. À direita, um
homem branco de meia idade encara a câmera, um braço sobre a barriga e o outro fora
do quadro, com uma expressão no rosto de difícil leitura — talvez desagrado?
Desconfiança?

Mas é o centro da composição que atrai o meu olhar e a minha curiosidade: de pé em


frente a um dos cartazes, usando um lenço claro na cabeça e com o rosto quase
perfeitamente paralelo à lente da câmera, uma mulher negra amamenta o bebê que leva
nos braços, com a gola do vestido semiaberta e parte do seio à mostra. Repousa no chão,
ao seu lado, uma bolsa grande, talvez uma mala de viagem. Não sabemos seu nome e
nem o do bebê, se o homem que aparece na foto é um estranho ou se estavam ali juntos,

• 4
não sabemos quem estava por trás das lentes ou se o ano do clique é o mesmo ano da
estreia do filme, 1982.

Não fosse esse referencial temporal, não saberia fazer nem um palpite sobre em que
década a foto foi tirada, pois, apesar de as roupas do homem e o estilo das fontes
utilizadas na propaganda do cinema apontarem para uma direção, a figura da mulher
com o lenço e o bebê parece apontar para outra. Seu vestido tem corte e tecido simples,
muito incompatíveis com as calças jeans e as estampas que assimilei como sendo o auge
da moda nos anos 1980. Há também algo de anacrônico sobre a sua postura e a forma
como a mala espera ao seu lado. Não consigo olhar para ela sem me lembrar
imediatamente de Carolina Maria de Jesus, talvez pelo icônico lenço na cabeça, ou pela
companhia da criança, ou talvez por sentir, olhando para a foto, que as palavras que
Carolina usa para descrever a cidade em seu diário poderiam ser muito parecidas com as
que cruzam o pensamento da mulher no momento da foto. Se o corpo de Carolina aparece
sempre deslocado na sala de visita da São Paulo da década de 1960 (JESUS, 1960), a
imagem dessa mulher sobre a qual sabemos quase nada aparece também deslocada na
Juiz de Fora da década de 1980; não só deslocada no espaço, mas como se tivesse sido
fotografada em um trânsito entre tempos.

Para além disso, há outro aspecto que faz a foto se destacar entre as outras: o fato de
ser uma das poucas fotos da busca em que uma pessoa negra aparece de corpo inteiro e
no centro do quadro, indubitavelmente — se é que é possível usar essa palavra quando
o tópico é fotografia — como o sujeito que o fotógrafo queria retratar. Essa ausência
ganha outra dimensão quando ouço a pesquisadora juizforana Rita de Cássia Félix (2020)
dizer, em uma live do evento Juiz de Fora: cidade negra, realizado em 2020, que pessoas
negras não eram autorizadas a circular na chamada parte alta da Rua Halfeld durante
parte do século XX. Segundo a pesquisadora, todas as pessoas entrevistadas por ela
durante sua pesquisa de doutorado afirmaram haver uma segregação clara no centro da
cidade, que impedia a circulação de pessoas negras para além da esquina da Rua Halfeld
com a Batista de Oliveira. Além disso, ela também faz menção a diversas legislações da
primeira década do século XX que impediam que os vendedores ambulantes e outros
profissionais informais (quase em sua totalidade pessoas negras, que tinham essas
ocupações como modo de sobrevivência no pós-abolição) de estabelecer bancadas ou
postos fixos de trabalho, sendo obrigados a manterem-se sempre em movimento com
seus equipamentos e mercadorias.

Penso que esses mecanismos racistas de segregação, para além de proibirem o que
literalmente proibiam, também funcionavam como um controle eficaz de quem apareceria
ou não nas imagens da Juiz de Fora moderna, industrial e pioneira do alvorecer do século
XX. Sem acesso ao lendário footing da Rua Halfeld, não havia risco de que as lentes
registrassem esses corpos indesejáveis; se estivessem sempre em movimento, nunca

• 5
seriam capturados pela longa abertura dos sensores; seriam borrões, fantasmas,
presenças invisíveis no fundo da foto, sempre escapando do tempo do obturador.

Olhar novamente para a foto da viajante do tempo, de pé sobre a linha que um dia
segregou (e, de alguma forma, ainda segrega) brancos e negros no calçadão da rua
Halfeld, oferece a essa imagem uma profusão de novos enquadramentos. Convido, então,
para esse exercício de “ver junto”, os olhos de outras pensadoras:

1. Na companhia de Diana Taylor (2013), olho para sua figura anacrônica e para a
escolha de amamentar o bebê, ali mesmo, como performance: um gesto de
rebeldia que se perpetua nos repertórios do corpo para desafiar a sua ausência
nos arquivos;
2. Como propôs a Rainha Conga Isabel Casimira, ao olhar as fotos da construção de
Belo Horizonte3, vejo na imagem as mãos negras que construíram o Cine Palace,
que assentaram as pedras portuguesas do calçadão e que passeiam no plano da
foto com seus carrinhos e tabuleiros, rápido demais para chegar a sensibilizar o
filme;
3. Noto a ironia escancarada que provavelmente seduziu o fotógrafo — uma mulher
negra com o bebê pendendo do peito ao lado das “mulheres liberadas”, que lutam
pelo direito de usar o corpo como fonte de prazer — e penso em Butler (2003) e
na problemática da categoria mulher diante de conceitos tão diferentes de
liberação; penso também em Stengers (2018), e na possibilidade de uma
cosmopolítica feminista que habilite uma luta/mundo comum para as mulheres
(supostamente) liberadas do filme e as mulheres visíveis e invisíveis da imagem,
abraçando seus incomuns.
4. Observo nossa viajante do tempo de pé sobre aquela fronteira e ouço ecoarem os
versos de Gloria Anzaldúa (1987, p. 13): “This is her home/ this thin edge of/
barbwire”. Desejo que a Carta às mulheres escritoras do terceiro mundo tivesse
chegado até ela e que Juiz de Fora também tivesse o seu diário de Carolina.

ANACRONISMO E CONTEMPORANEIDADE
Diria Didi-Huberman (2015, p. 21) que “os contemporâneos, com frequência, se
compreendem menos do que indivíduos separados no tempo: o anacronismo atravessa
todas as contemporaneidades”. Juan Gelman, personagem de Galeano (2002), parece
achar o mesmo quando reconhece como contemporâneos um chinês, um pastor de
ovelhas e uma mulher de milhares de anos atrás. Considero esse exercício uma forma de

3
Isabel Casimira é Rainha Conga do Reinado Treze de Maio, do bairro Concórdia, em Belo Horizonte, e
companheira de pesquisa da tese de doutorado Quem vê cara, não vê ancestralidade, de Priscila Musa
(2022).

• 6
avizinhar os tempos (e os espaços, e as imagens) para buscar contemporâneos
improváveis com quem seja possível escrever, reescrever, rasurar e fabular a história.

Observar esta e as outras fotos da constelação que compõe esse cruzamento me faz
pensar no que fica dentro do quadro, no que fica de fora e no que já está lá, invisível,
esperando para ser descoberto. A ideia de Benjamin de que o passado não é algo
concluído e que ele se metamorfoseia de acordo com o presente e o futuro me soa como
um convite, nesse sentido. Somos todos viajantes no tempo. O cruzamento da Rua Halfeld
com a Batista de Oliveira é uma encruzilhada, afinal de contas, e exu matou um pássaro
ontem com uma pedra que só jogou hoje. Dizer que o Cine Palace foi o último cinema de
rua de Juiz de Fora, por exemplo, só é admissível para alguém que achou o fim do tempo
e resolveu conferir. Enquanto isso, o cine Palace só é o último cinema de rua de Juiz de
Fora se nos acomodarmos a uma versão do futuro onde não haverá nenhum outro.

O cruzamento da Rua Halfeld com a Batista de Oliveira, que assistiu em 2018 o evento
definidor do que seriam os quatro anos seguintes para o país, assistiu também, em agosto
de 2022, a abertura da segunda campanha de Jair Bolsonaro à presidência. O palanque
foi montado sobre o exato local da facada e, mesmo quatro anos depois e com um saldo
de mais de 680 mil pessoas mortas pela pandemia de Covid-19, o discurso permaneceu
o mesmo. Junto essa nova imagem à minha coleção, como um elogio à Benjamim e sua
descrença no progresso, mas também entendendo que ela faz parte da “acumulação
desigual de tempos” que é o espaço, como afirma Milton Santos (2004, p. 9). Vejo, neste
gesto, um pouco da tarefa do arquiteto urbanista e do historiador: aprender a
recortar/rasurar/avizinhar/viajar no tempo parece ser uma prerrogativa básica para fazer
cidades e história.

REFERÊNCIAS
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BARROS, Andréa K. A história da organização homossexual em Juiz de Fora. 2016. 231 f. Tese
(Doutorado em Política Social) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Política Social da
Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, 2016.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003.
CIDADE palco de ataque a Bolsonaro tem tradição de apoiar PT. Folha de São Paulo, ano 98,
n. 32666, 9 set. 2018, p. A8. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/09/cidade-palco-de-ataque-a-bolsonaro-tem-
tradicao-de-apoiar-pt.shtml>. Acesso em: 21 jul. 2022
FÉLIX, Rita de Cássia. Cidades Negras no Mundo Atlântico. Youtube, 10 nov. 2020.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=NtfaEPD0Sj4>. Acesso em: 22 jul.
2022.
FONSECA, Marcelo. Primeira hidrelétrica do país foi construída em Minas há mais de 100 anos.
Estado de Minas, ano 85, s.n., 18 maio 2013. Disponível em:
<https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2013/05/18/interna_gerais,389704/primeira-

• 7
hidreletrica-do-pais-foi-construida-em-minas-ha-mais-de-100-anos.shtml>. Acesso em 22
jul. 2022.
GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. 9ed. Porto Alegre: L&PM, 2002.
HARTMAN, Saidiya. Venus in Two Acts. Small Axe, Durham, v. 12, n. 2, p. 1-14, jun. 2008.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Livraria
Francisco Alves, 1960.
JUIZ DE FORA. Lei nº 9791, de 12 de maio de 2000. Dispõe sobre a ação do município no
combate às práticas discriminatórias, em seu território, por orientação sexual. Juiz de Fora,
MG: Câmara Municipal, 2000.
MAPA eleitoral de presidente por municípios no 2º turno. Gazeta do Povo, s.n., 28 out. 2018.
Disponível em: <https://especiais.gazetadopovo.com.br/eleicoes/2018/resultados/mapa-
eleitoral-de-presidente-por-municipios-2turno/>. Acesso em: 21 jul. 2022.
MEMÓRIAS da Repressão: Relatório da Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora/
Comissão da Verdade. Juiz de Fora: MAMM, 2015.
MULHERES liberadas. Direção: Adnor Pitanga. Produção: Caeté Filmes do Brasil Ltda. Maceió:
Scorpius Filmes Ltda., 1983.
MUSA, Priscila Mesquita. Quem vê cara, não vê ancestralidade. 2022. 481f. Tese (Doutorado
em Arquitetura e Urbanismo) — Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, 2022.
SANTOS, Milton. Pensando o espaço do homem. São Paulo: Edusp, 2004.
STENGERS, Isabelle. A proposição cosmopolítica. Revista do Instituto de Estudos
Brasileiros. Brasil, n. 69, pp.442-464, abr. 2018.
TAYLOR, Diana. O arquivo e o repertório: performance e memória cultural nas Américas.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.

• 8
LUCIO COSTA EM DIAMANTINA
especulações sobre uma viagem
LUCIO COSTA IN DIAMANTINA: speculations about a travel
Memórias, representações, arquivos

CHAGAS, Bruna Ruperto Camillo Duarte das


Graduação; Universidade de Brasília
brunaruperto@gmail.com

Orientador: ROSSETTI, Eduardo Pierrotti


Professor Adjunto; Universidade de Brasília
rossetti@unb.br
RESUMO

Este trabalho se propõe a revisitar, com atenção a detalhes e exercícios de


especulação, os eventos e circunstâncias da viagem realizada por um jovem
Lucio Costa (1902-1998) à cidade de Diamantina, Minas Gerais, nos meses
de abril e maio de 1924. Ao colocar em diálogo o acervo pessoal do arquiteto
com documentos e pesquisas sobre a história de Diamantina, torna-se
possível reconstituir aspectos materiais do ambiente urbano com o qual
Costa interagiu durante sua jornada de estudos e conjecturar acerca de suas
ações e experiências nesse período. Entre suposições e análises da
documentação, chama-se atenção para os traços de modernidade de uma
cidade com múltiplas dimensões, para além de seu patrimônio histórico e
cultural. Com isso se espera contribuir para um olhar renovado sobre um
episódio marcante para a trajetória de Lucio Costa e, por isso, para a história
da arquitetura moderna brasileira.

PALAVRAS-CHAVE Lucio Costa, Diamantina, patrimônio, viagem, história da


arquitetura.

ABSTRACT

This article aims to revisit in detail and speculate on the events and
circumstances of the trip made by a young Lucio Costa (1902-1998) to the
city of Diamantina, Minas Gerais, on the months of April and May of 1924. By
stablishing a dialogue between the architect’s personal archives and
documents and researches regarding the history of Diamantina, it becomes
possible to recreate material aspects of the urban environment with which
Costa interacted during his study expedition while also making assumptions
about his actions and experiences at the time. In between conjectures and
document analysis, we call attention to the traces of modernity of a city with
multiple dimensions, which go beyond its historic and artistic heritage. We
hope to contribute to a renewed insight into an episode that marks Lucio
Costa’s career and, in doing so, also marks the history of modern Brazilian
architecture.

KEY-WORDS Lucio Costa, Diamantina, cultural heritage, expedition, history


of architecture.

• 2
INTRODUÇÃO
Nos anos 1920, arquitetos cariocas e paulistanos propunham um debate nacional sobre
a composição arquitetônica produzida no Brasil. Em meio a outras vertentes de estilos
em voga, o neocolonial surgia com a clara preocupação de formular uma arquitetura de
cunho nacional. A estratégia, em linhas gerais, era projetar edificações se valendo dos
mesmos sentidos e elementos que outrora caracterizaram a arquitetura brasileira nos
tempos coloniais e imperiais. Entre seus formuladores e adeptos mais representativos
estavam o professor Ernesto da Cunha de Araújo Vianna, da Escola Nacional de Belas-
Artes (ENBA), e o crítico de arte José Mariano Filho, presidente da Sociedade Brasileira
de Belas Artes (SBBA).
Na altura de 1924, entre os estudante da ENBA estava Lucio Costa (1902-1998), então
com 22 anos de idade.1 Neste ano, a SBBA seleciona Lucio Costa, Nestor Figueiredo,
Nereu Sampaio e Julio Celini2 para fazer uma expedição ao interior das Minas Gerais.
Circunscritas no projeto maior da modernidade neocolonial, as viagens tinham por
finalidade a investigação da arquitetura colonial brasileira nas cidades de São João Del
Rei, Ouro Preto, Sabará e Diamantina. Lucio Costa, o mais novo, seria enviado em fins
de abril de 1924 à mais “longínqua” entre elas.
O jovem arquiteto, nascido no estrangeiro e tão acostumado a grandes deslocamentos,
ficaria marcado pelas circunstâncias e impressões da viagem à Diamantina: manteve
guardado até o fim da vida o recibo do hotel em que ficou hospedado por 26 dias.
Menciona a cidade mineira ao ser homenageado na Universidade de Brasília pelos seus
90 anos. Mais que isso, apenas 14 anos após sua visita, Lucio Costa atua em
Diamantina junto ao recém-fundado Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(SPHAN), sendo ela então a primeira dentre as cidades históricas mineiras a ser
tombada pelo órgão (GONÇALVES, 2010, p.106). Esta primeira viagem à interiorana
Diamantina é, sem sombra de dúvidas, um episódio significativo na trajetória
profissional do arquiteto e seria, ademais, situada na formação de seu pensamento e
prática projetual, cuja influência na história da arquitetura nacional é incontestável.
Diamantina surge no início da organização de suas memórias em Registro de uma
vivência, logo após um resumo da biografia e da formação na ENBA. Tal posição se
deve sobretudo pelo fato de ter sido sua primeira viagem dedicada à arquitetura, além
da primeira para as Minas Gerais e, ainda por cima, para cidades de arquitetura
colonial. O último parágrafo carrega um sentido de destino bastante característico da
autobiografia de Lucio Costa: “E mal sabia que, 30 anos depois, iria projetar nossa
capital para um rapaz da minha idade nascido ali” (COSTA, 2018, p. 27).

1
Em alguns documentos produzidos por Lucio Costa, sua data de formatura é fixada em 1922, assim
como a viagem à Diamantina. Entretanto, entre 1923 e 1925, matérias jornalísticas que tratam de
concursos, eventos e, até mesmo, publicação de notas escolares indicam que o “Sr. Lucio Costa” ainda
era estudante da ENBA.
2
Há divergências entre os relatos de Lucio Costa e informações publicadas nos jornais da época: o
primeiro, em entrevistas, indica a participação do arquiteto Ângelo Brunhs na expedição, enquanto os
jornais noticiam o envio de Julio Celini. Este trabalho levará em conta as informações de enviados e
cidades visitadas noticiadas pelos jornais, como as que constam no Correio da Manhã em 23/01/1924.

• 3
Tal conexão pode parecer relacionar apenas os personagens, ele mesmo e Juscelino
Kubitschek, mas também conecta Diamantina à Brasília, o patrimônio à arquitetura
moderna. Tais relações são reforçadas e esclarecidas em textos posteriores, como em
“’Ingredientes’ da concepção urbanística de Brasília”.3 A relação com Diamantina faz
parte, portanto, de uma noção de modernidade que não se resume a justapor, mas a
transfigurar: forma um projeto que olha, ao mesmo tempo, para trás e para frente.

“Sob seu ponto de vista, haveria uma continuidade natural entre a memória do passado,
a experiência do presente e a perspectiva do futuro. Vale dizer, o passado seria entendido
como uma realidade histórica a prolongar-se naturalmente no presente, e daí para o
futuro. Espécie de mediador entre essas instâncias, o ser moderno, apresentado como
historicamente necessário, cumpriria o propósito de afirmar a funcionalidade do passado e
indicar o conhecimento histórico como condição do nosso devir. De modo que, em última
instância, a história seria encarregada de determinar as especificidades que nos
distinguiriam, e por isso mesmo tomada não como mero registro dos feitos humanos,
mas como o próprio motor do avanço – irrefreável – em direção ao futuro”. (NOBRE,
2004, p.123)

O impacto que Diamantina causou ao arquiteto e vice-versa é mencionado em artigos e


pesquisas que possuem como objeto ou a atuação do patrimônio histórico ou o
pensamento modernista brasileiro, em especial o do próprio Lucio Costa. Este trabalho,
por sua vez, tem como principal finalidade a reconstituição mais minuciosa e material
do que foi visto e experimentado pelo arquiteto durante sua estadia em Diamantina,
partindo de informações extraídas de documentos e propondo algumas especulações.
Lucio Costa ao manter e organizar seu vasto acervo pessoal, permitiu a consulta de
informações concretas nos desenhos, cartas, fotografias e documentos, tanto de sua
viagem de 1924, quanto de outras idas e vindas pelo Brasil e mundo. Tais informações
definiram a montagem da cronologia proposta e puderam sugerir situações e
interpretações das circunstâncias da viagem. Coube à análise dos locais representados
pelo conjunto dos desenhos então produzidos estruturar o mapa com os pontos então
visitados. Os relatos posteriores do arquiteto, que reconstroem 60 anos depois a
experiência em Diamantina, revelam sua própria formulação e ponto de vista sobre o
episódio.
A expedição dos arquitetos neocoloniais às Minas Gerais foi coberta pela imprensa da
época, e o acesso digital à Hemeroteca da Biblioteca Nacional permitiu consultar o
acervo de jornais cariocas diferentes, que contribuíram sobretudo para confrontar e
validar informações. Para o mesmo serviram os jornais diamantinenses, consultados em
parte digital na Biblioteca UFMG e em parte presencial na Biblioteca Antônio Torres. A
análise dos exemplares do Pão de Santo Antônio, publicados de janeiro a junho de
1924, deram condições para a reconstituição da vida urbana em Diamantina durante as
semanas de visita de Lucio Costa, ao anunciarem quais estabelecimentos e
acontecimentos fizeram parte daqueles dias.

3
A “pureza da distante Diamantina dos anos 1920” figuraria em terceiro lugar como “ingrediente” para a
nova capital, entre gramados ingleses e viadutos nova-iorquinos, dentre outros.

• 4
Tampouco seria possível reconstituir a cidade nos anos 1920 não fossem os trabalhos
dos historiadores, colecionadores e memorialistas de Diamantina, cuja história foi
revigorada nas últimas três décadas, fruto do trabalho de um grande grupo de
pesquisadores. Em geral, todos eles se servem de alguma maneira dos escritos
deixados pelo professor e intelectual Aires da Mata Machado e pelo carpinteiro Luiz
Gonzaga dos Santos, ambos contemporâneos de Lucio Costa. Em se tratando de
historiografia e iconografia, o presente trabalho deve sobretudo à pesquisa de Dayse
Lúcide dos Santos que, em sua tese Cidades de Vidro, revela a Diamantina gravada nas
chapas do fotógrafo Chichico Alkmim (1886-1978). Santos apresenta a cidade
comercial, católica e artística, vista em imagens, justamente no período que vai dos
anos 1900 a 1940.
Esta investigação também deve ao trabalho iniciado por Luana Espig Regiani, que para
além de contextualizar a viagem de Lucio Costa no projeto neocolonial carioca e
paulistano, também organiza os desenhos produzidos pelos três arquitetos que
visitaram Diamantina e analisa em que medida a cidade serviu à ideologia moderna pela
atuação de Costa, Kubitschek e Niemeyer.

A PARTIDA: SEXTA-FEIRA, 25 DE ABRIL DE 1924


Lucio Costa era ainda estudante na ENBA no ano de 1924. Morava no bairro carioca do
Leme, afastado do centro da cidade, onde era possível ver a extensão de areia da praia
invadindo os lotes urbanos, ocupados aqui e ali pelos sobrados de famílias burguesas. 4
Morava em um deles com seus pais, irmãos e irmãs. O bonde chegava e saía pelo túnel
que atravessava a formação rochosa entre Botafogo e Copacabana. Em 1921, uma
grande ressaca abre um rombo no calçadão da praia, que logo é reconstituído. Lucio
Costa deve ter presenciado esta reforma, enquanto andava por ali e via uma paisagem
que incluía a avenida asfaltada, tráfego de carros e carroças, iluminação pública, casas
de estilo eclético, morros, Mata Atlântica e o mar. Era um ambiente de forte cheiro de
maresia (COSTA, 2018).
Em 1922, haviam acontecido o Centenário da Independência, a Exposição Internacional
e a Revolta dos 18 do Forte de Copacabana, princípio do movimento tenentista que
alteraria profundamente os rumos do país. Em 1924, o Rio de Janeiro era o Distrito
Federal do Brasil e o presidente do país, Artur Bernardes. O Morro do Castelo estava,
naquela altura, sendo desmontado.
Foi neste cenário que o arquiteto acordou no dia 25 de Abril de 1924 5, uma sexta-feira,
para se dirigir ao centro do Rio e tomar o vagão na Estação Dom Pedro II (atual Central
do Brasil), rumo ao norte das Minas Gerais, já cerrado brasileiro. Improvável que tenha
ido de bonde até a estação, mas teria sido possível não fossem suas malas: levava
bagagem suficiente para permanecer um mês em um lugar que desconhecia. Com ele

4
É possível consultar fotografias aéreas do local nos anos 1920 no portal Brasiliana Fotográfica da
Biblioteca Nacional.
5
O Imparcial publica em 26/04/1924: “seguiu ontem para a cidade mineira de Diamantina o arquiteto
Lucio Costa”.

• 5
iam, certamente, papéis, aquarelas, pincéis, lápis, réguas e materiais deste gênero, a
fim de cumprir sua missão: pesquisar e registrar elementos compositivos da arquitetura
colonial brasileira. Tinha consigo também provimentos fornecidos pela SBBA,
patrocinadora da viagem.
O comboio de Lucio Costa atravessou os estados do Rio de Janeiro e de Minas Gerais
em direção a Corinto, de onde tomaria outro ramal até a estação final, Diamantina.6 O
arquiteto comeu e dormiu nos vagões. Encontrou o poeta parnasiano Alberto de
Oliveira. O trem atravessou o subúrbio do Rio, subiu a Serra dos Órgãos, passou por
Juiz de Fora, Belo Horizonte, Cordisburgo, incontáveis estações e “trinta e tantas
horas”, até chegar finalmente na Serra do Espinhaço, única cordilheira existente em
solo brasileiro.
Começava, a partir dali, aquela que seria uma das viagens mais marcantes na memória
do arquiteto. Seriam 26 dias de estadia em uma cidade que evocava “um passado de
verdade”, um passado “novo em folha” (COSTA, 2018, p.27). Admitiria emocionado, 68
anos depois, que guardava como lembrança sentimental as “roseiras nos portões
laterais das casas”, significativas da “vida autêntica do período colonial-imperial”.7

A CHEGADA: DOMINGO, 27 DE ABRIL DE 1924


Duas noites de sono balançado pelo movimento do comboio, Lucio Costa chega de
manhã cedo finalmente à estação ferroviária de Corinto, Minas Gerais. 8 O Ramal
Diamantina era batizado com o nome da última cidade, destino do arquiteto. Para
chegar até ela, fez ali a baldeação e atravessou durante a manhã outras 7 pequenas
estações. A estrada rodoviária pela qual hoje se chega a Diamantina é descendente da
travessia feita pelo antigo trem, e ainda passa pelas mesmas cidades. O comboio
entrava na cidade pelos trilhos instalados no que é a atual Rua João Evangelista Rocha
e estacionava no Largo Dom João.
Costa chega, então, no ponto mais alto da cidade, na antiga e primeira estação de trem
de Diamantina, por volta das 13h20. O jornal Pão de Santo Antônio havia publicado no
início do mês a preocupação sentida pelos diamantinenses acerca das condições
arquitetônicas dessa estação, substituída depois pelo atual edifício eclético. A área em
que ela ficava, o Largo Dom João (antes chamado Largo do Curral), era uma expansão
recente da cidade de Diamantina, onde estava erguida também a Basílica do Sagrado
Coração de Jesus junto ao primeiro e mais antigo prédio do Seminário de mesmo nome.
Nesta região de terreno plano – coisa rara em Diamantina – ficava um campo de futebol

6
Era necessário tomar a Linha do Centro da Estrada de Ferro Central do Brasil e fazer baldeação para o
ramal Diamantina. Os primeiros dois volumes de “Vias Brasileiras de Communicação” de Max
Vasconcelos mapeavam as estações existentes em 1927. Disponível em:
http://vfco.brazilia.jor.br/mapas-ferroviarios/1927-efcb-Ferrovias-Convergentes-0-RJ-SP-MG.shtml .
Acesso em 7 ago. 2021.
7
Depoimento dado durante comemoração de seus 90 anos na Universidade de Brasília. CPCE-UnB,
1992.
8
Em 06/01/1924 o Pão de Santo Antônio publica os novos horários de chegada e partida na estação de
Diamantina.

• 6
em frente à estação, onde era possível encontrar seminaristas e demais habitantes
jogando bola.9

Figura 1: Ponto mais alto da Rua das Mercês. Pela presença de iluminação pública e ausência de
pavimento neste ponto, é possível afirmar que Lucio Costa se deparou com uma cena semelhante a
esta. Perspectiva “A” do Mapa de Viagem (Figura 5).
Fotógrafo Chichico Alkmim, sem data. Fonte: Acervo IMS.

Para dar entrada no Hotel Roberto, localizado na principal rua da cidade em frente à
Igreja da Sé, Lucio Costa e suas bagagens desceram a íngreme Rua das Mercês,
provavelmente auxiliados por um serviço de tropeiro, ou seja, alguém que, com um
cavalo, conseguia deslocar cargas pelas ladeiras de Diamantina. 10 Pelo horário, foi dada
a oportunidade ao arquiteto, no dia da chegada, de vislumbrar a vista que a descida
desta rua propiciava, e ainda hoje propicia: uma imagem enquadrada pelas casas de
cada lado da rua, com a torre da Igreja das Mercês em segundo plano, a da Igreja do
Rosário em terceiro, e ao fundo o imenso paredão de quartzo que quase obstrui a vista
de outras rochas como ele, ainda mais distantes. Apesar dessa acirrada competição de
alturas (dos telhados, das torres, das cruzes e das rochas), o céu do cerrado prevalecia
sobre todos elas e não passaria despercebido à sensibilidade do arquiteto, que ao tratar

9
Tal evento é mencionado pelo memorialista Luiz Gonzaga dos Santos (SANTOS, 1963, p.48).
10
Os tropeiros sobreviveram ao surgimento da linha férrea e desapareceram apenas na altura da
construção das rodovias. (SANTOS, 2015, p. p.120-121) Eles e seus cavalos aparecem constantemente
nas fotografias da época.

• 7
da adaptação da arquitetura ao clima, em entrevista dada a respeito da viagem, pediria
“mas olhe um pouco para esse nosso céu”.11
Finalmente se acomodando no quarto do Hotel Roberto, Lucio Costa jantaria e teria uma
estática noite de descanso.

Figura 2: Rua Direita, vista da janela do Grupo Escolar Mata Machado. Vê-se à esquerda a antiga Igreja
da Sé, que ficava em frente ao Hotel Roberto, estadia de Lucio Costa. Perspectiva “C” do Mapa de
Viagem (Figura 5). Fotógrafo Chichico Alkmim, 1922-24. Fonte: FERRAZ (2017).

11
“Apreciando as construcções de outros tempos, (...) senti em toda a sua plenitude o disparate de
certos edifícios, alguns muito belos, mas de um estylo que absolutamente não se adapta ao nosso clima.
Acho lindos os telhados anglo-normandos (...) Sim... mas olhe um pouco para esse nosso céo! O
nevoeiro, a neve, o frio são cousas que não se podem importar. (...) O que num logar está bem, noutro
pode parecer ridículo” (sic). Matéria “Considerações sobre nosso gosto e estilo” do A Noite em
18/06/1924.

• 8
PRIMEIRA E SEGUNDA SEMANA: DE 28 DE ABRIL A 12 DE MAIO
Durante sua vida, Lucio Costa manteve guardados dois recibos do Hotel Roberto. Um
deles registra os dias que vão de 27 de abril a 4 de maio. O outro não indica o mês e
marca apenas os dias, que vão de 13 a 22. Dadas também as informações sobre esta
viagem extraídas dos jornais da época, se constata que o arquiteto parte no dia 25 de
abril do Rio de Janeiro, chegando no dia 27 em Diamantina e voltando no dia 22 de
maio, a tempo de depor ao jornal carioca A Noite, que publica a entrevista em 18 de
junho. Tal cronologia atesta a perda de um segundo recibo, que registraria a estadia da
segunda semana, que vai do dia 5 ao dia 12 de maio.
Quase nada se pode afirmar a respeito das atividades realizadas por Lucio Costa entre
os dias 28 de abril e 9 de maio. Isso se deve pelas poucas informações extraídas do
primeiro recibo, pela falta do segundo, pela ausência de datação nos desenhos
produzidos durante a viagem e, finalmente, pela ausência no acervo de cartas recebidas
ou enviadas durante esse período. Entretanto, uma carta escrita pela irmã Magdala,
recebida no dia 12 de Maio, sugere que Lucio Costa enviou mensagens aos seus
familiares em dias anteriores.
É possível especular que ele também tenha tido dificuldade com o trabalho e enviado
pedidos de ajuda a José Mariano Filho ou outros profissionais envolvidos em sua missão,
dadas as cartas de apresentação feitas por figuras de poder de Diamantina nos dias 9 e
10 de maio. Essas mensagens, escritas de próprio punho e devidamente assinadas,
revelam a necessidade de intermediação entre o arquiteto e os diamantinenses. Elas
esclarecem quem é o jovem carioca, o que pretende e do que precisa: acessar os
edifícios da cidade. Esta apresentação chegará a ser reforçada em publicação feita pelo
jornal dominical Pão de Santo Antônio, em que reproduzirá nota bastante semelhante
àquelas feitas pelos jornais cariocas: “Comissionado pela Sociedade Brasileira de Bellas
Artes, acha-se nesta cidade o architecto Lucio da Costa, afim de colligir elementos para
a composição architectonica da época colonial” (sic).12

Figura 3: Calendário de viagem de Lucio Costa à Diamantina, 1924. Fonte: autoria própria.

12
Pão de Santo Antônio em 18/05/1924, pág. 2. Não é possível saber se o jornal publicou a nota nas
demais edições de maio, devido à ausência desses exemplares tanto no acervo digital quanto no acervo
físico.

• 9
Figura 4: As duas folhas de recibo do Hotel Roberto. Fonte: Intervenção de autoria própria sobre
documentos do acervo Instituto Tom Jobim.

A CIDADE VISITADA
Conhecer em detalhes a cidade de Diamantina ajuda a compor o que provavelmente foi
a viagem do jovem arquiteto. Saber o que acontecia e estava lá naquele momento
sugere o que Lucio Costa pode ter visto e experimentado, como estabelecimentos em
que ele pode ter consumido e hábitos diamantinenses que ele pode ter testemunhado.
Até mesmo coisas passadas despercebidas revelam aspectos da experiência do viajante.
O arquiteto ficou hospedado em uma das principais vias comerciais da cidade, a Rua
Direita, que se conecta com outras tão importantes quanto ela, como é o caso da Rua
da Quitanda. A Rua Direita é, portanto, uma das entradas ao centro da cidade, região
importante pela maior oferta de comércio e serviços em 1924. O centro é a área melhor

• 10
documentada pela iconografia e historiografia regional, e com mais estabelecimentos
anunciados nos jornais da época. É o local em que Lucio Costa mais produziu desenhos
e no qual permaneceu hospedado durante 26 dias. Por tudo isso, o centro da cidade é a
região que melhor sugere a experiência de viagem do arquiteto, e o Mapa de Viagem
(Figura 5) procura mostrar o que existia ali no ano de 1924, tais como ruas, edifícios,
áreas públicas, igrejas, lojas e serviços prestados.

Figura 5: Mapa de Viagem. Fonte: Autoria própria, baseado em REGIANI (2019, p.35).

O mapa também organiza os pontos visitados por Lucio Costa entre certamente
visitados e possivelmente visitados: o primeiro rótulo se refere a locais representados
em seus desenhos de pesquisa ou comprovados por fontes primárias; o segundo, a
locais mencionados em memórias e relatos mais tardios. As áreas públicas dentro do
perímetro do centro da cidade, serão todas consideradas como certamente visitados por
ser muito improvável, em alguns casos impossível, que o arquiteto não as tenha
atravessado. No mapa estão identificadas a posição e direção em que foram captadas as
fotografias das figuras 1, 2, 6, 7 e 8.
Lucio Costa encontra a arquitetura dos séculos anteriores preservada em boa parte pela
sucessão de crises da atividade aurífera. Os prédios públicos e privados mais
representativos do período colonial estavam no centro urbano, como evidencia a
presença ali de 6 das 9 igrejas da cidade. Esta área foi consolidada durante o apogeu da
economia do diamante, a partir de 1750, na altura da terceira fase do assentamento

• 11
local que teve sua origem nos caminhos que ligavam os quatro arraiais formadores do
núcleo urbano (GONÇALVES, 2010, p.37).
Já na altura de 1924, a “longínqua Diamantina” passava por uma modernidade a seus
termos, sob suas próprias condições sociais, econômicas e geográficas. Contrastando
com as “roseiras nos portões laterais das casas [de arrabalde]”, 13 automóveis
transportavam passageiros pelas ruas da cidade, jornais eram impressos na cidade ou
chegavam pelo trem vindos das capitais Belo Horizonte e Rio de Janeiro, e o segmento
de diamantes tinha recentemente se reinventado. A iluminação pública havia chegado
há 14 anos, mas nem todos os edifícios ainda eram abastecidos: em março daquele
ano, fiéis da Igreja das Mercês se organizavam para levantar fundos e dotar o templo
de sistema elétrico.14

Figura 6: Rua Francisco Sá (atual Quitanda). A via em perspectiva no centro da imagem é Rua Campos
de Carvalho. Esta imagem mostra homens que frequentam o centro da cidade e os estabelecimentos
comerciais que o caracterizavam. Um senhor e dois oficiais caminham pelas capistranas. Perspectiva “H”
do Mapa de Viagem (Figura 5). Fotógrafo Chichico Alkmim, sem data. Fonte: SANTOS (2015).

O pavimento era do tipo “pé-de-moleque”, o que destacava ainda mais a presença das
“capistranas”. Estes tipos de pavimentação foram retirados nos anos 1940, estando o
pé-de-moleque presente hoje apenas na área em frente ao Mercado Velho. Ele era
instalado de forma descontínua, e nas regiões mais afastadas do centro era possível ver
ruas parte pavimentadas, parte terra batida. Já nas capistranas, construídas em 1897 e
em parte presentes até hoje, os diamantinenses faziam o footing, ou seja, passeavam a
pé por lazer (SANTOS, 2015, p.148, p.200). Uma das imagens feitas por Alkmim em

13
Depoimento dado durante comemoração de seus 90 anos na Universidade de Brasília. CPCE-UnB,
1992.
14
Pão de Santo Antônio em 30/03/1924.

• 12
1924, mostra um autobonde atravessado na Praça Antônio Eulálio (Figura 6). Nela é
possível ver ambos os pavimentos e os pés descalços de alguns meninos, o que revela
uma condição comum às classes trabalhadoras na época. Lucio Costa relataria, seis
décadas depois, a presença dos “pés no chão” da “bonita mulher” do “sacristão
Zacarias”. Em se tratando das pessoas de Diamantina, o sacristão e sua companheira
são os únicos mencionados nas memórias do arquiteto.
A fotografia do autobonde também permite visitar os comércios do centro da cidade. A
Rua Campos de Carvalho (vista em perspectiva nas Figuras 6 e 7) une a Rua do Bonfim
à Rua da Quitanda. Estas três vias, junto à Rua Direita e Praça Conselheiro Mata,
formavam o núcleo de mais prestígio do centro de Diamantina, onde estavam
estabelecidos armazéns, farmácias, cinemas, hotéis, ourivesarias, consultórios de
médicos e advogados, clubes e associações etc. A atividade econômica da cidade por
excelência era o segmento de diamantes e ele continuava a definir os grupos de
influência nos debates políticos e sociais – ainda que renovado pelas últimas técnicas de
extração e lapidação a partir da década de 1870 (idem, p.103). O êxito de muitos
comerciantes diamantinenses também se devia a atuação paralela no mercado de
pedras. (idem, p.113)

Figura 7: Praça Antônio Eulálio, encontro das ruas Bonfim, Amparo e Campos de Carvalho em 1924.
Perspectiva “G” do Mapa de Viagem (Figura 5). Fotógrafo Chichico Alkmim, 1924. Fonte: Acervo IMS.

Outra influência das elites comerciais era a arquitetônica. Na primeira metade do ano de
1924, o grande comerciante e garimpeiro Franklin de Carvalho anunciava no Pão de

• 13
Santo Antônio a mudança de sua loja para um edifício “moderno” recém-construído por
ele na Barão de Guaicuí.15 O prédio foi visto por Lucio Costa nas ocasiões em que
desenhou o Beco da Tecla e visitou o Mercado dos Tropeiros. O arquiteto que ali estava
justamente para estudar a arquitetura colonial, se deparou com a chegada do estilo
eclético na cidade, que logo cairia no gosto dos diamantinenses. Outro prédio comercial
de composição semelhante seria inaugurado apenas três anos depois, em frente ao
Grupo Escolar. As novas construções na expansão urbana do Largo Dom João, incluso a
reforma da estação ferroviária, seguiriam o mesmo modelo. Futuramente, já em
meados dos anos 1930, surgiriam confrontos entre a equipe do SPHAN e grupos
diamantinenses acerca da permanência e reconstrução de marcos da cidade.16

Figura 8: Praça Barão de Guaicuí, posterior à 1922. Fora de quadro, à esquerda, fica o Mercado Velho. É
possível identificar cavalos, tropeiros, demais trabalhadores e o pavimento descontínuo. Focalizado na
imagem, o recente prédio de estilo eclético de Franklin de Carvalho. No canto inferior direito, início da
rampa de acesso ao Beco da Tecla. Torre da Igreja do Amparo ao fundo à esquerda. Perspectiva “F” do
Mapa de Viagem (Figura 5).
Fotógrafo Chichico Alkmim, sem data. Fonte: SANTOS (2015).

Lucio Costa para além de inevitavelmente, durante seus 26 dias de estadia, ter
atravessado esses endereços, muito provavelmente usufruiu, como os diamantinenses,
de seus serviços. O próprio Hotel Roberto também era bar e restaurante, e tinha

15
Pão de Santo Antônio em 06/04/1924.
16
Um dos casos mais acalorados foi o impedimento, por parte do SPHAN, da demolição do Mercado
Velho, que há muitos anos era tema de debates entre os próprios diamantinenses, com o argumento
higienista do lado da retirada.

• 14
concorrentes como o Café Central e o recém-inaugurado Bar Guarany. Este, atrás da
Sé, funcionava até às 23 horas e servia pratos, doces, cervejas nacionais e
estrangeiras.17 Estes ambientes conjugavam a boêmia e a intelectualidade, e imagens
feitas por Chichico Alkmim mostram frequentadores desses espaços posando com
diferentes jornais. Em fins de janeiro de 1924, o Pão de Santo Antônio, jornal católico
de cunho moralista, publica matéria repreendendo o que chama de “exibições de
imoralidade que se passam (...) nas ruas mais centrais da nossa cidade, principalmente
no largo da Sé” e julgando inadmissível “que mulheres sem regato vivam a implantar no
meio de nossas famílias modos e costumes tão indignos”. Fato é que a região do Beco
do Mota, conjunto de vielas e travessas próximas à Igreja da Sé, foi área de meretrício
até 1970 (SANTOS, 2015, p.32). O território de conflitos entre marginalidade, comércio,
imprensa, moral e Igreja Católica era vizinho do Hotel Roberto, o que faz perguntar se
teria sido possível ao arquiteto percebê-lo.
Se a Diamantina rotineira, do horário comercial, era majoritariamente percorrida por
homens, era na Diamantina das festas religiosas que se poderia testemunhar a
presença das mulheres nas ruas. No calendário católico, o mês de maio é o Mês de
Maria, e nele aconteciam a maior parte das muitas celebrações religiosas e populares da
cidade. O carpinteiro e construtor Luiz Gonzaga dos Santos, apenas 4 anos mais velho
que Lucio Costa, é quem melhor retrata o roteiro das festas e solenidades de maio. Sua
narração coincide com avisos e matérias publicadas no Pão de Santo Antônio entre abril
e junho de 1924:

“Maio, o mês mais festivo em Diamantina. 1º de Maio começavam as festividades do mês


de Maria, na Sé celebrada pelas filhas de Maria, da Cidade, e na Igreja de Luz pelo
saudoso padre José Pedro Lessa (...) Ladainhas de Maio, saía bem cedo uma procissão
sempre em uma segunda-feira de Maio. Era grande a afluência de fiéis. Às 6 da manhã,
partia da Sé para a Igreja das Mercês. Ao chegar ali, havia missa. Na terça, das Mercês
para o Rosário, havendo também missa e, na quarta-feira, a última, do Rosário
novamente à Igreja da Sé. (...) Estas festas eram, às vezes, abrilhantadas com as danças
de caboclos, catopês, marujadas, dança de velhos, tudo enfim que pudesse dar vida e
alegria durante aqueles dias, na cidade. (...) Depois, seguia-se o levantamento do mastro
na Cavalhada perto do Mercado.” (SANTOS, 1963, p.31)

Ao descrever o conjunto das manifestações culturais ocorridas naquele mês, o


carpinteiro e memorialista revela uma série de aspectos sobre a sociedade
diamantinense em seu território. A profunda divisão racial dos fiéis em igrejas
diferentes. Como um padre fazia questão de incluir crianças negras e pobres na
solenidade. O encontro cômico entre uma procissão e um boêmio. Uma sessão de
cinema ao ar livre depois de um hasteamento, perto do Mercado Velho. A famosa Banda
do 3º Batalhão que tocava nas festas e aos domingos no Parque Municipal. Novenas,
cortejos e cerimônias que percorriam um ponto a outro da cidade. Hospedado em frente
à Sé, impossível supor que Lucio Costa não tenha presenciado e acompanhado os
festejos. O jovem arquiteto fez sua viagem sozinho, mas talvez o movimento nas ruas
tenha contribuído para que a experiência em Diamantina extrapolasse a apreciação da

17
Pão de Santo Antônio em 27/04/1924 e 18/05/1924.

• 15
arte antiga para ganhar contornos de uma imersão em um “passado no seu sentido
mais despojado”, “um passado de verdade” (COSTA, 2018, p.27).

PASSE LIVRE
A últimas duas semanas de pesquisa de Lucio Costa provavelmente foram as mais
proveitosas. Tinha, finalmente, cartas de recomendação de diamantinenses ilustres: do
Arcebispo Dom Joaquim Silvério e do presidente da Câmara Municipal, Juscelino
Dermeval da Fonseca. Tais documentos sobreviveram ao tempo e revelam dimensões
significativas.
O primeiro foi redigido em 9 de maio, assim que o arcebispo retorna do Rio de Janeiro,
por ocasião das comemorações de cinquenta anos de sacerdócio do Cardeal
Arcoverde,18 e é direcionada ao vigário Monsenhor Antônio de Souza Neves. Nele, o
arcebispo apresenta o arquiteto e orienta que seu interlocutor “se digne de providências
para que ele possa estudar os nossos templos velhos, facilitando-lhe o mais possível as
ocasiões”.
No dia seguinte, dia 10, o presidente da Câmara escreve em seu cartão de visita:

“É portador deste o jovem architecto Dr. Lucio Costa, comissionado pela Escola de Bellas
Artes do Rio de Janeiro19 para estudar a architectura dos edificios publicos e particulares
desta cidade. Apresentando o illustre hospede à culta população diamantinense, espero
do cavalheirismo e gentileza dos meus conterraneos lhe seja dispensado o mais cordial
acolhimento, facilitando-se-lhe tudo o que fôr necessario ao bom desempenho de sua
missão.” (sic) (COSTA, 2018, p.28)

Cada uma das recomendações diz respeito à tipos diferentes de acesso a diferentes
tipos de edifícios. A carta do arcebispo revela uma clara limitação de usufruto dos
espaços controlados pela Igreja, onde o acesso será facilitado “o mais possível”,
contrastando com “o que for necessário” solicitado pelo parlamentar. Dom Joaquim
menciona apenas os “templos velhos” e deixa de lado demais estabelecimentos
mantidos sob a esfera de influência do Arcebispado de Diamantina, como jornais,
palácios, abrigos, hospitais e escolas, sendo dentre elas a mais expressiva o Colégio
Nossa Senhora das Dores.20 Isso não impedirá que Lucio Costa faça uma aquarela de
seu exterior e um desenho técnico da janela térrea. Mas é muito improvável que tenha
tido qualquer acesso ao seus espaços internos, especialmente pelo fato de que a
instituição funcionava, à época, como internato para moças e o acesso de indivíduos do
gênero masculino era bastante restrito (MARTINS, 1993). Portanto, ao arquiteto foi
impedida a investigação da estrutura que sustenta o passadiço por dentro e dos pátios
que tanto caracterizam o prédio mais antigo da escola, sendo um deles circundado por

18
A Estrella Polar em 11/05/1924 noticiava o retorno do arcebispo no dia 8, enquanto sua presença no
Rio é registrada no Jornal do Brasil em 01/05/24.
19
O parlamentar confunde o fato de Lucio Costa ser aluno da ENBA e estar ali comissionado pela SBBA.
20
Esta foi Casa da Intendência no séc. XIX e hoje sedia o Instituto de Geociência da UFMG (Casa da
Glória). À época, era ao mesmo tempo educandário para moças das elites regionais e orfanato.

• 16
extensa varanda em U protegida de muxarabis ainda maiores do que os da Casa de
Chica da Silva.
Nos dois casos, a presença dessas cartas, a data em que elas foram escritas, os tipos e
quantidade de edifícios representados pelos desenhos deixados por Lucio Costa (Tabela
01 e 02), permitem especular que o arquiteto pode ter enfrentado relativa resistência
de entrada nas edificações de Diamantina. Um exemplo claro: das 8 igrejas coloniais
então presentes na cidade, a única representada é a Igreja do Carmo.
Dentre essas especulações, vale destacar o caso do balcão envolto em muxarabi do
sobrado da Rua da Quitanda, chamado de “Casa do Muxarabi”, que hoje sedia a
Biblioteca Antônio Torres. Para que fosse possível a Lucio Costa realizar o levantamento
das medidas deste elemento treliçado para, portanto, produzir o desenho técnico a que
se tem hoje acesso, decerto foi preciso que o arquiteto subisse ao segundo pavimento;
logo, algum residente ou proprietário permitiu sua entrada na casa. Curiosamente, um
fotolito da fachada deste prédio também aparece no acervo pessoal de Lucio Costa,
junto a uma série de imagens feitas em Minas Gerais, identificadas como sendo dos
anos 1920. Entretanto, não é possível afirmar que a fotografia tenha sido feita na
ocasião da viagem de 1924.

DESENHOS E AQUARELAS: PRODUTOS DA VIAGEM


Sem datas inscritas nos desenhos de Lucio Costa, é impossível estimar em quais dias ou
intervalos o arquiteto efetivamente os produziu. Tampouco se sabe quais estratégias
podem ter sido tomadas tanto para seleção das obras e peças a serem levantadas
quanto para o desenvolvimento dos desenhos. Entretanto, é fato que, até ter consigo as
cartas do arcebispo e de Dermeval da Fonseca, o arquiteto dispôs de tempo suficiente
para prestar algumas visitas aos espaços da cidade antes de se decidir sobre o que
registrar ou não.
O conjunto de desenhos a que hoje se tem acesso é formado por 3 folhas com
perspectivas em aquarela mais 9 folhas de desenhos técnicos, formados por
representações gráficas em plantas, elevações, seções, detalhes, cotas e títulos. A
quantidade e qualidade dos desenhos técnicos sugerem uma investigação de objetivo
mais técnico-construtivo do que apenas formal.

Tabela 1: Resumo da Produção


Número total de folhas produzidas: 12 folhas
Número total de edificações visitadas: 6 edificações identificadas + 16 Sem Identificação
Número total de elementos arquitetônicos levantados: 35 elementos arquitetônicos
Número total de desenhos produzidos: 68 desenhos
Tabela 1: Resumo da produção de desenhos feitos por Lucio Costa em Diamantina, 1924.
Fonte: autoria própria.

• 17
Tabela 2: Produção de desenhos em local identificável por Lucio Costa
Nº de Nº de Desenhos e
# Local Visitado Elementos Aquarelas
Levantados Produzidas
1 Beco da Tecla 0 1
2 Câmara Municipal 1 1
3 Casa do Muxarabi 1 4
4 Colégio Nossa Senhora das Dores 6 9
5 Grupo Escolar Matta Machado 5 5
6 Igreja do Carmo 7 31
Tabela 2: Quantitativo de desenhos feitos em lugares identificáveis de Diamantina por Lucio Costa.
Fonte: autoria própria.

Avaliando essa produção, é possível perceber o cuidado em diversificar os tipos edilícios


estudados. Ainda que representativos de dimensões arquitetônicas distintas – urbana,
política, residencial, institucional e religiosa – cada um dos 6 locais identificáveis possuía
alguma proeminência frente ao restante da cidade. A Câmara, o Grupo Escolar, o
Colégio e a Igreja do Carmo abrigavam instituições influentes e centrais da sociedade
diamantinense. O Beco da Tecla e a Casa do Muxarabi foram tidos como de relevância
histórica e artística por abrigarem elementos “hispano-árabe”. Mesmo entre os seis
selecionados, há grande disparidade quanto ao nível de investigação: é evidente a
atenção dada à arquitetura da Igreja do Carmo em relação aos demais espaços, assunto
que será tratado mais para frente. Lucio Costa também produziu 16 desenhos cujos
locais e prédios não são identificáveis.

À esquerda, Figura 9: aquarela do interior da Igreja do Carmo. À direita, Figura 10: levantamento
cadastral do púlpito da Igreja do Carmo. Desenhos de Lucio Costa, 1924. Fonte: REGIANI (2019).

• 18
Não restaram documentos que mostrem que tipo de recorte e orientações poderiam ter
sido fornecidos aos arquitetos da ENBA para as investigações nas Minas Gerais em
1924. Tampouco é possível afirmar que José Mariano Filho e os professores da Escola
tenham organizado os objetivos das viagens tendo em vista a produção anterior feita
pelos envolvidos com a cena neocolonial paulista. Ainda assim, é válido apontar em que
medida há semelhanças e divergências entre os desenhos produzidos por aqueles que
visitaram Diamantina.
Antes de Lucio Costa, os pintores José Washt Rodrigues e Alfredo Norfini estiveram em
Diamantina em circunstâncias semelhantes nos anos de 1919 e 1921, respectivamente,
patrocinados pelo arquiteto Ricardo Severo. Rodrigues volta à cidade em 1930, e por
esta razão não é possível identificar entre seus desenhos quais foram feitos na primeira
ou na segunda visita. Sem embargo, é notável que a produção de Lucio Costa tinha um
claro objetivo técnico, feita pelo levantamento cadastral com plantas, elevações e
seções, enquanto as de Rodrigues e Norfini buscavam mais registrar cenas urbanas
através de perspectivas e desenhos sem cota. Partindo dos desenhos organizados por
Luana Espig Regiani, a tabela 03 mostra quais edifícios ou áreas urbanas identificáveis
foram ou não trabalhadas em comum pelos três visitantes.

Tabela 3: Produção de desenhos em local identificável


Wasth
Alfredo Lucio
Edifícios e Áreas Urbanas de Rodrigues
# Norfini Costa
Diamantina (1919 e
(1921) (1924)
1930)
1 Casa do pintor Laporte (Rua do Bonfim) X
2 Chafariz da Rua Direita X
3 Largo da Igreja do Rosário X
4 Velho Casarão X X
5 Casa de Chica da Silva X X
6 Rua da Quitanda X X
7 Casa da Muxarabi X X
8 Beco da Tecla X X
9 Colégio Nossa Senhora das Dores X X
10 Câmara Municipal X
11 Grupo Escolar Matta Machado X
12 Igreja do Carmo X
Tabela 3: Lugares identificáveis de Diamantina desenhados por diferentes arquitetos.
Fonte: autoria própria.

Tanto Costa quanto Rodrigues, também registraram detalhes de elementos


arquitetônicos de prédios sem identificação, tais como grades, beirais, painéis e
ornamentações. Ambos terão outra coisa em comum: atuarão na cidade de Diamantina
anos mais tarde. Washt Rodrigues assinará alguns projetos, incluso da nova Catedral,
inaugurada em 1938. Neste mesmo ano, Lucio Costa e a equipe do SPHAN serão
responsáveis pelo tombamento do perímetro urbano central e de muitas restauração
prediais.

• 19
ÚLTIMOS DIAS: DE 13 A 22 DE MAIO
Em 1992, em uma cerimônia feita na Universidade de Brasília, Lucio Costa se refere
novamente às roseiras dos portões nas casas de arrabalde, nota que já aparecia em sua
autobiografia. Se a menção parece ter um teor “sentimental”, como ele mesmo admite,
isso não impede a sugestão de que o arquiteto visitou áreas de expansão urbana da
cidade, áreas rurais e arraiais. O segundo recibo do Hotel Roberto inicia, no dia 13, com
o item “Transporte”, cujo valor supera em mais de 17 vezes o valor de 1 diária
completa, com refeições. Não há data no item em si, sugerindo que ele se refere a
algum serviço prestado em dias anteriores. Se resta a dúvida se Lucio Costa foi ou não
a demais pontos do Distrito de Diamantina, fato é que a famosa Vila Operária do Biribiri,
já existia e sua fábrica têxtil estava em pleno funcionamento. Tanto ela quanto outras
vilas e lugarejos possuíam capelas e igrejas coloniais, para além de sua arquitetura
civil.
O jovem estudante aproveitou algum tempo livre na cidade para comprar móveis
antigos, pois uma carta escrita em 27 de maio pelo coronel Sebastião Andrade21 dá
satisfações pelo atraso em enviá-los: “Devido à morosidade do serviço das estradas e
também o grande acúmulo de cargas a despachar, só hoje pude conseguir despachar os
móveis antigos que lhe vendi dos quais junto conhecimento”. As datas do item
“Transporte” e da carta possuem diferença de 14 dias, o que enfraquece a ideia de que
o item possa significar o custo do frete cobrado pelo militar. Curiosamente, no acervo
pessoal do arquiteto existem 10 fotografias de móveis, com preços escritos no verso,
identificados como sendo provavelmente de viagens ao interior mineiro.
Segundo Lucio Costa, já ao fim da viagem, o sacristão Zacarias, responsável pelos
repiques do sino da Igreja do Carmo, teria confiado sua chave para que o arquiteto
fizesse a aquarela do interior vazio. É fato que apenas ela é estudada, contra os demais
9 templos que existiam, dentre outras pequenas capelas. Dela foi feita uma perspectiva
– ao contrário das outras, sem representação de figura humana – e a maior quantidade
de levantamentos: em 30 desenhos, foram registrados 7 componentes de sua
arquitetura: púlpito, janela, porta de entrada, ornamentação de painel e 3 balaústres.
Ao que isso indica, a carta do arcebispo surtiu algum efeito: o arquiteto pôde concentrar
nesta igreja boa parte de seu estudo, de maneira a aprofundar o que fosse necessário.
A igreja também recebe especial atenção no relato produzido por ele nos anos 1980.
Este, feito durante o período em que o arquiteto organizava suas memórias e acervo,
pode ter sido influenciado pela presença de uma anotação à lápis no verso do recibo do
Hotel Roberto. Praticamente ilegível, o escrito é uma despedida para a cidade, em que é
possível discernir menções à Igreja do Carmo, sua torre e seu sino. Acontece que desde
1898 até aquele momento, a torre desta igreja estava na fachada frontal do edifício e
não nos fundos, conforme projeto original de 1765.22 Observando o anoitecer, Lucio

21
O coronel aparece mencionado no Pão de Santo Antônio de 27/01 e 30/03/24.
22
A Igreja do Carmo foi construída pelo contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira em 1765.
Uma fotografia de Augusto Riedel, em 1869, mostra a torre ainda localizada na parte de trás. Desta data
até o restauro do SPHAN, a única reforma feita é do ano de 1898. (SANTOS, 2015, p.213)

• 20
Costa se despediu da cidade de Diamantina num ponto hoje inacessível, pois a torre foi
novamente revertida e restaurada pelo SPHAN em 1949.

Figura 11: Fotografias comparativas da Torre da Igreja do Carmo. À esquerda, nos anos de 1869
(Fotógrafo Augusto Riedel. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional). Ao centro nos anos 1920 (Fotógrafo
Chichico Alkmim. Fonte: IMS). Imagem atual à direita (Fonte: Portal da Prefeitura de Diamantina).

DESEMBARQUE
Ao voltar de Diamantina, Lucio Costa salta nas estações de Sabará, Mariana e Ouro
Preto, que também faziam parte do roteiro das demais pesquisas patrocinadas pela
SBBA. Passam-se 27 dias entre sua partida do Largo Dom João e a entrevista publicada
no A Noite em 18 de junho. As ideias centrais do depoimento chamam atenção pela
semelhança com as que serão enunciadas por ele mais tarde, já inserido nos rumos da
arquitetura moderna, como o papel das proporções, o repúdio ao excesso e a pretensão
funcional. Em sua pesquisa, Lucio Costa não desenhou moradias comuns, entretanto,
conta como encontrou na arquitetura civil “elementos básicos para solução inteligente”
na “construção de pequenas casas”, o que indica a realização de um exame mais amplo
e atento dos que os desenhos produzidos podem induzir.
Premiado por um concurso da ENBA, Lucio Costa faz uma extensa viagem à Europa em
1926, em cujas cartas se queixa: “Cansado de ver tanta coisa interessante em tão
pouco tempo, já quase nada sinto e quase nada me emociona” (COSTA, 2018, p.44).
Adoece no meio do caminho e ao voltar ao Brasil, já 1927, continua seu tratamento em
terras mineiras, na Serra do Caraça. No acervo de Lucio Costa é possível encontrar
retratos do arquiteto identificados como sendo em Minas nos anos 1920. Dadas as
incongruências das informações do acervo, chama a atenção uma das fotografias que
mostra o arquiteto de pé, sem bigode ao contrário das demais, num campo amplo com
pequenas casas ao fundo. O arquivo é datado de 1922, justamente o ano por vezes
confundido como sendo a de sua primeira viagem à Diamantina.
Os impactos da viagem de 1924 se voltariam à própria cidade de Diamantina, pois já
em 1938 ela teria seu conjunto urbano tombado pelo recém fundado SPHAN, em cujo
quadro de responsáveis figurava um Lucio Costa já “convertido” à arquitetura moderna.
Na rota das coincidências, neste mesmo ano a cidade comemorava o seu centenário.
Segundo o fotógrafo Erich Hess, contratado pelo Patrimônio em 1938, Lucio Costa teria
retornado à Diamantina por volta de 1936/37 com o chefe, Rodrigo Melo Franco, na
ocasião dos trabalhos para tombamento. Lucio Costa transmitirá a Hess e a outros

• 21
profissionais instruções para registrar, desta vez por imagens fotográficas, a cidade de
Diamantina.
A cidade transcorrida pelo jovem Lucio Costa o influencia a pensar sobre passado e
futuro. À vista do que diferentes documentos revelam sobre a realidade material de
Diamantina naquele período, hoje nos é permitido pensar que talvez o estudante tenha
se deparado com a sobreposição exata de sua contemporaneidade com a permanência
de prédios e saberes antigos, condição dada pelas circunstâncias específicas dessa
cidade. As antigas construções dos séculos XVIII e XIX eram parte de uma sociedade
que tensionava relações entre tradição e modernidade. Se por um lado este aspecto não
aparece explícito em suas menções à Diamantina, por outro, a ideia fará parte contínua
de sua atuação como arquiteto moderno.

• 22
REFERÊNCIAS
COSTA, Lucio. Registro de uma Vivência. 3 ed. rev. São Paulo: Editora 34, Edições Sesc São
Paulo, 2018.
COSTA, Lucio. ”’Ingredientes´ da concepção urbanística de Brasília”. In: XAVIER, A.;
KATINSKY, J. R. (orgs.) Brasília, antologia crítica. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
LUCIO Costa na Universidade de Brasília. Direção de Alfredo Vianna. Brasília: Centro de
Produção Cultural e Educativa UnB, 1992. 1 vídeo (14 min), son., color.
FERRAZ, Eucanaã (org.). Chichico Alkmim Fotógrafo. São Paulo: IMS, 2017.
GONÇALVES, Cristiane Souza. Experimentações em Diamantina: um estudo sobre a atuação
do SPHAN no conjunto urbano tombado 1938-1967. Tese (Doutoramento em Arquitetura
e Urbanismo) – USP. São Paulo, 2010.
WISNIK, Guilherme (org.). O risco: Lucio Costa e a utopia moderna. Rio de Janeiro: Bang
Bang, 2003.
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de Diamantina e a educação feminina no norte\nordeste mineiro (1860-1940). Educ. Rev.
[online]. 1993, n.17, pp.11-19.
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L.; KAMITA, J. M.; LEONÍDIO, O.; CONDURU, R. (orgs.). Um modo de ser moderno. São
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Juscelino Kubitscheck e Oscar Niemeyer. Dissertação (Mestrado em Arquitetura,
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da tradição e da mudança em Diamantina: 1900 a 1940. Tese (Doutoramento em
História) - UFMG, Belo Horizonte, 2015.
SANTOS, Luiz Gonzaga dos. Memórias de um Carpinteiro. Belo Horizonte, 1963.

JORNAIS
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A Noite, 19/03/1924: “A alma dos nossos lares”
A Noite, 18/06/1924: “Considerações sobre nosso gosto e estilo”
Correio da Manhã, 23/01/1924
Jornal do Brasil, 01/05/1924
Jornal do Brasil, 19/12/1924
O Imparcial, 26/04/1924
Pão de Santo Antônio, 06/01/1924
Pão de Santo Antônio, 20/01/1924
Pão de Santo Antônio, 27/01/1924
Pão de Santo Antônio, 30/03/1924
Pão de Santo Antônio, 06/04/1924
Pão de Santo Antônio, 27/04/1924
Pão de Santo Antônio, 18/05/1924

• 23
MEMÓRIAS DO APAGAMENTO
As primeiras favelas paulistanas em uma perspectiva historiográfica
(1940-1970)
MEMORIES OF FORGETFULNESS/MEMÓRIAS OLVIDADAS
Memórias, representações, arquivos

FLOCK, Júlia
Graduanda em Arquitetura e Urbanismo; FAU-USP
julia.flock@usp.br
RESUMO

O tema da favela na cidade de São Paulo entrou definitivamente em pauta na


década de 1970, quando estes espaços foram entendidos enquanto forma de
habitação da população mais pobre, associada a uma ocupação periférica da
cidade. Essa associação acaba nublando o processo anterior de surgimento
dessas favelas, que começaram a aparecer em São Paulo já na década de
1940. Sua presença no tecido urbano foi registrada de maneira esparsa e
fragmentada em documentos da época como jornais, atas da câmara municipal
e relatórios de assistentes sociais. A pesquisa da qual este artigo faz parte,
chamada “Memórias do apagamento: as primeiras favelas paulistanas na
modernização da cidade (1940-1970)”, busca justamente mobilizar estes
materiais fragmentários de forma a mapear estas primeiras favelas, buscando
seus sujeitos e sua inserção urbana, indo contra esse apagamento. Neste
artigo, além de mostrar alguns resultados desta pesquisa, buscaremos
também colocar em perspectiva a construção historiográfica acerca dos
espaços das primeiras favelas paulistanas, questionando sua leitura baseada
em termos quantitativos, de forma a propor novas formas de olhar para o
espaço urbano na tentativa de contribuir para uma revisão historiográfica do
processo de desenvolvimento urbano de São Paulo.

PALAVRAS CHAVE Favelas paulistanas; Memória; Historiografia; Habitação;


Cidade.

ABSTRACT

The issue of the favela in the city of São Paulo definitely entered the agenda
in the 1970s, when these spaces were associated as the main form of housing
of the poor population, associated with a peripheral occupation of the city. This
association ended up clouding the previous process of emergence of these
favelas, which began to appear in São Paulo in the 1940s. Their presence in
the urban fabric was registered in a sparse and fragmented way in documents
of the time such as newspapers, city council documents and social workers’
reports. The research of which this article is part, called “Memories of
forgetfulness: the first São Paulo’s favelas from a historiographic perspective
(1940-1970)”, seeks to mobilize these fragmentary materials in order to map
these first favelas, looking for their subjects and theis urban insertion, going
against this forgetfulness. In this article, besides showing some results of this
research, we will also seek to put into perspective the historiographic
construction over the spaces of the first favelas of São Paulo, questioning the
way they read this spaces based on quantitative terms, in order to propose
new ways of looking at the urban space in an attempt to contribute to a
historiographic review of São Paulo’s urban development.

KEY-WORDS São Paulo’s favelas; Memory; Historiography; Housing; City.


INTRODUÇÃO
O apagamento de espaços da cidade é um processo recorrente, principalmente em
grandes metrópoles. Processo característico na urbanização de São Paulo, o espaço
ocupado pela população mais pobre foi lido de uma forma mais ou menos homogênea,
na qual as favelas foram vinculadas majoritariamente à década de 1970. Nesta época, a
favela ganha visibilidade como um espaço da pobreza dentro da metrópole, chave de
leitura que acaba nublando processos anteriores, do surgimento de fato das favelas na
cidade, décadas antes.

As primeiras favelas de São Paulo começaram a aparecer ainda na década de 1930,


apesar de serem mais comumente vinculadas à década de 1970, já que é quando há uma
mudança na escala desses espaços e eles passam a ser pautas de estudos. As primeiras
favelas, entretanto, são percebidas como vestígios: era aquilo que não queria ser visto
na São Paulo que se modernizava e que foi vagamente registrado, seja na bibliografia ou
na própria memória da cidade.

A pesquisa de Iniciação Científica chamada Memórias do apagamento: as primeiras


favelas paulistanas na modernização da cidade (1940-1970), desenvolvida na Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, da qual este artigo faz parte,
se propôs a levantar e localizar as primeiras favelas da cidade de São Paulo a partir das
menções esparsas na bibliografia e fragmentos encontrados em outras fontes primárias.

As informações sobre esses primeiros núcleos de favelas são obtidas através dessas
diversas fontes: os jornais — os de grande circulação, como O Estado de S. Paulo, mas
também alguns operários ou dedicados à causa negra; relatórios de assistentes sociais —
que foram pioneiras nas ações em favelas; cartografias da época — que não localizam
esses espaços, apontados como vazios na cidade; relatórios de movimentos que buscam
agir nas favelas — como o Movimento Universitário de Desfavelamento; documentos da
própria prefeitura — como o Plano de Desfavelamento do Canindé; atas da câmara
municipal; dentre outros.

O cruzamento desses materiais permitiu traçar um certo panorama da existência desses


espaços na metrópole paulistana, ao mesmo tempo que tem aberto portas para
mergulharmos no universo de cada favela. Assume simultaneamente um caráter geral e
um caráter mais específico, munindo a pesquisa de informações capazes de mostrar a
heterogeneidade pela qual se compunham as favelas.

Além de demonstrar estes frutos que a pesquisa tem obtido até o momento, trazendo um
aspecto tanto geral do quadro das primeiras favelas, quanto de uma história que se edifica
núcleo a núcleo, este artigo tem como objetivo colocar em questão as narrativas que se
consolidaram acerca dos espaços das favelas dentro da metrópole.

● 1
Colocamos em questão principalmente duas narrativas: aquela colocada
contemporaneamente à existência dos núcleos de favelas, que pautou em muito a visão
que se tinha desses espaços e, para além disso, a forma com os diversos agentes lidaram
com a questão, como por exemplo ações da prefeitura; e, também, aquela colocada já
nos anos 1990, que buscou fazer uma leitura das favelas e acabou por consolidá-las como
vinculadas à década de 1970, leitura essa que perdura até os dias de hoje.

Tem-se como objetivo, portanto, lançar mão de uma outra forma de ler os espaços das
primeiras favelas, geralmente colocados como de menor dimensão e até mesmo menor
importância dentro da metrópole. Essa leitura é consolidada a partir de uma noção
quantitativa destes espaços, e o que buscamos fazer aqui é justamente o contrário. É
uma tentativa de mostrar que todas as formas de vida são válidas e que suas memórias
merecem ser lembradas na metrópole e na construção de sua história.

AS PRIMEIRAS FAVELAS PAULISTANAS E SUA CONSTRUÇÃO


HISTORIOGRÁFICA
As primeiras favelas da cidade de São Paulo começam a surgir já na segunda metade da
década de 1930, em áreas mais centrais da cidade. Apesar de se vincularem a um
contexto de grande falta de moradia para a população, em termos quantitativos não são
a principal resposta ao problema. O espaço majoritário ocupado pela população mais
empobrecida da cidade foi lido de uma forma mais ou menos homogênea: no início do
século, ocupavam os cortiços e pensões nas áreas centrais; em um segundo momento,
passariam a ocupar habitações autoconstruídas nas margens da cidade, consolidando o
padrão periférico de crescimento urbano (CAMPOS, 2004); e então, as favelas tomariam
grandes proporções apenas na década de 1970.

As favelas das décadas anteriores – da metade da década de 1930 até 1970 – não entram
nesta chave de leitura, que trata a questão da habitação em termos quantitativos. O lugar
que cabia aos moradores das primeiras favelas dentro da metrópole era visto apenas
como transitório. Estas favelas seriam absorvidas e tenderiam a desaparecer, frente ao
intenso desenvolvimento urbano da metrópole e da própria sociedade brasileira: a
modernização das cidades “daria conta do recado”, sendo as favelas o inverso da cidade
que se constituía.

Esse caráter assumido – ou melhor, delegado às primeiras favelas – está vinculado em


muito à condição da terra no território da cidade. Isso porque as favelas ocupavam
espaços de várzea, grotas e barrancos. A retificação e a canalização dos rios muda
profundamente esses espaços, uma vez que vem acompanhadas de infraestrutura. As
terras de várzea, que antes assumiam um caráter mais extrativo, passam a ser
incorporadas como fundamento para a cidade (SEABRA, 2015). É no limiar deste processo
de mudança que as favelas começam a se estabelecer no território e justamente pelo
desenvolvimento deste mesmo processo que seriam expulsas.

● 2
Segundo o projeto de Desfavelamento do Canindé, “com a retificação do rio Tietê, várias
faixas inaproveitadas estão sendo ocupadas, bem como outros próprios municipais e não
poucos terrenos particulares” (SÃO PAULO, 1962, p. 10). Ocupavam, portanto, espaços
deixados para trás pela cidade que se construía e se modernizava simultaneamente.
Quando os locais que as favelas ocupavam começam a ser de interesse para esta
modernização, elas eram expulsas e surgiam em outros locais.

Esta tendência ao desaparecimento era característico do próprio contexto que se


inseriam: eram o avesso da cidade que se construía e deveriam, portanto, desaparecer.
Fato é que estas favelas usualmente possuíam vínculos entre si: eram retiradas de um
local, e iam para outro — por vezes pela mediação da própria prefeitura. Em uma Ata da
Câmara Municipal da Cidade de São Paulo, publicada no jornal O Estado de S. Paulo, é
possível ver claramente esta situação:

O sr. Ermano Marchetti expôs a Casa a maneira como se vem processando a mudança da
favela da Lapa para o Piqueri. Disse o orador que tem ido pessoalmente todas as manhãs
ao local e que até agora não foi praticada uma só violência. Informou aos srs. edis que tem
havido queixas, mas essas são feitas pelos exploradores do povo, pelos que alugam os
míseros barracões aos favelados e que de modo nenhum querem perder essa fonte de
renda. Ainda da tribuna, o sr. Ermano Marchetti mostrou uma conta de luz, segundo a qual
um dos locadores paga mensalmente à “Light” importância nunca superior a mil cruzeiros,
chegando a arrecadas dos [palavra ilegível] quantia superior a oito mil cruzeiros mensais,
cobrando vinte cruzeiros por bico de luz. Esses, disse o orador, são os que não querem a
mudança da favela para outro local mais aprazível.
(O Estado de S. Paulo, 01 de setembro de 1951, p. 4).
Este caráter de certa forma temporário assumido pelas favelas, fez com que elas não
recebessem a devida atenção por parte das autoridades. É recorrente as matérias de
jornais que, buscando encarar esses espaços e constatando esta certa volatilidade que
assumiam no espaço da cidade, promovem apelos aos governantes para que fossem
pensadas soluções efetivas.

AS NOSSAS FAVELAS SEM SOLUÇÃO


Mais uma favela foi desmanchada e mais gente se transferiu, de um lugar de miséria para
outro lugar de miséria.
Pouco habituado como se acha o poder público em considerar os problemas à luz da técnica
moderna e das doutrinas sociais que servem aos princípios do turismo, estamos longe de
admitir que a habitação constitui um serviço de utilidade pública. Se a comunidade urbana
tem necessidade de água, de esgotos, de transportes, de luz, de calçamento e outros
elementos da vida nas cidade, não resta dúvida de que tem necessidade de habitação digna,
e como é proletária a massa humana das grandes concentrações urbanas, como se vê em
São Paulo, segue-se que a habitação proletária é que cabe ser incentivada, desde que haja
uma concepção da parte do poder público.
Este doloroso caso das favelas não cabe apenas na idealização de caridade: é dever social
para o qual apela o tugúrio.
Indiscutivelmente, trata-se de uma solução que demandará tempo, quando houver uma
administração interessada nesse serviço de utilidade pública. Cidades enormes como a
capital britânica, onde parecia um problema insolúvel e eterno o dos “slums”, desde 1944
adotaram planos para liquidar com a casa miserável, o cortiço hipercongestionado, os
pontos doentes da condensação urbana.

● 3
As nossas favelas, na verdade, são recentes. Elas tendem, porém, a crescer de maneira
espantosa, pois apenas há doze anos São Paulo as conhece, do início da crise de habitações
com que até agora lutamos, sobrepujamos, sem dúvida, a paralisia que atacou a cidade no
ramo da construção, de 1941 a 1946. Acabamos agora de sair de um mês em que há um
recorde na construção paulistana e as favelas são tangidas para outras favelas. A cidade
cresce, sem oferecer solução à casa proletária que um instinto social da administração
necessita produzir.
Com uma orientação urbanística eficiente, que há de chegar, os destinos das favelas
poderão ser considerados, um dia, definidos na história da nova habitação que o paulistano
terá, e que estará longe, a perder de vista, destas migrações andrajosas e deterioradas, a
que assistimos sem mexer um dedo.
(Diário da Noite, 29 de agosto de 1951, p. 2)
As ações relativas às favelas paulistanas têm início ainda na década de 1940, mas
assumem um caráter bastante pontual e inicial. Aquelas que tinham como pretensão a
criação de um plano mais geral para a solução das favelas, apresentaram neste primeiro
momento apenas seu embrião. Dentre os atores da sociedade que se envolveram com as
favelas neste primeiro momento, podemos citar: a prefeitura; a Igreja; as assistentes
sociais, que foram pioneiras na ação em favelas; e os órgãos de imprensa, principalmente
jornais.

Uma das primeiras ações nas favelas, desenvolvida pela Prefeitura da cidade de São
Paulo, foi na Favela do Glicério, localizada na Avenida do Estado. É notável, procurando
em jornais da época, como esta favela começa a entrar em evidência, ainda no ano de
1946, quando o então prefeito da cidade, Abrahão Ribeiro, anuncia que tomará medidas
para auxiliar os moradores.

O prefeito da capital, em companhia do titular da pasta da Educação e Saúde Pública, esteve


há dias em visita à “favela” que se formou em terrenos da antiga varzea do Glicerio, ao
longo do canal do Tamanduateí, tendo conversado com os moradores dos casebres
improvisados naquele local, para colher impressões mais seguras sobre suas necessidades
e pretensões. E s. exc., ao que consta, prometeu dar alojamento mais decente e confortável
àquela pobre gente, tendo alvitrado a construção de um vasto barracão, dividido em
cômodos, com instalações sanitárias suficientes, onde as famílias ora reduzidas a condições
miseráveis pudessem viver sem constrangimentos e penúria.
(Correio Paulistano, 01 de março de 1946, p. 4)
As visitas do Prefeito resultaram em um plano de construção de grandes pavilhões de
madeira, no próprio terreno em que já se localizava a favela do Glicério. Cada pavilhão
seria subdividido em casas para cada uma das famílias, enquanto as instalações sanitárias
ficaram concentradas em um único pavilhão, sendo cobrado um valor mensal pela
prefeitura para manutenção. Esta iniciativa se comparou e se inspirou nos Parques
Proletários construídos no Rio de Janeiro (NASCIMENTO, 2008).

● 4
Figura 01. Favela do Glicério. Correio Paulistano, 1946, Março 15.

A favela do Glicério acabou se tornando uma referência na cidade de São Paulo, tanto em
termos de iniciativa, quanto para as pessoas que recorrentemente migravam para aquele
espaço. De forma que, com o tempo, a favela não parou de crescer, surgindo mais núcleos
nas adjacências dos pavilhões. Para entendermos como de fato essa favela era uma
referência na cidade basta olharmos para a notícia do despejo da Favela do Bom Retiro:

Mas, por incrivel que pareça, essa gente vai ser “despejada”. Despejada de que? Daqueles
cubículos imundos, ao prefeito Paulo Lauro, através do JORNAL DE NOTÍCIAS: que
construa, na Favela Prestes Maia, mais alguns barracões, e abrigue essa centena de famílias
brasileiras que sofre cruelmente. E estamos certos de que o bom coração do governador
da cidade, provado já em tantos atos de desprendimento e bondade há de ouvir esse grito
que parte do fundo da alma de tantos brasileiros, e o apelo dos moradores da Favela do
Bom Retiro será atendido.
(Jornal de Noticias, 07 de setembro de 1947, p. 7)
O Prefeito de São Paulo em 1947, Paulo Lauro, anunciou a construção de 100 casas para
os moradores da Favela do Bom Retiro, em terreno adjacente. O jornal Jornal de Notícias
se vangloriou, em reportagem, que o prefeito “a convite do JORNAL DE NOTÍCIAS, visitou
o local e imediatamente tomou providências para que ali fossem construídas modernas
habitações, modestas mas higiênicas” (Jornal de Notícias, 07 de setembro de 1947, p.
12). Apesar da tentativa, o projeto não foi para frente por falta de verba.

A imprensa acaba assumindo um papel em relação às favelas. Suas abordagens são as


mais diversas, noticiando por vezes a existência de determinada favela para chamar a
atenção para a população; ou então trazendo iniciativas tomadas por parte da prefeitura
ou de outras organizações, que tinham como objetivo melhorar as condições de vida dos
moradores; ou até noticiando casos de despejo ao qual os moradores das favelas
estiveram sempre ameaçados.

De fato houve, no decorrer dos anos, inúmeros anúncios de construção de casas para os
moradores das favelas, que miravam em favelas específicas. Ou seja, não era um plano
mais geral. Vale lembrar também que algumas dessas ações da prefeitura eram realizadas

● 5
apenas quando a favela estava na iminência de ser despejada, geralmente pela
necessidade do uso do terreno em que se localizavam.

Em 1950, por exemplo, a Favela da Lapa teve de ser desalojada para a construção do
Mercado da Lapa. A prefeitura, que era também responsável pelo próprio projeto do
mercado, teve que tomar providências e, para isso, realizou a transferência da Favela da
Lapa para a Favela do Piqueri. A construção do mercado acaba sendo quase que uma
desculpa para a expulsão dos moradores da favela, como podemos ver nesse trecho de
uma fala de Ermano Marchetti, responsável pelo projeto:

O vereador Ermano Marchetti, autor do projeto de lei de construção do Mercado da Lapa e


da emenda abrindo o crédito de um e meio milhão de cruzeiros para transferência da
“Favela do Lapeaninho”, defendeu as medidas tomadas para a mudança desta última, na
sessão de ontem da Camara Municipal. Assinalou que não se trata apenas de transferir os
barracões de um lugar para outro, mas também de sanear um bairro populoso, como a
Lapa, do mal que se localizou no seu próprio centro, acarretando transtornos à sua vida
normal. Disse que, ao encaminhar o projeto do Mercado, tinha em vista atender às
necessidades econômicas da Lapa, dos seus moradores e dos bairros circunvizinhos,
proporcionando-lhes mais facil meio de abastecimento de verduras, carne, peixe e outros
gêneros de primeira necessidade. A localização, porém teria de ser feita, pelas razões que
a própria Câmara reconheceu, no terreno em parte ocupado pela “Favela do Lapeaninho”.
E isso, longe de trazer transtornos à administração ou de tumultuar a solução dos
problemas da Lapa, veio, pelo contrário, beneficiar a uma e a outros. Com efeito, afirmou,
a transferência que se impunha por vários motivos, inclusive por se haver a “Favela”
transformado num foco de perversão de crianças e jovens, tinha agora a seu favor mais
uma razão, de ordem administrativa imediata, qual fosse a de construção do mercado.
Lembrou as denúncias feitas em plenário pelos então vereadores Cid Franco e Janio
Quadros, no tocante à situação da “Favela do Lapeaninho”.
(Diário da Noite, 01 de setembro de 1951, p. 3).
É possível notar no discurso de Marchetti como a favela era algo indesejado para aquele
bairro e para aqueles moradores. E, por isso, deveria ser retirada do local e ir para outro.
Seus moradores eram vistos como um mal para o bairro da Lapa, que saia da
“normalidade” da vida. A Favela da Lapa acabou sendo transferida para além-rio, indo
para o Piqueri e sendo sua população expulsa da área central da cidade, como se aquele
espaço não lhes pertencesse: a modernização avançava e os favelados não eram vistos
como parte dela.

● 6
Figura 02. Favela do Piqueri. Godinho, 1955, p. 15.
Houve alguns casos em que a prefeitura anunciava o desejo de um plano mais geral para
estas favelas – ou para mais de uma favela simultaneamente –, mas estes de fato não
saiam do papel. O vereador André Nunes Júnior propôs, em 1950, um plano para atender
as favelas do Glicério, da Lapa e da rua França Pinto, sendo que esta última estava na
iminência de ser despejada.

Procurando colaborar na solução desse grave problema encaminhei um projeto de lei que
visa fornecer ao poder publico municipal os recursos financeiros necessarios à construção
de 25 conjuntos de 20 habitações cada um, em area de terreno de propriedade do
Municipio, situada entre os canais do Tamanduateí e do Tietê, orçado cada conjunto em Cr$
314.000,00, de acordo com o projeto de discriminação, elaborado em colaboração com a
unidade competente da Secretaria de Obras, num valor total de Cr$ 7.850.000,00. Os
conjuntos que comportarão 3.000 pessoas serão locados por preços mínimos aos atuais
ocupantes das “favelas” referidas, na forma do regulamento a ser baixado pelo Executivo,
de modo a ser feita a seleção dos moradores, excluídos os de maus antecedentes e os
menos desajustados. A quantia restante – um milhão de cruzeiros, destina-se a cobrir as
despesas com obras complementares tais como vias de acesso, extensão e esgotos, adução
e água, etc. A egrégia Câmara saberá reconhecer o alto sentido social do projeto.
(Jornal de Notícias, 29 de junho de 1950, p. 12)
Essas ações da prefeitura buscaram tratar da questão da favela de uma forma mais
pontual e quantitativa, buscando sempre atender através de uma quantidade de unidades
habitacionais. Esta forma de ver a favela se reflete no próprio fato da prefeitura não ter
elaborado nenhum levantamento da totalidade das favelas, sendo que o primeiro
publicado apenas em 1970. É nesta mesma década, no ano de 1971, que a prefeitura
lança o Projeto de Desfavelamento.

O presente projeto constitui uma proposta de abordagem do problema favela e da


população vítima de calamidade pública, através de um nôvo enfoque – criação de núcleos

● 7
de habitação provisória – numa tentativa de intervir no problema controlando e tratando
sistematicamente.
Este novo sistema de desfavelamento oferecerá alternativas em sua implantação, em
têrmos de moradia provisória, com vistas a um tratamento social adequado dessas
populações, vinculados aos Sistema de Provisão de Habitações.
(Prefeitura de São Paulo, 1971, p. 1)
É notável, pela afirmação da proposta do plano, como são consolidadas formas de se ver
e de tratar os espaços das favelas. De certa forma, o embrião desse Projeto de
Desfavelamento veio do Desfavelamento do Canindé, a primeira ação de desfavelamento
de fato promovida pela prefeitura, que ocorreu no ano de 1962 (SÃO PAULO, 1962).

Uma outra ação que merece destaque é a da Comissão de Assistência Social do Município
(CASMU), criada pela prefeitura na década de 1950 e que tinha como objetivo o trabalho
de assistência social no município, contando com uma divisão específica para as favelas.
Marta Terezinha Godinho, em seu TCC, apresentado à Escola de Assistência Social de São
Paulo, apresenta como foi o trabalho em quatro favelas.

Quando em outubro de 1953, o senhor Prefeito, pela Portaria número 76 encarregou a


CASMU do trabalho nas favelas, o senhor Presidente da CASMU nos consultou sôbre a
possibilidade de irmos trabalhar naquele setor. Em virtude do número restrito de pessoal
técnico de que a CASMU dispunha naquele momento, verificou-se a necessidade de se
estabelecer um convênio com alguma obra particular que pudesse incumbir-se daquele
trabalho, pois a CASMU já se achava sobrecarregada. Foi então, que em janeiro de 1954,
estabeleceu-se um convênio entre a Confederação das Famílias Cristãs e a Prefeitura,
através da CASMU. [...] Nosso trabalho de conclusão de curso, portanto, será um apanhado
geral do que realizamos nas quatro favelas: Piqueri, Canindé, Barra Funda e Ibicaba,
salientando sobremaneira o trabalho nas duas primeiras que, em virtude de serem maiores,
atraíram a nossa especial atenção.
(GODINHO, 1955, p. 1)
O material fornecido por Marta Teresinha Godinho, do nosso ponto de vista, permite um
olhar mais próximo que os relatos oficiais sobre as favelas, aproximando-se quase que
como uma etnografia das favelas, na medida em que as assistentes muitas vezes
promovem descrições dos núcleos, dando a perceber a vida e presença de outras
instâncias que lá atuavam, como por exemplo a Igreja.

● 8
Figura 03. Posto da CASMU na Favela do Piqueri. Correio Paulistano, 1955, Dezembro 27.
Além da atuação por meio do convênio entre a Confederação das Famílias Cristãs e a
Prefeitura, apresentada por Godinho, a Igreja acabou atuando de diferentes formas nas
favelas. Fosse por meio de projetos, como o do Movimento Graal que atuou na favela das
Perdizes:

Quanto ao campo social, em cooperação com os padres da paróquia de São Domingos e


em união com os próprios habitantes da favela nas Perdizes, procura o “Graal” formar uma
verdadeira comunidade humana no meio dos paroquianos mais necessitados, esperando
que essa experiência possa tornar-se inspiração e exemplo para outras regiões
desfavorecidas. Esta tentativa exige profunda base espiritual e compreensão da
comunidade e abrange várias atividades concretas tais como: visitas às famílias, instrução
das crianças, preparação para o matrimônio, cursos de economia doméstica, parte
recreativa.
(Correio Paulistano, 24 de julho de 1947, p. 15)
Ou então pela celebração de missas nos espaços das favelas, tendo um sentido de
caridade:

Celebrava a missa um dominicano. Frei Nicolau, que em outros Natais já celebrou missas
em outras favelas. O altar improvisado sobre alguma mesinha tosca de um “barraco”
qualquer. Um favelado sentir-se-ia orgulhoso de ceder um móvel para a celebração do
santo sacrifício.
Os castiçais, aara, os paramentos, foram levados pelo proprio sacerdote, numa velha mala
de pano couro. Chegamos ao Kyrie e daí ao Evangelho.
– Laus, tibi Christe.

● 9
O donminicano virou-se para o pequeno grupo de favelados. Homens e mulheres acabados
pelo sofrimento, envergando as melhores roupas. A velha india demente com seu cão “Firu”
também prestava atenção. Começou a prática. Alguns sentaram-se de cócoras. As
mocinhas caridosas continuavam lançando para nós e para a máquina olhares furiosos.
Enquanto isso o sacerdote falava, lembrando àquela gente humilde trechos do Evangelho.
Em muitos era possível notar o contentamento interior, o bem que lhes faziam aquelas
palavras.
(Correio Paulistano, 27 de dezembro de 1955, p. 8)

Figura 04. Celebração de missa na Favela do Piqueri. Correio Paulistano, 1955, Dezembro 27
Ao nos atermos à forma com que a Igreja e as assistentes sociais olham para os
moradores das favelas, é possível notar uma certa confluência de ideias. Para Godinho,
os moradores das favelas da época eram marginais e desajustados, sendo a favela “um
lugar de desajustamentos profundos, tanto no plano físico como moral, constituindo,
portanto, uma séria ameaça à nossa civilização” (GODINHO, 1955, p. 319). A resolução,
presente em seus relatórios, viria apenas através da educação, principalmente a religiosa,
e a melhoria da condição de vida como um meio, e não um fim, mostrando profundas
relações entre o Serviço Social e a religião.

Marta Teresinha Godinho foi uma figura que atuou nas favelas desde seus primórdios,
como demonstrado, e ajudou a fundar, no ano de 1961, o Movimento Universitário de
Desfavelamento, conhecido como MUD, que terminou no ano de 1967. Congregava
estudantes de diversas universidades, como a Faculdade de Medicina da USP e a
Faculdade de Direito da USP, e se colocavam em uma conjuntura efervescente,
principalmente por conta da publicação do livro Quarto de Despejo, de Maria Carolina de
Jesus. O Movimento acabou representando um certo avanço no que diz respeito a forma
de entender as favelas:

Para o M.U.D. era claro, também, que um programa que procurasse erradicar todas as
favelas de São Paulo era inexequível, pois o problema estava condicionado ao
subdesenvolvimento e ao desequilíbrio de desenvolvimento das regiões brasileiras, bem
como às estruturas econômico-sociais defeituosas.

● 10
O Movimento adotava também, como objetivo, sensibilizar poder público, entidades de
classe, organizações particulares e sociedade em geral, para o problema das favelas e de
seus moradores, nos seus vários aspectos, nas suas causas e efeitos. O MUD também
objetivava chegar, junto com órgãos envolvidos no assunto, à formulação de diretrizes e
sugestões práticas para a solução dos problemas por ele enfrentados, relativos à habitação.
Com a concepção de teorizar na prática, o MUD buscou assessoria junto a Divisão de Serviço
Social da Prefeitura que vinha realizando desfavelamento na cidade. O MUD contou também
com a contribuição de alguns professores universitários, que encontraram dificuldade em
acompanhar a prática dos trabalhos e aos poucos foram se afastando do movimento.
(TANAKA, 1995, p. 16)
A narrativa das favelas de São Paulo que se estabeleceu contemporaneamente a elas,
isto é, de como elas foram tratadas, da década de 1940 à década de 1970, é reiterada
principalmente quando esses espaços são colocados em perspectivas com outras cidades,
como no caso do Rio de Janeiro, sendo tratadas como algo menor. O Projeto de
Desfavelamento do Canindé, traz essa ideia:

Em 1957, calculava-se 50.000 o número de favelados.. Já agora poder-se-á estimar em


mais de 70.000. [...] Comparando-se com a população favelada do Rio, que, segundo os
mais otimistas, chega a 700.000 e outros a 1.000.000 para uma população pouco inferior
à de São Paulo, a de Belo Horizonte que com cerca de 700.000 habitantes possui 60.000
em favelas, a de Recife com cêarca de 800.000 habitantes, dos quais 200.000 favelados, a
de Brasília que, ao inaugurar-se em abril de 1960, tinha a metade de sua população, isto
é, 60.000 homens vivendo em favelas, a situação de São Paulo não é má, quanto ao
número.
(SÃO PAULO, 1962, p. 10)
A relação entre as favelas da cidade do Rio de Janeiro e as de São Paulo é algo recorrente,
principalmente porque as duas cidades apresentaram formas bem distintas de lidar com
esses espaços. Enquanto o Rio de Janeiro já estava lidando com as favelas desde a década
de 1940, principalmente com a construção dos Parques Proletários (NASCIMENTO, 2008),
a cidade de São Paulo ainda nem reconhecia a existência contundente desses espaços e
a necessidade de lidar com eles de uma forma mais ampla.

A constatação do apagamento sofrido por essas primeiras favelas contemporaneamente


causou o que já chamamos de um registro esparso e fragmentário desses espaços e,
também, de seus sujeitos. Dessa forma, como já demonstrado, para conseguirmos
compreendê-los é necessário recorrermos a outras fontes de informações, normalmente
fontes primárias, como os jornais, que eles próprios reconhecem essa certa ausência:

O sr. Abrahão Ribeiro percorreu demoradamente o novo bairro da cidade (bairro que não
consta nos mapas mais modernos), penetrou nas residências de alguns moradores e
concordou com a opinião geral: a existência desse agrupamento humano praticamente
ignorado pelas autoridades do país atenta contra os foros da civilização da Paulicéia. (Diário
de Notícias, 1946, Fevereiro 26, p. 25)
Essa construção e percepção das favelas na cidade de São Paulo — seja em um sentido
material, seja em um sentido bibliográfico — causou um não reconhecimento das
primeiras favelas, cujo desenvolvimento foi vinculado à década de 1970. Isto porque é
nesse momento que as dimensões desses espaços na cidade passam a ser extremas e
quando o Estado assume uma maior responsabilidade em fazer algo capaz de resolver ou
mitigar o problema.

● 11
O contexto descrito faz parte de uma ideia que se construiu sobre os espaços das favelas
e que perdura até os dias de hoje em nossas leituras, principalmente dentro do espaço
acadêmico. Ao olharmos para alguns trabalhos que se propões a fazer leituras das favelas,
consolidados principalmente por uma tendência historiográfica da década de 1990,
podemos destacar alguns: a tese da professora Laura Bueno (2000), os estudos da
professora Suzana Pasternak (2001) e o livro do professor Nabil Bonduki (2004). A
mobilização destes materiais é essencial para propormos outras formas de leitura da
cidade e da própria história do urbanismo paulistano, que levem em conta estes outros
espaços.

Suzana Pasternak, em seu texto “Favelas em São Paulo – censos, consensos e contra-
sensos”, busca destrinchar a lacuna existente na reconstituição histórica da forma de
habitar da favela. Seu estudo é baseado principalmente em termos quantitativos,
trazendo sempre embasamentos estatísticos para aquilo que está dizendo. Dentre estes
embasamentos, traz números que descrevem as primeiras favelas da metrópole
paulistana, como por exemplo quando afirma haver em 1957 um total de 141 núcleos de
favelas (TASCHNER, 2001, p. 9).

Se pensarmos São Paulo em sua formação urbana, a década de 1940 demonstra uma
metrópole que se constituía. E esses números demonstrados por Suzana evidenciam a
presença de favelas já nessa época, também como um desdobramento da construção
dessa cidade. No parágrafo seguinte a demonstração dos números por Suzana,
entretanto, nos é intrigante:

Embora presente desde há muito, o fenômeno favela, em São Paulo, só vai se desenvolver
em larga escala nos anos 70. A montagem de um Cadastro de Favelas, na Secretaria do
Bem-Estar Social, em 1973, permitiu uma mensuração bastante exata do número de
favelas e domicílios. Nas moradias, aplicou-se um formulário abrangente, numa amostra
ampla, sobre caracterização domiciliar e populacional. Através do dado “pessoas por
unidade domiciliar” foi estimado o número da população favelada total. Em 1973/1974 a
população favelada paulistana não alcançava 72 mil pessoas (71.840), cerca de 1,1% da
população municipal.
Em 1975 foi feita uma atualização do cadastro de 1973/1974, com nova contagem de
favelas e domicílios favelados, possibilitada por voo de helicóptero. Não se fez nova
pesquisa de campo amostral, considerando que o número de pessoas por unidade domiciliar
se mantinha. A população favelada crescera para 117.237 pessoas, representando 1,6%
da população do município.
(TASCHNER, 2001, p. 10)
A autora evidencia uma crescente na quantidade de favelas na virada das décadas de
1960 e 1970. Entretanto, ao afirmar que o fenômeno da favela só se desenvolverá em
larga escala a partir da década de 1970, isso encobre a importância das favelas que
vieram anteriormente e que fazem parte desse desenvolvimento tanto quanto as das
décadas seguintes.

Neste mesmo sentido parece caminhar Laura Bueno em sua tese de doutorado Projeto e
Favela: metodologia para projetos de urbanização (2000). Apresenta um quadro geral da
política estatal para as favelas brasileiras e, em específico, no Município de São Paulo.

● 12
Para isso, mobiliza alguns documentos das primeiras favelas paulistanas e tenta
estabelecer uma certa narrativa sobre elas, retomando dados e informações dos mais
diversos documentos. Para Laura, as iniciativas apresentadas para as favelas em suas
primeiras décadas, “são pontuais e não dão conta da questão habitacional, sendo que em
São Paulo é o loteamento precário na periferia que irá responder à demanda habitacional
crescente com a dinamização econômica da Capital.” (BUENO, 2000, p. 54).

De fato, as primeiras iniciativas para as favelas tiveram um caráter bastante específico,


agindo pontualmente nesses espaços, como já demonstrado. Entretanto, devemos tomar
cuidado ao dizer que a demanda habitacional será respondida por meio do loteamento
periférico: ele pode ser mais expressivo em termos quantitativos, mas não deve
obscurecer a favela como uma forma de resposta a essa demanda, resposta essa dada
nos termos mais críticos de sobrevivência de indivíduos na metrópole. Nabil Bonduki, em
sua obra Origens da habitação social no Brasil (2004), identifica esta questão:

Formada pelo mesmo estrato social da favela, a periferia foi preferida pelos milhares de
trabalhadores despejados e migrantes recém-chegados. Por razões urbanísticas, culturais
e econômicas, as favelas e outras formas de ocupação de terra não cresceram em São
Paulo como no Rio de Janeiro, em Recife e em Salvador, cidades em que porcentagens
significativas de suas populações já viviam nos anos 1940 e 1950 em áreas invadidas e nas
quais foram desenvolvidas políticas públicas voltadas para remover favelados (entre outros,
Leeds 1978 e Melo 1987).
O surgimento das favelas em São Paulo e seu crescimento em outras cidades, durante a
crise de habitação dos anos 1940, é fundamental para se compreender as profundas
alterações no modo de provisão de moradias que ocorreu no período nacional-
desenvolvimentista, quando se consolidava uma sociedade de base urbano-industrial. No
entanto, como resposta à crise de habitação, a construção pelos próprios trabalhadores de
casas individuais em loteamentos periféricos foi a alternativa que se revelou mais fecunda
e que, nas condições da cidade de São Paulo, podia expandir-se quase sem limites.
(BONDUKI, 2004, p. 272)
Esta maneira de olhar as favelas paulistanas que se consolidou na década de 1990,
colocou a favela como uma resposta à necessidade de habitação da década de 1970,
quando elas de fato tomam dimensões bastante grandes dentro do tecido urbano. O que,
de certa forma, voltou os olhares para esse período, nublando aquilo que as antecedeu e
que acabam recebendo apenas poucas páginas nos estudos sobre favelas.

É compreensível este olhar uma vez que a ação pública busca responder a estes termos
quantitativos das favelas. Entretanto, tendo em mente este sentido ao qual a bibliografia
tende a nos direcionar para a leitura das primeiras favelas da cidade de São Paulo,
tentamos desvendar esses espaços da cidade, que por muito tempo foram colocados
como de menor importância justamente pela sua dimensão reduzida.

Pensar nesse sentido é justamente reconhecer estes espaços como de importância dentro
da cidade e que merecem a nossa atenção, mesmo que quantitativamente não sejam tão
expressivos quanto as favelas cariocas, por exemplo. E é justamente o que o trabalho
com os jornais têm nos permitido mostrar, através da sistematização de suas
informações.

● 13
O ponto central que queremos mostrar é que se temos a questão da favela dentro da
cidade, que começa a atingir a vida de sujeitos urbanos, isso merece a nossa atenção.
Para além de uma história que se baseie em termos quantitativos, como aquela que vem
sendo construída acerca das favelas de São Paulo, buscamos tratar da cidade nos seus
interstícios, nas suas camadas mais cotidianas. O morar na favela é uma expressão de
como aquele determinado grupo se insere e é entendido dentro da metrópole. E, para
além disso, sua permanência ou apagamento do espaço da cidade é consequência direta
das políticas estabelecidas sobre esses sujeitos, influindo diretamente em suas dinâmicas
de vida.

O espaço das primeiras favelas tinha dinâmicas específicas, a depender da sua inserção urbana.
Aproximadamente ⅓ das favelas estava localizada em próprios municipais, enquanto as restantes
eram favelas instituídas em terrenos privados, normalmente de menores dimensões. Um aspecto
interessante de se perceber é que aquelas favelas que conseguimos uma maior quantidade de
informações são justamente aquelas em terrenos da prefeitura, muito por conta da
própria atuação da imprensa, que acompanhava as visitas a esses espaços ou apelava
para a prefeitura. Um exemplo interessante é quando da transferência da Favela da
Antônio de Barros para a Favela do Canindé:

Como foi amplamente noticiado pelos jornais os habitantes da Favela Antonio de


Barros foram notificados de que precisariam se retirar do local em que se
encontravam, pois o proprietário do terreno necessitava do mesmo. Os moradores
ficaram em situação bastante difícil, sendo encontrada pela Municipalidade a solução
do problema, na transferência de parte dos habitantes da Antonio de Barros para
os terrenos onde hoje está se formando a Favela do Canindé, o que pertencem à
Municipalidade.
(Jornal de Notícias, 13 de julho de 1948, p. 10)
Neste caso, a Prefeitura transferiu moradores de uma favela que estava localizada em
um terreno particular, para uma favela que se construía, a do Canindé, às margens do
Rio Tietê. Essa questão acaba influenciando no pagamento ou não de aluguel pelos
moradores, sendo também uma questão de especificidade de cada favela também. No
caso da Favela da Antônio de Barros, os terrenos foram ocupados pelos moradores que
construíram suas casas e, tempos depois, um advogado apareceu no local e começou a
lhes cobrar aluguel, mas sem o consentimento do proprietário que, ao tomar
conhecimento da situação, tratou de solicitar o despejo daquelas pessoas.

● 14
Figura 05. Inundação na Favela do Canindé. Correio Paulistano, 1960, Março 04.

Na Favela da Lapa, a situação é diferente. O terreno era um terreno Municipal, o que é


comprovado até pela própria construção do Mercado da Lapa. Entretanto, apesar de ser
um terreno da prefeitura, era cobrado aluguel dos moradores por terceiros, não
vinculados à municipalidade, como já demonstrado anteriormente. Já em outros locais,
por exemplo, como na Favela do Ibirapuera, em terreno municipal, não havia nenhum
tipo de cobrança de aluguel.

A localização destas favelas também era uma questão de relevância, uma vez que sua
localização em áreas centrais estava muito vinculada ao trabalho que exerciam, que eram
dos mais variados: Valdemar Francisco, que morava em uma favela da rua Ibitirama, era
ajudante de motorista de caminhão; Maria Carolina de Jesus, da Favela do Canindé, era
catadora de papel; Eurico Chioto, morador da Favela da Vila Prudente, trabalhava em
indústria; Julio Pereira de Freitas, da Favela do Bom Retiro, trabalhava na construção
civil. Quando da transferência da Favela da rua Ivaí para a Favela do Piqueri, esta questão
foi colocada:

Inconformados com a mudança forçada os favelados deixavam seus casebres


tristonhos e revoltados, enquanto funcionários da Prefeitura efetuavam a demolição
das choupanas.
“Onde vamos encontrar moradia barata por estes lados”, queixava-se a preta
Benedita Expedito, enquanto recolhia seus moveis do casebre

● 15
“O prefeito nos ofereceu terreno lá na favela do Piqueri mas é muito longe. Todos
meus filhos trabalham pros lados da Penha e, se formos morar na Lapa só de
condução se gasta mais de vinte cruzeiros por dia. Não podemos ir para a favela do
Piqueri por isso temos que nos alojar por aqui mesmo”, concluiu a velha negra.
Como ela muitos outros favelados reclamaram. Tinham familiares trabalhando pelo
bairro da Penha e Tatuapé motivo pelo qual não poderiam mudar para a favela do
Piqueri. Soubemos que apenas cinco famílias pretendem fixar casebres na Lapa, os
demais instalar-se-ão junto a um terreno na rua Guaiauna, próximo à avenida Celso
Garcia.
(Diário da Noite, 15 de junho de 1959, p. 11)
O caso da Favela da rua Ivaí nos parece exemplar por mostrar a desagregação de uma
favela e os destinos que eram concedidos aos seus moradores, cujo perfil era também
extremamente heterogêneo. É novamente a ideia da favela como o espaço que não
condizia com a imagem que São Paulo desejava naquele momento, ao mesmo tempo em
que a favela demonstrava para seus sujeitos uma forma de aquilombamento, como
proposto por Tadeu Kaçula (2020).

Se pensarmos na origem dos moradores das favelas, grande parte já vinha de um


processo de expropriação dos seus espaços de vida: alguns vieram do campo, através de
um processo de expulsão; outros não mais encontravam na metrópole um local para
fincar suas raízes. E a favela é uma resposta e uma continuidade a este processo, uma
vez que estavam sempre na iminência de ser expulsa, mas cujos moradores também
buscavam resistir, mesmo que pontualmente.

O olhar para a favela que precisamos lançar, portanto, é dialético, de forma que processos
que à primeira vista podem ser entendidos como opostos e contraditórios, demonstram
ser complementares, isto é, o desenraizamento e processos de resistência. Neste sentido,
é necessário virar a chave do apagamento desses sujeitos justamente para colocá-los
como protagonistas da metrópole, trabalhando sua memória, tão digna de ser olhada
quanto os sujeitos das favelas posteriores à década de 1970.

As fontes com as quais trabalhamos, neste sentido, ao contrário de serem uma barreira
interpretativa, na realidade se apresentam como potência, afinal constituem uma
fragmentação narrativa que demonstra a sociedade de conflitos na qual as favelas
estavam inseridas, por si só constituída de fragmentos nas suas mais diversas esferas
(CASTRO; SILVA; LIRA, 2020). Ser capaz de olhar para os fragmentos e entender as
favelas desvela a cidade a partir de um cotidiano ainda desconhecido, mas profundamente
transpassado por questões de raça, gênero e classe.

Isto porque, “quando as vozes das testemunhas se dispersam, se apagam, nós ficamos
sem guia para percorrer os caminhos da nossa história mais recente: quem nos conduzirá
em suas bifurcações e atalhos?” (BOSI, 2003, p. 70). Retomar os sujeitos desses espaços
é uma maneira de entender essas favelas que, vistas como espaços não desejados na
cidade, passavam por constantes processos de desmonte.

● 16
Para Ecléa, “quando desejamos compreender a cultura das classes pobres percebemos
que ela está ligada à existência e à própria sobrevivência destas classes” (BOSI, 2003, p.
151). As expulsões encontravam certa resistência por parte dos moradores e que se
tornaram uma potência dentro da cidade, apesar de não reconhecidas como tal, tanto
contemporaneamente a elas, quanto da própria bibliografia que se consolida sobre as
favelas posteriormente.

A tarefa do historiador de fazer ver outros espaços e outros indivíduos, por vezes
esquecidos pela historiografia, foi assumida neste artigo para lançar uma outra visão
sobre o surgimento das primeiras favelas da cidade de São Paulo. A construção
historiográfica a qual foram sujeitas, colocou-as como de menor importância no
desenvolvimento da cidade, justamente por serem quantitativamente ainda pequenas.

Nosso objetivo aqui, portanto, foi justamente de virar esta história do avesso, buscando
trazer à tona esta parte de São Paulo ainda desconhecida. O historiador Luis Antonio
Simas, afirma: “Busco, desde então, me aproximar – para compreender, escutar, calar e
escrevinhar - das formas de invenção da vida onde, amiúde, ela nem deveria existir de
tão precária” (SIMAS, 2019, p. 58).

Os fragmentos, resquícios, menções esparsas que obtemos são registros cotidianos das
favelas, e são entendidos aqui como potências interpretativas para as primeiras favelas
paulistanas. Virar a chave do apagamento, aqui, é uma forma de ir contra a cidade que
se insere incessantemente como um lugar de exclusão, trazendo para o protagonismo
cidades e sujeitos, mostrando que seus modos de vida e suas memórias têm sua
importância.

● 17
REFERÊNCIAS
ÁGUA para os favelados de Vila Prudente. Correio Paulistano, 27 de dezembro de 1955.
AJOELHARAM contritos no pó e na sujeita durante a celebração da missa de Natal. Correio
Paulistano, 27 de dezembro de 1955.
AS NOSSAS favelas sem solução. Diário da Noite, 29 de agosto de 1951.
AS “FAVELAS” paulistanas. Correio Paulistano, 01 de março de 1946.
BONDUKI, Nabil. Origens da habitação social no Brasil: Arquitetura moderna, lei do
inquilinato e difusão da casa própria. São Paulo: Estação Liberdade, 2004. 4a edição.
BOSI, Eclea. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Atelie
Editorial, 2003.
BUENO, L. M. de M. Projeto e favela: metodologia para projetos de urbanização. Tese
(Doutorado) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. São
Paulo, 2000.
CAMARA municipal. O Estado de S. Paulo, 01 de setembro de 1951.
CAMPOS, C. M. São Paulo Metrópole em Trânsito. São Paulo: Senac, 2004.
CASTRO, A. C. V. de; SILVA, J. M. de. C.; LIRA, J. T. C. de. Narrar por exepriências. In:
Nebulosas do Pensamento Urbanístico. Tomo III. Modos de narrar. Salvador: UFBA.
COOPERAÇÃO Estado Prefeitura para socorro às vitimas das enchentes. Correio Paulistano,
04 de março de 1960.
CURSO no movimento graal. Correio Paulistano, 24 de julho de 1957.
DESPEJADA a favela da Penha, a legião farroupilha acampou às margens do Tietê. Jornal de
Notícias, 13 de julho de 1948.
DESAPARECERÃO completamento as “favelas” existentes no bairro do Bom Retiro. Jornal de
Notícias, 25 de dezembro de 1948.
GODINHO, Marta Terezinha. O Serviço Social nas Favelas. Trabalho de Conclusão de Curso.
Escola de Serviço Social. São Paulo, 1955.
INICIADA a demolição dos casebres. Diário da Noite, 15 de junho de 1959.
KAÇULA, Tadeu. Casa Verde: uma pequena África paulistana. São Paulo: LiberArs, 2020.
MAIS de cem famílias do Bom Retiro entregues ao abandono e desespero. Jornal de Notícias,
07 de setembro de 1947.
MANCHA negra na cidade dos arranha-ceus. Correio Paulistano, 15 de março de 1946.
NASCIMENTO, Flavia Brito do. Entre a estética e o hábito: o departamento de habitação
popular (Rio de Janeiro, 1946-1960). Rio de Janeiro: Secretaria Municipal das Culturas,
Coordenadoria de Documentação e Informação Cultural, Gerência de Informa;cão, 2008.
PRECONIZADA a transferência da “Favela do Lapeaninho”. Diário da Noite, 01 de setembro
de 1951.
QUASE 9 milhões de cruzeiros a solução do problema das favelas. Jornal de Notícias, 29 de
junho de 1950.
SEABRA, Odette C. de L.. Os meandros dos rios nos meandros do poder: tietê e pinheiros:
valorização dos rios e das várzeas na cidade de São Paulo. São Paulo: Alameda, 2015.
São Paulo (CIDADE). Desfavelamento do Canindé. Divisão do Serviço Social da PMSP, 1962.
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SIMAS, Luis Antonio (2019). O corpo encantado das ruas. Rio de Janeiro: Civilização
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TANAKA, M. M. S. A vivência da realidade e a prática do fazer: Movimento Universitário de
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TASCHNER, Suzana Pasternack. Favelas em São Paulo - censos, consensos e contrasensos.
Cadernos metrópole. São Paulo: PUC-SP, Vol. 5, pp. 9 - 27.

● 18
VAI ser dada solução aos problemas que afligem os novos “bairros” surgidos em São Paulo.
Diário de Notícias, 26 de fevereiro de 1946.

● 19
MINAS É O BECO DO MOTA
A Décima Predial Urbana e o abastecimento de água no arraial do Tijuco entre os
séculos XVIII e XIX

MINAS IS THE BECO DO MOTA


The "Décima Predial Urbana" and the water supply in "arraial do Tijuco" between the
XVIIIth and XIXth centuries

Eixo temático: Memórias, representações, arquivos

BEDENDO, Letícia
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (NPGAU-
UFMG);
leticiabedendo@gmail.com
BRASILEIRO, Vanessa
Pós-doutora e professora do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo
(NPGAU-UFMG);
vbbrasileiro@gmail.com
RESUMO

O presente estudo tem por finalidade traçar relações entre o abastecimento de


água e o valor dos imóveis urbanos do arraial do Tijuco, atual Diamantina
(MG), no contexto dos séculos XVIII e XIX, a partir do documento intitulado
Décima Predial Urbana. Para isso, a pesquisa lança mão de fontes variadas
acerca da utilização dos corpos d’águas presentes no território, como
inventários, cartografias e relatos de viajantes da época. Ademais, utiliza-se o
recurso de geoprocessamento da cartografia datada em 1784, como forma de
identificar os recortes de drenagem presentes no território e os marcos
arquitetônicos capazes de orientar a localização das vias e quarteirões
remanescentes nos dias atuais. Em sequência, tem-se a comparação dos
resultados com os dados relativos aos valores das propriedades, presentes no
documento das décimas em suas versões de 1810, 1811 e 1831. O objetivo
final consiste em verificar a hipótese de que os locais com maior acesso à água
eram também os mais valorizados do arraial.

Palavras-chave: Arraial do Tijuco; Décima Predial Urbana;


Geoprocessamento; Água; Urbano.

ABSTRACT

The purpose of this study is to establish relationships between the water supply
and the value of urban property in the “arraial do Tijuco”, now Diamantina
(MG), during the eighteenth and nineteenth centuries based on document
entitled “Décima Predial Urbana”. In order to do this, the research makes use
of various sources that consider the use of the water bodies present in the
territory, such as inventories, cartographies and travelers' chronicles of the
time. Furthermore, the geoprocessing of the cartography dated 1784 is used
as a way to identify the drainage tributary present in the territory and the
architectural landmarks capable of guiding the location of the remaining streets
and blocks today. The next step is to compare the results with the property
value data from the 1810, 1811, and 1831 versions of the document. The final
objective is to evaluate the hypothesis that the places with greater access to
water were also the most valued in the village.

Key-words: Arraial do Tijuco; Décima Predial Urbana; Geoprocessing; Water;


Urban.
INTRODUÇÃO
A pesquisa no campo da história urbana conta, como possibilidade de material de
investigação, com uma série de registros individuais e coletivos, tais como imagens e
cartografias, que evidenciam os olhares e revelam percepções sobre o espaço. O
historiador francês Bernard Lepetit (2001a; 2001b) tece uma crítica ao uso de métodos
que visam encontrar tendências totalizantes ou oscilações cíclicas no campo da história.
Como alternativa, o autor defende a importância de favorecer, através da delimitação
clara do objeto, o diálogo entre as macro e microescalas de forma dialética, a fim de dar
voz às contradições próprias das múltiplas narrativas.
Em consonância, a teoria ambiental contemporânea apoiada na Ecologia Política propõe
que o espaço urbano deva ser compreendido por meio de uma visão na qual natureza e
cidade são elementos complementares na esfera atual. Swyngedouw (2009, pp. 100-101)
assume, a partir desta ótica, que a cidade é uma rede de processos na qual não existe
nada puramente “natural” ou “antinatural”. De modo complementar, Lefebvre (2001)
defende, a partir do contexto da pós-Revolução Industrial, que o tecido urbano pode ser
definido a partir das relações sociais, políticas, ambientais e infraestruturais, que
interagem em constante transformação material e simbólica.
O foco desta investigação se dá nas dinâmicas socioespaciais do tecido urbano do arraial
do Tijuco, atual cidade mineira de Diamantina, no recorte temporal dos séculos XVIII e
XIX. A documentação contemporânea à época hoje disponível traz um potencial
interpretativo acerca de como a sociedade vivenciava e integrava o lugar. Deste modo,
realizar o trabalho historiográfico a partir desses registros denota o desafio de unir os
fragmentos de linguagem e elucidar, a partir do presente, as capturas, rupturas e esboços
do passado. À primeira vista, parece inviável associar a realidade das cidades atuais aos
núcleos setecentistas e oitocentistas mineiros. Contudo, talvez seja exatamente esse o
ponto de partida necessário para a compreensão de aspectos espaciais consolidados da
vida cotidiana como reflexos do que nos séculos anteriores já se formava.
A exemplo, tem-se a relação direta dada atualmente entre terra e mercadoria. A terra
urbana, enquanto produto não multiplicável a ser explorado, torna-se palco constante de
conflitos de classe para obtenção de moradia, fonte de renda e de investimento (TONUCCI
FILHO, 2015, n.p.). Os processos de expansão urbana e valorização da terra, tão comuns
hoje em dia, podem, através de uma lente ampliada, ser entendidos como um conflito
inerente de sociedades desiguais, onde a população abastada detém as melhores porções
do território, enquanto à parcela economicamente vulnerável restam os terrenos menos
valorizados, seja em decorrência de estarem distantes das principais fontes de riqueza ou
em condições naturais de difícil apropriação para moradia. Nesse sentido, um importante
artifício de análise socioespacial se dá no âmbito do abastecimento hídrico do espaço
urbano. Swyngedouw (2009, p.112) defende que o acesso à água, enquanto parte
integrante do direito à cidade, traz à superfície as contradições presentes em um sistema
socioeconomicamente desigual.
Diante disso, a análise se volta a compreender a questão do abastecimento de água no
contexto do arraial do Tijuco como forma de elucidar dinâmicas de poder e acesso às
infraestruturas nos séculos XVIII e XIX, em especial nas Minas Gerais, cujos primeiros
sítios urbanos nasceram em função da exploração de recursos naturais. Para tal, lança-
se mão dos dados contidos no imposto sobre as propriedades urbanas intitulado Décima
Predial Urbana em suas versões de 1810, 1811 e 1831, as quais contém informações
acerca do valor relativo ao rendimento dos imóveis ocupados do arraial. Além disso, em
auxílio, utiliza-se o artifício de geoprocessamento da cartografia do arraial de 1784 por
meio do software ArcGIS, como forma de evidenciar aspectos físicos relativos à
hidrografia e à tessitura do território. A análise, portanto, visa estabelecer relações entre
o acesso a fontes de água no arraial e o valor dos imóveis urbanos, de modo que se possa
traçar relações entre abastecimento e valorização da terra.

O CAMINHO DOS DIAMANTES


Segundo Pestana (2001, n.p.), o atual município de Diamantina está localizado na zona
mineira do Alto Jequitinhonha, entre as bacias hidrográficas dos rios São Francisco, Doce
e Jequitinhonha. Conforme complementa a autora, o início da formação do arraial se deu
em 1713 a partir da expedição bandeirante pelo ouro que seguiu o curso do rio
Jequitinhonha. O primeiro assentamento aconteceu em função da exploração na área de
confluência do córrego Pururuca e Rio Grande, mais especificamente às margens do
córrego Tijuco, entre as serras de Santo Antônio e São Francisco 1. A descoberta dos
diamantes aconteceu entre 1719 e 1722, junto às lavras dos córregos de Morrinho e
Caeté-Mirim.
O mapa de 1784 (Figura 1), de autoria de Antônio Pinto de Miranda, representa o arraial
do Tijuco com a demarcação de seus lotes, edificações e corpos d’água. Trata-se da vista
aérea do núcleo central do território no fim do século XVIII representado em nanquim,
tinta colorida e aquarela, e trazido em dimensões de 55x41,5 cm. O documento apresenta
ainda legenda, indicação de norte, escala, e é parte do acervo do Arquivo Nacional do
Exército, localizado no Rio de Janeiro, sendo possível sua solicitação em versão
digitalizada. Para a visualização das características da geografia física do território, o
mapa de 1784 foi georreferenciado no programa ArcGIS em sua versão 10.3 (Figura 2),
de modo a mostrar a localização dos corpos d’água nos dias de hoje.
Tanto a cartografia original quanto a geoprocessada dão destaque ao Rio Grande, situado
na base da serra homônima. Torna-se importante ressaltar que, por meio da base
cartográfica do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), disponível em escala
1:50.000, não foi possível detectar com precisão as redes hidrográficas dos dias de hoje
que permanecem desde 1784, visto que a cartografia histórica tem uma escala
aproximada de 1:5.000. O programa possibilitou, contudo, através das curvas de nível,
identificar os recortes de drenagem.

1
Local onde hoje se encontra a Rua Burgalhau, uma das primeiras a ser povoada (PESTANA,
2001, n.p.).
Figura 1: cartografia histórica do arraial do Tijuco, 1784.
Fonte: Arquivo Histórico do Exército, 06.01.1131, CEH 3207.
Figura 2: geoprocessamento da cartografia histórica - topografia e hidrografia.
Fonte: Arquivo Histórico do Exército, 06.01.1131, CEH 3207. Edição das autoras.

Ademais, a fim de identificar as vias e quarteirões da época remanescentes nos dias


atuais, foram destacados, também a partir do processo de geoprocessamento, imóveis
que funcionam como marcos do tecido urbano local e, portanto, auxiliam na orientação
na cartografia (Figura 3). Vale ressaltar que o produto final do mapa apresenta as
distorções próprias da comparação da cartografia histórica com a imagem de satélite.
Para a elaboração do geoprocessamento da cartografia histórica foram realizadas
aquisições de dados matriciais (arquivos de imagem .jpg, e .tif) e dados vetoriais
(arquivos .shp, .dwg e .kml) referentes ao polígono da área abrangida na planta, além do
quadrante compreendido pelas coordenadas planas 643500/649500E e
7981000/7983500N.
Figura 3: geoprocessamento da cartografia histórica - marcos da arquitetura.
Fonte: Arquivo Histórico do Exército, 06.01.1131, CEH 3207. Edição das autoras.

A numeração se refere aos seguintes imóveis/equipamentos urbanos: 1 – Praça


Conselheiro da Mata – Igreja Matriz; 2 – Hotel Tijuco – Antiga Praça; 3 – Casa da Glória;
4 – Casa do Contrato; 5 – Casa Chica da Silva; 6 – Antiga Praça da Cavalhada Nova (atual
Praça Barão de Guaçuí); 7 – Museu do Diamante; 8 – Fórum, e; 9 – Capela Nossa Senhora
da Luz. Em associação aos cortes de drenagem, torna-se possível espacializar o
abastecimento de água das regiões do núcleo urbano no decorrer dos séculos.
O ABASTECIMENTO DE ÁGUA NO ARRAIAL

A Captação
A captação das águas no arraial do Tijuco acontecia através da abertura de canais,
chamados “regas”, que faziam chegar as águas até as valas para atender a extração ou
a população. A primeira foi aberta em 1740 a partir do Rio das Pedras, que descia o morro
de Santo Antônio, sendo usada na lavagem de ouro realizada por uma sociedade chamada
Lavra da Roda, e que teve suas águas desviadas para atender a povoação. Contudo, antes
que atingisse o arraial, foi construído um tanque para que pudesse ser separado, por
decantação, o ouro dos sedimentos, fazendo com que a água chegasse suja para a
população (SANTOS, 1976, p.103). O primeiro rego público de abastecimento de água
potável para a população foi aberto em 1752 como uma derivação da rede anterior
(VASCONCELLOS, 1959, p. 127). A cartografia do arraial do Tijuco, datada em 1775
(Figura 4), indica a localização da rega e do tanque referidos (Figura 5). Abaixo dele, a
vala se bifurca em duas, permitindo que o abastecimento de água seja feito diretamente
para um quintal situado na Rua Direita.

Figura 4: pequena planta do arraial do Tijuco, 1775.


Fonte: Arquivo Histórico do Exército, 06.01.1131, CEH 3207.
Figura 5: detalhe planta do arraial do Tijuco, 1775.
Fonte: Manuscritos Avulsos de Minas Gerais (MAMG), AHU,
C, n.255/1162. Edição das autoras.

Com relação aos quintais retratados na cartografia de 1784, é possível perceber as


porções coloridas ocupando os lotes próximos aos cursos d’água, indicando que a água
era usada para irrigação particular. A presença de desvios da água indica um arraial
privilegiado em termos de abastecimento, onde algumas residências podiam ter o luxo do
acesso à água de forma particular. Além disso, a vista planificada de 1784 identifica uma
maior presença de hortas, representadas pelas formas retangulares amareladas, à
medida que o parcelamento do território se torna mais espraiado. Já na porção central do
núcleo urbano, os lotes são menores e mais estreitos, predominando a vegetação
arbustiva ou arbórea. Uma explicação para essa disposição pode derivar da opção pelo
cultivo de hortaliças próximo aos corpos d’água, como forma de otimizar o processo de
irrigação.

Os Relatos
Muito do que se conhece a respeito das paisagens do Brasil colonial advém dos relatos
pictóricos e escritos de autoria dos viajantes europeus que adentravam no interior do
território. Certamente, o que mais contribuiu para a descrição do arraial do Tijuco foi o
do naturalista francês Auguste Saint-Hilaire (1779-1853) que, em 1818, viveu no
território e descreveu suas experiências com os habitantes e as características da
geografia física do local. No ano de sua visita, ele descreve uma aldeia de cerca de 6 mil
habitantes e 800 casas, que surgira às margens pantanosas do córrego Tijuco, cujo
próprio nome significaria “barro” e teria origem em uma língua indígena não
identificada(SAINT-HILAIRE, 1941, p. 33).
No decorrer da obra, o autor constantemente faz referência ao contraste entre a flora de
aspecto desértico e rasteiro e os quintais floridos e repletos de plantações de hortaliças.
No entorno do espaço urbano, o solo era árido e impossibilitava a agricultura,
principalmente pelo fato de as técnicas de plantio, segundo o relato, serem rudimentares
e impróprias (SAINT-HILAIRE, 1941, pp. 39-40). Com relação ao abastecimento de água
no arraial, Saint-Hilaire descreve:

As águas que se bebem em Tijuco são excelentes; são fornecidas por pequenas fontes que
nascem na própria montanha onde é construída a aldeia. Existem chafarizes em grande
número de casas, além de 3 públicos, sem ornamento algum. Um riacho denominado Rio
das Pedras teve suas águas desviadas para a povoação, mas, como suas águas não são de
boa qualidade apenas servem para a lavagem de roupas e irrigação de jardins (SAINT-
HILAIRE, 1941, p. 39).

O autor ainda acrescenta que uma das grandes ambições da população como um todo
era a posse de uma pessoa escravizada, que pudesse, dentre outras funções, ser
responsável por buscar água nas fontes públicas. Em concordância, Fonseca (2011) traz
que algumas tarefas que exigiam muita água eram realizadas nos chafarizes, o que fazia
com que muitos escravos se encontrassem no local. Esses encontros eram vistos com
apreensão pelas elites, que temiam por rebeliões (FONSECA, 2011, p. 528).

Os Chafarizes
Fonseca (2011) escreve que os chafarizes eram equipamentos urbanos ligados ao
requinte, fazendo com que aparecessem apenas em locais notáveis da capitania. Segundo
a autora, a construção e manutenção dos chafarizes era uma atribuição do poder público,
contudo, em vista das contribuições raras por parte da metrópole, muitas vezes eram as
elites locais que arcavam com os gastos. A autora ainda lembra que a maior parte dos
chafarizes, no caso de Minas Gerais, foram construídos a partir da segunda metade do
século XVIII, visto que o encerramento das lavras, decorrente do esgotamento das
jazidas, possibilitou que os córregos e canais artificiais que atravessavam os espaços
urbanos pudessem ser utilizados pela população (FONSECA, 2011, p. 525).
Como já mencionado, Saint-Hilaire, em seus relatos, descreve que, já em 1818, existiam
três chafarizes públicos que abasteciam a população, além dos particulares. Desses, dois
foram identificados pelo autor como sendo localizados no Largo do Rosário e na Rua
Direita (SAINT-HILAIRE, 1941, p. 29). Pestana (2001, n.p.) esclarece que o primeiro a
ser construído foi o do Largo do Rosário, onde se localizava a igreja do Rosário dos
escravos, em 1787. Além dos chafarizes, eram comuns bicas e fontes espalhadas pelo
território, que atendiam a maior parte do abastecimento local. A autora destaca, ainda, o
atual prédio do Museu do Diamante, antiga residência do inconfidente Padre Rolim, que
contava com duas minas de água provenientes do Ribeirão do Tijuco, o qual passava por
dentro do terreno e também atendia ao chafariz da Rua Direita (Figura 6).
Figura 6: casa do Padre Rolim e chafariz da Rua Direita, Diamantina (MG). Fonte: TIRAPELI,
2018. Disponível em <http://acervodigital.unesp.br/handle/unesp/381350>.
Acesso em 05 de agosto de 2022.

A DÉCIMA PREDIAL URBANA

Conceituação
O imposto intitulado Décima Predial Urbana consistiu em um instrumento de cobrança
que incidia sobre as terras urbanas à beira-mar pertencentes ao Império Colonial
Português, com exceção das colônias na Ásia, e que, posteriormente, se estendeu para
as demais cidades, vilas e arraiais com mais de cem imóveis2 (CARRARA, 2006, n.p.). O
alvará que instituiu a cobrança data de 27 de junho do ano de 1808 e especifica que
deveriam ser pagos, anualmente, 10% do rendimento líquido dos prédios urbanos
compreendidos nas demarcações pelas respectivas Câmaras. Caso o imóvel não estivesse
em condição de ser alugado, era feita uma estipulação de seu rendimento (BRASIL,

2
Conforme Resolução complementar de 22 de agosto de 1808, na qual são apontadas dúvidas
acerca das determinações do Alvará de 1808, era considerado beira-mar qualquer núcleo que
estivesse à beira de um rio que se comunicasse com o mar (BRASIL, 1808b, p. 43). Além
disso, Carrara (2001) esclarece que a delimitação da porção urbana dos territórios ficava a
cargo dos responsáveis designados pela elaboração do documento, podendo esta variar no
decorrer dos anos.
1808a). No geral, a cobrança do imposto seguia o seguinte procedimento (artigo XI): do
preço do aluguel devia-se abater 10% para falhas e consertos; do valor resultante era
cobrada a décima parte. Por exemplo: a uma casa alugada por 7.200 réis, ou que pudesse
render a seu proprietário este valor, eram abatidos 10% para falhas e consertos, isto é,
720 réis. Do valor resultante – 6.480 réis – era cobrada a décima, que seria, neste caso,
equivalente a 648 réis (Figura 7).

Figura 7: trecho final da Décima Predial do arraial do Tijuco em 1810.


Fonte: ARQUIVO NACIONAL/Coleção Casa dos Contos de Ouro Preto/Décima Predial do
arraial do Tijuco; data de abertura: 1º de dezembro de 1800 [0M.1799].

Os registros utilizados na pesquisa são parte do acervo da Casa dos Contos de Ouro Preto
(MG), que conta, no total, com 469 livros relativos à cobrança da décima em diversas
regiões de Minas Gerais. A organização dos dados, compreendidos entre 1808 e 1835, foi
realizada pelo professor Angelo Alves Carrara em conjunto com alunos do curso de
História da Universidade Federal de Ouro Preto, com apoio do CNPq e da Pró-Reitoria de
Pós-Graduação e Pesquisa da UFOP. Segundo o autor, a documentação é uma fonte
importante para que se conheçam os ritmos de desenvolvimento dos núcleos urbanos
mineiros (CARRARA, 2001, 2006). No caso do arraial do Tijuco, o autor esclarece ainda
existirem versões do documento dos anos 1810 a 1831 e que o território é um dos poucos
em que não houve diminuição no número de propriedades no decorrer dos anos. O arraial
era, inclusive, em 1812, o terceiro povoado urbano com maior número de propriedades,
cerca de 790 prédios urbanos, atrás somente de Vila Rica (1651) e Sabará (785).
Para esta pesquisa, foram elencadas duas versões para análise comparativa: a primeira
versão, de 1810 (ARQUIVO NACIONAL, 1800) e a do ano seguinte, 1811 (ARQUIVO
NACIONAL, 1811). Essa escolha se deu em vista da necessidade de conhecer a realidade
do arraial quando o imposto foi implantado, como também de se comparar as
permanências e modificações tanto no documento quanto no espaço de um ano para o
outro. Em paralelo, a pesquisa dispõe da versão de 1831 do imposto (ARQUIVO
NACIONAL, 1831), mesma data em que o arraial passou à categoria de vila. O objetivo,
com ela, é analisar a situação econômica e espacial do território em comparação aos
primeiros anos de medição, como também lançar luz sobre como era a realidade do Tijuco
no momento de sua elevação.
A Décima Predial é um documento que apresenta algumas informações valiosas, como a
tipologia das propriedades, seus rendimentos, além do nome e características de donos
e inquilinos. Contudo, as versões disponíveis durante a pesquisa, referentes aos anos de
1810, 1811 e 1831, carecem da descrição detalhada acerca da localização dos imóveis,
exigindo que, antes da fase de análise dos valores das propriedades, fosse feito um
trabalho de investigação para que fossem localizadas algumas das personalidades do
arraial e suas respectivas residências.
Neste momento, as documentações complementares foram usadas como instrumentos
de identificação de personagens recorrentes nas descrições do arraial, informações que
muitas vezes vinham acompanhadas de pistas acerca da região onde suas propriedades
estavam localizadas. São elas (i) lista nominativa do arraial do Tijuco em 1774 3; (ii)
inventários transcritos e interpretados por Furtado (1996, 2002), disponíveis na Biblioteca
Antônio Torres, em Diamantina; (iii) transcrições e análise das escrituras de monumentos
da arquitetura civil por Machado Filho (1980, pp. 252-267); (iv) cartografia histórica de
1874. Torna-se importante ressaltar que o cruzamento de dados das três versões da
décima possibilitou constatar que a ordem da listagem permanece a mesma (Quadro 1).
Ademais, a lacuna entre as datas das décimas e da documentação complementar se
configura como inerente ao processo de cotejamento das fontes primárias, sendo
necessário assumir o caráter ensaístico da espacialização dos dados.

3
Trata-se de um censo no arraial de 1774 (AHU, MAMG, caixa 108, doc. 9.), elaborado pelo
intendente João da Rocha Dantas e Mendonça, onde são encontrados todos os chefes de
domicílio, agrupados nas suas ruas de residência. Para cada um, foi informado o nome, a cor,
a condição (quando forro), a profissão e o status civil; o número total de residentes na casa,
exceto aqueles escravizados, especificando seu relacionamento com o chefe (familiar ou
agregado), e se o imóvel era alugado ou próprio. Pelos nomes listados, pode-se ainda saber o
gênero de cada um.
# 1810 1811 1831

49 Manuel Ribeiro de Manuel Ribeiro de Manuel Ribeiro de


Carvalho Silva, c[apitão] Carvalho Silva, c[apitão] Carvalho [Silva, capitão]
- herdeiros

185 Irmandade Nossa Irmandade Nossa Senhora Irmandade de Nossa


Senhora do Amparo do Amparo Senhora do Amparo

186 Irmandade Nossa Irmandade Nossa Senhora Irmandade de Nossa


Senhora do Amparo do Amparo Senhora do Amparo

512 Hospital da Caridade Hospital da Caridade Hospício da Caridade

778 Josefa Maria [da Glória] - Josefa Maria da Glória – Fazenda Nacional
herdeiros da dona herdeiros

Quadro 1: exemplos de diferenças na nomeação dos proprietários dos imóveis registrados na


décima do arraial do Tijuco. Fonte: AN CC 1799; AN CC 1800; AN CC 2269. Abreviatura: #:
número da edificação no registro da Décima Predial.

Espacialização da Décima
Os dados da documentação das três versões da Décima Predial Urbana foram organizados
por ordem de valor, a fim de que fossem identificadas as propriedades civis mais e menos
valorizadas do arraial, excluindo da análise as propriedades sem valor descrito. Deste
modo, os Quadros 2, 3 e 4 apresentam a transcrição contida nas décimas de,
respectivamente, 1810, 1811 e 1831, sendo as linhas em verde relativas às propriedades
e maior valor e as em rosa, menor valor descrito. Além disso, a sistematização dos dados
conta com o ensaio das localizações dos imóveis com base na comparação entre as
décimas e as fontes complementares por meio dos nomes e ofícios identificados no
documento predial.
Tipologia
Rendimento
# Proprietário ou Décima (réis) Localização
(réis)
condição

778 Josefa Maria [da 2 sobrados 72.000 6.480 Atual Casa da


Glória] - herdeiros Glória, Rua da
da dona Glória

351 João Alves sobrado 60.000 5.400 Beco da Tecla


Ferreira Prado

436 Teotônia Caetana sobrado e 48.000 4.320 Próximo à


[de Mascarenhas], loja antiga Praça da
Cavalhada Nova
dona (atual Praça
Barão de
Guaçuí)
350 José da Cruz Silva sobrado e 43.200 3.888 Beco da Tecla
- herdeiros loja

16 Belquior Pinheiro sobrado 36.000 3.240 Atual Fórum,


de Oliveira Rua do Macau

529 João Tomás térrea 900 81 Próxima à


Capela da Luz

585 Maria Versiani térrea 900 81 Próxima à Rua


do Macau

586 Verônica Maria da térrea 900 81 Próxima à Rua


Glória do Macau

651 José Marinho térrea 900 81 -

709 Plácido Machado térrea 900 81 -

Quadro 2: Propriedades urbanas mais e menos valorizadas em 1810. Fonte: AN CC 1799.


Abreviatura: #: número da edificação no registro da décima predial; -: localização não
identificada.
Tipologia
Rendimento
# Proprietário ou Décima (réis) Localização
(réis)
condição

778 Josefa Maria da sobrado 72.000 6.480 Atual Casa da


Glória - herdeiros Glória, Rua da
Glória

351 João Alves sobrado 60.000 5.400 Beco da Tecla


Ferreira Prado

350 José da Cruz Silva sobrado 57.600 5.184 Beco da Tecla


- herdeiros

436 Teotônia sobrado 48.000 4.320 Próximo à


[Caetana] de antiga Praça da
Cavalhada Nova
Mascarenhas, (atual Praça
dona Barão de
Guaçuí)
16 Belquior Pinheiro sobrado 36.000 3.240 Atual Fórum,
de Oliveira Rua do Macau

529 João Tomás térrea 900 81 Próxima à


Capela da Luz

585 Maria Versiani térrea 900 81 Próxima à Rua


do Macau

586 Verônica Maria da térrea 900 81 Próxima à Rua


Glória do Macau

651 José Marinho térrea 900 81 -

709 Plácido Machado térrea 900 81 -

Quadro 3: Propriedades urbanas mais e menos valorizadas em 1811. Fonte: AN CC 1800.


Abreviatura: #: número da edificação no registro da décima predial; -: localização não
identificada.
Tipologia
Rendimento
# Proprietário ou Décima (réis) Localização
(réis)
condição

247 José Ferreira alugada 295.200 26.568 Rua da Quitanda


Pacheco

210 João Álvares alugada 156.000 14.040 -


Ferreira Prado
Chaves

336 Isabel Joaquina de alugada 132.000 11.880 Próxima à Rua


Jesus, dona do Rosário

436 Teotônia Caetana, alugada 122.400 11.016 Próxima ao


dona - herdeiros Mercado
Municipal

83 João Nepomuceno alugada 120.000 10.800 Próxima à Rua


Freire – do Bonfim
testamentaria

761 Miguel Velho de - 1.800 162 Próxima à Rua


Carvalho da Ópera

42 Plácido Pires - 1.800 162 -


Sardinha

122 João Fernandes de - 1.800 162 -


Oliveira

686 Maria de Santana - 1.800 162 Próxima à Casa


do Contrato,
Rua do Contrato

777 Luísa Maria da - 1.800 162 Próxima à Rua


Conceição da Glória

Quadro 4: Propriedades urbanas mais e menos valorizadas em 1831. Fonte: AN CC 2269.


Abreviatura: #: número da edificação no registro da décima predial; -: condição ou
localização não identificada.
Figura 8: espacialização dos dados da Décima Predial Urbana de 1810, 1811 e 1831.
Fonte: Arquivo Histórico do Exército, 06.01.1131, CEH 3207. Edição das autoras.

ANÁLISES E CONSIDERAÇÕES
A espacialidade do arraial do Tijuco, assim como dos demais núcleos mineiros
setecentistas e oitocentistas, apresenta características distintas das cidades dos dias
atuais, tanto a nível morfológico quanto em relação às múltiplas sociabilidades presentes
no território. Fonseca (2011, p. 526) traz que, de modo geral, na Capitania de Minas
Gerais, os moradores mais privilegiados dispunham de cursos d’água em seus terrenos
para uso pessoal. Assim como já evidenciado a partir de Saint-Hilaire (1941, p. 39), as
águas do arraial eram abundantes e de boa qualidade, sendo seu acesso e distribuição
relativamente amplos através dos canais e chafarizes.
Furtado (2002) trabalha, por meio do campo da micro-história, na identificação dos perfis
sociais presentes no território a partir da lista nominativa da população, de 1775. A autora
completa o perfil de alguns moradores a partir de inventários, sendo muitos ainda citados
nas décimas utilizadas nesta pesquisa. Como conclusão em sua obra, tem-se que o
território do arraial do Tijuco era bastante organizado a partir das condições sociais, mas
principalmente em função das relações de gênero. A maioria das edificações era, no caso
das mais e menos valorizadas, respectivamente, de propriedade de homens brancos e
mulheres ex-escravizadas.
A autora explica que, enquanto as classes mais altas estavam presentes principalmente
na Rua Direita, os libertos constituíam a maioria na rua Macau, Macau de Baixo, Campo,
Burgalhau e becos (FURTADO, 2002, p. 499). Os comerciantes, que por sua vez eram
compostos por diversos perfis étnico-raciais, habitavam a Rua da Quitanda, Cavalhada
Nova e Amparo. Apesar disso, a autora destaca que as residências chefiadas por pessoas
forras estavam espalhadas por todo território, e cita especificamente as várias mulheres
libertas que tinham propriedades na Rua Direita.
Em comparação com os cursos d’água, percebe-se que a localização das propriedades
mais valorizadas estão próximas aos canais de abastecimento, mas isso não se figura
como uma condição necessária no momento da valorização do terreno. Das cinco
propriedades mais bem avaliadas, a única que apresenta um olho d’água próximo a suas
demarcações é a conhecida hoje como Casa da Glória4, a sudoeste do mapa. Contudo, a
casa do Padre Rolim, localizada na Rua Direita, por exemplo, conta com um curso d’água
em seu terreno, mas não se configura como uma das propriedades de maior valor.
Ademais, percebe-se que as propriedades de menor valor estão espalhadas pelo arraial
e, em alguns casos, localizadas perto das possibilidades de abastecimento.
Essas evidências acerca da ocupação do arraial demonstram que o a realidade urbana em
questão, mesmo distante da teoria ambiental contemporânea, pode ser associada à
relação permanente entre a natureza, ação antrópica e hierarquias de poder. Em
contrapartida, as conclusões provenientes do presente ensaio e das análises de Furtado
(2002) dialogam entre si e lançam luz sobre dinâmicas particulares na formação do
ecossistema do arraial do Tijuco.
Diferentemente da lógica da cidade capitalista pós-Revolução Industrial, a terra urbana,
nesse caso, não é entendida enquanto mercadoria e fonte direta de lucro, mas um
instrumento de manutenção do sistema minerador de base escravista. Por esse motivo,
a organização espacial, à primeira vista, pode ser entendida até mesmo como menos
segregadora que nos dias atuais, por permitir que propriedades mais e menos valorizadas
dividam espacialmente condições parecidas de acesso a abastecimento hídrico. Contudo,
essa visão se trata de um anacronismo, pois, ao passo que as relações cotidianas
emergem a partir dos vestígios encontrados nas fontes primárias, outros mecanismos de
controle socioespacial são revelados, como a relação direta entre gênero e rendimento
dos imóveis ou entre distinção social e posse de pessoas escravizadas para a captação de
água em fontes públicas.
Nesse momento, a análise metodológica em que se baseia a Ecologia Política se mostra
eficaz justamente por ser adaptável ao contexto histórico-geográfico do objeto de análise.
Segundo Swyngedouw (2009, p. 105), a produção do espaço está intimamente ligada ao
modo de produção vigente, sendo tanto o conceito de natureza quanto o de sociedade
em constante construção complementar. Para além disso, as hierarquias desenvolvidas
em meio à economia diamantífera tendem a homogeneizar o arraial do Tijuco como uma
região valorizada, ao passo que os conflitos e os espaços de resistência encontram

4
Esta condição se confirma nos anos de 1810 e 1811, visto que em 1831 a propriedade
tinha passado para o poder institucional, ficando isenta de cobrança do imposto.
entraves nas regiões centrais em uma realidade na qual a terra urbana não era entendida
como valor de troca, mas de resguardo da lógica colonizadora.
Em virtude disso, conclui-se que o acesso à água está intrínseco ao desenvolvimento de
comunidades. Contudo, o modo como se dá sua espacialização no território ocorre de
maneira multifatorial, sendo preciso levar em conta processos naturais, mas também
socioculturais e políticos. Os dados contidos e narrados no documento da Décima Predial
Urbana permitem a reflexão de que tanto as dinâmicas materiais quanto as simbólicas da
época se tornam definidores da paisagem urbana mineira, sendo a cidade contemporânea
e seu ecossistema formados pelas relações que se acumularam no decorrer dos séculos.
REFERÊNCIAS

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OURO PRETO ENQUANTO TERRITÓRIO TURÍSTICO
Perspectivas internas e externas sobre os efeitos da turistificação na
cidade histórica
OURO PRETO AS A TOURISTIC TERRITORY: INTERNAL AND EXTERNAL
PERSPECTIVES ON THE EFFECTS OF TOURISTIFICATION ON THE
HISTORIC CITY
Memórias, representações, arquivos

GONÇALVES, Iasmyn
Graduanda em Arquitetura e Urbanismo; Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
iasmyn.lidiag@gmail.com
MURATA, Vitória
Graduanda em Arquitetura e Urbanismo; Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
muratavitoria@gmail.com
RESUMO

O presente artigo tem como objetivo a investigação dos efeitos da turistificação de


Ouro Preto através da análise de dados coletados em uma pesquisa virtual que foi
realizada entre 11/01/2022 e 15/01/2022. O questionário contou com 57
entrevistados e, a partir de suas respostas e seus relatos, foi possível realizar uma
comparação entre as perspectivas internas, representadas pelos moradores, e as
perspectivas externas, referentes aos turistas. As questões buscavam captar a
percepção dos indivíduos em relação às consequências do turismo de massa e da
transformação da cidade histórica em uma imagem vendável e suas consequências
para a dinâmica social e urbana de Ouro Preto.

PALAVRAS CHAVE Ouro Preto; Turistificação; Cidade histórica; Patrimônio;


Espetacularização da paisagem urbana.

ABSTRACT OU RESUMEN

This article aims to analyze the effects of touristification in Ouro Preto through the
analysis of data collected in a virtual survey that was conducted between 11/01/2022
and 15/01/2022. The questionnaire had 57 interviewees and, from their answers and
their reports, it was possible to make a comparison between the internal
perspectives, represented by the residents, and the external perspectives, referring
to tourists. The questions sought to capture the perception of individuals regarding
the consequences of mass tourism and the transformation of the historical city into
a saleable image and its consequences for the social and urban dynamics of Ouro
Preto.

KEY-WORDS Ouro Preto; Touristification; Historic city; Heritage; Spectacularization


of the urban landscape.
INTRODUÇÃO
Os territórios turísticos, segundo Bessa e Alvares (2014), configuram-se como parcelas do
território apropriadas por turistas e empresas atreladas ao setor turístico, a partir de uma ação
mercadológica incentivada e/ou que ocorre sob a omissão do Estado. A esses territórios são
impostas regras - à luz de um projeto turístico - que modificam a dinâmica local, a despeito da
vontade dos atores internos. Em sua composição, os territórios turísticos apresentam atrativos,
itinerários e áreas a ele correlatas. Ainda segundo os autores, tais territórios não se configuram
como lugares, pois não estabelecem relações de continuidade: os turistas observam as
dinâmicas cotidianas sob uma perspectiva externa, modificando-as, mas sem participar de
forma ativa. Em síntese, seu contato com o espaço e os moradores locais é primordialmente
efêmero.

Sob esse viés, no que tange às cidades turísticas, criam-se imagens conflitantes de um mesmo
espaço, a partir do olhar de dentro e o olhar de fora. Concomitantemente à atuação das
empresas de turismo, à espetacularização dos monumentos e ao traçado de itinerários
artificiais, a cultura e a dinâmica locais continuam a existir. A reação dos moradores à presença
do mercado pode se dar de forma sutil, mas direta ou indiretamente, ocasiona a luta pelo
espaço.

Quando se trata das cidades históricas - a exemplo das urbes mineiras que se consolidaram no
período da mineração -, a atividade turística também cria uma nova imagem sobre o
patrimônio, essencialmente idealizada. Destarte, a adaptação de edifícios históricos aos novos
usos, sem recorrer à descaracterização ou ao pastiche, constitui um desafio para a Arquitetura
contemporânea, sobretudo diante das pressões do mercado. Conforme pontua Gastal (2006),
o econômico se sobrepõe ao cultural e ao social, de modo a simplificar as tradições, os
significados culturais e as ancestralidades, com o fito de torná-los palatáveis ao público-
consumidor.

Diante das problemáticas elucidadas, o presente trabalho busca analisar a turistificação da


cidade de Ouro Preto, a qual se deu a partir da criação de um ideário que espetaculariza a
paisagem da cidade, seu passado e sua opulência. Também busca compreender as
consequências da interferência externa no cotidiano do centro histórico a partir da comparação
entre as perspectivas interna, representada pelos moradores locais, e a externa, constituída
por relatos de visitantes. Para alcançar esses fins, elaborou-se uma pesquisa virtual, com
perguntas direcionadas aos habitantes de Ouro Preto e, também, aos turistas, de modo a traçar
um panorama interno e externo acerca do mesmo território. Com base nas respostas coletadas,
associadas à análise da literatura existente sobre o tema, foi possível compreender de que
maneira o turismo afeta o uso e a forma dessa cidade histórica, e como é percebido a partir de
diferentes perspectivas.

A CIDADE HISTÓRICA COMO IMAGEM


Segundo Pesavento (2004), “A Cidade é, sobretudo, a exibição da marca do homem num
universo mutável, e as sociabilidades antigas cedem lugar às novas”. A autora aponta que o
espaço urbano se constitui como palimpsesto, em que várias camadas se sobrepõem para
configurar o todo. A sobreposição de contextos históricos faz com que se estabeleçam ligações
entre diferentes tempos em um mesmo espaço, contudo, tais conexões nem sempre se dão de
forma visível. Assim, cabe ao historiador trazer à luz os sentidos e significados do passado, não
de forma deslocada, mas traduzindo-nos à conjuntura contemporânea, de modo a aproximá-
los da sociedade.

Sob esse viés, a conjunção entre o histórico e o atual também se constitui como um desafio
para a Arquitetura na pós-modernidade. A manutenção dos monumentos sem quaisquer
alterações, em contrapartida à sua adaptação aos novos usos e estilos, é um impasse que
permeia há décadas a discussão do restauro. Outrossim, enquanto em alguns países a inserção
da Arquitetura contemporânea em centros históricos já é naturalizada - desde que feita com
qualidade e respeito ao entorno -, no Brasil, o patrimônio é idealizado, e deve ser manter intacto
(GOMES, 2009). Em outras palavras, não acompanha o dinamismo da cidade mutável. Para
além de preferências estéticas conservadoras, a imutabilidade dos centros históricos atende a
propósitos econômicos.

Para Gastal (2006) apud Jameson (1996), “(...) a cultura da imagem do pós-moderno é pós-
perceptual e gira em torno do consumo de imaginários mais do que em torno do consumo
material”. Sob essa lógica, o patrimônio arquitetônico, enquanto destino turístico, é
mercantilizado e espetacularizado. Por meio da propaganda e de artifícios técnicos, explora-se
o imaginário em torno da edificação, bem como a atratividade de sua forma, mas sem a real
preocupação com a autenticidade do bem. Nesse sentido, o tempo também é materializado por
meio do pastiche, em que o antigo é transformado em cenário, adimensional e esvaziado de
significado. Não se estabelece uma conexão genuína entre passado e presente: o ideário
nostálgico se sobrepõe ao dinamismo histórico. Sob essa lógica, o turista não se interessa pelo
monumento em si, mas pela atmosfera que se cria em torno dele. A simplificação e a distração
estética atendem aos interesses do mercado, na medida em que o patrimônio não se consolida
como um bem a ser apreciado e compreendido, mas um produto a ser consumido.

Ademais, a narrativa privilegiada pelo setor turístico tende a excluir interpretações que destoam
da História oficial - como já mencionado, amplamente simplificada -, especialmente se estas
remetem à participação de grupos não-hegemônicos. É o que ocorre, por exemplo, quando se
refere à presença de negros nas cidades históricas mineiras: ou se adota um discurso
romantizado do regime escravocrata e de suas consequências sobre a vida da população negra,
e/ou negligencia-se a participação desses povos na formação da cidade.

Em síntese, as reminiscências históricas e as culturas locais - com seus valores simbólicos,


geracionais e étnicos - são diluídas a partir da globalização. Têm seu significado simplificado e
sofrem a padronização das formas - no caso dos patrimônios materiais -, com o fito de distrair
o turista (GASTAL, 2006): o enfoque não reside na apreciação da cultura ou do monumento em
si, mas no consumo e comércio a eles atrelados.

A ATRATIVIDADE TURÍSTICA DE OURO PRETO


Em 1933, a cidade de Ouro-Preto é declarada Monumento Nacional pelo SPHAN, por meio do
Decreto 22.298. Em 1938, é inscrita no Livro do Tombo e, em 1989, na Lista de Patrimônio
Mundial da Unesco, o que atesta, a nível nacional, a importância histórica, arquitetônica e
cultural de seu conjunto urbano. A recuperação do prestígio ouro-pretano enquanto símbolo
nacional deu-se após a mudança da capital mineira para Belo Horizonte, na medida em que a
política de preservação visou coibir sua estagnação econômica e simbólica. Também foi
primordial a revalorização da cidade pelos modernistas, enquanto símbolo identitário.

Embora seja inegável a importância de tais mecanismos de preservação, no que tange à


proteção e manutenção do patrimônio, a priorização dos aspectos formais nos decretos contribui
para a formação de uma imagem inalterada da cidade, permanentemente associada à opulência
do passado (SANDOVAL; ARRUDA; SANTOS, 2009). Sob esse ponto de vista, o não
reconhecimento da dinâmica viva e contemporânea das cidades históricas corrobora para a
mercantilização de seus espaços pelos agentes do turismo, a partir da comercialização de uma
imagem nostálgica e tradicional.

Assim, a atividade turística em Ouro Preto apresenta certo crescimento a partir da década de
1950, mas é em 1980 que passa a atrair, efetivamente, uma grande massa de turistas nacionais
e internacionais. Além do tombamento como Patrimônio Cultural da humanidade pela UNESCO,
sua inclusão no Circuito do Ouro e na Associação das Cidades Históricas de Minas Gerais
também magnificou o interesse dos indivíduos por conhecerem seus monumentos históricos e
tradições culturais. Mais recentemente, as belezas naturais também têm atraído diversos
turistas, a exemplo das trilhas e cachoeiras no distrito de Lavras Novas, localizado a 19
quilômetros da Sede do município de Ouro Preto (MACHADO; FILHO, 2014).

Outro atrativo da cidade são as festas e os festivais culturais. Dentre os eventos mais
tradicionais, os ritos da Semana Santa não só atraem diversos fiéis de fora do município, mas
também geram forte mobilização da população local – que, conforme apontado por Machado e
Alves (2013), é majoritariamente praticante do catolicismo. O Festival de Inverno de Ouro
Preto e Mariana e o Festival Internacional “Tudo é Jazz” também geram grande repercussão
entre turistas nacionais e estrangeiros. Contudo, são os eventos de caráter universitário que
mais se destacam pela grande concentração de pessoas, como a Festa do 12 e, especialmente,
o Carnaval. Também de grande participação dos moradores locais, sobretudo dos estudantes,
revelam a importância da UFOP na dinâmica ouro-pretana, além da potencialidade da população
local em se apropriar dos espaços públicos e reivindicar elementos primordiais de sua tradição.

METODOLOGIA DE PESQUISA
Para compreender a interferência do turismo na forma e no cotidiano da cidade, foi elaborada
uma pesquisa virtual, com perguntas direcionadas aos habitantes de Ouro Preto e, também,
aos turistas, de modo a traçar um panorama interno e externo acerca do mesmo território. Foi
utilizada a amostragem por conveniência, em que responderam ao formulário os indivíduos
disponíveis no momento de realização da pesquisa, que possuíam acesso à plataforma
empregada - neste caso, Google Forms. O questionário foi elaborado com questões objetivas,
mas contendo também campos para elaborações dissertativas, caso fosse de interesse do
entrevistado justificar algumas de suas respostas. A coleta de dados se deu de forma anônima,
para garantir maior liberdade dos participantes. Ao todo, foram coletadas 57 respostas.

Embora a amostragem não englobe a população da cidade como um todo, as informações


adquiridas ilustram a coexistência - e o conflito – das verticalidades e horizontalidades sobre o
território em análise (BESSA; ALVARES, 2014). Ademais, permitem que se ratifiquem, na
prática, problemáticas associadas à turistificação, previamente já elucidadas na literatura
existente sobre o tema.

A CIDADE E O TURISMO SOB O OLHAR DOS MORADORES


A partir dos dados coletados na pesquisa, foi possível ratificar diversos aspectos já levantados
na literatura sobre o tema, mas também entender novas dimensões da interação entre agentes
internos e externos em Ouro-Preto. Segundo Ciffeli (2005 apud SANTOS, 2000), o território é
“a base do trabalho da residência, das trocas materiais e espirituais e da vida, sobre os quais
ele influi”. As verticalidades e horizontalidades definem a atuação dos agentes internos e
externos sobre esse território, reconfiguram sua dinâmica e criam uma nova realidade (CIFELLI,
2005). Assim, ao analisar a perspectiva da população local, é possível apreender os conflitos e
as interações que efetivamente se estabelecem frente ao contato com um outro, externo e
transitório.

Dentre os entrevistados, 56,5% são ou já foram habitantes da região central de Ouro Preto,
assim, pode-se inferir que a maioria destes tem um maior contato com os turistas e a
movimentação do centro histórico. Conforme esperado, 82,4% consideram que o turismo
trouxe melhorias para a cidade, em termos de geração de emprego e infraestrutura. Contudo,
77,8% afirmam que tais melhorias se limitaram aos bairros do centro histórico e do entorno.

Essa diferenciação de tratamento revela a atuação dos agentes do turismo no sentido de criar
um cenário ideal para receber os visitantes, o qual muitas vezes mascara problemáticas
recorrentes no cotidiano da população local. Assim, embora sejam observadas melhorias no
calçamento das ruas, na iluminação pública, na oferta de empregos e nas ações educativas de
cunho cultural e patrimonial, por exemplo – conforme apontado por Machado e Alves (2013) -
questões como o congestionamento no trânsito e o descarte irregular de lixo nas ruas foram
mencionadas como fatores de incômodo pelos moradores. “Centro caótico, ruas estreitas e
pouco planejadas. O turismo acrescenta à cidade uma importante fonte de renda, mas torna a
circulação já complicada ainda mais difícil”, aponta um dos entrevistados, e acrescenta: “(...)
o tombamento de algumas ruas não permite melhoria no sistema de escoamento e mantém o
calçamento escorregadio”.

Conforme as entrevistas, esses problemas se agravam, sobretudo, nas datas de maior fluxo de
visitantes, o que revela o crescimento da atividade turística em uma proporção maior do que a
cidade tem capacidade de suportar. Evidentemente, tal sobrecarga atende a uma lógica de
mercado, e acentua a disputa pelo espaço urbano.
Tais interesses externos também são evidenciados pela ausência de alguns elementos nas ruas
do centro histórico, como lixeiras e sinalizações de trânsito. Sob a lógica do simulacro, tudo
aquilo que destoe da imagem idealizada do passado histórico deve ser removido da paisagem.
Segundo Silva (2011), é a fixação de uma temporalidade única, que não corresponde à
vivacidade da urbe, em permanente transformação. Motivações semelhantes levam às
intervenções nas fachadas dos monumentos históricos, a partir de uma premissa estética que
transforma a cidade em cenário.

Sobre a interferência dos turistas em seu cotidiano, 47,1% dos entrevistados se sentem
incomodados, em geral; 5,9% se sentem incomodados, mas apenas em feriados, festas e
outras datas de maior concentração de pessoas e 47,1% não se sentem incomodados. Mais
uma vez, é ratificada a infraestrutura insuficiente para atender à demanda massiva de
visitantes, sem que a população seja prejudicada.

Por fim, vale mencionar que 62,5% dos moradores afirmaram que não vão frequentemente aos
principais pontos históricos da cidade. Conforme as entrevistas, isso não se deve à falta de
interesse pelo patrimônio histórico e cultural, mas principalmente à grande concentração de
turistas, sobretudo em fins de semana e feriados.

O conflito pelo espaço assume outras facetas quando se leva em consideração o turismo voltado
para as classes mais abastadas. Este tende a ampliar cada vez mais os valores de produtos e
serviços no centro histórico, selecionando o grupo de turistas que têm condições de acessar
determinadas áreas. Gradativamente, pequenas lojas de souvenirs são substituídas por lojas
de joias e pedras preciosas, e self-services de comida típica por restaurantes a la carte, com
cardápios internacionais. A presença crescente desses empreendimentos de luxo afeta,
também, a população local, no que tange ao custo de vida e à fruição do espaço. Isso pode ser
ilustrado pela tentativa de hotéis de luxo da Rua Direita de mover uma ação jurídica contra o
funcionamento de bares da região durante a madrugada, sob a justificativa do incômodo gerado
sobre os hóspedes. (CIFFELI, 2005) A presença de um público de renda diversificada em tais
bares certamente influenciou o apoio de empresários do segmento turístico à essa ação.

Desse modo, é evidente a forma como os macroatores externos atuam verticalmente sobre o
local. Conforme postulado por Bessa, determinam regras e ações que afetam diretamente a
dinâmica interna, com a negligência ou apoio explícito do Estado. Assim, “o resultado é que
decisões essenciais concernentes aos processos locais são estranhas ao lugar e obedecem a
motivações distantes” (BESSA;ALVARES apud SANTOS, 2014)

A PERSPECTIVA DOS ESTUDANTES DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO


(UFOP)
Um ponto que despertou atenção nas entrevistas foi a receptividade de alguns moradores -
mais especificamente, daqueles que se identificaram como universitários - em relação aos
turistas. Mais da metade (55%) dos entrevistados que se autodeclararam estudantes da
Universidade Federal de Ouro Preto responderam que residem nas proximidades do centro
histórico, região onde tradicionalmente se concentram as repúblicas e que atrai mais turistas.
Além disso, 80% dos universitários afirmaram frequentar e possuir interesse pelos principais
pontos turísticos de Ouro Preto.

Muitos expressaram seu apreço pelo centro histórico ouro-pretano. Assim, ainda que
identifiquem problemas - como a situação degradada dos calçamentos e a má-qualidade da
água, devido aos encanamentos antigos -, a tranquilidade e a nostalgia suscitadas pelas ruas e
edificações parecem se sobrepor a tais questões. É o que se observa nas respostas à pergunta
“De modo geral, como é a experiência de morar em Ouro Preto?”:

“Por ser uma cidade turística e universitária, o intercâmbio de conhecimentos e experiências


que se pode ter na cidade é extremamente rico. Hoje em dia sinto muitas saudades da cidade,
do clima universitário e boêmio (..)”

“É difícil porque a cidade não acompanhou o desenvolvimento tecnológico, falo o básico, as ruas
não foram feitas para carros, sofremos com água sem tratamento adequado por causa dos
antigos encanamentos etc. Entretanto, o charme compensa. Andar por Ouro Preto é mágico.”

Outros destacaram o apreço pelo contato com os indivíduos de fora da cidade durante as festas
e festivais típicos, especialmente no Carnaval de rua. Essa peculiaridade pode indicar o apreço
pela troca social genuína, que geralmente se dá nos espaços públicos, mas que é tolhida em
um contexto de turismo profundamente guiado pela égide comercial. Os roteiros de viagem
estritamente planejados, sempre sob a presença do guia turístico, limitam a convivência
espontânea com o morador local. Conforme aponta Ciffeli (2005), as agências de turismo, a
partir de seus pacotes, limitam os passeios apenas aos pontos turísticos e às áreas de consumo
(lojas de souvenirs, restaurantes, etc), de modo que as experiências de compra se sobrepõem
ao aspecto cultural da viagem.

Apesar da visão positiva que, segundo as respostas coletadas, os estudantes possuem de Ouro
Preto, existem tensões entre esse grupo e os moradores antigos. A concentração de repúblicas
no centro histórico, região que é foco do turismo, causa conflitos entre os estudantes e as
pessoas que já habitavam a região. Segundo Cifelli (2005),

A prática das festas constantes, promovidas pelos estudantes em suas repúblicas, a poluição
sonora decorrente, o uso de drogas e bebidas alcoólicas em excesso, além dos comportamentos
lascivos de muitos estudantes, acabam vigorando como uma forma de agressão aos moradores
tradicionais (p. 224).

Um ponto interessante em relação aos estudantes, que não está diretamente ligado ao turismo,
mas pode ser consequência dele, é abordado pela pergunta: “Você pretende continuar em Ouro
Preto depois de se formar?”, à qual a maioria dos entrevistados (90%) respondeu
negativamente. Apesar de relatarem uma experiência positiva com a cidade, ao analisar as
respostas , é possível perceber que os estudantes não acreditam que Ouro Preto ofereça uma
perspectiva de futuro profissional interessante:

“ Amei morar em Ouro Preto, mas a cidade ainda oferece poucas oportunidades de trabalho
para os estudantes, ainda mais se forem atrás da área do seu curso”.
“Se fosse mais perto de onde minha família mora ou tivesse mais oportunidades para crescer
na área que pretendo atuar eu, com certeza, iria me fixar em Ouro Preto”.

Esta migração dos estudantes para outras cidades após a graduação pode ser considerada
prejudicial para Ouro Preto, já que a mão de obra qualificada formada pela UFOP não permanece
ali e, portanto, não contribui para a economia e o desenvolvimento do município. Também é
interessante considerar as diferentes percepções entre os entrevistados que nasceram ou
moram há muito tempo em Ouro Preto, e pretendem permanecer lá, e os universitários, que
se já se mudam para a cidade sem a intenção de permanecer lá após a graduação e possuem
uma interpretação de Ouro Preto e de sua dinâmica urbana mais próxima a dos turistas.

A CIDADE SOB O OLHAR DOS TURISTAS


A pesquisa revelou que há diversos atrativos que motivam os turistas a escolherem Ouro Preto
como destino: 95,2% dos entrevistados foram motivados a visitar Ouro Preto pelos
monumentos históricos, 35,7% pelos atrativos culturais (feiras, festivais, carnaval), 26,2%
pelos atrativos naturais, 19% pela importância religiosa da cidade, 7,1% pela UFOP, 4,8% por
excursões escolares, 2,4% pela fama e importância do município histórico e 2,4% por causa da
gastronomia (figura 1).

Figura 1: Gráfico elaborado a partir das respostas coletadas no questionário virtual em relação à pergunta: “O
que te motivou a visitar Ouro Preto?”. Fonte: elaborado pelas autoras.

Um dado curioso coletado diz respeito à época do ano em que os turistas entrevistados visitaram
a cidade histórica: embora uma grande parte tenha frequentado em períodos de férias e fins
de semanas (46,5%) e durante festivais gastronômicos culturais (18,6%), a extrema maioria
(79,1%) afirma ter conhecido a cidade em períodos de “baixa temporada”. Uma das hipóteses
elaboradas a partir dessa informação é que, possivelmente, muitas pessoas se sentiram
motivadas a visitar a cidade durante o período da pandemia de Covid-19. É relatado que, com
as limitações quantitativas implantadas pelas medidas de restrição sanitária, diversos
indivíduos aproveitaram para conhecer destinos turísticos famosos em um período que estavam
mais “vazios” - ainda que, após o afrouxamento das restrições, essa expectativa não tenha sido
realmente atendida. Também o perfil dos visitantes da cidade pode explicar tal resultado, na
medida em que há muitos idosos, ex-estudantes da UFOP e mesmo famílias os quais têm a
possibilidade de ir a Ouro Preto nos períodos de menor movimentação turística.

Além dos períodos supracitados, 11,6% dos entrevistados informaram ter visitado Ouro Preto
durante o Carnaval e apenas 7%, durante festividades religiosas – o que talvez revele um
caráter mais local nas manifestações ligadas ao culto católico (figura 2).

Figura 2: Gráfico elaborado a partir das respostas coletadas no questionário virtual em relação à pergunta: “Em
que época visitou a cidade?”. Fonte: elaborado pelas autoras.

Em relação à questão “Sua experiência ao visitar Ouro Preto foi:”, que possuía apenas duas
possibilidades de resposta, sendo elas “positiva” ou negativa”, o resultado foi unânime, tendo
todos os entrevistados respondido que tiveram uma experiência positiva com a cidade. Porém,
quando uma justificativa para a resposta foi solicitada, apareceram alguns contrapontos em
relação às respostas anteriores:

“A experiência no geral foi positiva, mas os preços são muito caros”

“No geral, foi positiva, mas a cidade tem seus problemas, como as dificuldades no tráfego de
carros”

“Positiva, mas os monumentos e as áreas turísticas deveriam ser melhor conservadas”.

“Monumentos mal cuidados”

No entanto, mesmo com as observações realizadas sobre alguns pontos negativos na visita à
Ouro Preto, a resposta para a última pergunta do questionário, “Visitaria novamente a cidade?”,
também foi totalmente positiva (100% das respostas). Logo, é possível concluir que, mesmo
que possua aspectos negativos que são percebidos pelos turistas, Ouro Preto causa uma
impressão positiva e marcante em seus visitantes, provocando neles o desejo de voltar à cidade.
Ou seja, a estratégia de marketing do empresariado turístico, que tinha como objetivo
transformar Ouro Preto em um território atrativo para visitantes e vender sua imagem como
tal, foi bem sucedida.

CONCLUSÃO
Desde que Ouro Preto passou a ser considerada Monumento Nacional pelo SPHAN em 1933, foi
inscrita no Livro do Tombo em 1938 e entrou para a Lista do Patrimônio Mundial da UNESCO
em 1989, passando a atrair uma quantidade considerável de turistas nacionais e internacionais.
Em virtude disso, iniciou-se o processo de turistificação da antiga capital mineira, da concepção
de uma imagem idealizada para a cidade, que espetaculariza a sua história e importância
arquitetônica.

Tendo em consideração a literatura já produzida sobre o tema e as respostas coletadas pelo


questionário virtual utilizado para este trabalho, é inegável que o Turismo trouxe melhorias
para a cidade, como geração de empregos e investimentos em infraestrutura, porém essas
melhorias se concentram na região do centro histórico. Ademais,a maioria dos moradores
entrevistados relata que se sentem incomodados com o intenso fluxo de turistas, no entanto
essa insatisfação parece ser mais direcionada à sobrecarga da infraestrutura da cidade do que
ao turismo em si.

Em relação aos estudantes que residiram em Ouro Preto no período em que estudaram na
UFOP, apesar de relatarem uma experiência positiva na cidade, a maioria respondeu que não
pretende permanecer em Ouro Preto. No que se refere às motivações para essa migração dos
estudantes após a graduação na Universidade, foi citada a falta de oportunidades profissionais
no município.

Quanto aos turistas, todos apresentaram opiniões positivas sobre a experiência na cidade. E,
apesar de alguns entrevistados apontarem aspectos negativos sobre Ouro Preto em suas
respostas, como os preços altos, a falta de conservação de monumentos históricos e o trânsito,
também foi unânime o desejo de visitar a cidade novamente.

Ao analisar as 57 respostas coletadas na pesquisa virtual realizada para este trabalho, foi
possível concluir que a turistificação de Ouro Preto modificou a dinâmica urbana e social da
cidade. Fato confirmado pelos relatos insatisfeitos dos moradores sobre a circulação caótica na
região do centro histórico e a infraestrutura que não comporta o fluxo de turistas. Apesar disso,
a grande maioria dos moradores reconhece que os investimentos motivados pelo turismo
tiveram um impacto positivo na economia e na infraestrutura do município.

Outro fato comprovado pelos contrastes entre as percepções dos moradores e dos turistas é
que as modificações promovidas na cidade visam criar um espaço atraente e vendável para os
turistas, mas não necessariamente um ambiente agradável e funcional para os moradores. Para
manter a imagem idealizada e espetacularizada da cidade histórica, foram tomadas decisões
que dificultam a vivência dos indivíduos, como a falta de lixeiras nas ruas.
Por fim, também é possível que os investimentos na cidade são focados apenas em alguns
setores, incentivando um desenvolvimento desigual da economia ouro-pretana. Isso pode ser
depreendido a partir dos relatos de estudantes da Universidade Federal de Ouro Preto que,
mesmo que tenham tido uma experiência positiva com a cidade, não pretendem permanecer
na cidade pela falta de empregos nas áreas em que se formaram e pela inexistência de uma
perspectiva de evolução da carreira.

REFERÊNCIAS
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megaeventos e outras estratégias de venda das cidades. Belo Horizonte: C/Arte, 2014.
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arquitetura contemporânea nos conjuntos históricos tombados de Mariana e Ouro Preto. 2009.
219 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal de Minas
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MACHADO, S. F.; FONSECA, R. E. A Feira de Artesanato em Pedra Sabão, como produto turístico na
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SILVA, Vanessa Regina Freitas da. O patrimônio arquitetônico como imagem: o simulacro na
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Anais... Londrina, Universidade Estadual de Londrina, 2011. p. 2865-2873. Disponível em:
<http://www.uel.br/eventos/eneimagem/anais2011/trabalhos/pdf/VANESSA
%20REGINA%20FREITAS%20DA%20SILVA.pdf >. Acesso em: 13 jan. 2022.
PARANAPIACABA: O “espetáculo” das ruínas reconstruídas ou
apagamento da memória?
PARANAPIACABA: The “spectacle” of the reconstructed ruins or the
erasure of memory?
PARANAPIACABA: El “espectáculo” de las ruinas reconstruidas o el
borrado de la memória?

Memórias, representações, arquivos

CRUZ, Thais Fátima dos Santos


Arquiteta e Urbanista
Doutora em Arquitetura e Urbanismo. FAU-USP
Mestre em Arquitetura e Urbanismo. EESC-USP
Especialista em Patrimônio Histórico: teoria e projeto. PUC-Campinas
Membro representante da sociedade civil no Conselho Municipal de Defesa do
Patrimônio Histórico, Artístico, Arquitetônico-urbanístico e Paisagístico de Santo André
Sem vínculo institucional
arq.thaiscruz@gmail.com
RESUMO
A vila de Paranapiacaba surge em meados do século XIX oriunda da
implantação da ferrovia na Serra do Mar, que ligaria o planalto ao porto de
Santos. Para essa travessia foi necessário, num primeiro momento, a
instalação de canteiros de obras provisórios para abrigar os operários
durante a construção dessa linha férrea. O sistema funicular foi eleito para a
transição da serra, vencendo um desnível de quase oitocentos metros de
altitude, sendo inaugurada em 1867. Porém, com o vertiginoso aumento do
principal produto exportador da época – o café – a empresa responsável pela
empreitada, a São Paulo Railway, iniciou a construção do segundo sistema
que ficou pronto em 1897. Desta forma, o canteiro provisório transformou-se
em um pequeno vilarejo subdividido em três núcleos distintos entre si, que
abrigaria desta vez, os operários responsáveis pela operação de subida e
descida dos trens pelos dois sistemas. Este vilarejo é hoje tombado pelas três
esferas governamentais por abrigar um acervo com características únicas e
peculiares, tanto em seu traçado urbano, quanto pelo seu conjunto
arquitetônico em madeira. Por essas e outras características, a vila
transformou-se em um importante pólo turístico não só para a cidade de
Santo André, mas para toda região metropolitana de São Paulo. Por conta
disso, muitas intervenções vêm sendo realizadas para deixar a vila cada vez
mais ‘atraente’ para o visitante, o que de certa forma, acaba por destruir
aquilo que se quer ou pretende conservar, transformando o que era ruína em
um edifício novo com características e feições vetustas.

PALAVRAS CHAVE Paranapiacaba; Ruínas; Intervenção; Memória.

ABSTRACT

The village of the Paranapiacaba appears in the mid-19th century, arising


from the implementation of the railroad in Serra do Mar, which would link the
plateau to the port of Santos. For this crossing, it was necessary, at first, to
install temporary construction sites to house the workers during the
construction of this railway line. The funicular system was chosen for the
transition of the mountains, overcoming a gap of almost eight hundred
meters of altitude, being inaugurated in 1867. However, with the vertiginous
increase of the main export product of the time – coffee – the company
responsible for the undertaking, São Paulo Railway, started the construction
of the second system that was ready in 1897. In the way, the temporary
construction site was transformed into a small village subdivided into three
distinct nuclei, which would house, this time, the workers responsible for the
operation of ascent and descent of the trains by the two systems. This village
is today listed by the three governmental spheres for housing a collection
with unique and peculiar characteristics, both in its urban layout and for its
wooden architectural set. Due to these and other characteristics, the village
has become an important tourist hub not only for the city of Santo André, but
for the entire metropolitan region of São Paulo. Because of this, many
interventions have been carried out to make the village more and more
“attractive” to the visitor, which, in a way, ends up destroying what one
wants or intends to preserve, transforming what was a ruin into a new
building with old-fashioned features.

KEY-WORDS Paranapiacaba; Ruins; Interventions; Memory.

RESUMEN

La Villa de Paranapiacaba, surge a mediados del siglo XIX, a partir de la


implantación del ferrocarril em Serra do Mar, que uniria la meseta con el
puerto de Santos. Para este cruce fue necesario, en un principio, instalar
obras temporales para albergar a los trabajadores durante la construcción de
esta vía férrea. El sistema de funicular fue elegido para la transición de lãs
montañas, salvando un desnível de casi ochocientos metros de altitud, siendo
inaugurado en 1867. Sin embargo, con el aumento vertiginoso del principal
producto de exportación de la época – el café – la empresa encargada de la
ferrocarril São Paulo Railway, inició la construcción del segundo sistema que
estuvo listo en 1897. De esta forma, la obra provisional se transformaba en
una pequeña aldea subdividida en tres núcleos distintos, que albergarían,
esta vez, a los trabajadores encargados de la operación de subida y bajada
de los trenes por los dos sistemas. Esta Villa está hoy catalogada por las tres
esferas gubernamentales por albergar um conjunto de características únicas
y peculiares, tanto por su trazado urbano como por su conjunto
arquitectónico de madera. Por estas y otras características, la Villa se há
convertido en un importante polo turístico no solo para la ciudad de Santo
André, sino para toda región metropolitana de São Paulo. Por ello, se han
llevado a cabo muchas intervenciones para hacer el pueblo cada vez más
‘atractivo’ para el visitante, que en cierto modo, acaba destruyendo lo que se
quiere o se pretende conservar, transformando lo que era una ruina en un
nuevo edificio con características y aspecto antiguo.

PALABRAS-CLAVE Paranapiacaba; Restos; Intervención; Memoria.

• 2
INTRODUÇÃO
Este artigo busca abordar a temática das ruínas da vila de Paranapiacaba no âmbito das
intervenções que vem sendo realizadas desde 2002, quando a prefeitura de Santo
André comprou todo o conjunto urbano pertencente à antiga Rede Ferroviária Federal
SA (RFFSA). As vilas Velha e Martim Smith foram os primeiros assentamentos
construídos pelos ingleses durante a construção dos sistemas funiculares pela São Paulo
Railway (SPR), no período de 1865 a 1897, a concessão de uso da linha correspondia a
noventa anos e se extinguiu em 1946.

Com o fim da concessão inglesa, a SPR foi encampada e todo seu acervo foi incorporado
ao da União. Posteriormente, em 1956, passou a ser administrado pela RFFSA que
assumiu os equipamentos, as vilas Velha e Martin Smith e o controle da malha
ferroviária, terminando assim, a presença inglesa na Vila Ferroviária de Paranapiacaba,
fato que ficou marcado na memória dos antigos ferroviários como o início da
deterioração da vila.

A prefeitura vem tentando levar a cabo todo um processo de revitalização da vila como
um todo, porém, a experiência municipal de preservação não se dá de forma contínua.
Ela acompanha as prioridades de cada gestão e tem se caracterizado pela
descontinuidade administrativa, técnica e financeira. Esta descontinuidade merece ser
discutida e avaliada, objetivando identificar os entraves e formas de superá-los, na
medida em que coloca em risco a conservação do patrimônio, principalmente em
momentos de transição partidária.

O fato é que nestes últimos vinte anos, entre erros e acertos, as diversas gestões pelas
quais passou, a vila vêm se mantendo como em uma montanha russa, entre altos e
baixos no que diz respeito a sua conservação, e de todo seu patrimônio urbanístico,
arquitetônico, paisagístico, natural e humano. Desde a década de 80 a vila sofre com
períodos de descaso, abandono e incúria, o resultado é a perda de exemplares
significativos de seu acervo arquitetônico, seja pela falta de manutenção constante -
que acaba levando o imóvel pouco a pouco a um estado deplorável -, seja por propostas
e projetos mal elaborados - que na ânsia de recuperação, acaba por construir um
edifício novo para tampar a paisagem ‘banguela’, criando assim um falso histórico -,
seja pela perda total em incêndios, transformando esses imóveis em verdadeiras ruínas.
Tudo isso leva a administração pública a tomar decisões, nem sempre fáceis, nem
sempre acertadas, do que fazer nesses casos.

AFINAL, QUAL O PAPEL DAS RUÍNAS EM SÍTIOS HISTÓRICOS?


Segundo Brandi (2004:65) ruína é “tudo aquilo que é testemunho da história humana,
mas com um aspecto bastante diverso e quase irreconhecível em relação àquele de que
se revestia antes”. As ruínas também são vistas como uma representação do passado
que não existe mais. E por conta disso, é visto como algo que deve ser combatido, por

• 1
estarem associadas a destruição da edificação, impossibilitadas de utilização devido ao
seu estado de arruinamento, e desta forma, resulta muitas vezes em intervenções que
mascaram a característica sui generis que possui no momento presente.
As ruínas têm, ou ao menos deveriam ter um papel memorial, exaltando valores
enquanto obra de arte e documento patrimonial. É um importante aspecto para a
construção da memória (JEUDY, 1990 p.2-3) já que nos faz lembrar da rapidez e
fragilidade da vida, e a finitude. Mas apesar das ruínas denotarem a ‘morte’, elas
também suscitam força pela resistência e vontade de ‘viver’. Afinal, já poderiam ter
ruído, mas encontram-se de pé, lutando por um último suspiro (PONTES, 2009 p.4).
Embora, testemunho muitas vezes de centenas de anos, este não sobreviverá
indefinidamente sem medidas de proteção.

As ruínas são registros vivos da arquitetura de um lugar e de uma época, passíveis de


reconhecimento através de seus elementos estruturais e tipológicos, sendo possível
fazer uma (re)leitura da construção do edifício e identificar – em determinados casos -
a posição dos cômodos, alinhamentos, materiais construtivos, entre outras. Para Choay
(2001), ruína é o bem material fruto da intervenção humana no passado que é deixada
a sociedade do presente, bem como os atuais edifícios, podem num futuro encontrar-se
em situação de ruína também, é o tempo exercendo sua ação sobre as coisas.

Diante das mais diversas ruínas, a sua presença na paisagem, a sua relação com um
aspecto local, as recordações que a elas estão atribuídas ou aos resquícios de
antiguidade que as enobrecem, despertam no espectador imagens tanto do futuro,
quanto do passado. Disso depreende-se a necessidade de sua manutenção enquanto
tal, conservando-a, sempre que for possível. As ruínas têm essa capacidade de suscitar
no observador a memória de tempos pretéritos e ao mesmo tempo, o momento atual.

A beleza da ruína está justamente composta pelas partes faltantes, quando não
apresenta mais suas defesas como a cobertura, quando lhes faltam os elementos
arquitetônicos de portas e janelas, mas restam ainda os vãos e paredes carcomidas pela
pátina do tempo, e a natureza que invade o espaço tomando-o novamente para si como
resultante do encontro entre a beleza natural e a beleza arruinada. “Quando o piso da
construção for o solo do entorno e o teto passar a ser o céu, não há mais distinção
entre ambiente e arquitetura”(PIMENTEL,2005 p.31).

INTERVIR OU NÃO, EIS A QUESTÃO


Diversas são as linhas do pensamento crítico debatidas entre os principais teóricos
sobre a questão da intervenção em ruínas. Cabendo aqui, apenas uma pequena
amostra desses conceitos. Na linha de Ruskin (2008), propõe a manutenção das ruínas
e não sua restauração, a sua conservação tal como se encontra no presente, sob a ação
do tempo e a ação depredatória humana. Para Brandi (2004 p.67) “devemo-nos limitar

• 2
a aceitar na ruína o resíduo de um momento histórico ou artístico que só pode
permanecer aquilo que é, caso em que a restauração não poderá consistir de outra
coisa a não ser na sua conservação, com os procedimentos técnicos que exige”. Já
Dvorak (2015 p.110), asseverava que “é preciso levar em consideração que não se
pode destruir aquilo que consiste seu atrativo singular: o caráter de uma construção
vítima dos senhores dos tempos e seu aspecto pitoresco na paisagem.”

A própria Carta de Veneza limita, assim, as intervenções nas ruínas à sua consolidação
e determina que o acréscimo de novos elementos deve estar limitado ao mínimo
necessário para a sua conservação. Por fim, Riegl (2014 p.71) ao tratar das questões de
valoração afirma que “apenas o novo e íntegro é belo, segundo a visão da multidão;
aquilo que está velho, fragmentado, descolorido é feio”. Os modos de intervenção
contemporânea nos parecem bastante variados e revelam uma diversidade significativa
na manutenção ou no aniquilamento completo das ruínas.

No Brasil encontramos diversos casos de intervenções em ruínas, e mostram que é


possível, ao mesmo tempo, dar dignidade às ruínas, “realizar uma arquitetura
contemporânea baseada nas tecnologias e materiais construtivos mais atuais e ainda
resgatar sua função social”, dando-lhe um uso (ANDRADE JR 2008 p.12). O mais
emblemático é o Museu das Missões-RS, realizado por Lucio Costa, que fez uso da
apropriação de elementos arquitetônicos preexistentes na realização de uma nova
construção. Outros exemplos serão ilustrados brevemente.

Um tipo de intervenção é quando as ruínas são incorporadas numa nova construção de


forma a reforçar a integração entre as partes novas e as preexistentes e passam a fazer
parte de um novo edifício que se aproveitou dos remanescentes antigos. Estes por sua
vez, ganham ‘vida’ nova e geralmente seu uso vai além da simples fruição, como é o
caso do Museu Pelé em Santos, que aproveitou as ruínas de antigos casarões do
Valongo (Figuras 1-2) reconstruindo a fachada original, acabamentos e a volumetria,
para instalar ali um novo equipamento cultural (Figuras 3-4).

Figura 1. Ruínas-fachada principal. Figura 2. Interior das ruínas.


Fonte: Autora, 2004. Fonte: Autora, 2004.

• 3
Figura 3. Fachada pós intervenção Museu Pelé. Figura 4. Interior Museu Pelé.
Fonte: Nair Bueno/Diário do Litoral, 2019. Fonte: Autora, 2018.

Outro tipo de intervenção em ruína é aquela em que se propõe a um novo arranjo


arquitetônico preservando a ruína como tal, e permitindo a fruição em seu interior
através da instalação de estruturas independentes de pisos e passarelas como as
encontradas no Parque das Ruínas no Rio de Janeiro, (Figura 5); e no Castelo Garcia
D’Ávila na Bahia (Figura 6).

Figura 6. Castelo Garcia D’ Ávila, Bahia.


Figura 5. Parque das Ruínas, RJ.
Fonte: Autora, 2008.
Fonte: Autora, 2012.
É claro que existem outros exemplos, como a capela Nossa Senhora da Conceição no
Recife, o colégio do Caraça em Minas, a Ladeira da Memória em Salvador, como
intervenções sobre ruínas, mas que não cabe discorrer sobre elas. Os casos acima
citados sugerem apenas um contraponto entre duas situações distintas, ou seja, a ruína
como tal e a ruína como parte integrante.

O “ESPETÁCULO” DAS RUÍNAS RECONSTRUÍDAS


Pode-se denominar ruínas, desde monumentos da antiguidade clássica até sítios
industriais abandonados ou núcleos urbanos obsoletos. Paranapiacaba é um
remanescente da Revolução Industrial do século XIX, embora ainda conserve grande
parte de seu acervo patrimonial material, possui também em sua trajetória enquanto
vila ferroviária, vestígios do passado e ruínas que nos apontam com muita clareza não
só a passagem do tempo, mas também a incúria.

A vila de Paranapiacaba em Santo André (SP) é parte importante na história do


desenvolvimento do estado, por abrigar ali a primeira ferrovia de São Paulo. Como dito

• 4
inicialmente, a vila passou em 2002 a pertencer à prefeitura e desde então, vem
passando por diferentes processos de intervenção no esforço de tentar manter seu
patrimônio urbanístico e arquitetônico. Tais intervenções têm como foco principal
atender a demanda turística, pois uma ambiência limpa e renovada atrai mais a atenção
do público alvo, do que remanescentes descaracterizados e com aparência de velho
abandonado. A vila tem também, importante relevância turística com diversos atrativos
para um turismo de aventura e de natureza, uma vez que está situada em plena região
de Mata Atlântica na Serra do Mar.

Recentemente o Ministério do Turismo selecionou as candidaturas que vão representar


o Brasil no concurso global das Melhores Vilas Turísticas, realizado pela Organização
Mundial do Turismo (OMT) e a “vila inglesa” de Santo André configura na lista de
representantes na competição entre uma das concorrentes ao título. De acordo com a
administração pública, a indicação de Paranapiacaba a essa lista é um reconhecimento
pelo empenho que está sendo feito; e que a participação da vila nesse concurso,
consolida o município como um pólo de atração turística, o que trará benefícios e
desenvolvimento da economia.

Então, vejamos de que forma as intervenções estão ocorrendo e, em qual contexto isto
se dá. Paranapiacaba conta hoje com vestígios de antigas construções, dois exemplares
em processo de arruinamento enquanto aguardam liberação de verbas para seus
‘restauros’, e mais dois exemplares arquitetônicos em estado de ruína, ou seja, a
matéria já teria retornado ao que Brandi chama de estado completamente bruto. Em
um primeiro momento, pouco tempo depois de assumir a vila, a administração se viu as
voltas com um incêndio que destruiu um exemplar de tipologia única de seu conjunto
urbano. Tratava-se de uma casa de engenheiro que fazia parte de um quarteirão
destinado a esse fim: abrigar o alto escalão da SPR, geralmente engenheiros ingleses.

Do referido imóvel (Figura 7), sobraram apenas as duas torres das chaminés das
lareiras e as construções anexas situadas no fundo do lote (Figura 8).

Figura 7. Casa de engenheiro. Figura 8. Ruínas da casa de engenheiro.


Fonte: Autora, 2002. Fonte: Autora, 2005.

• 5
A perda desse exemplar causou a descontinuidade da paisagem urbana, uma lacuna
tomou seu lugar, diante dessa tragédia, surgia a oportunidade de se discutir as
questões relacionadas em torno da homogeneidade da paisagem, identidade, valor
cultural, ruínas, destruição total, reconstrução, cenografia urbana, memória coletiva
entre tantas outras questões que poderiam contribuir e fazer parte do escopo dos
debates a respeito do que fazer após a perda desse imóvel. Mesmo porque, a própria
estação férrea já havia passado pelo mesmo sinistro na década de 80 e naquela ocasião
também não houve essa reflexão.

A primeira proposta era de uma construção nova e distinta do que havia antes, previa
um edifício com estruturas metálicas, vedos em madeira e vidro e cobertura única. Tal
proposta foi rechaçada pelos órgãos de preservação. Houve um embate entre os órgãos
estadual e federal: o primeiro enfatizava a necessidade de se construir algo diferente,
uma vez que se perdeu a totalidade do imóvel, embora não tenha aprovado a primeira
proposta. O segundo, por sua vez, aconselhava a reconstrução tal e qual o existente
perdido. A prefeitura permaneceu numa posição intermediária de manter a volumetria e
atender as necessidades contemporâneas.

E desta forma, a obra foi realizada sobre as ruínas do antigo edifício com a mesma
linguagem arquitetônica, os mesmos materiais (madeira) e volumetria, esta por sua
vez, com um acréscimo modernizante de uma “caixa” revestida de tijolos a vista para
abrigar um conjunto de banheiros (Figura 9), que atenderia ao novo programa de
biblioteca. Porém, os anexos que escaparam do incêndio, não tiveram a mesma sorte
durante a reconstrução do novo edifício, foram demolidos como parte da limpeza do
canteiro de obras, sem nem ao menos serem levados em consideração enquanto
testemunhos remanescentes.

Figura 9. Reconstrução mimética.


Fonte: Autora, 2019.

As lacunas urbanas, resultado de perdas de alguns imóveis, também fazem parte da


paisagem da vila de Paranapiacaba. Trata-se de ruínas que já se configuram como tal
na leitura ambiental do conjunto. Porém, para apagar esses vestígios da história local,

• 6
essas ruínas vêm sendo, sucessivamente substituídas por obras novas. O que antes era
tratado com status de ponto turístico, inclusive com direito a placa indicativa (Figura
10), agora é visto como melhoria do espaço urbano, visando à qualidade de vida dos
moradores e visitantes. E sob essa nova ótica, temos o exemplo da construção do posto
de saúde (Figura 11) onde antes se localizava a ruína da casa do doutor Marum, médico
residente da vila em tempos remotos.

Figura 10. Ruínas como ponto turístico. Figura 11. Ruína “estrangulada” pela intervenção.
Fonte: Autora, 2006 Fonte: Autora, 2022.

Claro está que os moradores locais necessitavam e mereciam um novo posto de saúde
que atendesse as demandas, mas não necessariamente precisaria ser efetuada uma
obra dessa envergadura, onde fosse tratado com tão pouco apuro o projeto
arquitetônico, no que diz respeito às ruínas presentes no local. Sequer houve o cuidado
de dar um tratamento adequado a esses vestígios com a sua consolidação,
recomposição de piso por anastilose, preenchimento de rachaduras, fixação de
revestimentos, reforço das partes soltas, e até mesmo proteção, entre outros.

Tampouco ficou claro nesta intervenção o partido adotado, uma vez que, quem
frequenta o posto não entende porque construíram um prédio novo e deixaram os
“cacos velhos” atrapalhando o caminho. Normalmente, nesse tipo de intervenção
deveria ter sido executado de forma a não interferir no aspecto geral das ruínas, pois as
mesmas acabaram se tornando um elemento estranho, estranguladas no meio da
passagem. Um pouco mais de atenção ao projeto arquitetônico e ao real significado de
ruína no contexto histórico e documental, teriam tido um melhor resultado. Ou seja,
não houve entendimento de que se tratava de um documento histórico e que, portanto,
este deveria ter sido reconhecido como tal.

A cidade seja ela qual for, é um organismo vivo, em constante transformação, e com
sítios históricos habitados não é diferente, muda-se a dinâmica, mudam-se os fatores
sócio- ambientais, ou seja, ela não está engessada e congelada no tempo. No caso de
Paranapiacaba, por exemplo, se por uma lado perdeu a sua função de vila ferroviária,
por outro, ganhou status de patrimônio e destino turístico ao longo de sua existência de
mais de um século e meio. Nesse percurso a paisagem urbana vai se alterando tanto

• 7
por fatores exógenos, quanto endógenos.

E desta forma, as ruínas não necessariamente são herança de um passado distante.


Elas também podem ser frutos de organismos desprovidos de competência necessária
para que determinados edifícios não cheguem a ruírem por si só. A exemplo disso
temos a antiga e primeira sede do Serrano Athletic Club, time de futebol fundado em
1903 por funcionários da SPR, destacava-se dos demais edifícios da vila por ser uma
construção em alvenaria, contava com salão social, banheiros e outras dependências
para atividades da agremiação. Anos mais tarde, ao se fundir com a Sociedade
Recreativa Lyra da Serra, passou a ser Lyra Serrano e deixou sua sede, que foi utilizada
por outros serviços, inclusive uma pensão.

Figura 12. Ruína Serrano. Figura 13. Arruinamento da ruína.


Fonte: Autora, 2004. Fonte: Autora, 2022.

Ao que parece não houve muita preocupação de tratar a ruína como um aspecto a ser
considerado na paisagem local, uma vez que não se buscou garantir sua permanência
através de obras de reparo, manutenção e consolidação que vislumbrassem a sua
preservação. A antiga edificação vem sendo degradada pela ação do tempo, num
processo de deterioração e abandono. Sua estabilização se dá única e exclusivamente
pelo perigo que ela representa de desabamento, daí encontrar-se cercada impedindo
qualquer acesso.

Recentemente, em 2019, a vila de Paranapiacaba “ganhou” uma ruína contemporânea,


vítima, não dos senhores dos tempos como alegava Dvorak, mas da incúria e da falta
de visão global de como tratar o patrimônio arquitetônico. Mesmo sabendo que uma
nova destinação é uma tarefa complexa e difícil, em se tratando das diferentes
tipologias residenciais em madeira encontradas na vila, a questão do uso, deve, antes
de tudo, levar em consideração o estado material do edifício. Sob este ponto de vista,
por um lado, o mesmo é poupado dos riscos inerentes do desuso, mas por outro, pode
vir a ser exposto ao desgaste e usurpação em relação ao uso original. Mas, de qualquer
forma, seria um risco calculado e uma solução que preservaria de vandalismos.

Dentro da hierarquia ferroviária foram construídas diversas tipologias de moradia, uma

• 8
delas, única também, foi destinada ao chefe da estação, localizada num local
estratégico com vista para o pátio de manobras e para a própria estação. Era uma casa
ampla (Figura 12-13), com vários cômodos, alpendrada, duas lareiras (Figura 14),
circulação interna por corredor independente (Figura 15), com cozinha e banheiro no
interior do edifício – diferentemente das casas dos ferroviários, onde os sanitários eram
localizados externamente no fundo dos lotes.

Figura 12. Fachada principal. Figura 13. Fachada lateral alpendrada.


Fonte: Autora, 2007. Fonte: Autora, 2007.

Pouco se sabe, ou se tem documentos sobre este edifício, o fato é que ao longo de sua
existência, teve uso como moradia e abrigou uma pousada por um determinado
período. Ocorre que, o imóvel foi desocupado, deixou de ter a função de pousada, e de
acordo com a antiga permissionária em entrevista dada ao Metro Jornal, o que a levou
sair do imóvel foi o aumento do valor de aluguel.

Figura 14. Lareira Sala de Figura 15. Corredor central.


jantar. Fonte: Autora, 2007. Fonte: Autora, 2007.

O fato é que desde 2011 estava vazio e era alvo constante de invasões e vandalismos,
segundo depoimento de moradores. E, em pleno Festival de Inverno de 2019, evento
que ocorre todo mês de julho desde 2002, um incêndio destruiu por completo o referido
imóvel, transformando-o na mais “nova” ruína da vila.

Outro fato curioso e que gera um momento de reflexão de como se é encarado um

• 9
sinistro dessa magnitude, é que em toda a mídia onde fora divulgada a notícia,
relatavam a ‘sorte’ de o imóvel estar desocupado e que o ocorrido não iria afetar o
andamento do Festival de Inverno. Não há dúvidas de que é sempre muito bom não
haver vítimas, porém, a questão não é essa.

Analisando mais profundamente sobre a ótica da preservação de um sítio histórico


tombado nas três esferas governamentais, que se pretende ser reconhecido como
patrimônio da humanidade, que está no páreo de um concurso de ‘melhor vila para o
turismo’, até que ponto um imóvel vazio, sem uso, sofrendo todo tipo de vandalismo e
abandono é sorte permanecer desocupado? O casarão fazia parte dos imóveis que
receberiam aportes financeiros por parte do Programa de Aceleração do Crescimento
(PAC) Cidades Históricas, mas o processo de análise estava paralisado já havia dois
anos, então o que justifica a inércia enquanto tramita a burocracia?

Na ocasião do incêndio, o órgão federal se manifestou enviando uma equipe de técnicos


da superintendência estadual para uma vistoria e averiguar as perdas ocorridas (Figura
16-17), e as possibilidades de reconstrução do bem. Novamente um posicionamento
equivocado diante das novas ruínas surgidas e uma resposta muito rápida para um
problema extremamente complexo.

Figura 16. Ruínas - fachada frontal. Figura 17. Ruínas – fachada lateral alpendrada.
Fonte: Autora, 2019. Fonte: Autora, 2019.
Enquanto não se sabe o futuro de mais esta ruína que, já é vítima de si mesma, pois,
muitos de seus restos já foram removidos com a limpeza dos escombros,
principalmente trilhos de ferro utilizados durante a construção da casa, telhas de zinco e
tudo o mais passível de ser vendido a qualquer ferro velho. Atualmente, pode ser
considerada a ruína da ruína, uma vez que continua sendo alvo de vandalismo, saques
e pichações. E mais uma vez, por conta de um entendimento de que em se tratando de
ruínas, estas devem ser eliminadas e apagadas da paisagem da vila justamente por seu
aspecto de destruição.

A valorização dos aspectos da ruína é relativa. Cabe ao observador identificar os valores


subjetivos contidos em tais aspectos visuais formados pelo fator tempo, considerando o
processo de destruição. O edifício arruinado, ainda que desprovido de sua forma

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íntegra, proporciona ao observador, a interpretação do passado e auxilia na construção
da memória, por seu testemunho concreto da história e traz consigo as marcas do
tempo, que neste caso são as cicatrizes marcadas a fogo.

Por fim, cabe ainda destacar mais um imóvel emblemático dentro da estrutura urbana
da vila de Paranapiacaba que se encontra em franco processo de arruinamento,
enquanto se espera pela tramitação burocrática de recursos federais para o que a
administração pública, juntamente com os órgãos de preservação denomina de
‘restauro’.

Trata-se do edifício que abrigou um dos primeiros cinemas do país. O edifício construído
entre 1899-1901 na época dos ingleses enquanto administradores da vila, abrigava
também festas e atividades culturais (Figura 17). Este imóvel fazia parte do pacote de
investimentos do PAC-Cidades Históricas em 2013. Porém, as obras foram paralisadas
para análise e a empresa responsável pela restauração iniciou os trabalhos com a
remoção de parte do telhado e das estruturas de madeira das paredes e abandonou o
edifício desta forma, sem concluir o serviço. O maior problema acarretado por este
abandono, é que passado quase dez anos, não houve a preocupação de uma
manutenção e estabilização da estrutura, e o prédio ficou neste estado de arruinamento
que se encontra atualmente (Figura 18).

Figura 17. Sede Cine Lyra. Figura 18. Estado atual Cine Lyra.
Fonte: Autora, 2004. Fonte: Autora, 2022.
O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), órgão federal
responsável pelo PAC Cidades Históricas, disse naquela ocasião que o destelhamento
deixou o edifício em estado precário e que uma cobertura provisória, como a colocação
de lonas para proteger a estrutura, seria de responsabilidade da prefeitura, que é a
proprietária do edifício. Pelo atual estado do edifício é perceptível que nada foi feito.

Porém, o fato de se aguardar pela liberação de recursos, não exime a administração


pública da responsabilidade de salvaguarda desse bem. Pois, o que se viu é que não
houve nenhuma medida protetiva, seja de escoramento, de manutenção preventiva, de
cobertura provisória, etc; para que o edifício não viesse a se degradar mais e mais
exposto ao tempo ou que se transformasse de vez em uma ruína.

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Mas o contexto atual é de que se iniciem em breve novas obras, pois, a prefeitura
conseguiu junto ao Iphan aprovação para a restauração de todo o complexo composto
por quatro edificações da antiga sede da Associação Recreativa Lyra da Serra. A ideia é
transformar em espaço multiuso para fins culturais e educacionais, além do cinema. A
perspectiva é que os serviços de restauro sejam concluídos até o fim de 2023.

E, se concluído mais este projeto, a vila ganhará mais um novo edifício, sobre os restos
do antigo no mais puro e autêntico estilo “dov’era, com’era”. A expectativa da
administração é que o restauro do Cine Lyra ajude a fomentar a economia local e atraia
novos visitantes para a vila, pois, quase tudo está restaurado e de cara nova para
satisfação geral de todos os envolvidos do poder público.

CONCLUSÃO
O valioso conjunto arquitetônico e urbanístico que compõe o acervo de Paranapiacaba
precisa ser preservado; isto não significa dizer que, nenhuma adaptação possa ser feita
para que os imóveis atendam às necessidades contemporâneas, nem que a preservação
seja obstáculo para a modernização. Mas para tanto existe um conjunto de leis,
normas, conceitos teóricos, cartas patrimoniais, métodos e técnicas, entre tantos outros
instrumentos balizadores, que visam propor como e de que forma isso possa vir a ser
efetivado.

A visão de que ruína é um mal a ser combatido e eliminado de nossas vistas é no


mínimo equivocada e atrasada, uma vez que, desde o Romantismo do século XIX já se
debatia o caráter pitoresco e sublime das ruínas. A cenarização de sítios históricos
também já era uma preocupação citada por Choay.

Brandi (2004 p.64), aponta que a ruína não se define como uma mera imagem, mas
como algo que “deva ser pensado de modo simultâneo sob o ângulo da história e da
conservação; ou seja, não apenas na sua consistência presente, mas no seu passado e
no futuro, para o qual deve ser assegurada, como vestígio ou testemunho da obra
humana”.

Não se trata aqui de preservar tudo indistintamente, tampouco da perpetuação a todo


custo, pois já se sabe da finitude dos edifícios, trata-se acima de tudo de preservar e
conservar através da manutenção permanente, como asseverava Boito (2003 p.17),
mas admitindo a possibilidade da “morte” de um bem histórico. Trata-se de garantir a
permanência da ruína enquanto espaço livre da cidade, que a mesma não está
dissociada de sua paisagem, pois, é parte fundamental que permite a leitura do local da
qual ela faz parte. Trata-se de não iludir o espectador apresentando-lhe falsos
históricos.

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A Carta de Veneza (1964) também indica como premissa à manutenção e as medidas
necessárias a conservação e proteção permanente dos elementos arquitetônicos e dos
objetos descobertos. E recomenda ainda, que todas as iniciativas para facilitar a
compreensão do monumento seja trazida a luz sem jamais deturpar seu significado.

Afinal, por que não se conservam as ruínas de Paranapiacaba? Elas, as ruínas, poderiam
ser conservadas sob a instância histórica. Por que apagá-las do contexto atual da vila?
Afinal, esses edifícios algum dia fizeram parte da histórica local, a ruína pode sim, ter
status de monumento. Senão vejamos, obviamente guardada as devidas proporções, o
que é o Coliseu de Roma senão uma imensa ruína, milhares de pessoas a visitam
exatamente por esta condição; então, qual a razão para que o mesmo não possa
ocorrer em Paranapiacaba?

Diante da postura de dar um novo uso, e da urgência de sempre reconstruir o elemento


perdido, não se tem a nostalgia da ruína porque logo vem a preocupação da
reconstrução da paisagem, como se fosse possível, como diria Ruskin, ressuscitar um
morto. E, nessa urgência de tapar o buraco banguela da paisagem, não se tem debate,
nem senso crítico, discussões com a população, ou com múltiplos profissionais que
poderiam colaborar num pensamento crítico e rigoroso de como solucionar a questão.
Muito tem se debatido a respeito de intervenções em ruínas. Diferentes são os
posicionamentos diante dessa questão, inclusive entre os grandes teóricos da
restauração já citados aqui.

Quando se tem reconstruções literais de obras perdidas no colapso do tempo no corpo


da ruína - como a obra executada na casa de engenheiro – perde-se a possibilidade de
leitura pelo apagamento dessa ruína e transformam essa nova obra numa controversa e
estranha condição temporal, na qual elas não pertencem nem ao passado, nem ao
presente. Essa visão tem levado constantemente ao surgimento de edifícios, e até
mesmo de trechos urbanos que não passam de falsos históricos, iludindo dessa forma, o
observador mais desavisado.

E mesmo com tantos exemplos conhecidos que poderiam servir de baliza e parâmetros
de intervenção, o que se vê é a insistência em praticar um modelo que destrói a
memória da ruína, priva da nostalgia de um tempo, tira-se a possibilidade de fruição e
da interpretação da passagem do mesmo e reconstrói em seu lugar, o que Dvorak
(2008 p.110) denomina “uma nova e geralmente medíocre, obra arquitetônica”.

Mas, ao que tudo indica, as diversas gestões responsáveis pela vila de Paranapiacaba,
já fizeram sua escolha, as ruínas tornaram-se um problema urbanístico que precisa ser
eliminado, para garantir um aspecto novo e limpo para o visitante.

E assim, aos poucos, vamos perdendo a originalidade e autenticidade de um sítio

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histórico que os disciplinados ingleses construíram e conservaram ao longo de noventa
anos, e que nós, herdeiros desse patrimônio não conseguimos preservar e manter de
forma criteriosa e responsável, pelos últimos setenta anos.

REFERÊNCIAS
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dignificação pela arquitetura contemporânea. In: Anais do ArquiMemória 3. Encontro
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Arquitetura e Urbanismo. arquitetura, cidade e projeto: uma construção coletiva. São Paulo,
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