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O movimento da desconfiança: mudanças na forma edificada

após intervenções viárias – o caso da Via Mangue, Recife.


Silvio Melo Junior
Universidade Federal do Rio Grando do Norte, silviomeloj@gmail.com

Edja Trigueiro
Universidade Federal do Rio Grando do Norte, edja.trigueiro@gmail.com

Eixo Temático: Assentamentos humanos

Este trabalho busca compreender nexos entre forma construída e indícios de insegurança. Os bairros do
Cabanga e de Boa Viagem, no Recife, são apresentados em alusão às últimas grandes intervenções viárias
em 2016 com foco na Via Mangue. A investigação explora a incidência de transformações em
características do conjunto edilício em áreas que sofreram mudanças mais acentuadas na estrutura
espacial pela inserção da Via Mangue. A configuração do espaço foi comparada aos dados levantados
quanto a dispositivos de segurança acoplados aos edifícios (câmeras, cercas eletrificadas, outros). A
revisão bibliográfica revelou ideias dicotômicas entre permeabilidade e defensibilidade do espaço como
estratégia de promoção de segurança. Os resultados sugerem que as mudanças na estrutura espacial da
cidade coincidem com o recrudescimento no emprego de artifícios de distanciamento entre espaço privado
e público, seja através da própria arquitetura ou elementos acoplados a ela. O mercado imobiliário dá
sinais de que se beneficia do acréscimo em acessibilidade em novos empreendimentos mais fortificados
que os preexistentes. O incremento no potencial de movimento em algumas vias estudadas parece suscitar
uma desconfiança em relação ao espaço público, e, no geral, do afastamento dos princípios recomendados
em parte da literatura revisada como favoráveis à segurança e animação urbanas.
Palavras-chave. Insegurança, Forma, Movimento, Estrutura

Tradução do título em inglês


Abstract. This work addresses nexuses relating built form and signs of insecurity in public spaces. The
studied cases – the neighbourhoods of Cabanga and Boa Viagem, Recife, Brazil – are briefly presented
related to the major roadworks of 2016, focused on Via Mangue. The research explores the incidence of
changes concerning insecurity signs in the built ensemble in areas whose spatial structure was more
affected by the insertion of the Via Mangue. Graphic and numeric data resulting from space configuration
analysis were compared to data gathered from the observation of insecurity signs attached to buildings
(CCTV cameras, electrified fences, others). The theoretical framework within the literature review shows
a dichotomy concerning permeability and defensibility of space as strategies, and, therefore, the role of the
spatial configuration as a means to promote security. In the present research, results suggest that changes
in the city’s spatial structure coincide with increasing insecurity signs aimed at setting private and public
spaces apart, either through architecture itself or by way of elements attached to it. The real estate market
signals the benefits of an increase in accessibility by offering new developments in the area, these being yet
more fortified than pre-existing ones. The increase of potential movement verified in some of the area’s
studied thoroughfares seems to have fostered further mistrust of the public space, and deviation from the
principles recommended as favourable to urban animation and security.
Keywords: Insecurity, Form, Movement, Structure.

1.Introdução
Este artigo investiga a presença de artefatos indicadores de sensação de insegurança,
relacionando-os a mudanças na forma urbana que alteraram a hierarquia de acessibilidade em
porções da malha viária. As áreas estudadas estão distribuídas em trechos dos bairros do Cabanga
e de Boa Viagem, no Recife, Pernambuco.

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276

Tem-se como premissa que a arquitetura, impregnada de aspectos simbólicos, leva tempo até
revelar mudanças que correspondem a alterações culturais. A paranoia da segurança, do
enclausuramento e do escape à “desordem” do espaço público é cultivada pelo mercado
imobiliário e contribui para a consolidação de uma característica da nossa cultura urbana. Ainda
que estas decisões partam quase sempre do individual, o efeito é coletivo uma vez que hostiliza o
espaço público inibindo o uso da rua como locus do encontro randômico. Encontros promovidos,
dentre outros fatores, pelos padrões de movimento advindos da estrutura espacial da cidade, que
está em constante modificação.
Transformações na forma urbana fazem com que certos espaços da cidade tenham o potencial de
movimento alterado – para mais ou para menos – e esse movimento influenciem na relação formal
do edifício com a rua. Essa consequência recai no uso e na ocupação do solo, consequentemente
na interface entre espaço público e privado, na natureza e na quantidade de artifícios de segurança
agregados à caixa mural do edifício, como cercas eletrificadas, câmeras e grades. O que se
investiga aqui é a resposta arquitetural que os moradores dão às mudanças nos padrões de
movimento nos espaços públicos, destacando-se o que parecem ser indícios de insegurança e
desconfiança. A grande mudança na estrutura espacial avaliada nesta pesquisa é a construção da
Via Mangue, uma via expressa de 4,5km concebida para servir como uma alternativa de conexão
a Boa Viagem iniciando-se no bairro do Cabanga. De acordo com o projeto,
No sentido Centro/Boa Viagem, o corredor terá 4,5km de extensão. Já no sentido
contrário, serão 4,37km. Esta obra engloba ainda a construção de dois elevados por sobre
a Rua Antônio Falcão, em Boa Viagem; de oito pontes [...]; uma alça de ligação [...] uma
passagem semienterrada. [...] Com sua implantação, cria-se um cinturão para proteger o
manguezal do Rio Pina, melhora-se o tráfego nos bairros de Boa Viagem e do Pina [...].
(PREFEITURA DO RECIFE, 2011).

A Via Mangue visou ampliar o sistema viário do bairro de Boa Viagem e do Cabanga desde sua
concepção. Sua inauguração plena em 2016 alterou o perfil de alguns espaços do bairro como
ruas sem-saída que ganharam ligação com a nova Via, entre outras mudanças.

2. Espaço, movimento e insegurança


O espaço ganha protagonismo na discussão sobre insegurança urbana nas contribuições foram
desenvolvidas nos anos de 1960 e 1970, discutindo aspectos da morfologia urbana que facilitam
e restringem a criminalidade (JACOBS, 1961) e orientando novos projetos urbanos e intervenções
no ambiente construído no sentido de promover maior segurança (NEWMAN, 1972).
Aproveitando o ensejo de Jacobs (1961) e Newman (1972), Ray Jeffery (COZENS ET AL 2005)
traz à tona pela primeira vez o termo Crime Prevention Through Environmental Design (CPTED),
isto é, a prevenção de crimes através do desenho urbano-arquitetônico. Trata-se de uma
abordagem normativa que promete diminuir a vulnerabilidade a partir de uma equipe
multidisciplinar formada por policiais, profissionais de segurança, moradores, arquitetos, etc.,
apontando características do ambiente construído e também comportamentos que atraem
criminosos.
Nos anos de 1980 e 1990, ampliou-se o campo de estudos sobre espaço e sociedade, especialmente
por meio dos trabalhos de Bill Hillier e Julienne Hanson (HILLIER & HANSON, 1984;
HILLIER, 1996), que também contribuíram para o entendimento do papel da forma do espaço e
do movimento nas cidades na insegurança urbana. Embora os estudos de Hillier e Hanson - The
Social Logic of Space (HILLIER & HANSON, 1984) e Space Is The Machine (HILLIER, 1996)
– não abordassem o tema em particular, apontaram relevantes aspectos da Sintaxe do Espaço (SE)
que sustentariam investigações posteriores publicadas nos anos 2000 sobre espaço e crime como
os textos Can streets be made safe? (HILLIER, 2004) e An evidence base approach to crime and
urban design: Or, can we have vitality, sustainability and security all at once? (HILLIER E
SAHBAZ; 2008).
No esfera dos estudos latino-americanos, destacam-se os trabalhos de Cavalcanti (2013) e
Iannicelli (2008), ambos tendo o Recife enquanto estudo de caso. Também o trabalho de Monteiro
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(2012) sobre o bairro de Manaíra, em João Pessoa e o de Greene e Greene (2003) sobre as ruas
de Santiago, Chile.
As diversas investigações abordaram diferentes aspectos da morfologia urbana das cidades que
têm reflexos na sensação de segurança e em características arquiteturais. Grande parte da
literatura tem, ainda, se concentrado na dicotomia entre permeabilidade (engajamento/ confiança)
e defensibilidade do espaço (evitamento/ desconfiança) como estratégia de prevenção ao crime a
partir das ideias de Jacobs (1961) e Newman (1972), que pavimentaram o caminho para
investigações subsequentes. O embate faz lembrar as categorias sociológicas “casa” e “rua” de
DaMatta (2000/1984), sinalizando que aquele que passa como conhecido ou aceitável, seria “da
casa”, em oposição aos desconhecidos, os “da rua”, sinônimo de perigo a evitar.
Hillier (2004), pioneiro na exploração de propriedades sintáticas da acessibilidade e da
visibilidade, chegou à conclusão de que os espaços mais visíveis e integrados – consequentemente
mais movimentados - são mais seguros no contexto de cidades inglesas, achado que requer
experimentação em questões de segurança e criminalidade em estudos mundo afora, sobretudo
considerando-se a importante contribuição de Hillier para este campo de estudo ao reiterar a
importância de se analisar a estrutura espacial e o lugar onde os crimes acontecem.
Ainda não há evidências de que seja possível homogeneizar características espaciais como mais
ou menos seguras quanto ao crime. Aparentemente nas cidades latino-americanas, como o Recife,
João Pessoa e Santiago, o movimento de pessoas não é capaz de arrefecer roubos/furtos,
diferentemente do que dizia Jacobs e Hillier. Parece que se chega a uma situação paradoxal porque
justamente naqueles lugares onde há uma lógica formal que subjaz uma maior variedade de usos,
copresença e, quase sempre, uma interface mais amistosa é onde há, também, mais delitos.
Sabendo-se que alterações na estrutura espacial da cidade levam a mudanças em padrões de
movimento e de quantidade de pessoas utilizando determinados espaços, e que tais fatores atuam
positiva ou negativamente nas ocorrência de ações criminais, acreditamos ser pertinente estar
atento a mudanças na relação entre os edifícios e a rua, e no surgimento de indícios de
(in)segurança, como contribuição à ampliação do conhecimento sobre relações espaço e
sociedade.

3. Da casa de pescador ao espigão


Boa Viagem e Cabanga se originam enquanto singelas vilas de pescadores que se aproveitavam
da proximidade de frentes d’água. O crescimento populacional do Recife ao longo do século XIX
lança luz para problemas crônicos de abastecimento de água e tratamento de esgoto. O engenheiro
sanitarista Saturnino de Brito vê no Cabanga uma posição estratégica para uma estação de
tratamento de esgoto (ETE) uma vez que ficava numa “ponta” da cidade, com ocupação ainda
incipiente mas ainda assim próxima do núcleo mais povoado da cidade, o centro. A primeira das
estações de tratamento de esgoto da cidade ainda está presente e em pleno funcionamento
(MIGUEL FILHA, 2019).
Durante os anos 1930 e 1940, o empenho do governo do estado contra moradias populares
conduziu a uma política habitacional que priorizou funcionários públicos de Pernambuco e viu
no Cabanga o lugar ideal para se construir uma das primeiras vilas populares da cidade
No fim dos anos 1970, o Cabanga recebeu as obras do Viaduto Capitão Temudo que criou uma
alternativa de acesso à zona sul desviando do centro da cidade. Bônus para o fluxo de veículos e
ônus para o Cabanga: isolou o bairro do restante da cidade. Desde então o último grande
investimento público feito na área foi também de caráter viário, a Via Mangue. Até hoje o
Cabanga preserva em sua maioria residências unifamiliares.
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Figura 1 - Mapa do Recife com divisão por


bairros. (fonte: elaborada pelo primeiro autor).
Boa Viagem está localizada mais ao sul do Recife, no limite do município vizinho, Jaboatão dos
Guararapes (Figura 1). No início do século XX a ocupação da região estava restrita a um pequeno
núcleo de pescadores isolados do que era o Recife urbanizado até então. A construção da Avenida
Boa Viagem, à beira mar, facilitou o acesso ao centro e contribuiu para uma ocupação mais efetiva
nas quadras próximas à praia. A inserção da nova via funcionava como vetor de ocupação até os
anos 1950. As casas de veraneio são paulatinamente substituídas pelos primeiros edifícios em
altura, em meados de 1955, mas que ainda preservavam relações estreitas entre os espaços
públicos e privados, fosse mediante acesso direto à rua, uso comercial no térreo e/ou muros
baixos.
É principalmente a partir dos anos 1980 que os edifícios vão perdendo os “olhos da rua” (Jacobs,
2011, p. 35) e ganhando aparatos que prometem segurança enquanto comprometem a relação
entre espaço público e privado.
Em 2013 iniciou-se a obra da Via Mangue que expandiria o sistema viário do bairro partindo da
Ponte Paulo Guerra, que liga o Pina, adjacente a Boa Viagem, ao Cabanga, próximo ao núcleo
antigo do Recife. A via margeia o traçado urbano preexistente do bairro, separando-o do Parque
dos Manguezais, a oeste (Figura 2), e conectando-se à algumas ruas preexistentes a partir de
prolongamentos.
Em pouco mais de 100 anos, o perfil construído de Boa Viagem foi alterado algumas vezes, do
tipo edilício às intervenções viárias que modificaram padrões de movimento – de pedestres e
veículos – e geraram efeitos sobre a relação entre espaço privado e público.
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Figura 2 - Encontro da Via Mangue com o tecido urbano preexistente (ponto A na Figura 3).
Bairro de Boa Viagem ao fundo e Parque dos Manguezais abaixo (fonte: Portal da Copa/ME,
disponível em <bit.ly/2UZBoLA> Acesso em 12/03/2021).

4. Metodologia
A SE oferece meios para investigar relações entre espaço e sociedade, a partir da ideia fundante
de que os arranjos de cheios e vazios que estruturam os espaços em que vivemos, amoldam
padrões de movimento, encontro e esquivança que expressam e viabilizam a vida social. A
capacidade que tem a configuração espacial de gerar padrões de movimento, independentemente
de outros fatores, foi conceituada como “movimento natural” pelos criadores da metodologia
(HILLIER et al, 1993, p.29) que veem nisso uma precondição material importante para a geração
de relações sociais por criar um campo probabilístico de encontros interpessoais (HILLIER et al,
1989, p.16).
Ao moldar e dar forma ao nosso mundo material, a arquitetura estrutura o sistema de
espaço em que vivemos e nos movemos. Ao fazer isso, tem relação direta – mais do que
meramente simbólica – com a vida social, porque fornece as precondições materiais para
os padrões de movimento, encontro e esquivança que são a realização material – e,
algumas vezes, a geradora – de relações sociais. (HILLIER E HANSON, 1984, p. ix)

Segundo Hillier et al, (1993), os usos do solo são posteriormente alocados na estrutura urbana
para tirar vantagem das oportunidades oferecidas pelos padrões de movimento natural gerado pela
conformação do sistema. Por sistema entende-se a interrelação entre as partes – no caso, as vias
– que formam o todo espacial – no caso, o recorte maior formado pelo Recife e bairros de cidades
vizinhas –, ou o modo como cada via se relaciona espacialmente com todas as demais dentro de
determinado recorte urbano.
Estas relações configuracionais podem ser representadas, quantificadas e analisadas pela SE,
cujas medidas auxiliam na compreensão de efeitos – potenciais e reais – do movimento natural.
Dentre estas, destacam-se, como medidas consagradas para aferir acessibilidade, os valores de
Integração e Escolha.
A distância topológica entre um espaço e todos os outros do sistema é mensurada pela Integração;
portanto, os espaços mais integrados tendem a coincidir com situações de centralidade
relativamente à estrutura espacial da cidade. O conjunto das linhas mais integradas de um sistema
é denominado núcleo integrador, assinalado pela cor vermelha nos mapas sintáticos que são
representados segundo a escala cromática tradicional da SE. Esses espaços são, portanto, mais
fáceis de serem acessados. A medida de Escolha mensura o quanto determinada linha é percorrida
nas rotas mais usadas para se atingir todos os possíveis pares de percurso origem-destino do
sistema. Quanto maior for o valor de Escolha de uma linha (ou segmento de linha), maior será
seu potencial de ser atravessada como caminho mais curto entre outras linhas (ou segmentos de
linha). A medida indica o potencial que as linhas têm de concentrar o movimento de
atravessamento pelo sistema, identificando espaços preferenciais de ligação – as vias arteriais,
por exemplo, da cidade. Seguindo uma tendência que vem se consolidando nas últimas décadas,
pelos resultados mais refinados que apresentam as medidas normalizadas para integração e
escolha (NAIN e NACH, respectivamente), optou-se por utilizá-las aqui. Além de levar em conta
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as interconexões, o cálculo de acessibilidade no mapa de segmentos, pode também ser ajustado


para ponderar a maior ou menor angularidade das intersecções entre as partes (os segmentos),
aspecto relevante em malhas viárias sinuosas, como é, parcialmente, o caso do Recife.
Em síntese: as medidas de Integração e Escolha nos mostram a predisposição espacial de se
acessar espaços dentro de um sistema. Os espaços mais integrados indicam potencial para a
formação de centralidades, e, portanto, para atrair afluência e encontros; e espaços com alto valor
de Escolha sinalizam alto potencial de deslocamento na estrutura espacial. As bases conceituais
e matemáticas dessas e de outras medidas estão extensamente descritas nas obras fundantes da
metodologia (Hillier e Hanson, 1984; Hillier, 1996), em manuais (Al-Sayed, Turber, Hillier, Iida,
Penn, 2014), e em uma infinidade de tutoriais e publicações disponíveis na rede mundial, como o
recentemente lançado Introduction to Space Syntax in Urban Studies (van Nes, Yamu, 2021).

5. A forma do movimento e da insegurança


Ainda que o objetivo da Via Mangue fosse expandir o sistema viário e integrar uma região
urbanisticamente consolidada, há outras consequências que vêm acompanhadas de
transformações na forma urbana, dentre elas a arquitetura que é produzida nesses espaços, a
relação entre espaço público e privado, as mudanças quanto ao uso do solo, entre outros. Com a
SE é possível vislumbrar quais regiões do Recife sofreram os maiores impactos em acessibilidade
topológica quanto às transformações do sistema de espaços abertos ocasionados pela abertura da
Via Mangue.
A base de dados foi atualizada com a inserção da Via Expressa e de suas obras adjacentes que
alteraram diretamente a forma urbana: (a) a alça viária sobre o bairro do Cabanga, (b) a alça da
ponte Paulo Guerra no Pina, (c) o túnel Josué de Castro também no Pina, (d) o prolongamento de
6 ruas até a Via Mangue. A Figura 3 mostra como se deu a inserção da Via Mangue num tecido
urbano consolidado e as respectivas mudanças. Há mais conexões com a malha urbana pré-
existente conforme ela vai chegando ao sul, nos números 2, 3, 4, 5, e 6 da imagem. No início e
até metade da sua extensão ela ladeia a malha urbana sem alterá-la ou conectando-se em alguns
poucos pontos. O “pouso” – melhor, despenque - da Via Mangue chega a ser dramático em pontos
como no bairro do Cabanga, onde a superestrutura de um viaduto aterrissa sobre uma rua
residencial deixando trechos residuais em seu baixio, como pode ser visto na Figura 4.

.
281

Figura 3 - Esquema gráfico sobre Imagem de satélite do Google Earth. Fonte: Google Earth,
editado pelo autor
282

Figura 4 – (a) Alça viária sobre o Cabanga, 2020. - (c) Alça da Ponte Paulo Guerra que dá acesso a
Via Mangue. (c) Túnel Josué de Castro na saída da Via Mangue. Fonte: Jornal do Commercio (fotos
b e c). As demais são fotos do autor.

Para compreender como essas mudanças nas partes alteraram o todo do sistema foram
comparados 4 mapas de segmento: NAIN e NACH antes com NAIN e NACH depois da via
expressa inserida com as devidas alterações. Estão representados no sistema os principais
municípios da região metropolitana: Recife, Olinda e Jaboatão dos Guararapes.
Comparando Figura 5 e Figura 6 percebe-se que mesmo com a inserção da Via Mangue não houve
deslocamento do núcleo integrador do sistema. A região rotulada como centro (ou cidade) pela
população está próxima mas não coincide com o núcleo integrador, ainda que permaneça
exercendo seu papel enquanto centralidade em termos de concentração de comércios e serviços.
Os bairros do Pina e de Boa Viagem despontam com níveis de integração medianos tanto antes
quanto depois da Via Mangue.
Esperava-se que por se tratar de uma via expressa o mapa de segmentos NACH destacasse a Via
Mangue pelo seu potencial de atravessamento do sistema, o que não aconteceu. Seu potencial é
menor que o de outras vias estruturantes. A coincidência de espaços com alto valor de NAIN e
NACH reforça o núcleo integrador. Tampouco os valores de NACH trazem a Boa Viagem e/ou
ao Pina destaque quanto ao potencial de atravessamento, permanecendo apenas com valores
intermediários (Figura 7 e Figura 8).
Na impossibilidade de perceber diferenças cromáticas que representariam mudanças nos padrões
de movimento do sistema, outro procedimento analítico foi adotado: confeccionar mapas de
segmentos que demonstrariam o percentual de mudanças nos índices sintáticos de NAIN e
NACH. Foram sobrepostos os mapas pré e pós Via Mangue que deram origem a um terceiro, que
chamamos de mapa de alterações sintáticas. Aparecem destacados nestes mapas em vermelho os
espaços que mais ganharam acessibilidade e em azul aqueles que mais perderam (Figura 9 e
Figura 10). No caso do NAIN (Figura 9), a Via Mangue incrementou o potencial de movimento
de dois conjuntos de espaços bem definidos logo no início de sua extensão: em trechos dos bairros
do Cabanga e do Pina. Já quanto ao NACH (Figura 10) um trecho de Boa Viagem destaca-se por
mudanças quanto aos índices sintáticos.
283

O Gráfico 1 mostra que o Cabanga (1) caracterizou-se como a região que reuniu a maior
quantidade de segmentos que aumentaram valores NAIN mas também a que mais diminuíram em
NACH. O Pina (2) destacou-se por reunir 40% dos segmentos que ganharam NACH em seu
território. Já Boa Viagem (3) desponta como a porção do sistema com mais espaços que ganharam
NACH, por volta de 50,6%. É justamente nestas redondezas que a Via Mangue possui mais
capilaridade com o tecido urbano. Em nenhum dos segmentos houve perda nos valores de
integração (NAIN).
[A] [B] [C]
incremento NAIN incremento NACH diminuição NACH

9,40%
16,20%
29,17
% 40%
70,83% 50,60%
26% 57,80%

Cabanga Pina Cabanga Pina Boa Viagem Cabanga Pina Boa Viagem

Gráfico 1 - Percentual de segmentos que sofreram alterações sintáticas em cada trecho. Fonte:
elaborado pelo autor
284

Figura 5 - Mapa de segmentos NAIN global antes da Via Mangue. Fonte: INCITI, Melo-Junior, 2020.
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Figura 6 - Mapa de segmentos NAIN global depois da Via Mangue. Fonte: INCITI, Melo-Junior,
2020.
286

Figura 7 - Mapa de segmentos NACH global antes da Via Mangue. Fonte: INCITI, Melo-Junior,
2020.
287

Figura 8 - Mapa de segmentos NACH global depois da Via Mangue. Fonte: INCITI, Melo-Junior,
2020.
288

Figura 9 - Mapa de alteração sintática de NAIN global. Fonte: INCITI, Melo-Junior, 2020.
289

Figura 10 - Mapa de alteração sintática de NACH global. Fonte: INCITI, Melo-Junior, 2020.
Adotando a premissa de que configuração do espaço, movimento e atratores estão associados
entre si e também com a sensação de segurança, como a região do Cabanga e de Boa Viagem
responderam morfologicamente a estas mudanças configuracionais trazidas pela Via Mangue?
Para responder a esta pergunta, informações adicionais sobre cada trecho foram inseridas numa
base SIG (Sistema de Informações Georreferenciadas) informações coletadas quanto a variedade
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de usos, caracterização da interface, quantidade de elementos de segurança e número de acessos.


As informações nos mostram como estava (em 2015) e como está (pelo menos em 2020) o
conjunto edilício. Os dados mais recentes foram coletados pelo autor ao longo do ano de 2019 e
início de 2020. A situação pré Via Mangue foi observada através do Google Street View.
Os resultados estão apresentados em gráficos que correspondem às mudanças ocorridas nos Perfis
Espaciais, explicados a seguir.
Perfis Espaciais
O julgamento do caminhar por uma rua como seguro ou inseguro, por exemplo, corresponde não
só a uma série de características do ambiente construído mas também a fatores sociais como
gênero, experiências pessoais passadas, dentre outras que escapam a esta investigação. Já as
variáveis formais apontadas pela literatura e que dizem respeito ao espaço construído foram
organizadas no que Monteiro (2010) chama de Perfil Espacial Urbano. A ideia é reunir um
conjunto de elementos do espaço urbano a fim de verificar possíveis associações entre aspectos
da forma urbana e fenômenos socioespaciais.
O Perfil Espacial Urbano (Spatial Profile) [...] é uma metodologia que busca descrever
um conjunto de características que identificam um local. Os diversos perfis de espaços da
cidade podem proporcionar condições de descrever e até predizer as características
ambientais e espaciais que estariam associadas, por exemplo: espaços com maior
vitalidade urbana ou, ao contrário, com maior vulnerabilidade ao crime. (CAVALCANTI,
2013, p.52)

As duas áreas de análise foram divididas em 34 perfis, 16 no Cabanga e 18 em Boa Viagem; cada
perfil corresponde a uma rua/ avenida ou a trechos. Essa divisão facilita a leitura uma vez que
certos fenômenos podem acontecer em alguns segmentos de quadra e em outros não.
A Figura 11 e a Figura 12 mostram a divisão das duas áreas de análise em perfis espaciais,
complementadas pelo Quadro 1 com o nome das
vias analisadas.

Figura 11 - Divisão das ruas do Cabanga em


Perfis Espaciais. Fonte: elaborado pelo autor.
291

Figura 12 - Divisão das ruas de Boa Viagem em Perfis Espaciais. Traçado da Via
Mangue em tracejado. Fonte: elaborado pelo autor.
292

Quadro 1 – Descrição das vias analisadas e do perfil espacial correspondente. Elaborado pelo autor.
Número do
Via correspondente
Perfil Espacial
1 Rua Capitão Temudo

2 Avenida Saturnino de Brito

3 Rua Bituri

4 Rua Dilermano Réis

5 R. Comandante Arnaldo da Costa Varela

6 R. Comandante Antonio Manhães de Matos (n. 25 – n. 195)

7 R. Comandante Antonio Manhães de Matos (n. 27 – n. 31)

CABANGA
8 R. Pe. Carlos de Barros Barreto
9 R. Iobi

11 R. Jequitibá

12 R. Gutiúba

13 R. Bujari

14 R. Jitó

15 R. Vila Nova da Cabanga

16 R. Camutanga

17 Av. Engenheiro Domingos Ferreira

18 R. Francisco da Cunha

19 R. Professor Julio Ferreira de Melo


20 R. Ministro Nelson Hungria (n. 696 – n. 486)

21 R. General Édson Amâncio Ramalho

22 R. Poeta Zezito Neves

23 R. Doutor Pedro de Melo Cahú

24 R. Antônio de Sá Leitão

BOA VIAGEM
25 R. Ministro Nelson Hungria (n. 402 – n.26)

26 R. Luís de Farias Barbosa

27 R. Amaro Albino Pimentel

28 R. Antônio Falcão

29 R. Maria Carolina

30 R. Padre Bernardino Pessoa

31 R. Professor José Brandão

32 R. Tenente João Cícero

33 R. Professor Eduardo Wanderley Filho

34 R. Mamanguape
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Diversidade de uso e ocupação do solo


Para caracterizar o uso e a ocupação em cada um dos lotes foram determinadas classificações
gerais e específicas para cada tipo de uso baseado no que estipula o Plano Diretor de 2008 (Lei
N. 17.511/2008) e a Lei de Uso e Ocupação do Solo do Recife (LEI N. 16.176/1996) descritos na
Tabela 1:

Tabela 1 - Classificação quanto ao uso e ocupação do solo. Fonte: elaborado pelo autor
USO GERAL USO ESPECÍFICO
Unifamiliar

Multifamiliar

HABITAÇÃO Unifamiliar misto

Multifamiliar misto

Hotelaria e Hospedagem

Varejista
COMÉRCIO Atacadista
Alimentação
Técnico / Financeiro
Privado
Saúde
SERVIÇO
Público
Clubes e agremiações
Cinema / Teatro
Educacional
INSTITUCIONAL
Religioso

INDUSTRIAL Indústria

SHOPPING CENTER Centro comercial


ESTACIONAMENTO Estacionamento

VAZIO Lote sem construção

SEM USO Edificação sem uso

EM OBRAS Edificação em obras

Dentre os métodos apontados pela literatura para aferir o grau de diversidade do uso do solo, o
índice de Simpson (Jost, 2006) foi o escolhido para esta pesquisa. Neste caso o valor varia entre
0 e 1, sendo zero a mais baixa diversidade (quando o espaço contém apenas 1 uso do solo) e 1 a
mais alta (uma grande quantidade de uso do solo proporcionalmente distribuídas entre as várias
categorias).
294

Caracterização da interface
O que se chama de interface aqui é o elemento, construído ou não, que separa espaço público do
domínio privado. O que se está buscando é encontrar vestígios que respondam ou não à “estética
da segurança” apontada por Caldeira (2011), e/ou ainda a fuga da “desordem social” atrelada
aquilo que é público (BAUMAN, 2008).
A interface de cada lote foi georreferenciada e caracterizada de acordo com seus atributos físicos
e o principal critério de balizamento foi a permeabilidade física e visual, variando entre aberta,
transparente, cambiante, parcialmente fechada e fechada.

Tabela 2 - Classificação quanto ao tipo de interface. Fotos do autor.

Inexiste elemento que separe o espaço


ABERTA
público do domínio privado

Elementos que permitem a visualização


TRANSPARENTE
perene do espaço privado.

Edificações que permitem a visualização


do espaço privado durante certo período de
CAMBIANTE
tempo e que normalmente se fecha em
outro.

Lotes/edificações que possuem, em média,


PARCIALMENTE
metade do seu perímetro fechado e o
FECHADA
restante aberto e /ou transparente.
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Lotes e/ou edificações que estão


FECHADA completamente opacos em relação ao
espaço público.

Elementos ou artifícios de segurança patrimonial


Nesta etapa foram levantados se cada lote possuía elementos como grades nas aberturas, estrepes,
cerca eletrificada, sensor luminoso de presença, CFTV e concertina, lidos como mais um indício
de evitamento e desconfiança. Ainda que cada artifício sirva para uma determinada proteção, a
finalidade de todos é a mesma: reduzir a possibilidade de invasão ao espaço privado.

Tabela 3 - Tipos de elementos de proteção patrimonial. Fotos do autor.

GRADES Elemento metálico que protege aberturas

Elementos cortantes, como cacos de vidro


ESTREPE ou pontas de lança em aço, incrustrados no
topo de um muro

CERCA Barreira elétrica para repelir pessoas que


ELETRIFICADA tentem atravessar um limite

SENSOR Dispositivo associado a uma fonte


LUMINOSO DE luminosa que é acionada ao detectar a
PRESENÇA presença de movimento.
296

Circuito Fechado de TV, monitora


CFTV
remotamente determinados espaços.

Barreira de segurança laminada, em forma


CONCERTINA de espiral com lâminas pontiagudas,
cortantes e penetrantes.

Distância entre constituições


Na SE, diz-se que um espaço é constituído quando há ligações diretas entre o edifício e o espaço
público (HOLANDA, 2002, p. 100). A revisão de literatura aponta que os espaços pouco
constituídos tendem a alimentar a sensação de insegurança. Dessa maneira, interpreta-se que os
lotes com maior número de constituições sugerem maior possibilidade de engajamento com a rua
do que aqueles com menos acessos.
Nesta investigação dividimos o comprimento da face da quadra pelo número de portas e portões
que se abrem para ela. O resultado indica uma distância média entre cada constituição. Exemplo:
um segmento de quadra com 100 metros de extensão e 5 acessos tem, em média, 1 constituição a
cada 20 metros. Neste caso, quanto menor o valor, mais constituído é aquele espaço. De acordo
com Monteiro (2010, p. 637) “a cidade atual tem diminuído o número de constituições por quadra
urbana, além de requalificar a conexão tornando-a mais frágil.” (Figura 13)

Figura 13 - Rua Professor Eduardo


Wanderley Filho, Boa Viagem, numa tarde
em março de 2021. Fonte: foto do autor.
297

6. Resultados e discussão
A escolha de subdividir esta análise em perfis espaciais facilitou a identificação de espaços
específicos onde ocorreram mudanças mais significativas. As informações levantadas foram
inseridas numa matriz de dados com os valores correspondentes a cada um dos 34 segmentos.
As variáveis qualitativas, como diversidade de uso do solo e caracterização da interface foram
transformadas em valores numéricos (diversidade: 0 menos diverso, 1 mais diverso; interface: 1
fechada e 5 aberta).
A ideia não é criar um “índice” que reifique o conjunto de características levantadas, mas sim
conseguir enxergar se as transformações nos espaços apontam para mudanças positivas ou
negativas sob o ponto de vista dos indícios de insegurança e como isso se relaciona com a estrutura
espacial. O Quadro 2 apresenta diferença entre as variáveis, mostrando em quais segmentos as
transformações foram mais significativas e se as variações foram positivas ou negativas. Devido
a algumas serem muito pequenas (como a diversidade), algumas séries foram multiplicadas por
um mesmo fator para que pudessem operar numa escala numérica próxima e assim aparecerem
num gráfico de linha comparativo. Como a multiplicação é feita pelo mesmo valor, mantém-se a
proporção e sem comprometer o resultado. O Gráfico 2 e o Gráfico 3 foram gerados a partir dos
dados do Quadro 2 para inferir a influência de cada variável no conjunto avaliado.

Quadro 2 - Diferença entre os valores que indicam a variabilidade das varáveis. Elaborado pelo autor.
CONSTITUIÇÕES

EQUIPAMENTOS
DIVERSIDADE

INTERFACE
DISTÂNCIA
PERFIL

ENTRE

/ LOTE

NACH
QTDE

NAIN
1 0,7347 -0,2300 0,1143 0,0571 0,0077 -1,2917
2 0,2249 0,1000 0,3824 0,0294 0,9405 0,1210
3 0,5554 -0,2100 0,1698 -0,2642 0,0077 -0,0143
4 0 -0,98 0,1071 -0,3214 0,0072 0,0008
5 1,1834 0,3600 -0,0769 -0,0769 0,0073 -0,1266
6 0,4688 -0,26 0,1250 -0,25 0,0087 0,0550
7 0 0 0 1,0000 0,0091 -0,0014
CABANGA

8 1,3111 -0,1900 0 -0,2333 0,0064 0,0002


9 1,0156 -0,1900 0,0938 -0,3750 0,0063 0,0003
11 0,4630 -0,46 0,0556 -0,0833 0,0063 0,0002
12 0 0 0,0600 -0,2778 0,0063 0,0002
13 1,0938 -0,25 0,0938 -0,4063 0,0064 0,0005
14 -1,4031 0,3300 -0,0357 -0,0714 0,0064 0,0005
15 -1,6000 0 0,3500 0 0,2720 -0,2315
16 0 0 0,0556 -0,1389 0,0064 0,0036
17 -0,2041 0,2100 0,4000 0,3000 0,0105 0,0112
VIAGEM

18 -0,5102 -0,1100 0,1707 0,1707 0,0087 -0,1371


BOA

19 0 0 0,0500 0 0,0083 -0,2398


20 -0,5102 0,3900 0,3250 -0,0750 0,0085 0,1863
298

21 -0,0255 0 0,2000 -0,20 0 0


22 0 -0,39 0,1250 0 0,0751 -0,2788
23 -0,1531 0 0,7143 -0,4286 0,0769 -1,2162
24 -0,2551 -0,59 0,2308 0,2308 0,0520 0,4185
25 -0,2041 -0,7800 0,2222 0,0556 0,0085 0,3863
26 -0,3827 -0,7300 0,5714 0,0952 0,0451 2,3933
27 -0,6122 -2,8600 0,6667 0,0833 0,0402 0,9077
28 -0,0765 0,1000 0,3250 -0,025 0,0104 0,0029
29 -0,4847 -0,52 0,1905 0,3095 0,0072 0,8119
30 0,2806 0 0,2439 0 0,0070 -0,2619
31 -0,5867 -0,06 0,4815 -0,0741 0,0086 0,1045
32 -0,4592 -1,5000 0 0,0541 0,0096 0,5204
33 -0,2296 1,4100 1,1000 -0,1000 0,0300 0,6109
34 0,0510 1,4088 0,3571 -0,2143 0,0092 0,0030

A ideia de animação urbana é favorecida, segundo a literatura, através de interfaces mais abertas
e permeáveis, mais constituições assim como pela maior variedade de usos. O levantamento
mostrou que a diversidade em Boa Viagem é consideravelmente mais alta que no Cabanga, o que
representa uma distribuição mais equilibrada entre os usos do solo. Diversidade esta que,
entretanto, vem caindo – indicado pelos valores negativos do Quadro 2 e Gráfico 3 - conforme
os novos edifícios vêm sendo inaugurados. Os resultados apontam que o Cabanga tem se tornado
mais diverso mas aqui vale fazer uma ponderação. O índice de Simpson representa a distribuição
equilibrada entre uma série de categorias. O índice considera também aqueles nocivos à animação
urbana: vazios, depósitos, imóveis sem uso e estacionamentos. O levantamento mostrou
indicadores de uma evasão habitacional da região em favor destes usos, o que caracteriza esse
aumento de diversidade como um “falso positivo”.
As quadras e lotes consideravelmente menores do Cabanga lhe conferem uma maior possibilidade
de vigilância social ancorado por uma interface mais aberta e/ou transparente e pelo menor
número de constituições por metro. O mesmo pode ser dito quanto a quantidade média de
equipamentos de segurança acoplados a cada caixa mural. Boa Viagem utiliza bem mais desses
recursos que o Cabanga ainda que esse venha recrudescendo especialmente onde os valores de
acessibilidade aumentaram.
O incremento na acessibilidade parece operar como um vetor de desconfiança no Cabanga (ver
Gráfico 2) visto que o aumento no potencial de movimento acompanha o crescimento no uso de
aparatos em maior grau que noutras ruas do bairro (perfis espaciais 2 e 14). A tendência de
recrudescimento dos instrumentos de segurança fica explícita no Gráfico 2 em todo o Cabanga
mas é ainda mais acentuada onde a acessibilidade foi privilegiada. Em Boa Viagem a
acessibilidade parece fazer pouco efeito frente às transformações na interface, alguns perfis se
abriram e outros se fecharam.
299

Cabanga
1,5

0,5

0
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16
-0,5

-1

-1,5

-2

DIVERSIDADE (1 - D) CONSTITUTIVIDADE
QTDE EQUIPAMENTOS / LOTE INTERFACE
DIFERENÇA NAIN DIFERENÇA NACH

Gráfico 2 - Gráfico de linhas que indica a variabilidade entre as variáveis analisadas no Cabanga.
Elaborado pelo autor.

Boa Viagem

0
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18

-1

-2

-3

DIVERSIDADE (1 - D) CONSTITUTIVIDADE
QTDE EQUIPAMENTOS / LOTE INTERFACE
DIFERENÇA NAIN DIFERENÇA NACH

Gráfico 3 - Gráfico de linhas que indica a variabilidade entre as variáveis analisadas em Boa Viagem.
Elaborado pelo autor.
300

A sensação de insegurança no espaço urbano não é determinada por atributos morfológicos do


espaço tampouco por todos os componentes espaciais pois envolve aspectos que estão para além
deste estudo. Este trabalho se propôs a investigar a relação entre transformações na configuração
do espaço e características morfológicas que apontam para paradigmas opostos, o da confiança e/
ou da desconfiança. O medo encontra representação e pode ser visto em qualquer grande cidade
brasileira, que parecem estar acobertadas por um zeitgeist da desconfiança, já que o movimento
mandatório que testemunhamos nas nossas é o do enclausuramento.
Acontecem no Cabanga dois movimentos que caminham em direção ao mesmo paradigma ainda
que em velocidades diferentes. Nas vias locais, que menos sofreram variações sintáticas parece
que a própria configuração do espaço funciona como um “enclave não-fortificado”. Talvez por
conta dessa aparente relação de confiança entre moradores, as interfaces dos lotes de meio de
quadra estejam mais abertas e transparentes que nas esquinas. A garantia da intervisibilidade entre
essas residências parece funcionar como mais um dispositivo de segurança. As mudanças mais
significativas coincidem com espaços que passaram a exercer outro papel dentro da estrutura
espacial da cidade, como o esvaziamento no uso habitacional e a consequente proliferação de usos
como depósito, estacionamento, estoques, etc.
Se no Cabanga o incremento no potencial de acessibilidade funcionou como veículo para a
desconfiança e esvaziamento de imóveis, em Boa Viagem ele foi um catalisador de investimentos
imobiliários. Embora muito sutil do ponto de vista sintático, o mercado nota as mudanças na
acessibilidade e logo se apropria disso enquanto discurso para a venda de imóveis. A paulatina
substituição de casas por edifícios verticais é uma realidade do bairro desde meados do século
XX, entretanto parece que a Via Mangue operou como um acelerador desse processo ao criar uma
nova “centralidade de moradia”.
As transformações na forma urbana do Recife ao aumentar o potencial de movimento trazem
consigo um certo temor, ao menos no Cabanga. A situação é ainda pior se isso ocorrer
acompanhado de um novo viaduto que traz prejuízos a qualidade do ambiente construído ao
“cortar” fachadas. Tendências não apenas brasileiras mas que podem ser vistas mundo afora onde
viadutos já vêm sendo demolidos.
No Cabanga, a quantidade de imóveis sem uso aumentou na mesma proporção que o número de
habitações decresceu. Esse resultado sugere que esse aumento não parece ser visto como benéfico
para os moradores uma vez que aqueles que não foram embora, caminham em direção ao
enclausuramento no espaço privado (CALDEIRA, 2011). Já sob o ponto de vista do capital
imobiliário, o aumento parece trazer muitas benesses uma vez que a construção civil dá sinais de
aquecimento em Boa Viagem. O que por consequência também leva ao enclausuramento uma vez
que as soluções de segurança e as interfaces entre espaço público e privado são reproduzidas com
uma certa homogeneidade por parte do mercado. Em ambos os casos, a acessibilidade
acompanhou prejuízos à relação entre espaço público e privado: no Cabanga pelo esvaziamento
e evasão de moradores. Em Boa Viagem pela diminuição da diversidade do uso do solo com a
construção de edifícios habitacionais monofuncionais atraídos especialmente pela facilidade no
acesso às outras áreas da cidade. No contexto de um estudo morfológico de caso assoma a
dimensão e robustez das contradições que subjazem nossas relações sociais e o modo como a
sociedade enxerga o espaço público como fonte de vulnerabilidade. Ou, conforme o clássico de
Roberto Da Matta (1984), a rua como locus dos outros, de indivíduos anônimos e desgarrados,
regida por [...] leis impessoais e códigos que valem para todos [...] em oposição à [...] casa, como
universo onde as relações predominantes são as de parentesco, compadrio e amizade [...]
(DaMatta, 2000 [1984]:20/149-150).
Certamente não é possível adotar uma “fórmula” de cidade segura. Se em um pequeno naco de
cidade estratégias diferentes de segurança são adotadas, imagine quantas variações desses padrões
podem ser encontrados. Serve como reflexão também ponderar até que ponto a arquitetura
consegue evitar atos indesejáveis na cidade, como o delito. Certamente sozinha ela não evita e
tampouco é determinística. Mas a depender da relação que é criada entre o espaço privado e o
público – cada vez mais distante, diga-se de passagem – ela pode piorar e muito, como já vem
acontecendo nas cidades brasileiras.
301

Referências

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