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DA JANELA DO MEU MINARETE: A CIDADE VISTA PELA

JANELA DOS FUNDOS1

Leila Danziger

Em A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector, a personagem empreende uma


verdadeira excursão ao longínquo quartinho dos fundos de seu apartamento, onde
durante seis meses viveu a emprega doméstica Janair, recordada inicialmente por certa
invisibilidade. O esforço de rememoração é assim descrito:

Os traços – descobri sem prazer – eram traços de rainha. E também a postura:


o corpo ereto, delgado, duro, liso, quase sem carne, ausência de seios e de
ancas. E sua roupa? Não era de surpreender que eu a tivesse usado como se
ela não tivesse presença; sob o pequeno avental, vestia-se sempre de marrom
escuro ou de preto, o que a tornara toda escura e invisível. (Lispector, 1979,
p. 37)

Janair integra o panteão de empregadas domésticas que se delineia a partir de


uma passagem das crônicas de Clarice reunidas em A descoberta do mundo. Ali surge
Aninha, a mineira calada que enlouqueceu, inundando a casa da escritora de imensa
doçura; Jandira, a cozinheira vidente; Del Carmen, a Argentina, entre outras que não são
associadas a nomes próprios, mas identificadas por seus destinos: uma se casou com um
engenheiro americano e uma outra fazia análise, o que assustava suas patroas.
(Lispector, 1999, p. 47-51) As ações de A Paixão segundo GH têm lugar no espaço
ativado pela ausência da empregada Janair, personagem que deixou um desenho críptico
na parede de seu quarto de doméstica, inundado implacavelmente pelo sol.
O cômodo exíguo em que se passa o romance é uma instituição perversa da
arquitetura brasileira, enclave construído em continuidade direta com as senzalas,
inscrevendo em nossas casas de classe média a memória do passado colonial. Às

1
Publicado em Estudos de Paisagem: Literatura, viagens e turismo cultural. Brasil,
França, Portugal. (Livro) Organização: Lemos, Masé; Alves, Ida ; Negreiros, Carmem.
1. ed. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2014.
domésticas é reservada a vista dos fundos, embora nas construções das últimas décadas
até mesmo a janela tenha desaparecido. Minha reflexão é parcialmente movida pela
perplexidade diante das estratificações sociais perpetuadas na arquitetura das capitais
brasileiras, separando os edifícios em frente e fundos, fachada principal e fachada
secundária.
Mas no quarto de empregada do apartamento de G.H. ainda há janela.
Felizmente. E dali, daquele espaço diferenciado, organizado com “audácias de
proprietária” pela empregada e que parece expulsar, por sua organização própria, a dona
da casa, é criado um estranhamento absoluto e uma experiência de espaço qualificada
como “impressão de minarete”, um descolamento do edifício, ou uma dobra, um
dispositivo de “desencavar profundidades longinquamente vindouras”.

Daquele quarto escavado na rocha de um edifício, da janela do meu minarete,


eu vi a perder-se de vista a enorme extensão de telhados e telhados
tranquilamente escaldando ao sol. Os edifícios de apartamentos como aldeias
acocoradas. Em tamanho superava a Espanha.
Além das gargantas rochosas, entre os cimentos dos edifícios, vi a favela
sobre o morro e vi uma cabra lentamente subindo pelo morro. Mais além se
estendiam os planaltos da Ásia Menor. Dali eu contemplava o império do
presente. (Lispector, 1979, p. 37)

Sabemos que a janela aberta é um motivo recorrente na pintura do romantismo,


mas distanciando-se de seu uso como metáfora da pintura desde Alberti, tornando-se
mais e mais opaca, respondendo aos desafios específicos daquele momento. Na pintura
do romantismo, a janela afirma relações complexas e inéditas entre sujeito e natureza.
Em várias pinturas do século XIX vemos um interior burguês, confortável, em que os
valores da intimidade são enfatizados. Essa valorização do espaço privado é uma
resposta ao declínio do homem público, identificado por vários autores, como Benjamin
e Brecht. “Habitar significa deixar rastros”, escreveu Brecht em um poema célebre.
(Gagnebin, 1994, p. 69-70) E em “Berlim, capital do segundo império”, Benjamin
descreve – não sem encanto e nostalgia – todos os objetos domésticos que deveriam
afirmar a intimidade e o sentido da vida: móveis estofados, tapetes espessos, luz filtrada
por cortinas, pinturas, objetos decorativos de toda sorte. Benjamin comenta que o
veludo é um dos materiais preferidos nesse momento, porque o proprietário deixa nele
facilmente as marcas de seus dedos.
As pinturas do romantismo mostram exatamente esse momento de valorização
compensatória da intimidade. Vemos os interiores como que inflados pela subjetividade
que se recolhe no espaço privado. Um ambiente semelhante, marcado pela luz filtrada,
por certa umidade e construído cuidadosamente pela subjetividade da personagem G.H.
é descrito nas partes iniciais do livro de Clarice. Mas, ao percorrer o corredor que leva à
área de serviço de sua casa, G.H. dá início a uma travessia de despojamento, uma
entrega à exterioridade, cujo gesto emblemático é o cigarro, que a personagem acaba de
fumar e atira secreta e desafiadoramente pela janela da área de serviço. (“Joguei o
cigarro aceso para baixo, e recuei um passo, esperando esperta que nenhum vizinho me
associasse ao gesto proibido pela portaria do Edifício.” (Lispector 1979, p. 32). Ao
entrar no quarto de empregada – como quem deixa a própria casa –, G.H. adentra um
deserto.
A proximidade sugerida entre a experiência realizada pela pintura do
romantismo alemão e o quartinho nos fundos do apartamento da personagem G.H. é
reafirmada quando percebemos que, para falar da luminosidade intensa experimentada
naquele espaço, a narradora utiliza imagem semelhante à que Heinrich von Kleist
utilizou para descrever, em 1810, uma tela célebre de Caspar David Friedrich. O pintor
alemão foi certamente quem melhor deu forma às transformações do conceito de
natureza em um mundo desencantado, dando visibilidade, em suas obras, ao novo
estatuto da paisagem no século XIX. Diante de Monge à beira mar, pintura que chocou
o público em 1808, Kleist afirmou que o vazio é tão intenso que, ao olhar a pintura,
temos uma terrível impressão de desorientação e é como se tivéssemos as pálpebras
cortadas: “(...) na sua monotonia e falta de enquadramento, não tendo como primeiro
plano senão a moldura; ao observar [a pintura] é como nos tivessem cortado as
pálpebras.” (Krieger, 1986, p. 29). O olho sem pálpebra, compulsoriamente aberto,
propõe uma percepção inédita, brutal, radicalmente distinta da sucessão de planos que
funda a pintura de paisagem em vias de adquirir prestígio ao longo do século XIX. A
amplitude abrupta de Monge à beira mar parece anunciar os monocromos da segunda
metade do século XX, os campos de cor tão intensos de Mark Rothko, por exemplo.
Caspar David Friedrich, Monge à beira mar, óleo sobre tela, 171 x 110 cm, 1808.

De volta ao romance de Clarice, ali o quarto apropriado por Janair e entregue ao


sol inclemente era o próprio olho, imobilizado, seco, excessivamente sensível, pura
enervação, estático pelo excesso de luz: “(...) lá era o próprio lugar do sol, fixado e
imóvel, numa dureza de luz como se nem de noite o quarto fechasse a pálpebra. Tudo
ali eram nervos seccionados que tivessem secado suas extremidades em arame”.
(Lispector, 1979, p.38) O quarto de Janair é queimado de sol, como as paisagens nos
trópicos, verdadeiros desastres de luz. Nas pinturas do venezuelano Armando Reveron,
percebemos que a experiência do sublime não é propiciada apenas pela obscuridade,
mas também por seu contrário, o excesso de luz, como havia afirmado Edmund Burke,
no final do século XVIII:

A luz excessiva, ao ofuscar a vista, oblitera todos os objetos, fazendo com


que seu efeito se assemelhe exatamente ao das trevas. Depois de olhar algum
tempo para o sol, duas manchas negras, a única impressão que dele fica,
parecem dançar diante de nossos olhos. Assim, duas ideias tão opostas quanto
se possa imaginar reconciliam-se nos seus extremos, e ambas, a despeito de
suas naturezas contrárias, são levadas a convergir na direção do sublime.”
Burke, 1993, p.87)
Armando Reveron, A árvore, óleo sobre tela, 62 x 80 cm, 1931.

No livro de Clarice, podemos identificar a vertigem do sublime que se dá tanto


pelo ofuscamento, quanto pelas imensas reservas de tempo vislumbradas, pois a partir
do minarete, G.H. conecta o Rio de Janeiro a outras épocas e civilizações – abismos no
tempo e no espaço. Mas se a personagem habita a altura, mostra-se igualmente
consciente da indiferenciação entre o alto e o baixo, entre céu e terra, entre água e
deserto. O sublime experimentado não propõe elevação, mas sensorialidade intensa,
desorientação, transtorno dos sentidos provocado pela retina saturada, cega pelo excesso
de luz.

II

Orientada pela narrativa de Clarice, olho pelas janelas de meu apartamento em


um edifício em Copacabana – o Edifício Líbano –, construído em 1938, no mesmo
bairro em que Clarice ergueu seu minarete. Ali, a inteligência da arquitetura foi traída.
Originalmente, não havia fachada de frente e de fundos, pois todas as faces da
construção possuíam pequenas varandas e mesmo as cozinhas, banheiros e as
questionáveis dependências de empregados tinham suas janelas voltadas para os jardins
ou para o morro do Cantagalo, que lhe faz fronteira. Mas desde fins da década de 1980,
o edifício se fecha, se retrai, transformando janelas em paredes para não lidar com a
vista que se altera de forma imprevisível e incontrolável.
Resisto em encerrar minhas janelas. Entendo que a pedra que acerta nossos
vidros é uma forma de comunicação desesperada, continuamente praticada pela
comunidade do Pavão-pavãozinho, que ocupou o morro do Cantagalo e se integrou, em
certa medida, ao edifício. Não apago a lembrança da pedra no vidro tão rapidamente.
Entendo que o buraco aberto é um novo enquadramento que evidencia as fraturas que
nos unem.
Diante de minhas janelas, vejo subir, laje sobre laje, um universo compósito,
avesso a qualquer planejamento, em expansão contínua. Creio que, assim, a tão
propalada matriz construtiva da arquitetura brasileira mostra uma de suas tantas
vertentes, certamente a mais praticada, que é a “arquitetura do puxadinho”.
Sinto-me como a Mulher à janela, outra pintura de Caspar David Friedrich, de
1822, em que a figura feminina se coloca diante de uma paisagem fragmentada e
incongruente. Mas, se na pintura, há ênfase na interioridade do quarto (autêntico
claustro), onde está a personagem de costas, em minhas experiências com a paisagem,
percebo o espaço de dentro e o de fora como plenamente reversíveis: não há dentro nem
fora, mas atravessamentos. Talvez o edifício Líbano se torne pouco a pouco uma dobra
da comunidade do Pavão-pavãozinho e, reciprocamente, a comunidade se torne uma
dobra do edifício.
Intitulo Mirante uma série de fotografias em que busco enquadrar a paisagem
com brinquedos de meu filho. A natureza compósita e construtiva da favela associa-se
às peças de Lego e Playmobil. Talvez seja uma forma de me apoderar daquela paisagem
e, reciprocamente, reconhecer o poder que exerce sobre mim. A plasticidade dos
brinquedos não escamoteia, contudo, a perversidade presente na precariedade inerente a
esse alastramento de moradias. Guardadas as proporções, a verdade é que tanto os que
vivem no Edifício Líbano quanto nas comunidades vizinhas, todos somos
continuamente afetados, em diferentes níveis, por diversas formas de violência, e
estamos diante do mesmo desafio: procurar desesperadamente reinventar o espaço da
vida. Penso que compartilhamos devires: um devir-favela no Edifício Líbano e um
devir-cidade na comunidade do Pavão-pavãozinho.
Caspar David Friedrich, Mulher à janela, óleo sobre tela, 44 x 37cm, 1822.

Há alguns anos filmo a paisagem pela área de serviço. Vejo-a constituída não
apenas por pedra, tijolo e cimento, mas por ações cotidianas que se repetem: lavar e
estender as roupas, por exemplo. Entre os gestos que animam as lajes, privilegio aqueles
ritmados pelo esforço de manter uma pipa no ar, pois se há algo específico nessa
paisagem é a presença contínua dessa delicada arquitetura de papel sustentada por
coreografias precisas sobre os telhados.
“Contemplar o império do presente”, para falar como Clarice, é buscar curto-
circuitos no tempo. Todos nós, moradores do Líbano, repetimos mais ou menos as
mesmas histórias de certa grandeza perdida. Na série intitulada Jardins do Líbano, a
memória do edifício, seu passado supostamente glorioso (quando a embaixada de Cuba
era sediada em sua cobertura) inscrevem-se como uma camada de tempo entre as outras.
Orientada por um desejo de memória, mas sem lamento ou nostalgia, fotografo as
imagens que nos mantêm juntos nos jardins do Líbano. Ali estamos: minha família,
alguns conhecidos sem nome, minhas bonecas e eu. A operação de refotografar as
imagens é orientada pelo desejo de atualizá-las, o que implica aceitar a distância e
considerável cota de esquecimento. “É precisamente quando se tornam controláveis e
objetivas, quando o sujeito acredita estar inteiramente seguro delas, que as recordações
desbotam como tapeçarias delicadas expostas à crua luz do sol. Mas, quando protegidas
pelo esquecimento, conservam sua força, correm perigo, como tudo o que é vivo”.
(Adorno, 1992, p. 146)

Leila Danziger, Série Mirantes, impressão sobre duratrans e caixa de luz, 40 x 30 x 12 cm, 2012.

De volta ao romance de Clarice, do alto de seu minarete, a narradora vê a Ásia


menor, um certo Oriente, portanto, e dali surge um sentimento de orientação. Já o
edifício Líbano carrega o Oriente Médio no nome. O Líbano é aqui. No Cântico dos
Cânticos, encontramos: “Eis a fonte dos jardins, poço das águas vivas, que correm
impetuosamente do Líbano”.
L. Danziger, Jardins do Líbano [Jacqueline e eu], impressão giclée sobre papel de algodão, 68 x 52cm,
2012.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, Theodor. Minima Moralia. Tradução: Luiz Eduardo Bicca, São Paulo:
Ática, 1992.

BURKE, Edmond. Uma investigação filosófica sobre nossas ideias do sublime e do


belo. Tradução, apresentação e notas: Enid Abreu Dobránszinky. Campinas: Papirus/
Unicamp, 1993.

GAGNEBIN, Jeanne-Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo:


Perspectiva, 1994.

KRIEGER, Peter (org.). Galerie der Romantik, Nationalgaleirie, Staatliche Museen


Preussicher Kulturbesitz, Berlim, 1986.

LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo G.H. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979.
_____________. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

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