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GEOGRAFIA – PROFª KAREN LESSA - DATA: / /24.

Aula 4 – O espaço agrário brasileiro

Histórico da concentração fundiária no Brasil

A estrutura fundiária no Brasil foi, desde os primórdios da


colonização, bastante desigual. Iniciando o processo de ocupação
territorial com as capitanias hereditárias e seus donatários, os
colonizadores traçaram um perfil de propriedades gigantescas que
perdura até os dias atuais.
As sesmarias, posteriormente, representaram a subdivisão das
capitanias hereditárias em lotes menores de terras. Apesar de
subdivididos, tais lotes ainda eram grandes, e os critérios utilizados
para sua definição traçaram um perfil claro dos chamados sesmeiros.
As condições de posse e os tamanhos das terras variavam em função
da quantidade de capital e do número de escravizados disponíveis,
evidenciando um processo de elitização do acesso à terra no campo
brasileiro.
A produção do açúcar se desenvolveu sob o regime do
plantation. Ou seja, caracterizou-se por grandes propriedades
monocultoras, voltadas para o abastecimento externo e usuárias de
mão de obra escravizada. Havia o interesse estratégico por parte da
metrópole de garantir a submissão econômica e facilitar o controle
político da colônia com um menor número de donatários.
Paralelamente a essas produções comerciais, seguia a produção
de subsistência, que se tornava, desde então, a principal abastecedora
de gêneros alimentícios da colônia. Essa produção foi fundamental,
pois era necessário alimentar, além dos colonos, um grande volume de
escravizados.
Já em relação à legislação, depois do rompimento jurídico do
Brasil com Portugal, a questão fundiária passou a ter menor
regulamentação – quem chegasse primeiro receberia a concessão. Não
surgiu de imediato nenhuma legislação que controlasse a posse da
terra no Brasil.

O século XIX e suas transformações

A legislação fundiária se tornou um pouco vaga após a independência, em 1822.


O recém-findado regime de sesmarias não foi imediatamente substituído por outra
legislação que controlasse a posse de terras no Brasil. Apenas em 1850 esse quadro se
transformaria, mediante um contexto que envolveu duas leis.
A Lei Eusébio de Queirós foi assinada em 4 de setembro de 1850. Ela definia a
proibição do tráfico interatlântico de escravos, iniciando um processo que,
gradativamente, deixava clara a falta de fôlego do regime escravagista. Essa lei, além de
prenunciar o futuro fim da escravidão, teve um resultado prático bem perceptível no
aumento do fluxo de imigrantes para o país.
Motivados pela oportunidade de trabalho e com a possibilidade de acesso à terra,
muitos europeus migraram para o Brasil, representando um risco para a soberania da
classe detentora de terras no país. Muito antes desses desdobramentos ocorrerem, houve
uma pré-solução para esse problema, e ela ficou conhecida como Lei de Terras, que
seria assinada apenas catorze dias após a Lei Eusébio de Queirós.

É possível resumir a Lei de Terras em quatro medidas:


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• Proibição da aquisição de terras por outro meio que não fosse a compra ou herança;
• Fim do regime de posse pelo uso ou ocupação;
• Revalidação das sesmarias que fossem utilizadas para produção e/ou habitação;
• Estabelecimento de leilões públicos, com o pagamento à vista pela terra.
Em resumo, a terra no Brasil passa a ser – ou se mantém como – um bem disponível apenas para quem tem capital ou
provém de família que o tenha. Essa lei assegura a concentração fundiária e a elitização do acesso à terra no país. Tendo
sido assinada com tão grande proximidade em relação à Lei Eusébio de
Queirós, ela soa como uma clara resposta à primeira lei, que restringia a mão de obra disponível para os
grandes produtores.
A medida era uma solução tão direcionada à questão da mão de obra que foi desenvolvida uma ampla política de
apoio à migração. Ocorreu, naquele período, a introdução do regime de colonato, importante fator atrativo para muitos
europeus que buscavam oportunidades no Brasil naquele momento.
Logo após a abolição da escravidão, ocorrida com a Lei Áurea, em 1888, observou-se na última década do século XIX
a entrada de mais de 1 milhão de imigrantes no país. Uma nova classe social surgia no Brasil naquele momento: a do
homem livre (ex-escravo ou imigrante), que de livre só tinha o título teórico, já que não lhe restava opção a não ser se
sujeitar às condições de trabalho impostas pelos proprietários, servindo-lhes de mão de obra barata.
A região Sul do Brasil foi a única a apresentar um histórico agrário distinto. Nessa porção do território, não havia tanto
interesse para cultivo de gêneros tropicais, devido ao clima mais ameno. Constituiu-se nessa área um tipo de colonização
diferenciado, no qual a base era a pequena propriedade de terra. O objetivo era o de promover a ocupação da região, além de
representar um gradativo processo de “branqueamento” da população do país, ainda sob a luz das teorias etnocêntricas do
século XIX.
Com um novo século se iniciando, foi possível assistir a uma regionalização do controle da terra. A gestão das terras
devolutas, que até então era federal, passou para as unidades da federação, e a questão fundiária passou a ser arbitrada pelos
governos estaduais. O resultado foi um claro aumento do poder das oligarquias regionais, fortalecendo o chamado
coronelismo e seus interesses políticos próprios.

O Estatuto do Trabalhador Rural de 1963


O Brasil da primeira metade do século XX começava a se tornar uma nação urbano-industrial. Isso ajuda a explicar o
longo período sem grandes transformações na gestão da terra e do trabalho no campo brasileiro. Mudanças significativas só
viriam a atingir o meio rural durante o governo de João Goulart (1961-1964), quando foi assinado o Estatuto do Trabalhador
Rural (ETR).
Esse estatuto representou a extensão dos direitos do trabalhador das cidades ao cidadão do campo. Isso corrigia o
desequilíbrio gerado pela assinatura da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) de Getúlio Vargas. Apesar dos grandes
avanços trabalhistas, a CLT de 1943 se restringia ao trabalhador urbano, mesmo em um país em que a maioria da população
ainda era rural.

O ETR, que representaria, a princípio, um avanço nas conquistas sociais do campo, acabou tendo resultados pouco
desejáveis. A melhoria das condições de vida do trabalhador rural não ocorreu como esperado Por dois motivos: a quase
impossibilidade de fiscalização das novas leis em um território tão extenso e o Desemprego ocasionado pelo encarecimento
da mão de obra.
Uma forma comum de burlar a legislação vigente foi intensificar o uso da mão de obra sazonal, ou temporária. A figura
de intermediários – os chamados “gatos” – usados para recrutar (e controlar) esses trabalhadores também se tornou bastante
corriqueira após a entrada em vigência do ETR. O estatuto foi revogado Em 1973, quando foi substituído pela Lei do
Trabalhador Rural, que estendeu alguns novos direitos ao trabalhador do campo, como o aviso prévio e o adicional de
trabalho noturno, entre outros.
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O Estatuto da Terra de 1964
Durante o governo do marechal Castelo Branco, no período da ditadura civil-militar, foi criado o Estatuto da Terra.
Esse documento buscava, teoricamente, estabelecer as bases jurídicas necessárias para o processo de reforma agrária no país
de forma concomitante à mecanização do campo. Não obteve grande sucesso, principalmente por conta dos interesses
políticos e econômicos de grandes latifundiários, que influenciaram (e ainda hoje influenciam) as alterações nas leis e o seu
cumprimento.
O estatuto consistia em um cadastramento das terras, estabelecendo categorias a partir de suas dimensões. Para isso,
foi definida uma unidade de medida que ficou conhecida como “módulo rural”. Tratava-se da quantidade mínima de terra
necessária para que uma família com quatro adultos fixasse produção de subsistência e obtivesse sustento social e
econômico. Sua dimensão métrica variava dependendo da unidade federativa em que se encontrava a propriedade.

Impactos da modernização da agricultura


A modernização vivenciada pelo campo brasileiro a partir dos anos 1950 representou uma capitalização e mecanização
da produção agrícola. Muitos autores se recusam a tratá-la como “modernização”, já que ela resultou em contradições e
exclusões sociais.
A substituição dos pequenos produtores por grandes empresas rurais – as únicas capazes de se modernizar de forma
mais plena – termina acentuando a concentração fundiária e o desemprego rural. Esse perfil de tecnificação associada a
retrocessos sociais rende ao nosso processo de mecanização do campo a alcunha de “modernização conservadora”.
Em resumo, vivemos uma reforma agrícola que acabou por acentuar a crise agrária e social. Esse processo estabeleceu
novas relações entre o meio rural e o meio urbano, reforçando o grau de submissão do campo em relação à cidade. Em tal
reforma, os setores urbanos, que financiam o processo produtivo, consomem e vendem os insumos, impõem aos setores
rurais algumas condições.
A tecnologia introduzida na agricultura provocou sua industrialização, articulando a produção agrícola à lógica da
produção industrial. O conceito que explica esse processo é o de complexo agroindustrial (CAI). A agricultura propriamente

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dita, no contexto da modernização, se torna apenas uma das etapas do processo produtivo. Veja o esquema a seguir.

Outro ponto a ser destacado é que a modernização apresentou um caráter parcial, por vários motivos:
• As regiões não foram atingidas da mesma forma por esse processo. O Sul e o Sudeste se sobressaíram
nesse sentido.
• Nem todas as produções vivenciaram essa modernização, só as de maior interesse no mercado, sobretudo internacional.
• Os pequenos produtores, que não tinham acesso a linhas de crédito ou conhecimento técnico, ficaram
à margem desse processo.

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Hoje, o agronegócio, reflexo direto do processo de modernização do campo, é uma das maiores fontes de divisas da
nossa economia. Também chamado de agrobusiness, ele se consolida como o carro-chefe do comércio exterior, sendo
responsável por mais de 1/3 das exportações e cerca de 25% do PIB nacional. O crescimento brasileiro nesse setor colocou o
país entre os maiores produtores agrícolas do planeta. Os produtos de maior destaque são soja, laranja, derivados de cana de
açúcar, carne e couro bovino, frango e café.
O Brasil é um dos maiores exportadores mundiais de alimentos, buscando sempre pressionar a Organização Mundial
de Comércio a derrubar barreiras protecionistas de países como Estados Unidos e os pertencentes à União Europeia.
Assim,se por um lado a modernização concentrou terras, gerou desemprego rural e acentuou as desigualdades, por outro
lado permitiu a expansão da área de cultivo, aumentou a produção agrícola e as exportações, contribuindo assim para a
manutenção de uma balança comercial favorável.

Expansão da fronteira agrícola brasileira no século XX


Fronteira agrícola é a área de limite entre as terras já utilizadas para a agropecuária e as que ainda são virgens do ponto
de vista produtivo. A fronteira agrícola brasileira expandiu-se a partir da região Nordeste – berço da ocupação colonial –,
estendendo-se ao longo dos séculos por toda a linha da costa, até atingir a região Sul.
O processo de ocupação no Sul diferiu do restante do país por razões estratégicas. O governo realizou de forma
sistemática a doação de terras para pequenos proprietários de origem europeia, dando origem a núcleos de povoamento a
partir de meados do século XIX, especialmente nos estados de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. As políticas públicas
de imigração na região se basearam na posse de pequenas e médias propriedades, deixando esse traço na caracterização
fundiária.
No entanto, a partir de meados do século XX, iniciou-se uma acelerada concentração de terras no sul do
Brasil devido à associação de dois fatores:
• o processo de partilha das terras por herança, gerando uma minifundiarização da área;
• a mecanização do campo, que restringiu as possibilidades de modernização do pequeno proprietário
e do minifundiário.
Com a expansão dos CAIs, houve um achatamento de mercado sobre a figura do pequeno produtor, gerando um número
muito grande de propriedades economicamente insustentáveis. Esse processo colaborou com um fenômeno conhecido como
“fagocitose rural”, que consiste na incorporação das terras de pequenos proprietários pelas empresas rurais ou latifúndios.
Alguns efeitos disso foram perceptíveis no sul do Brasil, como:
• o aumento do êxodo rural e, consequentemente, da expansão urbana desordenada;
• a fundação e/ou fortalecimento de movimentos sociais de luta pela terra, tendo como exemplo mais
famoso o MST;
• emigração da área em direção a países e regiões vizinhas.
Nas décadas de 1960 e 1970, foi possível assistir, portanto, a um processo de redução de empregos rurais e de
concentração de terras que criou um enorme contingente de agricultores sem trabalho e sem terras. Muitos desses indivíduos
começaram a exercer uma relativa pressão por reforma agrária. A estratégia governamental foi direcionar tais trabalhadores
para as fronteiras agrícolas do país, postergando uma solução mais definitiva sobre a concentração agrária existente. Assim,
foram criados projetos de colonização cuja meta era direcionar o fluxo migratório dos sem-terra do Nordeste e do Sul para
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as regiões Centro-Oeste e Norte, áreas ainda pouco ocupadas. A expansão da fronteira agrícola funcionou, então, como uma
válvula de escape para as tensões sociais existentes na época. A participação do Estado brasileiro nesse processo foi
determinante, criando infraestrutura de transportes mais adequada na área. Outra estratégia do Estado foi viabilizar o acesso
a uma técnica de correção química dos solos, a calagem, que se mostrou necessária para reduzir a acidez dos solos no local
A abertura das rodovias de integração nacional, a partir da transferência da capital para o Centro-Oeste, possibilitou a
intensificação do processo de integração territorial. Essa medida foi tão importante quanto diminuir a pressão social dos
sem-terra e ocupar a Amazônia, que ainda se encontrava despovoada e vulnerável a invasões ou à ação de grupos
guerrilheiros vizinhos. Uma massa de manobra de agropecuaristas terminou sendo acompanhada por projetos ligados a
madeireiras, mineradoras e indústrias, diversificando o aproveitamento da área.

Sem grandes políticas de amparo por parte do Estado, muitos desses produtores faliram novamente, o que explica o
aumento da urbanização nas regiões de destino, além da intensificação de conflitos por terra, que passaram a envolver mais
intensamente também as populações tradicionais, como os povos indígenas nativos e os seringueiros.

A fronteira agrícola brasileira também se caracterizou pela expansão dos complexos agroindustriais na direção do
Sertão nordestino, desde o interior da Bahia até o sul dos estados do Maranhão e do Piauí. Tais áreas – economicamente
estagnadas até o fim do século XX – hoje inserem-se no contexto da economia exportadora brasileira, principalmente de
soja. No entanto, a estrutura fundiária concentradora, o aumento brutal do desmatamento e das queimadas, bem como a
exploração dos trabalhadores rurais são elementos mantidos, comprovando que a modernização conservadora prevalece até
os dias atuais
A luta pela terra da década de 1980 em diante pode ser caracterizada pela formação de dois grupos sociais antagônicos:
o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a União Democrática Ruralista (UDR). O MST se organizou a
partir de famílias de agricultores segregados pelo processo de modernização. Estes se tornaram agentes de luta pela terra nas
suas regiões de origem, especialmente no Sul do Brasil, mas também na Amazônia e no Nordeste.
A UDR, desde 1985, representa os interesses dos latifundiários no debate acerca da reforma agrária. Tem como objetivo
se contrapor ao MST e pressionar os poderes políticos no Brasil a seu favor. Foi lançado em 1985 o Plano Nacional de
Reforma Agrária (PNRA), com o objetivo de assentar 10 milhões de trabalhadores rurais sem-terra, o que nem de longe foi
alcançado, muito por conta das pressões de representantes da UDR.

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Para concluir
Vimos que o Brasil possui profunda concentração fundiária. Em termos quantitativos existem mais propriedades
pequenas, porém elas ocupam uma área extremamente inferior às grandes propriedades e latifúndios. O passado colonial do
Brasil colaborou muito para a estrutura fundiária atual, uma vez que capitanias hereditárias e sesmarias eram propriedades
de tamanhos imensos.
Do ponto de vista jurídico, o módulo fiscal define a classificação de tamanho das propriedades, e é utilizado para cálculo
de impostos. Já o módulo rural determina o nível de produtividade das propriedades. O ETR e o Estatuto da Terra não
alcançaram efetividade completa em razão dos interesses envolvidos e da baixa fiscalização.
Além disso, são comuns as relações de trabalho assalariadas (regulares ou temporárias) e as não assalariadas (colonos,
parceiros, posseiros) no campo brasileiro. A modernização do campo brasileiro trouxe resultados positivos e também
negativos, como o agravamento da concentração de terras, as disparidades sociais e o desemprego.Realizar uma reforma
agrária significa criar artifícios de redistribuição da terra em um país ou região. No Brasil, a realização de uma reforma
agrária esbarra nos interesses de agentes econômicos e políticos.
Por fim, vale lembrar que os CAIs representam organizações que articulam os setores primário e secundário da
economia. E também que a expansão da fronteira agrícola recente ocorreu da região Sul em direção ao Centro-Oeste e,
posteriormente, ao sul da Amazônia, tornando-se, inclusive, um debate que aborda os impactos ambientais decorrentes.

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