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PHYLLOXERA – A INIMIGA Nº 1 DO VINHO

Como esse minúsculo inseto quase acabou com a indústria do vinho e como a
praga foi controlada

No final da década de 1850, a Europa acabava de se recuperar do oídio, um


fungo originário dos Estados Unidos levado ao continente europeu após as
guerras napoleônicas. A solução encontrada para eliminá-lo foi satisfatória:
polvilhadas com enxofre, as folhas voltaram a ganhar viço e crescer
normalmente.

Mas não durou muito o sossego dos viticultores: em julho de 1866, as videiras
do vilarejo de Saint-Martin-du-Crau, perto de Arles e de Montpellier,
começaram a morrer. As folhas ficavam vermelhas e caíam, os cachos de uvas
murchavam e secavam e as raízes apodreciam. Na primavera seguinte, as
plantas afetadas inicialmente estavam mortas; em dois anos, vinhedos do Vale
do Rhône e do sul da França apresentavam os mesmos sintomas.

Na primavera de 1867, Jules-Émile Planchon, chefe do


departamento de botânica da Universidade de Montpellier,
foi nomeado para a comissão de combate a essa nova
doença das videiras.

Em 1868, ao arrancar plantas que pareciam saudáveis


perto de outras que tinham sido afetadas, descobriu que
as raízes estavam infestadas de insetos amarelados,
minúsculos, que sugavam a seiva de seus hospedeiros.
Ele batizou esses pequenos vampiros de Rhizaphis vastatrix, "afídeo que
devasta a raiz da videira".

Os afídeos pertencem a uma ordem de insetos


chamada de Heteróptera, que inclui os percevejos,
entre outros. A criatura acabou sendo chamada de
Phylloxera ("folha seca") ou filoxera, em português. O
afluxo de videiras americanas mencionado antes deve
ter sido a causa da importação da filoxera para o Velho Mundo.

Velha conhecida

Muitos haviam se esquecido de sua primeira


aparição em videiras europeias levadas por
colonizadores franceses para a Flórida, no
século 16, destruindo os vinhedos plantados
por eles. Contudo, a causa não chegou a ser
identificada na época e esses pioneiros da
viticultura na América concluíram que a Vitis
vinifera não vingaria no novo continente,
dedicando-se então ao cultivo das espécies
nativas.

A dificuldade na identificação da causa é simples: A "tromba" da filoxera tem


tanto um canal injetor de veneno quanto um tubo alimentar com o qual extrai a
seiva da videira. Quando a toxina do veneno corrói a estrutura da raiz da
planta, a pressão da seiva baixa e a filoxera retira o seu tubo alimentar,
procurando outra fonte de alimento. Por isso, alguém que desenterre as raízes
de uma videira morta não encontrará qualquer rasto do inseto.

Danos

Cerca de 40% das vinhas foram devastadas num período de 15 anos, desde a
década de 1850 até meados da década de 1870. A economia francesa foi
fortemente atingida; muitos empresários faliram e os lucros da indústria vinícola
foram reduzidos para menos de metade. A situação foi responsável, entre
outras coisas, por um aumento considerável da emigração, principalmente para
a Argélia e para a América.

A Wikipédia exibe, no verbete dedicado à praga, 1 uma cronologia que ajuda a


entender a extensão do problema causado por ela:

 1863: primeiras notícias da aparição da filoxera no continente europeu, com


identificação do inseto na França e numa estufa (onde a espécie foi isolada)
em Hammersmith, nos arredores de Londres;

1
https://pt.wikipedia.org/wiki/Filoxera
 1865: infestação em La Crau de Châteaurenard, Bouches-du-Rhône, França;
 1865: primeira notícia de infestação em Portugal, no vale do rio Douro;
 1866: foco de infestação em Floirac, na Gironda, França;
 1868: Jules Émile Planchon identifica o inseto responsável pela doença e,
julgando tratar-se de uma espécie nova para a ciência, atribui-lhe o nome de
Phylloxera vastatrix, sinônimo taxonômico que ainda é por vezes utilizado na
Europa;
 1871: A zona infestada no vale do Rhône forma um grande triângulo que atinge
Cadarache a leste, Castries a oeste e Tain-l'Hermitage ao norte;
 1871: primeiro foco na Suíça, próximo de Genebra;
 1872: novo foco de infestação na zona de Cognac, França;
 1872: a filoxera ataca vinhedos da ilha da Madeira;
 1873: a filoxera aparece na Califórnia;
 1874: primeiro foco na Alemanha, próximo de Bonn;
 1876: novo foco de infestação em Orléans, França;
 1875: a filoxera aparece na Áustria;
 1875: a Austrália é contaminada;
 1877: primeira aparição em Espanha, na zona de Málaga (Andaluzia) e Girona
(Catalunha);
 1878: a filoxera parece na Côte-d'Or, França;
 1879: descoberta da filoxera na Itália, em Valmadrera, próximo de Como;
 1880: novos focos de infestação na Itália, em Caltanissetta (Sicília) e Imperia
(Génova);
 1880: a filoxera aparece na África do Sul;
 1885: primeiro foco na Argélia, próximo de Tlemcen;
 1886: novo foco na Argélia, próximo de Skikda;
 1888: a filoxera atinge o Peru;
 1894: os vinhedos de Champagne, França, são atingidos;
 1905: a filoxera atinge a Tunísia;
 1914: a filoxera atinge a Manchúria, no Extremo Oriente;
 1919: filoxera em Marrocos;
 1945: filoxera na Borgonha, França;
 1980: a região de Tokat, na Turquia é atingida (afectando vinhedos de “pé-
franco” da casta Narince).
Solução

Até chegar à solução mais eficaz contra o


ataque do inseto, Planchon enfrentou a
oposição de seus colegas de comissão, que
se recusavam a aceitar que a filoxera seria a
causa do problema: muitos deles admitiam
alguma culpa do inseto, mas achavam que a
presença deste só indicava que a videira fora
enfraquecida por algum outro fator.

No início da década de 1870, com a infestação em várias regiões da França, o


governo ofereceu um prêmio de 30.000 francos para quem apresentasse a
solução. (Em 1874, o prêmio decuplicou: 300.000 francos.) Em termos
econômicos, o desastre não poderia ter sido pior: a produção francesa de
vinhos despencou de 84,5 milhões de hl em 1875 para 23,4 milhões em 1889.

Entre as tentativas de erradicação da praga, elencam-se práticas como:2

 Aspersão dos videiras após a poda com cal viva, naftaleno ou óleo queimado
com o objetivo de destruir o "ovo de inverno". Esta técnica, que ainda era
praticada no início do século 20, era pouco eficaz, cara e ambientalmente
perigosa.
 Tratamento com sulfureto de carbono, através da injeção no solo, na zona das
raízes, deste líquido volátil e tóxico para os insetos. O método é eficaz, mas
muito caro, não tendo hoje viabilidade econômica. Um método semelhante,
embora menos eficaz, consistia na colocação de uma solução de
sulfocarbonato de potássio num recipiente de fundo aberto que era colocado
em redor da planta.
 Tratamento por submersão, que consiste na inundação do solo durante um
período alargado, por forma a uma relativa anoxia na zona radicular que
matasse o inseto. O método era ineficaz e apenas praticável em terrenos
irrigáveis, aliás os menos adequados à produção de vinhos de qualidade.
 Plantação de espécies de vinha americana, de grande resistência à filoxera.
Foi uma solução muito utilizada, mas levou à produção de vinhos de má
qualidade (como o vinho de cheiro e o morangueiro), e ao desaparecimento em
certas regiões de algumas das melhores castas viníferas.
2
https://pt.wikipedia.org/wiki/Filoxera
Mas em meados dessa década, a maioria dos
pesquisadores concordava com Planchon, que ganhou o
apoio de um entomologista, Charles Valentine Riley,
nascido na Inglaterra e radicado nos Estados Unidos.

Riley deduziu que a filoxera deveria ser o mesmo inseto


que o entomologista nova-iorquino Asa Fitch encontrou
nas folhas das videiras cultivadas em sua propriedade, em 1854. Após estudar
ambos ao microscópio, concluiu que, de fato, eram o mesmo.

Ele notou que as videiras de cepas americanas


(Vitis labrusca) raramente eram afetadas pela
filoxera, e propôs que se enxertassem as videiras
europeias em raízes americanas. Riley enviou
raízes resistentes a Planchon, que fez a enxertia e
cultivou a Vitis vinifera sem qualquer problema em
solos atacados pelo inseto.

Embora sem perceber que estava próximo da solução, o viticultor bordalês Léo
Laliman disse, num congresso de 1869 onde foi apresentada a proposta de
inundação do vinhedo como possível remédio para a praga, que as videiras
americanas que cultivou estavam imunes à filoxera.

(Ironicamente, a solução para a filoxera acarretou a infestação de míldio, que


provocou outra crise na viticultura francesa no início do século 20...)

Em reconhecimento por sua descoberta, os viticultores franceses deram a Riley


uma medalha de ouro, e o governo francês outorgou-lhe a mais alta
condecoração civil, a Cruz da Legião de Honra.

Exceções

Por motivos ainda não completamente


entendidos, há algumas regiões do mundo em
que a filoxera não causa infestação, como o
Chile e regiões da França, Portugal e Itália: nelas,
a raiz da videira é da Vitis vinifera, e essas são
chamadas de videiras de pé franco. Sabe-se
ainda que a filoxera não vinga em solos arenosos,
como o da pequena região de Colares (17 ha de
videiras), onde se produz o Colares de Chão de
Areia.

Em todas elas, a qualidade dos vinhos faz com que


alguns suscitem a dúvida: após mais de 150 anos de enxertia em raízes
americanas, como estariam os vinhos europeus se suas videiras ainda fossem
cultivadas em suas próprias raízes?

Numa matéria no site da revista Adega,3 alguns


enólogos, como Marcelo Retamal da vinícola De
Martino, defendem a videira em pé franco, dizendo
que ela é a "expressão máxima do que os franceses
chamam de terroir". Luís Pato, por sua vez, supõe
que a enxertia foi a causa, por exemplo, do virtual
desaparecimento da Carmenère em Bordeaux e de
sua permanência no Chile, com rega por inundação,
que impede o desenvolvimento da filoxera.

Embora seja virtualmente impossível responder a essa pergunta, motivada pela


nostalgia, o certo é que sem a enxertia a filoxera teria provavelmente dizimado
a maior parte dos vinhedos da Europa e de boa parte do resto do mundo. Um
bom motivo para fazermos um brinde aos trabalhos de Planchon, de Riley e de
outros pesquisadores!

3
http://revistaadega.uol.com.br/artigo/pe-franco_4053.html

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