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Relato
de uma valorização relativa do elo conjugal, com vo na esfera conjugal. O plano da conjugalidade
mais visibilidade entre os homens homossexuais. precede, então, a questão da sorodiscordância e
Em geral, os trabalhos de prevenção ao HIV precisa ser abordado, compreendido e trabalhado
têm o indivíduo como foco e as relações afetivo- nos serviços de saúde. Quando o relacionamen-
sexuais têm sido muito pouco consideradas; mas to se torna estável, está-se culturalmente habi-
para uma grande parcela da população, a iden- tuado a suspender o uso de preservativos. Como
tidade de casal é um referencial importante na introduzir, neste tipo de relacionamento afetivo,
constituição de valores de ser e sentir-se pessoa. o preservativo, que, simbolicamente, representa
Essa situação parece apagada para a sociedade em infidelidade, traição, e liberdade sexual ?
geral, incluindo as ONGs1 e os serviços de saúde. Num trabalho bem interessante sobre o
Locais como hospitais e postos de saúde são ricos significado da fidelidade e sobre as estratégias de
espaços de sociabilidade para muitas pessoas que prevenção da Aids entre homens casados, Silva
vivem com HIV/Aids, e, por vezes, as próprias re- (2002) observou que foi considerado natural para
presentações de gênero dos profissionais de saúde o gênero masculino não ter a esposa como úni-
ajudam a perpetuar mitos que envolvem o HIV ca parceira sexual. Fidelidade foi compreendida
e a Aids. Os significados de palavras como rela- como respeito à parceira, e a camisinha era usada
cionamento, intimidade e sexualidade variam de somente em relações extraconjugais, estas asso-
pessoa para pessoa, e a reflexão sobre o tema da ciadas ao risco de infecção por DST e HIV.
sorodiscordância pode ajudar muito no desenvol- Apesar de ser uma manipulação que continua
vimento de estratégias de prevenção mais bem garantindo a livre atuação do homem nos dois
orientadas (Maksud, Parker e Terto Jr, 2001). mundos, o de ‘dentro’ e o de ‘fora’, ela é com
certeza, uma mudança positiva, em termos de
De acordo com Remien (1997), os casais so- comportamento para a prevenção. [...] Enfati-
rodiscordantes comumente evitam falar sobre o zar que o sexo prazeroso e erótico pode ser en-
tema HIV, por incluir medo, tristeza e preocupa- contrado dentro da relação conjugal, aliado à
ção para não sobrecarregar o outro. O soronega- vantagem de que pode ser mais seguro, parece
tivo pensa que suas necessidades emocionais são um outro caminho a seguir (Silva, 2002, p.48).
menos válidas, já o soropositivo sente que precisa Pesquisadores suíços afirmam que pacientes
proteger o parceiro das preocupações sobre si, e com HIV/Aids em relacionamentos estáveis são,
pode sentir culpa por trazer a infecção pelo HIV geralmente, mais saudáveis e têm mais chances de
para o relacionamento. viver mais tempo. Seus achados se baseiam num
Muitos casais sorodiscordantes se sentem estudo de mais de 3700 pacientes, na Suíça, em
aptos a encontrar uma vida sexual feliz e satisfa- tratamento anti-retroviral. Pacientes nessa con-
tória, mas outros tantos vivenciam sentimentos dição, freqüentemente, têm o sistema imunoló-
de medo e culpa de infectar o parceiro em cada gico mais fortalecido, níveis mais baixos de vírus
relação sexual, no lugar do prazer, do relaxamen- em seus corpos, têm menos tendência a sofrerem
to e da entrega que deveriam estar presentes. A de depressão e respondem melhor à medicação.
manutenção consistente do sexo seguro é difícil Viver com HIV é uma condição difícil, mesmo
de ser alcançada num relacionamento íntimo; hoje com a terapia. Então, para lidar com essa
os preservativos são percebidos como barreiras à condição, penso que é absolutamente necessá-
rio que a pessoa esteja inserida numa boa rede
intimidade. Não usar preservativo ou comprome-
social de apoio (Capua, 2004).
ter-se com um comportamento sexual arriscado
pode ser percebido como excitante, apaixonado, Num estudo entre gays sexualmente ativos
e a verdadeira expressão de amor e compromisso e homens bissexuais, realizado por Kalichman et
(Remien et al, 1995). al (2000), os achados demonstravam que aqueles
que haviam feito sexo desprotegido, defendiam
A recomendação primeira, quando se fala
a idéia de que ter um parceiro com carga viral
de ‘sexo seguro’, é usar o preservativo em toda e
indetectável é menos arriscado. Em pesquisa re-
qualquer relação sexual, mas quando se trata de
alizada pela ONG ABIA (Associação Brasileira
casais sorodiscordantes, ocorre um paradoxo. Se-
Interdisciplinar de AIDS) com os casais, reunidos
gundo Maksud (2002), estudos têm mostrado que
em grupos focais no Projeto “Casais Sorodiscor-
forças simbólicas levam ao não uso do preservati-
dantes”, na questão relação médico-serviços de sofremos juntos, enfrentamos cada crise provo-
saúde-paciente, destacam-se alguns aspectos re- cada pelo vírus e, sem dúvida, enfrentaremos a
levantes, como a percepção de receber um aten- morte juntos. E mesmo que um de nós perma-
neça depois do outro, já estará um pouco mais
dimento pouco caloroso e pouco propositivo. O morto, pois estará só (Mesquita, 1994, p.29).
espaço do ambulatório (sala de espera) é citado
pelos pacientes como local de consolidação de
amizades e troca de experiências com outros pa- II – Contextualizando a experiência
cientes, possibilitando, desta forma, por compara-
Trata-se do ambulatório clínico do Núcleo
ção, uma avaliação do profissional de saúde. Os
serviços são vistos como sobrecarregados, mas os de Epidemiologia do Hospital Universitário Pedro
médicos não são responsabilizados por isso, pelo Ernesto (HUPE/UERJ), que atende também um
contrário, não costumam ocorrer dúvidas quanto grande número de pacientes soropositivos, tendo
a sua competência na área médica. O acompanha- como ideologia uma abordagem integral do ado-
mento psicológico aos casais é considerado como ecimento e o atendimento centrado na pessoa.
necessário, mas restrito no SUS. Desde de 1999, através de uma parceria com uma
psicóloga especialista em Psicologia Médica, foi
Quando os casais querem falar sobre sexo, se-
observado que as questões biopsicossociais pode-
xualidade ou reprodução, vão buscar informações
riam ser melhor abordadas por uma equipe inter-
em ONGs, revistas, televisão, e o serviço de saúde
disciplinar.
não é muito considerado. Há queixas de que os
profissionais de saúde não perguntam, informam Na consulta ambulatorial, foram percebidos
ou orientam sobre a condição de se relacionar com aspectos da vida do paciente que estavam influin-
alguém com sorologia diferente. Acreditam que a do em seu tratamento. Surgiam questões ligadas
razão possa estar no tempo escasso da consulta no à afetividade, à sexualidade, ao impacto da reve-
ambulatório. Outros acham que, se o profissional lação do diagnóstico na vida familiar e social e
não pergunta, o paciente deve trazer seus questio- ao sentimento de culpa e receio de infectar o(a)
namentos a ele (médico). Os casais acreditam que parceiro(a). Quando apareciam questões dessa
os profissionais de saúde carecem de mais treina- ordem, percebidas pelo médico, ou espontanea-
mento, mais sensibilidade para lidar com essas e mente na fala do paciente, a presença de um psi-
tantas outras questões. (Maksud, 2004). cólogo era solicitada. Juntas, médica e psicóloga,
Observa-se que a questão preventiva da acolhiam o paciente. Dessa forma, configurava-se
transmissão sexual pelo HIV em casais não pode o atendimento conjunto, levando à integração
ser tratada fora do contexto conjugal. O enfoque desses profissionais e promovendo a interdiscipli-
dado ao problema tem sido de ordem individual naridade, sempre respeitando as particularidades
e não temos avançado muito. Segundo Finkler de cada saber.
(2003), a negociação para a prática do sexo seguro A idéia de dois profissionais de áreas distintas
será permeada pelo estilo do casal, que envolve re- trabalharem juntos implica o conceito de inter-
gras e acordos relacionais, a maneira como estão se consulta, que tem como objetivo
comunicando e como definem a sua relação. Nego-
modificar a estrutura assistencial centrada na
ciar a respeito de práticas preventivas pode ser um
doença para uma forma de trabalho mais cen-
grande desafio para o casal que não está habituado trada no paciente, valorizar o papel da relação
a comunicar-se a respeito de qualquer assunto; não médico-paciente e aprofundar o estudo da situ-
pode comunicar-se com clareza frente a esse tema ação do doente e dos profissionais nas institui-
pela existência de segredos extraconjugais implíci- ções médicas (Martins, 1992, p.160).
tos que colocaria a relação em risco; ou que esta- A interconsulta é um recurso terapêutico
beleceu uma relação em que um dos membros do que permite o esclarecimento de dúvidas e mal-
casal, freqüentemente a mulher, não está autoriza- entendidos na consulta médica a partir da escuta
do a tomar a iniciativa comunicativa. de um terceiro (o profissional de saúde mental),
Herbert, meu companheiro de vida, está com estimulando a expressão de medos e incertezas e
Aids. E o fato de nenhum sintoma ou presen- contribuindo para a comunicação do médico com
ça de vírus ter aparecido em mim não me deixa
seu paciente (Moura et al, 2002).
menos doente do que ele. Adoecemos juntos,
A consulta conjunta é uma estratégia de tentando extrair de suas vivências elementos que
trabalho em que o profissional de saúde mental facilitem a adesão ao tratamento e à prevenção
atende o paciente junto com o médico a fim de primária (por parte do soronegativo) e secundária
não só manter o vínculo do médico com seu pa- (por parte do soropositivo).
ciente, mas também ensinar ao médico assistente, A observação de diferentes estratégias de
de modo prático, a delicada tarefa de fazer uma cuidado e atenção por parte dos alunos serve
entrevista psicológica (Mello Filho, 1994). Essa para ampliar o olhar frente aos modelos vigen-
estratégia de assistência visa a promover um espa- tes, geralmente protocolares e restritos ao saber
ço de suporte e convivência para os pacientes so- dito biomédico, não levando em conta aspectos
ropositivos, onde – junto com a equipe – possam sociais, emocionais e culturais do processo de saú-
refletir e discutir aspectos relacionados à soropo- de-doença inerente a cada indivíduo. Por parte
sitividade e ao processo de adoecimento. dos pacientes e parceiros/as, trata-se de mais uma
O trabalho em equipe (dois profissionais de oportunidade de falarem explicitamente sobre
saúde) já envolve uma configuração grupal inclu- seus anseios, dúvidas e questionamentos.
ída nessa proposta de trabalho. Como benefícios,
o fenômeno grupal pode facilitar a ampliação da
capacidade de compreensão do problema, a so- III – Objetivos
lidariedade entre seus componentes, a noção de O atendimento aos casais sorodiscordantes
reconhecimento de sua própria condição e a res- para HIV suscitou na equipe a necessidade de re-
ponsabilidade por si mesmo no processo de saú- fletir também para além dos aspectos que não se
de e doença. Muito tem sido questionado sobre restringiam ao vírus em si, como os relacionados
qual o melhor enfoque terapêutico na abordagem à sexualidade, ao suporte familiar e à prevenção
desses casais. Na nossa experiência, procuramos primária e secundária. Manter o status do parceiro
olhar cada um deles de forma singular, com suas soronegativo é um dos objetivos que desejamos al-
particularidades, pois cada casal tem história e cançar, a fim de evitar que este se torne positivo.
trajetória de vida únicas. Nossa tarefa é escutar, Dentre os objetivos específicos citamos a fa-
cuidar e dar suporte a essas pessoas. cilitação da adesão ao tratamento do paciente so-
A partir de 2006, incluímos alunos do curso ropositivo; a discussão sobre a responsabilização
de medicina da universidade como projeto de ex- das práticas de sexo seguro, sobre os tabus e pre-
tensão com o objetivo de observarem e participa- conceitos quanto ao uso do preservativo, quanto
rem de um modelo assistencial alternativo ao mo- às crenças a respeito dos riscos de infecção do ví-
delo hegemônico vigente da biomedicina e tão rus, sobre os sentimentos relacionados ao próprio
valorizado nos bancos escolares da graduação mé- paciente, ao parceiro e familiares/amigos, e sobre
dica. A proposta inicial foi a de apresentar-lhes, a revelação do diagnóstico a familiares/amigos;
na prática, uma abordagem diferenciada, que leva refletir sobre os direitos reprodutivos; a conscien-
em consideração também os aspectos ditos “ex- tização sobre os direitos e cidadania das pessoas
tra-médicos” do processo saúde-doença, e, assim, soropositivas; a ampliação da consciência sobre o
proporcionar-lhes uma visão da prática ambula- processo saúde-doença; o fortalecimento da rela-
torial dirigida às pessoas que vivem e convivem ção médico-paciente; o oferecimento de suporte
com HIV/Aids, especialmente os envolvidos em emocional e de um encaminhamento para acom-
relacionamentos conjugais sorodiscordantes, de panhamento psicoterápico sistemático (se for o
modo que não fosse somente calcada na prescri- caso); e o estímulo para que os casais construam
ção de medicamentos anti-retrovirais. Enfim, uma uma rede de apoio social.
abordagem mais preocupada com uma visão inte-
gral do processo saúde-doença, levando em conta
a singularidade do paciente. (Santos, 2007) IV – Metodologia
A experiência com a participação dos alu- Já participaram do projeto quinze casais.
nos tem sido benéfica tanto para a equipe, quanto Atualmente, estão em acompanhamento no pro-
para os próprios pacientes. A equipe, incluindo os jeto oito casais, seis hetero e dois homossexuais,
alunos, trabalha com o olhar direcionado ao casal, com idade entre 25 e 60 anos, e diagnósticos de
soropositividade a partir de 1994. Esse número é 50% e 3 casais passaram a usar o preservativo fe-
variável, visto que os relacionamentos são cons- minino.
truídos e desconstruídos ao longo do acompanha- No ambiente universitário, esse tipo de assis-
mento dos pacientes no ambulatório. Dentre esses tência é uma alternativa ao modelo hegemônico
oito casais, três expressaram o desejo de ter filhos. da biomedicina; na equipe, promove-se a troca de
Como estratégias, usamos a interconsulta e o papéis e a integração; e, entre os pacientes, se fa-
atendimento conjunto, já descritos, além de téc- vorece o acolhimento, o vínculo e o suporte, que
nicas de grupo. As consultas com a equipe de saú- são fundamentais para o sucesso terapêutico. Sem
de ocorrem em intervalos de cerca de dois meses, isso, há risco de comprometer a eficácia da terapia
a carga viral e CD4 são avaliados 3 vezes ao ano, anti-retroviral.
oferecemos dois testes anuais anti-HIV ao par-
ceiro soronegativo, além de uma entrevista anual
com a dupla de parceiros.
VI – Conclusões
O paciente é acompanhado pela equipe de A equipe vem prestando assistência integral,
saúde – médica, psicóloga, e acadêmico de medici- aconselhamento, cuidado e suporte a esses casais,
na – e também o parceiro, se desejar, nas consultas motivando-os a seguir com seus projetos de vida.
no ambulatório, assim como também nas interna- Destacamos que, nos 7 anos de existência do pro-
ções (quando necessárias), possibilitando o forta- jeto, nenhum dos parceiros adquiriu o vírus HIV,
lecimento de um bom vínculo equipe-paciente. É e os soropositivos, de uma maneira geral, vêm
oferecido o acompanhamento no Grupo Parceiras mantendo sua carga viral indetectável e níveis
da Vida2 (mensal), desenvolvido no HUPE, para de imunidade satisfatórios. A experiência desse
mulheres soropositivas, parceiras de soropositivos e projeto, até o momento, demonstra que as abor-
mulheres “afetadas” pelo vírus HIV, onde se procu- dagens através do cuidado e aconselhamento são
ra refletir, junto à equipe interdisciplinar, sobre as importantes práticas em saúde pública envolven-
questões femininas implicadas nesta condição, além do o HIV/AIDS.
de acompanhamento ginecológico. Os pacientes É importante ressaltar que essa proposta de
envolvidos em relacionamentos sorodiscordantes trabalho gerou uma dissertação de mestrado em
são convidados a participar de um grupo que inte- saúde coletiva realizada na Instituto de Medici-
gra o Projeto Casais Sorodiscordantes, promovido na Social / UERJ (Silva, 2007) por dois autores
pela Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids do presente artigo, onde foram indagadas quais
(ABIA), onde tanto a médica, quanto a psicóloga seriam as estratégias utilizadas pelos médicos que
envolvidas nesta experiência aqui relatada, parti- trabalham com pessoas portadoras do vírus HIV ou
cipam da equipe coordenadora, conjugando uma com Aids, para promoverem o uso do preservativo
parceria inter-institucional com esta ONG. como forma de conjugar prevenção e assistência,
Alguns dos casais envolvidos no projeto de- especialmente dirigida aos pacientes envolvidos
monstraram a vontade de ter filhos, fato esse res- em relacionamentos estáveis sorodiscordantes.
peitado pela equipe de saúde que, além de informar Dentre os resultados encontrados, destaca-se a
e refletir sobre os riscos envolvidos na geração de produção de uma invisibilidade dirigida aos casais
um bebê soropositivo e na soroconversão do par- sorodiscordantes, posto que o que se revela como
ceiro negativo, procurou indicar caminhos alter- realmente importante é a adesão ao tratamento,
nativos ao desejo de engravidar, como a adoção. que se confunde com adesão aos medicamentos
(anti-retrovirais). O tratamento medicamento-
so concentra os objetivos e as preocupações dos
V – Resultados profissionais de saúde na assistência aos pacientes
A prática de assistência integral sistemática com HIV/Aids, centrado na tradição biomédica
e dinâmica tem sido um instrumento facilitador que reduz as experiências sociais, emocionais e
no acompanhamento desses casais infectados e culturais de viver com Aids a fatores que facilitem
afetados pelo HIV. O uso do preservativo cresceu ou dificultem a adesão ao tratamento. A estratégia
médica dirigida à sorodiscordância é ‘negativa’,