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Literatura antiga e histórias de terror modernas:


a complexa função das citações greco-latinas

Francisco G.bordoJ.usado
Universidade Complutense
pacogj@filol.ucm.es

Rresumo: Este trabalho analisa a importância específica que o uso de certas citações
da literatura greco-latina teve na configuração das histórias de terror modernas
desde seus primórdios, na segunda metade do século.XVIII, até o final do século
xx. Textos de Plínio, o Jovem, Aulo Gélio e Virgílio circularam nessas histórias e foram

relidos segundo as chaves estéticas da modernidade. O conhecimento destes autores


respondeu por diferentes razões, desde a sua presença em repertórios antológicos, a
sua citação como raridades literárias ou a sua qualidade como memórias de anos
escolares. Os autores modernos que iremos revisar são Charles Maturin, Jan Potocki,
Edgar Allan Poe, Marcel Schwob e Jorge Luis Borges.

***

paraabstrato: este artigo analisa o uso específico que alguns autores modernos
fizeram de citações gregas e latinas para construir suas histórias assustadoras, da
segunda metade do século XVIII ao século XX. Citações de Plínio, o Jovem, Aulo Gélio
ou Virgílio tiveram presença importante nesses relatos, onde foram relidas sob a
ótica da estética gótica moderna. A forma como os novos autores adquirem
conhecimento dos textos gregos e latinos nem sempre é a mesma: antologias,
citações de obras raras ou leituras escolares desempenham papéis diferentes
quando se utilizam os autores antigos num romance moderno. Este artigo tratará de
obras de Charles Maturin, Jan Potocki, Edgar Allan Poe, Marcel Schwob e Jorge Luis
Borges.

Ppalavras-chave: Aulo Gelio, Borges, citações, literatura greco-latina, Maturin, re-


Lato gótico, Plínio, o Jovem, Poe, Potocki, Schwob, Virgílio.
Rexceção: 22 de novembro de 2007.
paracePtação: 28 de fevereiro de 2008.

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Literatura antiga e histórias de terror modernas:
a complexa função das citações greco-latinas*

Francisco G.bordoJ.usado

Introdução. Problemas anteriores e questões de método

A minha paixão como leitor e, sobretudo, a curiosidade que nos


leva a explorar leituras distantes e diversas revelaram-me
quantas referências à literatura antiga podem ser encontradas,
surpreendentemente, em histórias modernas, particularmente
naquelas que habitualmente atribuímos à categoria difusa. do
fantástico. Além disso, observei que este tipo de biblioteca
imprevista de literatura greco-latina na literatura moderna não
poderia ser explicada satisfatoriamente pelos critérios
tradicionais de influência e imitação. Em muitos casos, o
aparecimento de elementos diversos de obras da Antiguidade
em novos contextos literários não implica necessariamente uma
influência da obra antiga sobre a moderna, uma vez que pode
ter outras mais-valias que transcendem meros dados
específicos. Estes são alguns exemplos:

Uma citação em latim de Edgar Allan Poe atribuída - falsamente - a


Sêneca (nihil sapientiae odiosius acumine nimio,localizado no início
da história intitulada “A Carta Roubada”) é, na realidade,

*Este trabalho está registrado no Grupo de Pesquisa Complutense 930136


“Historiografia da literatura greco-latina na Espanha.” Uma versão anterior serviu de
base para uma conferência proferida no III Simpósio Extremadura de Estudos
Clássicos, realizado em Cáceres em novembro de 2007. Agradeço a María José
Barrios pela ajuda com os textos gregos e pela revisão geral da obra.

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um exemplo significativo do valor que o latim tem em certas


histórias modernas de intriga.1

Um texto doHistória Naturalisde Plínio, o Velho, que Borges usou


para criar a história intitulada “Funes el Memorioso”, na verdade dá
continuidade a uma rica tradição moderna que transforma a antiga
erudição greco-latina em uma história fantástica.2

Dificilmente podemos dizer que Sêneca influenciou Poe ou


que Plinio influenciou Borges. A relação existe, é até
explícita, mas exige uma nova avaliação no que diz respeito
às nossas ideias mais consolidadas sobre a tradição literária
como mero estudo de fontes e influências. Neste ponto é
necessário estabelecer uma série de questões metodológicas
básicas:

O estudo da Tradição Clássica, centrado na supremacia


do emissor, supõe:

a) Um modelo “a em b” (ex. “Horácio em Espanha”), de carácter


positivo, ou seja, onde o mais importante são os dados,
independentemente de qualquer outra circunstância. Supõe-
se que a natureza da literatura antiga não muda em novos
contextos, ou seja, que os dados são independentes da
interpretação que lhes é dada.
b) Influência ou imitação de modelos clássicos como critério
básico de relacionamento entre autores antigos e
modernos. As coincidências estilísticas e temáticas
reduzem-se à dicotomia entre tradição e poligênese, ou
seja, o que não é resultado de influência ou imitação é
devido ao acaso.

1Foi assim que a estudamos no nosso trabalho sobre a citação latina de Poe (Barrios
Castro-García Jurado, 2005).
2Na verdade, Borges está fazendo algo semelhante ao que Arthur Machen faz em

seu romanceOs três impostoresbaseado em texto de Solino, compilador de Plínio, o


Velho (García Jurado, 2007, pp. 250-257).

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c) De acordo com o exposto, entre o antigo e o moderno


estabelece-se uma relação causal numa única direção e
pressupõe-se um sentido linear do tempo que vai do
passado ao futuro: a metáfora das fontes literárias.
Entende-se, portanto, que o passado é imutável.

Um estudo alternativo, que considera as relações entre


literaturas antigas e modernas como “encontros complexos”,3
implica orçamentos diferentes a partir de uma abordagem mais
simétrica entre remetentes antigos e destinatários modernos:

a) Um modelo “a e b” (ex. “Literatura latina e histórias


fantásticas modernas”), de natureza relacional e de natureza
sistémica, onde os dados são interdependentes e a
ocorrência específica de um dado não importa tanto quanto
a ocorrência relativa lugar que ocupa, entre muitos outros. A
literatura antiga é, sobretudo, o resultado de um delicado
equilíbrio interpretativo que depende da consciência dela ao
longo do tempo, através da sua constante releitura dentro
de novas chaves estéticas.
b) Relação dialógica entre obras antigas e modernas. Não
estamos falando tanto de uma relação de influência ou
imitação, mas de um imaginário que os autores modernos
constroem a partir da literatura antiga, unindo diferentes
tradições literárias. Singularmente, o fato de Borges utilizar
Plínio, o Velho em sua obra, é fruto de uma tradição literária
moderna que nasceu na Inglaterra durante séculos.XVIII
eXIX. Esta circunstância suscitará fenómenos
complexos que vão além da mera tradição ou

3Reelaboramos nossas próprias teorias de Estética da Recepção,

Intertextualidade, Dialogismo e Literatura como um sistema complexo onde há


um rico jogo de tensões. Os princípios básicos podem ser encontrados em
García Jurado, 1999 e 2001-2003. Ver também a revisão completa que
Martindale (2007) faz do conceito de “Recepção” versus “Tradição” no interesse
de uma ideia dinâmica da leitura dos clássicos pelos autores modernos.

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mera poligênese, uma vez que existem graus intermediários


na complexa rede de relações que constituem a cultura. Por
exemplo, o arquétipo da história de fantasmas que aparece
configurado numa carta de Plínio, o Jovem, ainda é válido no
cinema moderno, e esse fato não pode ser explicado nem
por mera influência nem por mera poligênese: é necessário
recorrer a uma trama complexa de intermediários.
c) De acordo com o carácter sistémico ou relativo da
literatura, é possível analisar obras antigas à luz da
nova estética da modernidade. A carta de Plínio, o
Jovem, sobre fantasmas pode ser relida no quadro das
histórias góticas modernas e, assim, tornar-se um
precursor delas. O sistema literário varia com a
chegada de novos elementos, e é provável que o que
vem depois também modifique o que veio antes.4

Vale a pena fazer a seguinte recapitulação das ideias já


apresentadas:

tradiação clássica eENCONTROS COMPLEXOS

Modelo “a em b”, dados Modelo “a e b”, dados


independentes, válidos em si mesmos interdependentes, válidos em termos
de sua relação com outros dados
influência ou imitação relação dialógica e criação de um
imaginário

senso linear de tempo (estudo reversibilidade (possibilidade de


fonte) reler o antigo a partir da nova
estética)

A partir destes últimos pressupostos, é possível estabelecer


um novo quadro metodológico para dar conta de encontros
entre literatura antiga e moderna que não foram

4TS Eliot tratou extensivamente desta questão capital no seu ensaio dedicado à

tradição e ao talento individual (Eliot, 1951).

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explicado satisfatoriamente até agora. O que, numa abordagem


tradicional, não iria além do anedótico (a recriação imaginária
de um autor antigo, a citação específica de um texto real ou
fictício, um comentário ou uma releitura ousada) é suscetível de
ser analisado como um indício de que, em conjunto com muitos
outros, pode nos permitir reconstruir uma história não
acadêmica da literatura antiga em relatos modernos.

Uma nova estética: o sublime

Precisamente, histórias de terror modernas, desde o século


XVIII,representam uma fonte inesperada para apreciar esses
novos tipos de releitura da literatura antiga. O afastamento
dos modelos clássicos não implica, paradoxalmente, que a
literatura da Antiguidade deixe de ser lida. O problema está
conosco, que simplesmente associamos o classicismo à
literatura antiga, e o classicismo nada mais é do que uma
certa forma de ler certos clássicos de uma época específica.
Precisamente, à luz do TratadoSobre o sublimeNovas leituras
de textos antigos surgem em oposição à própria leitura
classicista. Este tratado anónimo do século I ou II da nossa
era mostra que o sublime da literatura reside, sobretudo, na
grandeza das ideias e na capacidade de criar grandes
emoções. O sublime continua a ser o eco da nobreza de
espírito e de corações apaixonados,5conforme expresso no
próprio tratado:

Pois é absolutamente impossível que uma pessoa que dedicou, ao


longo da sua vida, as suas ideias e cuidados a temas mesquinhos e
servis, seja capaz de engendrar um pensamento que desperte
admiração e merece o aplauso unânime da posteridade.
(Sobre o sublime,9, 3, trad. por Alsina Clota)

5Ver a este respeito Sambrook, 1986, p. 105.

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Já não basta que uma obra seja bela, ela deve também comover o
espírito com a sua grandeza, deve nos dominar. O mesmo terror,
se não incorrer nos ímpios, não é estranho a esta forma de
contemplação da beleza:

A imaginação que Homero demonstra em seuBatalha dos


deuses:
A corneta ao seu redor tocava o Olimpo e o vasto céu. E lá embaixo,
em seu império, o senhor dos mortos Aidoneus tremeu e, em seu
horror, pulou do trono e gritou; Ele temia que então Poseidon, que
sacode a Terra, não a quebrasse com seus golpes e mostrasse aos
mortais e aos deuses suas horríveis moradas pútridas que provocam
até o medo dos deuses.

Você não tem a impressão, meu amigo, de que está contemplando a


cena?: a terra se abrindo até as raízes, o próprio Tártaro revelando
seus abismos, todo o universo rompido, dilacerado; todos os seus
componentes, céu, inferno, mortais, imortais, participando ao
mesmo tempo naquela batalha, neste transe?
Mas imagens como esta são terríveis, e só se forem tomadas como
expressões alegóricas é que não se revelam absolutamente ímpias e
desprovidas de qualquer sentido de propriedade.
(Sobre o sublime,9, 6-7, trad. por Alsina Clota)

É precisamente esta associação do sublime com o aterrorizante que


está na base de uma das chaves mais importantes para explicar o
desenvolvimento da estética gótica moderna. Num dos primeiros
ensaios dedicados a este assunto, Kant comenta que "a visão de uma
montanha cujos picos nevados se elevam acima das nuvens, a
descrição de uma tempestade violenta ou a pintura do inferno de
Milton produzem prazer, mas combinados com terror".6Da mesma
forma, a beleza aterradora de certos cemitérios do século XIXXIX
ou o horror que algumas histórias de fantasmas nos despertam
não está longe da abordagem apresentada. Desta maneira,

6Kant, 1919, capítulo um. O ensaio data de 1764.

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Como destacou González-Rivas,7É significativo que uma


corrente artística aparentemente tão anticlássica como a
estética gótica moderna encontre os seus fundamentos na
releitura de certas fontes clássicas. É verdade que a literatura
moderna, desde o final do séculoXVIII, rompe com uma certa
forma de ler os autores greco-latinos, mas isso não significa
que ele deixe de lê-los. Nesse sentido, o exemplo do
romance intituladoO monge(1794), por Matthew G. Lewis
(1775-1818). O romance, paradigma da história gótica, abre
com uma interessante citação de Horácio:

Somnia, terrores mágicos, milagres, sagas,


lêmures noturnos, portentaque.
(Lewis, 1979, p. 9)

O texto latino nos mostra uma lista de realidades sobrenaturais:


“sonhos, terrores mágicos, prodígios, bruxas, fantasmas
noturnos e presságios” que já criam uma atmosfera
avassaladora. Lewis retirou estes versos da segunda epístola do
Livro II de Horácio, precisamente os versos 208-209, mas
suprimiu magistralmente o final do segundo verso latino, pois
não se enquadraria na atmosfera misteriosa procurada pelo
autor moderno (o os redondos são nossos). ):

Somnia, terrores mágicos, milagres, sagas, lêmures


portentaque noturnosPasseios em Tessala?8

Lewis não apenas cita Horácio, mas até o imita com um prefácio
em verso intitulado, precisamente, “Imitação de Horácio”, que é
inspirado na Epístola 20 do Livro I. No entanto,

7O gótico, aparentemente anticlássico, tem, paradoxalmente, um fundamento

profundo nas fontes greco-latinas (González-Rivas, 2007).


8“Você ri de sonhos, terrores mágicos, maravilhas, bruxas, / fantasmas

noturnos e feitiços de Tessália?” (trad. Cuatrecasas). Citamos o texto latino


da edição oxoniana de Wickham e Garrod.

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As histórias sangrentas que mais tarde aparecem em seu romance


não poderiam estar mais longe do espírito classicista. Cabe
perguntar, neste momento, que valor tem essa dupla presença de
Horácio no início do romance. Para começar, não devemos
esquecer que estamos perante uma história de evasão. No entanto,
como tantas histórias com essas características (antigas e
modernas), o romance de Lewis busca legitimação cultural9
recorrendo a autores prestigiados da antiguidade clássica. A
própria ideia da literatura greco-latina está mudando
substancialmente ao longo do século.XVIII, uma vez que a
Poética e a Retórica tradicionais têm agora um poderoso
concorrente, a História Literária, que, comparada com a
tradição culta, influenciará durante os seus primeiros tempos
de existência no estudo dos autores que melhor encarnam o
espírito do povo. As chaves para a leitura mudam e o próprio
gosto é frequentemente modificado em favor de autores como
Homero ou Ésquilo. Precisamente Ésquilo, o mais arcaico dos
tristes, torna-se um dos autores antigos que melhor se conecta
com a nova estética romântica. De Menéndez Pelayo y Valera,10
Karl Marx ou, do outro lado do Atlântico, o transcendentalista
Thoreau, as tragédias de Ésquilo, especialmente a suaPrometeu,
São objeto de leitura atenta e intensa.onzePercy B. Shelley traduz o
Prometeupara seu amigo Byron, e é Mary Shelley

9Lembremos que os próprios romances gregos já o faziam recorrendo a

autoridades literárias como Homero ou Tucídides. Não muito longe da nossa situação
atual, certos best-sellers recorrem a um tom culturalista (como, por exemplo, a
afirmação de um génio renascentista) para tentar disfarçar a sua mera existência
como literatura de consumo.
10Menéndez Pelayo propôs ao seu amigo Juan Valera empreender o

empreendimento comum de traduzir Ésquilo para o espanhol, embora o projeto só


tenha se concretizado na tradução de duas das tragédias do primeiro deles (García
Jurado e Hualde Pascual, 1998, pp. 43-52).
onzeÉ curioso que na Nova Inglaterra o transcendentalista HD Thoreau escolha as

mesmas duas tragédias que Menéndez Pelayo traduziu na Espanha:Os sete contra
TebasePrometeu(Menéndez Pelayo, 1883, pp. 137-247; Thoreau, 1986, pp. 3-53 e
63-110).

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que sem dúvida chega ao topo quando converte seu


Frankenstein; ou o moderno Prometeunuma nova tragédia
grega.12Por tudo isso, a presença de Horácio no início do
romance de Lewis pode ter um duplo sentido, tanto uma
busca de legitimação através da citação e recriação de um
poeta latino canonizado pela poética classicista, quanto uma
leitura alternativa de um autor antigo, no calor da nova
estética do terror e do irracional. Nessa perspectiva de
mudança e renovação, nosso objetivo é analisar como as
primeiras histórias góticas e seus sucessores representaram
uma nova forma de ler a literatura antiga que criou, ao
mesmo tempo, uma tradição moderna. Para isso
analisaremos três lugares significativos:

— O fantasma, ou a tensão entre o medo e a razão


— A morte do jovem amado, ou o duelo entre a beleza e a
corrupção
— O pesadelo, ou a sublime revelação dos sonhos

É oportuno observar como por trás desses temas está, de fato, a


complexa circulação de alguns textos fundamentais da
Antiguidade:

— Uma carta de Plínio, o Jovem, sobre uma aparição


misteriosa
—Notícias fabulosas transmitidas por estudiosos como Aulus Gellius
— Passagens virgilianas aprendidas de cor durante os anos escolares

Como vemos, trata-se de autores antigos, mas de natureza


muito diferente, visto que Plínio, o Jovem e, sobretudo, Aulo
Gélio, não estão no mesmo nível de conhecimento para um
leitor moderno que o poeta latino por excelência. Deve,

12Sobre este tipo de conversão da tragédia de Ésquilo num romance de

terror moderno, cf. González-Rivas, 2006.

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Da mesma forma, observe que, do outro lado, o dos modernos, vamos


revisar alguns leitores e autores irrepetíveis:

—Charles Maturin e Jan Potocki


- Edgar Allan Poe e Marcel Schwob
— Charles Maturin (de novo) e Jorge Luis Borges

Cada um dos textos antigos escolhidos por estes autores


modernos representa uma causa de escolha diferente
(respectivamente: antologia, raridade e memória escolar), o que
permite, por sua vez, compreender melhor como os textos
antigos circulam na criação destas histórias modernas. Vejamos
cada um com mais detalhes.

A antologia iminente: o caso da carta de Plínio

Alfonso Reyes diz que “toda história literária pressupõe uma


antologia iminente” e que “a partir daqui cai
automaticamente em coleções de textos”.13Ler é um
processo complexo e, independentemente do que possamos
acreditar à primeira vista, é uma ação que partilhamos com
os outros, com os vivos e com os mortos. Há quem já tenha
lido para nós e continuaremos lendo para outros. Ler bem
um livro é, aliás, tão importante quanto saber escrevê-lo.
Enquanto escrevemos deixamos rastros de nossas próprias
leituras quando evocamos passagens ou citamos textos. É
verdade que muitas citações são meras imposturas, produto
do fácil recurso de recorrer a um livro de máximas. Ainda
assim, alguém teve que ler, digamos, Sêneca para compor o
famosolivro de ouroque compila suas melhores frases. Mais
interessante é quando a referência a um autor nos leva, por
curiosidade do leitor, a esse autor específico. Nesse sentido,
os primeiros cultivadores de histórias fantásticas do século

13Reis, 1962, pp. 137-138.

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XVIIIRecorreram frequentemente a citações e evocações


textuais, como já vimos emO mongede Lewis. Foi, aliás, uma
forma eficaz de dar um ar culto às suas ficções de evasão.
Desta forma, mais um clássico do gênero,Melmoth, o
Andarilho(1820), de Charles Maturin (1782-1824), além dos
inevitáveis Cervantes ou Shakespeare, salpica sua história
com frases frequentes em grego e latim de autores como
Homero, Anacreonte, Plínio, o Jovem, Virgílio, Cícero, Sêneca,
Sexto Turpilio, Horácio e Ovídio. É precisamente Charles
Maturin, nascido na Irlanda, quem fecha o ciclo clássico do
romance gótico com o seuMelmoth. Um leitor perspicaz
pode ficar impressionado com o fato de que no início do
capítulo III aparece um texto enigmático em latim que
lembra bastante citações que também apareceriam mais
tarde no início de algumas das melhores narrativas de Poe. A
citação em questão é a seguinte:

Apparebat eidolon senex


Plinio (Maturin, 1985, p. 41)

Não há maiores esclarecimentos, nem sequer é especificado se o


Plínio mencionado é o jovem ou seu tio, Plínio, o Velho (talvez este
seja um fato irrelevante, exceto para aqueles conhecedores da
literatura latina). Note-se, ainda, que se trata de um texto
oportunamente cortado para alcançar o efeito enigmático
desejado, da mesma forma que Lewis havia cortado a citação de
Horácio acima referida, ou como o próprio Maturin faz novamente
com um texto de Homero (Hom.,Eu.,23, 72: “as almas bloqueiam
meu caminho, figuras dos que foram”, trad. por García Calvo), no
início dos capítulos VI e XXV de seuMelmoth:

T∞l° me e‡rgousi cuxa¤, e‡dvla kamÒntvn


Homero (Maturin, 1985, pp. 167 e 489)14

14Citamos corretamente o texto de Homero de acordo com a edição oxoniana de

Monro e Allen.

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Eleeidolonda citação de Plínio, em sua forma grega, é bastante


semelhante àe‡dvlondo texto homérico, referindo-se ao episódio
em que aparece Pátroclo (mais tarde veremos como o próprio
Maturin também recria o episódio virgiliano do aparecimento de
Heitor). Será muito mais tarde, quando estivermos perfeitamente
imersos na leitura do romance, quando encontraremos novamente
a passagem em latim, embora agora inserida no próprio texto:

Ora, seja pela companhia que o acaso quis me trazer (cuja conversa
só deve ser conhecida por você), seja pelo livro que eu estava lendo,
que continha alguns trechos de Plínio, Artemidoro e outros, e
histórias que não posso prever agora contar, mas que se referiam
precisamente à revivificação dos falecidos, parecendo estar em total
acordo com as concepções católicas dos nossos fantasmas cristãos
do purgatório, com os seus correspondentes equipamentos de
correntes e chamas, tal como diz Plínio queapparebat eidolon senex,
macie et senie confectus,ou finalmente, pelo cansaço da minha
viagem solitária, ou por algum outro motivo que não conheço, mas
sentindo minha mente pouco disposta a continuar um diálogo mais
profundo com os livros ou com meus próprios pensamentos, e
embora atormentado pelo sono, não querendo retirar-me para
descansar - um estado de espírito que eu e muitos outros
experimentamos com frequência - peguei minhas cartas na
escrivaninha, onde as guardei adequadamente, e li a descrição que
você me enviou de nossa filha, com as primeiras notícias de quando
foi descoberta naquela maldita ilha do paganismo..., e, garanto-lhe,
a descrição de nossa filha foi escrita em caracteres tais no peito
contra o qual ela nunca foi abraçada, que desafiaria a arte de todos
os pintores de Espanha a fazê-lo com mais realismo. (...)

(Maturin, 1985, pp. 472-473)

Como pode ser visto a olho nu, estamos diante do mesmo


texto latino da citação inicial, com uma ligeira expansão.
Embora ainda não esteja claro de qual Plínio estamos
falando, não é difícil supor que o texto pertença à carta de
Plínio (o Jovem) sobre fantasmas de que já falamos no
início deste artigo. É impressionante que

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a citação está incorreta porque uma palavra incompreensível


aparece senie(a palavra correta seriasênior,ablativo desenio“
senescência”, e é provável que a analogia comMaciemotivou o
erro de uma terminação ablativa em-e)em vez do correto
miséria.quinzeO texto latino correto, de acordo com a edição
Teubneriana de Schuster, é o seguinte:

mox apparebat idolon, senex macie et squalore confectus.16

Em sua extrema brevidade, percebe-se que se trata de um


texto relacionado ao aparecimento de um fantasma: “depois
apareceu o fantasma, um velho consumido pela magreza e
pela podridão”. A passagem em latim encontra-se na
vigésima sétima carta do livro VII, que trata justamente da
questão da existência de fantasmas e responde à
curiosidade que o próprio Plínio tem de saber qual é a
natureza desses seres sobrenaturais. , existam realmente ou
não, são mais do que figurações criadas pelo nosso próprio
medo:

A falta de emprego me dá a oportunidade de aprender e você a


oportunidade de me ensinar. Desta forma, gostaria muito de saber se
você acredita que os fantasmas existem e têm forma própria, bem como
algum tipo de vontade, ou, pelo contrário, são sombras vazias e irreais
que assumem uma imagem como um resultado do nosso próprio medo
(...)17
(Plinio, 7, 27, 1, trad. de García Jurado)

quinzeVerificamos também que a citação errônea se deve ao próprio punho de

Maturin, como aparece na edição confiável do texto em inglês que Douglas Grant fez
para a Oxford University Press em 1968.
16Observamos também que na citação de Maturin temos a palavraeidolon,

enquanto na edição latina consultada apareceídolo.Ambas as formas são


admissíveis e não diferem no seu significado, com a única exceção de que a
primeira está mais próxima da palavra gregae‡dvlone a segunda é a forma latina
esperada (cf.CP,s.v.eidolon).
17Et mihi discendi et tibi docendi facultatem otium praebet. igitur perquam velim scire,
esse phantasmata et habere propriam figuram numenque aliquod putes an inania et vana
ex metu nostro imaginem accipere.Para um comentário mais detalhado

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Ao contar a história do fantasma, a carta adota a estrutura de


uma história, com a consequente distribuição entre tempos que
representam o estado de coisas em que a história é
apresentada (“era uma vez…”) e a consequente irrupção de um
herói em cena (“depois ele veio…”). Vamos ler o início da história
(colocamos em itálico o texto citado por Maturin):

Havia uma casa grande e espaçosa em Atenas, mas era


infame e insalubre. No silêncio da noite ouvia-se um barulho
e, se prestasse atenção, primeiro se ouvia o barulho das
correntes ao longe, e depois bem perto:Então apareceu uma
imagem, um velho consumido pela fraqueza e pela podridão,
com barba longa e cabelos eriçados; algemas nos pés e
correntes nas mãos que ele sacudia e sacudia. Como
resultado disso, aqueles que moravam na casa passavam
noites tristes e terríveis acordados por causa do medo; a
doença seguiu-se à insônia e, à medida que o medo
aumentava, à morte, pois, mesmo no espaço que separava
uma noite da outra, embora a imagem desaparecesse, sua
memória permaneceu impressa nos olhos, de modo que o
medo continuou ainda mais. isto. Assim, a casa ficou deserta
e condenada à solidão, completamente à mercê daquele
monstro; No entanto, foi colocado à venda, caso alguém, não
sabendo de tal calamidade, quisesse comprá-lo ou alugá-lo.18
(Plinio, 7, 27, 5-6, trad. de García Jurado)

Assim, uma vez apresentada a abordagem com tanto


drama, entramos no nó e no fim do pequeno

preenchido com as características linguísticas e literárias da carta cf. García Jurado,


2002, de onde retiramos também a tradução do texto de Plinio.
18Erat Athenis spatiosa et capax domus, sed infamis et pestilens. per Silentium noctis

sonus ferri et, si atenderes acrius, strepitus vinculorum longius primo, deinde e proximo
reddebatur:mox apparebat idolon, senex macie et squalore confectus, promessa barba,
horrenti capillo; cruribus compedes, manibus catenas gerebat quatiebatque. inde
inhabitantibus tristes diraeque nights per metum vigilabantur; vigiliam morbus e crescente
formidine mors sequebatur. nam interdiu quoque, quamquam abscesserat imago,
memoria imaginanis oculis inerrabat, longiorque causis timoris timor erat. deserta inde et
maldita solidão domus totaque illi monstruosa relicta; proscribebatur tamen, seu quid
emere, seu quis condutor ignarus tanti mali vellet.

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drama com a chegada de um filósofo que encarna a luz da


inteligência:

O filósofo Atenodoro chega a Atenas, lê a placa e ao saber o preço,


pois o seu baixo preço era suspeito, dão-lhe uma razão para tudo o
que pede, e isso, longe de o dissuadir, encoraja-o ainda mais a
alugar a casa . Assim que começa a escurecer, ele manda que a
cama seja estendida na frente, pede pranchetas, um estilete e uma
luz; Ele distancia todo o seu povo mandando-o para o interior, e ele
mesmo prepara a mente, os olhos e a mão para o exercício da
escrita, para que a sua mente não fique desocupada e o medo dê
origem a ruídos aparentes e irreais. A princípio, como em qualquer
lugar, só se percebe o silêncio da noite, mas depois o tremor de um
ferro e o movimento das correntes: o filósofo não levanta os olhos,
nem abandona o seu estilo, mas coloca resolutamente a sua
vontade diante do seu ouvidos. Aí o barulho aumenta, fica mais
próximo e pode ser ouvido na porta ou dentro da sala. Ele olha para
trás e reconhece o fantasma que lhe foi descrito. Ele estava parado
ali e fazendo um sinal com o dedo como se estivesse chamando-o. O
filósofo, por sua vez, indicou com a mão que esperasse um pouco, e
novamente começou a trabalhar com suas tábuas e estilo, mas o
espectro sacudiu suas correntes para atrair sua atenção. Ele vira a
cabeça novamente e vê que está fazendo o mesmo sinal, então, sem
fazê-lo esperar, pega a lamparina e o segue. O fantasma caminhava
com passos lentos, como se as correntes fossem muito pesadas;
Depois desceu ao pátio da casa e, de repente, desmaiando,
abandonou o companheiro. O filósofo recolhe folhas e ervas e as
coloca como sinal no local onde foi abandonado. No dia seguinte ele
vai até os magistrados e os aconselha a ordenar escavações naquele
local. Encontram-se ossos acorrentados e emaranhados, que o
corpo, putrefato pelos efeitos do tempo e da terra, deixou nu e
emaciado junto com suas algemas. Depois de recolhidos os ossos,
eles são enterrados às custas do erário público. Depois disso, a casa
foi finalmente libertada do fantasma, uma vez que seus restos
mortais foram convenientemente enterrados.19

(Plinio, 7, 27, 7-11, trad. de García Jurado)

19Venit Athenas philosophus Athenodorus, legit titulum auditoque pretio, quia

suspeitoa vilitas, percunctatus omnia docetur ac nihilo minus, immo tanta magis

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186 García Jurado / literatura antiGua e histórias de terror modernas

Como vemos, é o texto que dá origem ao grande argumento


das histórias de fantasmas: a falta de comunicação entre os
vivos e os mortos. São muitos os filmes e séries de televisão que
contam com um protagonista que rompe essa barreira para,
finalmente, poder entender o que o falecido deseja. No caso do
texto de Plínio de que o herói é um filósofo, séculos depois o
personagem irá variar (estudante, psiquiatra ou simples
médium). As magníficas características narrativas da história de
Plinio farão dela uma releitura intensa com o desenvolvimento
da literatura fantástica moderna, principalmente na modalidade
que conhecemos como “conto gótico”, que nasceu na Inglaterra
no final do século.XVIIIdevido a uma série de condições sociais e
históricas determinadas e que mais tarde terão uma marca
decisiva na literatura romântica. Assim, desde 1764, ano em que
Horace Walpole publicou aquela que é considerada a primeira
história gótica,Castelo de Otrantoaté 1820, quando Charles
Maturin deu o toque final ao gênero como tal com seuMelmoth,
o andarilho,A carta de Plinio torna-se uma peça literária que
serve de texto-chave para a construção de novas histórias de
fantasmas. Com a ajuda desses autores, a carta de Plínio, o
Jovem, sobre fantasmas torna-se, anacronicamente, a primeira
história gótica da história literária. Portanto, não deveria nos
surpreender que

dirigir ubi coepit adveesperascere, iubet sterni sibi in prima domus parte, poscit pugillares,
stilum, lumen; His omnes in interiora dimittit, ipse ad scribendum animum, oculos, manum
intendit, ne vacua mens auditaque simulacra et inanes sibi metus fingeret. initio, quale
ubique, silentium noctis, dein concuti ferrum, links moveri: ille non tollere oculos, non
remittere stilum, sed offirmare animum auribusque praetendere. tum crebrescere fragor,
adventare et iam ut in limine, iam ut intra limen audiri. respicit, videt agnoscitque narratam
sibi effigiem. stabat innuebatque digito similis vocanti; hic contra, ut paulum exspectaret,
manu significat rursusque ceris et style incumbit. illa scribentis capiti catenis insonabat;
respicit rursus idem quod prius innuentem nec moratus tollit lumen et sequitur. ibat illa
lentamente gradu, quase gravis vinculis; postquam deplexit in aream domus, de repente
dilapsa deserit comitem. desertus herbas et folia concertpta signum loco ponit. postero die
adit magistratus, monet, ut illum locum effodi iubeant. inveniuntur ossa inserta catenis et
implicita, quae corpus aevo terraque putrefactum nuda et exesa relinquerat vinculis; Coleta
Pública Funeral. domus postea rite conditis manibus caruit.

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O próprio texto latino acaba emergindo explicitamente nos


próprios textos modernos, como uma justificativa histórica e
culturalista, como tivemos oportunidade de constatar. Além
disso, é relevante que na ficção de Maturin haja referência à
presença física de um livro que contém trechos de autores
antigos como Artemidoro ou Plínio (o Jovem). Note-se, portanto,
que Maturin, ou seu personagem, não leu necessariamente a
obra de Plínio, mas sim uma espécie de antologia de trechos
que têm em comum a referência ao retorno dos mortos à vida.
Contudo, um autor contemporâneo de Maturin, o polaco Jan
Potocki (1761-1815), surpreende-nos com a citação completa
(em francês) da história de Plínio no seu romance intitulado
Manuscrito encontrado em Saragoça,e ele também nos diz que
o tirou de uma cópia doCartões de Plínio:

Uceda tinha uma opinião diferente: sustentava que os pagãos


tinham sido assediados pelas aparições tanto quanto os cristãos,
embora provavelmente por outras razões; e para demonstrá-lo,
pegou um volume das Cartas de Plínio, onde leu o seguinte:
História do filósofo Atenágoras(...)vinte
Quando o Cabalista terminou a leitura, ele acrescentou: “Os
revenants retornaram em todos os tempos, reverendo padre,
como podemos ver na história do Baltoyve de En-Dor, e os
Cabalistas sempre tiveram o poder de fazê-los retornar. .
Contudo, devo confessar que grandes mudanças ocorreram
no mundo demonagórico. E os vampiros são, entre outras,
uma nova descoberta, por assim dizer. Distingo duas
espécies: os vampiros da Hungria e os da Polónia, que são
cadáveres que saem dos túmulos à noite para sugar o
sangue dos homens; e os vampiros da Espanha, que são
espíritos imundos que animam o primeiro corpo que
encontram, dando-lhe todos os tipos de formas e..."
(Potocki, 1990, pp. 126-127)

vinteNão sabemos o motivo do mal-entendido, pois o texto de Plínio trata do

filósofo estóico Atenodoro, como já vimos na própria carta latina.

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188 García Jurado / literatura antiGua e histórias de terror modernas

Insistimos no fato de que, em contraste com os trechos do


romance de Maturin, somos agora informados de uma cópia
completa das cartas de Plínio. É muito provável que tanto
Maturin quanto Potocki, que não viu todo o seu romance
publicado (suicidou-se em 1815), tenham chegado a esta carta
por meios diferentes. Em todo o caso, o texto de Plínio deve ter
circulado como uma peça antológica, e é o reconhecimento
desta situação que torna explícita e consciente a pertença do
texto de Plínio às antologias dos textos fundamentais da
literatura fantástica, juntamente com outros textos igualmente
básicos de Petrônio ou Apuleio.vinte e um

A fantástica releitura de antigos estudos: Ebn


Zaiat e Aulus Gellius

Outra faceta da releitura de textos antigos em histórias


fantásticas modernas vem da busca pelo oculto, onde o
narrador pode até se engajar em um verdadeiro trabalho
filológico. É o que vemos no norte-americano Edgar Allan
Poe (1809-1849) e num dos seus mais eminentes leitores, o
autor francês, mal descrito como simbolista, Marcel Schwob
(1867-1905). Não em vão, ambos os autores conhecem bem
as letras gregas e latinas, o que permite ao segundo
construir uma verdadeira história imaginária da literatura
clássica em sua breve mas intensa obra (García Jurado, 2008).
A seguir veremos o uso excepcional feito de um texto latino e
de um texto grego em dois contos claramente relacionados:
“Berenice”, de Poe, e “Béatrice”, de Schwob.

vinte e umA possibilidade de delimitar uma antologia de textos latinos extraídos

exclusivamente de contos fantásticos modernos é uma questão que abordamos em


García Jurado, 2000 (especialmente nas pp. 208-212). Por sua vez, nossa discípula
González-Rivas continua investigando as características desta forma de antologia em
“contos góticos”.

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Poe inicia sua história “Berenice” com a estranha citação de um


texto árabe traduzido para o latim que sugere todo o halo de mistério
que presidirá a história subsequente:

Dicebant mihi sodales, si sepulchrum amicae visitaem,


curas meas aliquantulum fore levatas.
(Ebn Zayat22e Poe, 1992, pág. 289)

A história, aliás, contém outras referências literárias que


podemos qualificar de raras, como a menção a três tratados
latinos escritos por Célio II Cúrio, Santo Agostinho e
Tertuliano, ou um texto do poeta grego Simônides. A citação
inicial aparecerá novamente, mas já intercalada no corpo
textual da história, no que ainda é um recurso típico da
história gótica, como vimos que aconteceu com a citação de
Plínio, o Jovem, no romance de Charles Maturin. Isso
acontece no final da terrível história:

Uma lâmpada estava acesa na mesa ao meu lado e havia uma pequena caixa
ao lado dela. Não havia nada de extraordinário nisso, e ele já o tinha visto
muitas vezes, pois era propriedade do médico de família. Mas como isso
aconteceulá,para minha mesa, e por que estremeci quando olhei para ela?
Eram coisas que não mereciam ser levadas em conta, e meus olhos caíram,

22A origem da citação é um grande enigma. Michael Beard, da Universidade

Americana do Cairo, não conseguiu identificar o autor árabe numa obra


documentada (Beard, 1978, p. 611): “A epígrafe de 'Berenice' de Poe, uma frase em
latim atribuída a um nome árabe, que eu saiba, não foi localizado na literatura árabe.
A edição comentada de Alterton e Craig de Poe, Edgar Allan Poe: seleções
representativas(Nova York, 1962) classifica Ebn Zaiat como não identificado; Burton
PollinDicionário de nomes e títulos nas obras completas de Poe(Nova York, 1968) o
lista como biógrafo árabe, embora na verdade ele tenha sido uma figura política e
poeta ocasional, umvizirsob o AbassidacalifaMu'tasim.” É provável que tenha sido o
próprio Poe, como afirma Beard, quem traduziu o texto para o latim, a partir da
versão do texto árabe traduzida para alguma língua moderna. Isto implica
naturalmente uma utilização dinâmica do material anterior. Devo lembrar, neste
sentido, que a citação latinaNihil sapientiae odiosius acumine nimioatribuída a
Sêneca no início do conto “A Carta Roubada” é até uma citação inventada (Barrios
Castro-García Jurado, 2005).

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190 García Jurado / literatura antiGua e histórias de terror modernas

por fim, nas páginas abertas de um livro e em frase sublinhada.


Foram as palavras estranhas, mas simples, do poeta Ebn Zaiat:
Dicebant mihi sodales si sepulchrum amicae visitaem, curas
meas aliquantulum fore levatas. Por que, então, meu cabelo se
arrepiou e meu sangue congelou nas veias quando os li?
Depois houve uma leve batida na porta da biblioteca e, pálido como
um habitante do túmulo, um criado entrou na ponta dos pés. Havia um
terror violento em seus olhos e ele falou comigo com uma voz trêmula,
rouca e embargada. O que ele disse? Ouvi algumas frases quebradas.
Falou de um grito selvagem que perturbara o silêncio da noite, dos
criados reunidos para procurar a origem do som, e a sua voz assumiu
um tom arrepiante e claro, quando me falou, sussurrando, de uma voz
violada. túmulo, de um cadáver desfigurado, sem mortalha e que ainda
respirava, ainda palpitava, ainda vivia.
(Poe, 1992, p. 297)

Observemos como a nova contextualização da citação lhe confere


um significado mais concreto que esclarece melhor sua relação
com a história. Precisamente, o protagonista foi, como no texto
latino, ao túmulo da sua amada: “os meus companheiros disseram-
me que se eu fosse ao túmulo do meu amigo as minhas tristezas
seriam um pouco aliviadas”.
Se “Berenice” abre com uma enigmática citação em latim,
“Béatrice”, história inscrita no livro de Schwob intituladocoração
duplo(1891), ele faz isso com uma citação grega que inclui um
dístico doAntologia Palatinaatribuído a Platão:23

TØn cuxÆn, ÉAgãyvna fil«n, §p‹ x¤lesin ¶sxon:


∑lye går ≤ tlÆmvn…w diabhsom°nh
Platão (Schwob, 2001, p. 84)

Ele é, precisamente, um estudioso do séculoeu, Aulus Gellius, que o


transmitiu em seuNoites no sótão:

Estes dois pequenos versículos gregos são frequentemente citados, e


muitos homens eruditos consideram-nos dignos de consideração.

23AP,5, 78. Reproduzimos o texto da edição WR Patron.

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moria, dada a sua beleza e brevidade encantadora. E são muitos os
autores antigos que afirmam que estes versos pertencem ao
filósofo Platão, que os teria composto como entretenimento quando
era adolescente, ao mesmo tempo que iniciava a sua actividade
literária compondo tragédias:

Quando beijei Agathon, estava com a alma nos lábios,


pois a infeliz chegou tentando fugir em direção a ele.24
(Gel., 19, 11, trad. de García Jurado)

Este dístico dá a Schwob25a oportunidade de criar uma peculiar


história fantástica onde alguns amantes entendem, ao ler o
poema da obra de Gelio, que a respiração e a alma são a
mesma coisa. Desta forma, quando a amada já estiver
morrendo, o amante a beijará para acolher dentro de si a alma
que ela está prestes a exalar, embora o que vier a seguir seja
uma surpresa desagradável. A tradicional atribuição deste
poema a Platão baseia-se, sem dúvida, na ideia socrática da
alma, uma transcrição do poema, embora talvez não tenha sido
tida em conta a mesma desconfiança que o próprio Platão
sentia nos poetas. Contudo, a história de Schwob fala sobre a
leitura do diálogo platônico intituladoFédon,cujo subtítulo é,
precisamente,sobre a alma. Também é recriada a leitura
imaginária de outros autores gregos, como Xenófanes e um
improvável Empédocles, que perde seu status de autor
fragmentário na história. É curioso observar como a erudição e
a paixão se misturam quando os protagonistas da história
encontram o dístico atribuído a Platão dentro, precisamente,
das páginas de Aulo Gélio, a quem se referem nos termos
ambíguos de “um gramático da decadência”:

Durante muito tempo lemos juntos os poetas gregos


imortais, mas acima de tudo estudamos os filósofos.

24Esses versículos também podem ser encontrados noAntologia Palatina,5, 78.


25Schwob exerceu enorme influência sobre certos autores mexicanos do século XIX.
xxgraças à divulgação precoce de traduções para o espanhol devido a Rafael Cabrera.
Mencionemos apenas dois nomes importantes: Alfonso Reyes e Juan José Arreola.

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192 García Jurado / literatura antiGua e histórias de terror modernas

sofistas dos primeiros tempos, e choramos pelos poemas de Xenófanes


e Empédocles, que nenhum olho humano jamais verá novamente.
Platão encantou-nos com a graça infinita da sua eloquência, embora
tivéssemos rejeitado a ideia que ele tinha da alma, até ao dia em que
dois versos que o sábio divino escreveu na sua juventude me revelaram
os seus verdadeiros pensamentos e me mergulharam na miséria .

Este é o terrível dístico que um dia impressionou meus olhos no


livro de um gramático da decadência:

Enquanto eu beijava Agathon, minha alma veio aos meus lábios:


A mulher muito infeliz queria passar por ele...
(Schwob, 2001, p. 85)

O texto que inicialmente foi citado em sua versão original


grega nos é agora oferecido traduzido para o francês26
e convenientemente contextualizado. Diante do texto de
uma antologia que vimos em Maturin, tanto Poe quanto
Schwob recorrem e expõem um texto oculto, uma leitura
primorosa. É também o que acontece quando Schwob
recorre ao próprio Gélio para incluir em seu livro uma
história que foi transmitida como um conto enigmático, a
das virgens Milesianas.O rei da máscara dourada(1892).

A memória vívida dos anos escolares:


Virgílio e o pesadelo

A noite é um momento de revelações. O fantástico recaracterizou-o


como o momento mais favorável ao medo. sim a

26Vale a pena reproduzir a delicada tradução para o francês que o próprio

Schwob fez do dístico para inseri-lo em sua história (observe que ele respeita o
ponto alto do texto grego, aqui reproduzido usando os dois pontos, e que no
segundo verso elimina o partículagar):
Tandis que je kissait Agathon, mon âme est location sur mes lèvres:
Elle voulait, l'infortunée, passer en lui.
(Schwob, 2002, p. 105)

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Unindo a noite ao sonho, e ao sonho o pesadelo, estaremos


num dos locais mais propícios para entrar no confuso limiar
que nos leva do real ao fictício. O sonho é semelhante ao que
chamamos de verossimilhança na literatura; é também uma
ficção bem elaborada que nos faz acreditar naquilo que
presenciamos como real. Nossas leituras também podem
contribuir para essa ficção do onírico. É justamente o que
acontece com um personagem de Charles Maturin, que nos
oferece dentro de um pesadelo a memória da passagem
virgiliana em que a sombra de Heitor aparece a Enéias e o
fim de Tróia é anunciado:

Ouvi dizer que o primeiro sonho de um maníaco recuperado é


intensamente profundo. O meu não era assim; Ele estava perturbado
por muitos sonhos inquietos. Um deles em particular me devolveu ao
convento. Achei que ele era estagiário e que estudava Virgílio. Eu estava
lendo aquela passagem do Segundo Livro em que o fantasma de Heitor
aparece a Enéias em seus sonhos, e sua forma horrível e infame provoca
a dolorosa exclamação:

Heu quantum mutatus ab illo, Quibus ab


oris, Hector expectate venis?27

Então sonhei que Juan era Heitor; que o mesmo fantasma, pálido
e ensanguentado, se levantou gritando para eu fugir:Heu fuge,28
enquanto eu tentava em vão obedecê-lo. Oh, que mistura
sombria de verdade e delírio, de realidade e ilusão, de
elementos conscientes e inconscientes da existência, visite os
sonhos dos infelizes! Ele era Panteu(sic.),29e murmurou:

27Verg.,Aen.,2.274(ei mihi, qualis erat, quantum mutatus ab illo)e 2, 282-283(

quibus Hector ab oris / expectate venis).Maturin modifica os textos,


provavelmente citando-os de memória, embora não se deva perder de vista
uma certa intenção criativa na hora de citar.
28Verg.,Aen.,2.289:heu fuge, nate dea, teque his, ait, eripe flammis.

29Como veremos mais tarde no texto de Virgílio, é Panto(Pantus), o sacerdote

de Apolo. Não sabemos se Maturin deu a esse nome próprio uma terminação
diferente por analogia - inconscientemente ou não - com nomes lendários como
o do mítico Penteu.

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194 García Jurado / literatura antiGua e histórias de terror modernas

Come summa morre, et inelutabile tempus30

Eu parecia chorar e lutar durante o sono. Dirigi-me à figura que


estava diante de mim como a imagem da visão troiana.
Finalmente, a figura exclamou, com uma espécie de grito
queixoso, naquelevox stridula31que só ouvimos em sonhos:

Proximus ardet Ucalegon32

e acordei completamente sem dormir, com todos os horrores de


quem espera ver um incêndio (...)
(Maturín, 1985, p. 272)

É notável neste texto a citação confusa de vários versos


virgilianos, talvez parcialmente motivada pela suposição
de que alguns dos leitores também foram estudantes de
latim e são capazes de lembrar o texto evocado. Virgílio é,
aliás, o autor mais citado ao longo do romance,
especialmente no seu livro II doEneida,como podemos
verificar listando sucintamente o restante das referências:

Pandere res alta terra et caligine mersas


(Aen.,6, 267, em Maturín, 1985, p. 217)
Quaeque ipsa misserrima vidi, et quorum pars magna Fui
(Aen.,2, 5-6, em Maturín, 1985, p. 504)
Referência a Dido (Maturin, 1985, p. 567)
Fuimus, não sumus
(inspirado emAen., 2, 325, em Maturin, 1985, p. 607)

30Verg.,Aen., 2, 324:come summa dies et inelutabile tempus.


31EstrídulaVox(“uma voz penetrante") pode ser encontrada, por exemplo, num
contexto alegre nas cartas de Sêneca, quando ele se refere à voz aguda e estridente
de um depilador (Sen.,Ép.,56, 2):alipilum cogita tenuem et stridulam vocem...
experimentem. Mais uma vez, estamos diante da reformulação moderna de um texto
latino em tom assustador.
32Verg.,Aen., 2, 311-312:Vulcano superante domus, iam proximus ardet /

Ucalegon; Sigea igni freta lata brilhante.

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Na passagem do pesadelo, Maturin recria com certa


liberdade dois momentos essenciais do segundo livro da
Eneida, primeiro a aparência espectral de Heitor (o itálico
é nosso):

Foi a hora em que a primeira sonolência penetra nos fatigados


mortais e neles se espalha pacificamente por uma graça divina. Eis
que, em meus sonhos, parecia-me que Heitor aparecia diante dos
meus olhos, desolado e derramando copiosas lágrimas, assim como
o vi em outra época, levado pela carroça de dois cavalos, sujo de
poeira, ensanguentado, e com a barriga inchada. pés perfurados
por tiras.
Ah, eu, como eu estava!Quão diferente daquele Heitorque voltou
coberto com os despojos de Aquiles ou depois de ter lançado as
tochas frígias nos navios dos Danaans; Sua barba estava
desgrenhada, seus cabelos desgrenhados em fios de sangue
coagulado e mostrando os inúmeros ferimentos que recebeu nos
muros de sua terra natal. Pareceu-me que eu mesmo, afogado em
lágrimas, me dirigia ao herói e lhe falava com estas tristes palavras:
“Ó luz da Dardânia, ó firme esperança dos troianos! Que grandes
atrasos o impediram? De que confins você vem, saudoso Heitor?
Como vemos você, cansado depois de tantas mortes do seu povo e
depois de inúmeras dificuldades dos homens e da cidade? Que
indignação indigna desfigurou seu rosto sereno? De onde estão
essas feridas que estou vendo? Ele não me responde nem se
importa com minhas perguntas vãs, mas, exalando profundos
gemidos do fundo do peito, me diz:
“Oh!,filho de uma deusa,fogee escapar destas chamas (...)”
(Verg.,Aen., 2, 268-286, trad. por Herrero Llorente)

Não podemos deixar de relacionar esta passagem virgiliana


da aparição de Heitor com o versículo doIlíadapor Homero (
Eu.,23, 72) citado duas vezes por Maturin, pois isso provém,
justamente, da passagem do aparecimento do fantasma de
Pátroclo a Aquiles (grifo nosso):

Você dorme, Aquiles, e está completamente esquecido de mim.


Você não é descuidado comigo vivo, mas comigo morto:

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196 García Jurado / literatura antiGua e histórias de terror modernas

Dê-me uma tumba o mais rápido possível, deixe-me passar pelo portal do
inferno! Minhas almas bloqueiam meu caminho, figuras daqueles que foram,
E ainda não me deixam atravessar o rio para me juntar a eles (...)
(Hom.,Eu.,23, 69-73, trad. por García Calvo)

Voltando aoEneida,A segunda passagem evocada por


Maturin é a da confirmação da ruína de Tróia:

Então os esquemas dos Danaans tornaram-se claros para mim e


a sua lealdade tornou-se clara. A imponente mansão de Deífobo
já desabou devido às chamas,A casa do vizinho Ucalegón já está
pegando fogo,e a baía de Sigea reflete a queima de suas vastas
águas (...) Mas eis que Panto, escapou dos dardos aqueus, Panto,
filho de Ótris e sacerdote do templo de Febo, carregando ele
mesmo os ornamentos sagrados e as efígies do deuses
derrotados e, segurando o neto pela mão, corre loucamente em
direção à nossa casa.
“Em que situação estão as nossas coisas, Panto? Ainda
temos alguma fortaleza?” Eu mal tinha pronunciado estas
palavras quando ele mesmo me respondeu, gemendo:“O dia
supremo e o momento inelutável da Dardânia chegou.
Pereceram troianos, pereceu Tróia e agora a imensa glória
dos troianos (...)”
(Verg.,Aen., 2, 309-326, trad. por Herrero Llorente)

É no mínimo curioso que exista uma certa afinidade


entre a descrição do fantasma de Heitor e o fantasma
que vimos no texto de Plínio:

Esqualentem barbam et concretos sanguine crinis


vulneraque illa gerens
(Verg.,Aen., 2, 277-278)

Senex macie et squalore confectus, promessa barba, horrenti


capillo; cruribus compedes, manibus catenas gerebat quatiebatque
(Plin., 7, 27, 5)

Dá a impressão de que estamos diante de protótipos de fantasmas,


já que desleixo e dor se combinam em ambas as descrições.

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Mas algo aparentemente insignificante tem grande


importância para o resultado final do nosso estudo: notemos
que desta vez é um autor escolar que é recriado, Publius
Virgilio Marón. Na verdade, antes da própria citação latina,
lembra-se a circunstância de tê-la lido durante os anos do
internato (“Pensei que era interno e que estudei Virgílio”). Ao
contrário de Plínio, o Jovem, cuja carta sobre os fantasmas
deve quase necessariamente provir de uma antologia ou
seleção temática de textos, a passagem virgiliana pode ser o
resultado de uma seleção direta feita pelo próprio autor,
graças às suas memórias escolares. Naturalmente, foram
escolhidas duas passagens adequadas à estética gótica da
história: o aparecimento de um morto em sonho e a morte
inevitável. A relação de Virgílio com o aterrorizante vem
desde os primórdios da literatura inglesa: tanto o Venerável
Beda quanto o autor doBeowulfforam inspirados porEneida
para algumas descrições arrepiantes (uma viagem pela vida
após a morte e um pântano, respectivamente). A sombra de
Virgílio também está nas descrições infernais de Milton.
Edward Gibbon cuja atenção ao declínio do império está no
início da própria história gótica33sente um grande interesse
pelo livro VI doEneida.3. 4Em Maturin, então, cristaliza-se esta
longa tradição anglo-saxônica de um Virgílio “gótico”, que
apreciaremos, muitos anos depois, na evocação virgiliana
consciente que encontramos no idoso Borges deOs
conspiradores:

Ele me levou até o pé de um deles e mandou que eu me deitasse


na grama, de costas, com os braços cruzados. Dessa posição
avistei um lobo romano e sabia onde estávamos. A árvore

33Sem ir mais longe, Gibbon é citado no início da história de Maturin: “Stanton

começou a sentir uma espécie de decepção com a futilidade de suas atividades, como
Bruce ao descobrir a nascente do Nilo, ou Gibbon na conclusão de sua
história” (Maturin, 1985, p. 60).
3. 4Estudamos isso em outro lugar (García Jurado, 2006, pp. 64-65).

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da minha morte foi um cipreste. Sem querer, repeti a famosa


frase:Quantum tumba solent inter viburna cupressi.35
eu lembro dissolento,Nesse contexto, significa flexível, mas não havia
nada de flexível nas folhas da minha árvore. Eram iguais, rígidos e
brilhantes e feitos de matéria morta. Em cada um havia um
monograma. Senti nojo e alívio. Eu sabia que um grande esforço
poderia me salvar. Salvar-me e talvez perdê-lo, pois, habitado pelo ódio,
não havia notado o relógio nem os ramos monstruosos. Larguei meu
talismã e pressionei a grama com as duas mãos. Vi pela primeira e
última vez o brilho do aço. Me acorde; Minha mão esquerda tocava a
parede do meu quarto.
(Borges, 1989, pp. 485-486)

Como destacou García Gual,36Esta memória virgiliana muito


significativa do falecido Borges pode ter uma mais-valia de
nostalgia dos anos de aprendizagem do latim. Essa nostalgia
pode ser vista reunida em forma de memória no texto de
Maturin. É interessante notar que Borges continua a ecoar
uma tradição literária moderna através de citações clássicas.
O versículo citado também tem um interesse pessoal muito
grande, pois pertence ao primeiro texto virgiliano que
Borges aprendeu na infância: o primeiro bucólico.37

Algumas conclusões

Quando Stephen King publicou sua famosa história em 1984Item


consegue confundir seus leitores mais alertas com duas citações
enigmáticas em latim, de Plínio e Virgílio, respectivamente:

35Verg.,Ecl.,1, 25. Na tradução de Cristóbal López: “quanto sobe o cipreste,

superando os viburnos flexíveis”.


36Na sua obra fundamental sobre Borges e os clássicos da Grécia e de Roma

(García Gual, 1992).


37Este texto virgiliano traça em grande parte a biografia de Borges, desde os

primeiros poemas como aquele intitulado“Dulcia linquimus arva”,inspirado


precisamente nesta composição virgiliana, até aos últimos textos, sessenta anos
depois (García Jurado, 2006, pp. 75-76).

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Apparebat eidolon senex38eQuaeque ipsa miserrima vidi, et


quorum pars magna Fui.39A simples confirmação de que o
conhecido autor utiliza dois textos latinos não dá conta da
complexidade do fato em si. Precisamente através destas duas
passagens, facilmente reconhecidas por nós após a leitura
deste artigo, observamos como Stephen King está prestando
uma justa homenagem a Charles Maturin, que é quem utiliza
tais textos, Plínio, o Jovem e Virgílio em seuMelmoth, o
Andarilho. Desta forma, Stephen King dá um exemplo
indiscutível do importante papel que tais textos, entre
misteriosos e de culto, desempenharam ao longo da história da
história gótica, primeiro, e depois da história de terror
fantástica, seu continuador natural, mais tarde. É por isso que,
longe de ser uma mera anedota, ou algo marginal, o complexo
conjunto de textos antigos que encontramos nas histórias
modernas permite, no seu conjunto, a possibilidade de estudar
outras leituras da literatura greco-latina na modernidade, para
além da estética classicista .
As motivações para tais leituras clássicas são, além disso,
variadas e qualitativamente diferentes. É notável a
importância das antologias, escritas ou implícitas, que
selecionam textos-chave da literatura da Antiguidade, como
a carta sobre fantasmas de Plínio, o Jovem, verdadeiro
precursor de histórias fantásticas sobre o tema. Outro fator
de escolha se dá pela busca do oculto, do deliberadamente
estranho, como a leitura de notícias curiosas ou de dados
literários em uma obra acadêmica, como a do gramático
Aulo Gélio. Por fim, não podemos esquecer o peso da
educação escolar e do cânone de autores que esta educação
possibilita, especialmente a poesia de Virgílio. Neste caso, o
recurso a um autor escolar pode ter uma mais-valia de
nostalgia para os jovens.

38Rei, 1990, pág. 453.


39Rei, 1990, pág. 469.

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Os exemplos dados permitem-nos estabelecer uma tipologia


para classificar as ocorrências de textos greco-latinos em contos
fantásticos modernos: antologia, raridade e carácter erudito.
Como podemos ver, tendo em conta as características do nosso
método, a aparição específica de um autor antigo numa história
fantástica não é tão importante quanto o valor relativo que
todas estas ocorrências têm para explicar um facto de natureza
superior: tais presenças são não meras anedotas., respondem a
algumas propriedades globais e, além disso, a certos usos,
como o da dupla citação do mesmo texto (primeiro no início de
uma história, à maneira de um texto misterioso que serve de
início e então contextualizada na própria história (corpo da
história) constitui uma poética sutil que dá conta da consciência
estilística de tais citações. Em todo o caso, estamos muito longe
de ser um mero ato passivo de cópia de textos e trata-se, antes,
de um fenómeno dinâmico que motiva mesmo, no caso de Poe,
a invenção de textos.
Além disso, a consciência incipiente da história literária
produz algo semelhante a uma “museuização” da literatura
greco-latina na literatura moderna. Este é um fenómeno
semelhante ao que pode acontecer com os antigos mestres da
pintura, uma vez que os museus modernos do século XXXIXEles
legitimaram a história da arte. A literatura antiga não aparece
mais apenas citada ou recriada como mero suporte para
conferir autoridade às ideias. Agora que as literaturas antigas
entram em conflito com as literaturas modernas, elas adquirem
um novo significado, o histórico, e sua ocorrência na literatura
moderna deixa de ser algo defeituoso e passa a ser um fato de
escolha consciente: são citações retiradas da literatura antiga.
Literatura latina, que dá prestígio ao texto moderno.
Por fim, vale ressaltar o quão paradoxal é que certos usos
da literatura antiga em histórias modernas respondam, mais
do que a uma suposta tradição clássica, a formas modernas
de fazer literatura. As citações antigas de Schwob não podem
ser explicadas sem o conhecimento

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como Poe procede com a literatura greco-latina em seus contos, e


tais procedimentos também não são explicados sem a prosa prévia
de Maturin. A citação virgiliana de Borges talvez não fizesse sentido
se não tivéssemos tais autores.

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