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Mato Grosso, há muito deixou de consumir o mel das abelhas de uma extensa parte da
floresta amazônica que cobre a região. Não pode caçar por ali nem fazer roças, e uma
das 12 aldeias precisou mudar de lugar por causa do mekaron nhyrunkwa.
A casa ou cidade dos espíritos, que os índios kayapó denominam mekaron nhyrunkwa, é
uma área considerada sagrada, quase nunca frequentada, onde estão os espíritos dos
mortos. Ela pode ser um cemitério – indígena ou não – ou um lugar onde morreram
muitas pessoas, como é o caso dessa região, palco de uma dos maiores tragédias da
aviação brasileira.
A queda de um Boeing 737 da Gol na região, em 29 de setembro de 2006, matando as
154 pessoas que estavam a bordo, inviabilizou cerca de 1.000 km2da terra indígena,
uma circunferência com um raio de 20 km – o que corresponde a pouco menos de um
sexto do total da terra indígena.
Neste mês, mais de dez anos depois da tragédia, índios e companhia aérea formalizam a
última etapa para o pagamento de uma indenização de R$ 4 milhões à comunidade de
Copoto-Jarina. O acerto foi mediado pelo Ministério Público Federal.
Após idas e vindas, o compromisso da empresa foi oficializado num encontro na sede
da Procuradoria-Geral da República, em Brasília, em outubro do ano passado.
Como se viu no recente acidente que matou o ministro do STF Teori Zavascki, no mar
de Paraty, os donos do avião são os responsáveis por retirar os destroços da aeronave do
local da queda, conforme determinação do Centro de Investigação e Prevenção de
Acidentes Aeronáuticos (Cenipa), da Aeronáutica.
Numa das reuniões sobre o caso, a empresa aérea alegou que a retirada dos destroços
“implicaria um dano ambiental muito expressivo, superior à permanência deles na
região”, e que a operação de logística para a retirada seria “extremamente difícil,
arriscada, dispendiosa”.
Com a indenização, os índios concordaram com a permanência dos destroços na terra
indígena – com ou sem eles, parte da área continuará sendo uma cidade dos espíritos,
imprópria para o uso tradicional da comunidade, inclusive para as gerações vindouras.
Na tarde do dia 29 de setembro de 2006, uma sexta-feira, o Boeing da Gol que saiu de
Manaus em direção ao Rio de Janeiro, com escala em Brasília, voava a 11 mil metros
quando, perto das 17 horas, se chocou com um jato Legacy, que voava em sentido
contrário em direção aos Estados Unidos. O Boeing perdeu a sustentação e caiu de bico
numa área densa da floresta, desfazendo-se na queda – o que explica a extensa área
onde se espalharam corpos e destroços do avião. Apesar das avarias, o Legacy
conseguiu pousar na base da serra do Cachimbo, próxima do local.
O acidente abriu uma grave crise no setor aéreo. Além de falhas no controle do tráfego
aeronáutico, a investigação do Cenipa apontou falha dos pilotos do Legacy, que
trafegava com o alarme anticolisão desligado.
“Algumas pessoas ouviram o barulho, mas ninguém achou que era um avião caindo.
Pensamos que era uma bomba do lado da serra do Cachimbo”, afirma o cacique
Megaron Txucarramae. Horas depois, ele começaria a receber telefonemas de jornalistas
e pessoas da região. O avião caíra por ali.
Nos 20 dias seguintes, Megaron integrou o grupo de indígenas kayapó que ficou
acampado na beira do rio Jarinã para auxiliar os militares no resgate dos corpos.
Do rio até o principal ponto da queda da aeronave, onde ficou a maior parte dos
destroços, os índios abriram uma picada de 7 km. Eles foram os primeiros a encontrar
os corpos das vítimas, seis dias depois da tragédia.
O diretor jurídico do Grupo Gol, Maurício Queiroz, que participou das reuniões, é
apontado por índios e procuradores como o responsável por convencer a empresa a
pagar a indenização.
Procurada, a Gol afirmou que não se manifestar sobre o pagamento de indenizações e
seus valores – vale também para os acordos já firmados com as famílias das vítimas do
acidente. Alguns dos casos, contudo, ainda se arrastam na Justiça por discordância em
relação aos valores oferecidos.
Os R$ 4 milhões da indenização da Gol serão depositados numa conta do Instituto
Raoni, entidade sem fins lucrativos criada pelo cacique homônimo em 2001. Ela
representa cerca de 2 mil índios que vivem na terra indígena, na região do baixo Xingu,
entre Mato Grosso e Pará – o último censo do IBGE, de 2010, contou 1.004 pessoas
vivendo no território, que tem 634 mil hectares. O Ministério Público Federal vai
acompanhar a aplicação do dinheiro.
Os índios afirmam que vão utilizar a indenização para melhorias na terra indígena –
estruturando as aldeias, comprando carros e maquinários, melhorando a vida da
comunidade. Eles querem utilizar parte do dinheiro para se mobilizar com outras etnias
numa campanha nacional contra as recentes ameaças aos direitos indígenas,
exemplificadas na PEC 215, em trâmite no Congresso (que pretende transferir o poder
da demarcação de terra do Executivo para o Legislativo) e na decisão do governo
Michel Temer de alterar o rito das demarcações de terras, anunciadas e então revogadas
após críticas da sociedade civil sobre a constitucionalidade da medida.
“Temos muito pelo que lutar a partir de agora. Mas a casa dos espíritos continuará lá,
com as almas das pessoas. Já não há o que fazer, é uma área sagrada e temos apenas
que respeitar”, diz o cacique Megaron Txucarramae.
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