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CARTA ABERTA À SOCIEDADE
Marajó - PA, 24 de fevereiro de 2024.
Temos acompanhado com grande indignação e preocupação a repercussão midiática
que novamente o Marajó ganhou na cena nacional, com a propagação de imagens,
vídeos e narrativas em redes sociais, com denúncias de violações de direitos humanos,
algumas veiculados por supostas entidades que se apresentam como atuantes na
região, com pedidos de doações financeiras.
Neste sentido, nós, integrantes de Entidades e Movimentos Sociais de defesa dos
Direitos Humanos do Marajó, emitimos esta carta aberta no sentido de trazer algumas
ponderações sobre a questão. A primeira delas, é sobre os perigos da história única:
este tema é um alerta trazido pela escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie,[1] a
qual pondera sobre o perigo de uma única história contada, um tipo de narrativa que é
construída pelo “outro” sobre “nós” e que nos reduz a um único aspecto para a
sociedade.
Assim, no caso de nosso querido Marajó, tem nos causado grande indignação as
denúncias veiculadas que viralizaram nas redes sociais, mas, além disso, também tem
nos preocupado as narrativas construídas junto a estas postagens, as quais reforçam
estereótipos sobre a população marajoara, sobretudo a população ribeirinha e do meio
rural. Trazendo novamente Chimamanda, ela afirma que: “ao mostrar um povo de uma
determinada forma, repetidamente, será o que eles se tornarão”.
São versões de uma história contada a partir de uma visão colonizadora da região do
Marajó que não leva em consideração o ponto de vista das pessoas que vivem nos
diferentes territórios e territorialidades marajoaras. Neste sentido, é importante
seguirmos os ensinamentos e reflexões do Nêgo Bispo, que pontua a importância de
considerar a forma de pensar dos povos tradicionais que se distancia da academia,
pois esta última tem como paradigma o conhecimento eurocêntrico. Já a forma de
pensar dos povos tradicionais é contra-colonialidade, pois visa revelar os processos de
enfrentamento entre povos, raças e etnias que confrontavam diretamente o
pensamento hegemônico.
Sendo assim, ao pegar toda a complexidade do que aqui denominamos de “os
Marajós”, com suas respectivas peculiaridades, pois de um lado do arquipélago temos
o Marajó Oriental (dos campos) e do outro, o Marajó Ocidental (das águas e florestas),
os quais são territórios, em grande parte, habitados por povos tradicionais, mas que
também possuem uma população urbana, e reduzi-los a um só aspecto, isso é o que se
chama o perigo de uma única narrativa, e o perigo dessa única narrativa é o fato de ela
ser incompleta.
Esse tipo de narrativa tem sido usado desde a invasão do europeu contra os povos
originários e com os povos negros, na contemporaneidade, vem trazendo outras
roupagens, com o advento da internet e das redes sociais, mas o objetivo segue o
mesmo:
[1] Palestra com Chimamanda Ngozi Adichie. Disponível em: https://youtu.be/qDovHZVdyVQ
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CARTA ABERTA À SOCIEDADE
desqualificar estes povos e seus descendentes, que vivem na e da floresta amazônica
(extrativistas, agricultores, pescadores, quilombolas, ribeirinhos, dentre outros),
desumanizar estes povos e abrir novas frentes de invasões e exploração de seus
territórios. Portanto, é mais uma forma violenta de invisibilizar e negar a identidade
marajoara e suas contribuições socioculturais para a formação do país, principalmente
da Amazônia brasileira. Neste sentido, o perigo da história única é que ela acaba tendo
o poder não só de contar a história de um povo, mas de se tornar a história definitiva
deste povo.
É importante ressaltar que os povos marajoaras são atravessados por muitas
violências, dentre elas, a violência sexual contra crianças e adolescentes, as quais vem
sendo duramente denunciadas há décadas por movimentos sociais e entidades sérias
da região. Portanto, têm denunciado sistematicamente a ausência ou ineficiência do
Estado nos últimos anos na região, o que ocasionou em desmonte e sucateamento de
várias estruturas de combate a estes crimes, como redes de atendimento e de proteção
às vítimas de violência sexual infantil, falta de investimentos na infraestrutura dos
Conselhos Tutelares, desmonte de redes de atendimento à mulher, entre outros.
O programa “Abrace o Marajó”, lançado pela então Ministra da pasta dos Direitos
Humanos do governo anterior, também foi alvo de denúncias, pois além de não buscar
dialogar com a sociedade civil e com movimentos sociais da região de modo
transparente, na prática, os recursos do programa não chegaram para as pessoas em
situação de vulnerabilidade socioeconômica. Para agravar a situação, a citada ministra
protagonizou várias cenas sensacionalistas e preconceituosas ao proferir falas
estereotipando meninas marajoaras abusadas sexualmente como “aquelas que teriam
sido abusadas por não usarem calcinhas” [2], propondo, inclusive, como política
pública, a construção de uma “fábrica de lingerie” na região - proposta duramente
criticada pelos movimentos sociais da região.
O Programa “Abrace o Marajó” tornou-se, na verdade, um “abraço de urso” - sufocante -
sendo amplamente denunciado pelos movimentos sociais e entidades de defesa dos
direitos humanos marajoaras, como um programa que beneficiou as classes
detentoras do poder econômico na região, bem como atraiu o capital privado para
expropriar ainda mais uma população já castigada pela pobreza.[3]
Há cerca de um ano, o Ministério dos Direitos Humanos do atual Governo iniciou um
diálogo com a sociedade civil e com entidades e coletivos de defesa dos Direitos
Humanos da Ilha do Marajó (dos Campos, das Águas e Florestas), buscou mapear
situações de conflitos fundiários e de violência sexual contra crianças e adolescentes,
dentre outras questões denunciadas por estes coletivos.
[2]Reportagem disponível em: https://www.uol.com.br/universa/colunas/andrea-dip/2022/10/13/ativista-contra-
abusos-em-marajo-projeto-de-damares-e-cavalo-de-troia.htm
[3] Governo revoga Programa Abrace o Marajó, programa instituído no governo passado é alvo de denúncias.
Disponível em: https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202309/presidente-revoga-o-programa-abrace-o-marajo-
instituido-na-gestao-anterior-e-alvo-de-denuncias-1
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CARTA ABERTA À SOCIEDADE
A partir do mapeamento, foi lançado o “Programa Cidadania Marajó”, o qual se
encontra em execução e está sob constante monitoramento das entidades e
movimentos sociais defensores dos Direitos Humanos e dos Direitos dos povos
tradicionais do Marajó. O Marajó precisa de políticas públicas que deem conta de sua
complexidade, mas principalmente, que de fato se concretizem para aquelas e aqueles
que realmente necessitam.
Assim, gostaríamos de nos posicionar no sentido de acolher, orientar e direcionar aos
órgãos competentes toda e qualquer denúncia responsável e concreta a respeito de
situações de violações de direitos humanos no Marajó, principalmente de violência
sexual contra crianças e adolescentes.
Ao mesmo tempo, também repudiamos a veiculação de imagens, vídeos e narrativas
que não se fundamentem em elementos concretos de comprovação, que
desrespeitem os direitos humanos e de imagem de crianças, adolescentes, jovens e
pessoas do Marajó - uma vez que esse tipo de conteúdo, xenofóbico e preconceituoso,
reforça estereótipos, expõe ainda mais crianças e jovens vítimas de tais violências,
distorce a realidade com informações desencontradas, contribui para o pânico
generalizado e para atrair a presença de criminosos para a região.
Toda e qualquer repercussão midiática responsável, que denuncia violências e resulte
em ações efetivas e concretas dos órgãos governamentais das esferas federal,
estadual e municipal no enfrentamento e eliminação de toda e qualquer forma de
violência sexual contra crianças e adolescentes, e na redução da pobreza, dentre
outras violações de direitos humanos, serão de grande ajuda para o Marajó.
Entretanto, precisamos fazer isso de forma responsável e com denúncias embasadas
em evidências e pelos meios e canais oficiais de denúncias[4], a fim de não cristalizar
estereótipos que depreciam de modo geral o povo marajoara.
O respeito à população que reside no Marajó se faz pela compreensão de que somos
um território formado por um conjunto plural de povos e que, sobretudo os povos
tradicionais, seguem resistindo ao racismo estrutural, que reforça estereótipos
negativos, invisibiliza sua enorme contribuição para a formação sociocultural de nossa
região; seguem resistindo ao racismo ambiental, que ameaça e expropria territórios
tradicionais e, sobretudo, seguem resistindo ao olhar estereotipado do “outro” que
tenta construir uma narrativa única, genérica e negativa sobre o povo marajoara.
Portanto, informe-se, siga e fortaleça organizações e coletivos sérios, que de fato
atuam e lutam pelos direitos humanos do povo do Marajó[5]. Seguimos na luta
sempre!
[4] A violência sexual contra crianças e adolescentes é uma realidade no Marajó e no Brasil, no entanto, muitos casos ainda
não são denunciados. Se você teve ou tem conhecimento ou suspeita de casos de violência sexual contra crianças e
adolescentes no Marajó denuncie, a notificação pode ser realizada junto aos órgão competentes como: Conselho Tutelar,
Delegacia de Atendimento à Criança e adolescente (DEACA ), Delegacia de Polícia Cívil, Polícia Militar, Ministério Público do
Estado do Pará (MPPA), pelo disque 100 ou pelo disque 181.
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CARTA ABERTA À SOCIEDADE
Assinam esta carta os Coletivos, Entidades, Movimentos Sociais e pessoas
abaixo:

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE SAÚDE MENTAL - ABRASME


ASSOCIAÇÃO COMUNITÁRIA DE REMANESCENTES DE QUILOMBO DE ROSÁRIO -
ASCORQUIR - SALVATERRA/PA
ASSOCIAÇÃO DAS PARTEIRAS TRADICIONAIS DO MUNICÍPIO DE BREVES/PA
ASSOCIAÇÃO DA COMUNIDADE REMANESCENTE DE QUILOMBO DO
TARTARUGUEIRO - PONTA DE PEDRAS/PA
ASSOCIAÇÃO DE MORADORES DO BAIRRO DO PACOVAL - SOURE/PARÁ
ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES DO ASSENTAMENTO ACUTIPEREIRA-PORTEL/PA
ASSOCIAÇÃO DE REMANESCENTES DE QUILOMBOS DE BARRO ALTO-ARQBA (PJ)
ASSOCIAÇÃO DOS REMANESCENTES DO QUILOMBO DE GURUPÁ - CACHOEIRA
DO ARARI-MARAJÓ/PA
ASSOCIAÇÃO DE REMANESCENTES DE QUILOMBO DE PAU FURADO - ARQPF -
SALVATERRA/PA
ASSOCIAÇÃO DE REMANESCENTES DE QUILOMBOS DE TATITUQUARA, SÃO
SEBASTIÃO, AJARÁ E BOA ESPERANÇA -- ARQUITA - DE TATITUQUARA, ALTO RIO
JACUNDÁ, BAGRE, PARÁ
ASSOCIAÇÃO DE REMANESCENTES DE QUILOMBOS SÃO SEBASTIÃO CIPOAL DE
PORTEL/PA
ASSOCIAÇÃO DOS REMANESCENTES DE QUILOMBO DO MUNICÍPIO DE GURUPÁ -
ARQMG - GURUPÁ/PA
ASSOCIAÇÃO DOS REMANESCENTES DE QUILOMBO DE MARIA RIBEIRA - ARQMR
- GURUPÁ - PA
ASSOCIAÇÃO DOS REMANESCENTES DE QUILOMBO DOS MORADORES DA VILA
CANTA GALO, MEMBROS DA COMUNIDADE SANTO ANTONIO DO CAMUTÁ DO
RIO IPIXUNA - ARQCTAI - GURUPÁ/PA
ASSOCIAÇÃO DE MÃES E AGRICULTORES REMANESCENTES DE QUILOMBOS DE
VILA UNIÃO - AMARQVUC/CAMPINAS
ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES REMANESCENTE DE QUILOMBO DE BOA VISTA -
AMRQBV - SALVATERRA/PA
ASSOCIAÇÃO REMANESCENTE DE QUILOMBO DE CALDEIRÃO - ARQUIC -
SALVATERRA/PA
ASSOCIAÇÃO REMANESCENTE DE QUILOMBO DE SANTA LUZIA -
SALVATERRA/PA
ASSOCIAÇÃO REMANESCENTES DO QUILOMBO DE MANGUEIRAS -
SALVATERRA/PA
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CARTA ABERTA À SOCIEDADE
Assinam esta carta os Coletivos, Entidades, Movimentos Sociais e pessoas abaixo:

ASSOCIAÇÃO DE REMANESCENTES DE QUILOMBOLA COMUNITÁRIO E


EXTRATIVISTA DO RIO MUTUACÁ E AFLUENTES - ARQUIRMA
ASSOCIAÇÃO REMANESCENTE QUILOMBOLA DE CURURU GRANDE -
SALVATERRA/PA
ASSOCIAÇÃO REMANESCENTES DE QUILOMBOLA DE PROVIDÊNCIA -
SALVATERRA/PA
ASSOCIAÇÃO REMANESCENTES DE QUILOMBOLA DE SALVÁ - SALVATERRA/PA
BRENDA TAVARES FELIX – BREVES/PA
CÁRITAS BRASILEIRA REGIONAL NORTE II
COLETIV@ AFRO-CULTURAL YABÁS QUILOMBOLAS AMAZÔNIDAS - CACYQA
COLETIVO AFRICA EM MIM
COLETIVO JUVENTUDE MANIFESTA
COLETIVO MARIELLES DO MARAJÓ
COLETIVO DE PRETOS E PRETAS DO ARQUIPÉLAGO DO MARAJÓ (CPPAM)
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA (CPT) - MARAJÓ/PA
COMISSÃO DE JUSTIÇA E PAZ DE BREVES/PA
COOPERATIVA AGROEXTRATIVISTA DO RIO PAGÃO (COPA) CURRALINHO/PA
DAS NICES E DIJÉS: MULHERES NEGRAS EM DEFESA DA FLORESTA E DA VIDA.
CNS/OXFAM-BR - CURRALINHO/PA
ESTUÁRIO SERVIÇOS CONSULTORIAS ECOSSOCIAIS
FETAGRI REGIONAL DAS ILHAS DO MARAJÓ
FÓRUM MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO (FME) - BREVES/PA
IRMÃS DE NOTRE DAME DE NAMUR - BRASIL
INSTITUTO DE DIREITOS HUMANOS DOM JOSÉ LUÍS AZCONA
INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO PARÁ (IFPA-
CAMPUS BREVES)
IRMANDADADE DO GLORIOSO SÃO SEBASTIÃO - CACHOEIRA DO ARARI-MARAJÓ/PA
MALUNGU - COORDENAÇÃO DAS ASSOCIAÇÕES DAS COMUNIDADES
REMANESCENTES DE QUILOMBO DO PARÁ
MULHERES NEGRAS MARAJOARAS E DO MARAJÓ (MUNEMAMA)
MOVIMENTO MARAJÓ VIVO
NÚCLEO DE ESTUDOS AFRO-BRASILEIROS E INDÍGENAS (NEABI) DO IFPA CAMPUS
BREVES
OBSERVATÓRIO DO MARAJÓ
PASTORAL DA CRIANÇA DA PRELAZIA DO MARAJÓ
PROGRAMA DIREITOS HUMANOS, INFÂNCIAS E DIVERSIDADE NO ARQUIPÉLAGO DO
MARAJÓ (DHIDAM)
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CARTA ABERTA À SOCIEDADE
Assinam esta carta os Coletivos, Entidades, Movimentos Sociais e pessoas abaixo:

REDE FULANAS - NEGRAS DA AMAZÔNIA BRASILEIRA-PARÁ


SINDICATO DOS TRABALHADORES/AS RURAIS, AGRICULTORES/AS FAMILIARES
(STTR) DE AFUÁ/PA
SINDICATO DOS TRABALHADORES/AS RURAIS, AGRICULTORES/AS FAMILIARES
(STTR) DE ANAJÁS/PA
SINDICATO DOS TRABALHADORES/AS RURAIS, AGRICULTORES/AS FAMILIARES
(STTR) DE BAGRE/PA
SINDICATO DOS TRABALHADORES/AS RURAIS, AGRICULTORES/AS FAMILIARES
(STTR) DE BREVES/PA
SINDICATO DOS TRABALHADORES/AS RURAIS, AGRICULTORES/AS FAMILIARES
(STTR) DE GURUPÁ/PA
SINDICATO DOS TRABALHADORES/AS RURAIS, AGRICULTORES/AS FAMILIARES
(STTR) DE MELGAÇO/PA
SINDICATO DOS TRABALHADORES/AS RURAIS, AGRICULTORES/AS FAMILIARES
(STTR) DE MUANÁ/PA
SINDICATO DOS TRABALHADORES/AS RURAIS, AGRICULTORES/AS FAMILIARES
(STTR) DE PORTEL/PA
SINDICATO DOS TRABALHADORES/AS RURAIS, AGRICULTORES/AS FAMILIARES
(STTR) DE SÃO SEBASTIÃO DA BOA VISTA/PA

[5] Atualmente integram o Fórum da Sociedade Civil do Marajó os seguintes Coletivos e Movimentos Sociais:
Cáritas Regional Norte ii, Comissão Pastoral da Terra, Comissão de Justiça e Paz de Breves, Coletivo Mulheres
Livres, Coletivo de Juventude Quilombola Abayomi, Canal Marajoando, Instituto Dom José Azcona, Jovens Cuícas,
Filhas de Leila, Marajó vivo, MALUNGU, Rádio Margarida, Observatório do Marajó, dentre outros. Disponível em:
https://www.instagram.com/p/C3qCC8aAVLY/?utm_source=ig_web_copy_link

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