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US I°L1I )FISL.

1I JA
FILOLOGIA
Dinâmica de conhecimento textual

Greicy Pinto Belline Claudia Regina Camargo

Outubro de 2021

(OêTêW?OêTO
O Hans Ulrich Gumbrecht, 2021
Título original: The Powers of Phílology: Dy namics of Te xtual Scholarship

D treinos parao Brasil adquiridos por Contraponto Editora Eireli. ''

Vedada, nos termos da lei.a reproduç ao parcial ou total deste livro,


por quaisquer meios, sem autorizaçào da Editora.
Sumário
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Agradecimentos
Pre paraçao de ofrituais: César Benjamiti 9
Revisao: Cristina dz Costa Pereira
Projeto gríficoe diagramação: Traço Design Prefacio: Traduzindo os Poderes da filologia: por uma
Capa: “The Scribe at Work”. jean Le Tavernier, séc. XV, domínio público
pratica filológica de presença, Gretcy Pinto Bellin
11

QuaiS sãO os poderes daBiologia? 23

1. Identificando fragmentos
35

G984p 2. Editando textos


57
Gumbtechi, Hans Ulrich, t948—
Os poderes du filología: dinâmica de conhecimento tcxnul/ Hans Ulrich
Gumbrecht; iwduçao Grcicy Pinto Bellin. Claudia Regina Camargo. - 1. cd. - Rio de 3. Escrevendo comentarios
81
)aneiio: Contraponto, 2021.
149 p.; 21 cm.
4. HiStoricizando as coisas
Twdução de:Tbe powers o£pbúology: dynamics tcxtud scbobrship
99
ISBN 979-65-5639-0t6-I
5. Ensino
1. Filologia. 2. Linguagrm. 3. Crítica textual. I. Bellin, Greicy Pinto. 119
Il. Camargo, Claudia Regüu. III. Título.

21-73079 CDD. 400


CDU: 80t

Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecir ti - CRB-7/6439


31/08/?02t 02/09/2021
Agradecimentos

Este livro poderia nunca terse tornado uma realidade, ou se


tornariao mais vago de todos os projetos intelectuais, sem o
otimismoe a confiança de meu amigo Glenn Most; não teria
começadoa se materializar em uma série de ensaios apenas
l igeiramente coerentes sem aquelas conversas intensas, prin-
cipalmente no meu escritório em Stanford, das quais par-
ticiparam Miguel Tamene Joshua Landy; e aqueles ensaios
incoerentes nào se uniriam em livro sem o forte apoio de
Willis Regien, Trina Marmarellie Valdei Lopes de Araújo.
finalmente,é bem possível que eu nunca tivesse abordadoo
tópico da filologia se nao fosse um admiradore um estudante
ocasional do grande classicista Manfred Fuhrmann, desde o
início da década de 1970,e um colega do grande filólogo Karl
Maurer desde 1975.
Espero que Sara leia estas paginas como sefosse outro car-
tio-postal.
p RE -ÁC 10

Traduzindo os PodereS da fílologia:


por uma prática filológica de presença
Creicy Pinto Bellin

Como pode algo abstrato assumir uma estrutura?E pode-


riaesta estrutura criar estados mentais específicos no leitor?
Pode um pensamento adquirir uma forma? Estas sfio algumas
das questóes com as quais me defrontoa partir do contato
com a obra de Hans Ulrich “Sepp” Gumbrecht,o qual, pelo
menos em meu caso, foi muito além da simples leitura des-
lumbrada de um autor estrangeiro para assumira dimensão
da intensa correspondência intelectual que teve um de seus
ápices na tradução de Os poderes da filología, publicado em
2003 pela Universidade de Illinois, já traduzido para o espa-
nhole para o alemão,e agora editado pela primeira vez em
língua portuguesa.
A abertura de Sepp Gumbrecht ao pensamento de jovens
pesquisadores brasileiros dispensa maiores considerações. Suas
participações anuais em seminarios, congressos, colóquiose
encontros acadêmicos em varias regiões do Brasil, iniciadas no
final da década de 1970 nos antológicos seminarios ministra-
dos na Pont'ificia Universidade Católica do Rio de Janeiro,
teriam, por si só, se tornado quase um lugar-comum nao fosse
H A N S U L R IC H G ]VIB R E C HT poderes dn filologia: dinâmica de conhecimento textual
12

matrizes que possibilitam outra pessoa,e pela árdua responsabilidade de tornar claro
pela sua habilidade Em fornecer
s sendas de inves- este pensamento não apenas para nós, tradutoras, mas para
avanços nosciêliCiaS h mari s e abrem nova
s futurose potenciais leitores do livro no contexto acadé-
interessam , ou deveriam interessar,
tigação dos fenômenos que mico brasileiro.É necessário levar em consideração, sob este
Tal interesse foi fundamental pa-
aos pesquisadores desta area. aspecto,a complexidadee a amplitude do pensamento do
ppÓpçl pensamento e em minha
raa consolidação, em meu tutor, o qual, ja respondendo às questóes colocadas no pri-
vOltada ao que o
eXperiênCÍa pr
ofissional, de uma percepção
COÍÓ- meiro parágrafo desta introdução, possui uma formae uma
próprio Gumbrecht chamou, em um dos proverbiais
antigaloguslávia, em 1987, estrutura capazes de gerar um clima intelectuale um estado
qui os realizados em Dubrovnik, mental específico tanto em seus leitores quanto, principal-
o” sem, contudo, perceber
de materialidades da COmunicaça mente, em seus tradutores.
Caminho queo levariaà consoli-
que ja estavap ercorrendo o de 5timmun$é um dos termos normalmente usados por alguns
de presença”. Em eK et
daçao de uma “filosofia filósofose intelectuais alemães para se referira um estado de
COntestaç ao de umâ
tradiçaoâC«dêmica de cunho hermenêu-
inimo, disposição ou humor surgidoa partir de um determi-
ssociada a questõesp olítico-partida-
ticoe frequentemente a nado ambiente e/ou atmosfera. Para perceber e/ou identifi-
Gumbrecht forneceu o respaldo
rias,a reflexão intelectual de cara Stimmung, parece necessaria, ou até obrigatória,a imer-
es em Sala de aulae em grupo
necessarío para longasdiscussõ são em um estado mental que se tornou bastante conhecido,
aitiCip ava, sempre ua ansia, mtlÍtàS
de pesquisa dos quais eu p principalmentea partir do pensamento filosófico de Martin
certo desdém, dequestionar
vezes malogradae percebida COm es” em Heidegger, como Gefsssenúcit, traduzido como “serenidade”
leiturase interpretações que deixaVam ãS materialidad
respaldo há temposp rocurado ou “calma compostura”. Tal serenidade, entretanto, não im-
segundo plano.A certeza do ã plica passividade ou apatia, configurando-se, pelo contrario,
na obra do autor, bem colnO
tornou inevitaveis o mergulho em ativo interesse pelas coisas do mundo, e, no caso específico
tradução em parceria COffl
consequente realizaÇÃO desta a que me refiro, em condição quase síne qua non para mergu-
do programa de pós-gradua-
claudia Regina Camargo, aluna lhar na estrutura de pensamento articulada por Gumbrecht.
stemunha de algumas das discus-
ção ao qual estou filiadae te Talveza sentença que melhor ilustrea configuração mental
desta mesma obra, alguns deles
sões sobre os principais temas czrxcterística da Celossenheit seja aquela proferida por Pablo
abordados em Os poderes da fil! S!’*- Morales, campeão olímpico de nataçãoe aluno de Stanford,
portanto, Se apresentou CO-
Traduzir Sepp Gumbrecht, ao explicar seu retorno ao mundo dosesportes após breve
ente,p or uma estranha e
mo tarefa permeada, Simultaneam aposentadoria: “perdido em intensidade focada” [lost in focused
na qual eu descobria,
fascinante sensação de falililiaridade, iniensily]. Tornoa liberdade de lançar mão desta formulação
nsamentos que acreditava se—
linhaa linha, que palavras e pe para me referirà experiência proporcionada pela tradução de
sido pensadose /ou escritos por
rem apenas meus jáhaviam
t4 HAN S U LH fc iic o u a e re uT

15

Os poderes da fiíologia, em que o estado de GelaSsenlteit de seu


Não se pode deixar de mencionar, neste
próprio autoré transmitido por intermédio da palavra escrita, sentido,a genealo-
giaintelectual de SeppGumbrecht, constel
gerandoa Stimmuny, que faz com que nos percamos em uma ada nas imagens de
Edmund Husserle de Martin Heidegger,
intensidade focada,e apontando para o potencial do texto es- além de seu doktor-
ater, cujo nome dispensa menções maisi
crito, de produzir presença. ncisivas nfio apenas
por ser conhecido comO o principal rep
Um prefacioà traduçao brasiletra de Os poderes da filologia resentante da estética
da recepção por tOdOs aqueles que se dedica
nào pode negligenciar o contexto original de sua publicação, m aos estudos lite-
mas tãmbém pelo fato de ter co
que veioà tona um ano antes da publicação da queé conside- laborado, COmo oficial
da Waffen SS, paraa perpetração de barbaros
radaa obra mais programatica de Sepp Gumbrecht: Produção crimes duranteo
Terceiro Reich.' Tal revelaçao,cOnforr
de presença:o qtieo sentido nào consegue trdrismitír, de 2004, com ne Sll2ãl2Zam os estudos
de ReginaZilberman2e Otimar Ette,^
tradução brasileira em 2010. Talveza importancia dessa obra, começoua virà tona
na década de t980,COf2Slsttndo em ve
bem comoa polêmica encetada em varios nichos acadêmi- rdadeiro trauma existen-
cial para Gumbrecht. MdS descobrir
cos nos quais foi considerada como “fascista” por aqueles que que havia SÍdO Orientado
]3OCttm C@minoso,seguidor do nazismo,
insistiam (e ainda insistem) em preservar o legado tanto da e sua visáo um dos
mais nefastos crimes cometidos Cd história da humanidade,
hermenêutica quanto da metafisica ocidental, tenha relegado esta muito longe de sero único fato
Os poderes da filologia, inadvertidamente,a uma condição de que estimulou o autorã
desenvolver uma sólida reRexfio
menor importância. Em um primeiro momento, considerei intelectual situada fOrae além
do paradigma hermenêutico. Sua
bastante provavel que o contato prévio das tradutoras com formação como ro ánista,
8 QUã1 firansparece de forma in contestavel tanto na introdu
Froduçâo de presença tenha levadoa percepções exageradase até ção
quanto no início do segundo CdpÍtUlO
mesmo equivocadas de semelhança entre os dois livros, im- de Os poJeres dafi]zJzgJz,
é mais do que decisiva neste sentido,
pressão desfeita em correspondência por e-mail com o próprio tendo semanifestado no
fltlVo interesse pela tradição
literária medieval espanhola,
Gumbrecht. O que Os poderes da filologia revelam, em uma o
que levou muitos estudiosos a r
estrutura de capítulos muito semelhanteà da obra que surgiria otula-lo como “medievalis ta .
um ano depois,é a gênese do desenvolvimento da reflexão
que se tornaria referência fundamental parao desenvolvimen- !. GUMBRE CHT, Hans Ulrich. Da
hermtqjpt¡tt
to de matrizes alternativas que permitema desestabilizaçao da '°°°" umz fan'asia au obiogr*t¡‹ . In:

centralidade da interpretaçao e do paradigma hermenêutico 2. ZfLBERMAN. Regina. Memórias


de
nas ciências humanas, proporcionando-nos, para usar as pa- BH Jarra Contenip a•••. 2017.
•. 52, p.9-30.
lavras do próprio autor, “formas nâo interpretativas de lidar 3. ETTE, Ottmar. Existe tJnl8 fronteirae
re denise 8°*A0 ditadura? Hans Robert
/*8*s, Michel HOU<{{gÇecq, Cécilc
com objetos culturais”.
§8^8d#, 2059, n. 36, p. 34-60.
16
17

Este rótulo acaba por se revelar como extremamente redutor


fato. Transparece, neste ponto,a tendência,
quando nos deparamos com a já mencionada amplitudee es- própria do pensa-
mento do autor, de desestabilizar as
trutura do pensamento do autor, em minha visão um pensa- tradições intelectuais base-
adas em noções muitas vezeS CriStaliZadas,
mento de presença articuladoa partir do diálogo intenso com a entre elasa noçâo
tradicional de Biologia clátlCa, que
obra de Heidegger, materializado no livro Em 1926: Vivendo preconizava o uso do tra-
balho filológico para a reconstruç
no limite do tempo, publicado em 1996e que representao verda- ão de tradições nacionais.
Talvez seja estaa ideta que será mais vee
deiro turtiirig point de sua carreira intelectual, além de primeiro mentemente descons-
truídap or Sepp Gumbrecht, principalme
livro publicado em Stanford,e do interesse pelos fenômenos nte porque o desejo
de reconstruir uma tradição nacional é
pertencentes ao campo não hermenêutico. Produção de presença, percebido como algo
que estaa serviço do que oautor chama
como jádeve terficado claro, representao ápice da consolida— de “pedagogia da lei-
tura”, sintonizada, por sua vez, com
ção deste campo, tendo sido seguido por Elogio da beleza nifftifd, oestabelecimento da but-
ca por uma “imagem normativa de
publicado em 2006, fechando, assim, uma thlogia de presença, o sociedade”. Esta busca ocu-
pou espaço central gasrenexões intelectuais
que torna ainda mais relevantea publicação da tradução brasi- no início do sécu-
IOXIX, SUbordinando tantoa literatura
leira de Os poderes do lolo in,a qual possibilitara que os leitores quantoa própria filo-
O d CÍdSSÍCaa objetivos p edagógicos
da obra de Sepp Gumbrecht no Brasil tenham acesso ao esboço e doutrinadores. Daí a
preocupação do autor COm O tlso de textos do
a partir do qualo autor iráconsolidar sua tão célebre filosofia. passado em seus
contextos de ensino, os quais nfioapenas
A estrutura do pensamentoà qual me referi aparece ja na produzem presença
mas colaboram paraa efetivadesconstruçfio
introduçao do livro, cujo principal objetivo parece ser o de- da auraideológica
e romantizada que cercaa filologia
senvolvimento de uma próti‘rs Iol6 ica de presença ou, mais pre- COmO disciplina e, por ex-
tflt25aO, as próprias ciências humanas
cisamente, de uma aóordngem filológica nào hertneneutica baseada COmO Campo de estudo.
Emergem, ainda na introdu
na noçao de presençae na materialidade do texto escrito. Para Ç O, OS conceitos de presen/i-
fitação, que serãodesenvolvidos depois
Gumbrecht, o trabalho filológico evoca desejos de presença, em Produção depresença
e seapresentam como funda mentais
pois pressupôe nfio apenas uma ansia de proximidade física para secompreender as
relações de tangibilidade geradas
com o textoa ser trabalhado pelo filólogo, mas também o pelo trabalhOfilológico co-
mO {irátiCa que recuperaa prese
desejo de se aproximar do passado histórico recuperado por •f• do passada ou O passado, e
relevante parao desenvolvime
este mesmo texto. A definição óe filoío2ía como pratica carac- nto dd noçfio de
mento.‘Este, em sua incompletu
de própriae característica,
terizada pela curadoria de textos antigos é, neste aspecto, fun- naO pode prescindir das capacidade
damental, bem como o questionamento do uso da palavraJfó- s Ill8Qinativas do filólogo
Para seconstituir como tal, o
logo para se referira pensadorese estudiosos que se dedicavam grande importância na
prdtiCa biológica de presença. Esta pri-
ao estudo dos textos da Antiguidade sem praticara Biologia de tiCa seriacaracterizada pela oscilação entre
efeitos de sentido
H A N S U L R tC H G U MB
REC H T poderes da filologia: dinâmica de conhecimento textual 19
18

preseaçõ› atinge níveis ainda mais fragmentados no ano pandêmico de


central de Prod«iao de
e efeitos de 2020, em que este livro foi traduzido. Isto nos permite pensar
à Eucaristia como rituais
assim Como asreferências à missae tst co Óe em comoé atuala reflexão de Gumbrecht no que dizrespeito
proxilflidade com O COrpo m
depresença por conta dã COMO objeto sensuale
à redefiniçao dos limites das práticas acadêmicas como um
texto literár IO
cristo,e a percepçjO do todo,e não apenas da Biologia, bem como na configuração
materialmente presente. atual das humanidades como campo de sabere investigaçao.
;- p entam apice da conso-
ttes próximos capítulos e res Ao tratar da historicização, tema central do quarto capítu-
introduçã°
penamento articulada 11d
lidaçao da estuu de per- lo, o autor percorrea história da institucionalização da Biolo-
pítulo. O processo de Adição de textoé
e no primeiro ca gia como disciplina acadêmica, passando pela emergência daja
presença quantO
COID O á g o capaz de prOduZir tanto
cebidO ntal relevanCia mencionada “pedagogia da leitura" como instrumento ideoló-
tópico dC fundame
experiência estétÍCã,outro autor. Torna-se gico de classes intelectuais privilegiadas que tinham porobjeti-
teórica e conceitual do
no âmbito da obra pattir do vo propagac uma imagem normativa da sociedade por meio da
segundO capítulo e a
também evidente, Ainda no acadêIfli— literaturae do próprio saber que se forja no âmbito acadêmico
eito d género,p resen te ha tempos no debate
C Ilc e
rução de um° e institucional. Sepp Gumbrecht propõe uma ruptura com es-
na époCa da pu bliCaÇ ÃO do livro,a desconst
co s cultu- te pensamento, afirmando que a historicização corresponde
característica dos estudo
d po lfltetpretativa, pol sinal segundo a qual O ao desejo de tornaro passado histórico não apenas presente,
ã e enêutico,
;-qiS inscritos em paradigm h ' e, ao edi- mas sagrado, com o objetivo de se evitara própria morte. Para
texto co rr espond eri a, necessariament
editol de um n e excltlÍ â 8 além da reflexão sobrea historicização como prática profis-
pírico. EStã relação não é necessariam A t
tor em não se ar- ' sional, o que perpassa por uma discussão sobrea importância
ada pela ideia de que
c•mbrecht, m8 P roblematiz dos clássicos como fontes desta mesma prática, observa-seo
ria, sendo o estabeleci—
ticula de forma eviden
te e/off obrigató germe inicial de discussões bastante recentes em relação ao
n cessário paraa sua efetiva
e
Ilto dá çl vas tendências críticas e passado pós-histórico, em que o autor* apontará paraa neces-
consolidaçao. entram-se, respectiva- sidade de criar novos instrumentais teóricos paraa analise das
t erceir o e o quartO capítulos conc
O relações com este mesmo passado em meioà instabilidade po-
comentario e nahistoriciza-
mente, na analise dá pratica do excelência de lítica gerada pela pandemia da Covid-19, em que os equívocos
e er cebid a COMO ostânCla ‘'
ção.A primeira râtica da qual se multiplicam no estabelecimento de vínculos entre aspectos
e a segu nQã COID
atribuição de significados quivat. Alterações
da situaçao política pandêmicae a emergência da ideologia
filologi a nao podee nem Consegue se es nacional-socialista na Alemanha dasdécadas de 1920e 1930.
a vam-se cOID it
do comentario ob ser
substanciais Ata pratiCa cujo formato de É possível afirmar que a quase incontestável hegemonia do
e das mÍdias sociais,
emergência da internet 2003, paradigma hermenéutico de historicização possibilitoua rela-
pelo Autor como relevante,j >
e

hipertexto, referido
?0 H A N S U L R t C H G U M B R EC HT

21

tivização do passado histórico marcado pelos barbaros crimes paraa abordagem das questões que nos concernem.
A partir
cometidos durante o Terceiro Reich, gerando, por exemplo, .de um percurso pelas contribuições de intelectuais
a atmosfera de latênciae amnésia proposital que permearia as alemães
de grande relevância Qà£ã ã Compreensão do problema, en-
décadas subsequentesà Segunda Guerra Mundial, conforme treeles Max Weber, Werner Jaeger, Ulrich von W
ilamowitz
descrito por Gumbrecht em Depois de 1945: latencid foitf0 OfÍ- e Wilhelm Dilthey, o responsavel pela institucionaliz
açao da
yem do presente, publicado em 20t4. O estabelecimento de uma hermenêutica, que chegoua interferir em contratações
acadê-
prática nào hermenêutica de historicização possibilitaria des- aiicas que nfio condiziam com O paradigma que
ele defendia
fazer equívocos ao defendera retomada do passado histórico na universidade onde lecionava em nome do esta
belecimento
em viés nao interpretativo, conjurando-oe insistindo em sua das Geiteswissenschaften fCiencias do espírito], Sepp Gum
brecht
facticidade, o que Sepp Gumbrecht realiza com mestria, mes- aponta parao retorno da disciplina da filologi (e, por
a exten-
mo sem terpropriamente elaborado o conceito de presença, sáo, as próprias ciências humanas) ao conceito de
“experiência
no já citado Em 1926: vivendo no fim rte do tempo. vivida" [Erlebnís], que exclui qualquersubordinaçã
o da expe-
O quinto capítulo de Os poderes da filologiaé talvez o que ciência estéticae material proporcionada pela
literaturaa uma
mais vínculos estabelece com o contexto acadêmico de nosso dimensao ética.
presentee o que mais antecipa reDexÕes que serâo aprofunda- O objetivo das humanidades [e também
da universidade
das em PYoduçáo de presença. Observa-se um tom desencantado COmO iliStitUÍÇãO) não seria, portanto, educar
e/ou treinar pes-
e pessimista na percepção pouco idealizada das ciências hu- sOãS, Conforme prescreviaa pedagogia da
leitura emergente
manas, permeadas pela retórica de “domingo de manhfi”, para DO 5eCttlO OU, e sim fomentar ã5
QOSSÍbílidades de educação
usar as palavras do próprio autor, que caracterizaa visfio quase em encontros com a experiência estética,
estimulando o queo
ufanista dos intelectuais que continuam insistindo em elaborar fltltOi" Chama de“pensamentO COm risCo”. Neste sentido,
o que
infindaveis justificativas paraa importância de um trabalho chamei de práti'ca fílológica dep esença ou abordagem
filológican p
que carece de um problema real por tras de sua existência. Na hermenfutica a parece como representativa
deste pensamento,
visão de Gumbrecht, isso teria ocasionado uma condição de pois seu autor assume o risco de desenvolvê
-la senio compro-
“depressão coletiva crônica”, marcada por comparações equi- misso deproporcionaraprendizado ético
e/ou se conformara
vocadase sem fundamento entre as humanidadese outras are- padrõesintelectuais preestabelecidos. Nesteaspecto,
destaca-
as do saber acadêmico, como asciências naturaise exatas, o -sea crítica de Gumbrechta UO propalada aSSOciação
entreo
que demandaria formular objetivose instrumentos específicos Cd.J]9O das ciências humanase o desejo de protesto
político,
reforçada hoje por intelectuais com reconhecida
competência
em nossa areae que, em vez de desenvolver
• Hans Ulrich Gumbrecht. Instead of comparing? Sixthoughts about engaging with novosconceitos
a post—historical Past. In: https://publicseminar.org/essays/instead-of-comparing/ e novos paradigmas para as questões que nosp
reocupam, fj-l-


q#ps ULRiCHGU+BRECH*
2?

perden-
grossam as fileiras da militância p lítico-partidaria,
larizações entre es-
do-se nas jadesgastadase ultrapassadas po
querdae direita.
ao fime ao cabo, que é
Os poderes da lolo$*o' lembram-nos,
necessário perceber o texto literário
como artefato de pura pre— Quais são os poderes da filologia?
eriência estética,e não apenas
sença, catalisador de profunda exp
ComO um veículo que
transmite ideologiase protestos pOlíti-
que
cos. Esperamos que este livrO, COm sua linguagem cristalina
COÍOCãà tradução, colabore para Por razões que provavelmente nunca vou entender, minha
pouco ou nenhum ObStflCUlO
tlmã efetiva reprogramação e
revisao de nossos próprios concei- mãe, que estudou medicina, sempre, de forma consistentee
marcadosp eloparadigma her- teimosa, usavaa palavra alemã o para se referira pro—
tos como humanistas, conceitos
que queiramOs fessores do ensino fundamental. Mas a excêntrica criação
menêuticoe romaritizado que ainda cerceia, sem
de expressãoe nossopfÓpriO pO- çmantica de minha mãe não estava mais fora do contexto
ou desejemos, nossa liberdade
, a impOf- do que o uso que alguns de meus colegas americanos mais
Pericial CriatiVO. Este livro lembra-nos acima de tudo,
aCadêmicase competentes ainda fazem da palavra o quandoa apli-
tância do poder da imaginação em nossasprjtiCaS
uitg que apenas
profissionais, envolvendo-nos C m aquela 5timw cam a alguns de seus grandes antecessores da tradição alemã,
rcionar. como Ernst Robert Curtius, Leo Spitzere Erich Auerbach.
as reflexõesinstigantes podem propo
presentes em nOS- Nenhum desses eminentes estudiosos destacou-se particu-
Os poderes d•filotogia devem estar sempre
larmente nas práticas que a palavra Jfofo$ia deveria resumir.
soshorizontes intelectuais.
Ernst Robert Curtius lançou as bases de sua reputação aca-
dêmica na década de 1920, quando eraconhecido como um
eminente especialista em literatura contemporânea francesa
e espanhola; então,a partir do início da década de 1930, co-
meçoua se concentrar na história das ideias poetológicase
formas literárias na Idade Média. Leo Spitzer havia estudado
linguísticàe história da literatura durante as duas primeiras
décadas do século XX, mas logo se voltou para um estilo
altamente subjetivo de interpretação imanente de texto (para
o qual o conceito da “experiência vivida" foia chave).E rich
Auerbach, finalmente, que criou sozinho um novo discurso
H A n s U L R IC H G U M B REC HC pç poderes da lologia: dlnamica de conhecimento textual
?4

notoriamente fraco nas terá definições da palavra filologia que, trazendo-a de volta
noambito da história da literatura, foi
ao seu significado etimológico de “interesse ou fascínio pelas
habilidades básiCaS de filologia.
O importan- palavras", tornama noçao sinÓnima de qualquer estudo sobre
Curtius, Spitzere Auerbach nunca fizeramalg
comentarios linguagem ou, ainda mais genericamente, de quase todo o
te como editores de texto ou COmo autores de
colegas, com estudo de qualquer produto do espírito humano.' Por outro
históricos. Portanto, nào está claro por que meus
mantinham a tradiçao de lado, mais específicoe mais familiar,a filologiaé estritamente
uma teimosia igualà de minha mae,
aqui, mais usada para significar uma curadoria de texto histórico que se
chama-los de “filólogos". Acho que entra em jogo
nsciente à diferença entre certo refere exclusivamentea textos escritos.
ou menos, uma reação pre- co
lidar com O passado literario No título de meu livroe ao longo de seus capítulos, a
estilo alemão (Ou continental) de
Ilova críticaanglo-america
nã. palavraJlolo,gia será sempre usada conforme seu segundo sig-
e a tradição interpretativa dã
Auerbach sãosignificativamen- nificado, ou seja, como algo que se referea uma configura-
As obras de Curtius, Spitzere
no Id, Richards ou Singleton, ção de habilidades acadêmicas voltadas paraa curadoria de
te diferentes dos escritos de Ar
su ficiente para Chãtllar OS textos históricos. Existem quatro implicações desse conceito
embora essa diferença não deva ser
que merecem serbrevemente desdobradas. Primeiramente,a
ex—estudiosos defllólogos.
dois exemQlOS @âfã OS USOS pratica filológica apresenta uma afinidade com aqueles pe-
Acima de tudo, porém, meus
paraafirmar, de forma sur- ríodos históricos que se percebem como seguidores de um
da palavraJlolo,gia foram criados
conceito, que parece progrã- momento cultural maior, um momento cuja cultura eles con-
preendente e inegavel, que esse
simplese nao espetacular, sideram mais importante do quea atual. Não por coincidên-
mado paga funcionar de maneira
cia,a cultura helenística do IIIe do II séculos a.C. aparece
desenvolveu uma variedade às vezes confusae ampla de signi-
melhor sevocê começara regularmente comoa origem histórica da filologia como prá-
ficadose usos. Não se tornaintiitO
de referência excessivamente tica acadêmica (Platão, ao contrario, usoua mesma palavra
consultarenciclopédias e livros no sentido de “loquacidade”). Outros momentos importantes
Por um lado, você encon-
especializados ou muito genériCOS. da história da filologia são, pela mesma lógica,a época dos
fundadores da Igreja, o Renascimento europeu, quando os
tveriter Rr•u» (Muniq • ans°r, 2002)
humanistas desejavam retornar ao aprendizadoe aos textos
nuerbach apareceu em üiierary Ff'^**•Z
A vers*o original •• inglés“ '°"
mii, ed. Seth Lerct tS‹•n%'+.
subje-
c•lifó via: StanfordU5jversity l4islOrians 5. Ver o dicionírio Ox/›rd Eli fish. s.v. pliifufo2isi: “Oiie der»red ta leartiiag vr literatura;a
tivos‹ ¡»s‹itucionais dx mes'°• I+n'er o/ lttierr or srfiofasliip;a leanied or liferary mar" [Uma pessoa dedicado ao apren-
of Literatura-Whe8C DO They dizado ou literatura; um amante de letras ou pesquisador; um homem erudito ou
399-404. literírio].
Poier-Berfthard (Munique: Fink 2002),
26 H A N S U L R I C H G U M B IIE C H T

?7

da Antiguidade, e o romantismo do século XIX, com sua


Terceiro,a identificaçao e a restatiraÇáO de textos do
nostalgia da Idade Média. passa-
do - isto é,a filologia COnforme será compreendid
Segundo, com o surgimento de um desejo pelo passado a neste livro
- estabelecem Uilia distância em relaçao ao espaço
intelectual da
textual, as duas principais tarefas da filologia sào a identifi- hermenêutica e da interpretaçao como
prática textual que ela
caçãoe a restauração de textos de cada passado cultural em propõe.7 Em vez de confiar na inspiração e em
intuições mo-
questão.6 Baseado nesta conjectura, isso incluia identificação mentaneas de grandesintérpretes, como fez a nova crítica,a fi-
daqueles textos que nos chegaram como fragmentos, a do- lologia cultivou sua art i t
Um Ofictopaciente, cujos
cumentaçao completa dos textos para os quais temos varias valores-chave sfioa sobriedad e,a objetividadee a raci
onalidade.'
versões não completamente idênticas,a serem apresentadas em Quarto,e finalmente, decorre de tudoo que eu disse
a res-
sua pluralidade ou condensadas na proposta de um original peito da filologia de que esse ofícioe essa
competência de-
ou de uma versão mais valiosa, além de comentarios com in- sempenham um papel particularmente importante e
frequente-
formações para ajudara preenchera lacuna entreo conheci- mente predominante nasdisciplinasâCadêmica que
s lidam com
mento que um texto pressupõe entre seus leitores históricos os segmentos culturais cronologicãmente mais
remotos (desde
e o conhecimento típico de leitores de idade mais avançada. que tenhamos aO nOS8O dispor pelo menos
aiguns traços de uma
As três praticas basicas da filologia sao, portanto, identificar tradiç ao escrita que nos levam de voltaa esses
segmentos do
fragmentos, editar textose escrever comentários históricos. passado).A filOlOgiaé extremamente im
portante paraa assirio-
Para essas praticase suas competências acadêmicas subjacentes, logiae a egiptologia. A maioria dos classicista
s aindaa considera
temos que pressupor, além das três habilidades filológicas bá- como sendoa competência principal destes Càfn Os. Além dis-
sicas, uma consciência das distinções entre diferentes períodos so, desdea era do romantismO,8 ÚtlOlOQia tem sido usada
para
e culturas históricas, ou seja,a capacidade de historicização. tnCORStruir textos da Idade Média como O Suposto
contexto de
Oji gem para as diferentes tradições cultu
E, finalmente,a ativação dessas habilidades também (equase aÍS nacionais.
Embora eu tenha iniciado minha vida acadêmiC8
invariavelmente) pressupõea intenção de fazer uso dos textos Como me-
díevalista, isto é, em proximidade com a
e culturas do passado nos contextos institucionais de ensino. tradição filológica,é
seguro dizer que eu nunca teria pensado
Em outras palavras,é difícil imaginar quea filologia deve en- em escrever um livro
trar em jogo sem objetivos pedagógicose sem, ao menos, uma
consciência histórica rudimentar.

8. Ver Karl
6. V*r a definiçio inicial em Crran Enciclopédia R IACP (Madrid: Ediciones R IALP, Criticisiy,
l972),vv. ra.
28 H A N 5 U L R I C H G U M B R EC HT
Eye poderes da Mologia: dtzzúttzica de conbecimeo¢o textual
29

sobre os “poderes da filologia” sem uma provocação intelec-


, isso nao era apenas complementar à interpretaçao dos textos
tual e, mais tarde, sem o incentivo que veio de cinco coló-
pm questão. Portanto, em princípio, eu queria enfatiza
quios realizados na Universidade de Heidelberg, entre 1995e ra al-
teridade das atitudese fenómenos em questão, subordinand
1999, para os quais meu amigo muito admirado, o classicista o-
-os ao conceito de “poética da filologia”.
Glenn Most, tevea gentileza de me convidar. O projeto de
No entanto, logo percebi que referenciar observaçõe
Most erarevisitara história dos clássicos, sua própria discipli- s desse
tipo com a fórmula “a poética de” tornou-se convencional
na acadêmica, seguindo ashistórias das quatro práticas filoló- e
chato na última deCada." Ao repensar minha escolha,
gicas básicas: identificação de fragmentos, edição de textos, comecei
tambéma entender que a noção de poéticaimplica a
redação de comentários históricose ensino. Esse múltiplo re- cono-
tação de uma regularidade — talvez até uma
torno às tradições de um veneravel passado acadêmico pre- previsibilidade
— que não se encaixaria na característica da iTlínha
tendia produzir inspiraçõese orientações para o futuro dos descoberta.
Mas o que exatamente eu vie por que acabei chamandoo que
clássicos como disciplina.
descobri de “os poderes da filologia”?
Como nãosouestudioso dos classicos, fui designado para
Deixem—me começara resposta arrasadaa essa dupla
fornecer materiais contrastantes da história do meu próprio per-
gunta confessando que a noçao de poder que uso
campo acadêmicoe de suas disciplinas, ou seja,a partir da aqui esta
longe da usada por Michel Foucault, que agora
história do romancee das literaturas alemas e, também, da desfruta de
Uma popUlaridade sem fim entre os humanistas.
DO contra-
literatura comparada. No entanto, apesar das minhas melho- rio deste autor, acho que sentimos falta do que
é característi-
resintenções, logo desisti. O que me fascinava cada vez mais co do poder desde que usemos esta noção
denrro doslimites
na analise das principais praticas fllológicas no colóquio de cartesianos das estruturas, produçãoe usos do
conhecimento.
Heidelberg era uma camada de investimento entre os estu- MinhacontraprOpOsta é definir poder como
o potencial de
diosos envolvidos, camada talvez pré-consciente, que parecia OCtl à dO Ou bloqueio de espaços Com corpos.
Ao apresentá-lo
contradizera autoimagem da filologia como um trabalho in- COmo potencial, su giro que o poder — mesmo o
usopolíti-
telectual laborioso (para nao dizer extenuante). Certamente co ativo do poder— nem sempre tem quep
roduzir violência
nao fuio primeiro observadora tomar consciência dessa ca- (violência seria, obviamente,a transformação do
poder como
mada. Desdea Antiguidade, por exemplo, discussões sobre
edição de texto incluíram uma pressão liberal que reconheceu
a importância da imaginaçao do editor paraa tarefa da recons- ” ”°u"'Opni*°,v°rE,i,6p,ü
'!spe’ '!ca (B•rcc1on• Eu° zc!opedi• Baitao nick,
truçao biológica. O que senti poderia ser novoe provocados t994-95). ç,v. f] } g,2;
The pl' !olog ’•!* e t*q °fy*e ihe erica@ig afg iexi at y, qt d,t
sobo foco de minha própria descoberta; no entanto, foia im-
pressão de que, como camada daspráticas rlológicas centrais,
30 MANS ULRICH GU+BRECHT

um potencial para o desempenho). Eu insisto apenas em que ' mento físico mediado pelo espaço com as coisas do mundo
o poder, por mais mediado que seja, deve sempre sebasear na (incluindo textos), e que esse desejo de presençaé o funda-
superioridade física — e, portanto,é inevitavelmente heterôno- mento sobre o quala filologia pode produzir efeitos de tangi-
mo em relaçao ao que pode serconsiderado uma característica bilidade (àsvezes, até de realidade).
estrutural ou um conteúdo da mente humana. Em discussões com o hHtOriador de arte britanico
Stephen
Isso, no entanto, ainda não trata da outra questão decisiva, Bann entendi como fragmentos materiais de artefatos cultu-
que pergunta como aspraticas filológicas podem estar relacio- rais do passado podem desencadear um desejo real de
posse
nadas de forma não metafórica ao conceito de poder (e ao e de presença real, um desejo próximo do apetite físico.'2 A
conceito de violéncia). O que venho trabalhando nas praticas editfio de texto, por outro lado, evocao desejo de incorpo-
filológicas — como seulado oculto, vivoe verdadeiramente rar o texto em questão, que pode se transformar no
desejo
fascinante —é um tipo de desejo que, por mais que semanifes- de incorporar tambémO autor deste texto. A redação de
co—
te, sempre excedera os objetivos explícitos das praticas filoló- mentarios históricos é motivada pelo desejo de opulência
e
gicas. Além disso, em cada caso específico, esse desejo evocao por suas correspondentes dimensões geométricas, ou seja,
as
corpo do filólogo, juntamente com uma dimensão do espaço margens vazias ao redor do texto sobre o qual se
comenta.
que,à primeira vista, parece ser estranhaa qualquer tipo de Historicizar significa transformar objetos do passado em
ob—
pratica acadêmica dentro das humanidades. O que desejo dis-
ietos sagrados, isto é, em objetos que estabelecem, simulta-
cutir sob o tírulo de “os poderes da filologia” certamente soa neamente, uma distânciae um desejo de tocá-los.
O ensino
como perturbador dentro da imagem acadêmica oficiale da
autoimagem da pratica filológica. Ao mesmo tempo, acho que
é perfeitamente adequado falar desses desejos como “evoca-
capítulo ”Identificando fcagmentq ; 'yqt
dos” pelo trabalho filológico, já que eles virãoà tona inevita-
wefri, ed. Glenn MO6r ÜottÍf1@6n Vandenhoeck* R uprecht, 1997), ?15-
velmente, independentemente das intenções. A que exata- 27. O8 títulos de minhas quatro coniribui9Ôes seguintes para p5r cedimentos
do
mente esses desejos se refereme o que eles anseiam? Tenhoa colóquio du Heidelberg •°guiramo mesmo padrao sintético: ”Desempenho
suas fun—
§õ€S cOm rzio! Sobte áâ ra Dâatl( K edição de texto o desejo de
impressão de que, de maneiras diferentes, todas as práticas B- tcsisténciaà teoria“
identificaçao

iológicas geram desejos de presença,” desejos de relaciona- Vandenhoccke Ru precht, 1998). 237-50; ”PzeeÇCÁA SUE @9rgens! Sobtc
comentários
Glenn Most (Giiitingen: Vandenhoeckc
Ruprecht, t999), 443-53; ”De
1 i. Essaé a perspectiva da qual meus ensaios sobre os “poderes dz filologia” são com- Movimentos da Historiciza93o,
plementares ao próximo livro, The Produrfi»« af Preseiice: •Wa Sileiit Sile cj Meoiiig
' u 'r*c*c, 200j›. 36s-7s; "Vivo suac pcr;¿„‹;, „j,
(Stsnfocd, Califórnia: Stanford University Press, 2003). [Produtsu de yieseti a:a
' “""‘° f lologin '°‘°° ° P°° ••° 'poderia se tornar”.
guev se›itidu mao c‹›rse2iie iraiisini'ii'r. Traduçào de Ana Isabel Soarcr. Rio de jz neiro:
‹tla &fY/ ed. Glenn MOSt (Ciittingen:
Contraponto e PUC—Rio, agosto de 2010. 206 p.] 'U'andenhoccke fLuprrcht. 2002), 253-69.
32 HANS ULRICH GUMBRECHT
@# poderes dá filologia: din ¡tg d" *°nhecimento textual
33

acadêmico bem compreendidoe bem-sucedido, por fim, exi-


A meu ver, estas formas podem serdefinidas cOmo aqueles
ge do(a) professor(a) que ele ou ela se abstenha de transfor- ob-
jetos que escapariam da longa sombra dashumanidades
mar todo o conteúdoe todo o fenómeno ensinado em um como
Weisteswissenschaften, isto é, como“Ciências
objeto prê-analisadoe prê-interpretado,o que significa que do espírito, que
desmaterializam os objetosa que se referem, im
esses conteúdose esses fenômenos, como desafios em uma in- pOssibilitando
a tematiZaÇÃO dos diferentesinvestimentos dO Corpo humano
domada complexidade, nunca podem perder completamente
em diferentes tipos de experiência cultural.O que as prática
seu status de objetos físicos.A maioria desses tipos diferentes s
filológicas evocam como múltiplos desejos de presenç do fi-
de desejo de presença evocados pelas praticar Biológicas tam- a
lólOQO SÃO, Afinal, reaçôes que dificilmen se encaixa
bém coloca em jogoa energia da imaginaçao do filólogo. Essa te r em
alguma autorreferenciaO fCÍãl das humanidades na academia.
coemergéncia da imaginaçao com o deseo de presença nao é Nesse sentido, estaro mais longe possível da disciplin
de forma alguma aleatória, poisa imaginaçãoé uma faculda- a e da
autoimagem da filologiíl, mesmoprogramaticamente,
de mental comparativamente arcaica,o que significa que ela poderia
fazer surgir (talvez até criar) um novo estiloi
possui uma proximidade específica com múltiplas funções do ntelectual. Esse
estilo seria capaz de desafiar os próprios limites
corpo humano. das humanida-
des, oriundos de sua inscriçao no paradigma
Surpreendentemente, para não dizer de maneira estranha, da hermenêutica
(que tambéllt significa o legado metafisico
também poderíamos afirmar que essas ambiguidades —a ten- da filosofia oci-
dental) durante asdécadas em torno de
1900." Reconhecer os
são,a interferênciae a oscilação que as praticas filológicas sao poderes da filologia dentro —e em
detrimento — do contexto
capazes de libertar entre efeitos mentaise efeitos de presença dessa tradiçao acadêmica é como apreciar
algo perturbadore
— aproximam-se, em sua estruturae em seu impacto, de de- fascinante,uma belae desafiadora exibição de fogos de artifi-
finições contemporâneas da experiência estética.'3 No entan- CIO COIR V3rÍOs efeitos especiais.
to, emboraa associação entre filologiae experiência estética
venhaa aumentar o estranhamento do conceito tradicionale
imagético da filologia, certamente este não é o aspecto da mi-
nha reflexão sobre os poderes da filologia que mais me fascina.
Neste livro, o que me interessa especialmente (masé claro que
todo leitor deve sentir-seà vontade para encontrar sua própria
trajetória de leitura) sào formas novase alternativas, sobretu-
do formas não interpretativas, de lidar com objetos culturais.

13. Ver, para esse aspecto,o c zpitulo3 de Pr•dutão de presença.


cApTULO 1

Identificando fragmentos

Uma dasentradas mais curtas da Jun de mão única [FsinónhnstrdQe],


de Walter Benjamin, refere-sea uma memória visual do cas-
telo de Heidelberg: “CASTELO DE HEIDELBERG: ruínas
cujos destroços apontam para o céue tendema parecer duas
vezes mais bonitas nos dias claros, em que os olhos, através de
suas janelas ou acima delas, encontram asnuvens que passam.
Através do espetaculo móvel que esta no céu, a destruição
delas confirmaa eternidade desses detritos.”'
O que provocaa reflexão de Benjaminé a percepção de um
contraste entre duas temporalidades. Por um lado, há a rápida
mudançae o surgimento contínuo de formas nas nuvens que
passam sobre o castelo. Por outro, existe, como atributo dado
aosescombros do castelo,a eternidade, aquele dégradé zero da
temporalidade que,a rigor, exclui qualquer mudança no tem-
po. Sempre que leio o breve texto de Benjamin (ecom todaa
devida reverência), nfio consigo seguir completamentea asso-
ciação que ele sugere entre ruínase eternidade. Mais precisa-

1. Walter Rcnjamin, Sitii*abnsiraJe, em Geiainmelte Stlir teu, v. 4, pt.1 (Frankfurt am


Main: Suhrkamp,1972), tt3-t48 (citação em 123). Todas as traduções de outros
idiomas que nãoo inglés são minhas (nota do autor). [BENJAM IN,W. Ana de
sumido muitoe ii/diiria em Berlim pvr rolha âe 19GO. Trad. Claudia ]. Fischer. Lisboa.-
Ed. Relógio D'Âgua, 1992].
HANS ULRICH GUMBRECHT

mente, nao entendo por que uma consciência dos efeitos con-
inclui momentos que marcam um evento porquea percepçao
tínuos da destruição [ZerstáYung] deve levara uma impressão
deste evento exigiria um contraste entre elee algo que
de eternidade [Ewigkeít], mesmo queesse processo de destrui- nao é
movimentoe transformação. Sem nunca atingir um
ção seja “duplicadoe enfatizado pelo espetaculo transitório” estado
que associaríamosa conceitos como “concltlsâo” ou “descan-
[“bektáftigl durch das uergàngliclie Scliauspiel”] das nuvens no ceu.
so”,o jogo de emergire desaparecer no céu também
Recentemente, tivea oportunidade de observar as nuvens nosrecu-
saa correspondente sensação de alívio.
passando por cima dasruínas do Castelo de Heidelberg, mas
Benjamin nfio parece ver nenhuma especificidade
et:ri vez de lembrar da eternidade, esse espetaculo me fez sentir histórica
na experiência inspirada pelas nuvens acima do castelo
a tensão entre um ritmo de mudança particularmente rápido de
Heidelberg. E não podemos realmente imaginar,
(o das nuvens que passavam)e outro ritmo de mudança (odas digamos,
Empédocles observando nuvens que passam sobre as
ruínas) tão lenta que só posso evoca-la imaginandoo castelo ruínas de
um templo e pensando no próprio tempo? Ou,
em seu antigo esplendor não destruídoe naquele possível fu- nesse caso,
Abelardo seguindoo mesmo tipo de espetaculo
turo em que os destroços nao serão mais reconhecíveis como sobre os es-
combros de um mosteiro abandonado? Por mais
objetos que pertencerama um edifício. Que é a transformaçao verdadeiro
que seja, tentarei argumentar que existe uma afinidade
contínua das formas das nuvense a lenta transformação do espe-
cífica entreo objeto da reflexão de Benjamin (in
castelo? O compartilhamento de substancia material —e o que dependente-
mente da COnClusào que o autor tira desta reflexao)
talvez tenha atraídoa atenção de Benjamin, embora elenao e uma
peça-chave no repertório filosÓÚCO do intelectual
consiga realmente apontar para essa experiência —é a conota- ocidental
DO SeCDlO XX.^ Para tecer esse argumento, terei
ção ou, antes, o sentimento quase visceral de uma falta. Muito de formular
uma tese muito ampla sobrea cultura da Idade
irresistivelmente, as ruínas de um edifício nos fazem pensar na Média.
A Cultura cristfi medieval estava centrada na
crença coletiva
construção de um estado de sua totalidade que não mais exis- da ]3OSSibi1idade da presença real de Deus entre os
seres huma-
te.E que tipo de ausência evoca o espetaculo das nuvens que
passam?É a frustraçao advinda de um processo que nada mais
YP8rrtcu ensaio “R hyrhm and
é do que um contínuo surgimentoe desaparecimento de for- Hzns Ulrich Gumbrecht tt.
mas, uma transição contínua em que essas formas nunca ga- UniversitY *». 1994, 170-82).
nham estabilidade.2 Esse jogo de emergire desaparecer não 3. Em ger•1‹ Benjamin estava
tratados em EiHbaIiiisya
Berlim
duça í Claudia J• FiS€her. Ed. Relógio D’Ág»•,
abril de 1992J
2. N*o estou sugerindo que “os fenômenos temporais, no sentido apropriado”
(Cambridge,h'tassachusetrs: Harvard University
(“feitobyekte im reinen süiii”, assim chamado por Husserl} sao incapazes de ter uma 1997), 9ã-110 6o hey.
forma.A sua modalidade de alcançar fotmaú o que percebemos como um “ritmo” de ja-
aeieo: Record, 1999].
Dt N S U L R IC H G U M B R E C HT p,;uáeres da filologia: dinâmica de confnecimento textual 39
?8

pataa missa,destinados varios dispositivos dedicadosà produção de presença res-


nose em varios rituais, com destaque
essa presença real.‘ pondem, sem nunca satisfazê-la totalmente.‘
a produzir e renovar constantemente
ente ou talvez até O esforço sempre apaixonadoe àsvezes desesperado da re-
A presença, nesse contexto, nao exclusivam
e o do tempoe contém, pa- solução conservadora, duranteo início do século XX, para
principalmente, pertenc à dimensã
aO de roximidade espaCiãl. ' recuperar um “terreno estável” paraa existência humana e,
ralelamente, um° reivindicaç
que quer que seja que, em determi- mais especificamente,a insisténcia de Heidegger na questão
Chamamos de“presente” o
o suficiente para chegar ao do Ser como uma questão ontológica, juntamente com o as-
nado momento, parece próximo
CriStãO, pecto da aíetheia, segundoa qual o auto—ocultamento do Ser
flosso corpoe a seu toque. A p resença real do Deus
seu corpoe beber seu sangue. não pode seratribuído, como efeito,à açfio de qualquer sujeito
portanto, torna pOssível comer
a partir do Renascimento, humano’ — todas essas intervenções e posições atestam uma
Na cultura moderna, em contraste, renovada preocupaçao filosófica pela presença em uma cul-
de presença real em
a representação prevalece sobreo desejo
moderna, portanto, tura que confiava (e continuaa confiar) principalmente em
vários níveis fenomenais.A representaçao
presente novamente o que, depois de instituições de representação. Mas haveria algo que faça com
çlãoé um ato que torna
dVÜã 8D* que nosso anseio contemporâneo por presença seja diferente
Estar
presente, agora está and ente. Em vez diSSO,â ã
Culturais que substituem ' daquele da cultura medieval? Enquanto esta cultura acredi-
bentende todas âS táticase técnicas tava na possibilidade de satisfazero desejo de presença real,
p r big Significante muitas vezescomplexo (e tornamdispCiní-
no fornecendo, repetidas vezes,a certeza da verdadeira presença
peJ)C mo “referencia” o que nâo Esta presente no espaço ou
roblematicas que possam de Deus, nossa relação contemporanea com a presençaé as-
tempo. Se,pCir todãs aS totalizaçõesp
Médiae da Modernidade sintomatica. Parece que sentimos que estamos constantemente
implicar, essas caracterizações da Idade
minha tese inovadora esta na em situações de presença crescente ou decrescente do mundo,
podem parecer convencionais,
sem nunca teresse mundo completamente presente. Jean-Luc
afirmação de que, desde o momento histórico que chamem8
Nancy descreve essa relação bidirecional com o mundo como
de “crise de representação”,’ por volta de t800, nossa cultura
renovado de presença real, um desejo ao
desenvolveu um desejo
6. O fenômeno social talvez mais óbvio hoje em respostaa esse desejo de presençaé
hout Matt° •• ° •‘ ” ’“’“'”’
a populaeid•de do esporte (texto como praiica ativo qu anto conto espet*c uloa ser
ng von assistido), enquanto as m últiplas riridias tíc nicas de comunicação sào, na melhor
578-92;• “Eiriführung. p5zenieru
das bipóteses. ainbíguasz esse respeito. Pois eles prometem (pense, por exemplo,
ttt\cr, t996),33t-37. na TV) a presença real sem tornar tangíveis as coisas que apresentam.
7. Martin Heidegger, Seia mit Zc:r, 15' cd. (Tiibingcn: Niemeyer, 1984), 44. [HEI-
ver K•ntin Behnk0, “Krise der ReprAs*81••*i°°"' DEGGER. M. Ser e tempo. PartcsI e II. Trad. Marcia S* Cavalcanre Schuback,
pliil«pplii‹, <d. Joachim R8*ttç Karlfried Gründ°r• PetrSpolis: Vozes. 2002].
Buchges {lsChHft, 1992), cob. 846-53-
40 H A P4S U L R I C H G U IHB R E C HT

4J

“nascimentoà presença”;' uma relação de imediatísmo com que foia crise da representaç ão, o colapso da distância
um mundo queparece estar sempre emergindoe seafastando. entre
representaçaoe mundo, que trouxe de volta o desejo
Visto por esse ângulo, finalmente, o espetáculo de nuvens de de pre-
sença. Nessa perspectiva, o próprio fragmej-ltC* aparece
dois níveis acima do castelo de Heidelberg transforma-se em como
uma metonímia da presença recuada.A obra de restituiç
uma semelhança do nascimento com a presença. Enquanto os ão, ao
contrario, dedicadaa um tronco ou a um fragmento
textual,
destroços do castelo fazem parte de uma totalidade sempre re- pertenceria àquele contínuo surgimento e desaparecime
nto de
cuada, que ainda pode nunca chegar ao ponto de seu autoapa- formas de presença através das quais as nuvens acima
do caste-
gamento final, as nuvens sfio um surgimento potencialmente lo de Heidelberg fascinaram Walter Benjamin.
interminável de formas que nunca produzirfio um completo OIItO sabemos que algoé um fragmento? O
termo aplica-
efeito final.9 -sea qualquer objeto que identificamos Como parte
de um to-
Sendo parte de um processo extremamente lento de pre- do maior, sem implicar, no entanto, que essa parte
de um todo
sença recuada, o castelo de Heidelberg, como Benjamin o maior deveria ser uma metonímia que representa
o todo.E
viue como nóso vemos, temo status de um fragmento, um como tomamos consciência daquele todo ao qual o fragmento
pequeno passo adiante em sua “destruição”. Se lembrarmos pertence? Certamente, nao podemos percebê-lo porque,
por
que o fascínio ocidental por ruínase fragmentos passou por definição, ele nào pode estar presente junto com o
fragmen-
um momento de intensificação durante as décadas seguintes to. No iníCio, deve havera intuiçao de uma falta
advinda da
ao apice do lluminismo, isto é, durante as décadas por volta contemplação de um objetopresente. Alguém deve
tersidoo
de 1800,e se levarmos em conta que essas décadas também primeiroa sentir que as montanhas ao redor do vale
central do
foram caracterizadas como um momento histórico marcado parque de Yosemite são apenas fragmentos de uma paisagem
pela crise da representação, descobriremos um terreno episte- que existia anteriormente no mesmo local. NO caso de
uma
mológico — ou, pelo menos, uma ressonância epistemológica paisagem, imaginara totalidade do que está presente
apenas
— para o fascínio que acompanhao trabalho arqueológicoe COmo fragmento deve depender da probabilidade
geológica
filológico com ruínase fragmentos. Pois podemos especular e física, ã]3OÍáda talvez por certo tipo de julgamen
to estético
que pode virda lembrança de outras monranhas
e de outros
vales. ParaO caso de qualquer artefato que
8. Ver Jean-Luc N ancy, The BiitJi iv Hieseiire (Stanford, Cali J: Stanford University consideramos um
Press, 1993). fragmento, imaginar seu estado de totalidade vira da
intençao
9. A relação entre totalidade/ completudee presensa requer algum pensamento sis- de um produtor. Uma vez que imaginamos, com base em
um
temático adicional. Por enquanto, associo presença completa com completude/ fragmento, uma gestalt que pensamos corresponder
totalidade, enquanto suponho que objetos temporais falando propriiment* (nuvens, (embora
por exemplo) sempre deixaraoa sensação d* falta, apesar de sua presença. O que QYOSSO JO o) à intenção primazia de um produtor, podemos
precisa ser elaboradoé uma distinçãoem rediferentes tipos de presença. começara estabelecer uma tipologia de diferentes tipos de
42 HA N S U L R 1C H D U M B R E C HT
p°d °* "°°8'° i•rücadeconRerúnegtq çyçqy 43

fragmentos, distinguindo princípios diferentes que podem ter


’ficil identificar um texco como UtTl fragmento, mas também
interferido com o produto da intenção original do produtor.
ue,uma vezqueo censore suas intenções sâo identtficados,
Todos sabemos, especialmente a partir da história cultural temos uma orientação particularmente rica para nossa tarefa de
do romantismo, que existem textos que primeiro identificamos ginaro texto completo. Finalmente,o que parece ser mais
como fragmentose depois descobrimos que seus autores fizeram tiaturalmente esperado como causas de fragmentação são even-
com que parecessem fragmentados. Nestes casos, chegamosà pe físicos violentos ou processos lentos de destruição,
indepen-
conclusão frustrante de que o texto originalmente identifica- dentemente de qualquerintencionalidade. As razões para esse
do como um fragmento corresponde exatamenteà intenção do terceiro tipo de fragmentação são potencialmente infinitas: fogo
autor. Imaginar, como hipótese de trabalho,o estado de com- e umidade; desbotamento da tinta usada paraproduzir um texto
pletude “virtual” que o próprio autor deve terimaginado para e deterioraçao do papiro, pergaminho ou papel; destruiç
ão de
desenvolver uma forma textual capaz de produzir um efeito de edifícios em cujasparedes foram escritos textose (especialmen
te
fragmentação pode nos ajudara entender, entre outras coisas, frequente durante a Idade Média) reciclagem de materiais
de
por que o autor teveo objetivo de produzir esse efeito. No en- escritaja usados, tendo em vistaa produção de novos códigos.
tanto, não pensaríamos em “restituir” essa completude virtual Mas deixe-me abreviara questão segundoa qual esse
ter-
(que nunca deveria se manifestar) como uma tarefa filológica ceiro tipo deve sercanonizado como fragmento no
sentido
que valessea pena. Pelo contrário, tal esforço pareceria ingê- adequado porque nãoé nesta direçao que meu argumento
ira
nuo, pois, afinal, um fragmento destinado por seu autora pare- caminhar. O que todos os fragmentos resultantes de
causas
cer um fragmento náoé um fragmento. Essa primeira reflexão fsicas compartilhamé lima margem — podemos chama-lo,
no contexto de nossa tipologia elementar deixa claro que, para de forma mais dramática, uma cicatriz — em que o fluxo
qualquer fragmento que mereça este nome, pressupomos uma de um texto para aleatoriamente e em que normalmente po-
violenta intervenção que causoua diferença entreo texto (ou, demos descobrir traços da causa física de sua fragmentaç
ão.
mais geralmente,a forma) pretendido pelo autore o texto que Tais cicatrizes sao inevitáveis para fragmentos do
terceiro tipo.
nos foienviado. Essa violência pode advir de uma intenção que Ar gumentarei que a existencia deles apresenta
uma diferença
confJita com a intenção do autore tem à sua disposição, além portante, com base em um f gmeIlt ,em relação
a como
disso,o poder superior de se impor.É óbvio que este segundo imaginamosa totalidade de um texto. Poisa percepção
de tais
caso de fragmentação incluie ilustra o que chamamos de “cen- cicatrizes inudaa nossa atitude em relação ao texto:
eles cha-
sura”. Tomamosa fragmentação através da censura para sugerir, Olãma atenção para sua exterioridade ou, em
outras palavras,
primeiro, que o censor está ciente do que ele deseja eliminar e, ãfiã 5Ua materialidade." Nesse sentido, as convenções
diacrí-
segundo, que ele geralmente deseja que o texto censurado não
pareça fragmentado. Isso significa que pode serparticularmente 10. David Wellbery, ”The Extetiority of Wríting, Staiff›zy
>*!•**'• <i••9 (t992). 11-22.
44 H A N 9 U L R IC H G U M B R EC HT

4S

ticas com as quais representamos os elementos não textuais de


lidade da análise de Sartre quanto os limites dessa abordagem
uma fonte original em uma edição (por exemplo, os colchetes
podem explicar por que, mais de meio século após sua primei-
indicando onde o texto termina no original) nào podem ser
rapublicação, esse tratado aindaé a referência mais importan-
equivalentes ao que vemos quando visualizamos o original.
tepara qualquer discussão filOSÓfica sobrea imaginação como
Para percebera exterioridade de um texto, devemos suspender
uma Faculdade humana.'' Um dos primeiros motivos descriti-
nosso habito automatico de decifra-lo. Em vez de constituir o
vos que Sartre desenvolvedetalhadamente é a experiencia de
significado que um autor ausente queria transmitir, nos con-
como asimagens produzidas pelaimaginação sempre se apre-
centramos nas qualidades sensuais do texto como um objeto
sentam como Completas desde o primeiro momento de
materialmente presente. Podemos tocar, acariciare talvez até sua
aparência: “Em nossa petcepçào, uma forma de conheciment
comer o fragmento em sua presença material, podemos até o
esta se formandolentamente; em uma imagem, no entanto,o
tentar destruí-lo ainda mais. Como jáanunciei, ressalto esse
conhecimentoé imediato. Vemos, entào, quea imagem
aspecto com tanta ênfase porque quero mostrar que essa cons- ofere-
ce-se integralmente desdeo primeiro momento de suaapa-
ciência do fragmento, em sua presença material, tem conse-
réncia.”'2 Podemos usar esta observação para determina
quências importantes parao funcionamento da nossa imagi- r qual
lugar estrutural específico deve ocupar em nossa imaginaçã
nação. Poisa presença material estimula nossa imaginação na oa
restituiçao de textos ou de outros artefatos. Desde o
pratica da restituiçao de texto, sendo um objeto do desejo que início,a
imaginaçao fornecea tdeia de uma totalidade, de um télos
Jean-Luc Nancy chama de “nascimentoà presença”. Outra pa-
rao qual o trabalho filológico ou arqueológico pode serorien-
maneira mais metafórica de descrever o mesmo relacionamen-
tado. No entanto, é importante sublinhar que a
to seria invocaro feitiço mágico ou conjurar. O texto, como imaginação
não é Capaz de produzirintrinsecamente qualquer
objeto material, aumenta nossa capacidade de imaginar um concretiza-
ção, diferenciação ou mesmo correção da primeira
mundo do passado, embora,é claro, nào exista uma relação imagem
que ela projeta: “Se você tocassee transformasse, eq
mimética entre esse mundoe a forma do texto como objeto seupen-
samento, uma imagem de algo que tem uma forma
material. Mas em vez de tentar recorrer aindaa mais metafo- CÚbica,e
ras, tentemos conceituara interação entrea exterioridade dos
objetos culturais (especialmentea dos textos)e o funciona-
mento da nossa imaginação. perspetiv* Ant hropologie (Fraok furt am M t in. Sub r{tzmp t99 t) 52l [ISER, A.
Em uma visao estritamente fenomenológica, isto é, no Janeiro: EdtlERj, 2017]. O t ítulo completo do
° • ° de Sartreé L'fmagiiiaire:
contexto de uma analise que se restringe às capacidades autor- Paris: Gallimard. 1940. {SARTRE,
referenciais da mente humana,é quase impossível vencer o 8º ""a2iiiaçào. Txad. Monica Stzhel.
PgfzópoJis.-Editora Vozes, 2019a.
classico ensaio de Jean-Paul Sartre, L'lmaginaire. Tantoa qua-
12. S«rtrey Ê’/M4gi7Ioi/r, t9.
46 HANS ULR CH GUMBRECHT . poderes da filologia: dinâmica de conhecimento textual 47

ela mostrasse sucessivamente seus diferentes lados, você nào ‘cionar o objeto como inexistente, ou ausente, ou existem-
teria feito nenhum progresso no final deste exercício; nao te- emoutro lugar; ele também pode “neutralizar-se”, isto é,
ria aprendido nada.”'" lsso parece sugerir que, para ir além da colocar seu objeto como existente. Duas dessas formas sao
primeira imagem quea imaginação nos apresenta, visandoa mpromissos;o quartoé uma suspensão ou uma neutraliza-
restituir uma totalidade original, precisamos estimular cons- do que é posto.O terceiro inclui uma negaçao implícita
tantemente nossa imaginação com elementos de conhecimen- existência atual do objeto. Tais atos de postulação nun-
tocontextuale com observações detalhadas referentes ao frag- acrescentam nadaà imagem (uma vez constituída): o que
mento do quala restituição parte. Embora seja possível india- nstituia consciência de uma imagemé o atodepostulá-la
mar e alimentar assima nossa imaginação, nunca poderemos Assim, se as imagens produzidas pela imaginação impli-
determinaro quea imaginação acabara por apresentarà nossa m uma dupla falta, não apenasa falta de especificação men-
consciência, pois isso foge constantemente ao seu controle. ’onada sobre seu status ontológico, mas tambéma falta de
Sartre explica essa impossibilidade de guiar nossa imaginação ’ferenciaçãoe desenvolvimento descritivo (“você não teria
(que elechama sua“espontaneidade”) como algo relacionado Aprendido nada”),é plausível assumir que amarrar nossa ima-
ao fato de que a estrutura intrínseca e a identidade da ginaçãoà percepção de um fragmento em sua determinação
imaginação não estão disponíveis para nossa introspecçfio. ; material fornecera alguma compensaçao por essa falta. Quero
Conhecemosa imaginação apenas através de sua saída: “A enfatizar, mais uma vez, que, no caso da restituição de texto,
consciência perceptiva aparece para si mesma como passiva. ã concretude do fragmentoa partir do qual começamos ofere-
Em contraste, uma consciência imaginária aparece para si ce possibilidade de alimentar nossa imaginaçao com observa-
mesma espontaneamente, isto é, como uma espontaneidade ções cada vez mais detalhadas que podem resultar em imagens
que produze preservaa imagem do objeto em questão."” também cada vez mais detalhadas do texto em sua totalidade
Finalmente, nossa imaginação nao especifica, em grande original. O status ontológico de um texto restituído é bas-
parte,o status ontológico (poderíamos também dizer “o grau tante complexo, mas sem ambiguidade. Embora postulemos
de realidade”) das imagens produzidas: todo estado de cons- a existência do fragmento tanto para o presente quanto para
ciência coloca seu objeto, mas todos fazem issoà sua maneira. o passado (desde o momento de suaorigem), não postulamos
A percepçao, por exemplo, coloca seu objeto como existente. analogicamentea existência da parte conjectural do texto,a
A imagem também inclui um ato de crere um ato de postu- parte que restituímos com a ajuda de nossa imaginação. Paraa
lar. Esse ato pode adotar quatroe apenas quatro formas: pode parte conjectural, postulamos uma existência no passado, mas
é claro que não postulamos sua existência em nosso presente.
13. Ibid.
14. Ibid. 26. 15. Ibid. 24.
48 H A N S U L R IC H G U M B R E C HT
Ch poderes da filologia: dina= ica d» 9QQheciMento ceptpy
49

Deve ficar claro que esses dois aspectos da complementa- no objetoé através da resposta do organismo àSsuas
ridade entre fragmentos como objetos de referênciae nossa próprias
fes]3OStãS.O objeto distante passaa ser o que podemos
imaginação como faculdade de restituira totalidade de ob- fazer
com eleou por meio dele, ou o que ele pode fazer
jetos mutilados náo são idênticosà intensificação de nossas conos—
co. Dizer que existe instantaneamente Corno o percebemos
capacidades imaginativas através da presença material de ob- é apenas exigir confirmaçao do queé dado pela
jetos, uma intensificação que, metaforicamente, caracterizei percepção.
Essas respostas intencionais existem no organis
mo como ten-
como “conjuraçao”. No mundo daperformance teatral, por dênciase resultados de respostaspassadas,e o organismo
exemplo, uma técnica padrâo para aprimorara imaginaçao res-
pondea elas em sua percepçao. Chamamosf e
r quentemente
dos atores envolve atribuir-lhes exercícios físicos e, acima flssã ÓltÍlna irriagem de resposta.Í7
de tudo, dar-lhes objetos para brincar." Na filosofia do pre- A ideia de Mead sobreo “objeto distante” que
passaa ser
sente, George Herbert Mead inventa uma impressionante o quepodemos fazer com ele ou, por consequência,
o quê Ele
narrativa quase mitológica na qual ele torna plausível o au- pode fazer conosco” tem uma semelhança interessante com
mento do impacto da presença de objetos materiais em nossa o conceito de Heidegger de “feitoÀ lDÃO”t" lStO e,a ideia de
imaginação. Mead associa “imagens” (estaé sua palavra para que em nossa prática cotidiana exp
erimentamos o mundoe
“imaginação”e “imagens imaginadas”)a um estagio na evo- seus objetos corno sempre jainterpretado Eles sempre
s. sfio
lução do serhumano. “Estímulosa distância" (percepções de interpretados do angulo de nossas possíveis necessidades
e das
objetos espacialmente próximos, mas não em contato físico possíveis funções que podem cumprir. Quase nunca
verrios
com quem os percebe), de acordo com Mead, desencade- tima bicicleta como uma construção notavelmente
geomé-
arão imagens da situação perigosa ou desejável de contato trica feita de metale borracha.A percepção desse
objeto pa—
corporal imediato (“experiência de contato”). Supôe-se que rece vir com a ima ginaçfio de andar de bicicleta.
Além disso,
essas imagens estejam imediatamente conectadasa ativida- quase todas, se não todas, essas imaginações através
das quais
de eferente do ner vo motore ao movimento muscular (de
fuga ou agressão): objetos perceptivos, com suas qualidades 17. George He bart Mead, The Pfiilps0pfiy p/
ihe tesetit
sensoriais, pertencem ao domínio da consciência; paraa ex- t959 (t 932 J), 74. SESI dizCr que o v•Ior de es r tivs
de Mead por m inhz propria
periênciaa distância existe como promessa ou ameaça da ex- • gu° •°‹*‹•° ’•= r ••• •• ••d•• v r ,om „
periência de contato,e a maneira pela qual esse futuro entra e•i coerência um número de
para minha própria discussão
sobreesse tópicOe (2) ao fazé-IO, ele desenvolve
’ "P!”‹•çx“o oi*is pI*usíve} qu*
conheço pela exper énciz de quea proximidade «
* P" * PG•o d• objetos m*ccri«is
16. Ver Andreas Bahr, íinngi»ativii «rd Kürper: Sim &iir«g z«r Tmevrie rtcr /inagi'iia/ivii P° °°• •° °8*°• nosu lirisgJn zç ap.
mir Beispielett aus Ter zeitgeiiiissiscliei' Stliauipiefitiszeiiieruitg (Bochu m, Alemanha: 18. Heidegger. 5t¡„ ›'8 •'*,15, 16. [HEIDEG GER. f\4. *"*"'F‹'.*•'icsIe II,
Brockmeycr, 1990), especialmente 63, Sl. tradução de Mz rcia Si c•• i‹•nte Schuback,
PPt8ópolis: Vozes, 2002].
HA N S U L R IC H G U M B R EC HT poderes da úlologia: dinamica de conhecimento textual
50 5t

o mundoé interpretado implicam, como no exemplo da bi— ' esejoe da fome, asfamosas observações de Jacques Lacan so-
cicleta,a participação de nossos corpos. Aqui, então, parece bea “voracidade do olho humano” [“l'oeil plein devorocite”)2'
estaz o nó que ligaa presença tangível de objetosa uma ins- kirnecem-nos um repertório de conceitos que têm a virtude
piração da mentee a uma ativação do corpo.É a percepção dicional de nos trazer de volta de outras considerações gerais
sensual de tais objetos materiais que desencadeia nossa imagi- sobrea dimensao do fragmento. Pelo fato de que a tese de
nação,e é nossa imaginação que desencadeia movimentos em Lacan segundoa qualo objetivo último do desejo humanoé
direçãoa uma união total com esses objetos (agressão: coma ' 9mpre o desejo do Outro, com este desejo manifestando-se
seufragmento!) ou em direçãoa uma separação (fuga: escape por gestos de autoconsciéncia ‹“une sorte de désiró í’Autre, au
de seu fragmento!). &›ut duquel est le donrier-a-roir"), tem-sea importante implica-
Segundo Mead, no entanto, essas reações pertencema um ção de que o Outro nunca está completamente presente ou
estagio inicial do desenvolvimento da humanidade, um es- visível. O que realmente vemose o que motiva nosso desejoé
tagio que só aparece em ocasiões específicas na existência do Sempre apenas um fragmento, “uti oójet petit o”, na linguagem
Homo Sspíens. Normalmente, os produtos da nossa imagina- de Lacan, ainda um fragmento atraente porque o tomamos
ção sao transformados em conceitos,e esses conceitos suspen- como parte de uma completudee porque tememos que outra
dem a relaçao de imediatismo entre imagense movimento pessoa possua essa completude: “Essaé a verdadeira inveja.
muscular. Talvez aquelas raras ocasiões em que sentimos nossa Isso fazo sujeito empalidecer diante do quê? Na frente de uma
imaginaçãoe nosso corpo com vivacidade particular tenham totalidade que parece estar fechada,o que explica por que o
uma afinidade específica com a dimensao da experiência esté- pequeno ‘a’ se separa daquiloa que se apegae pode tornar-se,
tica. Não poderia serque muito do que chamamos de “subli- para outra pessoa, uma possessãoe um objeto de satisfação.”
me” tenhaa ver com certos objetos de percepçao que causam Concordo quea suculência de especulações similares possa
terror — em primeiro lugar, não porque sejam “objetivamen- parecer bastante exagerada — especialmente em relação ao que
te perigosos”, mas talvez porque (de acordo com a leitura de deveria sero campo de suaaplicação, a saber, a laboriosae
Jean-François Lyotard do Krítik der de Kant Urteifsfir4ft)" nos- altamente técnica empreitada da restituição de texto. Talvez
sa imaginação não é capaz de convertê-los em uma estavel eu deveria ir ainda mais longe com essa autorrelativização — se
e “sintética” figura? Por outro lado, o lado da agressão, do não fossea observaçao ricamente documentada de Stephen

19. Ver Jean- François Lyotard, Leçons sur 1’analytique du sublime (Pariz Galilée, 20. Veja, pa rao seguinte, “Qu'est-ce qu'uri tablea u?” (capitu lo IX), em janques Lzcan,
1991), p. 271. [LYOTARD, J. F. Lições sobrea A nalítica do sublime. Trad. I-r Sam iiiairr, firre XI: les quatre caiiceytsj att âainetiiaux de la psychanalyse (1964) (Paris:
Constança Marcondcs Césare Lucy R. MoreiraC ésar. Campinas,' •P •°•' Seuil, 1973), 120-32, esp. 130-31. [LACAN, J. O que é um quadro? lu: . O
9**l. [KANT. Im manuel. Cr ítica da faculdade do juizo. Trad. Valério Rohdene scmiiiiri», firrof 4: as quatca catceitos fuiulaineiitais âa pJiraiidfise. Trad. M. D. Magno.
Antônio Marques. 2’ cd. Rio de Janeiro: Forense WnÍverSÍt8rla. 2005}. Rio dejaneiro: Jorge Zaha1
H A N S U L R IC H G U M B R E C NT
Os poderes da Biologia: dinà• ica de coohecimenco cegtçy 53

Bann sobre “a existência do apetite oral como modelo paraa zcadêmico,23 nao usaã alaVra imaginaçao (ou qualquer
uma
apropriaçao de objetose fragmentos” especialmente durante de suas equivalentes alemas) uma Única vez nas mais de
qui-
os séculos XVIIIe XIX." Bann encoraja-nosa pensar que nhentas paginas de sua exposição. Issoé ainda mais in
trigante,
deve haver algo real (talvez até real no sentido lacaniano) na pois as descrições de Gadamer da “arte da interpretaçao
ge-
relação entre fragmento, corpo, imaginaçãoe experiência his- ralmente parecem quase exigir esse conceito. Veja,
por exem-
tórica, algo mais valido do que o apelo meramente ornamen- plo, seu comentario sobrea liberdade interpretativa
do histo-
tal de uma peça complexa com conceitos filosóficos.É por isso riador: pois do outro lado, do lado do “objeto”, isso implica
a
que Bann pode usar os resultados de sua própria investigaçao participaçãoe a exploraçao do conteúdo de uma tradição — em
de arquivo para uma descrição do “exercício da imaginaçao todas as suas novas OSSÍbilidades de significadoe
ressonância,
histórica” nos seguintes termos: “Começa com o quepode ser e enriquecido por Cãdadestinatário. Sempre quea
tradição
tocadoe prossegue por meio do poder talismânico do nome é feira para falar conosco, surffe algo qyC não existia
antes. Isso
acéa experiência da história como uma alteridade mediada. 22 pode ser exemplificad o por qualquer conteúdo histórico.
Seja
Apesar de todas as evidências teóricase empíricas que ates- uma obra de poesia ou oconhecimento de um evento
impor-
tam sua existênciae importancia, a relação entre imagina- tante,o que se dá
çaoe reconstrução histórica sempre causou desconforto. Esses res. Quandoa campanha da Iííada, de Homero,
oua da Índia,
sentimentos provavelmente baseiam-se na impressão de queo de Alexandre,o Grande, nos falam de uma
nova apropriaçãO
alto grau de reflexividadee autocontrole de qualquer método da tradição, elas sempre serfio mais do que algo em si
mesmas.
acadêmico não deve sermaculado pela imaginaçao, ou seja, Pelo contrário, como em uma verdadeira
conversa, apatece-
pela faculdade baseada em assuntos que apresentam uma forte onde sempre haalgo novo,algo que nenhum
dosqu e partiripatn
tendência a escapar do controle do SU ’eito. Mesmo Verdade de um diálogo poderia terentendida individualmen 2
te. ‘
e metodo, de Hans-Georg Gadamer, com sua generosidade já Nâo estou afirmando que Gadamer evite del
iberadamen-
proverbial em relaçãoa todos os tipos de operações analíticas teo conceito de imaginação, nem que ele cometa um erro
e estilos intelectuais que carecem do rigor classico do trabalho NO OIllltÌ-lo. Quero simplesmente enfatizar que essa cita9ào

21. Veja Stephen Bann, “Clio inPart: On Antiquarianism and theHistorical Pragment” 23. Kfn@ livro de Gad mar é explicitamente direcionado contra
in Ttie @›eiríciii o/ f-fisfcry: Essa/s ou ihe Repieseytatiyii ri/ the 'ost (Manchester, z opiniao de
U.K.: Manchester University Press, 1990), t00 -21 (quotation on 114). [BANN,S. método próprio.
Clio em parte: sobrez ntiquariadoe fragmento hisiórico. In: Al im eritocr la fiiiiuri«: f•n•• ••ii#. 2• ed.
(Tübingen: Mohr, 1965), p. 5: ”mo <xiit D0rlhun2 método específico para as
Srsai«s s«èrea represetitopào dy p'ussa3i›. Trad. Flavis Vi llas-Boas. Sao Paulo: Editora °›éncias do espirito.". [GADAMEA, H. G. P'erdadee ,pjtpd„.
T1’ad. Fl*vio p› alo
da Unesp, t994l °"’°'- Petrópolis. Editora Vozes. i9s9, p. 45].
22. Ibid.,t t9. Z4. lbid.. 437-38 (grifo do zutor).
54
H NS ULRICH GUMBRBCHT o• poderes da filologia: dinâmica de conhecimento textual

que ela
nãopossuia palavra iriiaginaçào, embora seja provavel que essa peça emerja de uma ativaçao intencional do imagina-
inovadores que rio, transforma-se em uma zona onde ocorrerão as diferentes
apareça onde quer que falemos de conteúdos
não são devidosa algum tipo de referência mundial,
e apesar interações do imaginario com seus impulsos ativadores.26
tópico da
de o autor ter muito menos motivos para ignorar o Essas “interações entre o imaginarioe as instâncias de sua
imaginação do que muitos outros filÓsOfOS. mobilizaçao” (uma delas é, obviamente,a intencionalidade in-
prO-
A cautela de Gadamer pode apresentar relação com a dividual) implicam o risco de se espalhar além dos limites do
priedade da imaginação que Sartre chama de “espontaneida- controle do sujeito — não apenas, como Iser parece supor,27 em
deta—
de”. Wolfgang Iser dedicou uma analise filosófica mais contextos táo distantes de nossas atividades cotidianas como
diScuSSAO “sonhos ou alucinações”, mas também dentro de formas alta-
lhadaa esse aspecto específico. 'O autor começa sua
2

só,
sublinhando que, não sendo um “potencial atiVador” por si mente racionalizadas de prática, como especulaçao econômica
para ou ediçao de texto. Certamente, nao quero negar uma hete-
a imaginação sempre precisa de um estímulo extrínseco
que diz rogeneidade básica entre o gesto necessario de racionalidade
ser acionada. Por outro lado, isso significa que, no
respeitoà sua ativaçao,a imaginação seguea intencionalidade e a “espontaneidade” de nossa imaginaçao. No entanto,o uso
controlar — pe- ttivo da imaginaçãoe o autocontrole exigido pelos padrões
de um sujeito. Mas o mesmo sujeito nao pode
lo menos, nao completamente — a direçao que a imaginaçao de racionalidade acadêmica do trabalho filológico parecem
ela serigualmente necessarios para restituir fragmentos de textos.
tomae os resultados que produz, pois, uma vez acionada,
não tem in- Pelo menos no caso de fragmentos constituídos pelo que cha-
se desdobra precisamente porqueo imaginario
e parece abertoa quaisquer tipos de intenções. mci de cicatriz, não ha maneira perfeitamente indutiva e, por-
tencionalidade
e é por tanto, perfeitamente racional de passar do texto fragmentado
É assim que as intenções ligam-se ao que as ativaram,
ativa- a um texto hipoteticamente completo. Por outro lado, nunca
isso que sempre há algo acontecendo com OS impulsos
próprias podemos tercerteza se conseguimos eliminar todos os traços
dores. Portanto, o imaginario nuncaé idêntico às suas
seus heterogêneos que o uso de nossa imaginação pode terdeixa-
ativações intencionais, mas se desdobra em um jogo com
as do no texto restituido. Já sabemos, por exemplo, se um ritmo
impulsos — em um jogo, porém, issoé sempre mais do que
do que reconstruímos nâoé apenaso ritmo que mais desejávamos?
intenções por tras da ativação ou mais do que o conteúdo
quer “Comer o fragmento de alguém!” acaba, assim, tendo um du-
imaginarioà medida que desenvolve uma forma. Onde
plo significado. Por um lado,é um incentivo náo apenas para
usara imaginaçao, mas também para desfrutar de seus efeitos
Fiktivcnu nd des Imaginaren". en'
25. Ver, em particu la r, “DasXusam menspiel des
ue, D • F ik tive und das Imagindte. 377—4t 1. [ISER, A. Wolfgang.A interaçao 26. lbid., 377-78.
perspectivas de u ma
entito ficticioe o ima gim rio. In O fictícioe o jmiginório:
2017.} 27. lbid., 38 i.
9pt p {%@Jq {iteraria. Rio de Janeiro: EdUERJ,
H A N S U L R IC H G U M B R E C HT
56

colaterais nao controlaveis. Se, por outro lado, queremos re-


sistira uma auratização às vezes ingênuae antiacadêmica do
imaginário, esse bronzeado imperativo também (pelo menos P ÍT L/L O 2

obliquamente) se refere ao dever do filólogoe à experiência


potencialmente catartica de remover os resquícios subjetivos e, Editando textos
portanto, anacrónicos do seujogo com a imaginaçao. Com ou
sem ela, o pior autoengano possível seriaa crença em soluções
acadêmicas isentas.
Poucos estudiosos dominaram uma disciplina acadêmica de
zmz tão intensa quanto Ramón Menéndez Pidal dominoua
filologia hispânica por mais de setenta anos. Com sua edíçào
monumental, em três volumes, do épico nacional espanhol Fl
cantar de mio kid, publicado na década de 1890, elefoi ampla-
mente reconhecido comoo fundador da tradiçao filológica
nacional espanhola, da qual permaneceu sendo um dos re-
presentantes mais produtivos até sua morte em 1968. Embora
tenha sido criticado recentemente (não sem razão) por identi-
ficaro espanhol com sua própria cultura castelhanae embora,
por vezes, seus pontos de vista possam parecer muito monolí-
ticos para nós, Pidal fez contribuições seminaisà historiografia
das línguas, literaturase culturas da nação espanhola. Além
disso, suas contribuições paraa história da literatura france-
sa medievale da língua latina medieval fizeram dele um dos
grandes humanistas do século XX.'

1. Paraa biografia de Menéndez Pidal, consultar Kurr Schnelle, “Nachwort”, em


Ramón Menéndez Pidal. Dicliiuug und Ceirfiirfire inSkaiit (Leipzig: Reclam, t9íI4),
25fl-82.A ediçao de Cid de Menéndez Pidal esta mais facilmente disponível (cout
uma importante introdução de t908) em OI ras cuinpfcfss de Pam* Mciiendez PifaI,
4‘ ed., v. 3-5 (Madri: Espasa-Calpe, 1964-69). Sobreo rrabzlho filológico de Pidal
58
H A N 5 U L R I C H G U M B R EC H T o• poderes da filologia: dinâmica de conhecimento textual 59

Dadaa suaestatura no mundo acadêmico, não é possível diferente das variantes produzidas pelos autores em um pas—
deixar de se surpreender com a atitude peculiar de Menéndez sado remoto."’
Pidal em relação aos textos que editoue analisou, pois ele fa- Podemos verque Pidal atribuia si mesmo um papel nesse
lava sobre tais textos com aS palavras de um entusiasta, talvez processo de ressurgimento cultural que se aproxima do papel
os
até de um poeta: “Percebo que sou o espanhol de todos classico do cantor de folclore: ele memorizaria muitos textos,
tempos que leu mais romances do que qualquer um de seus reciiando-os, republicando-os e enriquecendo-os com suas
compatriotas: as versões que agradam minha imaginação tão próprias variantese devolvendo-os, finalmente,à naçào que,
cheia de lembranças históricas, as versões que gosto de reci- segundo seu entendimento “neotradicional”, havia produzido
tar, as versões que dou para os leitores sáo uma partícula da esses mesmos textos. Visto por esse angulo, pode serde inte-
tradição nacional.” Ele estava convencido de que, ao publicar resse mais do que puramente anedótico que o momento cul-
2

romances (narrativas curtas em versos)e textos pertencentes minante de sua atividade como colecionador de textos pareça
oral,
a outros gêneros da grande tradição espanhola da poesia tersido em meados da década de 1920, quando foitemporaria-
poderia, com a ajuda da filologia, retornarà produtividade mente atingido pela cegueira, incorporando assim uma condi-
literaria, uma pratica poética que encontrara quase extinta: ção que sempre foiassociada ao poder da imaginação poética.
“Hoje,a tradiçao esta em decadência porque permaneceu viva Mas seria realmente possível desempenhar, ao mesmo tem-
apenas entre os camponeses. Mas por que não deveria ressur- po,asfunções de filólogoe cantor ou poeta? Mais do que isso,
gir Em um ambiente mais culto? Pelo menos, foifácil reviver poderia alguém sersimultaneamente um filólogoe um cantor
essa tradição em minha própria mente;e essa mente produziu em relação ao mesmo corpo de textos? Um filólogo nao é
muitas variantes que, em minha opinião, não sao de natureza obrigadoa se manter afastado da produçao de novas variantes?
Sua atividade nâo deve serrestrita ao registro, em detrimento
da invençao destas mesmas variantes? Por mais legítimas que
tt rf: Siudieii sejam essas questões críticas, acho que elas acabarao por nos
Typologic der ‘ArbeÍt 8m Text' in dar ipanischcn Kultur”, em Das ft8tii de
, <d. llse
fazer entender que o caso de Menéndez Pidal foimuito menos
Nolting-Hauffe Jo8Chim Schulz• (nmsierdn:Grüncr, 19ss), sl-Ito, “Las versiones
que agradan mi inuginación: de Menéndez Pidnl zur pos tmodernen Editionspraxis?" excêntrico do que se supõeà primeira vista. Minha hipóteseé
a de que todo editor adota papéis próximos aosexercidos pelos
,jqygdg dty 5iie»c de f« iiiuerie” cii QtiereJo (Bochum 1990), <d. the Nolting-HauíT
Modernism: Menéndez
cantores, poetas ou autores (embora tipicamente o faça com
(Tübingen: Nb 2 ]Q93), 57-72;" A PhilologicalI nvrntion of
menos consciência do que Pidal)e que, sem dar esse passo,
,+,..ir ..d.r • •r• i.' +• f 990a, ed William° P•dcn (Gainesvill* U iveni'y
of Florida Pro›., 1994), 32-49.
vieJos, ed. @AfRÓH 3. Menîndez Pidzl, “El rv naiitero: Su tr iismisi6iia fa ZpurA moderne” (1910). cui Esiudios
2. Ramón Menénd•zP idzl, preUacio de Fl•›r tiveya de Rcinatires
,
jvtenéndezP idil, 6‘ •d. (Ntadri: Espasa-Calpe 1984 [1926]), 4t. sobre el roinaiire, vol. t1 dc Omu cuinpfer‹is (Madri: Espasa-Calpe. 1973), 41.
60
H N S U L R IC H G U M B R E C HT
O # ppdeces da filologia: dinâmica de conbecimeato textual 61

que
tal papel sequer começaa existir. Cada uma das funções lógica estritamente textual, elas acabaram por chegar perto de
os editores podem adotar (em dois níveis diferentes. fun ões uma pratica que Paul De Mari descreveue canonizou como
de autore funções de editor) pode serincluída em diferen- leitura teórica’" — mesmo sabendo que essa proximidade te-
tes tipos de construções de subjetividade,e essas afinidades tiachocado alguns filólogos, mais do que poderia terchocado
de
de diferentes funções de editor com diferentes construções o propr\o Mari.5 De qualquer forma, na tradiçao filológicaé
subjetividade nos ajudaraoa entender os diferentes estilos filo- possível distinguir duas concepções diferentes de ediçáo de
lógicos que encontramos em nosso ambiente profissional. texto que mostram afinidades interessantes com as posições
exemplo, como Menéndez Pidal se identificou com cantores da“pragmatica textual”e da “leitura teórica” na teoria litera-
medievaise folclóricos, seu estilo de ediçao não foi capaz de ria contemporânea. Se eu começar meu argumento optando
is-
enfatizara multiplicidade de maiiuscritose variantes, pois por pragmática textuale tentando mostrar que um editoré
so é típico da tradição oral da Idade Mêdia. Foi exatamente forçado a escolher entre desempenhar algumas funções, isso
vida
assim que ele contribuiu tanto parao que chamou de “a pode parece com o que De Man descreveu como “resistência
da tradição”. Neste ensaio, portanto, discutirei tais relaçóes à teoria”. No entanto,a opção oposta — tentar restringir os
ima-
entre diferentes papéis do sujeito, papéis mais ou menos problemase a pratica de ediçao exclusivamente ao domínio
ginátios, abertosa identiftcaçào, diferentes papéis de editore textual — parece ingênua do ponto de vista da pragmática tex-
diferentes estilos de pratica filológica. Farei isso sob o título de tual. Como não é fácil quandoa soluçao parece estarà vista,
pragmatica da ediçào de texto". Se há algo verdadeiramente voltareia essa questão mais tarde, perguntando se valea pena
excêntrico em Menéndez Pidal nesse contexto, nào pode ser ou mesmo se é possível superar esse antagonismo entre formas
é ine-
o seu desempenho de uma função de autor, pois isso de edição mais pragmáticase mais imanentistas.
fato
vitavel. Em vez disso, sua excentricidade deve residir no Todo mundo sabe quea ediçao de textoé um processo de es-
papele
de ele estar aparentemente bastante consciente desse colha em varias camadas. Os editores escolhem entre as varian-
obviamente feliz com isSO. tesdo que eles decidem vercomo passagens equivalentes no que
do identificam como textos pertencentesa uma mesma tradição.
No entanto, algumas escolas filológicas mais rigorosas
ser
que as de Pidal sempre postularam que a ediçao deveria Em outras ocasiões, escolhem entre deixar lacunas de texto in-
independente das funçóes ou intenções dos editores (alguns
filólogos até quiseram excluira intenção do autor como ponto
de referência, emborao papel das decisões subjetivase atê do
4. Ver, acinia de tudo, “The Resistance ro Theory”, endPaul De Man, TheResi'statice
to Theory (Minneapolis: University of I/Minnesota Press,i 986), 3-20.
desde
gosto subjetivo seja um tópico nas discussões filológicas 5. De Mzn realmente tinha o h*bito de se apresentar como filólogo. Veja “The
decisões
a erada Antiguidade clássica). Ao tentar provar que as Return ioPhilology,” em PeiiJiaiim, 21-26. Veja tambéma entrevista de De Mzn
filológicas podem sertomadas dentro dos parâmetros de uma com Stefano Rosso, ibid.. 118.
6? H A N S U L R IC H G U M B R EC HT
poderes da fi1nlOgia• @Dãmica de conhecimento tegtp;
63

tocadas ou preenché-las com conjecturas. Uma vez adotadaa par quem poderia tersidoo editore quais princípios ele ou
segunda possibilidade, precisam escolher entre uma infinidade ela
poderiam terseguido ao estabelecer o texto.É aqui, na ima-
de formulações potencialmente aceitaveis, sugeridas pelo sis- ginação do leitor filologicamente competente, queo papel
do
tema da língua em questão. Mesmo corrigir certos “erros” em editor, em primeira instância, se torna uma realidade
social,
um texto que chegou aténós sem nenhuma variação implica isto é, uma realidade mutuamente aceita.
escolher uma entre muitas formas possíveis que poderiam se Mas haveria forma de admitira um crítico não pragmático
encaixar como gramaticalmente corretas. Ao fazer essas es- quea escolha,a produção de significadoe o surgirrien
to de
colhas,a maioria dos editoresê guiada, de maneira bastante funçóes de sujeito não são necessários onde quer que exista
normale apropriada, pelo que eles acham que poderia tersido “evidêflCÍa”, isto é, onde esteja disponível uma solução
irrefu-
a intenção do próprio autor do texto. Voltarei mais tarde aos iavel para um problema filológiCo?A resposta para essa
per-
problemas relacionados às hipóteses dos editores sobre as in- gunta depende da maneira como entendemos as
evidências
tenções dos autores. No entanto, quero enfatizar que o sujei- - e na ausência de uma opção mais ou menos “ontológica”,
to-editor também seconstitui nesses múltiplos atos de escolha, não posso definir evidência senão como uma situação na
qual
pois escolher entre uma variedade de elementosé exatamente todos osespecialistas concordam facilmente com
argumentos
o que pode serchamado de “produção de significado” — soba específicos e com as conclusõesa que esses argumentos
le-
condição de que os elementos passados permanecem presentes vam. Isso implica que propor ou aceitar uma soluçao
baseada
como possibilidades em vez de se perderem, serem reprimidos em evidências nào contribui grandemente parao
perfil de
ou, mesmo, destruídos.‘ Visto deste ângulo,a edição de texto quem o faz, pois parece nào haver alternativa, mas S
ís O não
não apenas produz significado como um efeito colateral, mas elimina as dimensões pragmaticas da ediçào. Em
outras pa-
também significa produção por excelência, poisa preservação lavras, o surgimento de uma funçao de editor com um
perfil
e a documentação do que permanece não escolhido consti- baixo nâo é sinônimo de ausência de uma função.
É claro que
tuem asprincipais funções da prática filológica. Mas, uma vez igualmente verdade quea funçfio do editor torna—se
muito
quea produçao significante aconteceu, é impossível resistir mais visível e, ]9OC assirri dizer, muito mais “heroica”
sempre
à tentação de olhar para um agente que poderia ter sido sua que nenhuma solução óbvia ou facilmente consensual
estáà
fonte. Portanto, simplesmente nao podemos segurar um texto vista. Dentro da pratica filoíógica, sào essas as
situaçóes em
editado contra seu aparato de variantes sem começara imagi- que, comó Sally Humphreys formulou de maneira tão
apro-
priada, “gostoe tato" sao necessários.7 O gosto desempenha

6. Estou seguindo Nihlas Luhuiann, Social Systems (Stanford, Califórnia: Stanford


University Press, 1995), 59-102. [Luhmann, Niklas. Sistemas rvciair: esbaça de uiya 7- Em um colóquio sobre ediç3o de text organizado na Universidsd
< d< Heidelberg
teoria geral. Sao Paulo: Vozes, 2016, 575p.J em 1996.
64 HANS ULRICH GUMBRECHT
poderes da 6lologia‹ dinâmica de conheCÊmento textual 65

umpapel porque certas decisões filológicas possuema mesma


tasões puramente pragmáticas.' Primeiro, na maioria dos ca-
estrutura do julgamento estético,a mesma estrutura das deci- gps,é relativamente fácil usar o conhecimento histórico para
sões que precisam sertomadas em situações sem evidência, ou
tornar mais complexaa imagem de um autor,a fim de que
seja, em que o julgamento nào possa se basear em conceitose usa imagem possa ajudara produzir leiturase edições mais
critérios compartilhados. Ao evocara questão do tato, pen- precisas. Em segundo lugar, existem, pelo menos paraa maio-
so que Humphreys pretendia se referirà expectativa legítima riados textos dentro do cânone, certas imagens de autores
de que um editor, mesmoe especialmente em situações sem que, por um lado, surgiram da necessidade de atribuir coe-
evidente disponibilidade, abster-se-ia de produzir textos que rência às leituras desses textos e, por outro, frequentemente
simplesmente se tornassem manifestações unilateraise consis- ;détama forma como eles são normalmente lidos. Homero,o
tentes de suas próprias preferências estáticas. Os editores nun- cantor cego,e Esopo,o escravo corcunda, sfio provavelmente
cadevem cruzaro limiar entre filologiae imaginação poética os mais famosos em um número infinito de projeções desse
[Nachdíchtung] — mas isso não pode implicar que eles estejam autor. Embora textos de origem anônima deixem mais espa-
totalmente dispensados de fazer julgamentos estéticos, muito ço para essas projeções, o que temos em nossa mente ao usar
menos que possam evitar produzir efeitos de sujeito. nomes como “Shakespeare”, “Goethe” ou “Garcia Márquez”
Já deve terficado claro o motivo pelo quala coerência nãoé algo muito diferente do que implica dizer “Homero” ou
das longas séries de escolhas filológicas que cada ediçâo de “Esopo”. Todos esses nomes referem-sea imagens de autores
texto contéme pressupõe não deve emanar do gosto par- que têm muito maisa ver com as projeções dos leitores do
ticular do editor. Mas que outras diretrizes ou orientações que com qualquer realidade histórica documentada — embora
podem serseguidas? Penso que, em primeiro lugar, devemos zsimagens sejam frequentemente complementadas por algu-
evitar falar, neste contexto, da “intencionalidade do texto” mas informações sobrea vida dos autores, se tais informações
como uma orientação potencial — como costumava seruma estiverem disponíveis. Nesse sentido,é algo incomum (ecer-
convenção quase popular entre os estudos literarios há dez
ou vinte anos. Do ponto de vista semântico, os substantivos
8f118 VD8ÚO mais detalluda do mesmO argumento, veja meu ensaio “Konscquenzen
textoe intencíonalidade são incompatíveis,a menos que sead—
der Rezeptionsästhetil: oder Literaturwisscnschaft als KommunikationssociJ g t,
mita quea “intencionalidade do texto” se refira apenas às Paeticg 7” (1975): 388-413, uma venào em inglés aparece no meu livro M‹ihiiig 8eiise
hipóteses sobre intenções de autores que podem serextrapo- '" “/' •” “"’•'•'• l*‹•°•'° '•'U iv••s''r of Mi••••o rr*ss, i992).is-2s.A
d*^^ ^^8° '^ *°fisticada sobreo status heurístjco dq pt dt it9ptptt, pttq t
ladas de qualquer texto. que cu saiba,é o capítulo de Miguel Tamen “The Appeal to ihe Author” in his
Dadaa infinidade potencial de intençôes hipotéticas deri- W• e's °f" •'r’•'°"• - TI • 6•3 •.í r8•''ie''i i'' cii rory sm4ies (Albany: State
vadas ou atribuídasa qualquer texto, proponho me concentrar University of New York Pr••i, t993). 69-108. |TAMEN,M. \J.iie¡rai da iiiferpq qp¡p;
o'f'"' J• 4'zu"'e"ro rap eityzos liter.ir¡o. Lisboa: INC mvi — Imprensa Nacional Casa da
nas conjecturas historicamente mais específicas,e o faço por Morda, t994.J
66
H A N S U L R IC H G U M B R EC HT
O# poderes da filologia: dinâmica de conhecimento textual 67

amor de
tamente não errado) para os leitores dos poemas de p que esse papel pressupõee molda parcialmentea produção de
von
Goethe imaginar, por exemplo, o autor imaginando Frau ttm papel hipotético de autor; em outras palavras,o papel de
poten-
Stein, Christiane Vulpius ou outros destinatários em editor sempre encapsula um papel de autor. Ao mesmo tem-
guiadas por
cial. Em geral,a existência de tradições de leitura po, escusado sera dizer que o papel de editor também contém
com
autoresé outro bom mOtivo para os editores trabalharem varios papéis de leitor. Esses podem serpapéis de leitor no sen-
usam
imagens de autores, pois significa que novas edições que tido mais históricoe individual. Isto é, o sentido de imaginar
habi-
imagens de autores podem serelacionare ressonar com Goethe, o autor de poemas de amor, não pode sersepara-
tosestabelecidos de leitura. do de imaginar Frau von Stein ou Christiane Vulpius como
cOmO
Mas a historicização da função do autor (literario), asdestinatarias do poeta. Mas os papéis dos leitores também
Michel
foiinaugurada e poderosamente exemplificada por existem em um sentido mais geral, que muitas vezes parece
orientada
Foucault,' não é uma forte razão para fazer da leitura convencer intérpretese editores de que, por meio de suame-
ffltÍCã
ao autore da edição autorizada uma regra geral? Essã diação, certos textos são capazes de “falar com a humanidade
conceito de em geral."'° Refiro-me aqui às situações em que os intérpretes
não pressupôe uma generalização problematico do
Foucault perguntam o que Jacques Derrida, Karl Marx ouJesus Cristo
autor? A respostaé não, poiso conceito de autor que
concei-
queria historicizar era muito mais específico do que o queriam dizer para “nós” — como se, enquanto escreviame
que venho falavam, eles nos tivessem em mente. Assumir um público tão
to de autor ao qual me referi até agora. O conceito
se nao universalé um movimento problematico porque, além de ge-
discutindoé de fato quaseuniversal, pois parece difícil,
impossível, pensar em utn agente, produtor ou autor sempre rarmuitas outras implicações nao tão bem-vindas, acaba atri-
or buindo uma característica de divindade aos autores em ques-
que vemos qualquer tipo de artefato humano — incluindo,p
de tão, pois usa um privilégio discursivo da palavra de Deus (ou
exemplo, textos.A historicizaçao de Foucault do conceito
características dosdeuses) para incluir todos os humanos como destinatarios
autor, em contraste, enfatizaa historicidade de
de em potencial. Apesar dessa reserva específica, ja deveria ter
muito mais específicas pertencentes ao conceito moderno
inte- se tornado plausível que cada papel de editor implique, como
autor, como inventividad ee originalidade, propriedade
lectual ou responsabilidade pessoal. orientaçao necessária parao trabalho filológico, uma hipótese
é que o do papel de autore pelo menos um papel de leitor — em muitos
O argumento que quero sustentare enfatizar, então,
editor
trabalho filológico produz inevitavelmente um papel de

t0. Sobre estae outras reivindicações universais feíias em nome de textos “clássicos”,
ver Hans-Georg Gadainer, ifafirfieif und Metliaíle: Grii iJzíi2e eintr pfiilosayliisilieti
Cornell Univer5it} f•fer yeiieutifi, 2' ed. (Tübingcn: Mohr, 1965), 269-75. [GADAMER,H.G.Verdade

Press. 1979), 141—60.


68
H A W S U L R IC H G U M B R E C HC poderes da filologia: dinâmica de conhecimento textual 69

casos, vários papéis de leitor. Nessa proliferação geral de papéis O que se entende quando afirmamos queo estudo de textos li-
de editor, autore leitor, volto agoraa uma linha de argumen- terários depende necessariamente de um ato de leitura ou quan-
tação que pode nos levarà posiç4O Oposta, isto é,à questão de do afirmamos que esse ato esta sendo sistematicamente evitado?
saber sea edição pode serimaginada como uma pratica exclu- Certamente mais do quea tautologia de que se deve terlido pelo
sivamente baseada em texto. menos algumas partes, ainda que pequenas, de texto (ou leia
Afinal, não hà nada particularmentesurpreendente na ob- alguma parte, ainda que pequena, de um texto sobre este texto)
servação de que a edição de texto nao pode ajudar na produção para poder fazer uma declaração sobre ele. (...) Enfatizara neces-
muito ge- sidade autoevidente de leitura implica pelo menos duas coisas.
de sujeitos autorese de sujeitos leitores. Em um nível
ral, isso pode serdito para todos os tipos de leitura. Toda leitura Primeiro de tudo, implica quea literatura não é uma mensagem
constitui um traço entre seu duplo subproduto: papéis de autor transparente em que pode serdado como certo quea distinção
do
e papéis de leitor cada vez mais complexos.O tipo de papel entrea mensageme osmeios de comunicação está claramente
leitor ao qual me refiro aqui se aproxima (e pode, em alguns estabelecida. Segundo,e de maneira mais problemática, implica
aspectos, ser identico) ao que Wolfgang Iser descreveu comoo que a decodificação gramatical de um texto deixa um resíduo
“leitor implíCito”.” Embora eu concorde com a tendência de de indeterminação que deve ser, mas nao pode ser, resolvido por
lset de diferenciar o leitor implícitoe o leitor empírico, o leitor meios gramaticais, apesar de extensivamente concebidos.
que estou discutindo não se encaixa em sua descrição do leitor
implícito como um “papel do leitor inscrito no texto”. Pelo O que exatamente De Mari quer dizer com “leitura gra-
conttario, estou interessado em ver como um papel de leitoré matical”? Ele tefere—sea uma leitura que é, em última analise,
ativadoe constituído através de cada leitura de um texto, como orientada parao conteúdo, uma leitura capaz de “generalização
a formae o conteúdo do texto acendeme orientam esse proces- extralinguística” (isto é, uma leitura que acredita em referência)
so sem queo texto “contenha” seus resultados. e oposta ao tipo de leitura orientada paraa formae a linguagem
Portanto, sea produçao de papéis de autore de leitoré de que Man rotula como “retórica”. De acordo com o autor, por-
ha tanto, uma leitura gramatical (isto é, orientada parao conteúdo)
fato um resultado inevitavel de qualquer tipo de leitura,
algo específico paraa leitura de um filólogo? Uma das descri- nãoé capaz de resgatar completamente o que os textos literarios
ções de Paul De Man' sobre discurso literario pode nos levar tém a oferecer, uma vez que “um resíduo de indeterminação”
2

a uma direçao interessante aqui: permanecé acima ou abaixo do significadoe da referência, inca-
paz de ser totalmente integradoa uma determinada leitura, de-
vendo chamara atenção dos leitores parao caráter formal do tex-
to. De Man, torna-se finalmente claro, pertence aos teóricos da
literatura que a definem através de seu potencial autorreflexivo.
HAWS ULRICH GUMBRECHT
70 o• r•deres da lologia: dinâmica de conhecimento textual 71

No sentido de material textual nao redimidoe semantica- p3o possam serreduzidosa intuição" e, em outra passagem,
mente irrecuperável, lançando uma reflexao sobre as proprie- como “uma resistênciaà dimensao retórica ou tropológica”
dades formais do texto,a leitura literáriae a leitura filológica da linguagem, uma dimensao que talvez esteja mais explici-
têm algo mais específico em comum do que a produção auto- tamente em primeiro plano na literatura (amplamente conce-
mática de papéis de autore leitor. Nada corre bem na leitura bida) do que em qualquer outra manifestação verbal.”" Indo
literaria ou fdológica, mas as razões diferem nos dois casos. Os apenas um passo adiante — e ainda contando com De Mari
dois tipos de leitura lidam de formas muito diferentes com o -, pode-se acrescentar que o que a resistênciaà teoria acaba
que resisteà suavidade. O leitor filológicoe o leitor literario en- produzindoé uma “fenomenalização”,i" isto é, um hábito de
frentam constantemente vaziose variantes; eles lutam com pers- confundir efeitos da linguagem com uma proximidade, se não
pectivas convergentes, mas nào complementares, ou com pas- com uma possessão daqueles que sao considerados fenómenos
sagens aparentemente tautológicas. Enquanto trabalham com do mundo real.
essas dificuldades,a leitura filológicae literária parece desenvol- Tudo isso sugerea seguinte pergunta:a insistência em acei-
ver uma afinidade com o conceito de teoria de De Mari: tare mesmo desempenhar certos papéis nao deve serrotulada
e criticada como “resistênciaà teoria”?" Mais uma vez,a res-
Pode-se dizer que a teoria literária surge quandoa abordagem posta depende inteiramente das premissas sob as quais essa re-
dos textos literários nao é mais baseada em não linguística, ou presentaçãoé executadae compreendida. O único perigo que
seja, em considerações históricase estáticas ou, para dizer um surge no ramo da edição de textoé uma identificação com pa
pouco menos grosseiramente, quando o objeto de discussao não péis de autore de leitor que adotam essas construções extrapo-
é maiso significado ouo valor, mas as modalidades de produção ladas como formas, caracteres ou “vozes" de pessoas reais.A
e de recepção de significado.” prática de edição de Menéndez Pidal, por exemplo, evidencia
a existência (acredito generalizada) de tal desejo de identifica-
Essa definição captura uma mudança dramatica no foco dos ção entre os editores. No entanto, ele não teria sido o grande
estudos literários, um afastamento da investigação das formas filólogo que foi sem a consciência desse desejoe sem uma drs-
pelas quaisa linguagem serefere ao mundo em direção às ma-
neiras pelas quaisa linguagem produz ri impressao de se re erir d0 14. lbid., 12, t7. Nzo tratarei aqui de mais net aspecto (c amplamente discutido) do
mundo. Não surpreende, portanto, que De Man descreva “re— argumento de De Mari,a saber,o paradoxo que zfi rmz que a “teoria" implicz
inevitavelmente uma "resistênciaà teoria".
sistênciaà teoria como “uma resistênciaà própria linguagem
15. lbid., 19.
ouà possibilidade de que a linguagem contenha fatores que
72
}-t S U L R IC H G U M B R EC HT t poderes da lologia: dinaznica de conbecitztento textual 7S

ÂO com can- tys sao irrefutáveis.”’7 Temos de entendero conceito de “lei-


tância que o ajudoua transformar sua identifiCãÇ
e,p ortanto, tura irrefutável” como algo convergente com o ideal da evi-
tores medievaise folclóricos em um lado lúdico
sido ing é- dência baseada em textos? Nào descarto completamentea pos-
finalmente produtivo de sua pesquisa. Se ele tivesse
çao, poderia ter pro— sibilidade de De Man estar pressionando por um grau de racio-
nuo a respeito desse desejo de identifica
de autoridade (no sentido ingênuo nalidadee conclusividade na análise textual que se aproximaria
posto certas reivindicações
almente ciente do de algo como uma “lógica textual”, com suas próprias regrase
de “quem seidentifica Com o autor está tot
steriormente, essa técnicas. Nfio obstante, acho queé mais provável que De Man
significado que ele ou ela pretendia”). PO
seduzido Pidala tenha usadoa frase para significar uma leitura com consciência
crença em sua própria autoridade poderia ter
decisões fit1o1ógi- xima de suas próprias condiçõese limitações, uma leitura
tomar seu próprio gosto comO Critério para
editor. Ceder ao que seria irrefutável porque faria afirmações apenas em relaçao
cas e, assim, romper os limites do tato como
a parâmetros específicos.
próprio desejo de identificaçao como leitore como editor im-
plica perigo de autodecepção. É o risco de esquecer que o Tal leitura nâo excluiria — talvez, convidaria —a possibili-
a essepapel po- dade de trabalhar com papéis conjecturais de autore de leitor.
papel “real” do autore a autoridade inerente
certamente nao estao Teria de insistir, no entanto, na ideia de que tais papéis não
dem não estar facilmente disponíveis,e
podem serobjeto de identificação porque sãoconstructos cria-
disponíveis nos casos de autores mortos.
e à teoria do dos apenas para tornar as leiturase os resultados do trabalho
Dadaa suadistancia em relaçãoà pragmátiCa
resolvido problemas filológico mais transparentese mais capazes, ou seja, de serem
ato da fala, em que base De Man teria
de usar pap éis aceitos ou refutados. As leituras individuaise as edições indi-
biológicos? Teria ele excluído as pOSSibilidades
que realmente sa- viduais só podem tornar-se irrefutaveis — e podem serrefuta-
de autore de leitor nesse contexto? Tudo o
gOstava de se asso- das — em relaçãoe com base em papéis específicos (mas sem-
bemosé que, como jamencionei, De Mari
provavelmente não pre heurísticos) para papéis de autorese leitores. Resistência
ciar ao papel geral do filólogo, embora
usados por ele filológicaà teoria, ao contrário, seriao nome deum desejo de
sem um grão de autoironia. Outros adjetivos
de ira, eram se identificar com o que náo se prestaà identificaçao e, como
para descrever sua técnica de leitura, além
nos váriose consequência, um nome dafalta de tato que ameaça transfor-
retórica e tecriird. Claramente, De Man confiava
feito em seus mar os textosa serem editados nos próprios textos do editor."
admiraveis exemplos de tais leituras que ele havia
próprios ensaiose em esclarecimentos ocasionais, como nase-
comoo desfazer
guinte passagem: “Tal leitura pareceria de fato 17. De Mari, Resistatice, 19.
oricamente
metodológico da CORStrução gramaticale seria te 18. Minha discussao sobre De Mari, especialmente siinha sugestao provisória sobrea
corretas po-
sólidae eficaz. As leituras retóricas tecnicamente maneira como elepoderia ter resolvido problemas filológicos, deve suas ideias
e desagradáveis, centrais às conversas com Miguel Tanien.
dem ser entediantes, monótonas, previsíveis
74 Os poderes da filologia: dinâmica de conhecimento textual 75

Vamos olhar para trás por um instante. Minha discussão Como seuúltimo télose começara conquistar um espaço inte-
sobrea prática filológica sob um ângulo pragmatico ‹pragmático lectual de pluralidade, argumentoe disputa.
entendido no sentido de “pragmática linguística”) enfatizou Essa concepçao filológica da pluralidade, no entanto,é di-
comoé inevitavel que editores de texto adotem uma variedade f erente do ideal liberal (ou “neoliberal”?) de uma infinidade
de papéis no seu processo de trabalho.O confronto dessa visão aberta de opiniões individuais. Definitivamente, nao estou
pragmatica com o conceito de leitura de Paul De Man produ- defendendo uma situação em que cada editor se esforce para
ziua especircaçào de que esses papéis precisam ser interpreta- elaborar sua versfio “pessoal” do textoa ser editado. Antes,
dos como construções heurísticas que rejeitam qualquer desejo imagino que diferentes papéis de autor, usados como disposi-
de identificação — pelo menos sequeremos manter uma clara tivos heurísticos, produzem diferentes tipos de leiturae dife-
distinção entre edição de textoe Ndrltdirbten [adaptação]. No rentes comunidades de leitores. Dentro dessas comunidades de
total, minha discussão sustenta uma crítica ao princípio filoló- leitorese em referênciaa papéis de autor idênticos, deve ser
gico tradicional da evidência baseada em texto, um principio possível distinguir entre ediçõese interpretações mais ou me-
cujo impacto na filologia tem sido semelhante ao dos fortes nos adequadas. Pode-se entao afirmar, por exemplo, que uma
conceitos de verdade em filosofia. Enquanto trabalhamos SOb abordagem romànticae idealista paraa leitura de Fausto, de
o abrigo — ou melhor, as limitações epistemológicas — da evi- Goethe,é em grande parte incomensuravel, enquanto dife-
dênciae da verdade, não podemos deixar de esperar que nosso rentes ediçõese interpretações em cada uma dessas duas “es-
trabalho produza respostas “corretas”e soluções “corretas” pa— colas” poderiam sercomparadase avaliadas por critérios racio-
ra nossas perguntase problemas. Uma abordagem linguístico- nais. As reDexões de Alasdair Maclntyre sobrea estrutura do
-pragmatica da edição de textos, ao contrario, sugere consequ- espaço acadêmico,a partir da qual estou tirando essa ideia de
ências semelhantes às produzidas pela crítica dos conceitos de uma pluralidade de comunidades intelectuais produzidas por
verdade monolítica pelo pragmatismo filosófico. Lá,a expecta- relações de incomensurabilidade," também sãoúteis para des-
tiva de alcançara verdade (ou evidência)é transformada na ex- cobrir outra diferença importante entre uma situação de plu-
pectativa de produzir uma pluralidade de posições diferentes." ralidade na pratica filológicae um tipo de pluralismo intelec-
Da mesma forma, alguém poderia argumentar que a prática tual aberto ao infinito. Embora naocuste ou pressuponha algo
filológica poderia abandonara ideia de uma ediçào “correta” que se junteà opinião política, social ou estética de alguém
pertencentea uma escola — em nosso caso, uma escola de edi-
ção —, exige o domínio de um conjunto de técnicas geraise de
filOsófiCD
19. Veja, entre os muitos ensaios de Richard Rorty que problematizamo conceito
da verdade.“ Does Academia Freedom Have Philosophical Presuppositions°" em
The Fuiu« «/dr«de„i i‹ F«1 iii, ed. Louis Menand (Ch'icago: University ofC hiC8gC
Press, 1996), 21-42.
4-1A N s U L R I C H G U M B R E C H T
76 t p‹;›deres da filologia: dinâmica de conhecimento textual 77

um conjunto de técnicas específicas da escolae obriga quem constitui uma tarefa mais importante do que sua manipulação
participa delaa ser diplomatico. Ser diplomático, nesse contex- t modificação.
to,significa ter em mente que os estilos de edição devem ser Em segundo lugar,o conceito de "sujeito fraco" também
típicos das escolas filológicase não de editores individuais. Do tenta sugerir que uma afinidade (por mínima queseja) possa
ponto de vista sociológico,a filologia em gerale as escolas fi- existir entre certas filosofias atuais (filosofias que, intrinse-
lológicas compartilham certas características com o artesanato tamente, não poderiam estar menos interessadas em proble-
e suas guildas. Pode seruma boa ideia, mesmo paraa prática da mas de ediçfio)2° e o estilo de edição neofilológica. Além
interpretação, trabalhar para retornara esse status de uma arte, disso, um estudioso deve aprender habilidades específicas
em vez de cederà pluralidade individual sem limites. para pertencerà comunidade neoíilológica no campo da edi-
O movimento "neofilológico", que gerou debates anima- ção de texto. Ele ou ela deve serpelo menos minimamente
dos durantea década de 1990, sobretudo nos estudos medie- ' versado(a) em paleografia, capaz de reconstruir situações de
2
valistas,é um caso quase ideal para ilustrar minha proposta. ' uso a partir de uma avaliação do status material dos manus-
A nova filologia concentra-se nas diferentes versôes referentes critose competente na análise das relações entre as passagens
a textos individuais e na proliferação das variantes intrínsecas
22
textuais dos manuscritose suas iluminações. Nesse sentido,
desses textos. Entre os praticantes da nova filologia, tal ênfase a nova filologiaé como uma guilda dentro de um ofício na
nas variaçóese variantes produziu um interesse renovado nos edição de texto. Este exemplo ajuda-nosa entender que o
manuscritose em seu status material. No total,a nova filolo- relacionamento entre uma edição crítica neofilológicae uma
gia corresponde ao pressuposto heurístico de um sujeito editor crítica ao estilo Lachmann deve ser considerado incomen-
fracoe de um sujeito autor também fraco.É claro que a pa— surável. Eles não podem competir — e não devem sercom-
lavra "fraco" não implica aqui nenhum julgamento de valor. parados entre si porque dependem de premissas heurísticas
Refere-se simplesmente,e em primeiro lugar,a uma prática incompatíveis, do sujeito fraco da nova fdologiae dos parti-
filológica em que, no nível do papel de autor, o processo de cularmente fortes autor-sujeitoe leitor-sujeito implícitos na
transmissao recebe mais atenção do que autores individuaise tradição da ediçào crítica.
em que, no nível do editor,a interpretação precisa dos textos

23. O conceito de "sujeito foco" deriva do conceito de "pensamento fraco" de Gianni


mento
21.A edição de 1990 d8 r0Vfsta Syd ulum e geralmente consideradoo "doeu Vattimo ("peiisieru deliole”j. Um dos livros mais recentes de Vattiino demonstra cla-
bpndamen‹a1" da nova filologia. Parz uma interessante disc Ussào recente sobre ramente comoo pressuposto de "fniqueza"e "subjetividade" afetariaa pratica da
especial
es›‹ movimento, vai z‹is‹i‹ij /iir Deutstfie Piiiíologie 1t6 (1997), ediçàO interpretação: Be yotid ltiierp ietatioii: The Meatiitig ofHenneiieytics(ar Pfiifo;opfiy (Stanford,
intitulado "Philologie als Textw j580nschafi: Alta und Neue Horizoote". Cali J: Stanford University Press, 1997). Pata minha própria experimentação cont
22. S* aindaé possível reivindicara identidade própria de certos "textos
individuais" o conceito de" subjetividade fraca” ver U Ci›fúçuio UERJ: £rirfi Auecbych (Rio de
‹m n›. situação in •l•ctu•l q•• ••*•‹'•• v•ri'‹°•'• v'ri•nt•' '••‘°"' Janeiro: lmago, 1994), t17-25.
78 HANS UDRICH GUMBRRCHT
$ poderes da filologia: dinãrriica de conhecimento textual 79

Tais estilos filológicos diferentes podem setornar parte de ção de Lorca que não levasse em consideraçãoo componente
diferentes culturas nacionais e, às vezes, de diferentes discipli- de género da identidade do autor estivesse equivocada. Seria
nas. A influência de Menéndez Pidal nos estudos hispanicos, Simplesmente uma ediçáo diferente, incompatível com ediçôes
por exemplo, estabeleceu uma concentração nacional na edição sensíveis às diferenças de gênero.
de variantes de texto cujo outro lado, até muito recentemente, Mas existem— e deveriam existir — papéis de editor com
eraa quase ausência de edições críticas dedicadas aos textos especificidade de gênero? Penso quea vontade explícita de
canónicos da literatura espanhola. Alguém poderia argumen- dar aos resultados de trabalhos filológtcos concretos um sabor
tarque, nesse caso específico,o exemplo de Pidal convergiu específico (de gênero, de nação ou, por esse motivo, de idade),
com a vivacidade de uma tradição oral que continuou muito independentemente da identidade do autor poderia criar uma
mais nos séculos da Modernidade do que suas contrapartes situação problemática, pelo menos do ponto de vista filoló-
na maioria dos outros países europeus. Se existem afinidades gico. Alma ediçao dos poemas de Lorca, cujo editor tentou
entre culturas nacionaise estilos de ediçao, algo semelhante adaptar os textos ao gosto específico de um público gay (seé
é obviamente verdadeiro parao relacionamento entre estilos que esse gosto existe), estaria mais ao lado da imaginação po-
de ediçãoe determinados períodos históricos. Uma aborda- ética [Nachdichtung] do que da filologia como um ofício. Não
gem neofilológica parece ser particularmente apropriada para obstante, pode muito bem serque estilos de ediçaoe funções
textos provenientes da cultura medieval vernacular, enquanto de editor específicos de gênero estejam começando a surgir
edições críticas se encaixam em contextos históricose gêne- neste momento. Se isso for verdade, provavelmente levará
ros literarios que se concentram no autor como um gênio. O mais de uma década para se estabelecer um novo estiloe uma
gênero poderia se tornar mais uma dimensao da pluralidade nova escola filológica. Suas técnicas específicas de edição de
filológica. Não há nada de errado em permitir que o gênero texto poderiam um dia seridentificadase transmitidas como
do autor afete decisões filológicas de certos tipos — embora tal papéis de autore editor específicos de gênero. Para que esses
pressuposto náo seja facilmente reconciliado com o critério papéis alcancemo status específico de construções heurísticas
filológico tradicional da evidência. Assim, no caso do poeta que venho discutindo, seria crucial que o editor “real” pudes-
espanhol moderno Federico García Lorca,a descoberta rela- se ser livre das configuraçôes de género em suas funçóes de
tivamente recente de sua identidade como gaymudou defato autore de editor. Poisa edição de texto trata especificamen te
nfio apenasa leitura, mas tambéma ediçao de alguns de seus de papéis e funções, e nâo de identidades autênticas, o que
textos." Essa inovação, no entanto, nao implica que uma edi- quase poderia seruma definição de tato filológico.

24. Tzlvcz, deva eu dizer,a única licença disciplinar conquistada recentemente parz
falare escrever sobrea homossexualidade de Garcia Lorca.
cApíTULO 3

Escrevendo comentários

É claramente plausível subordinara tarefa do comentaristaà do


intérprete. Em uma infinidade de variações práticase permu-
ações funcionais, a interpretaçao sempre,e inevitavelmente,
é a identificação do significado de um determinado artefato.
Embora elafrequentemente pareça sera projeção de um sig-
nificado que o intérprete tenha inventado (e embora possa ser
difícil distinguir claramente entre identificação do significado
e sua projeção), associamos o conceitoe a prática da interpre-
tação não com a liberdade de projetar um significado, mas com
z tarefa de identificar um significado dado “em” um texto (ou
qualquer outro objeto de referência), independentemente de
seu intérpretee antes mesmo da própria interpretação. Desde
queo intérprete entendaa tarefa em questão comoa identi-
ficação de um determinado instrumento,o principal proble-
ma que ele ou ela enfrenta reside na assimetria entreo escopo
de conhecimento gerale de conhecimento especializado que
o texto pressupõe como condição paraa identificaçao de seu
signtficado (“pretendido”, “original”, “histórico”, “adequado”
ou “autêntico”) — assim comoo conhecimento que o intér-
prete tem à sua disposição. Sempre foitarefa do comentaristae
função do comentário superar essa assimetria e, assim, estabe-
lecer uma mediaçao entre diferentes contextos culturais (entre
8? H A N S U L R IC H G U M B R EC FI
poderes da lil @j0: dinâmica de conhecimento textual
83

o que o autor do texto compartilhou com os principais leitores como um exercício essencial para liçôes de casae testes escri-
e os leitores que pertencema épocas históricas posteriores ou a
tos no ensino médio.O comentário, ao contrario, parece ser
diferentes culturas). Visto por esse angulo, um comentário sem-
um discurso que, quase por definiçao, nunca chega ao fim.
prefornece conhecimento suplementar; ao fazê-lo, cumpre uma Enquanto um intérprete nfio pode ajudara extrapolar um su-
função auxiliar em relaçãoà interpretação. jeito-autor como um ponto de referência para sua interpreta-
Nada do que eu disse até agora excede as concepções ca- ção (e não pode audara darformaa essa referência na medida
nonizadas de duas das práticas filológicas mais centraise mais
em quea interpretaçao avança), um comentarista nunca tem
respeitadas.A perspectiva sobre comentáriosa respeito de qual certeza das necessidades (ou seja, conhecimento das lacunas
agora tentarei argumentar apontara apenas para certas dinâmi- no cexto) daqueles que usarao o comentário. Por mais que vo-
casdiscursivas que, suponho, sempre foram inerentesà prática cé contemple as necessidades de seuscontemporaneos entre
do comentario. Mas minha perspectiva se afasta da imagem os
leitores em potencial de uma questão fundamental no
texto,
classica do comentário como completamente subordinadaà in- vocé nunca pode prever exatamenteo que terá que ser explica-
terpretação, na medida em que tematiza uma tensão potencial do para os leitores da próxima geração.E principalmen
te essa
entre os dois projetos, tensão esta decorrente de dois movi- condição que torna os comentários um exercícioe um
discurso
mentos inerentes ao comentárioe à interpretação, respectiva- constitutivamente inacabados. Nao surpreende, portanto,
que
mente, que parecem seguir direções opostas. Para tudo o que a história da palavra comentário produza muitos significados
di-
foidito desdea década de 1960 — com dedicação especiale f r l2tt•s — e, portanto, um significado muito vagCi — parastigerir
democráticaà liberdade do leitor — sobre múltiplos significados uma definiçao mais precisa.' Será que esse sabor geral de
impre-
como potencial de qualquer texto individuale sobre interpre- cisâo nfio combina, por acaso, com a impressão que os
usuários
tação como uma tarefa sem fim, para todas aquelas imagens de comentarios quase sempre têm, nomeadamente [epara
exa-
muito sofisticadas e às vezes excessivamente complicadas do gerar apenas um pouco), de que qualquer comentario
oferece
ato de interpretação, acho que em nossa prática cotidiana fa- todos os tipos de informaçôes interessantes, mas
dificilmente
zemos interpretação como uma tarefa que pode ser, e nor- oferece aquela informação da qual Você precisavae cuja
neces-
malmente sera, direcionadaa uma conclusão. Esperamos que, sidade fez vocé consultaro comentário em primeiro
lugat?
no caso corriqueiro de uma interpretação, haa um momento
em que saibamos que entendemoso texto ou outro artefato.
1. Ver Manfredfutirlnann,
Normalmente, associamoso entendimentoà impressao de que
dar klassischen”
deutschen ' ’ ' ’r't'n fn*si 8r* fii*8 f^88f8c(If herr
agora sabemos o queo autor queria que esse texto significasse
ou fosse. Acredito que esta suposição sobreo caráter normal- ’^ ° ° Main: Deutscher Klassiker VR8ÍA@ 985). p. 37-57; “@ palavra
DaO djUda muito aqui, porque tinha quase uma infinidade dc significados na
mente finito da interpretação explica sua carreira triunfante A ntiguidade clássica" (49).
84 o• poderes da filologia: dinâmica de conhecimento textual 85

Esse contraste entrea tarefa finita de cxda interpretaçãoe a referência e queremos que os comentaristas se posicionem em
tarefa interminavel de comentario — um contraste que talvez contiguidade” nao tanto com um autor, mas com o texto em
se deva mais às maneiras predominantes pelas quaisa nossa questão.É essa contiguidade entre o texto do comentaristae o
cultura tem lidado Com ambas astarefas do que a uma diferen- texto comentado que explica por que a forma material do co-
ça “lógica” entre elas — é responsável pelas diferentes topolo- mentário dependee precisa se adaptarà forma material do tex-
gias que surgiram em torno da interpretaçaoe dos comentá- to. Glosas interlineares podem, portanto, ser consideradas uma
rios.A topologia dos estágios de interpretação percebe, prin- forma de comentario por excelência e, pelo mesmo motivo,
cipalmente, a identificação Como um movimento vertical. O nenhuma definição dicionarizada da palavra comentário dei-
intérprete penetra uma superfície" material de significantesa xa de mencionar que comentarios “em execução” constituem
fim de alcançar o significado do texto em um nível que se a norma.' Aumentandoo nível de abstraçao desta discussão,
2
Apresenta como o da“profundidade” espiritual. Uma topolo- podemos dizer que o lugar do comentário — nas páginas de
gia alternativa para interpretaçãoé aquela que encontra um um manuscrito ou de um livro impresso — esta na margem do
significado ou a intenção de um autor “por tras” de uma su- texto comentado. Isso implica, insisto, que a formae a ordem
perfície textual ou por trás de uma “face” que pode muito discursiva do texto comentado moldama forma materiale a
bem tentar enganaro espectador.O que essas topologias her- ordem discursiva do próprio comentario.
menêuticas do “abaixo” e do “por tras” compartilham Sao Pessoalmente, nao posso deixar de associar o conceito de
uma categórica — para não dizer dramatica— distinção entre comentarioa uma forte memória visual da edição impressa
um nível de percepção primariae um nível sempre “oculto” no século XVI de Las Siete Partidas, que é a versão existente
de significadoe de intencionalidade, que é o nível que supos- mais antiga de um importante corpo de leis estabelecido para
tamente importa para o intérprete. , o rei de Castela durante o final do século XIII. O texto das
Por outro lado, os comentarios nao visama um nível “abai- leis ocupa menos da metade da superfície de cada paginae é
xo , por trás” ou mesmo “além” da superficie do texto, mas cercado por um comentario apresentado em letras menorese
os comentaristas não veem textos “de cima” ou com a famosa estruturado por um sistema bastante complexo de referências
“distancia” que táo prontamente associamos com objetivida- cruzadas internas. As paginas do Siete Perdidos, portanto, trans-
de. Esperamos comentarios que não cheguem abaixo, atr3S OU
além, mas que sejam “laterais” em relação aos seus textos de 3. Ver, como uiri exemplo aleatório, Clnus Triger, cd., ífí›rteràurli der Liierafuru'i rwnrfinJl
(Leipzig: Bibliographisches Institui. 1986). 270: “Kommentar [Int. Commentarius:
nota, diírio, memomndo]: linguagem contínua (gramatreal, cstilístic z, tambem
ensaio “Das Nicht-Hermene utische: Sk izlfl jQcr Gem H og ie”. em '• métrica), relevante estético, histórico; explicação de nina literatura sob o texro ou
2. Ver men
n'i dti§elir des Aiidereii: fiiltn'enti*ie 5, cd. Jörg Hub°t° ° Martin Mül1*r sepacadamnntn; como Scholiori (PI. -íen) pxra HOlvtEL etc. jí na Antiguifidc
(Basileia: Stroemfcld/ Rot*r Stern, t996), 17-36. também como InterIinear—K. - existir.”
86 HANS ULRICH GUMBRECHT poderes da Alotogla: dinâmica de conhecfmezito textual 87

mitem uma forte impressão de plenitude. Pode-se perguntar dt mostrar que seu trabalhoé orientado por tarefas (ou seja,
se elas nao trazemà sua materialização um princípio estrutural que eles estao ansiosos para resolver problemas filológicose
(ou talvez um paradoxo estrutural) que possa ser constitutivo fornecer contexto histórico — em suma, para mantera leitura
para o género de comentario. Por um lado, náo há fim “ne- do leitorà tona sem distraí-lo do texto comentado), entre uma
cessário” para qualquer comentário; por outro, o espaço reser- estética de exuberànciae uma estética de funcionalidade sim-
vado para os comentários (eo tempo dos leitores dedicadoa pJjficada do leitor, os comentaristas tendema desenvolver um
eles)é sempre limitado — porque, por definição,é o espaço (e Jtmo específico que talvez possamos caracterizar como “ir
o tempo) “nas margens”. e parar”. Por um lado, eles certamente querem queo usuario
Esse princípio estrutural normalmente produz uma impres- apreciea copi‹i do conhecimento oferecido, mas, por outro la-
são de plenitude (no caso de uma distribuição bem equilibrada do, quase nunca seesquecem de insistiu na funcionalidade ri-
entre textoe comentarios, como o Siete Partidos, pode-se dizer gorosa de seus comentarios, como seantecipassem os protestos
uma impressão de plenitude) ou, se as margens nào estive- dos leitores perdidos nas sinuosas referências cruzadas do texto
rem preenchidas, uma impressão de desejo, de ausência, de na margem. Aqui está um exemplo para esse ritmo de ire vir,
um espaço que exige serpreenchidoe de um comentário que retirado do comentario sobre os princípios do comentário que
precisa ser ampliado. Seria possível dizet que um bom comen- guia o Bibliothek deutschei Kfnssiítcr:
tarioé sempre um comentario ricoe que existe uma estética
de opulênciae até de exuberancia inerente ao gênero? Copia
é, definitivamente, importante paraa prática do comentario. I. Comentários de pesquisa
Obviamente, um comentario rico pode serum comentario
ruim, por exemplo, se as informações fornecidas não interes- Os comentários de pesquisa fornecem comentários para con-
sam a nenhum leitor (mas isso jaé um comentario realmente textos maiores [“superestruturas”]. Tais comentarios não seli-
ruim?) ou, pior, acaba não sendo confiavel. Por outro lado, mitamà apresentaçao de um estado necessariamente transitório
a quantidade de um comentario pode acabar sendo talque da pesquisa, nem sáo equivalentes ao gênero interpretativo de
torna quase impossível o seu uso prático. No entanto, ainda uma “introdução” ou de um “epílogo”. De maneira mais sucin-
podemos afirmar que, em geral, esperamos que um grande ta possível, o comentário de pesquisa apresenta os principais
comentário seja ricoe opulento (no cruzamento semantico aspectos qúe abrema compreensao de um determinado texto.
dessa riquezae no espaço sempre limitado na margem da pagi- Nesse sentido, “superestruturas” devem sereferir ri todos os de-
na,a palavra alemâ prdff vem à mente). Entrea movimentação talhes textuais que sáo importantes de certo ponto de vista.’
aparentemente inevitavele de alguma forma alegre dos co-
mentários em relaçãoa copiae as obrigações dos comentaristas 4. Hooncfcldec, ed.. ifuruin Klassií•er?, 3t5 (énfzse do autor).
88 H A N S U L R I C H G U M B R EC H T
$ poderes da Motogia: dinâmica de conhecimento textual 89

Apresentar todas as referências textuais disponíveis, mas pm lugares, de fato topoi — e a dimensao espacial da metafora
restringir essa completude potencial por meio de certos pon- de fato importa —, para visitar ou consultar quando se busca
tosde vista selecionados: esse parece sero ritmo típico de ire vir conhecimento além dos limites daquilo queé necessário para
(ou o princípio discursivo levemente paradoxal) do comenta- compreender um texto específico. Pense nas camadas de tex-
rio. A grande liberdadee o grande problema do comentario tos que cercam asescrituras das grandes religiões, na Comedia
sao que, dadaa impossibilidade de prever exatamente o que os de Dantee em seus volgarizzamenti, ou nos comentários que
atuaise futuros leitores de um texto precisam saber, ele pode crescem em torno de alguns dos textos científicos mais ampla-
seconectara qualquer nívele a qualquer detalhe do texto de mente lidos da Antiguidade greco-romana. Ao longo dos sé-
referência. Aqui residea ameaça (e potencial beleza?) de um culos, certa tradiçao da lerturu Dantis sempre funcionou como
comentario que se transforma em uma “atomização” do texto uma introdução às concepções subsequentes da cosmologia,e
que comenta, em uma perda de coesãoe insíghts completos. não como uma interpretaçao do poema de Dante. Quaisquer
Os comentarios do século XVI sobre o Siete Partidas, por que sejam as tarefas mais específicas que esses textose seus
exemplo, podem terfornecido (mas não forneceram) informa- comentarios possam tercumprido originalmente, em um de-
ções sobreo que, visto do ângulo moderno inicial, deve ter terminado momento eles se tornaram topoi nos quais novose
parecido ser uma linguagem terrivelmente arcaica do século antigos conhecimentos poderiam seracumulados, absorvidos
XIII. Eles poderiam terapresentadoa biografia do rei Alfonso e, às vezes, até guardados. Esta última função nao deve sersu-
X, que inicioua compilaçao dos Partidos, assim como também bestimada. Certamente,é reconfortante saber que certo esto-
poderiam ter comentado (e de fato comentaram) sobre o que de conhecimento, um estoque que se deseja preservar sem
“conteúdo dogmatico” dasleis individuais.E assim por diante. ter um uso imediato, pode serencontrado em determinado
O princípio estrutural em funcionamentoé a atomizaçao co- local. Comentários sobre Dante são um bom Iugar para um
mo uma acumulação semanticamente ilimitada sob as restri- historiador da ciência —e ele ou ela não tem nenhuma obriga-
ções do espaço limitado. ção de fingir que essa referênciaé motivada pela expectativa
Como sempreé possível adicionar novos níveis de referên- de uma experiência especificamente estética.
ciaa um comentário,e como sempreé possível adicionar mais Certamente, ha razões para acreditar que a quantidade de
informaçõesa cada um desses níveis, os comentarios se torna- comentários em torno de um texto se torne um indicador da
ram, pelo menos em alguns casos históricos eminentes, tesou- importância deste mesmo texto. Mas também surgea pergun-
ros do conhecimento. Aqui, ha em açao um movimento de se- ta oposta: seria essa importancia exclusivamente uma função
dimentaçào que talvez possa compensara atomização causada de valores intrínsecos ao texto comentado? Por acaso,a aura
pelas múltiplas conexões abertas ao discurso do comentario. material dos comentários e sua importância intelectual dão
Estou me referindoa casos em que os comentários se torna- alguma contribuiçao substancial (e, por assim dizer, indepen-
90 H A N S U L R íC H G U M B R EC HT do poderes da filologia: dinâmica de conhecimento textual 91

dente)à reputaçao do texto? Certamente, nem Dante, nem trínseca nào exigemo poder de estruturação de um único
Shakespeare, nem Cer vantese nem Goethe estariam entre os assunto forte, seja ele de autor ou editor. Sabemos que,a qual-
autores mais altamente canonizados da cultura ocidental se quer momento, seria facil descobrir os nomes dos estudiosos
nao estivessem entre os autores mais amplamente comentados. que escreveram os comentários de Goethe paraa Bibliotliek
A canonizaçâo por meio de comentarios também significa que deufsrfier Klassiker, mas associamos as diferentes características
“escolas” — nos sentidos mais rigorosose informais dessa pala- desse comentário (acima de tudo, os princípios pelos quais ele
vra — emergem de instituiçóes de comentarios de texto. Aqui, estrutura as informações fornecidas em um texto) com este
a seleçao canônica de textos primários,o discurso especifico empreendimento de publicaçao específico, e nào com qual-
dos comentariose a vida das escolas intelectuais entram em quer comentarista individual. Os comentarios nao teriama
uma relaçao de implicação, apoio e transformaçao mútuos. relativa flexibilidadee a abertura de que precisam para se tor-
Sabendo como escrever uma explication de texte faz de você narem fundamentais para as escolas se uma forte referência de
alguém gabaritado em francês,e a explication de texteé diferen- autor os transformasse em inequívocos. O que os membros de
te da geistesgescliiclitliclie Einardnwtg, na qual esperamos que al- uma escola devem discutir entre si se estiver absolutamente
guém gabaritado em alemão seja bem versado.O fato de dife- claro como devem usar seus textos canonizados? Por outro
rentes estilos de comentários terem relaçao substancial com lado, os membros de uma escola manifestam-se em torno de
diferentes escolas intelectuais ou mesmo acadêmicas explica, textos comentadose regras de comentário apenas enquanto
pelo menos em parte, por que o discurso do comentario tende essas tradições mais excluem do que permitem.
ao anonimato. Ao comentar um texto, pode-se (pelo menos O funcionamento de um comentárioe a visibilidade do(s)
em parte) superara dificuldade principal de não sabero que as seu(s) autor(es) dependem em grande parte do status do tex-
necessidades dos futuros usuários do comentário terão ao es- to que eles comentam. Comentários em diferentes tradições da
colhero que incluir, com base em uma ideia geral de como legislação oferecem exemplos particularmente claros sobre esse
deve seruma boa leitura. Em outras palavras, o(a) comentaris- ponto.' Quando ostextos relevantes constituem um corpo de leis
ta se inscreve em uma tradiçao preexistente, em vez de inven- claramente circunscrito, intrinsecamente estruturadoe homo-
tarcritérios novos ou específicos de relevância para comentar. gêneo, os comentários chegam perto de interpretações porque
Outro motivo paraa tendência dos comentários em per- tudoo que restaa acrescentaré uma explicação do “significado”
manecerem anônimos vem da condiçao ja mencionada de que dessas leis (e há muitoa seraprendido com o uso altamente re-
um comentario esta sempre aberto para itens adicionais, ca- fletido que esses textos fazem do “legislador” como um método
madase outras adições que podem seragrupadas em torno do metodologicamente necessario — e, portanto, ponto de referên-
texto de referência. Portanto, comentários são sempre poten-
cialmente multiautorais, pois sua aberturae complexidade in- 5 Agradeçoa Gethard Casper por seu conselho neste contexto do m*u argumento.
92 H A NS U L R IC H G U M B R EC H T s poderes da filologia: dinâmica de conbecfmento textual 93

cia ficcional”, cuja funçãoé dar coerênciaà interpretaçao em Os comentarios devem sero sonho de todo desconstruti-
questão). Não por coincidência,a última ediçfio do Btockhaus vista. Em louvor tantoà tradição desconstrutiva quanto ao
define comentário jurídico como um tipo específico de interpre- discurso do comentario (com sua imagem de ser o parente
tação Tatbestandmetkmale and Rechtsfolgen zergliedemd behandeln- pobre entre os exercícios do núcleo filológico), podemos dizer
de Inteiptetation]. Comentarios legais desse tipo aparecem sob que a desconstrução empurrou certos princípios do discurso
o nome de seus autores porque, como tentativas de identificar da crítica de comentário aos seus possíveis limites. Jacques
significados implícitos no texto, eles operam com a expectativa Derrida baseia sua crítica ao que ele chama de “logocentris-
de serem definitivos, por mais empiricamente irrealista que essa mo” ocidental ao demonstrara impossibilidade,a cada mo-
expectativa possa ser. De qualquer forma, independentemente mento individual, de ter um texto completo presente em sua
de algum comentário em particular nessa tradiçao ser definiti- mente.7 Em vez de fazer quaisquer afirmações “totalizadoras”
vo, ha razões para acreditar que o prestígio extremamente alto sobre um texto em questão,a desconstrução se obriga, cons-
(e os roydftiei ainda mais altos) que acompanhao autor de um cientemente ou não,a uma renovaçao da tradição corrente do
Kim tentar resulta da necessidade de produzira ficção possibili- comentário. Wma leitura desconstrutiva sera sempre uma lei-
tada pelo fechamento na interpretação da lei. tura “ao longo” de um texto primario, uma leitura cuja mani-
Em vez de traçar uma linha de divisao igualmente clara festaçao textual sera necessariamente modelada por essa rela-
entreo corpo das leise sua interpretaçao,a tradiçao do direito ção com o texto principal em questão. É uma leitura que
comumé um processo contínuo de interpretações (e interpre- ocorre em constante consciência de sua própria “suplementa-
tações de interpretações etc.) de certos princípios legais. O ridade” e da suplementaridade do próprio texto primario —
equivalente ao Kommenta alemão nesse contexto — se houver isto é, da possibilidade sempre presente de adicionar mais pa-
algum equivalente — é o esforço de coletar, estruturare siste- lavras ao texto primario ou à leitura desconstrutiva. A des-
matizara multiplicidade de documentos legalmente relevan- construção criou um habito de leitura (e uma atitude existen-
tes. Nos Estados Unidos, essa tarefa foi executada por 3/4 de cial)a partir da percepção de que nenhum texto termina de-
século pelo American LawI nstitute. Significativamente, o pa- finitivamente, de que seu final deve serinfinitamente “adia-
pel de agência no cumprimento dessa tarefa interminável não do”. Os conceitos de suplementaridadee d érdnre, uma palavra
pode serdesempenhado por estudiosos individuais. Por isso, inventada por Derrida que fazum trocadilho com a distinção
uma instituiçao foi criada para desempenhar esse papel.‘ entrea insistência linguística na reiteraçâo da diferençae esse

6. As observaçõese os discursos da 75‘ Reunião Anual do Instituto de Direito 7. Esteé o ponto-chave da crítica de Husserl no primeiro livro de Derrida, Lu P'ois et
Americano, de lta 14 d* maio de 1998 (Washington, D.C., 1998) oferecem uma le pkeiiainltie (Paris: Presses Universitaires de Frznce, 1967). [DERRIDA, j.d r»z
visao geral interessante sobre os projetos desenvolvidos por esra instituiç ao. e o/eiidinrii•. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1994.]
94 H A N S LiL R I C H G U M B R EC HT o› poderes da Biologia: dinatrúca de conbecimento textual 95

princípio de diferenciaçao, só estão presentes no cenário das te descomplexificadora sequencialidade de todo texto)e dar
humanidades desde o advento do movimento desconstrutivis- conta de algumas dasdificuldades que os primeiros leitores da
ta. Embora essa distinçao já fosse clara demais para um des- desconstruçao encontraram ao passar através do texto de
construtivista ortodoxo, deve tersidoa proximidade entre os Derridae através dos textos daqueles que o seguiram. Talvez
textos primariose o discurso da desconstrução como seuco- tivesse sido útil lero discurso da desconstruçàoe seus (sempre
mentário que produziu duas metáforas favoritas da autodescri- e xistentes) textos de referência em justaposição — comoé típi-
ção da desconstruçao: asmetaforas da desconstruçao "habitan- co paraa leitura de qualquer outro comentario.
do" o texto primarioe da desconstrução sendo um "parasita" De um ponto de vista histórico, parece plausível que uma
em relação ao texto primario, seu "hospedeiro". A proximida- longa tradição de importância incontestàvel para o discurso
de entre o texto hospedeiroe a pratica desconstrutiva parasi- dos comentarios tenha chegado ao fim — um primeiro fim,
taria atinge seu nível de realizaçao imbatível na reivindicação, devo especificar — quando, com a institucionalização do livro
também desconstrutiva, de sua inseparabilídade. Em outras tmpresso, a copia de acesso ao conhecimento deixou de ser
palavras, o discurso desconstrutivista que se desenvolve a si um desejoe um ideal de aprendizado, transformando-se em
próprio sempre reivindicara ser o texto principale sua des- uma realidade natural (e talvez ameaçadora). Em um tom nao
construçao. Este princípio de simultaneidade deve ter sido familiar de crítica cultural, podemos entao acrescentar que,
uma razao importante para este tipo de discurso quando ele com o colapso suave da Bildung humanista como condiçao ho-
atingiu as humanidadese foipercebido como verdadeiramen- mogeneizadora da burguesia tradicional, surgiua necessidade
te ilegível. O discurso desconstrutivista é, por assim dizer, de um ressurgimento da tradiçao dos comentarios, pelo menos
texto primarioe sua desconstrução ao mesmo tempo. Nao para aqueles que continuaram interessados em visitar os locais
permite que declarações amplase totalizadoras (fáceis de lem- da tradição cultural canonizada do Ocidente. Essa necessidade
brar) sejam feitase pode decolar (para não dizer "explodir")a pode muito bem tersido uma das forças motrizes por trás da
qualquer momento aolongo do texto principal, em varios Co- (re)formação das disciplinas filológicas nas universidades eu-
mentarios atomizados ou digressões. Em última analise, penso ropeias do início do século XIX.‘
quea pratica da desconstruçào implica, para dizer o mínimo, Mas não temos que admitir que a afinidade entre o dis-
um movimento potencial em direção àquela opulência e à curso do comentárioe o nosso tempoé mais intensa do que
proliferação textual, e em direção àquela afinidade com os essa relação funcional, baseada na demanda por uma educação
valores da copia que identifiquei como inerentesà pratica dos (Bildung) suplementar, que já existe ha quase duzentos anos?
comentarios. A ideia de alguma forma "FtoFmativa" da des-
construçãoé encenar tal ropis comosimultaneamente presente
8. Aqui começoa me afastar das teses históricas propostas por Fuhrmann em
em seu próprio discurso (apesar da inevitavele inevitavelmen- "Konimentierte Klassiker?", 49-54.
96 HA N S U L R IC H G U M B R E C HT s poderes da fúotogia: óinamica de conhecimento textual 97

Seriaa desconstruçâo algo como uma incorporação filosófi- fundos, sobre os quais se deve comentar, afetam as estruturas
ca do princípio textual do comentario,e náo um sintoma de d« Internete do e-mail como discursos de comentários.
proximidade específica entrea tradição do comentarioe nosso Mas há uma condição tecnológica pela quala tradição dos
próprio momento cultural?" com entarios ja mudou profundamentee mudara ainda mais
Nao poderíamos associara pratica do comentárioa uma drasticamente no futuro. Sabemos que, embora nenhum chip
posição fraca de autore esta posição com a descrição de “pen- ou discor ígido ofereça capacidade infinita de armazenamen-
samento fraco” que Gianni Vattimo propôs como um emble- to, eles em breve serão capazes de oferecer tanto “espaço” que
ma de nossa própria situação intelectual? Não teríamos que nosso conhecimento acumulado não sera capaz de preenché-
admitir que, pela primeira vez,a mídia eletrônica desempenha -lo. Este será o fim da situação —e talvez ja tenhamos chegado
um papel importante nesta situação? Não é tentadore prova- a esse limite — na qual o discurso do comentario vem com
velmente adequado dizer que todos esses novos instrumentose uma estética implícita de exuberância, isto é, o fim da situação
formatos — hipo, hipere megatexto ou mega, hipere hipocar- em que nunca há espaço suficiente nas margens dos textos
tões — são os sintomase os agentes de um históricoe acelerado principais para todos os comentarios disponíveis.A visâo do
“retorno ao comentário” ou mesmo um “retornoà filologia” chip vazio constitui uma ameaça, um verdadeiro horror vacui
em transição paraa filologia de alta tecnologia? Alguém po- nao apenas paraa indústria de mídia eletrônica, mas também,
deria finalmente dizer — sem levara metafora longe demais suponho, para nossa autoapreciação intelectuale cultural. Esta
— quea Internet, com seus sitese paginas iniciais sempre emer- visão pode promover, mais uma vez, uma reapreciação do
gentes, tornou-se uma corrente eletronicamente produtora de princípioe da substancia da copia.E isso pode trazer uma situ-
comentários parao mundo?E todas essas conversase trocas açao em que não teremos mais vergonha de admitir que pre-
por correio eletrônico, que absorvem tanto tempo sem poupar encher margensé o que os comentários mais fazem —e o que
tempo algum, elas não acabam sendo comentários recorren— eles fazem de melhor.
tes em nossas vidas profissionais? Existe, tanto paraa Internet
quanto parao correio eletrônico, uma justaposição material de
diferentes discursos, materializada na coabitação de tais discur-
sos nos discos rígidos de nossos computadores. Nos dois casos,
as estruturas (e, acima de tudo, as estruturas sequenciais) dos
CAPITULO4

Historicizando as coisas

Imagineo mundo político-intelectual das sociedades das re-


voluções e reformas pós-burguesas do início do século
XIX como o teatro parao surgimento dos novos filólogos
[Neuphilologien, considerando que eles ainda estão vivos em
universidades como Heidelberg ou Tübingen, Munique,
Colônia, Liêge ou Kiel.' Esse ambiente do século XIX foio
primeiro cenário cultural — pelo menos, desdea Antiguidade
— em que uma imagem normativa da sociedade (cuja produção
foi aprimoradae amplamente financiada pelo Estado) que en-
trou em conDito com a experiência cotidiana dos cidadãos. O
conceito recém-elaborado de cidadao ’incluía como um com-
ponente central o seu direito de esperara realizaçao de quais-
quer situações ou privilégios prometidos pela imagem norma-

Estou mencionando Liégc aqui. enrre varias universidades alemas, porqueu ma for-
ma institucional especifica do Ne«piiif»logieii, “filologia do romance”, sobreviveu
de maneira zmplao suficiente para ser mencionado apcnas na BeIgicae nos países
de lingua ;rlema. Parau ma versio niais detalhada dz história da .Ya/iuiiafpfiifufugieii,
veja meu artigo “Um souffle d'AlIemagne ayant passé": Friedrich Die z, Gaston
Paris,e a Gênesis of National Philologies, “Romance Philology 40 (1986): t-37.A
concepção histórica deste ensaio tornou-see base de um colóquioc ujos trabalhos
foram publicados cm Beniard Cerquiglinie Hans Ulrich Guinbrecht, cds., Det
Diskucs der Liierar«r- und Syracliliistiiiíe: Wisseiiscliaftsges‹liirlite als Mtioi'aiioiisvorgalii
(Frankfurt: Suhrkzmp, 1983).
100 H A N S U L III C H G U M B R E C H+
o• y•d •es da filologia: dinâmica de conhecimento textual 101

tiva da sociedade. Isso era ainda mais importante quando tais sumidores de literatura de que a brechae a tensao na realidade
promessas oficiais pareciam divergir da experiência cotidiana social nao era tão dramática quanto eles haviam assumido ori-
dessa mesma sociedade. Ao mesmo tempo,a esfera do lazere ginalmente. Desdeo início, porém, asnovas disciplinas filoló-
do passatempo surgiu pela primeira vez (como direito geral ao gicas também cumprirama segunda função de contribuir para
lazer, isto é, nao apenas como um privilégio reservadoa gru- o desenvolvimento da imagem normativa da sociedade. Elas
pos sociais específicos); fazer (ou passatempo) correspondiaa “extraíram” certas imagens, temase valores dos textos “literá-
um conjunto de instituições que ajudariama aliviar as cres- rios”e os “transferiram” para esta imagem na maneira como
centes tensôes entrea experiência cotidianae a imagem nor- elaestava presente, em vários níveise de múltiplas formas, em
mativa da sociedade. Nas atividades de lazer (a leitura literaria todaa esfera pública,e prontamente aceitaram como “literá-
era apenas uma delas), os cidadãos desempenhavame desfru- rios” quaisquer textos que pudessem usar neste contexto.
tavam dos mesmos papéis, situaçõese direitos que esta ima- Onde asreformas burguesas eram reaçõesa situaçôese sen-
gem normativa lhes prometera, sem que a vida cotidiana vi- timentos de derrota nacional, como naPrússia,a imagem nor-
vesse sempre de acordo com esses ideais. mativa da sociedade era encenada como uma imagem do pas-
Normalmente, os Estados, para cuja estabilidadea esferae sado glorioso da nação, que estabeleceria padrões para um
a funçao do lazer tornaram-se cruciais, contribuíram paraa futuro nacional desejado. Como consequência, cada uma das
existência dessa instituição de mediação, tendo como funda- filologias nacionais existentes nesse ambiente se concebia co-
mento certas disciplinas acadêmicas. (Sem dúvida,a nova filo- mo uma “disciplina histórica”, um campo de pratica intelec-
logia pertenciaa essas disciplinas, mas a questãoé se minha tual com alto grau de habilidades específicas que precisavam
hipótese também nfio funcionaria para outros campos, pelo seradquiridas (por exemplo, competência em leitura nos esta-
menos nasciências humanas.) Essas novas disciplinas acadêmi- gios iniciais de um idioma nacional, paleografiae edição de
casoperavam em nível duplo. Primeiro, desenvolveram estra- texto)e que, por sua vez, produziriam certos critérios de pro-
tégias que hoje identificamos como pertencentesa uma “peda- fissionalização acadêmica. Em outros casos, no entanto, onde
gogia da leitura”. Novas instruçõese orientações ajudarama as reformas burguesas foram impulsionadas por revoluções
garantir certos efeitos compensatórios ou reconciliadores da bem-sucedidas ocorridas no passado nacional imediato (por
leitura literária, intervindo na tensáo entrea imagem normati- exemplo, França, Inglaterrae Estados Unidos),a crítica litera-
va da sociedadee a experiência social cotidiana.A leitura no ria não emergiu como uma disciplina histórica. Nesses novos
modo compensatório proporciona aos cidadãosa ilusão de de- Estados vitoriosos, a imagem normativa da sociedade era
sempenhar todos os papéis que lhes foram prometidos pela constituída não por suposcas lembranças de um passado nacio-
imagem normativae foram retidos no mundo cotidiano. A nal glorioso, mas por valores “humanos” gerais sem qualquer
leitura reconciliatória, em contraste, tentaria persuadir os con- índice específico de historicizaçao.A tendência francesa ainda
102 HA N S U L R IC H G U M B R EC I-{
s poderes da filologia: dinâmica de conhecimento textual 103

existente, de confundir la grand Nation com a humanidade e, re uma série de questões interessantes sobrea história da his-
em um nível menos pretensioso, a insistência agradavel de toricizaçâo dentro da disciplina dos classicos. Acima de tudo,
Matthew Arnold de que os estudantes de inglês deveriam ler sera que se deve considerar o início do século XIX como um
todos os grandes textos de todas as literaturas nacionais são momento de descontinuidade produtiva (no sentido de uma
apenas duas ilustrações paraa imanente —e nâo nacional — ló- “decolagem histórica”) dentro da história dos clássicos? Tal
gica do modelo nao histórico. Por outro lado,o lado “roman- visão tornou-se verdadeiramente consensual paraa história da
tico” dessa distinção,é interessante ver que, ao longo do sécu- nova filologia,a ponto de hoje quase ninguém reivindicara
lo XIX, sentimentose situações de derrota nacional continu- existência de uma pré-história disciplinar antes de 1800 — em-
arama gerar, com bastante regularidade, movimentos de his- bora histórias diferentes possam serditas para explicara razao
toricizaçâoe nacionalização filológica. Issoé verdade para o pela quala disciplina só surgiu depois de 1800.’ Outra questão
ressurgimento italiano de Francesco de Sanctis, paraa França específica em relação aos clássicosé ondee com que intensi-
apósa Guerra Franco-Prussiana de 1870-1871 (Gaston Paris dadea cultura da Antiguidade foi “cooptada” — paradoxal-
só então se voltou paraa historiografia nacional da literatura mente, pode-se enfatizar — como parte de certas imagens da
como seuprincipal campo de trabalho), ou paraa Espanha sociedade específicas da nação (esse foi definitivamente o caso
apósa perda de suas últimas colônias transatlanticas remanes- na Alemanha/Prússia,‘ mas o caso do Primeiro Império da
centes em 1898 (Ramón Menéndez Pidalé geralmente consi- França talvez seja igualmente interessante e muito menos
derado entre os autores da “geraçao de 1898” da ressurreiçao investigado).' Além disso, seé verdade quea presença cultural
nacional na história cultural de seu país; sua ediçao crítica do da Antiguidade passou por uma onda de historicização na vi-
El Cantar de mm Cid tem a reputação de ser uma das grandes rada do século XVIII (éassim que os historiadores da literatu—
realizaçôes culturais desse movimento).2 ra francesa se propõema entendera “querela dos antigose
Pelo menos daminha perspectiva alienígena de serromanis-
tae nao clássico, esse esboço de uma história disciplinar suge-
3. Uma história tào alternativa — que começou por volta de t800 —é o metecido
famoso livro de Bill Readings, The Giiirersiiy iiiR uiiis (Cambridge. Massachusetts:
Harvard University Press, 1996). [Readings, B. A universidade em ruínas.
2. Com rclas3oa Menéndcz Pidal, consulteo capitulo2 deste livroe meus ensaios
Coimbra: Angelus Nov us, 2003.]
“LebendeVergz ngenheit: Zur Typologic der ‘Arbeit am Text’ in der spanischen
Kultur”, em Das/rcinde lfurt: Stuüieti zur luterüeyeiidetiz i'vr Texteti: Festsclirififür Karl 4. Vejao capitulo5 deste livro.
Maurer zum 60 Ceturisiag, ed. Ilse Nolting-Hauffe Joachim Schulze(Amsterdam: 5. Ver “Cedivanétoilé d'or” — Empire als Stilepoche/ Epochenstil/ Stil/ Epoche. ein
Grüner, 1988), 81 -i 10;” A Philological Invention ofModernism: Mencndez Pida1, 2em Promicin der C•esrliirlitlicld:eiIüstlieti’srlier.Vitrinen: Die A iilikeiiy kI''aiiüeIdesUrteilsües
Garcia Lorcac o Harlem Renaissance", em The Futuce if the MiG Öle Ages: Medieval l9. ]alirbutiüerts: Vortriigedes 1 1 1. Werner Rrauss-K‹illuquinins,Sitzungsberichte der
French 1.iferafure ir rJie 1990s, ed. William D. Paden (Gainesv the: University Press Akadenii* der Wissenschaften der DDR / Gesellschifrswissenschaften, n.1 / G
of Florida, 1994), 32-49. (Berlim: Akademie—Vetlag, 1986), 269-94.
t04 H AfIS U LR IC H G U M B R EC HT Os poderes da filologia: dJnamica de conhecimento textual t 05

modernos”), poder-se-ia dizer que a cultura histórica do sé- profundas na pratica disciplinar. No maximo, eram sintomas
culo XIX gerou uma segunda onda de historicização de im- de um alto nível de autorreÉlexividade —o primeiro passo, tal-
pacto semelhante?E se isso estiver correto, as duas ondas de vez, na transformação de um estilo cultural em um método
historicização produziram efeitos de interferência? Finalmente, acadêmico. Por mais que alguns dos grandes novos críticos co-
que influência cada ambiente disciplinar específico de cada nhecessema história da culturae da literatura,a historicizaçao
país — por exemplo, as filologias concebidas comO disciplinas dos grandes textos literários simplesmente não pertencia às su-
históricas na Alemanha versuso ideal de crítica literária de as preocupações intelectuais ou culturais.
Matthew Arnold — tem sobre o desenvolvimento de classicos Um dos primeiros sinais de mudança nessa situaçao, pelo
em diferentes países? menos no contexto dos Estados Unidos, foia fundação, no
Voltandoà nova filologia, discutirei brevemente dois casos final da década de 1960, de uma revista acadêmica com o no-
extremos (esimilares) na história acadêmica da historicização, me programatico de Nova História Literária, que buscava alcan-
o da Grã-Bretanhae o dos Estados Unidos. No que diz respei- ce internacional através da escolha dos estudiosos que nela
to aos dois tipos de formas disciplinares que distinguirei, am- publicavam.A revista foi recompensada com um sucesso na-
bos os casos pertencem ao modelo não romantico (não prussia- cionale internacional quase imediato. Foi também o momen-
no)e constituem um caso extremo porque, pelo menos em um toem quea “teoria francesa” começoua conquistar departa-
nível institucional mais am lO,a historicização nfio se tornou mentos de literatura nos Estados Wnidos, reunindo sob seu
realmente parte de suas práticas filológicas profissionais antes nome enganosamente unificador dois estilos intelectuais e
da década de 1960. Enquanto asÔlologias nacionais continen- praticas acadêmicas verdadeiramente divergentes. Uma dessas
taise sua prática de historicização passaram por uma profunda praticas foia desconstrução. Sendo, entre muitas outras coisas,
crise, começando na década final do século XIX, uma crise uma reinvenção da filosofia como técnica de leitura atenta, ela
que acabou provocandoo surgimento de subdisciplinas Como ofereceu uma transição suave da sofisticada cultura de leitura
teoria literária e literatura comparada”,6 o modo alternativo da nova crítica. Diferentemente de outros estilos de close head-
de crítica literária na Inglaterrae nos Estados Unidos foimuito ing, no entanto,a desconstruçao sempre seorgulhoue desejou
menos afetado pelas mudanças em seuambiente cultural.A no- minara estabilidade semantica e, às vezes,a autoridade insti-
va críticae os debates sobre os diferentes canones da leitura li- tucional dos textos com os quais lidava.7
teraria para estudantes universitarios, iniciados na segundae na
terceira deCâdas do século XX, nÃO provocaram mudanças
7. Cont relaçãoà sdaptaç*o da filosofia desconstrutiva nos Estados Unidos, veja meu
artigo de revisao: “Déconstiuction deconstructed: Transformarioncn franzósischer
Veja meu artigo “The Future ofLiterary Studies,” New literary His/vry 28 Logozentrismuskritik in der amcrikanischen Litera‹urwissenschaft,” Piiifesuyliís‹lie
6.
Ruuhsiliau 33 (1986), 1-35.
t995), 499—519.
106 H A N S U LR I C H G U M B R EC HT
5 poderes da filologia: dinâmica de conhecirriento textual 107

A outra metade da “teoria francesa” eraa versao renovada tão aqui, apenasa desconstruçào não desencadeou movimentos
de Michel Foucault da história culturale intelectual. Agora, de historicização na Inglaterrae nos Estados Unidos. No en-
exceto por sua origem francesa,a filosofia desconstrutivistae tanto,é revelador que esses três paradigmas críticose potencial-
a historiografia foucaultiana compartilhavam pouco valor — mente “subversivos” (um conceito de estimação daqueles anos)
certamente, confiavam em bases epistemológicas muito diver- tenham sido adotados simultaneamente pela tradição acadêmica
gentes —, mas tiveram um impacto semelhante na pragmatica anglo—americanae tipicamente propagados por essa geração de
das disciplinas literárias nos Estados Unidos. Os trabalhos de acadêmicos que testemunharama revoluçao dos estudantes eu-
Derridae de Foucault foram usados para defender uma mu- ropeus ou do protesto contraa Guerra do Vietnfi nos Estados
dança programática na função das disciplinas literárias. Das ta- Unidose atémesmo participaram ativamente deles. Assim co-
refas tradicionais que o ensino da literatura havia cumprido na mo aconteceu nas universidades eu ropeias do início do século
Inglaterrae nos Estados Unidos — contribuindo paraa conti- XIX, surgiram uma reformulação das disciplinas acadêmicase
nuidade de situações sociais bem estabelecidas (e provavel- um interesse pela historicização entre uma geraçao comprome-
mente privilégios de classe bem estabelecidos) —, eles agora se tida com a crítica de um presente político. Resta ver, especial—
voltaram paraa “problematização”e a “desestabilizaçâo” co- mente no caso dos EUA, seuma onda de historicizaçào pode
mo seus novos valorese missões “políticas”. lsso explica por sobrevivera esta geraçãoe ao seu desejo de protesto político.
que os novos historicistas que cultivaram uma versao america- Se, pelo menos no início do século XIX,a capacidade ou
nizada do estilo historiografico de Foucault se uniram em tor- necessidade de historicizaçáo se tomara um agente de profis-
no de dois novos sentimentos.O primeiro foia sensação de sionalizaçao, qual era exatamentea competência que definia
que a colocaçao da históriae a representação de “fatos” no essa habilidade? O que determinou seus graus inerentes de so-
texto historiográfico eram amplamente arbitrarias (o desafio fisticaçao? Antes de tudo, eu gostaria de enfatizar que, de uma
não era mais identificara história verdadeira, mas inventar perspectiva estritamente fenomenológica,a historicização náo
uma boa história). Tal sentimento foisuplementado pela sensa- apresenta qualquer relação com a identificação de estruturas
ção adicional de uma liberdade quase literária que deveria ser temporais inerentesa certos objetos. “Objetos de tempo no
desfrutadae ativamente usada pelo historiador. devido sentido” [Zeitobjelete im eigentliclien Sinn] são, de acordo
O novo objetivo de ser “crítico” também explica por que, com Hussçrl, objetos que não podem existir fora da dimensão
mais ou menos simultaneamente com a teoria francesa e, so- da temporalidade. Embora isso seja verdade paraa músicae pa-
bretudo, no Reino Unido,a tradição da escola de Frankfurt, raa maioria, se nfio para todas as formas de comunicação ver-
versao suave da teoria marxista, começoua encontrar leitores bal, tambémé claro que ser um objeto de tempo, nesse sentido,
entusiasmados, fazendo emergir, durantea década de 1980,o não é o que torna “histórico” uma ópera de Mozart ou um dia-
paradigma dos estudos culturais. Dos três paradigmas em ques- logo platónico. O que torna um objeto histórico — e eu não
108
H A N S U L R IC H G U M B R EC HT Os poderes da filologia: dinamica de coriheciznezzto textual \ 09

é a dispO- alteridade espacial) ." Pois o principal movimento de historici-


vejo nenhum outro movimento de historicízaçao—
assumir
sição do espectador de superar uma inércia primaria de zação apósa suspensão do “à mao” não é,pelo menos não
que ele ou ela sabe o suficiente para fazer um b ON1 GSO OU, ainda, uma distinçao entre alteridade temporale espacial, mas
Isso
pelo menos, um uso adequado de um objeto encontrado. sim a reação (“decisão” provavelmente seria um conceito
parece ser, como atribuição de objeto,o sinônimo de suspen- muito forte aqui) de náo deixar cair, negligenciar ou eliminar
en-
dero pressuposto “ingênuo de que qualquer objeto que objetos para os quais não temos uso imediato. Comoa sus-
contrarmos será, de alguma forma, pertinente para nós. Obvia- pensão do “à mão” nãopode serconsiderada exclusiva da his—
exclusivo
mente,o potencial de desencadear essa reação não é toricização, ainda precisamos procurar o queé únicoe espe—
devemos
de objetos que pertencem ao passado. No entanto, cífico sobre ela.
por assim Eu gostaria de acrescentar aqui que identificar algo como
terisso em mente como um nível intermediario,
dizer, para identificaro que é único na atitudee na prática de klassisch, no sentido estritamente gadameriano de pertencera
historicieaçao. objetos com poder de curvatura atemporal [mitiiberzeitlichei
A precondição da historicizaçâo é, ]3OVtaIltO, a dispOSição Sagkraft], implica uma dupla suspensão."’ Com base na primeira
permeia
de dar um passo atrás na orientação pragmatica que suspensão, isto é,a suspensão do pressuposto de que sou com-
o objeto em petente pata lidar com qualquer objeto que encontro, identifi-
nossa vida cotidiana. Esse passo atrás transforma
questao — para usar uma distinção heideggeriana— de um ob- car algo como klassisch implicaa suspensão secundária dessa
consciên- mesma reserva ou, em outras palavras, uma ruína desse passo
jeto à mão” em um objeto“presente-à-mão”.‘ Ter
pois atrás que tomamos sempre que praticamos a historicização.
cia histórica é, portanto, semelhantea sei cosmopoÍita,
cosmopolitas são aqueles que não se sentem completamenteà Identificar algo como lelassisch significa reconhecer que um ob-
suspen- jeto primariamente “estranho” se tomara importante ou perti-
vontade em lugar algum. Certamente, as razões para
dois casos nente para mim, embora eu nào façao esforço necessário para
dera perspectiva do objetoà mao sao diferentes nos
históricae identificar seus aspectose condições específicas históricas para
—é o afastamento temporal no caso da consciência
cosmopoli-
o afastamento espacial (ou cultural) no caso de ser
desaparecer
ta. Mas essa diferença pode ficar confusa ou até
9. Ver “Vorwort der Bandhetausgeber”, ent La Littérature historiographique des
“historiogra-
completamente em certos contextos cultUrais (a originesa J 500, ed. Hans Ulrich Gurnbrecht, Ursula Link-Heere Peter-Michael
de
fia” medieval parece terincluído regularmente fenómenos Spangenberg, Griiridr¡/i dern'iiiniiisclteuLiieraturetidesL firtelnltecs, v. 11, pt.1 (Heidelberg:
Winter, 1956), 17-25.
10. Hans-Geotg Gadainer, “Das Beispiel d*s K lassischen”, Wahrheit und Met hode:
ed. (Tübingc Grundzüge einer philosaphischen Her nieneutik, 2‘ ed. (Tübingen: Mohr, 1965),
Dyn ol do no ponto 15 de Martin Heidegger, Seiii «rd Zeit, 15'
[HEIDEG GER, M. Sem‹ i‹i»pv. PartesI e Il. Trad. MarCia Sa 269-75 [GADAMER, H.G.P'erdadee infr«d‹›. Trad. Flívio Paulo Meurer. Petrópo-
Nieineyer, Í 984).
Cavalcante Schuback, Petrópolis: VozeS, 20021 lis: Editora Vozes, 1999].
t—tA N S U I-R t C H G U M B R E C H T
1 10 Os poderes da filologia: dinâmica de conhecimento textual lll

torná-lo pertinente. Portanto, nao podemos realmente apreciar Bourdieu, poderíamos sugerira seguinte regra: quanto menos
como úldssischo que nào identificamos como historicamente re- óbviaé a necessidade de historicização em relaçãoa um objeto
moto.A maneira de Harold Bloom lerShakespeare, por exem- em questão, maioré a tendência de apreciare até de admirara
plo, sua obsessao por se encontrar no personagem de Falstaff, vontade de historicizar como uma prova de sofisticaçâo intelec-
é imune àscríticas que a percebem como uma leitura histori- tual. Paraa maioria de nós, não é terrivelmente meritório perce-
camente ingénua porque tira sua provocaçao específica (e tal- ber que somos incapazes de decifrar um texto escrito nos hieró-
vez sua sofisticação específica) da decisão de nfio historicizar glifos egípcios antigose considerar fascinantes estes sinais. Mas
Shakespearee seus personagens." Mas não deveríamos admitir imediatamente me senti envergonhado por minha própria falta de
queo que nos encoraja — leitores profissionais— a sustentar nos- sofisticaçaoe consciência histórica [historisches Beunf!tsein] quan-
sascapacidades de historicizaçãoé frequentementea observação do um renomado jornalista cultural mencionou recentemente,e
de que um determinado texto ou uma obra de arte do passadoé de passagem, que nao gostava mais dos textos de certo estudioso
capaz de fascinar até mesmo aqueles leitorese espectadores que porque eles não haviam superado “o sabor estilístico do final da
não seriam capazes de reintegrá—los em seus contextos históricos década de 1990”. Meu filho de dez anos de idade provocou uma
originais? Que reflexão poderia nos levara perguntar como sâo impressão análoga ao qualificar seu desejo natalino por um skate
asimagens dos textose da cultura antigos que a disciplina dos com o comentário de que “é uma moda do início da década de
klassis‹li costumava produzire continua produzindo? t990 agora fortemente retomada” (embora eu tenha assumido in-
Não é de surpreender que cheguei mais uma vezà conclusão genuamente que o skate era moderno de qualquer maneira).
de que as habilidades dos humanistas nfio sfio tanto as atitudese Mas voltemosà abordagem fenomenológica da historiciza-
os procedimentos impostosa nós por certos objetos, mas uma çao,à observação de que a historicidadeé algo produzido em
vontade de complexificaçâo, uma vontade de tornar as coisas di- nossas mentes contra uma inércia consideravel,e nfio algo ine-
vertidase dolorosamente complicadas dentro da mente humanis- rentea certos objetos de referência. Ao suspender, pelo menos
ta.'2 Como tentei argumentar antes,o movimento decisivo não em alguns casos,o pressuposto primario de que sabemos lidar
é imediatamente abreviar, largare eliminar objetos para os quais com os objetos que encontramos, destacamos os objetos em
nào temos uso imediato nem óbvio. De um angulo inspirado em questão, os envolvemos com uma aura e, enfatizando seu afasta-
mento, os transformamos em objetos de desejo." Uma vez que

13. Eu acho que finalmente se tornou legítimo usaro conceito de “aura” sem se referir
i continua produção dos filólogos de Benjamin. Para uma excelente “arqueologia”
marty. Trad. josé Roberto O'Shea. Rio de janeiro: Objetiva, 2001.] dessa noç ào, no entanto, vejao ensaio de Ursula Link-Heer em 3Japping Betijainin:
l2.p ttt n a descriçao da leitura comou mz oscilação entre• °^P°•'f° • *8**° d°° The ítem «/N ra iii ihe Digital Age, ed. Hans Ulrich Guinbrecht and Michael Mar-
rosaà comp1e.sidade, consulteo capítulo5 deste livro. rinan (Stanford. Calif.: Stanford University Ptcss, 2003).
H A N S U L R I C H G U M B R E C HT
Os poderes da ó4otogia: dinâmica de conhecimento textual 113

os qualificamos como “objetos cercados por uma aura”e “obje- Resistireià obrigaçao, proveniente do nosso respeitado le-
tosde desejo”, nào estamos longe do significado original da pa- gado doI luminismo (amaré mais uma obrigaçao do que uma
lavra latina socere de dizer que esses objetos sáo “sagrados”. Esta tentação!), de dizer que os objetos sagrados que produzimos
é realmentea direção argumentativa em que estou indo. Quero nao sào realmente sagrados, ou que devemos tercuidado em
dizer que, através de nossas habilidades de historicização, produ- cria-los porque fazer isso nao seria muito racional. Pelo con-
zimos objetos sagrados,e quero evitar qualquer tom metafórico trário, gostaria de reivindicar (assim como expressar meus ar-
nessa proposição (tanto quanto quero evitar outros efeitos de ser rependimentos) que uma de nossas funções sociais mais hon-
espirituoso ou academicamente imaginativo aqui). Antes, quero radas e religiosas como historiadores, um de nossos títulos
afirmar que os objetos sagrados produzidos pelos historiadores anterioresà legitimidade —a expectativa de que possamos ser
culturais sfio tão legitimamente sagrados quanto os produzidos capazes de produzir algum tipo de prognóstico valioso — tor-
por qualquer outra religião. Pois nâo há objetos sagrados sem nou-se obsoleta, ao menos desde o desaparecimento do mar-
quadros específicos de encenaçãoe andaimes (como nossas cons- xismo (fora dele,a mesma alegação havia sido historicamente
ciências históricas, por exemplo), sem padres, teólogos, historia- benignae relativizada muito tempo antes; pense, por exem-
dorese especialistas em qualquer outro campo capazes de isentas plo, no trabalho de Reinhart Koselleck). Confrontados com o
esses objetos da esfera cotidianae explicar por que eles exigem vazio que a pratica agora abandonada do prognóstico deixou,
(ou, de maneira mais sofisticada, por que eles merecem) um tra- poderíamos fazer muito pior, para dizero mínimo, do que
tamento especial. Issoé verdade para certo vagâo ferroviario que redescobrira verdade de que apenas por historicizar as coisas
pode servisitado em Compiégne, ao norte de Paris (a rendição já produzimos objetos sagrados, recuperando, com isso, nosso
das Forças Armadas alemãs em 1918e a rendição dos militares status de especialistas dessa prática. Mencionarei apenas a
franceses em t940 foram ambas assinadas nesse carro), quanto identificação frequentemente proposta de nossos museus con-
para os ínfimos fragmentos da Santa Cruz que minha mãe guar- temporâneos como “templos (pós) modernos” porque eu con-
da na gaveta;é verdade para aqueles pedaços de pão que os cató- cordo demais com esta ideia, mas também porque discordo do
licos praticantes acreditam sero corpo de Cristoe as garrafas de status metafórico que normalmente acompanha essa observa-
cachaça que você oferece aos deuses dos cultos afro-cristãos nas ção.A verdadeira questão que quero abordaré a seguinte: que
esquinas dos cinemas brasileiros em qualquer segunda-feiraà funções religiosas específicas nossos objetos históricos sagrados
noite. Entendo que asrazões pelas quais esses objetos sao sagra- podem cumprir?
dos diferem de um caso para outro, mas o ponto de convergên- A respostaé que objetos históricos/historicizados podem
ciaque quero enfatizaré que todos eles sao concebidos por es- nosajudara superaro limiar da morte. Isso me parece tào
pecialistas como objetos sagrados. Em outras palavras, nâo exis- óbvio que sequer qualificarei minha resposta como tentativa.
tem objetos “primariamente” ou “naturalmente” sagrados. Agora, dizendo — como costumamos fazer em outros contex-
114 HAwS ULAlCH GUVBRECHp
Os poderes da filologia: dlnamica de coabecimento textual

tos — queuma religiãoe seus objetos sagrados podem nosaju- transcendência.A consciência histórica pode terpreenchido
dara superar o limiar da morte, normalmente ou,pelo menos, uma crença em Deus que desapareceue na vida apósa morte
primeiramente nos referimos ao limiar futuro constituído pelo que eleparecia prometer.
fim de nossas próprias vidas. Tanto Martin Heidegger quanto, No entanto, neste início do século XXI, “nós estudiosos”
mais surpreendentemente, Niklas Luhmann explicaram por (como Nietzsche teria dito) desistimos quase completamente
que imaginara própria “vida apósa morte”é tanto impossível do esforço de tentar superar o limiar da morte antecipando
quanto fascinante." Mas foi apenas Heidegger quem mostrou, o futuro." Nosso fascínio, em vez disso, reside, para citar
com uma sobriedade de tiraro fôlego, comoé inútil cederà Stephen Greenblatt,o mentor do novo historicismo, em “falar
ilusão de que poderia haver qualquer coisa além do nada após aos mortos”.’7 Hoje existe um estilo de escrevere de encenar
a própria morte. Visto por esse ângulo,a promessa ideológica a história cuja principal ambiçao, se nao única, reside em nos
de “viver” no futuro da nação ou da classee os prognósticos fazer esquecer que o passado não esta mais presente.” Tornar
do estilo hegeliano baseados na observação da história hoje nos objetos materiais do passado presentese tangíveis — ou, pelo
parecem ideias religiosas nfio muito convincentes que sobrevi- menos, aponta-los — muitas vezes parece produziro efeito ver-
veram ao diagnóstico impiedoso de Heidegger por quase meio dadeiramente mágico de eliminara distância temporal que
século. Dizem quea obsessão pelo prognóstico de base históri- nos separa do passado desejado, ajudando-nos, para ser mais
ca, que surgiu duranteo século XVI IIe se popularizou no sé- preciso,a produzira ilusão desse efeito. Entregar-se, então,à
culo XIX, pode terresultado da secularizaçãoe do abandono, ilusão de que podemos fazer com que os mortos falem conos-
pelo menos entre os intelectuais, da esperança, originalmen- co —e se alguém pode dizer que podemos fazê-los falar conos-
te religiosa, de uma vida apósa morte.' Em outras palavras, co apenas por nosso prazer — é uma maneira de superaro li-
“nossa” culturae consciência históricas podem tersedesen- miar da morte, nos persuadindo de que asmortes daqueles que
volvido desde o momento em queosintelectuais começaram viveram antes de nós nao nos separam deles, o que finalmente
a perdera crença no horizonte tradicionalmente religioso da

16. Isso realmente nao é verdade exclusivamente para os estudiosos. Ver Niklas
14. Heidegger, 6eir und Zeir, par ígrafos 4ó-53; Niklas Luh mann, Social Systems Luhrnan ri, “Die Beschrcibung der Zu kun lt”, Be«fiariiruii$er ãfuienie (Opladen:
(Stanford, Califórnia: Stanford University Press, 1995), 2f›2-67. [HEIDEG GEO, Wesideu‹scher Verlag, 1992), 129-4S.
M. Sei e tempo. PartesI e II. Trad. Marcia Sa Cavalcante Scbuback, Petrópolis: 17. Stephen Greenblatt, “Towardsa Poctics of Cultur*,” in The. lew Histarícisin, ed. H.
Vozes, 2002]. Arani Veeser (New York: Aoutledge. 1989), 1-14.
15. KarlL öw ith, Weltgescliicliie uls fleifigesrfiefier, 5' ed. (Stuttgart: Koh lhan mer. 1953). t8. Meu livro iii 1926: úii'ing attlie Eúge ufTime (Cambridge, Massachusetts: Harvard
Veja tanibém nieu artigo “Die kaum art ikulierte Pr amise: volkssprachlichc Uni— University Press, 1997) pretende fornecer esse sentimento ao leitor. Veja sobretudo
versalgeschichte unter heilsgeschichtlicher Perspektive”, em L° Lifierat«re fiisto- o capitu lo “Depois de aprender com a história.” [Em 1926.- P'irerdv iii› limite Iv
ri‹igrapfiigue, Ed. Gumbrecht, Link-Heere Spangcnberg, 799-8t7. teinyn. Trad. Luciano Trigo. Rio de Janeiro: Record, 1999].
116 H A N S U L R I C H G U M B R EC HT
Os poderes da lologia: dinâmica de conbecimezito textual 117

significa também que ignoramos aslimitações temporais esta- da morte, implica inevitavelmente um afastamento do futuro
belecidas por nosso próprio nascimento. Ambos osgestos — ou em que nossas próprias mortes estarao. Virar-se para os mun-
seja, ambas asdireções para superaro limiar da morte, o prog- dosdo passado, “apaixonar-se por eles” ilinenvetf4llenseín, po-
nósticoe a fala mental — são transcendentais de uma maneira de nos ajudara esquecer o nada insuportavel que virá com
estritamente fenomenológica, mas também deum convencio- cada uma de nossas mortes individuaise que Heidegger quer
nal senso teológico. O fato de as possibilidades de percepção, que enfrentemos com tanta coragem. Certamente, houve ma-
de experiência vividae de experiência de todos serem limi- neiras de praticara história em um passado nao tào remoto
tadas pelas duas fronteiras temporais de sua vidaé uma estru- que teria sobrevivido ao desafio existencialista de Heidegger
tura do mundo da vida humana." Transcender as fronteiras — uma delas talvez sejaa tentativa de Kojêve de pensar o fim
do mundo davida, tentando anteciparo futuro ou tentando da história de maneira hegeliana. Portanto, não ha relação ne-
falar com os mortos, significa mover-se imaginativamente cessária entrea historicizaçào do mundoe o afastamento do
para uma zona que está além dos limites do mundo davida. confronto com o nada. Produzira ilusão de falar aos mortos
Esta é uma zona que normalmente descrevemos como o como um usoespecífico da historicizaçao, no entanto, deve
“humanamente impossível” ou associamos com o que ima- serqualificado em um mundo heideggeriano como existen-
ginamos ser“qualidades divinas”. Anteciparo futuroe falar cialmente covarde. Mas quem nosobrigaa optar pelo mundo
aos mortos poderiam ser, nesse sentido, o começo da ilusfio deHeidegger? Nao temos o direito de voltar da dolorosa im-
de se tornar eterno. possibilidade de imaginar nossas próprias mortese da dolorosa
Se estaé uma descrição justa de uma dessas fascinações es- certeza de que elas ocorrerão?
pecíficas que, em nosso presente, impulsionam o engajamento
com o passado, podemos tercerteza de que Heidegger inter-
pretaria esse entusiasmo por falar com os mortos como um
sintoma de nossa “queda para o mundo”. Voltar-se parao pas-
sado, fazendo com que os mortos falem para superaro limiar

t9. Sobreo uso do conceito de Husserl, Leéeii meh, para um.a an3 lise da historiografia
como um gencro, veja men ensaio “Das em vergangenen Zeiten Gewesenesoer-
zählen, tainbém ent outras linguas: Welchwäre: Versuchzur Ant hropologie der Ge-
schichisschreibung”, em Focineii )er ‹Sescliicli/iirJireiéwig, ed. R. Koselleck, H. £utz
e J. Ruesen, Theorie iferCreschichie, v.4 (Munique.- Deutscher Taschenbuch Verlag,
1982), 480-513 (tnidu9ao parao inglés em lfm iiig Sense em L¡/e und Liiernriire [Min-
neapolis: University of Minnesota Press, 1992]).
CA P ÍT UL O S

Ensino

Quando falamos sobreo ensino na universidade, hoje em dia,


certamente esta claroo que devemos tentar evitar. Ninguém
quer mais essa retórica de domingo de manha sobre o quão
maravilhosase indispensáveis, ainda que subestimadas, as hu-
manidades sao. Deveríamos parar de falar de nossa profissão
usando aquelas grandes palavras para as quais todos dentro das
humanidades retornam de tempos em tempos (senão cons-
tantemente)e que todos fora das humanidades aceitame até
apoiam facilmente — pela simples razao de que ninguém, den-
tro ou fora das humanidades, acredita nelas de qualquer ma-
neira. Ninguém precisa de mais debates sobre sea tarefa de
nossas disciplinas deve seruma “compensação” (isto é, “com-
pensação” pelos horrores da tecnologia) ou uma “orientação”
(sem saber quem iralucrar com as bênçaos de tal orientaçao).
Ninguém precisa mais dessas afirmações vazias que, de algu-
ma maneira e inevitavelmente, parecem levara afirmações
ainda mais vazias de que a verdadeira natureza de nossas disci-
plinasé sei “interdisciplinar”, “integrativa”e “dialógica”. Eu
gostaria de nao ser mais expostoa autoidentificações como as
de queashumanidades são “esclarecedoras” porque suposta-
menteé tarefa delas resistir e, se necessario, desfazer os “efeitos
remitologizadores” da sociedade contemporanea; nem quero
HA N 6 U L R IC H G U M B R E C HT Os poderes da fitologta: dJnãmica de conhecimento textual

$ mais confrontado com a distinção entre “cultura” (= boa) cional. Certamente, atingimosa mesma barreira de desam-
e civilização" (= ruim).' paro nos debates acadêmicos americanos,e ainda tenho que
Às vezes, como todos sabemos (porquea evidência empíri- decidir se penso queo maior grau de ingenuidade delesé
ca nos persegue por correioe e-mai1 sem piedade),a qualidade mais charmoso ou mais devastador que os argumentos-pa-
das próprias reRexões das humanidades sobre seu statuse seu drão produzidos em sériee bem embalados da discussão aca-
futuro atinge o nível daqueles prefacios repugnantemen te dêmica alemã tradicional. Mas qualé o problema acadêmico
bem-intencionadose documentos de relevância puramente internacional? Por que produzimos tâo profusamente um
administrativa.É mais preocupante, no entanto, ver que mes- discurso que claramente piora quanto mais seu volume au-
mo as contribuições parao debate em andamento sobre as
menta? O problema pode ser, pelo menos em parte, que não
humanidades sào caracterizadas por um grau mais alto de
há problema real. Nós nos defendemos constantemente con-
complexidade e, se assim se pode dizer,a verdadeira dignidade traas administrações estaduaise de uma esfera pública que
intelectual nao pode escapar completamente de certos efeitos não são realmente nossos inimigos porque não têma intenção
do trivial. Precisamos mesmo nosdizer que o “fascínio extra-
de reduzir seriamente nosso tamanho ou nossa importância.
-ãCâdêmico pela história, pela experiência estéticae pela sen-
Pelo contrário, elas são grotescamente ansiosas para concor-
sibilidade linguística”é condição de estrutura desejavel parao
dar com quaisquer argumentos que possamos apresentara
nosso trabalho?' Será necessário lembrar dos valores de educa-
nosso favor.É nossaa paranoia que defendea existência de
ção [Bildung], isto é, da expectativa de que os anos passados na um seminário de romanística {RomaniSches SeminaY] em to-
universidade conduzam jovens pesquisadoresà “independên- das as universidades [Gesamtliochschule] — ou a intenção de
cia” intelectuale pessoal?’ fechar um dos 25 desses semináriosé uma evidência de “su-
Infelizmente,o problema nãoé específico parao contex- as” intenções ocultas, porém más? Em outras palavras, o
to alemâo ou para qualquer outro contexto acadêmico na-
problema parece serque, apesar de nossa própria histeria £lo-
rescente, não temos inimigos realmente ameaçadores. Em
vez disso, nossas expectativas são muito altas (todo fragmen-
Encontrei essa coleçào notível de l»g• •S-COn1uns nas primeiras sete pi ginss
e meia de Wolfgang Frühwi ld, Hans Robert Jauss, Reinhart Kosellec k, Jü rgcn
to recém-encontrado precisa de uma ediçfio crítica?). Por
M itte I se
rass e B u rkharaS reinwachs, C; riley,i,i ssyii Syi nfiz , y e ute: y¡„ Dê „§ ; fi, que, por exemplo, os humanistas alemães costumam brincar
(Frankfurtz m Main: Suh rkanip, 1991), 7-}4.
junto com a “pequena tendência burguesa”e com o desejo
2. Rüdiger Bubner, “Die humaneBedemung derGeisteswissenschaften”, Zu'iiffieiirufe.'
de certos setores sociais de inventar funções simplificadas
A 8›’ 'fe'Jl eu'egleti fuhren (Ftan kfurt am Mo in: Su hrkap p, 1993) 1 21-38 (pj
t pj gj
3. Df0ter Henrich. “D ie Krise der Universitat int vereinigten Deuischla nd”, .Nach para todae qualquer disciplina humanística (culminando na
8"!8 Ea Je her Teifur2: Ülier frter/iritfer Mrd Iiilelleßtu g] ¡;fit ¡p Deytscl; layy (Fra nkfurt invenção dos estudos culturais) em vez de se conectar com
8m M8in: Suh rkamp, 1993), 125-56 (citasao 141) as fundaçõese as políticas que estão dispostasa apoiar as hu-
H A N S U L R IC H G U M B R E C HT
Os poderes da filologia: dinâmica de conhecimento textual

manidades pelo bem delas mesmasi‘ Por que estamos voltando Dilthey) por volta de 1900. Além disso, inúmeras sociedadese
nossos instintos social-democratas contra nós mesmos? Minha culturas existem muito bem sem disciplinas acadêmicas como
resposta bastante confianteé que nós, humanistas, sofremos de a nossa. Portanto, mais uma veze muito provavelmente, pare-
um pessimismo muito mais profundo, talvez até de uma falta de ceremos mais convincentes se admitirmos que ashumanidades
entusiasmo muito mais Sagrante, sobre nosso próprio trabalho são uma instituição especial que algumas culturas chegarama
do que aqueles grupos com quem interagimos na prática de oferecer, uma vez que pode produzir benefícios especiais (os
nossa profissão (eu chamo essa resposta de “confiante” no sen- quais deveríamos nomear), em vez de fingir, de forma pouco
tido de que a acho convincente, mas percebo que pode haver convincente, queo fim das humanidades seja realmente o fim
alguma pressão colegial para qualifica-la como “experimen- da humanidade. Mais importante: as manetras pelas quais re-
tal”). Em vez de tentar provar meu argumento com citaçôes Fletimos sobre nossa situação profissional deve sera mais espe-
longas ou estatísticas complicadas,' vamos vercomo podemos cífica possível. Neste ensaio, portanto, tentarei pensar na situ-
reagira essa condição de depressao coletiva crônica. ação dos classicos, nao nas humanidades em geral; tratarei dos
Se queremos voltara ter uma atitude de confiança, se que- classicos como uma profissao, não como um campo do conhe-
remos, por assim dizer, reenergizdr nossa autoimagem, sera im- cimento; farei isso estabelecendo uma relaçao entrea situação
portante nao excluir, de nossas reDexõese debates,o pior ce- atual desta profissãoe sua situaçao na Europa durantea segun-
nario. Em outras palavras, nao devemos excluira possibilidade dae a terceira décadas do século XX. Dado meu diagnóstico
de que as humanidades poderiam de fato ter atingido seu final inicial, segundo o qual o que mais precisamosé de autorree-
histórico.‘ Afinal, elas tiveram seu início claramente marcado nergização (pelo menos, precisamos disso mais do que uma
como instituição no início do século XIX e seu início como defesa pública contra acusações que nâo existem), há um pe-
um programa explícito (formulado, entre outros, por Wilhelm rigo específico inerenteà especificidade da abordagem histó-
rica que eu escolhi. Como evitar que o passado que tento
evocar se transforme em “um fardo invisívele sombrio”, co-
4. Estou seguindo ManfredF uhrinann. “HaSSiS(he Philologieseit 1945: Erstarrung, mo Nietzsche disse,7 em vez de se tornar um “relâmpago ar-
Geltungsverlust, neue Perspektiven”, em Die s‹•g. GeistesivisseiiscliaJlen: latieaansicliteii,
ed. Wolfgang Prinze Peter Weingart (Frankfurt am Main: Suhrkamp, t990). 3t3-
28 (cita9ao 327).
5. Ver “Dysphoria”, introdu9aoa Hans Ulrich Guinbrechte Walter Moser, eds.,
7. Ver Friedrich Nietzsche, Pi›in Turnere .VarIiifieif 4ei ftistorie für das Lrl›en. em
CaunJiaii J»urraf ‹/ C‹›inparaiiie 1.iferafure9 (2001), cdi9*o especial, “The Future of
Siii»tficfie Werke, Kritische Studicnsusgabe, v. 1. (Monique: Deutscher Taschenbuch
Literary Studies/L’avenir dés études liitéraires”, em que apresentanios cerca de
Verlag. 19B0), 249: “o grandee inaior fardo do passado: isso preisiona [o homem]
trinta visöes de colegas estudiosos sobreo futuro da eritica lireraria.
para bzixo ouo inclina para os lados, isso pesa sobre Gang como um fardo invisivel
6. Veja nieu ensaio “The Origins of Literary Studies — and Their End?” SraiJ›rJ e escuco.” [N IET ZSCHE, F. Scorea u/ifidudee a desvaiitagein da fiisiéria paraa ride.
Huinatiiiies fiei'iei« 6, n°t (1995), I—10. Trad. André Luis Mota Itaparica. Sao Paulo: Hedra. 2017].
t 24 H A f•/S U L /tT C H C Li M B R EC H T
Os poderes da filologia: dinanzica de coa6ecimezito textual

dente de dentro de uma nuvem”?' Como posso nào ficar do momento presente”." No presente momento, contudo,
preso nessa “autorreferência irônica”” que ele descreve como tentarei encontrar uma maneira novae contemporânea de
uma atitude de seu próprio tempoe que permaneceu (ou se concebero que Nietzsche propôs paraa profissão de filolo-
tornou) nossa própria atitude?A resposta,é claro, deve ser gia clássica em seu próprio tempo: o programa de serprema-
tãonietzschiana quantoa pergunta: tentarei manter um foco turo dentro de seu próprio presente.’"
histórico deliberadamente estreito em um texto do passado, O famoso ensaio de Max Weber,A ciencia comop ofissão,
ciência como profissão [HZisseitSrfia/f als Berufl, de Max Weber, publicação original que remontaà primavera de 1919, foi
e em uma configuração contemporânea específica de posi- apresentado pela primeira vez como uma palestra, organiza-
ções, marcadas pelos nomes de Ulrich von Wilamowitz- da pelo Freistudentische Bund em Munique, em 7 de no-
Moellendorff, Friedrich Nietzsche, Wilhelm Dilthey, Stefan vembro de 1917, um ano antes do fim da Primeira Guerra
Georgee Werner Jaeger. Isso significa que, pelo menos em Mundial." A reRexào sistemática de Weber sobrea profis-
minha mente, abreviar (nas palavras de Nietzsche, “esque- são acadêmica ocorreu em um momento de suavida em que
cer”) algumas condições históricas da filologia clássica"’ co- ele, após anos de doença, meses de serviço voluntário na
administração militar (que deixou em setembro de 1915)e
mo profissão no início da década de 1920 estará na mesma
várias tentativas malsucedidas de obter uma posição de in-
condição de invocar os outros.'' Espero que isso nos ajudea
fluência na política nacional, estava prestesa voltar paraa
nos posicionar — pelo menos porum momento — “nolimiar
universidade, primeiro através de um cargo de professor visi-

t2. Ibid., 250: “Quem nãoestí no limiar do momento, esquecendo rodos os passados,
S. Ibid., 253: “que uma luzbrilhantee intermitente enlerge dentro da névoa circuri- quem pode sossegar, quem nãopermanece em um ponto como uma deusa da vitó-
dante”. ria sem torturae medo, nuncz vaisabero que é felicidade,e piora inda ele nunca
9. tbid., 302: “Pode parecer estranho, mas n5o contraditór io, quando penso na idade tara nada que faça os outros felizes.”
como aquela que tendea explodir de forma audívele intrusiva na ex ultaçao mais t3. Ibid., 247:”Eu tenho que admitir isso parz mim mesmo como um filólogo classico:
despreoc upada por sua educaçao histórica, no entanto. atribuindo uma espécie de pois não sei que sentido puroa filologia c1assica teria min ROSso tempo, senao aque-
autoconfiança Crônica, urna vaga suspeita de não se alegrar, sera como um medo de °• pr^n*aturo '^^ ^*8°' °8 contra8 t*ntpO e, porta rito, com sorte.a favor deu in
quelogo acabe com todaa diversao do con hecimento histórico.” futuro — para agir.”

10. I’•Ião vou ó iscioguir ccrre as formasc interpretações ftistorican entec nacionalmcn- \4. Todas as informações biogrí ficzsa seguit (e rriais geralmenteh istóricas) sobreo
tediferentes que essa disciplina adotou ao longo das décadas. Qualquer que sejao
texto de Ma.x Weber SÃO€ytraid is da “lntroduçao”e do “Relatório editorial”
nome queeu use(Klossisclie Pfiif‹ifogie, Altertuinswisseiisiliafi, clí ssicos erc.), sempre
no v. t. pr. 17, de Ma x Weber, EdiçÁOC Onipleta, ed. Horst Baier, M . Ra iner
esta implícitou m coniponente filológico no sentido estrito do termo.
Lepsius, Wolfgang J. Monimsen, Wolfgang Schluchterc johannes Winckelniann
11. Nietzsche, Sob fea utilidade..., 330: “Coma palavra ‘inistórico’, denotoa arte de (Tübingeo: Mohr, 1992), 1—46. 49—69. O texto de Weberé apresentado em 71-11 t;
poder setcapaz de esquecere encerrar—se em um horiconte limitado.” citações adicionais sao apresentadas entre parênteses no texto.
126 H A N S U L R IC H G U klB R EC NT Os poderes da filologia: dinâmica de coabecimento textual 127

tante em Viena e, em seguida, definitivamente, aceitando um vo. Finalmente, pressupondo que o trabalho duroe sustenta-
cargo na Universidade de Munique em março de 1919. O do seja uma condição necessária para quaisquer intuições ou
Freistudentische Bund erauma associação nacional de estu- descobertas acadêmicas importantes, afirma que a diferença
dantes universitários que, fundada no final do século XIX entre ter sucessoe colher fracasso ao longo da vida nada mais
como uma alternativa minoritária às corporações estudantis é do que um fenômeno aleatório. Após essa abertura provo-
de espadase seu pótlios nacionalista," encontrou rápida aceita- cativa, que obviamente pretendia problematizara aura com a
çao durante os anos da guerra. Uma de suas preocupações pro- qual ideologias tradicionalmente romanticase pré-rornânticas
gramaticas era criticar as universidades alemfis contemporâneas embelezavam o papel do professor alemao, torna-se bastante
como focadas exclusivamente na educação profissional (em difícil identificar as posiçõesa favor de quem Weber queria
aparente detrimento de uma concepção humanísticae mais argumentar, ao passo que aquelas contra as quais ele estava
holística de educaçãoj. As reações muito controversasa um en- argumentando continuam sendo evidentes. Com doses fortes
saio escrito por Alexander Schwab, um dos principais associa- de ironia, por exemplo, ele critica todas as versões diferentes
dos do Freistudentische Bund, professando exatamente essa da expectativa iluminista de que a pesquisae o aprendizado
crítica, podem tersugeridoa ideia de uma série de palestras trarão orientações imediatas paraa vida cotidiana. De acordo
intitulada Trdôdffio intelectual como profissão [C•eistige Arbeit ale com Weber, não pode sertarefa da instituição acadêmica “dar
Befufj, da qual Max Weber setornouo primeiro palestrante." sentido ao mundo”, estabelecer as bases paraa “felicidade co-
O que impressiona o leitor nas passagens iniciais deA ciencía letiva”, ou fornecer quaisquer “respostas imediatamente práti-
romoproJssàoé uma insistência quase obsessiva na aleatoriedade cas” ou ainda uma melhor compreensãoe “conhecimento das
— talvez devamos dizer, “improbabilidade objetiva” — do su- condições da vida humana”. Mas, na auséncia de tarefas tao
cesso na profissão acadêmica (neste contexto, o próprio Weber claramente circunscritas,o que daria identidadeà pratica aca-
reiterae coloca em italicoa palavra raramente usada, Hazardj. dêmica como profissão? Para respondera esta pergunta, Weber
As interações entrea administração estatale a instituição aca- parece se referir, acima de tudo,à especificidade de um estilo
dêmica, ele argumenta, tornam improvávelo recrutamento intelectual. Esse estilo deve se basear em conceitos altamen-
bem-sucedido de professores. Ele não vê conexão entre os te abstratose na experimentação, bem como no pensamento
talentos do professor carismaticoe os do estudioso produti- lógico, procedimento guiado por métodose pela preferência
por resultados que façama diferença, embora não necessa-
riamente uma diferença prática.'7 Na segunda parte de seu
l5. próprio Weber deixou a corporalao de seus anos de estudante (A Heina iira
heil lfier$) end novembro de J9I8.
16. Em 28 de janeiro de 19 t9, Weber fezuma segunda palestra na mesma série, sob o 17. Que o que sai do trabalho científicoé importante no sentido de “valea pena co-
títu lo P«fifià «fr Bem/(Gerainrari$aóe. v. 1. pt. 17, 157—252). nhecer”.
H A N S U L R TC H G U M B R E C NT Os poderes da filologia: dinâmica de conhecimento textual 129

esta mais preocupado com uma crítica agres- tas ideiase ideais pedagógicos do que Weber poderia querer
os valores neorromanticos cuja propagaçao este- admitir. Considere, nesse contexto,a metáfora que apresen-
da série de palestras do Freistudentische Bund. ta conceitos analíticos como “arados que quebrama terra do
que as metas políticas sao incompatíveis com pensamento contemplativo”e seu contraste com o que Weber
o ensino aCadémicoe parece achar verdadeiramente obsceno condena ao usar palavras como “espadas contra os inimigos".”
qualquer tipo de relacionamento emocional entreo professor A mesma tendência fica ainda mais clara na evocaçao de
acadêmicoe seus alunos, como foientao descritoe canoni- Weber do que eleafirma ser o compromisso da universida-
zado por conceitos comoo “professor como líder” Füíver],a de com a “aristocracia intelectual”: atrair as mentes “destrei-
“formaçãoe impregnaçao da mente do aluno” ou a “fé” nos nadas, mas receptivas” paraa aventura do mundo do “pen-
papéise nos conteúdos acadêmicos. Novamente, os contracon- samento independente".2’ Esse pensamento independente,
ceitos de Weber permanecem muito mais vagos do que seus diz Weber, privilegia a aceitação de “fatos desagradaveis”
ataques violentos. Ele vê a instituição acadêmica como parte unbequeme Tatsachen], ou seja,a aceitação de observaçõese re-
do “desencantamento [Entzaubemng] do mundo” e, portanto, sultados dessa complexidade — infinitamente, podemos adicio-
identifica-a como genuinamente nào religiosa. Para as discipli- nar —, opiniões certase posiçôes preconcebidas. Mas nâo parece
nas que lidam com questões de manifestações culturais [Íiisto- estranho associar infinita complexidade intelectual ao profis-
rische Kultu vissenscbaften], ele atribuia tarefa de “entender as sionalismo da pesquisa acadêmicae do ensino?
condições da emergênciae da produção” de tais objetos." Da mesma forma, penso que esta ênfase na independência
Nenhum dosmotivos que mencionei até agora excede as pessoal, na flexibilidade intelectuale em seus efeitos complexi-
interpretações-padrâo da palestra de Max Weber. Muitos deles ficadores não coincide completamente com o que normalmen-
convergem para o conceito normativo de “ciência sem va- teentendemos por “ciência sem valor” [wertfreie Wíssenschaft].
lor” [we tfreie Wissenscliaft], do qual costumavamos discordar Este conceito programático, que pode muito bem sermenos
com entusiasmo até meados da década de 1980e o qual ven-
demosa apoiar fortemente nos dias hoje. Minha impressao,
no entanto,é que o texto de Weber contém varias passagens t9.“J$ palavras que sjo necessa rias nào sao u ul meio de análisec ientifíCá. mas OH-
ticas, solicitandoa opiniãou ni do outro. Elas n3o sao relhas de Prado park soltar o
que — talvez contra as intenções do autor — nao podem ser
solod pen§ankcntoc onteirlplarÍ vo, rteaS espadas contrao inimigo: atH188.”
taofacilmente incluídas na condiçao meramente negativa de
20. “O treinamento cient ifico, porém, de acordo corria tradiçao das universidades ale-
serem “sem valor” e, portanto, podem estar mais perto de cer- qtj$,; attq ato espirirua] aristocrítico que não devemos esconder. Por outro la-
do, é claro que é verdade:a aprcsentaçao de problemas cientificos de tal forma que
uma cabeça desireinado, mas receptiva possa entendi-los,c que —o que é o único
18. “Ou faça os estudos históricos culturais. Eles ensinam política, arte, literaturae fator decisivo parx nós — chega ao pensamento independente,é talveza tarefa edu-
compreensao dos fenômenos socioc ultu rais nas condições em que surgem.” cacional mais difícil de todas.”
H A N S U L R I C H G U M B R EC H T Os poderes da filologia: dinartiica de conhecirrientn textual 131

de Weber em A cíéncin como yrofíssao do que o de seus discussão,é importante percebemos que Weber ministros
maiores intérpretes, enfatizaa independência dos resultados sua palestra apenas alguns anos depois daquele limiar histó-
da pesquisa acadêmica em relação ao seu possível valore aos rico em que os escritos programáticos de Wilhelm Dilthey
seus efeitos praticos fora do sistema acadêmico. Por exemplo, confirmarame consolidarama separação entre as humanida-
historiadores de arte, segundo Weber, devem procurar expli- des [G•eisteswissenschaften]e o restante das disciplinas acadêmi-
car as condições históricas parao surgimento da arte abstrata cas. Somente em 1910, seu livroA constnyao do mundo fiisióriro
no início do século XX, independentemente do impacto que ttdá licncias humanas {Der Aufbau deigeschichtlichen Welt in deu
seus resultados possam terno mercado de arte. Em contraste Geisteswissenschafteti] definitivamente incorporoua interpreta-
com esse foco nos resultados da pesquisa (nas interpretações çao (como Dilthey colocou,o movimento do material —e po-
predominantes do conceito de WerJreifteif)," o que me in- demos acrescentar,o filológico — da superfície dos fenômenosà
teressa em Max Weberé a ênfase nos efeitos que o processo profundidade espiritual) como o exercício principal das huma-
contínuo de pesquisa possa ter na mente dos pesquisadorese nidades: “Existe uma tendência específicae cada vez mais forte
de seus alunos. Voltando ao exemplo acima mencionado, isso no conjunto de disciplinas com as quais estamos lidando,e essa
significaria que tentar entender o surgimento da arte abstrata tendência reduz os aspectos físicos dos procedimentos ao status
tomara você mais sensívele mais versatil intelectualmente, de condições puras, a instrumentos puros de entendimento.
mesmo quevocê nunca aceite essa tarefa. Mas como isso acon- Essaé a ênfase na autorreflexao,a direçao de nossa compreen-
tece, seé que acontece? Como o ideal de “aristocracia men- sãode fora para dentro. Essa tendência usa quaisquer objetiva-
tal” [Geistesaristoêraíie], de Weber, pode setornar real? Como ções da vida como possíveis pontos de partida para compreen-
e porque a participação na complexidade de uma pesquisa em dera interioridadea partir da qual emerge.”2' Dilthey mencio-
andamento fortalecea mente dosparticipantes? Tanto quanto na dois objetivos ligeiramente diferentes, embora aparente-
posso ver,A ciencia romo proj5ito nao oferece respostasa essa mente inseparaveis, no “processo” da interpretação. Primeiro,
pergunta. Mas posso apostar que as respostas possíveis estáo deve-se procurar aqueles intelectuais (ou estruturase formas
exatamente no horizonte dos motivose argumentos neorro-
mânticos que o ensaio de Weber tenta rejeitar. 2 2. “Der Aufbau der geschiehtlichen Welt in den Geisteswissenschaften” (1910), cm
Qual era a situação acadêmicaa quea palestra de Max We- Wilhelm Dilthey. Texte zur Kritif• der fiisiorisrfier P'*r iuiJf, ed. Hans-UI rich Messing
(Göttingen: Vandenhoeck and Ruprecht, J983), 248-256 (ci‹ap3o em 251): “Mas
ber se referia? Quais foram os problemas, debatese mudanças
nanatureza do grupo cientifico coni que estanios lidando, h* uuia tendéncia que se
nas disciplinas humanísticas da Alemanhae na filologia classica desenvolve cada vez mais fortcmenie, através do lado rsico dos processos no iucro
[Kl6lS5isclie Philologie} em particular? Parao contexto da minha papel das condi9öesc dos nieios de compreensao.E a dire9ao da autorref1ex*o,é o
proccsso de coinpiceosao de fora part dentro. Estz tendéncia utiliza ca da expresszo
de vida para apreens*o do inferior de onde emerge” (DILTHEY,W.A coiistru äo d»
21.“Liberdade de valor”. [N.T.] inw«fii liisturico im riéiirias fiuinuras. Sao Paulo.E dirorz da Unesp. 2010, 346 p.]
132 HANS ULRICH GUMBRECÇ Os poderes da úlologia: dinarnica de corihecimento textual 133

espirituais”) que se tornam acessíveis aos sentidos humanos uma consciência se concentra sem sentir. Penso que Wilhelm
apenas por meio de suas objetivaçoes.2’ Segundo, com relação Dilthey deve terpercebidoo potencial de ingovernabilidade
a um ponto de referência muito mais difícil (ou se deve dizer nessa noção deE lebnis (o mesmo potencial que inspirou
“problemático”?), Dilthey aponta parao conceito de firfehnis outras variedades da filosofia moderna deLebenspliílosopliie),"
(experiência vivida), isto é, para os encontros da mente humana mas que, em vez de desenvolver esse potencial, preferiu
como mundo circundante que estão em conflito com a origem manterE flebnis sob o controle conceituale metodológico. O
de todos os conteúdose formas “espirituais”.2‘ rsrlehriis original de um autor ou de um poeta erao ponto de
A ideia de Dilthey de diminuira distância entre as super- partida para o quala interpretação deveria (ser capaz de)
fícies materiais entre os objetos culturaise uma esfera origi- retornar. Portanto, não é de admirar quea escrita autobio-
nal de expertência Erleben] mantém uma promessa de ime- gráfica tenha se tornadoo gênero de referência favorito para
diatísmo, uma proximidade com a vida — ao que parece, Diltheye sua escola, enquantoa forma biográfica eraa ma-
uma promessa que ele sempre alegava ser alcançável, mas neira preferida de apresentar os resultados de suas próprias
que, ao mesmo tempo, parecia relutante em descrever expli- pesquisas. Aliás, o livro mais famoso de Dilthey,A expe ítn-
citamente. Nesse ponto,é importante enfatizar que “expe- cia camo método [Das Erlebnisund die Díchtung], publicado em
riência vivida”,a tradução convencional de Eilebnis,é uma 1906, era uma coleção de ensaios biográficos sobre Lessing,
expressão inadequada, pois sugere que o que está sendo “vi- Goethe, Novalise Hiilderlin.
vido” (aqui reside o aspecto de imediatismo) já se tornou É do conhecimento geral que outra importante onda de
uma “experiência”, algo interpretadoe lançado em concei- influência sobre as humanidades [Geistesa'isserisrhaJteri} pouco
tos. O léxico da língua alemfi, em contraste (ea terminolo- institucionalizadas veio do poeta Stefan Georgee do círculo
gia filosófica parece segui-la aqui), coloca Erlebnis entrea de seus discípulos, organizado de maneira austera.°‘ No en-
percepção meramente física, de um lado, e a experiência tanto, por seu estilo dramaticamente diferente de autoapresen-
como resultado de uma interpretação, de outro. Um E lebnis, tação pública, o qual acabou atraindo muitos diferentes tipos
poderíamos dizer entào,é um objeto de percepção no qual

25. Filosofia de vÍda. [N.T.]


25. lbid., 254: “o declínio para uma estrutura espirítual”e ”uma conexão espiriinal... ensaio d*
26.E nrre a abundante lit•ratuta sobre Georgekrcis, veja o excelente
que vai parao mundo scnsual, ocorreo que entendemos por meio do declínio deste.'
24. Ibid., 249: “O próximo dado sàoasexperiincias. Mas estas são agora... em um P robleinaiik eines Gem anisten am dem George-Kreis,” em LiierariiruzirsenSclta/t
contexto, que persiste eie meioa todas as mudanças ao longo da vida; surge crer zul Geistesgescliicliiy 19 10a 1925, ed. Christoph König und Eberhard Lambert
sua açao básica o que descrevi, anteriormente, contoa conexão adquirida da vida (Frankfurt zur Mafnl Suhrkuup, 1993). t77-98. Veja tnn$béM RObcrtE • NOT Bon,
da alma; inclui as nossas ideias, valorese propósitos,e existe como uma conexão Seit yppy; efzn ytptg qqd His Cirrfe (lthaca, N.Y: Cornell Univcrsity
entre esses.” Press, 2002).
H A N S U L R IC H G U M B R E C HT
Os poderes da filologia: dinâmica de conhecirriento textual 135

da hermenêutica de D ilthey mentea aceitare que o separaria gradualmente do próprio


membros desse círculoé frequentemente George, foia base de sua famosa fórmula “experiênciae mé-
ao ponto de afirmar que os rituais de todo” [Erlebnisals Methode] ,” que se espalhou rapidamente
em geral que os Georgeêreis inventaram sáo entre os críticos literários de seu tempo.3’ Agora,a “experi-
mais radical (ou talvez apenas mais consequente) ência vivida como método” nao corresponde exatamenteà
aos ErlebniS, de Dilthey. George preocupava-se com canonizaçfio de Erlebnis, de Wilhelm Dilthey, comoo ponto
da experiência vivida e da experiência, in- de chegada de qualquer interpretação. Ao contrario, parece
cluindoo corpo humano." Elequeria “corporificar Deus”e sugerir que os objetos culturais sejam trazidos de voltaà vida
“deificaro corpo”. O que caracterizava as estruturas internas durante o processo de sua reapropriação. Essa ideia norma-
de seu círculo eram relações estritamente hierárquicase um tiva, no entanto, não está longe da insistência nos procedi-
compromisso quase religioso de “serviço” sob a orientação mentos instigantes da análise acadêmica (enão nos resultados
do líder carismático." Friedrich Gundolf, provavelmenteo que eles produzem) que aparecem em A ciência como profissao,
germânico mais admirado da década de 1920, era discípulo de Max Weber.
de George e,para sua consternaçào (ea do próprio George!), E onde estavaa filologia clássica {Klassische Pliíloíogie] en-
ele observou, durante seus primeiros anos como professor na quanto esses debates aconteciam nas universidades alemas?
Universidade de Heidelberg, que era menos talentoso como Comoa maioria das disciplinas vizinhas, ela prosseguiu com
poeta, menos talentoso “na transformação da vida em forma duas concepções fundamentalmente diferentes da profissão
artística”, do que como crítico. Comoo próprio Gundolf acadêmica, que, começando nas últimas décadas do século
confessou, ele percebeu que sua verdadeirae única força, so- XIX,a princípio coexistirame depois competiram cada vez
bre a qual pouco se importava, eraa “vivificação do que já mais entre si. Enquanto novas formas de pensar — como as
tinha uma forma”.29 Esse insiglit, que ele aprendeu gradual- representadas por Wilhelm Dilthey, Stefan George ou
Friedrich Gundolf— começarama surgir muito antes de 1900,
elas foram ativamente adotadase voltaram-se contra posições
27. Ver ibid., l7fI.
mais tradicionais apenas soba pressão do eu, de dúvidase de
28. Ibid., 154.
29. Ibid., tS1: “As cartas [deG undolfj para Curtius atestani um sério conflito de pa-
péis nos primeiros anos de 1912e 19t3 em Heidelbcrg, que se refletia czda vez tuais
no iiisi2fii confirmado na vide científica cotidiana, nào no design xrtistico da vida, 30. Ibid., 184.
mas a vivificaçao científicz do que ja foic riadoé o seu verdadeiro talento:”Ódio 31. Um dos admiradorese colegas deG undolf, para cujo desenvolviirienro intelecinal
aos livros (que agora tem que sermeu meioe suavivificaç3oo mais importente, seu essa frase se tornou realnaeote decisiva, foio ronianiste Leo Spitzer. Vejs meu
talento nâoé o mais valioso)c o desejo por vistzs vivas atormenta quando osóculos e nsaio biogrifico Leo Spirzer Siil, Veriiffentlichungen des Petrarca-Instituto Kiiln
pensentes crescem em niint.” (Tübingen: Narr, 2001).
HANS ULRICH GUMBRECHT
136 Os poderes da filologia: dinamica de conhecimento textual 137

segurançainstitucional geral causada pela experiência sofia da cultura de Nietzsche era apenas uma.'3 Mas nào eraa
daguerra mundial.” Nesse sentido,A ciência como profi'ssao — esperança de Wilamowitz de um renascimento da juventude
escrito em 1919 — fOium documento verdadeiramente em- alemà através da recepção da literatura grega antiga que o
blemático de sua época. Paraa percepção pública dos clássi- diferenciava de seus colegas mais jovens; essa esperança certa-
cos, no entanto, kllrich von Wilamowitz-Moellendorff mente estava viva nas novas gerações de filólogos classicos. O
continuoua ser o protagonista mais visível, mesmo depois que fez Wilamowitz parecer um monumento de um passado
de se aposentar da Universidade de Berlim na década ante- intelectu al remoto foi
a ausência de dúvidas ou perguntas so-
riorà sua morte, em 1931.O prefácio da quarta edição de seu brea viabilidadee a confiabilidade dessa função educacional.
Redenunú Uortràge, escrito em 1925, no aniversário da Batalha No ensaio que escreveu sobre tragédias gregas [Trouerspiefe]
de Sedan (avitória decisiva do exército prussiano na Guerra para sua graduação no Gymndiium de Schulpforta, em 1867,"‘
Franco-Prussiana de 1870-1871), prova que Wilamowitz viu através dos discursos nacionalmente famosos que ele fazia
decadência apenas no mundo políticoe cultural que o cerca- regularmente na véspera de Ano-Novoe no aniversário do
va, não em sua disciplina. Teimosamente, reiteroua dedica- imperador por volta da virada do século,3'e na sua contínua
tória original desse livro, feito em 1890, para seus professo- produção acadêmica durantea década deí 920, um conjun-
res no G ymnasium de Schulpforta (cujo outro aluno famoso to elementar de crenças sobrea utilidade de sua profissão
era Friedrich Nietzsche). Ele confirmouo juramento de fé nunca mudou: estava convencido de quea experiência esté-
que havia feitoa Wilhelm I, o primeiro imperador alemào,e tica estava necessariamente subordinada ao aprendizado éti-
acima de tudo, nao viu necessidade — nem nesse prefacio nem co; que a percepção das obrigações morais de alguém [Pflicht]
nas publicaçôes acadêmicas que escreveu durantea década de era a orientação ética mais importantea seradquirida; que a
1920 — de reagira qualquer uma das concepçôes inovadoras percepção da obrigação moral acabaria por levarà autogo-
que, entretanto, surgiram em sua disciplinae das quaisa fllo-

32. Ver Manfred Landfester, “Die Naumburger Tagung: Das Problem des Klassischen 33. Sobrea rea9ao de Wilainowitz a Nietzsche, ver Ulrich K. Goldsniith. “W ilaniosvitz
und die Antike” (t93). “Der Klassikbcgriff Werner Jaegers: seine Voraussetzung and the Georgekreis”, cm ft’ifatnoi«ii• noch i0 Jahren, ed. William M. Calder,
und seine Wirkung “, em Alteituinsu'issetisckaft iii den 2uerJaJtreii: .Neue Fragen unü HellmutF lashare TheodorLinhen (Darmstadt: Wissenschaftliche Bucbgesellschaft.
Impulse, ed. HellniutF lashare Sabine Vogt (Stuttgart:A Steiner, t995), t1-40 1985), 583-6t2, esp. 595 -99.
(cira9ao ein 11): ”Embora esst pausa renha sido preparada espiritualinente desde 34. Ver, por exemplo, Joachini Woh lleben, “Der AbiturientalsKririker”, cm iv’ifniii‹›witxiincli
a virada do século, foi apenas soba im pressao da derrota ntilitar da Alemanha átl)ufireii, 3-30.
na Primeira Guerra Mundiale sua derrota politica e consequéncias socia is na 35. Ver, por exemplo, Redeii «nd P'orirdge, repr. de 4ih ed., vol.2 (Dubline Z urique:
‘Repiiblica de Weimar’.” Weidmann, 1967 [1926]), 1—55.
138 HANS ULRICH GUMBRECHT
Os poderes da filologia: dinamica de conhecimento textual

vernança [Selbstven altuny]"’e a uma vida de satisfação;e que


cultural do círculo de George."’ Ele conectou esse potencial,
náo havia melhor maneira de aprender essas lições do que
que descreveu como uma série compactae unificada de “ten-
através do estudo da culturae da literatura gregas antigas.
sões quase existenciais vividas pela cultura grega”,” com a si-
Em contraste com esses princípios que inspirarame estru- tuação de crisee miséria da cultura alemã após 1918, que elee
turarama vida profissional de Wilamowitz (édifícil nao asso- seus colegas nunca deixaram de invocar. lsto permitiua Jaeger
ciá-losa um desses metais — ferroe aço — que foram muito
desdobrar, em torno da noção programatica de puídeia, um
destacados na autorrepresentação do Estado prussiano), sur- novoe impressionante edifício conceitual de classicos como
preendentementea maneira como eleentendeue imaginoua pedagogia nacional. Referindo-se explicitamente aos autores
cultura grega antiga mudou consideravelmente ao longo das mais canonizados da literatura nacional alema, Jaeger enfati-
décadas. Através de uma visao moldada pelos augustos valores zou novamentea crença em uma afinidade específica entrea
e formas sóbrias da Alemanha no classicismo, Wilamowitz — cultura alemãe a antiga Grécia; identificoua essência da cul-
soba crescente influência dos escritos de Herder — veioa re- tura grega (e alemã) antiga com uma concepção meta-histori-
velar uma imagem mais coloridae menos homogênea da cul- camente normativa da vida humana;e explicou quea propa-
tura grega.^ Foi essa imagem “romântica” da Grécia que, na gaçaoe a expansao desse humanismo @aideia] eramo destino
geração acadêmica dos alunos de Wilamowitz durantea déca- finale glorioso da humanidade.
da de 1990 (sobretudo no trabalho de seu sucessor, Werner Embora WernerJaeger tenha deixadoa Alemanha em 1936
Jaeger), voltariaa ser mais classicista, menos diversificada, mais para se tornar professor na Universidade de Chicago (e em
normativae mais orientada paraa aplicação. Simbolicamente, 1939, em Harvard), sua concepção de classicos transformada
Jaeger nao foi apenas o sucessor acadêmico imediato de em uma ideologia acadêmica suave teve ampla reverberaçao
Wilamowitz em Berlim. Na juventude, ocupoua antiga ca- na Alemanha pós-1933." Essa eventualidade deveu-se certa-
deira de Friedrich Nietzsche na Universidade de Basileia. menteà reivindicaçao quase explícita — e para nós bastante
Embora tenha tentado arduamente (e que eu saiba, com bas- insuportavel — de transformar parte da filologia classica em
tante sucesso) evitar todas as tensões e confrontos públicos uma “pedagogia nacional”. De qualquer forma,a iniciativa
com seu antecessor em Berlim, Werner Jaeger viu um poten-
cial decisivo paraa renovação disciplinar da filologia classica
3ß. Sobrejaeger‘eo novo nioviinento intelectual que ele inaugurou na Klassische Philologie.
nos escritos de Nietzsche, na filosofia de Diltheye no estilo veja aciniao errsaio ja rnencionado de Landfester, “Die NaumburgerT.agung”, nias
tanibéni Uvo Hölscher, “Strömungen der deutschen Gr azistik in den Zwanziger
Jahren”. auibos ciii Alierturnswissenschaft, ed. Flashar und Vogt,1 t-40, 65—86:e
36. Ibid., viii. Ernst Vogt. “W ila inowitz”.
37. Ernst Vogt, “Wilamowitz und die Auseinandersetzung seiner Schiller mitihm”, 39. Ver Landfester, “Dre NaumburgerTagung”, 17.
» Wilainau itxiiacli SO Jahren, 6t3-31 (citatao em 627). 40. Ibid., 29—40, esp. 35.
140 H A N S U L R I C H G U M B R E € }-{
Os poderes da Motogia: dinâmica de conhecimento textual 141

de Jaeger despertou um intensoe novo interesse em questões e de suas autodefinições como profissão? Os textos que achei
relacionadãsÀ funçao dos clássicos, questões cujas respostasa inúteis e muitas vezes embaraçosos eram aqueles programas
geração de Wilamowitz ainda tinha como garantidas. A noção ansiosos para “educar” gerações inteiras, sociedadese nações.
de f›didei« havia, sem dúvida, enfatizado precisamente os valo- Os discursos de Wilamowitz no aniversário do imperador, os
res de educação [Bildung] que nao conseguimos encontrar nas protocolose rituais religiosos de George em torno da cultura
principais linhas da reflexão de Max Weber sobrea moderna do Ocidente,a pedagogia deJaeger paraa naçâoe a humanida-
“ciência como profissão”. Mas é apenas no trabalho de alguns de,ou o mais recente memorando [Deitfisrfir ten] recomendan-
dos alunos de Jaeger que podemos traçar um caminho aceita- do que ashumanidades setornem “integrativas”e “dialógicas”
vele talvez até uma agradavel convergência entre uma crença — todos eles certamente falharam em me energizar.O mesmo
no potencial pedagógico da cultura grega antigae uma visao é verdadeiro, devo admitir, parao convite de Max Weber pa-
mais sóbria da esfera pública. Nesse sentido, acho potencial- rareconstruir as circunstancias históricas que, de casoa caso,
mente interessante uma metafora autodescritiva que descobri possibilitaram as grandes conquistas culturais. Talvez seja sim-
em uma citação de Karl Reinhardt, que via os clássicos como plesmente uma confusão supor que podemos vender, justificar
guias de seus alunose leitores “para portas pelas quais nunca ou glorificar nosso trabalho identificando suas funções sociais,
passariam”.‘i isto é, certas funções das quaisa felicidade ou mesmoa sobre-
Tendo feito isso (com muita rapidez, estou dispostoa admi- vivência das sociedades devem depender. Não se pode dizer
tir) através de alguns dos escritos programaticos de Max Weber, isso com frequência ou de forma suficientemente provocativa:
Stefan George e Friedrich Gundolf, kllrich Wilamowitz- as sociedades contemporâneas sobreviveriam facilmente sem o
Moellendorffe Werner Jaeger, agora estamos novamente con- nosso trabalhoe sem os sacrifícios financeiros que tornam esse
frontados com o desafio de Friedrich Nietzsche para todoo trabalho possível. O mais surpreendenteé a impressão de que
trabalho histórico. Em outras palavras, estamos de voltaà pres- em muitos desses textos, cujas declarações programáticas de-
criçao de que quem deseja energizar seu presente através de veriam seresquecidas, há uma centelhae às vezes até um fogo
excursões ao passado deve náo apenas ser capaz de lembrar, de entusiasmo, mesmo queeste entusiasmo nào esteja ligadoa
mas também estar dispostoa esquecer. Mas o que devemos “es- essas grandes afirmações programadas.
quecer melhor” quando setrata da história da filologia classica Não seibem como dizê-lo sem me sentir ridículo, mas de-
pois de meio século negando qualquer dignidade acadêmica
41. Karl Reinhardt, P'vii Ft'erêeri iiiid -üriiieii, 1948, citado em Uvo Holschcr, “S/riiiiiiiii2e»”, ao conceito de expeYíencia (meio século que cobre mais do que
fi2: “Só para quemé cntusiasta; se vocé quer beber das nascentes, não busque esse livro, todaa minha socialização profissional), talvez tenha chegado
em que tudo estfi sempre falado pora í, tudo se desnianchava imediatamente, sempre
dava iu frente de portas por onde não seentra. Com a diferença de outros livros, no a hora de ashumanidades sevoltarem para esse mesmo concei-
míximo,é conhecido.” to.Uma das razões pelas quais esse retorno me parece plausível
142 H A N S U L R I C H G U M B R E C HT
Os poderes de filologia: dinamica de conhecimento textual

é a impossibilidade de tornar essa noção compatível com a es— rença entre os estudantes que buscam uma profissão nas ciên-
fera do coletivo ou do social. Podemos noscomunicare “com— cias humanase aqueles que nâo a buscam). Mais uma vez,a
partilhar experiências” como aquilo que é interpretadoe lan- experiência riridn, em minha concepção, seria o que o ensino
çado em conceitos, mas a experiência vivida, comoa quepre- nas ciências humanas deveria desencadear,e nãoo quea inter-
cede tal interpretaçao, deve permanecer individual. Para quem pretação nas ciências humanas deveria reconstruire garantir.
concorda com a direção geral da minha proposta, seguea per- Desdobrar o conceito de experiência vivida nessa posição
gunta: deveríamos voltare reativar o trabalho de Wilhelm significaria que podemos começara entender por que, nos me-
Dilthey, que foio único filósofo de renomea darao fenômeno lhores casos, nosso ensinoe nossa pesquisa são capazes de pro-
e à noção de “experiência vivida” algum apelo intelectual?" duzir efeitos de educação [Bildu•x1 'fldividual. Como isso pode
Meu ponto de distinçãoe partidaé que, para Dilthey, ex- acontecer? Confrontandoa nóse a nossos alunos com qualquer
periência sempre foio tolos de um processo de “retranslação”, objeto de complexidade que desafiea facil estruturação, con-
isto é, de uma “retranslação de objetivações da vida na viva- ceituação e interpretaçao — especialmente se esse confronto
cidade espiritual da qual elas emergiram”.” Também vimos ocorrer em condições de baixa pYessáo temporal. Essa fórmula de se
que Dilthey queria que o ponto iniciale o ponto final dessa expora alta complexidade intelectual sem ter uma necessidade
“retranslação” fossem sobredeterminados pela dicotomia “ma- imediata de reduzir essa complexidade provavelmente está pró—
terial rersus espiritual”. Infelizmente, acho que nenhuma dessas xima de um conceito novoe altamente aurático de “leitura”
premissasé pertinente paraa descrição de nosso trabalho: cer- que os humanistas hoje usam cada vez mais como uma autorre-
tamente não privilegiamos as experíencias originais dos grandes ferência positiva.’4 Aqui, ter não é sinônimo de decifrar (como foi
artistas, autores ou filósofos (pelo menos, nfio mais),e ao longo no auge da semiótica). Pelo contrário,a palavra parece se referir
dos anos nos interessamos bastantee de forma mais perspicaz a uma oscilação alegree dolorosa entre perdere recuperaro
pelos aspectos materiais da culturae da comunicação. Em vez controle ou a orientação intelectual. Nossa tarefa pedagógica,
de colocaro conceito de experiência vivida no lado do objeto creio, nfioé tanto viver tais oscilações “junto com” nossos alu-
de nosso trabalho, devemos relacioná-lo a nós mesmos (“os nos (isso seria muito próximo dos ideais psicoemancipatórios
profissionais”)e a nossos alunos (vou negligenciar aquia dife- do final da década de 1960; para ecoar as palavras menos polê-
micas de Reinhardt, nfio passamos por essas portas com nossos
42. A discussaoa seguir (e final) do conceito Eilebiiis baseia-se no impressionante sub-
capítulo “Der Begii]f lee Erleluiísses”, de Hans-Georg Gadamer, em ifaIirJieir umJ
Metlio âe: Gruiiâzüge eiiier pliilosopliisclien f-Ierineiieulik. 2‘ ed. (Tübingen: Mohr,
44. Este foio ponto central da convergência das vinte Palestras Presidenciais de
t965), 60—66. [GA DA M ER, H. G. “O conceito de vivência”. Ern: Uerdaríee ineru-
Stanford em Ciências Humanase Antes, que, enfie março de l99tlc abril de 2000,
dt'. Trad. Flivio Paulo Meurer. Petrópolis: Editora Vozes, 2008].
apresentaram artistasc estudiosos de renome mundial desenvolvendo suas visões
43. Ibid., 62. individuais sobreo futuro das ciências hu irianas e das artes no ensino superior.
H A N S U L R IC H G U klB R E C H T Os poderes da filologia: dinamica de conhecitnezsto textua}
144 145

alunos). Em vez disso, devemos identificare preparar objetos de mesmo trabalhos acadêmicos que nao sejam os que se referem
complexidade e depois, pelo menos em parte, encenar os encon- ou sao voltadosà experiência estética, isto é,à pesquisa em
tros de nossos alunos com eles. Preparar muitas dessas interações física teórica e, tanto quanto possível, ao pensamento (“filolo-
ou compartilhar muita experiência com nossos alunos arrisca gicamente”, por exemplo) sobre um fragmento pré-socratico
minar oprofissionalismo, pois os estimulaa seguir seus profes- — todos eles seriam próximosà experiência estética. Porém,
sores em vez de viver esse desafio individualmente. Filologia no mais uma vezé necessario insistir em duas diferenças.
sentido mais tradicional,a propósito, poderia serum dispositivo Primeiro, ouso discordar um pouco dasrazões que Gadamer
muito eficiente na produção da complexidade necessaria aqui. da paraa aftnidade geral entre experiência vividae experiên-
Quanto maiora qualidade fdológica de uma ediçào, podemos cia estética. Por um lado,a observação de que a experiência
dizer, mais desorientadora, desafiadorae complexa acabará sen- vividae a experiência estética nos separam [ÍiernusreiQeri] da
doa leitura (ea Leitura) que ela informa. “continuidade da vida"é óbviae obviamente importante. Por
Embora possa parecer mau gosto afirmar isso em nossos outro lado,a segunda razâo de Gadamer paraa proximidade
dias, tenhoa impressão de quea concepção nao diltheana de postulada entre experiência vividae experiência estética de-
experiencia que estou discutindo aqui,a concepção de experien- pende da impressão de que ambas serelacionam com a totali-
cia como complexidade difícil de domare àsvezes artificial- dade da vidae nào com objetos específicos de referência.’7 Eu
mente mantida, se encaixa na associação de Georg Simmel preferiria assumir que nos referimosa situações que provocam
entre experiência vividae “aventura”." Além disso, concordo ou, pelo menos, tornam visível um excesso de desejo “não
com o destaque de Gadamer de mais uma afinidade: aquela funcionalizado’“' tanto com o conceito de experiência vivida
entrea experiência vivida em gerale a dimensao da estética." quanto com o de experiência estética. Uma segunda objeção
Isso significaria que qualquer trabalho acadêmico que consti- potencial poderia vir de Karl Heinz Bohrer, que argumentou
tua um confronto com a complexidade em uma situação de recentemente,e de forma convincente, que existe uma inco-
baixa pressão temporal, trabalho acadêmico em todas as suas mensurabilidade fundamental entre o que ele chama de “ne-
diferentes dimensões, seja aprender, ensinar ou pesquisar; até gatividade" da experiência estéticae a universidade, ou pelo
menosa universidade estatal como instituição —a qual espera-
-se que produzae professea verdade." Em relaçãoà pergunta
45. Sim noel cicado eleG adamcr,Wd/ir/iyir uHd ,S/ef//‹irfe, õ5.

46. Gadainer, W¢ lirlicit unidA ferf,ude, 66: “No final da nossa an*lise conceito.ai da ‘vivén—
c ra’ tornar—se—a claro que a finidade ha entrea estrutura da vivência como tale o
47. Ibid., 66.
p d de ser do tstébico ,q txptriénc¡ stética não é apen.as uma especic de v ivéncin
ao lado de outras. mas representaa f rma de ser da própria vivência.” [GA DA ME R, 48. Esse seriao "poder" implícito em todas as principais práticas Biológicas.
H G. "O conceito de vivência" Em: P’erd‹idee irétiida. Trad. Ffívio Paulo Me urer. 49. Boh rer disse isso em sua conferéncis presidencial de Stanford, em novembro de
Petrópolis: Editora Vozes, 1999, p. 131]. 1998.
146 H A N S U L R IC H G U M B R E €’H T

mais específica do próprio Bohrer —a questão sobrea experi-


ência estéticae a universidade —, concordo quea universidade
nao pode “professar”a experiência estética (o que isso signifi-
caria, de qualquer maneira?) ou mesmo torna-la um item
obrigatório em seu currículo. Tudo o quea universidade ou
qualquer outra instituição pode fazeré fornecer condições de
enquadramento que possibilitema experiência estética.
O mesmo aplica-seà experiência vividae à educação [Bíldung]
como seupossível efeito. Nao há garantia para os alunos de
que qualquer poema, tratado filosófico ou equação possa leva-
-losa essa situação desafiadora (àquela “porta da leitura”, co-
mo Karl Reinhardt colocou). A mensalidade deve ser paga
pela possibilidade da educação, mas ela nao pode comprar ou ga-
rantira experiência vivida ou ri educaçao em si. A condição dea
possibilidade da experiência vividae da educaçao aconteceré
o tempo — mais precisamente,a torre acadêmicae de marfim
— como privilégio de poder expor-sea um desafio intelectual
sem a obrigação de apresentar uma reação rapida ou mesmo
uma rapida “soluçao”. Naturalmente, sem instituiçóes especí-
ficase sem esforços individuais específicos, esse excesso de
tempo nunca estara disponível. Precisamos de instituições de
ensino superior para produzire proteger o excesso de tempo
contra as temporalidades mais urgentes do cotidiano. Nesse
novo sentido, não é apenas plausível que “a filologia clássica
como profissao seja prematura”, como Nietzsche disse uma
vez. Oferecendo um significado ligeiramente diferente às
mesmas palavras, alguém pode argumentar quea instituição
acadêmica nada maisé do que algo sobre esta incempestivida-
de. Observo quea ideia de fato nos assusta, mas não creio que
seja ou deva serpercebida como taoassustadora assim.
Hegel âu mie/o: Péleti bold7 /'n*
OS PODEMES DA
FILOLOGIA
Dinâmica de conhecimento textual

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