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Do mita ao preconceito:

os comandos paragramaticais

-------�-��·�-====

«Science must begin with myths, and wilh the crilicism


of myths.»'
Karl Popper

«ln on age when discrimination in lerms of race, colour,


religion or gender is no! publicly acceptable, the las!
bastion of overl social discrimination will continue lo
be o person's use of language. » "
James Milroy

2.0 INTRODUÇÂO
Em traball"!.QJ1Atfr.i.Qr.(6_agno, 1999) fiz uma analise do precon��itQ lin­
güfstico imperante na socied�dd)raslle_ir� J_)()f mei_()_dqs. 7T!itos q�e_ � corn-
. . . : . ,,_ , . -· . · · ·· ··=<>-•. - · · - -·- ·- ----··-· ----. -.-., ' .... · ·--o ···· - , ·"· ·· • •. .• �-- . ..

* "A ciência deve começar corn os mitos, e corn a crftica dos mitos".
** "Numa época em que a discriminaçiio em termos de raça, cor, religiao ou sexo niio é publi­
camente aceitavel, o ultimo bastiiio da discriminaçiio social explfcita continuara a ser o uso da
lfngua por alguém".

45
Drom6tico do linguo portugueso Do mito oo preconceito: os comondos porogromoticois

poem. Pouco depois de publica-lo, tomei ciência do lançamento, na lnglater­ "positivas", como aparecem na historia das religioes, na sociologia ou na
ra, do livro Language Myths, organizado por Bauer & Trudgill (1998). Nessa psicologia: uma forma de explicaçao do mundo ou do espfrito humano,

I'
obra, 21 mitos sobre as lfnguas em gernlemais especificamente sobre a lfn- narrativas que oferecem justificativas e/ou hip6teses para o entendimento do
gua ingle;-��o-ëi�;;;ï�;do;-�-�;-�f�t�dosj;()f in.�i�����a� cli�iiî;tJ�:s:o- momento presente. Dentro de um quadro de significaçoes antes "negativas", , _' :·;,
--- - -·
,._ - -- ---
ciolingüistas, numa estratégia de abordagem dos temas
- - - -- . ,
curiosamente
- - . - mui-
- tal como Roland Barthes (1985: 162), considero que o mito é "uma fala \:/l
-
to-semelhante à que a.dgt�i _e_r.n rneu pr6pri_o tn;1bfllho. Os dois livros se
1
despoliJ:kc!dc\", Diz esse autor que a semiologia nos revelou que a fu�çiio.do
1 caracterizam por tentar uma apresentaçao menos acadêmica das noçoes da �Tt-;i transformar uma intençao hist6rica em na,tureza, uma contingência
Lingüfstica e mais acessîvel ao leitor nao especializado. Corno dizem os em eternidade, e comenta (p. 163)':
1
editores da coletânea inglesa (1998: xv), Ora, este processo é o proprio processo da ideologia burguesa. Se a nossa socie­
.i! nosso conhecimento sobre a linguagem tem se expandido num ritmo fenomenal dade é objetivamente o campo privilegiado das significaçëies mfticas, é porque o
�I : durante a ultima metade do século XX. Os lingüistas andaram ocupados manten­
i. mita é formalmente o instrumenta mais apropriado para a inversao ideologica
do-se em dia corn este conhecimento em expansao e explicando suas pr6prias que a define: em_todos o� nfveis da comunicaçao humana, o mita realiza a inversao
(\,,
),;J' descobertas a outras lingüistas. Os lingüistas. mais influent�5.-���-�C}!!el��gu� d_e_ram da anti-physis em pseudo-physis.
� mensagens mais importantes.Q!Wl OlJ1!JJ§ ,lingüi$tas, e r1a.9p:g;i Q P.\!PJico geràL
P..QJ.,};ârias razëi��.(jnclu_indo a natmeza_ altam�nte téq1ica de__parte d_o trabalho), As descriçoes qÙe Barthe�_passa a fazer do mita remetem sempre às
��� m,0_1:_� p91,1cg�-�!!J�s tê_rn temado_�xP.lica_r seus achadoLa. \.lX!FtaU<;ljê[lcja )ei1;a. caracterfsticas do dis�eol6gico conservador, ja contempladas no
Foram reflexoes semelhantes que me encorajaram a escrever Precanceito capftu_lo anterior. Sµa ênfase incide prihcipalmente sobre a operaçao feita
lingü(stico: a que é, coma se faz (1999, 42000), um livro que visa levar algumas pelo mito na reiaçai\fiist6ria-nature{a: )
noçoes basicas da Lingüfstica a uma "audiência leiga" mas, sobretudo, aos 0 mundo penetra ni'-Ütlg1@�!!L�uma relaçao dialética de atividades, de
professores brasileiros de lfngua portuguesa que, em sua maioria, recebem atos humanos: sai do mita coma um quadro harmonioso de essências. Uma presti­
uma formaçao quase exclusivamente n.9rmativo-prescritivista (i9(,:�lqgic:a, digitaçao inverteu o real, esvaziou-o de historia e encheu-o de natureza, retirou
às coisas o seu sentido humano, de modo a fazê-las significar uma insignificância
portanto) e.11aQJ�!1'!..fu.l!li�!_::irigc1d� ç_om O tr,c1t<.1!'-}!:Ù1to çi�n�îftç_o de questoes
humana. A funçao do mita é evacuar o real: literalmente, o mitp é um escoarµ_eµto
pertinentes à sua atb,;_idadtprofüs\on�L_tgu�l..imfn.ça,q,_pre�iqiu él_C:Ori1posi­ incessanteJ uma �emorragi�!._. ouLse se pJefere._ urna_eyaporaçao;_ em_ suma,_uma
�.22:�.Alf12,,,�_�e__EglgJig�{ 19�,7,_52000),. em_q!Je proçurei anali�ar mais de­ ausência
---�-.�- -··sensfvel.
..�--..--..... -,�,.
�.
tidamente a irracionaJidade do pre_ç9nce_ito.__gu_1:_P.��?.J9QI:.e__o�falantes de
variedades lingüfsticas-consideradas_n&Q:J?.a�Iao. Ou ainda (p. 163-164):
Evidentemente, a analise que farei aqui dos mitos que conformam o Passando da historia à natureza, o mita faz uma economia: aboie a complexidade
1 preconceito lingüfstico sera de bem outra natureza, principalmente porque dos atos humanos, confere-lhes a simplicidade das essências, suprime toda e qualquer
nas obras mencionadas acima nao introduzi, deliberadamente, a discussao dialética, qualquer elevaçao P.fil<!_ la do v_i§fyel im.ediato, organiza um mundo sem
contradiçües, porque sem profundezas, um mundo piano que se ostenta em sua evi-
j, do conceito de iclealogia, visto que isso nao contribuiria para o tipo de abor-
dagem (didatica, digamos assim) pretendida. Me preo cuparei fundamental­
_ lingüfstico com a
dência,��.�la.:!:.��f�l�z_: a���8.:f!:f!!!'Q.,.S_ig!lif.i�ar_s_Clzint!J�, .P()���ai p_!_OP,_ri�s.
r mente, a partir de agora, t:m relc\_çjQD.ê_L() preconceito -- Assim, embora gestado num passado, ao qua! se mantém preso, o mita
, �1 · p ideologia que o s�st_(!nta.
yJv �- ,1 ----- -----------'
reveste-se de umc\ aura atemp_2ral, condiçao indispensavel para que assuma

\ Îy
i sua caracterfstica de essência pura, para que realize sua operaçao de purifi­
car e inocentar as contingências e os acidentes, desumaniza-los e transforma­

�t
,, ,,,... - ---- los em coisas-em-si.
2.1 MITO: A MORTE DA HISTORIA
1--;a Pouco mais adiarite (p. 174 ), Barthes afirma que "o mito tende para o
/ )
-- ' Antes de mais nada, convém determinar o conceito de�ta,,9-ue entra pr_?.vérbici'..:,_É o que se verifica nos mitos qu_e_c:o_gip. q�rn Q�oncgito-ling4fs--
r em jogo nesta minha analise. Nao se trata agui do mito em seus..significados tif?: S�O proy_ér�iqs, Ch-avé'ies_ r�p��J9osJ �){;lUStao, tor11ad<:)S pll_faJnetalin-
,. 1 /i
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46 47
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Dram61ica da lingua portuguesa Do mite ao preconceito: os comondoi parag•omalicais

1
1
r1:
guagem. E como todo provérbio, afloram no discurso cotidiano como ver­ IDEOLOGIA

1
'1
!i 1'. clades naturais, como capsulas de uma sabedoria compartilhada de que todos
'1
sil/
1':'-. 1
podem haurir livremente. 0 mito, fundamentalmente acrftico, é a ideologia
sintetizada em pequenas falas. De_spolitizado, des-hi5-toricizado, desdialeti­ PRECONCEITO ]
f
PRECONCEITO 2
l
PRECONCEITO 3 ...
l
PRECONCEITO n
i!ê,cl_o, 0 l!J.i�O é Uql ��tpgl,QC> f§s_sH \TÎVO. t
f f f t
milol milo 2 milo 3... milo n

2.2 MITO, PRECONCEITO E IDEOLOGIA Figura 2.1

0 preconceito parece ser algo inerente ao ser humano que vive em


sociedade. Segundo Eagleton ( 1997: 17), "sem algum tipo de preconcepçao 2.3 OITO MITOS
nem sequer serfamos capazes de identificar uma questao ou situaçao, muito
No texto de introduçao da obra ja mencionada, Bauer & Trudgill (1998:
menos de emitir qualquer jufzo sobre ela". E o mesmo autor explica (p. 31):
xvi) justificam o emprego do termo mita corn as seguintes palavras:
Por um lado, a ideologia nao é um mero conjunto de doutrinas abstratas, mas a
matéria da quai cada um de n6s é feito, o elemento que constitui nossa pr6pria Corno lingüistas, temos toda a consciência de que as pessoas em geral têm algumas
identidade; por outro, apresenta-se como um "_todos _s�bem disso", uma espécie idéias bem estabelecidas aé:erca da lfngua. Encontramos tais idéias quando nao­
__ge Y!'!rdade anônirna uq(y��al,J,,..J.A .ideo\ogia.é.um cQl)j\1��91e pontas de vista lingüistas conversam conosco em festas, nas dependências comuns das universi­
�-�-?:
qlfe__�_ll �or__acasC>_ _de�eI11o; ���e "aca.s.ç>", ppré!ll, :ilgu_m inodo, mais do _que dades, entre os membros de nossas famflias e na mfdia. Algumas dessas idéias se
apenas fortuito [.:.] Corn bastante freqüência parece ser uma miscelânea de refrôes acham tao bem estabelecidas que poderiamos dizer que fazem parte de nàssac�l­
ou.provérblo� i�pessoais, desprovidos de tem'a; no entanto, esses chavôes bati­ �urà. É n.e;t� ge!}tido que nŒ referimos a elas como mitos (etnbora nos�O� co!egas
dos estao profundamente entrelaçados corn as rafzes de identidade pessoal que 'sÏgs-;��dos.mitp_l§gi���-pOSSatn.,ÎliiÔjp'fgviùste �SO �it���o): -· .... ·. ..
' ' nos impele, por exemplo, de tempos em tempos, ao assassinato ou à tortura. Na
esfera da ideologia, o particular concreto e � verdade universal deslizam sem Assim como os diversos especialistas convidados a refletir sobre os
parar para dentro e para fora um do outro, evitando a mediaçao da analise racional. miros que povoam o senso comum dos falantes de lfngua inglesa empreen­
deram suas analises partindo das "idéias bem estabelecidas acerca da lfngual),
0 que Eagleton chama de "refrôes ou provérbios impessoais" e "chavôes ba-
sem se preocupar em retraçar a origem desses miros, de igual modo acredito
tidos" é justamente o que tenciono designar corn o rôtulo demito. E corn o r6-
que, para o trabalho que se propê\e a presente investigaçao sobre o precon­
tulo de preconceito cksigno o que ele chama de "uma espécie de v�rdade anôni­
JI
ceito lingüfstico no Brasil, nao é tao importante retroceder no tempo e
ma universal", u111 "todos sabem disso''. É aquilo a que Gramsci se refere como
o '����@'.' na consciência empfrica do povo (apud Eagleton, 1997: 111 ): detectar o momento hist6rico de irrupçao de cada um dos mitos que con­
Tal senso comum é um "agregado ca6tico de concepçôes dfspares" - uma zona figuram o senso comum dos falantes brasileiros a respeito da lfngua portu­
de experiência ambfgua, contradit6ria, que, como um todo, é politicamente retr6- guesa falada neste pafs. Além disso, embora talvez seja possfvel detectar,
grada. Corno poderfamos esperar que fosse diferente se um bloco governante teve corn o auxflio da Historia, as causas que levaram à constituiçao de um tipo
séculos para aperfeiçoar sua hegemonia? especffico de preconceito, acredito ser muitfssimo mais diffcil estab�lecer
Me parece, portanto, impossfvel dissocia!:P!econceito de_ideologia. Talvez o momento exato de consubstanciaçao, na mentalidade de um povo ou
-�

s�_p_Q§.�l!.!!té a..rdsça1.:yer J:>,a.. rdaç[lqickQ.l.Q&!.��Q!§C.<;m�eiJg _urr,i.�_hiper�nfmia: comunidade, das idéias que se relacionam corn esse preconceito.
-- -
os diy_s:rs_os.m�c9_r1-c�itqs {racial,··-·-···-·-·-
. .. .
sexual, etario, lingüfstico,
·-- . - _____ ·---·-
..., . .
religioso,
. ...-- qe clas- Einalmente,
-------···--·· nao.. me Rarece tarefa simples
-···-·-·----.,. _____ .
._ __
det.en.n.ina,r,"entre miro
-- - .

preco1:1c:_eitq,g__gue veio prim.(!iro: foi o erec:ori,ceit_<:> que, r_ompend9�se c::om?


···-� e
. -

se, de origem geografica etc) q!,!� Lmperam no "senso com_u_f11'.:§}i9 hip9nim9s


dald�qlqgi::ïd:Omi�.axite, assirn_ C:Q��-Ôs ÎniJ:osiî�iQ_s��g:Oforrt1am sa() hipô­ _tg!}_i'granac:!a, liberou uma rntrfadi:d� mitos, o.u s_ijo os 111i!Q§ q1.u�. agrup.aI_l._::
t!Ù!l-.OS _d_e_sses preconç_eitos:. do-se em tor��d�-um� prec�ncepçao
.. ,
.. .
nuclear, configur;m
.. �- um tipo esped-
- ----- -- -·- --·--· --··
-... -

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Dramética do lingue partuguesa Da mita ao precanceilo: os comandos paragramalicais

fico de preconceito? Por exemplo, o mito de Eva, tal como textualizado na (4), (6) e (8). Os demais mitas, de uma forma ou de outra, acabam tendo r
Bfblia - apresentando a mulher como subordinada ao homem, secundaria aspectas que os aproximam de um ou mais desses quatro mitas que passarei \
f
até no momento da criaçao e, sobretudo, como introdutora do mal no a analisar. ,, " ,,_ ' it
mundo -, certamente se deve ao preconceito que ja pesava sobre as mu­
lheres na sociedade hebraica primitiva, mas também serviu para reforçar e î
î�
\-\ �. •:'j

justificar esse preconceito ao longo da Historia ocidental, quando o cristia­ 2.3. l. 0 milo da lrngua unica
nismo incorporou muito da visao de mundo judaica ao seu cânon doutri­ 0 primeiro desses mitas diz respeito à suposta unidade lingüfstica do ..-


nario. Corno delimitar, no preconceito que existe hoje contra as mulheres, Brasil, o mita da "lfngua unièa". Esse mita esta presente numa longa tradi­ �
1
o que é herangi_;ipterior ao relato mftico bfblico e o que é i�fluência_des_se çao filologica brasileira e aparece corn taclas as letras em obras como A uni­ -�

r;ïat;-_;��br� ·; cultura ocid�ntal�rista? ... clade lingü(stica do Brasil (Elia, 1979) ou O prodigioso espfrito de unidade luso­
1
Abandonada, pois, a pretensao de narrar a historia dos mitos que com­ brasileiro (Juca, 1961 ). Neste ultimo texto, encontramos afirmaçôes do tipo: 4
11
pôem o preconceito lingüfstico no Brasil, limitei-me a recolher essas idéias
., ,· .
0 transunto perfeito do ideal de nacionalidade se alcança quando, num mesmo
que "fazem parte de nossa cultura", analisando os elementos que compoem territ6rio, se encontra.µma s6 raça, corn uma s6 religiao, uma s6 moral, uma s6
o cfrculo vicioso do preconceito Üngüîstico (ver abaixo, 2.4). Tal como os autores Ungua, e uma s6 tradiçao. [...] Pois eu diviso em Portugal e no Brasil exemplos
da coletânea inglesa ja citada, decidi encapsular essas idéias em frases feitas frisantes de nacionalidades conaumadas (p. 3).
que, como acabamos de ver, sao "falas despolitizadas", prgvérbios,11ubpro­ A historia da Ungua portuguesa no Brasil é mais uma confirmaçao de nosso asserto / , · :•
1
rn
dutos� da ideologia dominante, mitos: (p. 12).
0).À lfngua portuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade surpreendente :1
. - . .

0 resultado foi o predomfnio da lfngua portuguesa, corn a prevalência do espfrito

1
i�
(2) Brasileiro nào sabe português [Eu nao sei português] [S6 em Portugal se fala de unidade que aqui se implantou (p. 14).

1
bem português]
, (3JPortuguês é muito diffcil Corno é fa.cil deduzir, trata-se de um devaneio mfstico-nacionalista,

l
J4�:Âs pessoas sem instruçao falam errado [feio] puramente ideologico, que nada tem de �ntffico. Supor que no Br;;!
existe uma so raça, uma s6 religiao, uma so moral e uma s6 lfngua é levar
,--,
(5)0 lugar onde melhor se fala português no Brasil é o Maranhao
._(6)0 certo é falar assim porque se escreve assim ao paroxismo a operaçao intelectual caracterfstica da ideologia: a criaçao
p,
de universais abstratos, _isto é, a transfor��SUiq§___idéi.as_p�rticulares da
(7) É preciso saber gramatica para falar e escrever bem
-{s)/0 domfnio da norma cuita é um instrumento de ascensao social �ominar1te, em idé���i�e-r;�;;4�-tonos e�-t999s os ��mbi:?����'
-
,__,,, s��9ack como yjnwsM Ci\pftulo_ aµt_eriçr. Essa operaçao ideol6gica de
É provavel que haja varias outras mitos desse tipo e quem sabe até em conectar lfngua e moral se encontra também no prefacio escrito par Sousa
vez de 8 pudéssemos escrever oo, Me ocorrem, por exemplo, os mitos de da Silveira para o opusculo de Gladstone Chaves de Melo intitulado pre­
que "os jovens têm uma linguagem pobre", "� televisao [a mfdia] esta arrui­ cisamente A atual decadência da l(ngua literaria (1946). Ao apresentar o
nand�--o�çist�gµêj\''os-a.ngf{�i���-v�q acabàr comi lfngua portuguesa"' trabalho, diz o conhecido filologo (p. 1-2): 1·
M��
F�_··
"eu nao !enhg �Qtaq11e,, qs Qlltrns é que têm" etc. e;s�� ç,ito me parecem
Homem de bem e honesto, [Melo] procurou descobrir as rafzes do descalabro de
� �i_iriiG _gra_Y.e§,�9Jr:_�t.lld9 12.Qrgu<; sao _s,fü��_a_t!camente reprnduûdos pela
()tatiç_q_e,�c:_gla,;___t:r_adkionale pela mfdia, colaborando para a manutençao
cl.9�gl!e, __chamo q c:fi:c.11 lg_ viciqso__d·o-preco���Ïto lingiü'.sticO:-Nâ�âiiâlise a
que é vftima, atualmente, a nossa lfngua. Reconheceu que tal descalabro é ape­
nas uma das tristes conseqüências de uma decadência moral coletiva, muito gra­
ve e assustadora. Ele aponta varias causas responsaveis pelo grande mal; por isso,
!'.
! seguir, me concentrarei nos mitos que cons1dèi-ëi'os mais importantes para a leitura do seu trabalho se recomenda a todas as pessoas que ainda se preocu­
o estudo do preconceito lingüfstico da sociedade brasileira, a saber: (1), pam, sinceramente, corn o bem da humanidade.

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Dram6tica da lingua por tvoue�a Do milo ao preconceilo: os comandos poragramalicais

Vemos af novamente um universal abstrato, a "humanidaçl,e", identi­ A mâe deve tratar o filho corn muito carinho, conversar corn ele corretamente,
ficada corn a fnfima classe letrada brasileira, parcela reduzida da populaçâo como ser humano. No processo de alimentaçâo ffsica, providenciar, paralela­
total (mais reduzida ainda em 1946 do que hoje). Quanto ao texto do mente, a alimentaçâo espiritual: livres. As crianças devem se habituar, desde os
pr6prio Gladstone Melo, é de se perguntar de que "atual lfngua litera.ria" 4 anos, a manusear livres. Na minha casa, livre sempre foi boca-livre e é por isso
que hoje em dia as minhas netas me convidam para um passeio à livraria.
tao decadente ele trata se no ano mesmo de sua publicaçâo estavam vivos
e ativos alguns dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos como Evidentemente, as netas de Niskier nào estao entre os 21 milhoes de
Graciliano Ramos (Infância, 1945), Carlos Drummond de Andrade (A Rosa crianças brasileiras que vivem abaixo da linha da miséria, nem entre os 67%
do Povo, 1945), Manuel Bandeira (Poesias completas, 1944), Cecflia Meireles de jovens brasileiros que nao &eqüentam a escola. Nesse discurso esta evidente
(Mar absoluto, 1944), Clarice Lispector (0 Lustre, 1946), Joao Cabral de um dos processos ideol6gicos mais &eqüentes: · a visao de toda a sociedade
Melo Neto (0 Engenheiro, 1945) e Guimaraes Rosa (Sagarana, 1937), para como identificada corn o modus vivendi de uma (mica classe social, o que
citar apenas os nomes de maior notoriedade no Brasil e no exterior. implica, conseqüentemente, na idéia de que l(a'' lingu� é ape.nas aq1:1e.la falada
Corno analisa Pereira (in ABL, 1999: 96) tem que ser falha a ideologia por essa mesma classe. S6 mesmo uma visâo que apaga as diferenças sociais
que dominou o pa{s durante o perfodo colonial, e prevalece de.certa forma p��ite �-NAsfier fazer sua carnpanha _em favor do livro e da leitura, num
ainda hoje - isto é, a de centrar suas reflexôes apenas na unidade lingü{stica pafs-oîi�e._'�ll9J,lf9Çe.ss9. d!; alimentaçâo ffsica", como ele diz, milhoes de brasi­
brasileira. É ela que da corpo às afirmaçoes de que a imprensa escreve erra­ léiM simplesrnente nâo têm o que corner. E é. também o que autoriza ele a
do, a televisao fala errado, o povo usa mal a lfngua, parecendo ignorar a fazer uma deduçao sociol6gica inconsistente sobre as diferenças entre o Brasil
realidade pluriétnica, pluricultural e plurilingütstica brasileira. e os Estados Unidos, atribuindo as "dificuldades de crescer" do nosso pafs à
Nao espanta, portanto, que num projeta de lei que tem por objeto "a falta de bibliotecas:
promoçâo, a proteçâo, a defesa e o uso da lfngua portuguesa", apresentado Um livre nos EUA tem 100 mil exemplares de tiragem. N6s, aqui, quando temos
em 1999 ao Congresso Nacional pelo deputado federal Aldo Rebelo uma tiragem de 3 mil exemplares, é 6bvio que o custo unitario tem de ser alto,
(PCdoB-SP), ainda se afirme algo como: porque a tiragem é ridfcula. N6s temos s6'3.500 bibliotecas public.as. E temos
3.500 bibliotecas mal localiza<las, fechadas boa parte do tempo, corn o acervo
Ora, um dos elementos mais marcantes da nossa identidade nacional reside justa­ ultrapassado. Os EUA têm 185 mil bibliotecas e sâo um territ6rio assemelhado
mente no faro de termes um imenso territ6rio corn uma s6 lfngua, esta plenamente ao nosso em termos de extensào territorial. A( esta par que um pa{s é grandemente
compreensfvel por todos os brasileires de qualquer rincâo, independentemente do desenvolvido e porque o oucro tem dificuldades para crescer [in ABL, 1999: 60-61].
nfvel de instruçâo e das peculiaridades regionais de fala e escrita. Esse - um au­
têntico milagre brasileiro - esta hoje seriamente ameaçado. 0 imortal esqueceu-se, porém, de outras dados estatfsticos, que conside-
re talvez menos relevantes: o Brasil, segundo o UNICEF, ocupa o 108° no con�
Co_!P.o se vê1..,0l}reconceitoJin.gütstic.9��tâoimµregnadona sociedade
junto dos pa{ses em termos de mortalidade infantil e, segundo a UNESCO, é o
brasileira que se revela até como U!!} pq,nÇ9_(!1llJor.np do quai forças polfti­
7° pa{s corn maior numero de analfabetos em todo o mundo. Daf se deduz
� radic;f���tè.op�itas eO.COlltf�ffi,Uffi consenso_,É,que, CQffiO e5-clarece
que o que Niskier realmente lamenta é a falta de interesse pelos livros, nao
_Chaui 0998: 114),
de toda a sociedade brasileira, mas da restrita camada social a que ele pertence.
a funçâo da ideologia é a de apagar as diferenças como as de classes ede fornecer Esse apagamento da heterogeneidade social é que instituiu nos estudos
àôsmemoros·dasaèledaë!è éi sèri.i:1men'io'dâiê11ii't(di.èliiôéJ?C.�nè·oiirr;mdo certes filol�gi�os._brasilefros. tràcliçio_nai � crença de que .�!Il n;s;o p_ii; e},{iste
\ referên�l�is iclentificadores de todos e para todos, como, por exemple, a Humani­
·a
d�de, Liberclade; a lgL1aid.i.dê; âl\Jaçâo,.2üi��tâè1êï.--·-- - · · · · Ù��nid;cl����qivernida�.�ITHUÎiyen;JdcJ,cle 1��-.��!.��4.<:" c:fa ._ l(Q._gµ,i
portuguesa aqu�.falada, f6_r!I}u_l;:! qµe_s.e encontra,Jnalt.erada, 1}1l!Jla�,gijfg��
0 apagamento das distinçoes de· classe se percebe claramente, por de...obras.queyai d�sde Silya_Neto (1950: 234), passa por Cunha & Cintra
exemplo, neste "conselho para as maes", dado por Arnaldo Niskier (in ABL, .0.2.§5_:.,21 �-�h�gf\l.tt;unais. ���i;ri-�di�o·d� �ompê·��L;:;gr��;rI;�T J�.
1999: 33): �echara (1999: 50). E essa crença que leva Silvio Elia, no livro jâ citado

52 53

Dramélica da lingua porluguesa Do milo ao preconceilo: os comandos paragramalicais 8
1
ij,


0
Il
(1979: 12-13 ), a encadear citaçêies de renomados estudiosos que viriam Tendo empreendido uma pesquisa de campo que demonstrou a problema­ &J
corroborar este "prindpio" que, segundo ele, "parece ter-se tornado uma tica da comunicaçao entre falantes de variedades cuitas e nao-cultas na peri­ �
communis opinio". Essa opinio, felizmente, nao é assim tao communis, como feria de Brasflia, Bortoni-Ricardo (1984: 9) tem provas suficientes para afirmar: :�

atestam as palavras de Houaiss (1985: 129): A idéia de que somos um pafs privilegiado, pois do ponto de vista Hngüfstico tudo �
A justificaçao em geral dada por intelectuais brasileiros (e, corn eles, muitos es­ ���;e-·e-nâëfâ nôs'"sèp'ài-à; par;��=lll�, s:ontudo,· !.._ Se àP�ri�i:ïnif�m �9s gra1.1�ès b,,
trangeiros) é a de que existe um milagre linguageiro entre n6s, que é o da mitàs_arr�iiù.m iii>�a. cultura. Um mit�, por si�al, de consegü�n.çias_danosas, e
!.:

intercomunicaçao dos falantes de quaisquer pontos do territ6rio [...]. A tese é p�is na medida em que ri�Q�sÙeçonhecem<:>s prô@êinâs ·de c���nicaçfu ;ntre TI
plausîvel a partir de certo nîvel de culturalizaçao escolarizada dos falantes; abaixo, falâriiès dedif�re�tes variedad, e s cfo
. -···--·-----· --�---- -'--··------- -�. ·-. - ,, - .
- ·,
lfngua, nlclc!a se fa�
. - ·--- ·-· .
tamb_
---- · ç m para. -..resolvê-fos
- ...... ··-· .....
.,
·�
no nfvel da iliteraçao e vivência localista, as diferenças dialetais, se nâo sao im­
De fato, os dados do Projeto NURC evidenciam que a propalada "unida­ H
peditivas da intercomunicaçao sem contigüidade, sao, pelo menos, muito obstru­
tivas, exigindo um esforço de adaptaçao e circunlocuçao sensfveis [...] de" nao chega a existir nem sequer entre falantes que compartilham um j,,
perfil social semelhante - o apresentado por uma minoria de brasileiros
0 grande defensor da tese da "unidade" lingüfstica do Brasil, Silvio Elia que têm acesso a umà educaçfo formai superior completa e aos meios de ex­
-que a qualifica de "esplêndida", "notavel", "quase perfeita", "real e procla­ pandir seu universo cuhural .:_, pois mesmo dentro <leste conjunto social �
mada" (cf. Rossi, 1980: 36-37) -, alega que uma das razoes que tornaram existe a interferência dâs realidades regionais e culturais, ba;tante diferen­ I_I
possfvel essa "unidade" é.l:...�1:�!-1:�!�9.!__E_a!���f.,iJa�!es de outras lî�uas �
tes e até contrastantes, que coqhecemos no Brasil. Além disso, do ponto �I
"concorrentes" (e cita o caso das 1fnguas africanas trazidas pelos negros escravas de vista das classes sociais, nao poderia haver "igualdade lingüfstica" se
�s----raLres "caipiras" e "matutos" do partuguês), de uma "reivindicaçao" nao existe lligualdade social": i_1·
em favor do uso ampliado ou do ensino reconhecido dessas lfnguas. A razao

�1,
Os cidadas. i!,P.f§�f de_d�çlarados _iguais perante a lei, sao, nareaHdade, discrimi-
dessa ausê.ncia de "reivindicaçao" nao é, porém, como pretende o autor, o �
fato desses falantes quererem "trocar" seu "falar socialmente desprestigiada"
n��.?!1!:'1�ast;do·;es�o, s6digo�em;;e·àTei'é'rèdTg1JâXmàigi-[a'"dèi�-�i4àd1igs
nâo tem acesso ao c6digo, ou.!.��e,zes, tem u!"!la p��s!�il,idade rJ,_d,t;!ti_ç!,a,J!�%�.�so,
1
f!
pelo "domfnio da lfngua padrao", mas um mecanismo muito mais complexa co_nstitu_f_d� �a "riorJ:!la pedag6Jc1lca" ali ensinada. Apesar de fazer
0

no jogo polftico e social da dominaçao: · parte· da experiência de cada um o fato de asJ?,essoa_s ser(!f!t discriminadas pela
�-3:��iEa_�o1. :19_fala,� �-faiifüi_ié-iî"6"'il_û�.§�_p9d(;..Xerifü:�rn2J!!!lI1do__!.Qik1PO-�.l:�ii�

Ora, é sabido que o normal nas relaçoes de dominaçao é a coincidência entre ,1 -
ideologia do dominador e a do dominado, porque o processo de dominaçao elabora, BrasiJ fla� é .1!n�g encc,��I3:�J.fü!Jla._ç5_$ê_gt!g!W. é\91.!Ï.J,ii.Otli_�tem g(for�9ça,s_gia: r

para legitimar-se, uma ideologia sem a quai nao teria como sustentar-se e nâu l�tais}Gnerre
--�.:... , 1985: 7].
�1
deixa, enquanto vige, alternativa ao dominado que, até construir a sua propria,
s6 dispêie da que lhe é imposta, como (por sinal falacioso) instrumento da chamad;i Quando, efetivamente, se trata de uma comunicaçao entre os diferentes �


"ascensao social" (Rossi 1980: 37). estratos sociais, a situaçao assume contornos bem distintos do da mftica �
"unidade na diversidade": �

'

A leitura crftica que Rossi faz do livra de Elia deixa bem claro o quanta :t
a obra é contradit6ria, teoricamente inconsistente e - embora o autor se
A linguagem pode ser usada para impedir a comunicaçao de informaçêies para [;µ,

:t._'•· 1·. 1.
grandes setores da populaçao. Todos n6s sabemos quanta pode ser entendido das -�

apresse a negar - etnocêntrica e preconceituosa. Infelizmente, ela é o notfcias polfticas de um )ornai Nacional por indivfduos de baixo nfvel de educa­

Il.'.,

registra escrito de um mito que ainda perdura na tradiçao cultural brasileira. çao.A linguagem usada e o quactrô-dèréférências dado como implfcito
0
constituem
E a escola, espaça privilegiado de transmissao da ideologia dominante, naa um verd-adèiro filfrodâ'comû�ic�çio d� in,form�gië;: ëstas pod�� ser entendidas
\ se furta ao seu- pape! de reprodutora
-- .. desse xnitQ, _Na escola, __ sorriênte.pëlosou-vîntés'îfhîièfàéi�s-�a���6n� li�g�ag��
p�dr�o mas tambéin

'1
. . ·-
.
- .
� -
.. . .. - - . ...---
-.
. ..
. �- ,.

nos conteudos à ela àsscïdadrn;[Gnerrè 1985: 15].


sil!.1_0_a_-�c_qu_e_ i_riexistem diferel}ças e11tre...a __y��!�1ade 9'-!e s_e _9._1,!!!I' epsinar e a }îli
variedade que o ahmodomina. Constata-seessa diferença - é Ïl!IPJJSs(vel esconder ,;
Os que defendem a "unidade" do português do Brasil parecem levar !�

o sol corn a peneira - mas age-se como quem 1.1�g�iisê�Î:a. PQISI�_!!!>9-J_gi_J;�nâo


é corrigi-la para cala-la, ma.s ouvir vozes que preferirfamos caladas. Ou que em conta exclusivamente o critério da mutua compreensao entre falantes
-·-··· outras
-
prèfèi-em caladas [Geralèli; 1999
: 90].--·- - ... "··· •. . ··- - ·---· de regiôes e classes sociais diferentes, corn base na existência meramente

54 55
Drom6tico do linguo porlugueso Do milo ao preconceilo: o� comandos porog;amoticois

,h
s�

\ (:
estrutural de um mesmo repert6rio de recursos fonol6gicos, morfossintati­ \ \.; "problematica", embora a Lingüfstka ja tenha provado abundantemente
cos e, em menor grau, lexicais. Desconsideram, porém, o bloqueio que é ��i
\ li,
que a variaçao é caracterfstica intrfnseca a todas as lfnguas humanas- - vivas.
possfvel criar corn a utilizaçao desses mesmos recursos para a constituiçao ëàmôëlîî"Haugen (1976: 104), uina nàçao;
de um "c6digo elaborado" cujo quadro de referência, como diz Gnerre, enquanto unidade polftica, sera presumivelmente mais efetiva se for também uma
escapa totalmente aos nâ.'6-familiarizados corn essa ret6rica espedfica. unidade social. Corno qualquer unidade, ela minimiza as diferenças internas e
Em seu projeto de lei ·contra os estrangeirismos, o deputado Aldo Rebelo maximiza as extemas. À identidade pessoal e local do indiv(duo ela sobrepêie uma
pergunta se "nosso homem do campo" pode entender o termo printar. Cabe identidade nacional ao identificar o ego deste corn o de todos os demais indivfduos
de dentro da naçao e ao separa-lo de todos os outras indivfduos de fora dela. Numa
perguntar também, no entanto, se esse mesmo homem rural entenderia o sociedade que é essencialmente familiar, tribal ou regional, isso estimula uma lealdade
significado de imprimir, suposto equivalente português de printar. A., com­ para além dos grupos primarios, mas desencoraja qualquer lealdade conflituosa corn
p_reensao de um termo nao_d_epende 1a sua lfngua de origem, mas do ço�hè­ outras naçêies. 0 ideal é: coesâo interna - distinçao extema.
cimento· do quadro de referências a_que de remete.
\.--..,.�N"-"'• ,_, __ • · �• •., • - - • "•· •- "
•• "• - ••• -,

0 que na verdade ocorre é qu� -� miro da unidade lingüfstica é essencial Dado que o encorajamento dessa lealdade exige uma comunicaçao
para sustentar outro mito igualmente poderoso: p mi�g_da_lf1}0a,de.n4ciql}C(t. livre e intensa dentro da naçao, o ideal nacional pede que haja um unico
É ele que pocle.explicar o_preconceito.discriminador gué pesa sobre todas c6digo lingüfstico através do quai se possa realizar ta! comunicaçao. Nao é
a�arTéëf;c1e�JiDgï1fsJiç_a1?nao:paclrao, diferentes daque!a u_s�da pelaùoiti­ de estranhar, portanto, que os_ revolucionarios franceses de 1789 promul-

t�içoes dominantes para se preservarem no poder: gassem uma lei de condenaçâo aos dialetos regionais, acusando-os de se-
A começar do n(vel mais elementar de relaçoes corn o poder, a linguagem consti­ rem resqufcios do sistema feudal. Conforme explica Bourdieu (1996: 34),
tui o arame farpado mais poderoso para bloquear o acesso ao poder. Para redigir um Os membros dessas burguesias locais de parocos, médicos ou professores, que
documenta qualquer de algum valor jurfdico é realmente necessario nao somente devem sua posiçao ao dom(nio que exercem sobre os instrumentas de expressao,
conhecer a lfngua e saber redigir frases inteligfveis, mas conhecer também toda uma s6 têm a ganhar corn a polftica de unificaçao lingüfstica implementada pela
fraseologia complexa e arcaizante que é de praxe [Gnerre 1985: 16]. Revoluçao: a promoçao da lfngua oficial ao estatuto de lfngua nacional lhes confere
o monop6lio efetivo da polftica e, de maneira geral, da comunicaçao corn os
A entidade abstrata chamada Naçao tem de estar pres(!_n�('!no imagina­ representantes do poder central que, por sua vez, buscarâo definir os notaveis
rio do povo que a comp5e sob a forma de um ser unico, compacto, de uîna locais de todos os regimes republicanos.
S_CJ_!�d\r2frs_�an1o Uffia__S�J�)jgjào�fEi1ando UnÜÏ.Ut1ÎCa ffnit1a, COffiO A imposiçao da lfngua leg(tima contra os idiomas e os dialetos faz parte das es­
s.�nhava J uca em seu texto_ de 1�6 L Sabe;se que nao existë. em todo o tratégias polfticas destinadas a assegurar a etemizaçao das conquistas da Revoluçao
rrwndg:ymâ!i� "Naçao'j,assim co�po_s�a, e_ a Historia nos relata todo O hon-or pela produçao e reproduçao do homem novo. Ao fazer da lfngua um método, a
que foi a tentativa desvairada do nazismo de criar uma Alemanha nesses teoria de Condillac permite identificar a lfngua revolucionaria corn o pensamento
moldes, copiados pelo nacionalismo sérvio contemporâneo em sua pratica revolucion.ario: reformar a lfngua, expurga-la dos usos ligados à antiga sociedade ,i
e impô-la assim purificada é o mesmo que impor um pensamento igualmente :1
criminosa de "faxina étnica" nas re�à
--"· ·· ·· · ·- lugoslavia de maiori�----
popula- depurado e purificado. ij
cionaL nao,sé�via. 1,

Apesar disso, essa é a imagem veiculada pelo discurso polftico quando Para Bourdieu é uma ingenuidade atribuir a po!ftica de unificaçao lin­ ri
1'
1'

se serve de supersubstantivos como "o Pafs", "a Naçao", "a Pa.tria", "a Uniao", güfstica simplesmente à necessidade técnica de comunicaçao entre o poder !l1'
i1,l
1\ sempre no singular e grafados corn inicial maiuscula. Toda tentativa de
diferenciaçao é vista coma uma "ameaça à unidade nacional", uma vez
central e as provfncias. Em sua analise, o conflito entre o francês da intel�
ligentsia revolucionaria e os "idiomas" ou os "dialetos" é na verdade um con­
que, ao contrario do que prega a maxima "dividir para govemar", o grande flito pela poder simb6lico, pela formaçao e re-formaçao das estru.turas men­
objetivo dos portadores desse discurso é "homogeneizar, compactar para tais. Corn a ascensao de uma nova classe dominante ao poder, uma nova
dominar". .Issa .se reflete nitidamente no ensino da lfngua, onde a homo­ formaça.o ideol6gica se impêie sobre a arcaica, impondo também, conseqüen­
geneidade (que nao existe) é considerada "normal" e a _heterogeneidade, temente, uma nova formaça.o discursiva: 1
1

56 57 1
� 1
1
iiii.
Dramética da lingue porluguesa Do mito ao preconceito: os camandos paragramalicais

.(\
Nâo s e trata, em suma, apenas de comunicar, mas d e fazer reconhecer um novo
discurso de autoridade, corn seu novo vocabulario polftico, termos de estilo e referên­
Jy Corno conclusâo a autora alerta para a confusao, que vigora na tradiçao
güismo e de ho�.9_g:��t;j·
cultural brasileira, entre os conceitos de morn�Jin
cia, metaforas, eufemismos e a representaçao do mundo social par ele veiculada. / 9..ade lingfüstica. _Se_� .Y,�_rdadt.51.ue a.g�ande maioria_ d�_Ell.laçao do Bra;,i!
Estando vinculado aos novas interesses dos grupos emergentes, esse discurso se re­
fala "uma s6 lfngua", 0 QQ!.�l!�§.,_tamhém.és.eJ:Q.f!g�_glJ.t,�.s�u9.tt\:!g!:1��-�§
vela indizfvel nos falares locais moldados par usas ligados aos interesses especfficos ênea, _ unifq,rlllf!: ..
dos grupos camponeses. é uma entidade compac· ta,-,_,homog
0 mito da inteligibilidade tem conseqüências p erv ersas pois oculta, num limbo
.. ·-�·· - •• -·· � - ,_..,_.
---·- --"'"·"�··•_.:,_,_...,,.-,,,.,. ,._,__,. c. .,.....

Nao foi par outra motiva que a ditadura de Franco proibiu, sob pena de temas nao discutidos, os problemas lingüfsticos que afligem os falantes das
de morte, o usa das lfnguas minoritârias na Espanha (galego, catalao, basco). · variedades d esprestigiadas. E um problema nao reconhecido coma tal nao pode,
No casa do Brasil, onde "s6 se fala uma lfngua", a unidade nacional é naturalmente, despertar o interesse da comunidade para a sua soluçao (p. 29).
buscada com a imposiçao de uma variedade lingüfstica considerada padrâo 0 que existe no Brasil, de fato, é uma espécie particul&..,de djglos�, que
e a sistematica discriminaçao preconceituosa das demais variedades, resul­ Bortoni-Rica.r.dQ (in Kleiman, 1992:J22) assimnefiŒ;.
tando na exclusao social de seus falantes. 0 processo de unificaçao lingüfsti­ �-YJl.!.��adrâo e às �atie�ades populares cabem §�ip._dis��i m�s
ca ocorrido na França p6s-·revolucionaria encontra seu paralelo em projetas g_rande par�e-���� �.��<;.t!k itm!.-C,.Q.J!Ç�Jl�9J J!r:i��a,_pa,fir,;io frqµitq
aparentemente "democraticos" coma as campanhas de alfabetizaçao, de restrito. '!':T�â9ÉJ)!!l1!}.i!���2A-�-gjg\Q§§i)LSem,b,id.iaktali&mo.e:ictensiyp.
aumento <las oportunidades e dos recursos educacionais. Esses projetas,
Estendendo-se mais sobr�b problema, a mesma autora (em comunica-
conforme analisa Gnerre (1985: 21),
çao pessoal) escreve:
estao muitas vezes conjugados corn processos de padronizaçao da lfngua, que,sao
m enas obviam ente democraticos e "liberadores". A chave da unidade profunda Em sociedad�s mais d emocraticas, coma as a dos pafses escandinavos, a lfngua­
<lestes processos é a funçao, que eles vâo assumindo, de instrumentas para aum entar padrâo esta associada ao contexto de usa. Qualquer cidadao, apresentando-se­
o controle do Estado sobre faixas menas controlaveis da populaçao. Os grupos lh e o contexto adequado ao emprego da variedade supra-regional, faz usa dela,
a
pois dispéie dos r ecursos lingüfsticos n ec essarios para implementa-la. No Brasil,
sociais que mantêm poucos contatos corn a vari edade padrao da lfngua, que usam e
lfngua-padrao é determinada, s6 secundariamente, p ela contexto. Sua distribui­
produzem pouco material escrito, sao mais diffceis de s er controlados, uma vez que
çâo é, e� princfpio, associa�lasse social. �s classes que têm acesso à cultura
pod e faltar a el es um instrumenta poderoso para determinar sua posiçao social das formas
. de 1etrn.m�nro,.. po.r.meioA�.uma escolariza�o eficit-�te,têll\O_fil)Jmag�
relativa. Issa num mundo "democratico", em que outras importantes marcas expli­
prestigio�flS cle falar. À grande massa de brasileiros é sonegada umaboa escolarr
citas d e posiç:6es sociais podem s er reduzidas. Passar forçxisamente as p essoas através
zaçao e , co�seqlie�i:�'rn.ente, acesso aos recursos lingüfsticos que p ermitem ao
0
do tun e ! da educaçao formai significa forn ec er a elas alguns parâmetros para re­ falante transitar, corn segurança, de um estilo menos monitorado aos mais mo­
conhecer as posiçêies sociais e fornecer um mapa da estiatificaçao social corn alguns nitorados, de acordo corn as exigências da situaçao social. Nessas circunstâncias,
diacrfticos relevant es para o reconhecim ento d e quem é qu em: um instrumento muitos brasileiros sâo silenciados, porque s e sentem inseguros no usa de sua pr6pria
a mais para m edir a d esigualdade social. lfngua materna!
Contrapondo-se ao mito da '1fruma uniça,.��11}-9i:Ûe_t:os", Bortoni-Ricar­ Ja em 1964, o filologo Qtl§g C!JJ:UW chamava a atençao para este pro-
do (1978: 17) especifica os tipos de problemas encontrados durante a reali­ blema:
zaçao <las entrevistas empreendidas em sua pesquisa: fun.,verdade, num i�io!11a coma_ o português,Jalado pot va,stas_comunidades, d,e
Amaioriados p roblern..?.!i.d�_çQmll!"}icaçao durante as ent revistas parecem d e rivar r
.\ .s/_tdifer_�_[}_Çél_S gial etais nos nfy�fs fonolq_g!�o, gr�ma�ic;l e semâ,11,tiço. Em outras �:rrl��J:0
�· t�d;�:m�;;�,:;���� c�!�r:t�::n��; ;:y;;;�1:�� 4� i;iii;�;:,
e r

ctigloisia s6 tenèlti:aç��tÛarase,..caso continue ..este m�cl9_g\!_f9igs [1964: 36].


palavra�, o ouvinte d e ixa de çoO}preend er o sentido do enunci.ado do falante
..\ num contexto esp ecffico porqu e nao esta familiarizado CO!ll:_ a )_cl_et�rminada regra
E o mesmo Cunha, em trabalho posterior (1985: 44-45), alertava:
-,.· fonol6gica que altera a forTTl_a.de uma palavra conhecida; b).determinada variante
gramatical; c) o significado qu e d eterminada palavra assume no dialeto do inter· AjustifiSI.Ç?9_d,i, normg_pr�scr[tiva é d e cardter nidifq1),tŒ!�Jfko!9gi�QJ�. h\\Stia:s�
'v
't
locutor e d) o objeto ou estado de coisas a qu e a palavra s�-ref ere. no--ë��ito d e "ll_so", manïp�I�do �o�-Iil.iw93e�efin.id_g§��À norma pass� a
�61
58 59
Il
Dram6lica da linguo porluguesa Do milo ao preconceilo: os comandos porogramalicais

J:
"inglês é pratico", "italiano é exagerado" ou, dentro de um mesmo universo
l
identificar-se corn o bon usage da ifngua, e arnbos, ao firn e ao cabo, se confundern

�. 1
corn a pr6pria l(ngua, reduzida à parte norrnativarnente legitirnada. Da( o percurso lingüfstico, o sotaque carioca é "antipatico", a fala caipira é "ridfcula", o
de estigrnas que vâo desde "isso nâo é born português" até "isso nâo é português". nordesti no é "rude" etc:

IJ_
·-:-,
[grifo rneu). Se a co isa é assim, um "fato da vida", um fenômeno "natural", pergun,
tam os aurores por que deverfamos, enquanto pensadores, nos preo cupar
1
çom ela. E a resposta é que "isso tem implicaçôes deploraveis para a socieda, q
2.3.2. 0 mito da lfngua estropioda de" (p. 87), três das quais eles enfatizam. Primeiramente, um numero exces, V
n
,')

(ü-Mito �tenta justificar a proibiçao do uso do r6tulo "lfngua portugue­ sivo de falantes de certas lfnguas ou variedades sao levados a acreditar, "às
1
•j

t�,
sa" porparœ'd os falantes de variedades nao,padrao do português do Brasil,
ac1JSa1!do eles de falarl(errado" ou "feio". 0 precort��_i..to_ lip.güf§tic() se nutre
vezes por meio do ridfculo e do abuso", que seu meio de comunicaçao -
"um aspecta fundamental de sua identidade e de quem eles sao" - é grossei,

.9.�_9"-�-�Çg de_qu ê.s6_�xI;;te�çgmgyJm_Q�.!1,QJ�.fü9.J,t_l:f�lJ!_liq�Jfngµg p'ërrJi!� rameute inadequado. Corno sublinhei ao citar o trabalho de Coelho ( 1998),
1

esses falantes têm baixa auto-avaliaçao lingüfstica e péssima opiniâo acerca
0

gu_esa.JligrnulestLJWme..e,que_é ��nor.më,.,�nsïnfili.a nas escola�, e}_(-.1.:i_!icada �as


do modo como falam. Giles & Niedzielski citam um informante que, tendo
�.gramatica_s_n,ormati:vas.e.catalogada.nos.dic,ionarios.•.Qualquer manifestaçao i
lingüfstica que escape desse triângulo escola,gramatica-dicionarfo é consi, sotaque de Norwich (Inglaterra), afirmava: "Eu falo horrfvel". E dizem que
îi

derada, pelo preconceito lingüfstico, "errada, feia, estropiada, rudimentar, esse fe nômeno tem sido chamado de "auto-aversao lingüfstica" (linguistic

deficiente": self,hatred).
Nao é de admirar, prosseguem eles, que certas instituiçôes educacionais
1�

Fundamenta-se o discurso norrnativo na suposiçâo de que existiria um padrâo
@
lingüfstico uniforme e mais elaborado, o quai permitiria aos sujeitos cornunica­ denigram o modo como falam certas minorias étnicas e crianças de camadas
sociais inferiores. Tais instituiçôes, professores, e até pais, tentam "obliterar �11·

çâo mais eficiente e raciodnio mais organizado. A fala popular, expressâo de
essa expressao de si mesmos para se acomodarem a uma maneira 'melhor' de . �
incultura, seria uma corrupçâo da lfngua cuita, devendo ser corrigida por meio do
ensino regular e do preceptismo (Britto e D'Angelis, 1998: 2). falar". Cabe acrescentar aqui que, pelo menos no caso do Brasil contemporâ­ �
neo, outras elementos contribuem para esse processo de "acomodaçao" fu nda,
��'1·
Para analisar a origem desse preconceito, Giles & Niedzielski (in Bauer
& Trudgill, 1998: 86-89) propôem duas hip6teses que, segundo eles, "compe­ mentada num preconceito: os comandos paragra!71CltÎC_(1Ï�,)§tO _ét a�diversas
'

'
tem" para explicar o mito em questao: f!.hip_ô_te�� do val<;>r_inerente e a hip6tese ma�f��fa,S:§�� c:ifl . (lll�lt.i)mf�-��·-9.�f: pan.tu.am. nosso cor.!çlia11g"com nQç_ô_�s
deportuguês "bom" e "_�orret<l�_];ataxemoSc-deles maJs aclia1_1ie. �

�m�s...Mlf.jp,js. Embora os autores nao as classifiquem com essestèr­
mos, fica claro que a primeira hiP6tese é ideq/.6gica (conseqüentemente, um --Asegùndâlmplicaçao, sempre segundo Giles & Niedzielski, é que pes­
preconceito) e a segunda, sociol6gica. quisas empreendidas mostraram haver um estreito laço entre a suposta d
1
.�se do vat�r_iJ1�f<:!rJê_afirm_4.g�_g}fil!!!!..a.sJfnguas o_t1_varieda, agradabilidade de uma variedade lingüfstica e a aparente inteligibilidade


des de uma lfngûalôû sot;;1.ques) sao inerentemen�e mai;-�traentes (porque do que esta sendo dito nela. Muitas vezes, nossas opiniôes acerca de uma
i
l!l"â:_i bonitas;' QU mais ''corretas") que outras. É COffiO se essa atratividade
èi variedade (e de seus falantes) pode influenciar nossas crenças sobre se é pos,
;I;!
nao foss� um fenômeno ext�rriô a n6s, como se ela nada tivesse a ver corn
sfvel para nés compreendê-la e influenciar sobretudo nossa disponibilidade ''

preferências hi§tgricas o u condi�Âo���e�t�;-���i�i; mas, sim, corn certas de desprender esforços para interpreta-la. Rotular uma determinada varie­
-�
r
dade de "vulgar", p or exemplo, e sentir desconforto e insatisfaçao ao falar
I
\ cara�të�fsti�-a� i�ternas, biol6gicas,-d��tro d� àiguns de n6s que nos permi­
com usuarios dela pode "enviesar inconscientemente nossas percepçôes de
tem fala�_''mais p9.nito'�que outras pessoas. É somente por isso que determi­ 1\1
sua inteligibilidade" e, portanto, ao fim e ao cabo, enviesar seu valor como
�iëfasformas lingüfsticas assumera prestfgio em detrimento de o utras. Essas 1
1
uma forma viavel de comunicaçao.
outras jamais poderiam ganhar prestfgio ou tornar-se o padrao porque sâo
A terceira implicaçao esta no faro de que quâo "bem" podemos falar é
inerentemente grosseiras, vulgares, desagradaveis. Essa é a hip6tese que
algo que tem grande aceitaça o social. Os aurores usam mesmo o termo
!�

preside opiniôes tao corriqueiras como "francês é bonito", "alemao é feio",

60 61

L
Draméfica da lingue porfuguesa Do mifo ao preconceifo: os comandos parogramaficais

currency ("moeda corrente"), o que logo nos remete ao conceito de capital .J!m suma, sao as conotaçoes sociais dos falantes de uma variedade lingüfstica [...)
lingü(stico proposto por autores coma Rossi-Landi e Bourdieu e que abordare­ q�e ditam·riossos jùlgamentos estétic<ls (e outras) acerca dessa variedade lingüfsti­
mos ao tratar do Mita 8. Pesquisas têm mostrado que falar de uma maneira ca. Nao é uma equaçao simples, é claro, _e_ os "fatos" lingüfstic�s podem às vezes
que é consensualmente considerada "desagradavel" levaria a certas conse­
mÜd;-buscamenŒ:2=umproceSso q�e sustenta esse arguÎneritci. Corno ilustraçao,
qüências sociais desfavoraveis em situaçôes coma "ser diagnosticado numa
os
ôfërecèmos môvimei-itos "Blackis béautfful" ou "Welsh is beautlful" (entre va­
rios outras). Quando grupos subordinados na sociedade passam a questionar a
clfnica, testemunhar num tribunal, buscar moradia e candidatar-se a um legitimidade de seus papéis inferiores na sociedade e a atribuf-los a medidas opressi­
emprego de prestîgio" (p. 88). vas e discriminatôrias de uma "elite", e.les podem redefinir a beleza e a importância
Depois de apresentar a hip6tese do valor inerente e suas implicaçôes, de. .sua Irngua de acorcio C()ffi isso, e às__ vezes ruidosamente.
Giles & Niedzielski declaram (1998: 88):
De a.corda corn uma noçi'io que ja se tornou q11as� um_dichê dos estu- ·1.,.•.
9uflmpor�â"-��ç-Iëi'q�--��- dtz,
Nôs, e a maioria dos estudiosos da linguagem, nao abraçamos a hipôtese do valor
inerente - acreditamos que ela é um mito social flagrante, ainda que compreen­ dos so90Iü.1.8Q1s1Jç9�,._è,� mas qu�m diz a qui tl

sfvel. No lugar dela, defendemos uma posiçao totalmente diferente que, junto q_:ci��-\-I<?.slg. Q preior1cfo:o, q�e'ï)�53 s:obre uma. varie�ade _ lingüfstica é. i \ ,' C

com Peter Trudgill, rotulamos previamente de "hipôtese das conotaçôes sociais". mero reflexo. do precpnce_lt.Q_social que pe�a. so_bre; seus falantes: "Uma �
C'.,omo este termo implica, favorecemos uma visao que propôe que a agradabilidade vâiiêè!àâ�· li�gITîsùë�\;�I< o.qu�_i_;ikir{�a so�(e�3:9.� 9s se1:1s..falantes, isto
ou desagradabilidade de uma variedade lingüfstica é uma convençao social con­
sagrada pelo tempo. A agradabilidade, ou nao, de uma variedade lingüfstica (e
é,valecomor�fl�x.C? A9 ggger__e.Ac,1__a11sP.risl�cl_(,_q\d�.eJ�� t_êm nas. relaçôes
por conseguinte as qualidades emotivas associadas a ela) é dependente dos atribu­ èioi�mic_a.���i!�if (9Et�f!:.e, 12§.�d),_f9.��.IUQ�clize,r, po�!_ë�i�, que ;�cl�
tem variaçâo também tem awiliaçâo.
tos sociais de seus falantes. Assim, se um grupo social (coma uma elite étnica ou
classe social) assume o poder numa sociedade, ele tomani medidas para que sua êaso
'··--1'-fo do· Brasil, o preconceito ( e o autopreconceito) que oprime os
forma de comunicaçao seja privilegiada através da mfdia, da educaçao e assim falantes de variedades nao-padrao é fortfssimo. Sao variedades que apresen­
por diante. tam as formas fonomorfossintaticas mais estigmatizadas no universo lingüfs­
Diferentemente da hip6tese do valor inerente, que nao passa de um tico brasileiro: a transformaçi'io emJ:ili;li!.__ç_9_�_na_r1t<! [À] (tejba_> têiq).; a
dos muitos mitas que configuram o preconceito lingüfstico, a hip6tese das r�j��.dolllde.grupos consonantais (globo> grobo); a simplificaçi'io
conotaçôes sociais pode ser testada empiricamente, tendo por conseguinte da conjugaçao verbal (eu falo, você/ele/n6s/vocês fa/a) entre outras. Analisei
uma base cientffica clara. Giles & Niedzielski alegam que as origens sociais a irracionalidade da "hip6tese do valor inerente" tentando mostrar a l6gica
das opiniôes acerca da variaçao lingüfstica têm rafzes profundas. Os autores do português nao-padrao (Bagna, 1997), inspirado no classico artigo de
revelam (1998: 89) que estudos empreendidos por eles mesmos têm mostra­ Labov sobre a "L6gica do inglês nao-padrao" (1969).
do que o "fundamento emocional" dessas opiniêies No entanto, frente aos exemples dadas por Giles & Niedzielski de
grupos oprimidos que passaram a valorizar seu proprio modo de falar, s6 é
1
1
pode se estabelecer ja aos três ou quatro anos de idade! De modo igualmente in­
teressante, verificamos que enquanto crianças de seis anas (com pronuncia nao­ possfvel dizer que a situaçao social brasileira é dramaticamente aposta.
padrao) riam e zombavam de sotaques de prestfgio, aos nove anos de idade ja Nao me parece haver perspectiva pr6xima de que os milhoes de brasileiros
tinham se socializado a ponto de aèeitar sem hesitaçao, para serem imitadas, exa­ f�ia�tej de v�_ried.ëcle.s nao-padr�o o� _q(Je têm. saJaques regi91;1ais despres­
tamente essas formas de prestfgio. Dadas provenientes da !tafia também endossam -�!giaclos ;��ha�a s� subievar �ontr�_o preCQilf.e.iJ.o.�rn-movjmentos do tipo
a inclinaçao das crianças a gostar da fala nao-padrao até começarem a freqüentar "Nordi:i.t!n�_é lindo" ou "Caipira é J�cl�". Se numa sociedade de alguma
:\ o sistema escolar. [ ...] Estudos têm mostrado que os falantes de formas lingüfsticas
tradiçao democratica coma a britânica ha lugar para um lingüista escrever
de prestfgio sao considerados mais bonitos e fisicamente atraentes!
que "o ultimo bastiao da franca discriminaçâo social continuara 8 ser O uso que
A conclusao a que chegam os aurores - que, recordemos, escrevem uma pessoa faz da lfngua" (J. Milroy, in Bauer & Trudgill, 1998: 65), o que se
para um publico de nao-lingüistas - é o pressuposto basico da Sociolin­ pode esperar de uma estrutura social coma a brasileira, marcada por relaçôes
güfstica: agrarias arcaicas, por gritantes atentados aos direitos humanos mais ele-

62 63
Drom6tica da lingua portuguesa lJo rnila ao preconceilo: os comandos porogromolicais

mentares, pelas maiores desigualdades econômicas do mundo, por uma elite uma elevada porcentagem do que se rotula de "e�r.o}:le_ pqrtuguês''. é, na
governante imersa na corrupçao e na impunidade? verdade, mera desvio da ortografia oficial. 0 vigor desse mito se depreende,
Diante desse quadro dramatico, é diffcil concordar corn a praposta de par exemplo, num exercfcio de pesquisa sugerido par um livra didatico de
Giles & Niedzielski quanto ao tratamento a ser dada institucionalmente publicaçao recente que tenta abordar, como se lê na capa, "temas de portu­
aos preconceitos estéticos acerca de outras lfnguas ou variedades lingü(sticas. guês e cidadania" (Carvalho & Ribeira, 1998: 125), na verdade uma tenta­
Para eles, "nao podemos dizer às pessoas que suas reaçôes estéticas sao falsas; tiva, bastante incipiente, de incorporar ao livra didatico as sugestôes feitas
isso seria irrealista e contrapraducente" (p. 92). Em vez disso, prapôem que nos Parâmetros Curriculares Nacionais, do Ministério da Educaçao. Ap6s apre­
se encoraje os prafessores e outras pessoas "nao a abandonar inteiramente sentar o poema "Erra de português", de Oswald de Andrade, os autores
esses julgamentos estéticos, mas a reconhecê-los pela que sao: o resultado pedem ao aluna:
de um complexa de associaçôes e preconceitos sociais, culturais, regionais, 1. Procure localizar erros de português em cartazes, placas, ou até mesmo na fala
polfticos e pessoais". Para os autores (ibid.), de pessoas que você conhece. Transcreva-os em seu cademo.
existe, em sala de aula, uma enorme e importante diferença entre 'Alemao é
feio', afirmaçao de um fato aparente, e 'Eu pessoalmente acho a lfngua alemà Ora, em cartazes e pfacas nao aparecem "erras de português" e, sim,
pouco atraente' que [...] é um reconhecimento da subjetividade de reaçôes devi, desvios da ortografia _oficial. Escrever, digamos, LOGINHA, DE ÀRTEZANATO
da a conotaçôes sociais. onde a lei obriga a escrever LOJINHA DE ARTESANATO em nada vai prejudicar
a intençao do autor da placa:'•Jnfmmar que ali se vende objetos de artesa­
Pode ser que essa atitude de "respeito" à "subjetividade" seja "politicamen­
nato. Nem mesmo a realizaçao fonética da placa "certa" e da placa "errada"
te correta" e funcione em outras contextos sociais, coma o britânico e o
vai apresentar diferença. 0 fato também de haver "erro" na placa nao da
norte-americano. Mas nao creio que seja adequada no casa do Brasil. Além certeza nenhuma de que os objetos ali vendidos sejam de qualidade infe­
disso, vejo na expressao "subjetividade de reaçôes devida a conotaçôes sociais'' rior, "errados" ou "feios". No entanto, nao se pode negar que o erro ortogra-
um simples eufemismo para preconceito. Essa subjetividade nao passa, a meu ..
fico é um selo social altam�iite estîgmatizante.
ver, da "falsa consciência" (que muitos autores consideram sinônimo de ideolo­ .- . Se �ais �ci�� escrevi ''lèi" é porque se trnt�-exatamente clissa. A orto­
gia), do "senso comum" gramsciano, sendo, por conseguinte, a evidência da grafia oficial é fruto àe um gesto polftico, é determinada por decreto, é
interiorizaçao dos preconceitos que compoem a ideologia dominante. resultado de negociaçôes e pressôes de toda ordem (geopolfticas, econômi­
No Brasil existe a arraigada convicçao de que "português é muito diff­ cas, ideol6gicas). No infcio do século XX o "certo" era escrever: EM NICTHE­
cil" (meu Mita 3). Sera possfvel tentar melhorar a situaçao dramatica do ROY ELLE POUDE ESTUDAR AS SCIENCIAS NATURAES COMO A CHIMICA E A PHYSICA.
ensino de português no Brasil "respeitando" essa "subjetividade"? Sera pos­ Se hoje O "certo" é escrever: EM NITERÔI ELE PÔDE ESTUDAR AS CIÊNCIAS NATU­
sfvel imaginar uma pratica pedag6gica que democratize o conhecimento RAIS COMO A QUfMICA E A FÎSICA, isso nao altera a sintaxe nem a semântica
da norma-padrao "respeitando" noçôes absurdas como "brasileira nao sabe do enunciado: o que mudou foi s6 a ortografia.
português" ou, pior, "eu nao sei português", ou ainda "s6 em Portugal se 0 exerdcio praposto par Carvalho & Ribeira, além de confundir portu­
fala bem português" (Mito 2), que ja de safda cortam pela raiz qualquer boa guês corn ortografia do português, também adroite implicitamente a existência
disposiçao do falante nativo ·para corn sua pr6pria lfngua materna, numa de "erras" na "fala de pessoas que você conhece". Q_p..!.,_o�_ lgma.aquLç ainda.
negaçao radical de sua individualidade e de sua identidade nacional, situan­ mais grave porque simplesmen.te 7_1llO existeerro
° de por�gyês. 0 que existe,
:\ do o ideal lingüfstico num ponta geografico do outra lado do Atlântico? como bëm sugere Possenti (in Geraidi; 1999: 36); ;j� hip6te�es significativas,
tentativas de uso que vao depender do aval da comunidade dos falantes. E
2.3.3. 0 milo do inferioridade da lingua falada
essas hip6teses nao surgem ex nihilo na fala de um indivfduo: elas se consti­
tuem corn base em experiências lingüfsticas anteriores, em analogias, em
0 Mita 6 expressa a pratica milenar de confundir Ungua em geral corn intuiçôes etc. Corno escreveu Henri Frei em 1929 (apud Cunha, 1964: 43):
escrita e, mais reduzidamente ainda, corn ortografia oficial. A tal ponto que "Nao se comete erras pelo prazer de cometer erras. Seu aparecimento é

64 65
Dramatica da lingua partuguesa Da mita aa precanceito: os comandos paragramaticais

determinado, mais ou menos inconscientemente, pelas funçoes que eles têm 0 que esta em jogo agui, evidentemente, é a noçao de erra e seu estrei­
de cumprir (maior expressividade, maior clareza, maior economia, etc.)". to vfnculo ideol6gico corn o que tradicionalmenç�_ §_ch.amado de partuguê�.
Todo falante nativo de uma lfngua é um falante plenarnente compe­ Corno ja mostrei, exis te, no piano da lfngua escrita, a confusao entre por­
tente dessa lfngua, capaz de discemir intuitivamente a grarnaticalidade ou tuguês e artagrafia aficial da lfngua portuguesa. No piano da lfngua falada,
agra,maticalidade de um enunciado. Ningu�r.!1-_5_:9.r.p.et� _e_rros a�_ fal<l._r sua os terrnos que se confundem, ou que sao tomados como equivalentes, no
_p,!6pria lfngua !Uatema, <1ssirn con:io. r,iingu_émcomete erras ao anda,r_o__11 ao _ senso cornum, sao português, gramatica narrnativa e narma-padraa.
r�.spirar. S6 se err�11alli)i19_g1:1�J il-P!f_ngi<fo, gaql:!il9- qtJe_ congitui �� -�aber --- Ern relaçao à lfn_gu� escrit�eria pedagogicamente pr.oveit-0so substituir
s ecund!rio, CJ_btido por rnei9 _qe treinamento, p_r�tica r. memoriza<;i!_q,: _e,rra­
_ c¼pfeJtg q_uç,.einbqra possa .soar comosimple;,
a llQ.Ç?--9..<k.ê!QP,da_�e _ten_tf!ti�a
�Q__t_cicar piano, erra-s e ao pôr um.a. maquina ern funcionamentq, erra-se �-ufem\�!!!--Q pçd�-t�Lum,èfeito sj.gnJfü::gtiv.q_ao trn_ç�r.u.m. t�rmo clc:! comeucl9
,
ao faJc1r/es�rev�; uma lf11gua e;tra�g�ga. A lfngua materna nâo é um saber �g;ri 9 ".: (_�9.}. I?<?r}:!,1P-A3:SQJ.}t�1,1d.o p.ositivo.{acerJQ.)_. Afinal,a_lfngua_�scrita é
desse tipo�J;-é -;;fq"ï;irida peÏ� criança por volta do primeiro ano de vida. ��e dg_jf11@a,__fa.l�a.i. -� essa.an.al.is�-�.era folta,.pefo. vsua!io da escrita _
Por isso qualquer criança entre os cinco e seis anos de idade (se nao men os) nQJltQUJ.ento de.grafauua mensagem, em consopância com s eu perfil socio­
ja domina plenamente a gramatica de sua lfngua materna. 0 corolario l�o. Uma· pessoa corn poucos anos de escolarizaçao, pouco habituada
disso é, como diz Perini (1997: 11), que "nosso conhecimento da lfngua é à pratica da leitura e da: escrita, tendo como quadro de referência apenas uma
ao mesmo tempo altamente complexa, incrivelmente exato e extremamente suposta equivalência unfvoca entre sorn e letra, fara urna analis e dotada de

seguro". E o mesmo autor prossegue, afirmando (p. 13) que reduzido instrumental te6rico, 1rnpregando como ferramenta basica a analo­
qualquer falante de português possui um conhecimento implfcito altamente ela­ gia. Assim, quern escreveu CHfCARA ern vez de xfcARA nao fez isso porque quis
borado da lfngua, 111uito embora nao seja ca2az de explicitar esse conhec;ün.ento. errar, mas sim porque quis acertar. Se existe CHINELO, CHICOTE, CHIQUEIRO,
E [...) esse conheci���t;�a� é frut� de in;Î:r�çao recebida �a escola, mas foi CHICLETE, por analogia se chega à possibilidade de tarnbém haver CHfCARA. É
adquirido de maneira tao natural e espontânea quanto a nossa habilidade de importante notar que os "erros" de ortografia s ao constantes: troca de J por
andar. Mesmo pessoas que nunca estudaram gramatica chegam a um conhecimento o, de s por z, de CH por x e assirn por diante - justarnente por serem casos
implicito perfcitamente adequado da ifngua. Sao como pessoas que nao conhecem em que é necessârio fazer urna analise que ultrapassa os limites te6ricos da
j 1· a anatornia e a fisiologia das pemas, mas que andam, dançam, nadam e pedalam suposta equivalência sorn-letra. Dificilmente alguérn vai tentar escrever xf­
' ;
sem problema5.
CARA usando um J, urn o, um s no lugar do X oficial, porque faltam dados de
Assim, podemos até dizer que existem "erros de português ", s6 que experiência para uma analogiarazoavel. Por outro lado, uma pessoa que tenha
,JI:
nenhum falante nativo da lfngua comete eles. Por exemple, s eriam "errados" freqüentado �ola por muitos anos, que leia e escreva assiduamente, que
os enunciados abaixo: tenha se familiarizado corn o uso do dicionario, que tenha sido despertada
(1) *Aquela menino me bareu para a existência das regularidades e irregularidades da ortografia, sabera que
(2) *Eu te vimos ontem na rua a simples analogia nao sera suficiente corno guia no mornento de escrever -
(3) *Maria chegou semana que vem outros quadros de referência terao de ser acessados: a cultura erudita, a eti­
(4) *Nao duvido que ele nao possa nao ir lâ mologia das palavras, os critérios de normativizaçao da ortografia etc.
No tocante à lfngua falada, fica 6bvio que o r6tulo de erra é aplicado
(5) *Que o carro que o rapaz que Pedro que estuda comigo me apresentou corn­
i \
prou é bom nào nego a toda e qualquer manifestaçao lingüfstica (fonética, morfol6gica e sintati­
ca, principalmente) que se diferencie das regras pres critas pela gramatica

1
Esses enunciados, precisamente por conterem "erros ", nao aparecem normativa, que se apresenta como codificaçao da "lfngua cuita", embora na
na fala espontânea e natural de falantes natives do português --do Brasil, verdade seja a codificaçao de um padrao idealizado, que nao coincide corn
. mê�mo que sejam crianças pequenas que ainda nao freqüentam escola ou nenhuma variedade cuita real. Dentro dessa conceituaçao, s ao igualmente
� adultos totalmente iletrados. "errados" os enunciados abaixo:

-- -; j 66 67
/1
Dram6tica da l!ngua portuguesa Do mito ao preconceito: 01 comondos paragromolicais

(6) A Joana é uma menina que ela sabe o que faz lsso explica porque as gramaticas normativas, em geral, nâo admi­
(7) *A Joana que ela sabe é uma menina o que faz, tem out;o modt:l� de lfngua a �erimitado que nâo o dos l'grandes escrit9-
rnuito embora (6) seja perfeitamente inteligfvel, decodificavel, interpretavel re;/\ bs aui:�res dos compêndios gtamaticais tradicionalistas consideram
''lfng_�?-��lta.:" apena;· a lfngua escrita e, mais precisamente, _a lfngua escri­
e, portanto, gmmatical, aceitavel, enquanto (7) é claramente agramatical e,
por conseguinte, nao ocorra na fala normal de nenhum brasileiro. No en­ t�_.E.tl<?..�-��()fl�.a"u�oresll, escolhidos segundo critérios de gosto est�tico,�g­
tanto, (6) é considerado tao "errado" quanto (7) pela gramatica normativa . talmente subjetivos. __Esse modelo unico é apresentado sem rodeios por
Çunha & CintJ'a (1985: xiv) no prefacio de sua Nova gramatica do portu�
porque nenhum dos dois enunciados se enquadra nas prescriçoes tradicio­
guês contemporilneo:.
nais. 0 enunciado (6), porém, tem uma sintaxe, uma semântica e uma
pragmatica que qualquer falante nativo do português do Brasil aceita corn Trata-se de uma tentativa de descriçâo do português atuai na sua forma cuita, isto / /
é, da lfngua como a têm utilizado os escritores portugueses, brasileiros e africanos .'
tranqüilidade, e a prova disso é que enunciados desse tipo sâo proferidos do Romantismo para ca [grifos meus].
aos milhôes diariamente em todos os cantos do pafs, por pessoas de todas
as classes sociais. Trata-se, aqui, de uma mudança de categoria gramatical Essa obra, portanto, teoricamente s6 poderia ser consultada por quem
do pronome que, de toda uma complexa perda de casos sintaticos, como tivesse duvidas no momento de escrever um texto litera.rio, ja que, segundo
analisaremos no Capftulo 4. os proprios autores, nâo serâo abordados nela fenômenos caracterfsticos de
Conforme argumenta Aléong (in Bédard & Maurais, 1983: 263), outras variedades cultas escrita;; como a jomalfstica ou a da produçao cientf­
nesta visâo da lfngua coma um conjunto de regras das quais algumas sâo variaveis, fica, muito menos os fenômenos tfpicos da lfngua falada. No entanto, esse
a noçâo de erra lingüfstico fica reservada a fenômenos marginais ou nocivos à mesmo compêndio traz um longo capftulo sobre fonética e. fonologia do
inteligibilidade da comunicaçâo. A partir do momento em que um uso ou, melhor, português, isto é, um_, exame dos fenômenos or_àis e acusticos cl� lfngua, O
! uma regra ultrapassa o limiar individual e conhece uma freqüência de emprego quÜ�.ta em franco desacordo corn o projeto traça.do no prefacio do livro, que
para além de um nfvel determinado, trata-se de uma regra a ser inscrira no reperto­ é...Q._d,e_e_studar aJingua dos escritores.
rio lingüfstico da comunidade. 0 erra, portanto, nâ.o é absoluto, mas sim relativo
ao meio ou ao grupo social de referência. Segundo nossa definiçâo, o erra é essen­ A maioria das obras do gênero gramatica normativa procedem de modo
cialmente um uso que, num dada momento, vem se opor a um outro uso até semelhante. Seus autores assumem a variedade escrita literaria como a unica
entâo dominante. cligna de ser estudada, ensinada e praticada, e acham isso tao "natural" que
nem se dâo ao trabalho de defini-la como seu objeto de estudo. Fica evidente
Mais adiante (p. 276), o mesmo autor escreve: que para eles s6 essa variedade escrita mais conservadora merece o r6tulo
Quem quer que tenha folheado uma obra de correçâo de erras sabe que a granJe de "lfngua portuguesa". 0 que é dito nesses compêndios vale para todas as
maioria dos erras nâo representam nenhuma dificuldade de compreensâ.o. [...] E
variedades do português, em qualquer lugar do mundo, em qualquer momen­
nada impede que numa outra época um erra se tome a regra.
to hist6rico, em qualquer classe social, em qualquer faixa etaria.
Mas a prova oferecida pelo uso intenso de construçoes sintaticas como Os autores dos compêndios gramaticais, inclusive os mais recentes,
a de (6) nao convence os defensores da gramatica normativa, pois admitir D,â.o fazem fi distinçâo basica, elem�µ!ar, entre ortografia e fonética, isto é,
essa sintaxe como "certa" seria abrir brechas no monolito ideol6gico da GT. entre as regras de esc_rlta da lf�gu-; e os fe�ô��nos da lfngua 9rai. Alias, o
:\ 0 Mito 6 reflete também, e sobretudo, a tradicional associaçao, no
senso comum, entre Ungua escrita e norma-padrao:
projetq)degl6gico desses manuais fica·d�;; quando eles.. classificam
rafia como um�-das ��bcÙ�i;ôes dà fonétic�i . . a orto�
.

[...] a escrita passou a ser usada como forma de "normatizar" a fala: para sujeitos ·- ·Assim procedem, por exemplo, Cipro & Infante (1997), e por isso nao
letrados, o lugar ut6pico em que gostariam de estar quando falam (e que se imagi­ nos surpreendemos quando explicam (p. 35) que a letra x representa o
nam ocupando quando falam) é "falar como se escreve" porque a escrita é que fonema / J / depois de um ditongo, e dao como exemplo de palavras "corn
seria a "lfngua correta" (Geraldi, 1996: 62). ditongo": AMEIXA, CAIXA, PEIXE, EIXO, FROUXO, TROUXA, BAIXO - sem fazer a

68 69
Dramotica da lingue partuguesa Do mita ao precanceito: os comondos porogromolicais

'I
f menor referência ao fenômeno de_m.onotongaçao que atingiu essas palavras coisa. Afinal, milhoes de pessoas nascem, crescem, vivem e morrem sem
na lfngua falada no Brasil (inclusive em sua· norma urbana cuita), resultando jam�is aprender a ler/escrever, sendo, no entanto, conhecedores perfeitos
' nas proniincias [a'mefa], ['kafal, ['pefi], ['efu], ['frofu], ['troJa], ['bafu]. 0 da gramatica de sua lfngua, capazes de distinguir corn clareza uma constru­
.1 termo ditongo ("dois sons"), que se aplica a um fenômeno fonético, nao cabe çao agramatical de uma gramatical.
nesses exemplos, que retratam simplesmente a convençao ortografica que Corno ja frisei acima, ao contrario da lfngua, que muitas vezes vem
ainda conserva, na escrita, as duas letras vogais antes do x. Trata-se, na . acompanhada do adjetivo natural, a ort.ografi�ignififiçl, depende da vontade
1
verdade, de dfgrafos ("duas letras"), termo mais adequado para descrever as dos homens e, sobretudo, dos homens que a legislarn. Muitas vezes, ela fica
1
regras ortograficas. 0 que ocorre é que esses "monotongos" podem vir a sujeita aos gostos pessoais ou às interpretaçôes dos fenômenos lingüfsticos
se ditongar em situaçôes bem especfficas, ta! como a reduçao da velocida­ por parte dos fil6logos que ajudam a estabelecê-la. Em alguns casos, ela
de da fala corn finalidade de dar ênfase ao enunciado ou numa leitura tem uma clara funçao polftico-ideol6gica, de afirmaçao de uma identidade
"hipercorreta" em voz alta de um texto escrito. Pense-se, por exemplo, nacional: é o caso do servo-croata que na Sérvia é escrito corn alfabeto
no uso das palavras louco e loucura quando usadas de modo deliberada­ 3irfü�_gj_ç9�IÏi�_r.î?ilil!iiij:i?1Ifçs·-e��i2ùfo ���l1&ïi9_s�r�Üç;
on;do��) �·n;a
rnente afetado para indicar coisas surpreendentes ou muito boas: "Foi uma Croacia, com aJfa,be�Q)g,tinoJcomo nos.outras µafs.�s.c;k rdigiao q1.t9lica
louuucura!" r;mana.),_emJJ9_ra.JJ.� clifei:�Il�s �m.r.eas.Y.iriedadesJ<;1ladas�n9s dois pafs��
Os mesmos autores dizem que na palavra QUAL existe um "ditongq__g_�� sejam do tip.9_ da_§_glf�E�!l�S.-(intft! o portug4ê,s fala,do. nçi Nordeste e. no
cente", quando qualquer brasileiro de ouviëfo 'mais aÎinad;-�v�nhecer �mkst_ë:_dg]�rasiE.
Por todas essas vicissitudes é que a lei nos obriga a escrever HUMO ou
àf ria vedade, um tritongo: ['kwawl, pois é muito restrita, no português do
Brasil, a pronuncia [l] ou [t] para o L que aparece, na escrita, em final de HUMUS, mas ÜMIOO e UMIDADE, embora sejam todas palavras da mesma famf­
sflaba. Na grande maioria dos falares brasileiros o que se ouve é a semivogal lia; ESTRANHO e ESTRANGEIRO, corn s, embora sejam palavras formadas corn
[w]. É o velho preconceito grafocêntrico, isto é, a analise de toda a lfngua do base no prefixo EXTRA-. Por tudo isso também o adjetivo EXTENSO e o substan­
ponto de vista restrito da escrita, que impede o reconhecimento da verdadeira tiva EXTENSÀO apresentam um X, mas o verbo ESTENDER se escreve corn um s.
realidade lingüfstica. Se os legisladores da lfngua podem ser tao incoerentes no momento de
A atitude do professor de português tradicional - isto é, do repetidor definir a ortografia oficial, nao ha por que estranhar que as pessoas em geral se
e reprodutor da ideologia gramatical tradicional -, ao receber um texto confundam. Mas nao é assim que aparece em Cipro & Infante (1997: 33 ):
produzido por um aluno, é procurar imediatamente os "erros", direcionar Nao é adrnissfvel que corn urn alfabeto tao restrito (apenas 23 letras!) se cornetarn
toda a sua atençao para a localizaçao e erradicaçao do que esta "incorreto". tantos erros ortograficos pelo Brasil afora. Estude corn cuidado este capftulo para
integrar o grupo de cidadaos que sabern grafar corretarnente as palavras da lfngua
É uma preocupaçao quase exclusiva com a forma, pouco importando o que portuguesa2•
haja ali de conteudo. É sobretudo aquilo que chamo de paran6ia ortografica: /
uma obsessao neur6tica para que todas as palavras tragam o acento grafico, 1. Cf. Corbett (in Comrie, 1987: 396), em sua apresentaçao do servo-croata: "Embora
que todos os ç tenham sua cedilha, que todos os X, s e z estejam em seus existam diferenças consideraveis, a maioria delas nao é absoluta, mas uma questâo de freqüência
lugares... e assim por <liante. de uso. Varios aspectas freqüentemente citados como caracterfsticos de uma variedade na verdade
Para curar essa paran6ia seria fondamental que os professores se cons-· ocorrem na outra, embora sejam menos comuns ali. Toda a questâo do status das duas variedades
\ cientizassem dy que saber ortografia nao tem nada a ver com saber a lfngua.
é muito delicada, por causa das implicaçoes culturais e polîticas. Para o lingüista estrangeiro, os
numerosos aspectas compartilhados entre as variedades acrescentados à comodidade da com­
�ao dois tipos clife�e�t;s-d�-��nhëci���to, controlados, alias, por partes· preensâo recfproca sugerem uma lfngua corn duas variedades, e muitos iugoslavos concordam.
�istintali do cérebm, É predw.imis,tir:. R9.gog_rafia nao faz parte da gramatica Mas devemos aceitar que alguns iugoslavos considerem importante, no mais das vezes por razôes
nâo-lingüfsticas, reconhecer o croata e o sérvio como lfnguas distintas."
,Q.a..Jfngus,, isto é, das regrascle fundonament� da lfngua. Sa.ber ortografia 2. Em comunicaçao pessoal, Cipro atribuiu este trecho a uma interpolaçao dos editores de
é_çgmQJQcax pia11()t.cl�QÇJ..L�a.lé, a.,tirar com arco e flecha: saô atividades que sua gramatica. ]Sâo ha por g'-!� �!J�!.t::..l'Jo entanto, seja quem for o autor, o texto revela a
�?Sig�m. treinamento, pratica constante, memorizaçao. Saber·a lfng�a�é outra confusâo trad icional embutida no mito que analisamos agora.

70 71
Dromético do linguo portugueso Do rn1to ao preconceilo: os comondos parogromoticois

Coerentes corn a ideologia da Gramatica Tradicional, essas palavras Na China, o sistema ideografico de escrita exerceu durante séculos a
atribuem ao domfnio da escrita um elemento de distinçao social, que é na funçâo de assegurar o poder aos burocratas e aos religiosos. Realmente, a
verdade um elemento de dominaçao dos iletrados por parte dos letrados. De grande quantidade de ideogramas, juntamente corn o alto grau de sofistica­
fato, o surgimento da escrita, como explica Geraldi (1996: 33) fez aprofun­ çâo de seus desenhos, eram obstaculos para que as pessoas do povo pudessem
dar-se as diferenças entre trabalho manual e trabalho intelectual, além de aprender a 1er e escrever. Pesquisadores citados por Tfouni (p. 10-11) rela­
permitir uma cisâo drastica entre cultura popular e cultura erudita. Assim .tam que a classe dominante chinesa, apesar de conhecer a escrita alfabética
se__e}}�ende O US() da expressâo produçao·cuuurarfëffo por Cipro & lnj�_!1_te desde o século II d. C., se recusou a aceita-la até a época atual, provavel­
(1997: 16) e que analisei no capftulo antèdor (cf. lA). ·· · · ·· mente porque seu c6digo antigo, mais complexa e pouqufssimo pratico, ha
0 uso da escrita como el�mento de distinçâo social é assim analisado séculos se estabelecera como o meio de expressâo de urna vasta produçâo
por Geraldi (1996: 101): litera.ria, "além de estar inextricavelmente ligada às instituiçéies religiosas e de
Somente o exerdcio do poder, reservando a uma minoria estrita o acesso ao ser aceito coma marca distintiva das classes educadas" (grifos de Tfouni).
mundo da escrita, permitiu a façanha da seleçâo, da distribuiç.'âo e do controle do A autora atribui (p. 12) à introduçâo da escrita alfabética na Grécia,
discurso escrito, produzindo um mundo separado, amuralhado, impenetravel para no século V-VI a. C., todo um processo de radicais transfonnaçôes culturais,
o nâo-convidado. Ede dentro desses muras, uma funçâo outra agrega-se à escrita, polfticas e sociais:
coma �e lhe fosse pr6pria e nâo atribufda pelo poder que emana de seus privilegia­ 0 aparecimento, entre outras.çoisas, do pensamento l6gico-empfrico e filos6fi­
dos construtores e constritores: submeter l!-.oralidade à su� orcle_rn, fonçâo i'-ltid_ica co, a formalizaçâo da Hist6ria é da L6gica enquanto disciplinas intelectuais, e a
po1-�2Sq:Jê_nçia, capaz de dizero_ c�rto !!-� '-;ri:ii,à9;·_ajtar a grarnatica_ da _expressâo, pr6pria democracia grega têm fntima relaçâo corn a expansâo e solidificaçâo da
regrar 9§ _p_rocessos de n�gocjaçao de sentidos e orientar, através de suas mensagens escrita fonética na Grécia e na Jônia.
;�rssona5_jU!!!!formes,_os_bons caminhos -� ·seré_ii(çrJha.c;l_qi:A·s6dëdade s6:pède
;e��� construfda, sob o impé�ià de-�ma s;paraçâo radjc:a\, a,_pa_rtir de µma es­ Por quê? Porque, ao contrario de outras civilizaçôes suas contemporâ­
�mtura de exclusâo, neas, a grega nâo tem uma casta sacerdotal monopolizadora dos livros sa­
grados. A pr6pria escrita nao é um segredo dos governantes e escribas, mas
Existe a crença de que a escrita tem o objetivo de "difundir as idéias". é de domfnio publico e comum, possibilitando, agora sim, a ampla difusâo
No entanto, uma rapida investigaçâo hist6rica mostra que, em muitos casos, a e discussâo de idéias.
escrita funcionou (e ainda funciona) corn a finalidade oposta: ocultar o saber, Assim, se por um lado pode se atribuir à escrita um pape! no surgimen-
reserva-lo a uns poucos para garantir o poder àqueles que a ela têm acesso. to de civilizaçôes modernas e do desenvol vimento cientffico, tecnol6gico
Corno nos informa Tfouni (1988: 10), a escrita na fndia esteve profun­ e psicossocial das sociedades em que foi adotada, por outro nâo convém
damente ligada aos textos sagrados, a que s6 tinham acesso os sacerdotes, negligenciar fatores como as relaçôes de poder e dominaçâo que govemam
os "iniciados", os que passavam por um longo processo de "preparaçâo": no a utilizaçâo restrita ou generalizada de um c6digo escrito.
fundo, a garantia de que poderiam 1er aqueles textos guardando-os em se­ Ao convidar o leitor a fazer parte do "grupo de cidadâos que sabem
gredo. De fato, a célebre gramatica de Panini (século V a. C.), que esmiuça gE_afatcôfrètâinèni:� !1� P.!1�vrns da lfngua portuguesa", afirma-seJ implici­
toda a estrutura da lfngua sânscrita, tinha um objetivo preciso: permitir a tameni:ë;-qu-;;��se conhecimento-n�o é amplo e gener;:ilizado (nem poderia
leitura "correta" e a interpretaçâo "exata" dos textos sagrados. Era, portanto, como-nd�ero d� _analfabetos no Brasil), mas sim restrito a umClgrupo de
\ a filologia a serviço da casta sacerdotal. Convém lembrar que foi necessaria ddadâôs'\ �àis precisamente aos_privilegiados leitores _dessa gramatka;
a Reforma protestante, no século XVI, para que a lgreja cat6lica romana que tem mn cap(tulo cuja leitura çuidadosa, como um rito_ de iniciaçâo,
permitisse a "popularizaçâo" da Bfblia, tolerando que as Escrituras fossem p�rmite .i_ngre�sar nesse "grupo". de.bem-aventurados.
lidas e estudadas em outras lfnguas vivas e nâo somente em latim. A primeira Outra idéia (ingênua?) é achar "inadmissfvel" o numero de erros co­
traduçâo da Bfblia para o português, por exemplo, s6 aconteceu em 1710, metidos "pelo Brasil afora" ja que nosso alfabeto tem apenas 23 letras! Ora,
por obra de um protestante, Joao Ferreira de Almeida. o alfabeto tem 23 letras, sim, mas elas podem se juntar em milhares de

72 73
Dram61ico do lingue porluguesa Do mito ao preconceilo: os comandos paragramaticais

combinaçôes possfveis, criando a riqueza inumerâvel das palavras escritas Ora, "corrigir" os alunos que nao pronunciam esse "ditongo" é, entao,
em lfngua por tuguesa. E essas combinaçôes possfveis nada têm de coerente: obrigâ-los a adotar uma pronuncia totalmente estranha aos ouvidos brasilei­
nosso sistema ortografico, como explica Lemle (in Silva, 1993: vii-viii), é, ros (e até portugueses!). lsso nâo impede, contudo, que na mesma coleçao
�.S.@Q_tetnpo,.um sistema de rep_re.�_entaçao fonêrnica, um sistema 9e (Correia & Galhardi), no volume destinado à 4a série (p. 65), surja outra
r��e_!lt.:tçao morfofonêmica, um si§tema de rnerri.6ria etimol6gica e "�m recomendaçao do mesmo tipo ao professor, <lesta vez em relaçao ao "diton­
�istema que privilegia uma variedade lingüfstica em detrim ento de outra. go" /ey/:
-0 Mito 6, "o c erto é falar asslm porqu e se escreve assim", pod�- ser Existe a tendência nas crianças de niio pronunciar o I depois do E nos encontros
posto a nu recorrendo-se a tâticas b em simples. Por exemplo, perguntando vocalicos. Solicitar que leiam pausadamente as palavras. Verificar a pronuncia
a quem o d efende: "Você sabia que a letra s pode representar o som do J em correta.
JA?" Diante da perplexidade do interrogado, explica-se que na pronuncia
do Rio de Janeiro, de Belém ou de Lisboa, numa palavra como MESMO os 0 que se escreve El nem sempre é pronunciado / ey/ no português falado
"tem som d e J", e o proprio nome d e Lisboa na fala de seus nativos se pro­ no Brasil. D ependendo da.consoant e seguinte, este encontro vocâlico é
nuncia [li3'boaJ. N essas mesmas pronuncias, um enunciado como AS MESMAS monotongado em [eJ como nas palavras escritas DINHEIRO, CHEIROSA, BEIJO,
BOAS GAROTAS soa [a3 'm e3ma3 'boa3 ga'rotafJ, por causa de caracterfsticas PEIXE etc. Jâ vimos°îsso·mais acima em relaçao ao uso da letra X depois de
foné ticas tfpicas do português (culto inclusive) falado nesses lugares. Con­ supostos "ditongos".
vém insistir, portan to, que a ortografia nao reproduz n enhuma variedade A a titude nâo mftica, mai cient ffica, seria estabelecer os contextos
lingüfstica especffica, nào podendo ser tomada como camisa-de-força ou fonétr;;i"�;;g7;�-;'�lfijS:i'm9.noioD-g;�o ,(d�-pç:iifi� ;dmitir g�e ela e}{ i�te,"
leito d e Procusto para a realizaçao fonética de nenhuma das muitas vari e ­ [5J�r0l,;;:iiz]n�dµzir_ps pr�fü§�QfeS:-"airriror :l_O§ _alunos �ma fal a
"correçâc>"_ de pronun�ia. _ /,\q menos qjante_ d�� consoantes palatais /J/ e
s,
clades que compô em uma lfngua. ·
"É claro que o fonema é um conceito da /fngua oral e nao se confunde com a /3/ ed;;;Tbr;�t� /r7hi ���- dara monotongàçi�-de}ey/�m [eJ (cf. Silva;
letra, na lingua escrita" (Camara 1984: 34). I nfelizmente, o que é tao claro para 1sf93: foY.-Na� ;sta�famos af <liant� de mais um casa de "clfgrafo;'? ··
o lingüista nào é assim para autores das gramâticas normativas, dos livros di­ 0 Mito 6 pode ser apreciado à luz do conceito de çi!J!lizaçao grafocêntrica,
datkos d e lîngua portuguesa, dos comandos paragramaticais e demais reprodu­ apr es entado por Gnerre (1985). Ele argumenta que a ci�ùi;·a-çao ��ropéi�,
tores da id eologia do preconceito lingüfstico. Em todas essas instâncias, coma colonizadora, sempr e se recusou a valorizar a cultura nâo escrita, a tradiçao
jâ enfa tizei, reina a confusao entre fala e ortografia, dando-se exagerada ênfase oral, vista como "rudimentar", "primitiva", "insuficiente" ou, quando muito,
à s egunda, tomada sempre como base para uma idealizada pronuncia "correta". "pitoresca". Daf se formou a idéia, mais do que aceita, dos incontestâveis
A fala deveria, portanto, ser um reflexo fiel da ortografia: "O certo é falar assim ben effcios da alfabetizaçao (Gnerre 1985: 32):
porque se escreve assim". Esse preconceito é visfvel, por exemplo, num livro Existe hoje um verdadeiro "mito" da alfabetizaçao, compartilhado pela maioria
didâtico (Correia & Galhardi, 1990: 35) onde se lê: (ou a totalidade) dos governos, tanto de pa(ses em desenvolvimento como de
Nao csqueça o u! Leia besouro. pafses industrializados, e pela pr6pria UNESCO. [... ] A capacidade de Ier e escrever
é considerada intrinsecamente boa e apresentando vantagens sobre a pobreza da
E os mesmos autores, no livro do professor, sugerem: oralidade. Corno tal, a escrita é um bem certamente desejavel.
\ Verificar mdividualmente os alunas que [...] engolem o u depois do o.
Ora, este consenso acerca dos b eneffcios da alfabetizaçao é fenôm eno
Cunha & Cintra (1985: 49), porém, informam: recente. SegundoStubbs (1990: 557), no séculoXIX muitas pessoas acredi­
tavam que era p erigoso estender a l etraçâo às classes trabalhadoras, pois isso
Nem na pronuncia normal de Portugal nem na do Brasil se conserva o antigo
ditongo [ow], que ainda se mantém vivo em falares regionais do Norte de Portugal poderia levar a uma escassez de mâo-de-obra nâo-esp ecializada e a disturbios
e do galego. Na pronuncia normal reduziu-se a [o], desaparecendo assim a distinçào sociais se as classes trabalhadoras tiv essem acesso a literatura "sediciosa".
de formas coma poupa/popa, bouba/boba. 0 mesmo se pode dizer do ensino das letras às mulh eres: como poderiam os

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'[. ; Dram6tica da lingua porluguesa Do milo ao preconceilo: os comandos paragramaticois
,1t Î:i:\'
,.
: �· homens continuar a exercer sua autoridade absoluta sobre mulheres instruf­ do factual, o raciodnio mental "superior", enquanto a lfngua oral, mais po­
das, capazes de contestar e discutir? Para Stubbs, embora haja uma noçao ge­ bre de recursos, s6 atuaria sobre o concreto - é o "mito do letramento" a
neralizada atual de que o "letramento é um direito", na verdade o que pro­ que se refere Graff (1979, apud Kleiman, 1999: 34), isto é,
'•,
vocou a aceitaçao da existência deste direito foi, mais uma vez, a transfor­ uma ideologia que vem se reproduzindo nos ultimos trezentos anos, e que confere
maçao das formas de dominaçao dentro das sociedades. Os avanças tecnol6- ao letramento uma enorme gama de efeitos positivos, desejaveis, nào s6 no âmbito
gicos, os meios mais eficientes de difusâo da palavra escrita, criaram novas da cogniçào ... mas também no âmbito do social. Esses efeitos vào desde a par­
ticipaçào na espécie até a posse de qualidades espirituais [ibid.].
modalidades de sujeiçao: o indfviduo precisa saber 1er para submeter-se aos
contratos de trabalho, para 1er as instruçoes das maquinas corn que vai traba­ Kleiman faz uma lista dos supostos "efeitos positivas" do letramento,
lhar, para obedecer às palavras de ordem que lhe sâo dirigidas maciçamente exemplificando cada um deles corn trechos de reportagens e artigos publi­
por cartazes, placas, letreiros. Em suma, "a escrita populariza-se mais por cados em diversos jornais brasileiros (pp. 35-36):
necessidade da distinçao do que pelo objetivo de humanizaçao" (Geraldi, • e feitosque garantem a manutençào das caracteristicas da espécie (por causa
1996: 103).Por isso, prossegue este autor (p.104), ao expandir o letramento, do grande nurrfero de anàlfabetos do mundo, "é como se assisdssemos, neste
a escola nâo esta criando leitores plenos, mas instrumentalizando o ler-es­ final de século, a uma degradaçào do Homo Sapiens - nos e a nossa civili­
ê crever como forma de perpetuaçao das dominaçoes: zaçào", 0 Globo, 04.03.1990);
1: A leitura, e m lugar de s e tornar espaço de confrontos e rupturas, toma-se mein • efeitos que garantem a modfmidade, a capacidade de integraçào na vida mo­
1/
de sobrepor e subjugar as contrapalavras do estudante, substituindo-se pelas pa­ derna, o igualitarismo; �
lavras do texto lido. Palavras alheias, estrangeiras, de um saber que Së apresenta 1:
como pronto, acabado. Nào uma relaçào dial6gica de construçào, mas relaçào
• e feitos que determinam a ascensâo e mobilidade social;
il
hierarquica de imposiçào. • e feitos nos macroprocessos de desenvolvimento econômico (tentativa de asso­ 1:
ciar "a entrada da Europa no processo de industr ializa<,':Ïo" à "difusào da instru­
Em todo o longo e sofrido processo colonial e neocolonial esteve pre­ çào", 0 Globo, 04.03.1990);
sente o objetivo de transformar as lfnguas agrafas em lfnguas escritas. 0 • ag ente necessario para a distribuiçào da riqueza;
que estaria por tras deste objetivo? 0 antrop6logo Lévi-Strauss (apud Gnerre
• efeitos no aumento da produtividade ("sem educaçào e treinamento, o ope­
1985: 44) argumenta: rario é um desastre para si mesmo e para a empresa", Folha de S. Paulo,
Minha hip6tes e, se correta, nos obrigaria a reconhecer o faro d e que a funçào 07.03.1993);
primaria da comunicaçào escrita é favorecer a escravidào... Ainda que a escrita • agente nece ssario no processo de emancipaçao da mulher;
nào haja sido suficiente para consolidar o conhecim ento, ela foi talvez indispen­
savel para fortalecer a dominaçào... A luta contra o analfabetismo esta entào em • agente ne cessario para o avanço e spiritual.
relaçào corn um crescimento da autoridade dos governos sobre os cidadàos. To­
A autora, porém, combate o mito do letramento afirmando (p. 37):
dos têm que ser capazes de Ier, de forma que o governo possa dizer: a ignorância
da l ei nào é desculpa. Trata-se , como vemos, de uma grande gama de conseqüências para cuja postulaçao
nào existe evidência hist6rica. Em seus estudos sobre a historia do l etramento,
Na contracorrente de toda essa tradiçao grafocêntrica que determina Graff mostra, através da analise de esforços concretos de alfabetizaçào em massa
uma estreita ligaçao entre escrita e pensamento l6gico, Tfouni (1988) nos pafses do Hemisfério Norte no século passado, que nào houve um efeito
estatisticame nte significativo da alfabe tizaçào na mobilidad e social. Pelo contra­
\ empreenqeu uma pesquisa que revela que adultos nâo-alfabetizados sâo
rio, alguns indivfduos c.onseguiram ascensào social, mas os grandes grupos de
perfeitamente capazes de raciocfnio silogfstico. Ora, o silogismo é, desde
pobres e discriminados ficaram ainda mais pobres. Nào existe evidência para a
Arist6teles, uma forma requintada, sofisticada de raciocfnio contido em correlaçao entre letramento universal e desenvolvimento econômico, igualdade
um argumenta cujas premissas fornecem provas decisivas para a verdade social, modernizaçao. Entretanto, as ,,ozes de historiadores, educadores, soci61o­
de uma conclusâo. Os resultados deste trabalho desnudam o preconceito gos raras Ye zes se fazem ouvir na mfdia entre as vozes mais fortes dos polfticos
de que somente a lfngua escrita permitiria a abstraçao, o distanciamento profissionais e dos burocratas.

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1.
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Dromalico do llnguo portugueso Do milo ao preconceilo: os comondos porogromalicois

A esse "mito do letramento", cristalizado no modela autônomo do letra­ • a valorizaçào da escrita como um bem maior e mais qualificado,
mento, que se encontra em autores como Ong, Goody e Oison, Kleiman • a,�.;uge;t�ëi
,. • , ... _ • , .de
....--- • ,-q�e; -4-�-.: ;�d�
• • ,,,-.--,--,.f;l� -•.. , __,,,_�-·:•·�;;�-�so i�for�al
•. ,_.,__,,,,___ -.-�--�--__ ,,.�-·--···- da
� • frngu�: •.
opêie a concepçao do modela ideol6gico do letramento, de Brian Street, que
0 -- o • .u

• a sugestao de que a fala varia mfli�_dç, que a _escrita,


postula que as praticas letradas sao determinadas pelo contexto social. Re­ • ;�-��t�;t·�;îi;��� ;·� î;;lici�ud� d� f;la �;�s�. a exp!icitude,· ··descontextua-
senhando um experimento feito nos Estados Unidos por Heath, Kleiman liïâçioîntÔrmâidà':ësé�ii:à;· �--- · - · ···
(p. 44) conclui que • o envolvimento por parte....--,---
. .
da fala
.. ---- ..-.--.e···�-o distar.i_çi,a....men_
.... . .. ... ,. -, , . .. .. t9 por
-- parte
...�·...-'--' --- .�a escrita.
···----
,. . _, . , .. -·· ·- . . . ,. ""'

o modelo que determina as praticas escolares é o modelo autônomo do letramento,


Depois de passar essas noçôes equivocadas em revista, Marcuschi (1998:
que considera a aquisiçào da escrita como um processo neutro, que, independen­
temente de consideraçoes contextuais e sociais, deve promover aquelas ativida­ 7) conclui:
des necessarias para desenvolver no aluno, em ultima instância, como objetivo Se prosseguirmos corn esta listagem, veremos que a maioria das propostas de obser­
final do processo, a capacidade de interpretar e escrever textos abstratos, dos vaçào da relaçào fala-escrita fundava-se em algum aspecto trivialmente verdadeiro
gêneros expositivo e argumentativo, dos quais o prot6tipo seria o texto tipo ensaio. e irrelevante para a observaçào do fenômeno (tal como o aspecta da situaçào e do
contexto ffsico), algum tipd de visao idealizada da lfngua, sem observaçao da produ­
0 trabalho de Heath demonstrou, porém, que as praticas escolares eram çào autêntica {intuiçoes do pesquisador, falas idealizadas) ou algum tipo de precon­
encaminhadas, desde o princfpio, de modos diferentes, segundo a classe social ceito avaliativo (a escrita é superior à fala) que levava a distinçües dicotômicas.
e/ou etnia dos alunos, permitindo assim a manutençao das desigualdades
sociais. Kleiman (p. 45) argumenta que A supervalorizaçao da escfüa sobre a fala, que esta na raiz do Mito 6
e do preconceito que pesa sobre a oralidade, data de muitos séculos. Ja
Os estudos realizados no contexto brasileiro mostram uma situaçào semelhante
quanto à reproduçào do status quo pela escola, situaçào esta, entretanto, muito estava cristàlizada na Antiguidade classica no conhecido ditado latino Verba
agravada pela pobreza e pelo analfabetismo generalizado, que tomam as conseqüên­ volant, scripta manent. Na fraseologia popular brasileira temos: "O que Fulano
cias desse processo ciclico de reproduçào da desigualdade muito mais desumanas. diz nao se escreve", para depreciar as enunciaçôes de determinado falante,
que nao merecem elevar-se ao status de lîngua escrita. Correspondentemen­
As complexas relaçoes entre fala e escrita vêm recebendo especial aten- te, para alguma afirmaçao ter valor é preciso que ela apareça "preto no branco",
çao dos lingüistas. No Brasil um de seus estudiosos mais destacados é sem isto é, impressa em pape!, grafada, escrita.
duvida L. A. Marcuschi. Em recente comunicaçao (1999) ele refez a traje­ Marcuschi acredita que "o lugar mais evidente das crenças errôneas e
t6ria das noçôes que guiaram o estudo dessas relaçôes. A primeira idéia que equivocadas sobre a relaçao entre lîngua falada e lîngua escrita acha-se
i mperou foi a da dicotomia: lfngua falada e lfngua escrita seriam pratica­ representado pelas manuais de ensino de lfngua" (1998: 8). Decerto, nos
mente duas "lfnguas" diferentes, com regras especfficas, com usos especfficos, livros didaticos é que se encontram de maneira mais institucionalizada,
a tendendo a necessidades especfficas, com diferenças enormes e quase in­ digamos assim, os equfvocos elencados par Marcuschi (cf. Bagna, 1995).
transponîveis. Posteriormente se passou à idéia do continuum: fala e escrita No entanto, sou da opiniao de que esses equfvocos, nos livras didaticos,
nao se oporiam radicalmente, mas se distribuiriam ao longo de um conti­ refletem os preconceitos contra a lîngua falada e a favor da lfngua escrita
nuum que iria do mais falado para o mais escrito, e a localizaçao de determi­ (literaria, formai) que nutrem boa parte da ideologia veiculada pela Grama­
nada manifestaçao lingüfstica perto de um ou do outra polo se deveria às tica Tradicional que, coma mostrarei mais adiante, é o ponto de partida e
especificidades, que antes eram tidas coma dicotômicas, caracterfsticas de de chegada do cfrculo vicioso do preconceito lingüfstico, no qual os manuais
\ cada uma das duas modalidades. Finalmente tem-se a posiçao te6rica mais de ensino da lîngua desempenham importante pape!.
recente de todas, a da mescla entre fala e escrita. 0 que antes era tido como Recorrendo novamente a Kleiman (1999), é possfvel, <liante do ex-
caracterfstico da fala também existe na escrita, e vice-versa, havendo a posto, dizer que
introduçao decisiva da noçao de gênera. o distanciamento entre a lîngua oral e a lfngua escrita devido à especializaçao e ao
Ern outra trab<11_h9_JfQ9§), Marcuschi list� ogguîvocos inais..c.mn.lJ!!�no funcionamento diferenciado de ambas configura uma situaçao digl6ssica, nao de
tratame-;l·t� d�sr�laçôes
.. entre.. o�alid�d�-� �scrita. É p�s��ef;esumi-Jqs as�i�:
.. . .. -- · ··· ...... .
lfnguas em contato, mas de lfnguas cm conflito (...). Trata-se de duas modalidades

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Drom61ico do llnguo porlugueso Do milo oo preconceito: os comondos paro gromolicois

que constituiriam variedades discursivas da mesma ifngua, sendo que cada urna tcrn 0 mito de que é preciso "falar assim porque se escreve assim", além de se
status e prestfgios diferentes, e que também teriam diferençis devido às suas func,'êies basear na ilusâo de uma escrita pura e infensa às "interferências da fala", cristaliza
diferenciadas na sociedade (...) . Também nos nfveis formais -lexical, morfol6gico,
um esquecimento bâsico: para se constituir, a ortografia teve necessariamente
sintatico - do sistema, ha diferençis. Estas se acentuam mais ainda quando consi -
deramos que apenas a ifngua escrita tem uma herançi litera.ria de prestfgio, que de neutralizar a variaçao lingü(stica, inerente a toda e qualquer lfngua, e fixar
codifica, reproduz e divulga os valores culturais dos grupos de poder da comunidade. como objetivo para si mesma a tentativa de representaçao de uma dada varie­
Tarnbérn apenas a lfngua escrita tern sido objeto de processos de gramaticalizaçâo, dade, eleita par motivas s6cio-hist6ricos os mais diversos (cf. Cagliari, 1996).
dicionarizaçâo e normatizaçâo. Do ponto de vista s6cio-hist6rico, as condi</ies No senso comum vigora a ilusâo de que o alfabeto consegue cumprir a
para a configuraçâo de uma situaçâo digl6ssica de lfnguas em conflito também estao funçao de uma transcriçao fonética perfeita. Nâo existe, porém, alfabeto sem
presentes: o uso da·escrita esta lirnitado a urna pequena elite, e a situaçâo de usos, ortografia, isto é, sem a dete1minaçao de um unico modo oficial de escrever.
funçôes e contextos diferenciados tern urna realidade hist6rica, pois ernerge junta­
Por isso, um mesmo alfabeto (coma o latino) pode ser submetido a uma mul­
rnente corn a burocracia letrada nas cidades no século XVI [p. 49-50].
tiplicidade de convençoes ortogrâficas: as convençoes que valem para a orto­
Embora haja atualmente um notâvel empenho cientffico na elaboraçao grafia do português nâo valem para a do francês, do alemâo, do hungaro etc.
minuciosa de uma gramatica do português falado - tftulo do grande projeta A ortografia oficial, por isso, apresenta uma tensao permanente entre os
coletivo iniciado em 1988 corn base em proposta feita por Castilho (cf. diversos influxos que ela tenta acomodar, entre as diversas exigências que se
Castilho, 1991: 9), e do quai jâ surgiram, até o momento, sete volumes de vê pressionada a atender, e que p<;>derfamos resumir assim, retomando a anâlise
estudos voltados para os mais diferentes aspectas lingüfsticos e apoiados em (e os exemplos) de Lemle (in Sil�a, 1993: vii-viii), ja mencionada mais atras:
di versos arcabouços te6ricos -, e, junto corn esse empenho, um reconheci­ ( 1) a pressâo da representaçâo fonética: urna letra para urn unico som. No ponuguês
mento da importância da lfngua falada no ensino (Ramas, 1997; Castilho, do Brasil temos as letras P, B, F e v que, parece, conseguern realizar esse ideal;
1998) - reconhecimento posta "preto no branco" inclusive pela Ministério (2) a pressao da representaçâo fonêmica: a letra T pode rcpresentar a oclusiva
da Educaçao em seus Parâmetros Curriculares Nacionai.s (1998) -, nâo se alveolar mas tarnbérn sua variante africada condicionada pela posiçâo <liante
pode desprezar a força e o vigor do preconceito formulado no Mita 6. de [i], em muitas variedades do português brasileiro;
Outra pesquisador que vem se dedicando a uma sistemâtica reflexào (3) a pressâo da representaçâo rnorfofonêmica: os representa um (z] ern os olhos,
sobre as relaçoes entre fala e escrita é Manoel Corrêa (1997; 2000). A urn [s] ou UI em os pintas e um (z] ou [3] ern os vidros, segundo as varicdades;
constituiçao do mita da superioridade da escrita sobre a fala decorre, entre (4) a pressâo da representaçâo da etirnologia: escreve-se lasso corn ss por causa
outras coisas, da visâo da lfngua escrita simplesmente coma um c6digo e do étirno latino lassu, e laço corn ç por causa do étimo latino laceu;
nâo coma um modo de enunciaçao tal coma a fala, Dentro da perspectiva (5) a pressâo da representaçâo privilegiada de uma variedade lingüfstica sobre as
demais: é preciso escrever FLAMENGO e PALHA ainda que em rnuitas variedades
desse mita, a fala é heterogênea, ao contrario da escrita que deveria scr
se pronuncie framengo e paia.
homogênea. Surge daf a noçao de um ideal de pureza da l(ngua escrita, em
que tacla suposta "interferência da lfngua oral" deve ser eliminada. Corno Essas pressôes se exercem de modo tâo entrelaçado que fica diffcil dis­
enfatiza Corrêa, reconhece-se a heterogeneidade na escrita - coma urn tinguir quais delas entraram em açao no momento da determinaçâo da
influxo vindo do exterior - e nâo a heterogeneidade da escrita, constitu­ ortografia oficial de uma palavra. Como todo tipo de padronizaçao, a orto­
tiva da pr6pria escrita como ta!. grafia se revela constitutivamente arbitra.ria e muitas vezes incoerente. Por
\ Na qualidade de mero c6digo, a escrita tem sida vista como um instru­ que a pressao etimol6gica se exerceu, par exernplo, sobre a grafia do verbo
mental para a obtençao d� produtos culturais, "forma particular de registro EXPRIMIR, corn x, mas nâo sobre o verbo ESPREMER, corn s, embora ambos
em que mem6ria e historia se identificavam" (Corrêa, 2000: 5). Se encara­ tenham o mesmo étimo latino EXPRIMERE? Corno explicar, <liante da pressao
da, porém, como um modo de enunciaçao, coma um processo, sera preciso de representar as variedades de prestfgio social, a forma ortogrâfica BRECH6
reconhecer plenamente a heterogeneidade constitutiva da escrita, uma vez resultante da transformaçao do nome proprio BELCHIOR por força de tendên­
que sera preciso levar em conta também o sujeito dessa enunciaçao. cias fonéticas consideradas tfpicas das variedades nao-padrao?

80 81
Drom61ico da linguo port�guesa Do milo oo preconceito: os comondos porogromoticois

Sao dados que vêm corroborar a afirmaçao de Corrêa (2000: 4) de que nada pelas supostas interferências da lfngua falada, reconhecida coma hete­
"o escrevente oscila entre a r epresentaçao dos sons que produz em sua rogênea, nem sempre boa etc.
variedade lingüfsrica falada e a convençao ortografica que a escola ensina". Corno afirma Marcuschi (1998: 6):
No Mito 6 estâ encapsulado, me parece, um cfrculo de associaçoes De tao prima.ria e carente de fundamentaçao, esta visao nao necessita aqui de
sinonfmicas equivocadas, que poderfamos representar do seguinte modo: maiores comentarios, mas é bom nao perder de vista que ela perpassa a maioria
das opinioes dos "letrados" brasileiros.
. " nura" = lingua cuita = norma
cota r Padrào
ô:� t\a es ::::
liiJ 2.3.4. 0 mita da necessidade da graméJlica normativa
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sentiJl 997: 95), .�a�,!?t�.i�i4fo2:qye.:�.,ideàl.•L�
- Os equfvocos decorrentes desse mito estao presentes, por exemplo, fazer corn que o ensino do português deixe de ser visto coma a transmissao de con­
numa coluna assinada por Pasquale Cipro Neto, publicada na Folha de S. teûdos prontos e passe a ser uma tarefa de construçao de conhecimentos por parte dos
Pciulo de 20.11.1997, em que ele critica, sem nenhum aparato cientffico alunos, uma tarefa em que o professor deixe de ser a ûnica fonte autorizada de infor­
consistente, o fenômeno chamado deque(smo, que jâ mereceu a atençao de maç6es, motivaçoes e sançoes. 0 ensino deveria subordinar-se à aprendizagem.
d iversos estudiosos. C.9ncgtnando o aparecimento de " de que'' na fala de
Jâ sugeri (Bagna, 1999: 113-116) que, para assumir essa nova postura
Ufi!. fO.eJnbro da e qilipe · �CP!}QffiIÇ��do:gqy�lJl : ;�
·Q ·- · i�tr�;is·t�· ·�;-·te!evis-
· , ·--· ·· âo, te6rica, pj!St!;lJ!:.�!lbstituiçaQ.de..uma,.sJlaba;_i�.m,'lez..deJl.EPe.IIR,ocon_teyqp
a�;im escreve ele:
gmmatkaltradicional, .Q.Pr..ofesso.re..o aluna de.veriarn..REiL�IU\ Ç[i{lç:3:rµ�n..te
Alguns lingüista,s (alguns), _idiotas, dirao que_,i l(n.gua falada nap !Pe!�ce reparo, sobre esse conteudp. C2ill.Q.!l9.Y-5!,12R�!!:J,ni.2J�tiqt,l:i,��S<1.)1,dJ,mirw,çaoqe 4�a
qy� a fala é sempre boa_ etc. Esses ociosos nao conseguem perce ber que homèns �s §Jl!l.ka.!w.k�Œ.:,ES/Jugfil',cl,e..rcPRQPUUl.HtY,ffü�A9.��JJAëJ�r,�.n:i�!ic_al, ( e co�
nao estavam na mesa de um botc�o, batendo papo. Estavam falando para o paîs,
el\l: .a..ig�9fog_@,t§�!!�...PJ�Ç,s>l}Ç�!J:�2.i..QPI9f�§�ç>_r �9-f!.lµ:nq.deveriamJ'R_QDUZI�
s�?E-!25E,,��S!!11�P.tQliPgQ.(§,t\çqpqf ffi!ÜQ.,da_ .Ü1Y,estigaç1q,. dii, p�squisa
sobre um assunto técnico, usando linguagem teoricamente cuita.( ...) E alguns
idiotas, ociosos, dizem que a fala é sempre boa, que i;so e aquilo3•
. cc_:m�����!�df!...9..Ë9;V.Çaü.QaHt:gta5,_de.fl,UJ.Ç.�Q!latPento,da ifp,gt11Jc (qo maxima
Para o autor, coma se vê, uma "linguagem teoricamente culta" é aque ­ de variedades_ P9.�.§(Y.�JsJsm.substituiçao.à transP1issfiointacta de l'pacotes
\ la que mais se aproxime de um ideal de lfngua escrita pura, nao contami- g���i�i�nmn,tqs_J!, �ç;ib;idqs__(yti;,.adJ�lJ.�hcapf�ulo 3 ,_ iJiè!rp.J .3),.
-----------·-- -- - ···-· � . . -· .. .....
Por exemplo, em vez de fazer o aluna memorizar mecanicamente de­
.. .. -

3. Em taclas as suas acusaçoes contra lingüistas, Cipro Neto usa o determinante alguns que, finiçê\es inconsistentes de "substantiva abstrato" e "substantiva concreto"
em princfpio, teria funçao restritiva. No entanto, coma ele nunca nomeia explicitamente os /;
e decorar listas interminaveis de exemplos, por que nao se deter na espe­


lingüistas a quem chama de "idiotas, ociosos", entre outras coisas, nomeaçao explrcita que ,,
obrigaria a rebater corn argumentas cientificos as criticas que recebe, s6 é possfvel ver no algun/ culaçao (filos6fica, sim!) CW-§i@lfiç.ad.iLQ.�-�fl.b�trn.to_:_e.'.'.c@creJ9'.'., ou até
uma funçao generalizadora disfarçada. ·
.: mesmo da noçao bâsica de "substantiva"? 0 que quer dizer "substantiva"?

82 83
Dromético do lin8,;,i portugueso Do mito oo preconceito: os comondos porogromoticais

A definiçào tradicional de substantivo da conta de todos os elementos que, dentre os 40 tipos de exercfcios mais freqüentes aplicados pelos profes­
enquadrados nessa categoria? Havera uma oposiçào radical entre "concre­ sores de português entrevistados, os quatro mais freqüentes - (1) reconhe­
to" e "abstrato" ou essa distinçào (se existir) dependera de usos especfficos cer classes de palavras; (2) reèonhecer funçôes sintaticas; (3) reconhecer
., em contextos determinados? Em vez de oposiçao nao havera af, antes, um e classificar funçôes sintaticas (4) reconhecer e subclassificar classes de pa­
continuum que vai do mais abstrato ao mais concreto, ou vice-versa? 0 lavras - sâo responsaveis por 62,67 por cento das ocorrências, restando
substantivo cobertura, por exemplo, é abstrato ou concreto? Quando digo por conseguinte apenas 37,33 por cento para serem distribufdos entre os
"aquela cobertura onde Joao mora custou dois milhôes de dolares" e "Joao demais 36 tipos de exercfcio!
vai fazer a cobertura da visita do Papa para o jomal", tenho em mente o
mesmo sentido de "cobertura"? Levanta-se af um problema, que nâo sera
diffcil transformar numa discussao interessante acerca das noçôes tradicio­
nais de "substantivo", "significado", "sinônimo" etc. Se para isso servir o
estudo da gramatica, para estimular e desenvolver o raciocfnio especulati­
vo do aprendiz, sua curiosidade criativa, entao havera razôes para mantê­
lo vivo na escola. Mas nao é isso que acontece hoje, pois
os compêndios atuais de gramiitica e os livras didiiticos (e, em decorrência, a pr6pria
escola) nao trazem as razôes porque a Gramiitica Tradicional surgiu nem os funda­
mentos filos6ficos e cientfficosque a motivaram, de modoque a metalinguagem e
as definiçôes a ela subjacentes ficaram esvaziadas de sua historia e de um sistema Je
referênciaque lhe garantisse um sentido. Afinal, porque se define sujeiw ou prono­
me do modo como se faz? Trata-se de rôtulos vazios que recobrem os termos idenri­
ficados por um determinado procedimento heurfstico, ou sào sintese de uma forma
de representaçao da linguagem? Corn isso, a aniilise de faros lingüfsticos perdeu sua
dimensao criadora e os vfnculos corn a realidade lingüfstica, tomando-se numa
espécie de puzzle sem maior valor cientffico [Britta, 1997: 124-125).

Essa desvinculaçao do estudo da gramatica corn seu objetivo original


especulativo-filos6fico - "uma descriçao da lfngua, que remete a uma con­
cepçào de linguagem e a uma concepçao epistemol6gica (uma episteme)"
(Britto, 1997: 126) - e sua transformaçao num mero instrumental
Figura 2.2
taxionômico têm como resultado, na pratic� pedag6gica tradicional, uma
série de reduçoes sucessivas (ver Figura 2.2 na pagina seguinte).
Surge daf a absurda sinonfmia ensino de português = ensino de gramatica
ou, mais drasticamente ainda, ensino de português = ensino de classes/funçi5es Na'mesma pesquisa junto aos professores de lfngua portuguesa da rede
de palavras4 • De fato, a pesquisa empreendida por Neves (1990: 12) revela estadual de ensino de Sao Paulo, Neves (1990: 11) perguntou aos docentes
para que servia a gramatica que ensinavam. Os dados levantados revelaram:
\
4. 0 reducionismo a que me refiro nao esta no fato de se dedicar grande atençao ao estudo A aquisiçao das estruturas da lfngua { vista coma uma finalidade do _ensino desli­
das palavras, isto é, do léxico que, coma se sabe, é central em diversas teorias gramatic:ais. gàéla Je apijc_pçtio prqtica, tradÜ�i.ndCl'.S(! !1<J proprio conhecimento das es_trutÙras
Minha crftica se dirige à pratica da taxionomia como um fim em si, e nao como meio para um.i �-�J�ngllatJE!_J! e por �_i, ou ma_is lll)l_a__yezL �m ooda. Quanta à finalidade de <!nsinq
reflexao valida sobre o estatuto categorial das palavras. Parece que, na pratica tradicional, p��-�,��pl��-�-ll_rnprimentq do progrnma,sua utilizaçào vem ligada ao sucesso n.a
impera a crença de que saber classificar é suficiente para saber empregar os recursos da lfngua pr_6pria sala d(! aula (acertar exerdçios), o que_significa, novamente, niio se apontar•.
corn competência e criatividade. nê�èssidôdé:r�;l p�i-d () �nsino da gramdtiç_çi_(g_r:if9s meus).· .

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l

!'
Do mita ao preconceito: os comandos parogromaticais
Dram6tica da lingue portuguesa

Para muitos professores, ainda segundo Neves, o objetivo de "ensinar disso ja existira na Grécia uma literatura ampla e diversificada, que exerce
gramatica" esta em "cumprir o programa". Nâo é de admirar, portanto, que influência até hoje em toda a cultura ocidental. A Ilfada e a Odisséia ja
encontrem poucos alunos dispostos a "aprender". Diante de uma disciplina eram conhecidas no século VI a.C., Platào escreveu seus Dio.logos entre os
,,., arida, sem conexào corn a vida real do estudante, os alunos s6 podem séculos Ve IVa.C., na mesma época do grande dramaturgo Ésquilo, verda­
mostrar-se refratarios. 0 grave é que, para os professores, o problema nào deiro criador da tragédia grega. Que gramatica eles consultaram? Nenhuma.
esta na disciplina, mas nos proprios alunos (Neves 1990: 21). Mais de 60 Corno puderam entào escrever e falar tao bem sua lfngua?
por cento dos entrevistados atribufram as dificuldades a problemas dos Ja mencionei anteriormente a inversao da realidade hist6rica operada
alunas: "Faita de esforço, falta de interesse, falta de vontade de pensar, falta pela transformaçào da Gramatica Tradicional numa ferramenta ideol6gica.
de maturidade, falta de capacidade de abstraçào, falta de percepçào da As gramaticas foram escritas precisamente para descrever e fixar como "re­
utilidade da gramatica". E a pesquisadora conclui (1990: 46): gras" e "padrôes" as manifestaçôes lingüfsticas usadas espontaneamente pelas
escritores considerados dignos de adiniraçao, modelos a serem imitados.
1 Os professores na sua totalidade mostraram que consideram sua grande missàn
Ou seja, a gramatica,normativa é decorrência da lfngua, é subordinada a ela,
oferecer um ensino que permita que seus alunas falem e escrevam de acordo com
as regras vigentes na gramatica tradicional, o que é considerado, sem duvida, dependente dela. Com a instrumentalizaçao da gramatica normativa em
como "escrever melhor". mecanismo ideol6gico de poder e de controle de uma camada social sobre as
Verifica-se desse modo o vigor do Mito 7 no sistema educacional c, demais, formou-se essa "falsa consciência" coletiva de que os usuarios de
por c'onsëguirite, nô sëriso·comum da·s-odedàd�:A �doçâo dessë"cônèeito uma lfngua é que precisam d; gramatica normativa, como se ela fosse,
repito, uma espécie de fonte mfstica invisfvel da quai emana a lfngua "bo­
�est�ir� de ''gr�mâ.ti�i' por parti das escolas
· · · · · · como an?lisa Pos-
····· representa,
senti (in Geraldi 1999: 56), nita", "correta" e "pura". A lfngua ficou subordinada à gramatica. 0 que
um sintoma de que elas pouco se preocupam em analisar efetivamente uma lîngua
nao esta na gramatica normativa "nao é português", assim como as palavras
mas, antes, em transmitir uma ideologia lingüfstica. Se considerarmos que aque­ que nào estào no dicionario simplesmente "nào existem"...
las gramaticas adotam uma definiçao de lingua extremamente limitada, que ex­ Resumindo esse processo, escreve Cagliari (apud Terra, 1997: 46):'
poem aos estudantes um modela bastante areaico e distante da experiência vivida, A gramatica normativa foi num primeiro momento uma gramâtica descritiva de
mais do que ensinar uma lfngua, o que elas conseguem é aprofundar a conseiência um dialeto de uma lfngua. Depois a sociedade fez dela um corpo de leis para reger
da pr6pria incompetência por parte dos alunas. o uso da linguagem. Por sua pr6pria natureza, uma gramatica normativa esta
condenada ao fracassa, ja que a linguagem é um fenômeno dinâmico e as linguas
Realmente, é muito facil encontrar quem concorde corn a afirmaçào de mudam corn o tempo; e, para continuar sendo a expressào do poder social de­
que "é preciso saber gramatica para falar e escrever bem". Ela esta na ponta da monstrado por um dialeto, a gramatica normativa deveria mudar.
lfngua da grande maioria dos professores de português, como se viu acima, e se
acha formulada em muitos compêndios gramaticais, como o ja citado de Cipro Deveria mudar, mas nào muda, pois tal mudança s6 tem chance de
& Infante (1997), cujas primeirfssimas palavras sào: "A Gramatica é instrumen­ ocorrer se for acompanhada de uma mudança na correlaçao das forças que
ta fundamenral para o domfnio do padrao culto da lingua". Ora, Perini (1997: detêm o poder.
50-51) chama a atençâo para a "propaganda enganosa" contida nesse mito: Os gramaticos normativistas, numa feliz definiçào do crftico literario
Quando justificamos o ensino da gramatica dizendo que é para que os alunos Ivan Teixeira em artigo na revista Veja (21/4/1999, p. 148-149), "nào passam
:\ venham a escrever (ou Ier, ou falar) melhor, estamos prometendo uma mercadn­ de meros guardiaes de uma inutilidade consagrada pelo poder constitufdo".
ria que nào podemos entregar. Os alunas percebem isso corn bastante clarez.1, Uma inutilidade, talvez, mas uma inutilidade que garante aos que a domi­
embora talvez nao o possam explicitar, e esse é um dos fatores do descrédito da nam um status privilegiado no plano social, econômico, intelectual e polf­
disciplina entre eles. tico. Uma inutilidade, portanto, muitfssimo ûtil. 0 apelo obsessivo feito
E Possenti ( 1996: 54-55) relembra que as primeiras gramaticas do Oci­ pelas forças polfticas conservadoras à "ignorância" da "gramatica" por parte
dente, as gregas, sô foram elaboradas no século Il a. C., mas que muito antes do candidato do Partido do Trabalhadores, Lufs lnacio Lula da Silva, nas

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Drom6tica da lingue portugueso Do mito ao preconceito: os comandos porog1omolicois

campanhas eleitorais de 1989, 1994 e 1998- como razao suficiente para anteriormente, a ideologia nao pode apresentar-se coma ta! e assume, portanto, a
desqualificar sua candidatura - permitiu avaliar todo o peso do precon­ imagem de ciência neutra. A Escola, também, conseqüentemente, pretende repre­
ceito lingüfstico em nossa sociedade. 0 argumenta mais ouvido pelos que sentar o pape! de instituiçao corn objetivos culturais neutros. [...) Mediante a im­
·, posiçao da visào de mundo da classe dominante à classe dominada, impede-se que
nao admitiam votar em Lula foi: "Corno posso eleger à Presidência da
esta ultima tenha a possibilidade de elaborar sua pr6pria visào de mundo, a partir
Republica uma pessoa que nao sabe português ?"5 das suas condiçèies de existência e de seus interesses: construir, enfim, uma ideologia
É diffcil discordar da tese de Possenti (1996: 32-33) de que pr6pria, antitética à da classe dominante (Nosella, 1981: 26-27).
No dia em que as escolas se dessem conta de que estao ensinando aos alunes n
que eles ja sabem, e que é em grande parte por isso que falta tempo para ensinar Por isso tamanha insistência no ensino do irrelevante. As "coisas inte­
o que nao sabem, poderia ocorrer uma verdadeira revoluçao. Para verificar o ligentes" que "sobrariam para fazer na aula" comprometeriam o projeta so­
quanto ensinamos coisas que os alunes ja sabem, poderfamos fazer o seguintc cial embutido na îdeologia: veicular a visao de mundo da classe dominante
teste: ouvir o que os alunas do primeiro ano dizem nos recreios (ou durantl' como a unica legftima. A revoluçâo - termo empregado corn justeza por
nossas aulas), para verificar se ja sabem ou nao fazer frases completas (e emào Possenti - revela-se, portante, como a grande inimiga da ideologia, coma
nào precisarîamos fazer exercfcios de completar), se ja dizem ou nào perfodos
compostas (e nào precisarîamos mais imaginar que temos que começar a ensina­ sua antftese precisa e bem definida. Ensinar coisas inteligentes é despertar o
los a Ier apenas corn frases curtas e idiotas), se eles sabem brincar na lfngua do senso crftico, provocar o questionamento, incitar à duvida. Mas nao é isso o
"pê" (talvez entào nao seja necessario fazer tantes exercfcios de divisào silabica), que a escola e sua ideologia busc;am. Seu projeta é o "contfnuo dar voltas em
se ja fazem perguntas, afirmaçèies, negaçoes e exclamaçèies (entào, nào precisa­ tomo da tese, sem superar seus Îlmites", como diz Rossi-Landi (1985: 153).
mos mais ensinar isso a eles), e assim quase ao infiniro. Sobrariam apenas coisas 0 ensino da gramatica na escola, portanto, enquadrando-se no proje­
inteligentes para fazer na aula, corne Ier e escrever, discutir e reescrever, reler e to ideol6gico mais geral, nao visa, como quer o Mito 7, levar o aluno a
reescrever mais, para escrever e Ier de forma sempre mais sofisticada etc.
"falar e escrever melhor". Visa, sim, desprezar o conhecimento gramatical
Nossa pratica pedag6gica tradicional, como é fadl comprovar, se de- intuitivo do falante (Mito 2), convencendo-o de sua absoluta ignorância
tém basicamente no ensiho de "inutilidades" ou de coisas irrelevantes. Mas da lfngua (sinônimo de "gramatica"); lfngua que, sendo "diffcil" (Mito 3),
havera uma razao para isso? Segundo Britto (1997: 104): s6 pode ser ensinada e aprendida na escola, lugar privilegiado de "trans­
É 6bvio que a escola tem finalidade, sempre. Trata-se, em qualquer sociedade, de missao do saber" (Mîto 7), "saber" que permitirâ uma ilus6ria "ascensao
um poderoso instrumente social de produçao de consciências e, na sociedade social" de quem tiver acesso a ele (Mito 8), permitindo a integraçao do
capitalista, constitui-se fundamentalmente coma lugar de reproduçao de um sa ber indivfduo na "unidade nacional" polftica c lingüfstica (Mito 1).
institufdo, exercendo sua açao através de procedimentos coercitivos e discrimi­ Toda e qualquer proposta de renovaçao ou reavaliaç:ao do ensino de
nat6rios, assim coma pela estabelecimento de modelas de avaliaçao de valores e
português deve levar em conta a realidade ideol6gica inerente ao aparelho
comportamentos.
escolar. Corno bem descreve Nosella (1981: 13):
Ao contrario do pensamento que vigora no imaginario popular de que A ideologia dominante (como a maneira de conceber o mundo) nào opera ape­
a escola serve para transmitir conhecimento, democratizar o saber acumula­ nas enquanto maneira de as pessoas representarem o mundo, mas constitui ele­
do pela humanidade, preparar O cidadao para ocupar um lugar digno na mento intrfnseco às estruturas da personalidade das crianças, ao mesmo tempo
sociedade, transformar uma pessoa "ignorante" num ser humano "culto" etc., em que atua corne elemento estruturador dessa personalidade, pelos processos de
\ assimilaçao e acomodaçao. As crianças, submetidas à maciça inculcaçao dessa
0 aparelho escolar, ao desempenhar sua funçao de inculcaçao da ideologia dominan­ ideologia, nào irào apenas aprendê-la, mas terâo toda a sua estrutura de pensa­
te, submete a clientela tante da classe dominante coma, também, e principalmente, mente impregnado por ela.
da classe dominada, a uma visa.a de mundo em que a estruturaçao da sociedade em
classes e a exploraçao de uma pela outra tomam-se naturais. [...] Corno se afirmou A conseqüência obvia disso é que a maioria das pessoas que freqüen­
taram a escola absorveram, em grau maior ou menor, a ideologia dominante
5. Cf. Salles, 1995: 139-144, "0 socioleto de Lula". inculcada por ela, ideologia que se tomou parte constituinte de suas pr6-

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à,,,.,
Dram61ica da lingue portuguesa Do mita ao preconceito: os comandos paragramaticais

prias personalidades. Daf a grande resistência de pais, professores, pedagogos, comunicaçâo face a face. Quando os lingüistas e, ainda mais, os donos da gramatica
donos de escola, administradores escolares, burocratas da educaçao, etc. normativa fazem referência às estruturas lingüfsticas ou às regras, eles fazem refe­
em aceitar novas formas de ensinar. As mais aceitas sâo quase sempre aquelas rência somente a parte de totalidade dos sinais da comunicaçâo, descontextualizados
que interferem apenas no modo de transmissâo dos conteudos tradicionais · da totalidade dos sinais comunicativos que se dao na real interaçao verbal face a
face. Este tipo de abstraçâo permite na realidade uma discriminaçâo que vai além
- tidos corno justos, uteis e corretos --, tentando buscar novas ferrarnentas
do simples dominio e uso da gramatica normativa. Até no caso em que alguém
pedag6gicas (exercfcios, atividades praticas, jogos etc.) que facilitern essa consegue controlar as estruturas gramaticais e o léxico da variedade lingüfstica
transrnissâo. Aquelas que questionarn na taiz os conteudos rnesmos das padrao, ele ou ela ainda devera passar através do teste da interaçâo face a face, que
disciplinas escolares têm pouca chance de aceitaçao. implica a produçâo de uma fonologia e de uma prosodia aceitaveis, um bom controle
Todavia, é no questionamento e na mudança radical do conteudo das do tempo, do ritmo, da velocidade e da organizaçâo das informaçoes ou dos con­
aulas de gramatica que reside o grande n6 do ensino de lfngua portuguesa. teudos. Além destas caracterfsticas estritamente relacionadas à lfngua, ha outras,
tais como as posturas do corpo, a direçâo do olhar, etc. Tudo isso entra, na realidade,
Os pais, em sua grande maioria, esperam que seus filhos aprendam na es­ no "julgamento" através do quai uma pessoa tem que passar, mas nada disso esta
cola, sobretudo na disciplina Lfngua Portuguesa, exatamente o que eles explicitamente mencionado ou legislado na gramatica normativa.
aprenderam e consideram bom saber: divisao silabica, acentuaçao tônica,
sinônimos e antônimos, coletivos, dirninutivos, aumentativos, comparati­ Outros elementos de discrirninaçao nâo citados por Gnerre sao, sabi­
vos, superlativos, classes de palavras, analise sintatica etc. É cornum ouvir darnente, a cor da pele, o sexq ou a orientaçao sexual do falante (assurnida
relatos de professores que, tentando abolir um ou outro desses "pontos de ou presumida), a indurnentaria: a compleiçao ffsica, a procedência geografica
gramatica", foram interpelados e até agredidos pelos pais ou administrado­ (explicitada ou suposta), a zona de residência, a opçao religiosa, a irnpostaçao
res da escola por nao estarem "ensinando o que é preciso saber" ou "o que da voz em sua correlaçao corn os papéis sociais atribufdos aos gêneros mascu­
vai cair no vestibular". Houve sucesso, portanto, na transformaçao da ideo­ lino e ferninino (ao homern cabe falar "grosso" e irnpositivamente; à mulher,
logia gramatical numa "ciência neutra", como diz Nosella, isolada da rea­ ser "delicada" e condescendente), os sinais exteriores de filiaçao do falante
lidade social de produçao material da existência. a conjuntos de atitudes nao-convencionais (rnuitos brincos na orelha, barba
0 Mito 7, como se vê, é profundamente problernatico, uma vez que se cornprida, piercings, tatuagens de grande dirnensâo, cabeça raspada, cabelos
relaciona diretamente corn o ensino da lfngua e corn todos os obstaculos e/ou unhas pintados de cores "extravagantes", etc.) e até rnesrno o signo
ideol6gicos que impedem que esse ensino seja liberador de consciências, zodiacal, o ter ou nao autorn6vel (e a marca do autom6vel}, o ser ou nao
que coloque o aprendiz como sujeito de seu proprio aprendizado, produtor fumante, entre tantas outras coisas... Saber "grarnatica" nao poupara o falante
de seu proprio conhecimento e de visôes de mundo alternativas que se de ser avaliado também (e às vez!!s até sobretudo) por essa grade de critérios
oponham à das classes dominantes. quando se encontrar, principalrnente, ern situaçao de assimetria de poder
0 que ha de mais perverso no Mito 7 (assim como no 8, que analisarci social, cultural e econôrnico.
a seguir) é que ele cria a ilusào de que o mero conhecimento da "gramati­ Todos esses elernentos discrirninadores conjugados provam, como con-
ca" é competência suficiente para a inserçao do indivfduo na categoria dos clui Gnerre (1985: 22-23), que
que podem falar, dos que sabem falar, dos que têm direito à palavra. A discri­ a gramatica normativa é um codigo incompleto que, como tal, abre o espaço para
minaçao explfcita contra os que "nâo sabem português" é apenas a face a arbitrariedade de um jogo ja marcado: ganha quem de safda disp6e dos instru­
.\ visfvel de urn mecanismo de exclusâo que atua também, e mais insidiosa­ mentas para ganhar. Temos assim pelo menos dois nfveis de discriminaçao lingüfs­
tica: o dito ou explfcito e o nao dito ou implfcito.
mente, num nfvel bem mais sutil. Na precisa analise de Gnerre (1985: 22):
A visao tradicional da lfngua é muito restrita, corn uma ênfase forte sobre as estru­ Daf ser forçoso concluir, corn Gramsci (apud Gnerre, ibid.), que em toda
turas lingüfsticas. Corno é uma visao derivada da tradiçâo escrita, fatos como "sota­ sociedade existe uma "grarnatica normativa escrita" ao lado de uma "gramatica
que", prosodia e outras caracterfsticas "menores" nao sao considerados formalmente normativa nâo escrita", cornplemento do c6digo incompleto que é a GN
como parte da lfngua, mas obviamente eles desempenham um pape! central na real escrita, configurando urna "dupla articulaçao" da discrirninaçao: a discrimi-

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Dromético do linguo portugueso Do rnilo oo preconceilo: os comondos porogromoticois

naçâo lingüfstica e a nâo-lingüfstica. Seria ingênuo, portanto, atribuir ape­ clade, muito bem denunciada par Magda Soares (1986: 62), é bem diferen­
nas à "gramâtica normativa escrita" o pape! principal no drama do precon­ te disso:
ceito lingüfstico. A escola exige de todos os alunas que cheguem a ela trazendo algo que ela mes­
ma nào se propôe a dar, e que s6 as classes dominantes podem trazer - o domî­
nio pratico da lfngua "legftima"; pressupondo esse domfnio pratico, oferece um
2.3.5 0 milo da oscensào social ensino da lfngua "legftima" que, evidentemente, s6 pode levar a bons resultados
0 Mita 8 (ou oo), o mito da "ascensâo social", cristaliza a noçâo equi­ aqueles que ja dispôem daquilo que ela nào da, mas de que depende o que ela da.
vocada de que o acesso à "norma cuita" supostamente ensinada na escola A escola, portanto, cobra na entrada aquilo que ela mesma, na ilusâo
permite ao aluna falante de variedades nao-padrâo, de modo quase mâgico do senso comum, deveria dar na saîda. É coma querer ensinar uma pessoa
e instantâneo, "subir na vida", "pragredir", "ter sucesso". 0 Miro 8 parece­ a nadar jogando ela no lado mais fundo da piscina, esperando que se salve
ria, entâo, estar em contradiçâo corn o Mito 1 - que nega a existência de do afogamento recorrendo ao conhecimento de nataçâo que ja deveria ter
uma pluralidade de variedades lingüfsticas para sustentar a "prodigiosa" trazido antes de se'matricular no curso!
unidade do português do Brasil -, uma vez que reconhece a diversidade Par isso,
lingüfstica e vê nela um "problema" social que pode ser "resolvido" corn a o fracassa, na escola, dos alunos pertencentes às camadas populares, por falta de
facilitaçâo do acesso à norma lingüfstica considerada padrâo. No entanto, um capital lingüfstico escolarrnînte rentâvel, por cuja aquisiçào essa mesma escola
a contradiçâo é s6 aparente. Os dois miros se enquadram perfeitamente no seria responsavel, é apenas uma aparente contradiçao: a negaçào (ou a sonega­
planejamento social que é toda ideologia. çâo/) a esses alunas do capital lingü(stico escolarmente rentdvel tem, na verdade, a
A "justificaçâo natural e eterna" da ideologia é denunciada por Chaui funçao de colaborar para a perpetuaçao das relaçôes assimétricas entre as classes,
(1998: 79) ao dizer que ela "faz corn que [as pessoas] creiam que sâo desi­ de garantir a opressao das classes dominantes sobre as classes dominadas [Soares,
1986: 63-64).
guais por natureza, mas que a vida social, permiti11do a todos o direito de
trabalhar, lhes dâ iguais chances de melhorar". No casa de nosso Miro 8, Recorrendo à noçao de capital lingü(stico, que toma emprestada de Bour­
basta Ier escola onde Chaui escreve "vida social" e aprender a norma padriio dieu, Soares mostra que s6 havera realmente sucesso e "ascensâo social"
onde escreve trabalhar. para aqueles que ja chegarem à balsa de valores que é a escola dotados de
Mais uma vez, temos aqui o processo de inversiio caracterfstico da ideo- um capital socioeconômico capaz de lhes garantir um bom lote de açoes na
logia. Afinal, disputa pela mercado lingüîstico.
Diferentemente do que afirmam os defensores do ensino da norma cuita, nao é É o que se verifica hoje, no Brasil, na diferença gritante de acesso a
através do domînio desta que os indivîduos podem ter acesso ans bens que a socie­ uma "boa educaçâo". Quem tem capital - nâo s6 o capital "simb6lico"
dade industrial produz. Ao contrario, é através do exerdcio pleno da cidadania, o representado pelo domfnio da lfngua "legftima", mas o capital monetario
que inclui o acesso a todos os direitos e às atividades da classe dominante, que os mesmo, o dinheiro - pode oferecer aos filhos um ensino "barn" (dentro
segmentas excluîdos poderào reconhecer e eventualmente dominar outras varie­
dos critérios da ideologia burguesa) numa escola particular, ao passa que
dades lingüîsticas, entre as quais a norma cuita (Britto, 1997: 106-107).
aos desprovidos desse capital s6 resta o sistema publico de ensino, cada vez
Ja argumentei (Bagno, 1999: 68) que se o domfnio da chamada norma mais negligenciado, reprodutor de praticas pedag6gicas arcaicas, dotado de
\ cuita fosse realmente um instrumento de ascensao na sociedade, os professo­ material obsoleto, infenso aos avanços tecnol6gicos que permitem um acesso
res de português ocupariam o topo da pirâmide social, econômica e polîtica muito mais rapido e eficiente ao conhecimento. Opera-se ali, entâo, de
do pafs, uma vez que, supostamente, ninguém melhor do que eles domina forma sistematica, a formaçao de cidadaos de segunda categoria - inevita­
essa norma... velmente atrasados em comparaçâo corn os progressas feitos, em todos os
Além disso, o Mito 8 veicula a noçâo ingênua de uma escola democra­ nfveis, pelas que freqüentaram escolas particulares -, cidadâos que ja têm
tizadora, que "da" a todos o conhecimento, a ciência, o saber. Ora, a reali- definido, desde cedo, seu lugar subalterno na divisâo do trabalho. É a cola-

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)
Drom61ico do Hnguo porfugueso Do milo ao preconceilo: os comondos parogromolicais

boraçao efetiva e eficaz do Estado na manutençao do primeiro lugar ocu­ mente corn Geraldi (1999: 90) ao dizer que "o compromisso polftico pri­
pado pelo Brasil entre os pafses corn a maior injustiça social do mundo6 • meiro do professor de !fngua portuguesa é possibilitar o domfnio efetivo da
Numa analise muito lucida, Haugen (1972: 109-110) escreve que uma !fngua padrao", e também corn Possenti que escreve (in Geraldi 1999: 33 ):
lfngua-·padrao, para nao ser considerada morta, precisa ter aceitaçao: "0 objetivo da escola é ensinar o português padrao [... ]. Qualquer outra
Qualquer aprendizado requer dispender tempo e esforço, e deve de algum modo hip6tese é um equfvoco polftico e pedag6gico".
contribuir para o bem-estar dos aprendizes e para que nao queiram fugir das aulas. Certamente, mas também é preciso ter bem claro em mente que nao é
Uma lfngua-padrao que é o instrumenta de uma autoridade, como um governo, a norma-padrao que vai resolver todos os problemas de um indivfduo caren­
pode oferecer a seus usuarios recompensas materiais na forma de poder e posiçao.
te, coma sugere o automatisme contido no mita que analisamos agora. 0
Aquela que é instrumento de uma confraria religiosa, coma uma igreja, também
pode oferecer a seus usuarios recompensas mais adiante. As lfnguas nacionais que esta em jogo nao é a simples "transformaçao" de um indivfduo, que vai
têm oferecido inclusao na naçao, uma identidade que da ao indivfduo ingresso deixar de ser uro "sem-!fngua padrao" para tornar-se um falante de alguma
num nova tipo de grupo, que nao é apenas parentesco, ou governo, ou religiao, variedade cuita. 0 que esta em jogo é a transformaçao da sociedade coma um
mas uma mescla nova e peculiarrnente moderna dos três. 0 tipo de importância todo, pois enquanto vivermos numa estrutura social cuja existência mesma
atribuida à lfngua nesse contexto tem pouco a ver corn seu valor como um ins­ s6 é poss(vel com desigualdades sociais profundas, todas as tentativas de promo­
trumenta de pensamento ou persuasao. Ela é primordialmente simb6lica, uma
questao de prestfgio (ou falta dele) que se atribui a formas ou variedades especf­
ver a "ascensao social" dos marginalizados "nao passam de mistificaçao: nao
ficas de lingua em razao de identificar o status social de seus usuarios. 0 dom(nio surtem efeito, e parecem mesmç ter o objetivo de apenas simular soluçües,
da Ungua-padriio naturalmente tera maior valor se ele der ingresso ao indivfduo na sendo, na verdade, um reforço da discriminaçao" (Soares, 1986: 64).
assembléia dos poderosos. Seniio, o estfmulo para aprendê-la, exceto talvez passiva­ Fazendo uma rapida abordagem dessas quest5es, Mattos e Silva (1995:
mente, pode ser muito baixo; se o status social for fixado por outras critérios, é com­ 12), depois de citar Nelson Rossi, Maurizzio Gnerre, Magda Soares e Norbert
preens(vel que transcorram séculos sem que uma populaçâo a adote [grifos meus). Dittmar, diz que estes sao "lingüistas que têm e externam a consciência de
É precisamente nesse aspecto dos critérios fixados para a aferiçao do que a manipulaçao do dialeto de prestfgio na sociedade ultrapassa os limi­
status social que reside o inegavel fracasso da escola brasileira em ensinar tes da Lingüfstica: inscreve-se, fundamentalmente, como uma questao, antes
a norma-padrao. De que serve domina-la, conhecer suas regras, se esse que mais, polftica",
domfnio nao sera suficiente para se sobrepor aos outros tantos incontaveis
critérios de avaliaçao social, como os que listei na seçao anterior?
Prosseguindo, Haugen conclui: "Mas em nossa era industrializada e 2.4 0 cfRCULO VICIOSO DO PRECONCEITO LINGÜISTICO
democratica, ha raz5es obvias para a rapida difusao das lfnguas-padrao e 2-.4.1 Três elementos mais um
para sua importância nos sistemas escolares de toda naçao". Infelizmentè,
no casa brasileiro, existe um abismo entre industrializaçao e dcmocracia. Os mitos que acabamos de passar em revista perpetuam-se em nossa
Embora o Brasil tenha a décima economia do mundo e um dos maiores sociedade por meio de uro mecanismo que chamo de cfrculo vicios�econ- -
_..,..,_.,..r.u"')

parques industriais do planeta, o grau de democratizaçao da sociedade - c.,ejyz]ingjj_�,tico. 0 modo de conceber a lfngua veiculado par essa mitologia
democracia entendida aqui como algci que vai muito além da mera existência é sustentado e reproduzido por um conjunto de formadores de opiniâo, também
de eleiçoes rituais (alias, obrigat6rias) para os cargos governamentais -, perpassados pelos valores po!ftico-ideol6gicos, que atuam no sentido de reforçar
\ os valores de senso comum, estabelecendo uma exigência circular: a escola en­
esta entre os mais baixos do mundo.
sina assim porque a sociedade exige - e a sociedade exige porque a escola ensina
É preciso permitir, sim, a todos os brasileiros o acesso à norma lingüfs­ assim [Britto, 1997: 185].
tica padrao (depois de devidamente redefinida), e nisso concorda plena-
Analise semelhante se encontra também em Lopes (1993: 37):
6. Ver, par exemplo, as seguintes matérias publicadas no jomal Folha de S. Paulo: "Desigualda­ As diferenças entre elas [as variedades lingüfsticas) devem ser anotadas e estudadas,
de é recorde no pais" ( 10/9/98), "A conta do pacote" (9/11/98) e "Lfder de injustiçi" (22/11/98). mas nao desconsideradas, nem - pior ainda - reprimidas. E, no entanto, todos

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�-
Dromolico do linguo porlvgue10 Dv 1111,0 oo preconceilo: 01 comoodo; porogromalicais

sabemos que é isso precisamente que faz, a pretexto do ensino da Ungua Portuguesa, Assim como os "comandos paramaternais" deplorados por Mafalda, os
a nossa praxis escolar. Assim procedendo, nossa escola de 1° e 2° grau se converte comandos paragramaticais tampouco suportam que nos molhemos deleitosa­
em um espaça de exclusào do Outro ideol6gico e assume, ao camuflar a existência dos mente na chuva da lfngua, querem delimitar os espaços legais e legftimos
conflitos de classe subjacentes aos conflitos Ungü(sticos, o pape! de aparelho reprodutor da
ideologia da elite, das classes dominantes, enljuanto reprime "a fala das classes dominadas".
de uso do idioma, coibir nosso prazer linguageiro, ameaçando-nos corn pro­
fecias fatalistas ("asf es como luego se enferman") sobre a saude e a sobrevi­
0 drculo vicioso a que me refiro funcionaria, portanto, segundo Britto, vência mesma do português.
como uma poderosa correia de transmissao da ideologia dominante religando
escola, de um lado, e sociedade, de outro (se for aceita a separaçio, para fina­ 2.4.2 Comandos paragramaticais "clâssicos" e "modernos"
i lidades te6ricas, entre essas duas instâncias que, de fato, se interpenetram
\ nos mais diversos nfveis). Os comandos paragramaticais (cr) sao, em sua forma "classica", livros
"-· Numa primeira ana.lise, pareceu-rrie que esse drculo vicioso era formado destinados ao publico em geral (portanto, livros nao-didaticos, no sentido de
por três elementos (os "formadores de opiniao" de Britto): a Gramatica Tradi­ nao serem manuais pgra o en�ino convencional), escritos por autoproclamados
cional (corporificada na forma de compêndios gramaticais norrnativo-prescri­ "defensores da lfngua portuguesa" que investem contra os "erros.comuns", a
tivos), a pratica pedag6gica convencional e os Uvros didaticos. Nessa ana.lise, o "invasao de estrangeirismos", a "rufna do idioma de Camôes", a "pobreza da
;fi cfrculo vicioso se formaria da seguinte maneira: a Gramatica Tradicional ins­ lfngua da atual geraçio" e outros "males" igualmente graves. Encontramos
ii; pira a pratica pedag6gica convencional, que por sua vez gera e nutre o mer­ esses argumentas alarmistas na �érie de obras desse tipo, de fato um gênera
1 cado editorial do livro didatico, cujos aurores, fechando o drculo, recorrem literario espedfico, que, numa visao panorâmica que incorpora Portugal e
à GT como fonte maxima de concepçio de lfngua. Lopes (1993: 38) chama Brasil, vai, por exemplo, desde O que se nao deve dizer, de Cândido de Figuei­
esses elementos de "agentes promotores da deseducaçio", idéntificando-os redo (1899) até o recém-publicado Cam todas as letras, de Eduardo Martins
também como três: "o professor conservador, a gramatica e o livro de texto". ( 1999), passando por todo um século de publicaçoes do mesmo teor que, de
Depois de feita, contudo, essa ana.lise pareceu-me nao levar em conta tao numerosas, é quase impossfvel elencar7•
um quarto elemento que, por nao ser tao compactamente institucionalizado Em sua forma mais "moderna", os CP servem-se tanto dos meios de
quanta a GT, a pedagogia convencional e o mercado do livro didatico, conse­ comunicaçio mais difundidos ao longo do século XX - jornal, revista,
gue diluir-se dentro do processo, escapando à primeira tentativa de dissecaçio radio, televisâo, telefone - quanta das inovaçoes mais recentes no campo
do drculo vicioso do preconceito lingüfstico. Britta chama esse quarto elemen­ da produçio e difusao de informaçocs - o CD-ROM e a Internet. Além
to simplesmente de "mfdia", mas esse termo nao me parece suficiente para disso, surgiu também um novo gênero literario, o manual de redaçâo de
abarca-lo em sua totalidade. Por isso prefiro usar a expressao comandos paragra­ empresa jomalfstica, que vem se constituindo num verdadeiro fenômeno de
maticais, que engloba a pluralidade de manifestaçoes desse quarto elemento. vendas.
Para forjar esse termo, inspirei-me nesta tira do cartunista argentino Quino Uma interessante analise deste ultimo tipo de CP é feita por Dias (1996).
(1973: 52), criador da famosa personagem Mafalda: Segundo esta pesquisadora, os grandes jamais e empresas jomalfsticas toma­
ram para si a missao de "defender a Ungua Portuguesa" e, para tanto, passa­
ram a divulgar suas normas internas de redaçâo, na tentativa de sugeri-las
como guias confiaveis para quem quiser escrever bem. No entanto, como
\
·,1MMJ1.MtJ.MJllll{ ,J alerta a autora,
iOOt ui:RMOS4 I

7. Talvez conviesse inserir entre os CP "classicos" os ''consult6rios gramaticais" a que se


refere Houaiss (1985: 133) e que, segundo o autor, têm um prestfgio que "perdura ha quase dois

�- séculos". Em sua versào contemporânea, esses consult6rios passaram a usar o telefone e, mais
recentemente, a Internet.

96 97
Dramélica da lingua porluguesa Do milo ao preconceilo: os comandos paragramalicais

Essa preocupaçào dos jornais de "ensinar" a lfngua cuita à comunidade acaba por 1995), Neves (1990), Perini (1985, 1997), Possenti (1996), Soares (1986)
conduzir os manuais a posiçàes nem sempre sustentaveis, em razào das leis socio­ etc. A crftica dos livros didâticos também se apresenta, por exemplo, em
culturais que presidem ao fenômeno da variaçào lingüfstica. Passam essas publica­
Bagna (1995), Ferez (1991) e, do ponta de vista da ideologia neles contida,
çoes, como as gramaticas tradicionais, a ditar normas que se perdem na superficia­
em Nosella (1981). Por isso, neste trabalho, vou me concentrar basicamente
lidade, desconsiderando contextes jornalfsticos em que ocorrem, tornando-se,
portanto, praticamente inuteis [p. 42-43]. nos comandos paragramaticais, numa tentativa de cumprir a agenda proposta
por Scherre (1996: 37):
Os manuais sào inuteis, na prâtica, porque, como todos os comandos os estudiosos da linguagem, em especial os sociolingüistas, precisam discutir de
paragramaticais, operàm um enxugamento drâstico da complexidade das regras forma mais sistematica e mais incisiva todas as situaçoes de preconceito lingüfsti­
de funcionamento da lfngua, reduzem à dicotomia certo-errado fenômenos co, especialmente as veiculadas pela mfdia. f...) considero que, corn os resultados de
que as gramâticas normativas (nas quais se inspiram) se detêm a examinar que dispomos, nào temos o direito de nos omitir <liante das situaçoes concretas de
preconceito lingüistico. Mais do que isto: temos o dever de nos manifestar.
corn maior rigor e refinamento, ignoram cabalmente o fenômeno da variaçào
lingüfstica e desprezam as condiçêies de produçào de um texto:
2.4.3 0 conservadorismo gra��tical como noticia e bem de consuma
Essa simplificar,.'iio dos Manuais revela a dificuldade de seus autores para discutir
problemas lingüfsticos como o da norma e o do proce�so de variaçào sociocultural É inegâvel a importância desses CP clâssicos e modemos como forma­
e geografico da linguagem. Os Manuais que, hoje, se tomam uma "moda" no en­
sino de redaçào, invadindo algumas escolas e vindo a funcionar precariamente
4o
dores de opiniao (leia-se: como �«mJ(.!J:!:!adores da ideologia rreco11c_e.ito
lingüfs,ttso). A prova mais eloqüente disso é o espaça qùe eles vêm rece­
como livros didaticos, pequenas gramaticas de incorreçàes na lfngua escrita, na
bendo, na imprensa, como notfcia merecedora de destaque, como por exem­
verdade divulgam urna filosofia de avaliaçào da lfngua extremarnente discutfvel,
quando nào pretensiosa [p. 44]. plo, o convite feito a Pasquale Cipro Neto, representante maior, talvez,
desses CP, para ser entrevistado nas prestigiosas paginas amarelas da revista
0 fato é que os manuais de redaçào cumprem uma dupla f�n_çà(), a Veja (10/9/97). Ou a matéria "O português estâ no ar", assinada por Sérgio
primeira delas explfcita e declarada - auxiliar quem pretende escre\ler Limolli, publicada em IstoÉ (20/8/97), e que vale a pena reproduzir por ser
"certo" -; a segunda implfcita e dissimulada, de carâter nitidamente
·· ideo- uma sfntese oportuna da funçao ideol6gica e do teor preconceituoso dos
l6gico, como destaca Dias (1996: 44-45): comandos paragramaticais:
Em tese, a divulgaçào dos Manuais, ao mesmo tempo em que, por um lado, pro­ Fala-se mal o português. Ou melhor, fala-se errado. Ninguém agüenta mais ouvir
picia ao leitor a possibilidade de fiscalizar a execuçao do jomal, levando-o a crer, crrosgro��âotÏpo"houveram acidentes" ou "é para mim fazer". Para os mais
por exemplo, que notfcias bem escritas significarn apuraçao dos fatos igualrnente letrados, essas agressôes ao idioma têm ferido tanto os ouvidos que se decidiu
eficiente; por outra, atende à preocupaçao dos jamais corn a formaçao de urn partir para um contra-ataque. Pelo menos três radios de Sào Paulo e uma emis­
publico leitor espedfico que seja receptivo e se identifique corn o discurso produ­ sora de televisào estào veiculando pequenos inserts de especialistas corn dicas
zido. Ern outras palavras, diriamos que se estabelece uma relaçao de dupla legiti­ para nào maltratar tanto a lfngua màe. Longe de se parecerem corn aquelas
midade, de mutuo reconhecimento, corn a caracterizaçao de um emissor autorizado modorrentas aulas de gramatica cheias de regras que ninguém sabe bem para que
a dizer e de um receptor apto para compreender o dito, ou seja, "os que falarn servem, essas intervençoes sào antes de mais nada bem-humoradas. Ensinam o
considerarn os que escutarn dignos de escutar e os que escutarn consideram os que que se pode chamar de gramatica de resultados. Ou seja, dicas uteis e sem com­
falam dignos de falar" (Bourdieu). plicaçàes das expressôes mais usadas no dia-a-dia.
A crftica dos outras três elementos formadores do cfrculo vicioso do Uma dessas ofensivas veio da radio Eldorado AM de Sào Paulo. Basta sintonizar
preconceito lingüfstico - a Gramâtica Tradicional, a prâtica de ensino e a estaçao para ouvir o jomalista Eduardo Martins dar suas advertências em fla­
shes de um minuto chamados De palavra em palavra. Autor do Manual de Redaçao
o s livras clidâticos - jâ conta corn ampla bibliografia. No casa da GT, por
do Estadiio, Martins também faz aos sabados um programa de uma hora de dura­
exemplo, e de suas inevitaveis relac/\es corn o ensino, sem querer fazer um
çâo que leva o mesmo nome. Corn um tempo maior, aproveita para fazer entre­
levantamento exaustivo, é possfvel citar Batista (1997), Britto (1991, 1997), vistas e responder duvidas dos ouvintes. Desde que entrou no ar, em maio, ele
Geraldi (1991, 1996), Ilari (1986), Luft (1986), Mattos e Silva (1994, recebe a média de 60 cartas por semana. Para Martins, essas solicitaçoes retratam

98 99
Dram6tica da lingua po!luguesa Do milo ao preconceilo: os comandos paragramalicais

o quanto os brasileiros estl'io fracos no pr6prio idioma. "As escolas estl'io ruins e corn sucesso ha muitos anos. Se se quer saber como funciona o metrô, deve-se
as pessoas nl'io sabem nem consultar um dicionario", diz. consultar um engenheiro e nao um 'Jsuârio habituai <lo trern. E se se quer saber
[Sob foto de Martins na mesma pagina, a legenda: "S6 fndio fala pra mim fazer"]. coma a lfngua funciona, deve-se consultar um lingüista e nâo alguém que usou
" a lfngua corn êxito no passado. Em todos esses casas, o raciocfnio é o mesmo: os
0 precursor dessas aulas-relâmpago é o professor de português Pasquale Cipro
usuârios nâo precisam ter um conhecimento consciente de como um sistema
Neto, 42 anos, que mantém desde marçxi de 1992 o Nossa l(ngua portuguesa na
funciona a fim de tirar proveito dele. As explica<,-'êies sobre o sistema requerem o
radio Cultura AM de Sao Paulo. Mas o sucesso aconteceu quando o programa foi
tipo de conhecimento que somente o especialista pode oferecer.
colocado na tevê em julho de 1994 pela Rede Cultura. A aceitaçl'io foi tanta que
Cipro vem sendo abordado por outras emissoras comerciais para protagonizar um Por mais talentoso que seja um poeta, um romancista, um dramaturgo,
programa semelhante. "Ja recebi convite de duas grandes radios de Sao Paulo", um jornalista no exerdcio de sua arte ou offcio, isso nao lhe garante o conhe­
diz. Tamanho sucesso garantiu a Cipro Neto estrelar a campanha publicitaria do
cimento minucioso e espedfico do funcionamento de toda a complexidade
McDonald's.
da lfngua, da qual é simplesmente um usuario competente (como, alias, todos
A radio Jovem Pan também saiu em defesa do idioma e investe no programa
os falantes nativos da lfngua). Quanto ao professor de português (isto é, de
S.O.S. l(ngua portuguesa, na voz do professor Odilon Soares Lemos, 63 anos, que
veicula suas liçoes em flashes de um minuta. 0 programa de Lemos come<,---ou gramatica normativa, como é o caso no Brasil), seu conhecimento, por maior
voltado para melhorar o desempenho de estudantes às vésperas do vestibular, que seja, de uma unica forma de utilizaçâo da lfngua - a norma escrita lite­
mas o interesse dos ouvintes cresceu tanto que hoje Lemos tem também a preo­ raria format conservadora veiq1lada pela Gramatica Tradicional - nao
cupaçl'io de dar dicas para o dia-a-dia, respondendo a perguntas dos ouvintes. lhe permite emitir pareceres cie�tificamente embasados acerca de todos os
"Nâo é o erro de português em si que é chocante. Pior é quem o comete. É duro fenômenos que caracterizam a linguagem humana, sua estrutura complexa
ver um senador da Republica cometendo um erro de concordância, coma o re­ e seus multiplos usos.
corrente 'fazem' tantos anos. Se essas pessoas pretensamente escolarizadas erram
No artigo de Arnaldo Niskier, que ja mencionamos na seçao anterior,
em publico, o que dira em suas casas?"
a importância dos comandos paragramaticais é devidamente reconhecida
Corno é fa.cil verificar, os comandos paragramaticais "modernos" em e louvada:
nada diferem de seus antecessores "classicos". 0 léxico empregado por Uma saudavel epidemia tomou conta da imprensa brasileira. Os grandes jomais
Limolli em sua reportagem tem estreiW parentesco semântico, por exem­ publicam alentadas seçoes de valorizaçl'io da lingua portuguesa, que alguns até ajudam
plo, corn o usado por Figueiredo ao longo dos três volumes de O que se nao a abastardar corn sua crônica e indesculpavel falta de cuidado. [...] Desses tempos
d.eve dizer. A mitologia do preconceito lingüfstico esta aqui presente em saudaveis de reaçao participa também a FoUUI, corn sua oportuna e bem escrita
seçl'io "lnculta e bela", assinada pelo competente Pasquale Cipro Neto, que também
expressôes como "erros grosseiros", "agressôes ao idioma", "maltratar a lfn­ produz em O Globo o "Ao pé da letra". 0 profes�or Sérgio Nogueira é autor de
gua mae", "saiu em defesa do idioma". A mais disparatada delas é, talvez, "Ungua Viva", no]omal do Brasil, enquanto Napoleâo Mendes de Almeida, durante
"os brasileiros estao fracos no proprio idioma" por nao significar absoluta­ muitos anos, deu liçoes admiraveis em O Estado de S. Paulo. 0 jomal carioca O Dia
mente nada do ponto de vista cientffico. presta a sua contribuiçl'io aos domingos, corn o "Na ponta da lfngua". E ha outras
Chama a atençao também, no texto, a referência a "especialistas" em exemples por af. A que se deve atribuir tamanho e subito interesse?
questôes lingüfsticas: um é jornalista e os outros dois, professores de portu­ [...] Arriscamo-nos a uma interpretaçl'io, sempre passfvel de discussâo. Em primeiro
guês, isto é, de gramatica normativa. Nao se faz a menor mençao à Lingüfs­ lugar, pode-se registrar o fato, facilmente comprovâvel, de que nunca se escreveu
e falou tâo mal o idioma de Ruy Barbosa. Cuipa, quem sabe, da deterioraçl'io do
� tica nem aos pesquisadores do português do Brasil, empenhados em deze­
nosso sistema de educaçiio basica. Em segundo, o rouco apreçxi que devotamos
nas de projetas cientfficos sediados nas principais universidades e centros ao gosto pela leitura. Nosso fndice per capita mal alcança dois livros por habitante;
de pesquisa do pafs. 0 termo "especialista" usado por Limolli é completa­ na França, por exemplo, oscila em tomo de oito.

l
mente inadequado. Corno dizem Bauer & Trudgill (1998: xvi): [...] Em terceiro lugar, para nl'io ir muito longe, podemos citar a "contribuiçl'io" dos
Acreditamos que, se se quer saber accrca da fisiologia respirat6ria humana, deve­ meios televisivos. Donos de uma força descomunal, salvo as exceçêies de praxe,
se consultar um médico ou um fisiologista, nâo um atleta que vem respirando como os programas gerados pela TV Cultura de Sâo Paulo, praticam um magistral

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l

Drom61ico do linguo porlugueso Do mita oo preconceifo: os comondos porogromoticais

desserviço à educaçào brasileira. Comunicadores falam mal, atores nào se expres­ Outra "explicaçao" proposta por Niskier para o "abastardamento" da
1 sam adequadamente, dublagens sào feitas de forma chula, programas infantis dese­ !fngua de hoje é o "magistral desserviço à educaçao brasileira" prestado
ducam: o que se pode esperar desse triste universo? pela televisao. Se é verdade que a televisao publica brasileira manifesta um
[...] A conclusao é que se deve cuidar dessa matéria de forma inteligente, sem sistematico descaso pela elevaçao do nfvel de informaçao e formaçao dos
patriotadas, mas corn objetividade, no sentido de valorizar o idioma de Machado espectadores, também é verdade que a influência da televisao na lfngua e,
de Assis e Eça de Queir6s. Se a nossa patria é a lfngua portuguesa, por que nào
cuidar dela?
sobretudo, na mudança lingüfstica, esta muito longe de ser a descrita por
Niskier. Trata-se agui de dar roupagem "eletrônica" à acusaçao que sempre
Esse artigo do entao presidente da Academia Brasileira de Letras contribui foi feita, pelas "defensores" da lfngua, contra a imprensa escrita (acusaçao,
corn a revelaçao de alguns novos mitos para a galeria do preconceito lingüfs­ alias, que Niskier nao deixa de fazer também), e que se encontra, como ja
tico. Entre eles o de que "nunca se escreveu e falou tao mal o idioma de Ruy citei na seçao anterior, ao longo dos três volumes da obra de Cândido de
Barbosa" por causa do "pouco apreço que devotamos ao gosto pela leitura". Figueiredo e das quase quinhentas paginas do livro Nêio erre mais!, de Sacconi.
A comparaçao que faz a seguir entre os fndices de leitura do Brasil e da Ora, na obra Lan'guage Niyths essa acusaçao aparece formulada como o
França é, no mfnimo, grotesca, uma vez que a França ocupa a 11• posiçao no mito n° 3: "A mfdia esta arruinando o inglês". Jean Aitchison, criticando
quadro do IDH (Indice de Desenvolvimento Humano), estabelecido pelas esse mito, transcreve queixas contra a "rufna" do inglês estampadas em
Naçôes Unidas para avaliar a qualidade de vida nos 175 pafses do mundo (a jomais de 1880! Assim, ela pode afirmar (in Bauer & Trudgill, 1998: 15):
primeira posiçao é do Canada), enquanto o Brasil, que em 1996 ocupava a "A ilusao de que nossa lfngua esta doente é portanto recorrente":
58• posiçao, caiu, em 1999, para a 79•, devido à sensfvel piora das condiçôes 0 inglês esta enferma, talvez até fatalmente doente, a julgar pelas queixas [...].
sociais dos brasileiros como um todo. Diante dessa diferença, um fndice per Essa m6rbida preocupaçao corn a saude do inglês nao é nova. A cada década,
capita de dois livras por ano, num pafs corn 60 milhoes de analfabetos plenos pululam "defensores" da lfngua coma sentinelas diante de velhos castelos. Compor­
e funcionais (numero igual ao da populaçao da França), é mesmo espantoso. tam-se coma se somente eles pudessem evitar que a lfngua seja reduzida a p6.
A afirmaçao, carente de todo fundamento ( embora o autor a considere Corno se vê, é um mito que existe em outras lfnguas e nao apenas no
"facilmente comprovavel"), de que "nunca se escreveu e falou tao mal o "fraco" português dos brasileiros. Segundo Aitchison, essa falacia se deve
idioma de Ruy Barbosa" equivale à de Limolli, no texto de IstoÉ, de que sobretudo à ignorância de como as lfnguas mudam, o que nao deve surpreen­
"os brasileiros estao fracos no proprio idioma". Talvez Niskier tenha razao
der, prossegue ela, ja que a mudança lingüfstica s6 passou a ser compreendida
em dizer que os brasileiros falam e escrevem mal o "idioma de Ruy Barbosa"
nas ultimas três ou quatro décadas. Ap6s investigar 150 anos de imprensa
e nao "valorizam o idioma de Machado de Assis e Eça de Queir6s". Afinal,
inglesa, dando como exemplo o aparecimento e difusao do uso do prefixo
tentar falar e escrever como os autores citados seria, nos dias de hoje, tao
mini"l a autora afirma:
anacrônico e ridfculo quanto se vestir à moda da época deles. Corno é ca­
A mfdia, portanto, é um espelho lingüfstico: ela reflete o uso corrente da lfngua e
racterfstico do discurso ideol6gico, também agui o ideal perde-se nas brumas
o propaga. Os jomalistas sào observadores atentos que apreendem rapidamente as
do passado, enquanto o presente é triste e sombrio8 • Mais uma vez, em formas novas e as divulgam para uma platéia mais ampla. Normalmente eles nao
coerência corn a mitologia do preconceito lingüfstico, o padrao a ser imita­ inventam essas formas, nem estao corrompendo a lfngua. 0 radio e a televisao
do - na fala ou na escrita e em todas as situaçôes e contextos de uso da reproduzem as varias maneiras de falar que ouvimos à nossa volta, nao as inventam.
� lfngua - é a lfngua escrita literaria formai, cristalizada nas opçôes estilfsticas,
profundamente idiossincraticas, de uns poucos autores eleitos como modelas No mesmo livra, J. K. Chambers analisa o mito (n° 15) de que "a tele-
perfeitos de "pureza" idiomatica. visao faz todo mundo falar igual". Em conclusôes baseadas em pesquisas, o
autor afirma que o maxima que a televisao consegue é difundir alguns bor­
B. 0 apego ao passado esta simbolizado até na grafia "Ruy", corn y, quando a pr6pria Academia dôes (catch�phrases) que, mais efêmeros que.a gfria, pertencem, durante o
Brasileira de Letras recomenda a atualizaçào ortografica dos nomes de personagens hist6ricos. perfodo de sua vigência, ao nfvel lingüfstico mais superficial, o léxico. No

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Dram6tica da lingue portuguesa Do mito aa preconceita: os comondos porogromolicais

Brasil, esses bordoes entram na fala comum oriundos sobretudo de perso­ 0 que os sustentadores da ideologia gramatical-normativista lamen­
nagens caricaturais de programas humorfsticos ou, em menor escala, de tam, na verdade, é o "rebaixamento", nao do que eles chamam de "a lfn­
telenovelas. A vida util desses bordoes é igual à do proprio programa ou gua", mas do poder falar/ouvir e do poder ler/escrever. Reservado durante
telenovela de que provêm, sendo raros os casos de sobrevivência mais pro­ séculos a uma mfnima elite de letrados (quase todos homens, quase todos
longada que isso. Citando alguns deles, extraîdos da televisào e do cinema brancos: os "baroes doutas" a que se refere Joào de Barros em seu Dio.logo
de lfngua inglesa, Chambers (in Bauer & Trudgill, 1998: 126) diz: em louvor da nossa linguagem, de 1540), esse poder falar/ouvir-poder ler/escre­
Diferentemente das mudanças fonéticas e sintaticas, essas mudanç�1s lcxicais [os
ver foi, no final do século XIX e ao longo do século XX, propagando-se por
bordéies) baseadas na mîdia se assemelham a afctaçôes. As pcssoas percebem-nos todos os nfveis da sociedade. A impressionante revoluçào tecnol6gica deste
quando outras as usam, e conhecem sua fonte. E, ao que parece, consideram-nas perfodo - maior que a de toda a historia da humanidade até entao -
como prototipos para outras mudan�--as na lfngua. Se os meios de comunicaç:ao de provocou o surgimento de meios de comunicaçâo cada vez mais velozes e
massa conseguem popularizar palavras e expresséies, logo, raciocina-se, prcsumi­ cadà vez mais acessfveis a praticamente todos os estratos sociais. A pr6pria
velmenre também podem difundir outros tipos de mudanças lingüfsticas. palavra escrita deixou de ser vefculo unico de transmissao de informaçoes,
Toma-se uma grande surpresa, entiio, descobrir que niio e:xistem pruvas de que a tel.evisâo conhecimentos, ideologias e de manipulaçao das massas. 0 radio, a televisao,
e outras mî'dias pop11lares disseminam 011 influenciam m11danças fonéticas 011 inovaçàes o cinema, a câmara fotografica, o gravador, o toca-discos, o vfdeo-cassete,
sintaticas. A prova contra isso, na verdade, é indireta. Na maioria dŒ casos, ela
o CD-player etc. dispensam o çonhecimento mesmo da escrita, uma vez
consiste da falta de prova onde esperarfamos encontrar fortes efcitos positivas.
que recorrem ao som e/ou à imagem (estatica ou em movimento), corn seu
Segundo Chambers, é sabido que as variedades regionais continuam a poder de comunicaçào e persuasao muito mais imediato, graças ao apelo a
divergir das variedades cuitas urbanas apesar da exposiçâo dos falantes da­ diversos sentidos: visào, audiçào, tata.
quelas variedades à televisào, ao radio, ao cinema e a outros meios de comu­ Para que tal comunicaçào fosse eficiente, foi preciso retirar "a lîngua"
nicaçào. A divergência dialetal mais bem estudada é a dos guetos negros do restrito universo literario-ret6rico-liturgico em que permanecera durante
<las grandes cidades dos Estados Unidos, onde a variedade dos afro-america­ séculos e trazê-la para mais perto de seu novo e crescente publico. (Uma
nos mais segregados soa cada vez menos parecida corn a de sua contrapartida comparaçào da linguagem empregada em jornais do século XIX, em que
branca. No cntanto, esses grupos sào avidos consumidores de mass media e abundavam recursos que hoje chamarfamos de "literarios", num uso pejora­
passam de quatro a cinco horas por dia <liante da televisao. tivo do termo, corn a empregada em jornais do século XX evidencia este
Outra prova interessante, apresentada por Chambers, é a de que os processo de adaptaçào dos meios de comunicaçào a um publico leitor mais
meios de comunicaçào nào sào capazes de oferecer o estfmulo necessario amplo e mais diversificado.) Mas nem por isso deixou de também ser empre­
para a aquisiçào da lfngua. 0 experimento feito corn filhos de pais surdos gada para a investigaçào filos6fica e cientffica mais profunda, a pratica
é revelador. Pais que nâo podiam ouvir nem falar submetiam os filhos peque­ ret6rica mais rebuscada, o exercfcio estético mais criativo e sublime. 0 pro­
nos a muitas horas de televisào e radio por dia, na esperança de que isso os blema, contudo, esta precisamente nesse também, que os tradicionalistas
levaria a falar normalmente. No entanto, essas crianças s6 passaram a fala'r desejariam que fosse tao somente.
quando entraram em contato com seres humanos reais em situaçxies de uso Esse perfodo assistiu a democratizaçào do ensino, a popularizaçào da pa­
efetivo da ifngua. lavra escrita, a expansao gigantesca dos meios de reproduçâo da fala - seu uso
\ A conclusao de Chambers é de que a televisào é que "carre atras" da na publicidade, nos comfcios polfticos, nas assembléias sindicais, nas torcidas
mudança lingüfstica, tentando ajustar-se a ela, e nào vice-versa. esportivas, nas grandes festas de rua, nas brigas de trânsito, nas conversas
A interpretaçJo ("scmprc passfvel de discussào") dada por Niskicr à telefônicas de todo gênera etc. Mas nada disso autoriza a diagnosticar a "morte"
"saudavel epidernia" gramatiqueira que invade a mfdia e a multimfdia brasi-. do idioma, muito pelo contrario.
le ira inspira-se em meras suposiçoes preconceituosas, sem nenhuma base' 0 que os tradicionalistas temem, de fato, sob o disfarce da "rufna do
cientffica, portanto. idioma", é a rufna de uma determinada ordem social. Sua ânsia de preservar

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Dramética da lingue portuguesa Do mito ao preconceito: os comandos paragramaticais

uma aristocracia lingüfstica é o lado visfvel de sua ânsia de preservar uma lfngua tribal, lfngua despreparada para vôos mais sublimes, coma bagunça,
aristocracia polftica, econômica e cultural. Nao admira que façam da televi­ pode, sim (p. 32),
sao e do jornal, meios de comunicaçao de massa, seus alvos prediletos de de­ • Os jomais e revistas brasileiros - e os telejomais - erram muito mais do que
nuncia do "caos do idioma". lsso explica também por que as gramaticas se poderia esperar num trabalho hoje feito por gente teoricamente de nfvel
universitario. É gente formada em faculdade, mas, como esse nfvel universitario
normativas continuam, até hoje, contra todo o bom-senso, a oferecer como
nao existe na pratica, fica af o advérbio. [...] Se nao sao eliminados [os erros],
modela de lfngua a pratica lingüfstica dos ficcionistas e poetas, que sempre
é que o nfvel baixou tanto que ninguém [ .. ,] nas nossas redaçxies sabe mais o que
foram uma fnfirna minoria dos usuarios da lfngua e, sobretudo, usuârios seja a norma cuita, que a imprensa tem obrigaçao de seguir. Fala-se e escreve­
especialfssimos, que s6 podern atingir sua individualidade artfstica justamen­ se, nos telejomais e nos jamais e revistas, atualmente, o português mais rasteiro,
te quando rnodificam, subvertem, ultrapassarn as normas e imprimem à lfn­ a linguagem usada é a mais vulgar, o nfvel é o mais baixo (p. 99).
gua sua marca pessoal.
É a voz recorrente dos profetas apocalfpticos que ecoa através dos sécu­
Nada mais paradoxal, portanto, do que uma gramatica normativa que
los, pregando aos que pecath contra a lfngua: "Arrependei-vos, pois o fim
quer dar corno lfngua exemplar a pratica daqueles que sempre se empenha­
esta pr6xirno". 0 padre e escritor português José Agostinho de Macedo
ram por se diferenciar do usa lingü(stico corriqueiro, por avançar para além do
(1761-1831) ja bradava:
normal. Enquanto insistirem em abonar suas regras e definiçôes corn textos
literarios, as gramâticas normativas (e os dicionârios corn elas) permanecerao Se nao existissem livras compostas por frades, em que o tesouro esta conservado,
d�ntro em pouco podfamos dizer: - Ora morreu a lfngua portuguesa, e nao des­
atadas a uma ideologia conservadora e entranhadamente antidemocratica.
cansa em paz (apud Lisboa, 1983: 42).
Os alarmistas, porém, carentes de formaçao e informaçao cientffica,
conseguem fazer ouvir suas prediçoes apocalfpticas, apoiadas em precon­ Rarnalho Ortigao (1836-1915), escritor e polftico português, tambérn
ceitos que, coma tenho argurnentado, estao de ta! modo impregnados em atacava os "sarrafaçais diligentes do jornalismo" e o gosto "pelas bobices
nossa sociedade que encontram audiência segura. Como diz Bourdieu ( 1996: reles e pelos chulismos crassas dos linguageiros sem gramâtica e sem escova
105): "Prega-se apenas aos convertidos". Os comandos paragramaticais têm de unhas" (apud Lisboa, 1983: 44), e conclui, no mesmo tom trâgico do
seu êxito garantido exatamente por isso: dizern o que as pessoas em geral ja autor de A imprensa e o caos na ortografia: "Temos a prosa histérica, abastar­
esperam ouvir. Assim se explica a repercussao, por exemplo, de um livro dada, exangue e desfalecida de uma raça moribunda" (ibid.) - isso ha
como A imprensa e o caos na ortografia (Castro, 1999), onde é possfvel Ier exatamente um século!
coisas como: Assirn, o que se pode comprovar é que
• Nao figue nenhuma duvida, o português do Brasil caminha para a degradaçao o apocalipse que hoje se anuncia coma pendente sobre a lfngua portuguesa é
total (p. 10- l 1). apenas mais um de entre varias apocalipses peri6dicos que ao longo dos anas os
• A grande imprensa no Brasil gosta de deseducar e de confundir (p. 17). nossos alarmados puristas têm vindo a anunciar coma sendo, todos eles, decidida­
mente terminais... A morte da lfngua é um pouco como a morte do romance -
• C'.,omeçava a descida acelerada que iria comprometer o português do Brasil como
um tema corn que se costumam entreter os especialistas, que gostam de a anunciar
lfngua de cultura. A um ponto tal que, neste fim de século, ou se toma uma
e lhe analisar, eruditamente, as causas e os efeitos. 0 romance, no entanto, vai
providência imediata, ou o português do Brasil estara irremediavelmente com­
sobrevivendo à sua anunciada extinçao. A lingua também. Os anjos anunciadores
\ prometido. Ja no século XXI deixara de ser uma lfngua de cultura... (p. 20).
é que sao passageiros e vao tende que se substituir uns aos outras, a hem da
• A educaçao ja nao é boa - e a imprensa ajuda a deseducar, dando sua larga persistência do tema. Dizia o poeta inglês Walter Savage Landor que "em termos
e generosfssima contribuiçao (p. 21). de crime, logo a seguir àquele que viola as leis do pafs, vem o que viola as da lfn­
• Hoje, no Brasil - e s6 no Brasil, nunca é demais insistir -, nao temos orto­ gua." Criminoso sera, mas digamos que se trata, para o caso, de um criminoso de
grafia nenhuma. Yale tudo. É o salve-se quem puder. Pergunta-se: pode so­ espécie particularmente incompetente, visto que nunca mais acaba de consumar
breviver um idioma assim? Como lfngua de cultura, é claro que nào. Coma o crime... [Lisboa, 1983: 46]

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Dramélica da lingue porluguesa Do milo ao preconceilo: os comondo� porogramolicais
11

2.4.4 Hip6teses para a neogramatiquice contemporâneo têm funçao similar aos dos livras e outras manifesrnçôes multimidiaticas de
Tentando achar uma resposta mais plausfvel ao novo vigor demonstrado "auto-ajuda": mostrar um caminho diferente, melhor, que permita ao indivf­
pelas comanàos paragramaticais, Britta e D' Angelis (1998: 3) sugerem: duo subtrair-se ao caos da modemidade estressante. ldeologicamente, a auto­
ajuda reforça a ilusâo de que a felicidade, a paz e a harmonia podem e devem
A atual onda preceptiva parece ser uma reaçao conservadora às novas propostas
de ensino, particularmente àquelas produzidas pela universidade brasileira e incor­
ser buscadas individualmente, deixando o resto da sociedade entregue a seu
poradas aos currfculos das Secretarias de Educaçao de varias estados e nos parâme­ proprio destina. É a negaçâo da necessidade da participaçâo coletiva na trans­
tros curriculares nacionais. Nao é casual que os que tâo veementemente denun­ formaçâo dos maclas reais e objetivos de produçao material da existência em
ciam os "maus-tratos cotidianos infligidos ao nosso idioma" ignorem as pesquisas · prol do estfmulo à "transmutaçâo" (alqufmica?) do "eu interior", de modo
lingüfsticas contemporâneas, particularmente aquelas que buscam descrever o que o indivfduo, "harmonizado consigo mesmo", "num plano espiritual supe-
funcionamento e a estrutura do português do Brasil, coma o projeta da Grama­ . rior", passa conviver sem estresse corn o sistema (que permanece intacto).
tica do Português Falado, levado adiante em seis estados brasileiros.
lnfelizmente para os novas fiéis, contudo,
Seria, portanto, uma reaçao da ideologia dominante contra as tentati­ Apesar de [a pratica normati'vista) nao interferir substancialmente no modo coma as
vas de subversâo das noçôes tradicionais de certo e errado, de correçiio grama­ pessoas falam e continuarao falando o português (sob esse ponta de vista, é in6cua),
ela tem efeito perverso em nfvel de representaçilo do que seja lfngua, escamoteando
tical, de norma padrao ou lfngua cuita, que sâo imprescindfveis à execuçao
o fenômeno da variaçao e inculcando na sociedade a idéia de que existe um padrao
do projeta de discriminaçâo e exclusâo social de amplos setores da popula­ lingüfstico superior e que a maiort:11 principalmente pobres, fala mal e pensa pior. Em
çao brasileira. outras palavras, o normativismo reforça o preconceito lingüfstico e social, sem tràzer
lgnorar os avanças obtidos pelas investigaçôes lingüfsticas cientfficas é, nenhum beneffcio à socicdade [Britta e D'Angelis, 199î: 3).
realmente, pratica comum dos comandos paragramaticais. Consultando, par
A auto-ajuda gramatiqueira oferecida pelos CP é in6cua porque a lfngua
exemplo, a bibliografia do livra Cam todas as letras, de Eduardo Martins,
muda incessantemente e, como diz Trudgill (in Bauer & Trudgill, 1998: 8), "nâo
lançado no infcio de 1999, dos 26 tftulos elencados nenhum é de obra cientf­
ha nada que eles possam fazer a respeito". Ja dizia Joâo Ribeiro (1921:14):
fica especializada: 10 sâo comandos paragramaticais "classicos", tal coma os
defini mais acima (entre os quais o Manual de Redaçao e Estilo do jomal 0 Perde-se um tempo enorme nessas cirurgias abusivas; instituem-se consult6rios
que numerosos clientes freqüentam corn a avidez da saude perdida. Corn essa
Estado de S. Paulo, de autoria do mesmo Martins); 11 sâo dicionarios de lfngua medicina truculenta sao inumeros os desenganados e os incuraveis.
e/ou de regências verbais e nominais, e 5 sâo gramaticas normativas.
Visto que ja arrisquei uma comparaçao entre Gramatica Tradicional, Os "defensores" da lfngua deveriam desistir de deter a mudançi lingüfstica
Astrologia e Alquimia9 , e coma essas duas ultimas "ciências esotéricas" se porque as lfnguas, na feliz expressâo de Trudgill, sâo sistemas auto-reguladores,
encontram, neste final de milênio, no auge da macla (comprova isso o dada que podem "ser deixados par sua pr6pria conta". Elas sâo auto-reguladoras por­
do mercado editorial brasileiro de que de cada 3 livras vendidos no pafs 2 que os falantes querem se entender um ao outro e ser entendidos. A auto-re­
fazem parte da categoria "esoterismo" ou "auto-ajuda"), pode ser que o atual gulaçijo da lfngua é que impede que venham à superffcie as sentenças agra­
movimento neogramatiqueiro se prenda a uma necessidade de buscar uma maticais, as "incorreçôes", as "ambigüidades" tâo temidas pelas sentinelas da
linguagem "pura", um c6digo "sagrado" ou "secreto" que permita uma comu­ norma canônica. Disso se apercebeu J.-J. Rousseau que, ja no século XVIII,
nicaçao mais "perfeita". Descrentes dos métodos tradicionais de ensino (tal escrevia:
.\ coma ha o descrédito das grandes religioes tradicionais), os novas peregrinos Que uma expressâo seja ou nao seja o que se chama de francesa ou de bom uso,
recorrem aos mestres iluminados do idioma, que têm as formulas secretas de nao é <lissa que se trata; as pessoas s6 falam e escrevem para fazer-se entender; desde
que sejamos intelig(veis, alcançamos nosso objetivo; mas quando se é clam, melhor
acesso ao nirvana da lfngua-padrâo. De faro, os comandos paragramaticais ainda. Fa lai, pois, corn clareza para quem quer que entenda o francês; essa a regra
e estai certo de que, mesmo cometendo uma demasia de cento e cinqüenta barba­
9. Cf. meu artigo "Astrologia, Alquimia e Gramatica: três doutrinas esotéricas",Jomalde Bra­ rismos, nao tereis escrito menas bem. Vou ainda mais longe e sustenta que é
s(lia, 14/11/1999, p. 5-C. mister, às vezes, cometer erras de gramatica para ser clam; é nisso e nâo em todas

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Drornéfico do lingue porfugueso Do miro oo preconceito: os cornondos porogrornoficois

as pedantice, do purismo que consiste a verdadeira arte de escrever [apud Leite, preconceitos, roda uma série de condutas, atitudes, idéias e crenças "erradas"
1999: 197; grifos meus]. e "feias" - dos provaveis colegas vindos <las camadas socioeconômicas mais
Nessa linha de raciocfnio, Trudgill teve um antecessor ainda mais remo­ baixas. Ao mesmo tempo, modificou-se também o perfil dos professores em
to em Santo Agostinho (século IV-V), que declarou: Melius est reprehendant geral e dos professores de lfngua em particular. Com a desvalorizaçao da
nos grammatici quam non intelligant populi ("melhor sermos repreendidos profissâ.o, representada sobretudo pela diminuiçâ.o progressiva dos sala.rios, o
pelos gramaticos do que nâ.o entendidos pelo povo") 1°. magistério deixou de ser carreira procurada, como até ha algumas décadas,
Inês Signorini11 sugere como-explicaçâ.o para o vigor atual dos coman­ por membros de uma porçao da classe média urbana que mantinha contatos
dos paragramaticais a grande transformaçao que tem sofrido, em ritmo muito mais estreitos do que hoje com certa cultura livresca, representada pelo
acelerado e em perfodo recente, a "norma pedag6gica" no Brasil, a "lfngua conhecimento do latim e do francês, dos "classicos" da literatura e da norrna
da escola", opiniâ.o que coincide corn a de Mattos e Silva (1995: 53): lingüfstica por eles empregada, e de outras componentes do que se chamava
Nâo se pode mais falar no Brasil do "dialeto da escola", como às vezes se faz, a nâo "cultura geral". Corno lembra Pereira (in ABL, 1999: 99):
ser entendido como heterogêneo, ja que vai longe o tempo [...] em que a escola Atualmente é comum ouvirmos homens e mulheres de sucesso saudosos da escola
preparava o indivfduo para uma "lfngua neutra". publica do seu tempo. Ela era boa ( embora nem todas) porque abrigava indivfduos
oriundos de uma elite econômica [...]
Ao lado dessa transformaçâ.o (que os "defensores" da lfngua chamam
de "corrupçao" ou "decadência") das variedades lingüfsticas usadas como Os professores de lfngua p@rtuguesa na atualidade provêm, em boa
instrumenta pedag6gico, Signorini aponta o uso cada vez mais amplo e parte, de camadas urbanas, sim, mas que ja incorporaram traças lingüfsticos
generalizado das variedades nâ.o-padrâ.o no meio de comunicaçâ.o de massa que caracterizavam, anteriormente, variedades mais rurais do português do
mais poderoso de todos em nossa sociedade: a televisâ.o. Varnos refletir urn Brasil. Determinadas opçôes fonéticas, sintaticas e morfol6gicas que hoje
pouco sobre essas duas instâncias de uso da lfngua. sâ.o moeda corrente na fala de professores de português seriam objeto de
No caso da escola, como bem analisa Castilho (1998: 9-10), o veloz horror e condenaçâ.o da parte dos professores de duas ou três geraçôes atras,
processo de urbanizaçao do Brasil fez com que as cidades, em poucas déca­ que zelavam pela manutençâ.o de um padrao lingüfstico o mais pr6ximo
das, recebessern um contingente enorme de ex-moradores das zonas rurais, possfvel de um ideal classicizante, em cujo panteao figuravam, entre outras,
obrigando os poderes publicos a atender, bem ou mal, à geometricamente Machado de Assis, Rui Barbosa e Olavo Bilac. Mas esse padrao esta muito
crescente demanda de vagas nas escolas publicas. Em conseqüência disso, distante da realidade cultural e social do Brasil desta virada de século. Corno
segundo Castilho (ibid.), bem avalia Leite (1999: 203):
a incorporaçao de contingentes rurais alterou o perfil sôcio-cultural do alunado Em verdade, houve um esgotamento da força da norma prescritiva, porque o pro­
de 1 ° e 2° graus. Nossas escolas deixaram de abrigar exclusivamente os alunos da cesso de massificaçao trouxe, naturalmente, para a escola, a concorrência de outras
classe média urbana - para os quais sempre foram preparados os materiais dida­ normas lingüfsticas e nâo contou corn condiçx'ies para equacionar o problema.
ticos --- e passaram a incorporar filhos de pais iletrados, mal chegados às cidades
e a elas mal adaptados. Essa situaçao também foi analisada por Mattos e Silva (1995: 53), que
alerta:
A isso podemos talvez atribuir a grande migraçao dos filhos das classes [...] nâo se deve perder de vista que hoje ha um numero significativo de professores
médias urbanas tradicionais para as escolas particulares, na esperança de evitar que, certamente, nao dominam o padrâo preconizado pela escola; decorrente dessa
\ o contato deles corn a fala "errada" - e, junto corn ela, segundo a l6gica dos realidade lingüfstico-social, existem hoje, no interior da escola brasileira, variantes
dialetais nâo sô usadas pelos alunos, mas também pelos professores [...].
10. Apud llari, 1999: 63.
11. Em comunicaçào pessoal, via mensagem eletrônica. As citaçèies que faço a seguir silo ex­
De faro, construçôes sintaticas do tipo para mim fazer - um dos alvos
preferenciais de ataque insistente dos comandos paragramaticais - sao
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trafdas de uma série de mensagens enviadas pela lingüista lnês Signorini em resposta a questiona­
mentos e duvidas de minha parte. cada vez mais freqüentes na fala de professores na cidade de Sao Paulo,

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Dram6tica da lingue porluguesa Da mita aa preconceilo: os comandos paragramaticais

como tenho verificado pessoalmente em visitas a escolas publicas desta chocantes, preconceituosos e degradantes, fazendo o espectador (sobretudo
Capital. Seria interessante objeto de pesquisa coletar e analisar a "lfngua o de classe média) associar faia nao-padrào corn cornportamentos aviltantes
dos professores de lfngua" e avançar hip6teses para o que podera vir a ser, e atitudes grotescas.
no futuro, a variedade urbana cuita das grandes cidades brasileiras. Para Signorini, os comandos paragramaticais, que sempre existiram,
Resumindo os problemas trazidos pela massificaçâo do ensino, Pereira (in ressurgem agora- corn muito mais visibilidade na mfdia, corn s�a-"cara de
ABL, 1999: 99-100) assinala os seguintes pontos, merecedores de reflexao: novo" e sua tentativa de descomplicar e dar respostas simples e rapidas: "o
1) a falta de preparaçâo dos professores para atender a uma clientela tao diver­ certo é assim e pronto" - coma uma tentativa de preservar a todo custo
sificada quanta numerosa, cujo perfil é na maioria dos casos desconhecido - em contraposiçâo ao aparente caos da heterogeneidade lingüfstica con­
deles; temporânea, cada vez maior e mais premente - uma norma-padrao que
2) a falta de conhecimento do pluralismo lingü(stico, levando os mestres a en­
na pratica ninguérn mais fala ou escreve, mas que eles consideram ser a
sinar apenas a descriçâo do sistema; "melhor", a mais "pura", a mais "bonita", a "adequada", a "racional". Nessa
defesa intransigente de um ,padrao lingüfstico em vias de extinçâo - pa­
3) a ausência de dia.logo entre as pesquisas lingüfsticas e o dia-a-dia da sala de
aula;
drao que é, de fato, uma régua sirnb6lica usada para medir outras coisas
além do rnero "saber gramâtica" (coma vimos nos Mitos 7 e 8), e um
4) o distanciamento entre a fala do aluna e a norma cuita preconizada na escola; mecanismo de preservar urna qrdern social (as instituiçoes, cf. Bourdieu,
5) a falta de atrativo do ambiente escolar, se comparado à seduçao das propostas 1996) e uma "ordem do discurso" (cf. Foucault, 1971) -, eles recusam o
veiculadas pela m(dia; tratarnento cientffico dos fenôrnenos da lfngua e criticarn até mesmo as
6) a ma remunerac,'ào dos professores, reflexo do seu desprest(gio no elenco pro­ novas posturas das instâncias oficiais de ensino, condensadas nos Parilmetros
fissional; Curriculares Nacionais, acusando a Lingüîstica de "nivelar por baixo" e pro­
7) o desinteresse demonstrado pelas nossas lideranças polfticas nos projetas efe­ rnover o "vale-tudo" em termos de grarnatica (Cipro Neto, em mesa-redonda
tivos de educaçâo. de que participei ao lado dele, chegou a falar de "lingüistas bicho-grilo" e
"lingüistas ortodoxos", seja isso la o que for! Mais recentemente, tachou de
Chama a atençâo, na lista acima, o item 3 sobre a ausência de dialogo "deslurnbrados" os que nos opornos à sua maneira acientffica de encarar os
entre a pesquisa lingüfstica e a escola. Acredito que é precisamente nesse fenômenos da lfngua) 12•
vacuo, nesse hiato entre a pesquisa e a pratica·pedag6gica que vieram se Aplica-se corn justeza aos comandos paragramaticais a seguinte ana.lise
instalar os comandos paragramaticais, corn suas formulas prontas, sua auto­ de Bourdieu (1994: 31-32):
ajuda gramatical, seu self-service grarnatical. 0 trabalho necessario para produzir à luz do dia a verdade, e para fazer corn que,
Quanto à televisao, pode se verificar urn fenôrneno sernelhante ao que uma vez produzida, seja reconhecida, esbarra nos mecanismos coletivos de defesa,
ocorreu, na escola, na relaçâo publico-privado. Setores cada vez mais amplos que tendem a assegurar uma verdadeira denegaçâo, no sentido de Freud. A recusa
da classe média e alta, urn tanto chocados corn o que classificarn de "vulgari­ em reconhecer uma realidade traumatizante sendo proporcional aos interesses
dade", "apelaçâo" e "baixo nfvel" de boa parte dos prograrnas transmitidos defendidos, compreende-se a violência extrema das reaçôes de resistência que
pela televisâo aberta, estao buscando a televisâo por assinatura como alter­ suscitam, entre os detentores do capital cultural, as ana.lises que trazem à luz do
dia as condiçôes de produçâo e de reproduçâo denegadas da cultura: àqueles
!\ nativa de entretenimento e informaçâo. Os prograrnas da televisao gratuita,
! numa tentativa talvez de conquistar um publico sernpre mais nurneroso 12. "S6 deslumbrados podem pensar que a missâo [de ensinar português] seja f:icil, e seja
nas carnadas populares, dao amplo espaça a falantes de variedades lingüfs­ possfvel reduzir tudo à farta e preconceituosa distribuiçâo de r6tulos de 'preconceituoso' ou 'nâo
ticas nao-padrao (ou a pessoas que arrernedarn, corn fins caricaturais, essas preconceituoso'." (Cult, n ° 23, junho/99, p. 28). "Mexer corn a lfngua e a linguagem no Brasil
nâo é tao simples coma julgam alguns deslumbrados" (Cult, n° 26, setembro/99, p. 25). Corno
variedades). É larnentavel que esse usa (e abusa) das variedades nao-padrâo ja disse em nota de rodapé anterior, o autor nâo identifica quem sâo os "deslumbrados" a que se
ocorra conjugado corn a apresentaçâo de cenas, depoirnentos e reportagens refere nem par que assim os qualifica.

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Dram6tica da lingue porluguesa Do mito ao preconceilo: os comandos parogramalicais

devotados a pensarem-se sob as espécies do unico e do inato, essas analises revelam a pergunta vem sempre: afinal, se nao é para ensinar gramatica "como diz a
apenas o que é comum e o que é adquirido. Lingufstica", é para ensinar o quê? lsso explicaria, decerto, o tremendo sucesso das
iniciativas da mfdia e da multimidia em seus investimentos nesse campo.
Diante de minha argumentaçào de que os comandos paragramaticais
tentam preservar uma "norma" 13, Signorini pergunta se o que eles se esfor­ Convém, portanto, reconhecer que os lingüistas, no que diz respeito ao
çam em preservar ensino da !fngua portuguesa, ainda nao se deram conta integralmente do
nào seria a idéia ou o imagindrio de uma norma/11 Pois nao é corn uma duzia de pape! (social e polftico) que lhes cabe desempenhar. Para o professor que se
regras que se descreve uma norma. Veja o caso do NURC: quando os pesquisadores debate diariamente corn as duvidas e os problemas que surgem a todo mo­
foram de fato descrever a nonna, acharam normas. No caso dos comandos, a idéia mento em sua atividade pedag6gica, de nada vale dizermos que a gramatica
da norma que é preservada é mesmo a tradicionalmente projetada pela instituiçao tradicional "ja era" se fazemos isso "sem trazer altemativas metodol6gicas
escolar e que tem a funçao de gate-keeper para outras instituiçôes, como provam
significativas", como hem enfatiza Signorini, sem oferecermos material concreto
os concursos de todo tipo. Se essa funçao tivesse desaparecido, quem acreditaria
neles? Veja o caso do aluno da UNICAMP ou da USP que sai da universidade e tem e palpavel parasubstituir os compêndios tradicionalistas. Ao criticarem a GT
provas diarias de que essa funçao é real e mais concreta que tudo que possa ter e o normativismo, os lingüistas (a hip6tese é minha) talvez tenham conse­
visto em Lingüfstica. guido produzir um efeito colateral indesejado: justamente, como afirmei mais
acima, a erupçao numerosa e multifacetada dos comandos paragramaticais
Na avaliaçao de Signorini, os produtos multimidiâticos oferecidos pelos
que, sob a aparência do "novo", parecem vir preencher, satisfatoriamente e
comandos paragramaticais têm, entre seus consumidores, os mesmos profes­
sem rodeios, as lacunas denunciadas pelas teorias lingüfsticas - embora as
sores de português a que nos referimos mais acima. Segundo Castilho ( 1998:
13), 80 por cento dos professores da rede publica do estado de Sao Paulo preencham, de fato, corn a doutrina e as regras da GT. Ha, par conseguinte,
se formaram em faculdades privadas, onde receberam uma formaçào conser­ uma necessidade urgente de criar ou estreitar as conex6es entre a reflexao
vadora, corn râpidos acenos a teorias lingüfsticas, muitas jâ ultrapassadas. acadêmica e a pratica pedag6gica, para reduzir a distância entre o que se
Carentes, assim, de uma base cientffica (e crftica) mais rigorosa, sentem a aprende na universidade e o que se ensina em sala de aula.
gravidade dessa falta e tentariam compensa-la recorrendo ao que chamei Cabem agui, finalmente, algumas palavras, inevitaveis, sobre o pape!
acima de auto-ajuda gramatical, e se deixariam convencer pelos comandos da acaàemia, no sentido de instituiçào de ensino superior, como importante
paragramaticais de que nao "sabem português", de que "português é muito elo de transmissao das concepçoes lingüfsticas tradicionais. Seria desonesti­
diffcil", de que "é preciso saber gramâtica" etc. dade intelectual acusar cxclusivamente os professores de lfngua, os autores
Signorini acredita que os comandos paragramaticais de livros didaticos, os responsaveis polfticos pela educaçao e mesmo os
animadores dos comandos paragramaticais como responsaveis por manter
convencem justamente de que o que esta valendo mesmo é a velha gramatica. Nao
se pode esqueccr que as teorias lingüisticas, apesar de nao "absorvidas" de fato, girando, na nossa cultura, o drculo vicioso do preconceito lingüfstico .
serviram para deslocar muitas certezas do professor, sem trazer alternativas Afinal, a grande maioria dessas pessoas (senao todas) receberam sua forma­
metodol6gicas significativas. Basta olhar o livra didatico. Os comandos vêm e aca­ çao em instituiçoes onde, supostamente, deveriam entrar em contatci corn
bam de vez corn as <luvidas, corn o receio de que ensinar gramatica é antiquado, de as teorias cientfficas e as metodologias pedag6gicas mais avançadas em
que "nao se deve falar de erro corn o aluna", e outras maximas vendidas como
seus campos de conhecimento. No entanto, seria ilusao pensar assim. Ao
modemas, atualizadas, etc. Digo isw porque em todo curso que dou para professor,
lado de grupos de pesquisadores empenhados em renovar as concepçoes de
13. 0 termo norma e a confusao de conceitos a que ele da margem sera.a discutidos no lfngua e de ensino de lfngua existe também um grande numero de docentes
pr6ximo capftulo. apegados à tradiçao gramatical, senao por opçao ideol6gica consciente, ao
14. Cf. Gcraldi (1996: 59): "Na verdade, nao é concretamente a lfngua padrao contempo­ menos por comodismo e preguiça de enfrentar o desafio de encarar, de uma ;\
rânea que ind1ca as estigmatizaçôes, mas uma certa 'imagem de lfngua correta e adequada' a 1'
responsavcl pelas qualificaçôes postas em pratica pelas falantes, quer professores, quer nào­ . perspectiva diferente, os objetos de estudo que a tradiçao ja lhes entregou
professores." prontos, definidos e conceituados. 0 exerdcio do preconceito lingüfstico

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l! Drom6ticu do 1inguo portvgun,u

par parte desses "intelectuais tradicionais", para usar a conhecida termino­


logia de Gramsci, nao é menos nocive à sociedade do que o praticado pelos

f comandos paragramaticais, quase sempre acusados (até por esses mesmos
� representantes da elite universitaria) de terem formaçao cientffica insufi­
ciente, de nao se dedicarem à pesquisa, de se basearem em concepç6es
1 ultrapassadas.
1 Para o sociolingüista, os comandos paragramaticais têm, por outro lado,
uma utilidade pratica: eles permitem que o pesquisador detecte os principais
fenômenos de mudança que estao se processando atualmente na lfngua. Ungua-padrào ou padrào-lingua?
Fazendo o levantamento dos "erros comuns" mais censurados pelos norma­ As vicissitudes do conceito de norma
--------------
tivistas, chega-se com boa probabilidade de acerto ao reconhecimento das
formas em mutaçao mais evidente e aos processos de gramaticalizaçâo (cf.
Castilho, 1997) em curso. Por isso, no Capftulo 4, vou me servir da crftica
ao preconceito contra a mudança-variaçao lingüfstica, detectado nos co­
mandos paragramaticais, como metodologia de ana.lise de alguns fenômenos
importantes de mudança no português do Brasil.

"As normas sêio sempre obstroçàes, rîgidas férmulas


provisérias que nào podem aspirar a incluir as ilimita­
das possibilidades do ser."
Ortega y Gasset ·

"[... ] l'idéologie définit la norme au moyen d'un


semblont de science que seule une science de
l'idéologie pourrait démasquer [...]"
Alain Rey ( 1972: 7) ·'


:{
_··,\:L

3.0 INTRODUÇÂO
Conforme tentei mostrar no capftulo anterior, os comandos paragra­
maticais (CP) representam um fenômeno que, embora antigo na hist6ria da
cultura brasileira, começou a exibir, de alguns anos para ca, um vigor e um

* Apud Leite (1999: 38}.


**"[...]a ideologia define a norma por meio de um simulacro de ciência que s6 uma ciência
da ideologia poderia desmascarar [...]"

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