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Instituto Superior Politécnico Católico do Huambo – ISPOC

Departamento de direito

O CONCURSO EFECTIVO DE CRIMES À LUZ DO


CÓDIGOPENAL ANGOLANO: UMA CONTRAPOSIÇÃO ENTRE
O ACTUAL CÓDIGO PENAL ANGOLANO E O CÓDIGO PENAL
DE 1886

Erica Massanga Gaieta Muangala

Monografia submetida como requisito parcial para obtenção do grau de Licenciatura em Direito
Penal

Huambo
Fevereiro, 2024
I
Instituto Superior Politécnico Católico do Huambo – ISPOC

Departamento de Direito

O CONCURSO EFECTIVO DE CRIMES À LUZ DO


CÓDIGOPENAL ANGOLANO: UMA CONTRAPOSIÇÃO ENTRE
O ACTUAL CÓDIGO PENAL ANGOLANO E O CÓDIGO PENAL
DE 1886

Erica Massanga Gaieta Muangala


___________________________________________________

Monografia submetida como requisito parcial para obtenção do grau de Licenciatura em


Direito Penal

Orientador
______________________________________________
Bento Ch. Catuyo

II
DEDICATÓRIA

Ao meu querido pai Gonçalo Muangala, aos


meus irmãos e a toda a comunidade jurídica
com muito amor e carinho.

III
AGRADECIMENTOS

Tal como tento fazer todos os dias da minha vida, gostaria de em primeiro lugar agradecer a Deus
por sempre garantir segurança à minha humilde vida, por todas as maravilhas que tem operado em
minha vida e por iluminar o meu caminho desde o momento em que fui concebida no ventre de
minha mãe até aqui.

Agradeço ao meu querido pai (Gonçalo Muangala) e aos meus irmãos (Nana, Nilton, Miguel, Titi,
Celma e Faby) por terem arregaçado as mangas após o chamado de Deus feito à nossa mãe, não me
deixando escapar de seus braços, dando todo amor, carinho e atenção. De igual modo ao meu irmão
mais novo Fredy e ao meu sobrinho Imércio, por terem compreendido todas as vezes que dizia que
precisava de silêncio para estudar.

Às duas mães que a vida me deu (Isabel e Cristina), que embora tenham partido cedo para junto do
Pai certamente com o auxílio da virgem Maria mãe de todos os órfãos, continuaram e continuam a
interceder por mim em todas as situações.

Agradeço ao meu orientador Dr. Bento Catuyo, pela disponibilidade em me acolher como sua
tutoranda, pela forma sábia e paciente que direcionou esta monografia.

À todos os funcionários e colaboradores ISPOC, ao corpo docente pelos grandiosos conhecimentos


que a mim transmitiram.

Aos meus colegas, por ao longo dos 5 anos de formação terem permitido que entre nós se criassem
laços fortes de cientificidade e de amizade.

À todos que de forma directa e indirecta contribuíram para a conclusão deste percurso e elaboração
deste trabalho.

MUITO OBRIGADA!

IV
“Por vezes sentimos que aquilo que fazemos não é
senão uma gota de água no mar. Mas o mar seria
menor se lhe faltasse uma gota.”

Madre Teresa de Calcuta

V
RESUMO

A presente monografia tem como tema o concurso de crimes efectivo à luz do código penal
angolano: uma contraposição entre o actual código penal angolano e o código penal de 1886. O
tema foi escolhido devido as alterações que ocorreram em torno da figura aquando da passagem do
código penal de 1886 para o actual código penal angolano. Tendo presente estas alterações,
procurou-se analisar e compreender melhor a questão do concurso efectivo de crimes, suas figuras
afins bem como a forma de punição adoptada pelo legislador para a regulação da questão. Este
trabalho teve como objectivo principal a identificação e punição do concurso de crimes efectivo ao
abrigo do actual código penal angolano em contraposição ao Código Penal de 1886 e, para que tal
feito fosse alcançado foi feita uma pesquisa bibliográfica, através de procedimentos comparativos
feitos em livros, leis, artigos e revistas. Na abordagem do problema a pesquisa caracteriza-se como
qualitativa e, no que toca os objectivos, uma pesquisa explicativa. Em sede da sua forma de punição
fizemos recurso a lógica matemática para a resolução da operação jurídica do cúmulo jurídico, cuja
finalidade principal tem que ver com o estabelecimento de uma pena única, dentro dos limites legais,
aplicável ao infractor. Após uma longa caminhada, concluiu-se que entre os dois diplomas analisados
existem semelhanças, não obstante as várias diferenças que albergam, pois, algumas alterações foram
desencadeadas por opção de política criminal. Assim, recomenda-se a continuidade jurídica estudos
em torno da figura por parte dos juristas, no sentido de se garantir uma melhor realização da justiça.

Palavras-chave: Código Penal; Concurso de crimes; Cúmulo Jurídico; Pena única; Pluriviolação.

VI
ABSTRACT

This monograph's theme is the competition of effective crimes in light of the Angolan penal code: a
contrast between the current Angolan penal code and the penal code of 1886. The theme was
chosen due to the changes that occurred around the figure during the passage of the penal code from
1886 to the current Angolan penal code. Bearing these changes in mind, we sought to analyze and
better understand the issue of the effective concurrence of crimes, their related figures as well as the
form of punishment adopted by the legislator to regulate the issue. This work had as its main
objective the identification and punishment of effective crimes under the current Angolan penal
code as opposed to the 1886 penal code and, in order for this to be achieved, a bibliographical
research was carried out, through comparative procedures carried out in books, laws, articles and
magazines. In approaching the problem, the research is characterized as qualitative and, in terms of
objectives, explanatory research. In terms of its form of punishment, we used mathematical logic to
resolve the legal operation of legal cumulation, whose main purpose has to do with the
establishment of a single penalty, within legal limits, applicable to the offender. After a long
journey, it was concluded that there are similarities between the two diplomas analyzed, despite the
various differences they contain, as some changes were triggered by a criminal policy option.
Therefore, it is recommended that jurists continue to carry out legal studies around the figure, in
order to guarantee a better implementation of justice.

Keywords: Penal Code; Multiple Crime’s; Legal Summit; Single penalty; Multiple Offenses.

VII
ÍNDICE
DEDICATÓRIA ............................................................................................................................ III
AGRADECIMENTOS .................................................................................................................. IV
RESUMO ...................................................................................................................................... VI
ABSTRACT ................................................................................................................................. VII
LISTA DE SIGLAS E ABREVIAÇÕES .........................................................................................X
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................. 12
I CAPÍTULO ................................................................................................................ 15
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA DO CONCURSO EFECTIVO DE CRIMES ....... 15
1.1 NOÇÃO DE CONCURSO DE CRIMES ................................................................................ 15
1.2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA ..................................................................................................... 17
1.3 PRESSUPOSTO ...................................................................................................................... 17
1.4 CLASSIFICAÇÃO .................................................................................................................. 18
1.4.1 O CONCURSO REAL E O CONCURSO IDEAL ............................................................ 18
1.5 O CONCURSO APARENTE: LEGAL OU IMPURO ............................................................ 20
II CAPÍTULO............................................................................................................... 25
FIGURAS AFINS DO CONCURSO EFECTIVO DE CRIMES ................................ 25
2.1 O CRIME CONTINUADO ..................................................................................................... 25
2.1.1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA. FUNDAMENTOS ............................................................... 26
2.1.2 PRESSUPOSTOS .............................................................................................................. 30
2.1.3 PUNIÇÃO .......................................................................................................................... 36
2.1.4 O CONHECIMENTO SUPERVENIENTE DA CONTINUAÇÃO CRIMINOSA ........... 37
2.2 A REINCIDÊNCIA ................................................................................................................. 38
2.2.1 PRESSUPOSTOS E EFEITOS .......................................................................................... 39
2.2.2 CLASSIFICAÇÃO ............................................................................................................ 41
2.3 A SUCESSÃO DE CRIMES ................................................................................................... 42
III CAPÍTULO ............................................................................................................. 44
A PUNIÇÃO DO CONCURSO EFECTIVO DE CRIMES ........................................ 44
3.1 SISTEMAS DE PUNIÇÃO DO CONCURSO DE CRIMES ................................................. 44
3.2 O CÚMULO MATERIAL, O SISTEMA DE ABSORÇÃO E O CÚMULO JURÍDICO ...... 44
3.3 O CÚMULO JURÍDICO NO CÓDIGO PENAL DE 1886 .................................................... 46

VIII
3.3.1 SENTIDOS DA PENA NO CÓDIGO PENAL DE 1886 .................................................. 47
3.4 O CÚMULO JURÍDICO NO ACTUAL CÓDIGO PENAL ANGOLANO ........................... 50
3.5 FASES E OPERAÇÕES DE RESOLUÇÃO .......................................................................... 51
3.6 O CONHECIMENTO SUPERVENIENTE DO CONCURSO .............................................. 54
3.7 SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS ...................................................................................... 56
3.7.1 SEMELHANÇAS .............................................................................................................. 57
3.7.2 DIFERENÇAS ................................................................................................................... 57
3.7.3 VANTAGENS E DESVANTAGENS ................................................................................. 59
CONCLUSÕES ............................................................................................................................. 61
RECOMENDAÇÕES ................................................................................................................. 63
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................................... 64

IX
LISTA DE SIGLAS E ABREVIAÇÕES

al. alínea

Apud. Citado por/ citado em

Artº artigo

Artsº artigos

Cfr. Conferir

CJ Cúmulo Jurídico

CP Código Penal

CRA Constituição da República de Angola

D.M.J.P. Determinação da Medida Judicial da Pena

D.M.L.P. Determinação da Medida Legal da Pena

D.M.P.A.C.J. Determinação da Medida Penal Abstracta do Cúmulo Jurídico

D.M.P.C.C.J. Determinação da Medida Penal Concreta do Cúmulo Jurídico

D.P.P. Determinação das Penas Parcelares

Ed. Edição

Ibidem Citado aqui mesmo

Ivi. Para indicar o mesmo autor, mesma obra e a mesma página

N.M.P.C.C.J. Nova Moldura Penal Concreta do Cúmulo Jurídico

nº Número

Op. cit. Opus Citat

p. Página

p.c. pena correccional

p.m. pena maior

X
pp. Páginas

PP Penas Parcelare

P.U. Pena Ùnica

ss Seguintes

URP Unidade de Referência Processual

Vol. Volume

XI
INTRODUÇÃO

Do ponto de vista geral, o problema do concurso traduz-se em duas questões fundamentais: a


primeira está ligada ao facto de se querer saber se um sujeito cometeu um ou mais do que um crime;
em seguida, caso tenha praticado vários, a de se estabelecer como deverá ser sancionado. A estas
duas acrescentamos o facto de se querer saber como isto era processado em cede do código penal
angolano de 1886 em contraposição ao actual código penal. O trabalho centrar-se-á nestes aspectos.

O aspecto ligado a qualificação jurídico-penal de um comportamento protagonizado por um só


agente, oferece dúvidas (pelo menos metódicas) ao julgador, nomeadamente quanto ao número de
crimes que integra. Não se pode saber quantos delitos alberga sem passar pela identificação dos
mesmos. Deste modo, no nosso trabalho saber quantos será saber quais para que se garanta a melhor
individualização dos factos penais relevantes nele contidos e consequentemente uma boa realização
e concretização da justiça. Porém, esta individualização não se deve identificar na contagem das
normas incriminadoras formalmente preenchidas, como tradicionalmente se faz, ainda que, essa
soma possa ser corrigida em momento posterior a sua contagem por se chegar a conclusão que,
alguns desses tipos legais se encontram em relação hierárquica, de tal modo que a aplicação de um
afasta a aplicação de outro, correndo o risco de sancionar duas vezes o mesmo desvalor criminal, tal
como ocorre num concurso aparente de crimes. Este assunto far-nos-á introduzir a matéria relativa
as figuras que ao concurso de crimes efectivo são afins, como é o caso do crime continuado e da
reincidência.

Como se tornará claro ao longo do texto, a marca de água, aquilo que singulariza este esquema do
concurso e o distingue dos outros passa sobretudo pela aceitação de dar ao problema do concurso
um estatuto de “questão a parte” incapaz de conter-se dentro dos quadros dogmático-materiais
usados para a identificação das condutas delituosas. Dito doutro modo: assume-se que para se
separar a unidade e a pluralidade de crimes perpetrados pelo mesmo agente, torna-se necessário sair
das formas normais de aparecimentos de crimes e entrar nas chamadas formas especiais.

O entendimento da ideia acima referida desencadeará no aspecto ligado à sua punição. Caberá a nós
saber porquê que o cúmulo jurídico, sistema que consiste na aplicação e soma das penas
parcelarmente aplicas a cada crime para efeitos de unificação da pena a aplicar ao infrector, é o
adoptado pelo nosso legislador, descartando a possibilidade de uma acumulação material bem como
12
a de absorção e quais as alterações feitas sobre o assunto do código penal de 1886 para o código
penal de 2020.

A clarificação das questões supramencionadas, facilitará de modo abrangente na compreensão dos


aspectos que se pretende reflectir ao longo do trabalho, apontando alguns dos problemas que
abundam o presente tema, resultantes da aplicação do actual Código Penal em matéria das formas
especiais do facto punível e para isto, o presente trabalho está estruturado em três capítulos.

O primeiro capítulo versará sobre a abordagem geral a respeito do concurso de crimes efectivo,
abarcando assuntos como: conceito, tipos, regime jurídico entre outros tópicos.

O segundo capítulo tratará do assunto relacionado as figuras afins do concurso efectivo de crimes,
como é o caso do crime continuado, a reincidência e a sucessão de crimes. Já no último capítulo,
serão abordadas questões que têm que ver com a forma de punição do concurso efectivo de crimes
adoptada pelo nosso legislador.

Para a concretização desta pesquisa fez-se recurso a pesquisa qualitativa que tem como base o
conhecimento do concurso efectivo de crimes, segundo as opiniões e percepções apresentadas sobre
o tema ao longo dos tempos, sem medir ou utilizar elementos estatísticos para a sua análise, sendo
que para isto, foram feitos estudos observacionai bibliográficos de índole comparativa, a partir de
matérias já publicadas, constituídas principalmente por livros de referência, dicionários,
enciclopédias, artigos, leis e materiais disponibilizados na internet.

Com a divulgação deste trabalho, a comunidade jurídica em geral estará mais informada sobre a
temática do concurso efectivo de crimes.

Problema Científico
Como identificar e punir o concurso de crimes efectivo ao abrigo do actual código penal angolano
em contraposição ao código penal de 1886?

Objectivo geral

Apresentar aos operadores de direito, como interpretar da melhor forma o instituto do concurso de
crimes no caso concreto.

13
Objectivos específicos

 Clarificar as questões teóricas sobre o concurso de crimes efectivo;


 Diferenciar o concurso de crimes efectivo de figuras afins;
 Descrever a forma de punição do Concurso de crimes adoptada pelo legislador angolano,
num plano comparativo.

Justificativa

Alvitramo-nos fazer uma alusão em volta do tema, em parte por ser bastante actual e actuante, tendo
em conta as alterações trazidas pelo novo Código Penal angolano, uma vez que ao abrigo do CP de
1886 era processado de uma forma totalmente diferente, pela paixão que ganhamos pelo mesmo ao
longo das aulas de Direito Penal II, onde o mesmo se apresentou como um verdadeiro calcanhar de
Aquiles para a maior parte dos estudantes, devido alguma complexidade que acarreta nas questões
em que se deve fazer recurso a lógica matemática para se achar a pena única aplicável ao infrator, e
também pela dificuldade apresentada por vários juristas aquando de intrecções e abordagens.

Assim, sentimos a necessidade de aprofundar melhor o assunto, no sentido de poder ajudar a


esclarecer tais questões para a comunidade jurídica, de forma mais abrangente aos operadores de
direito e fortificar o domínio do mesmo, evitando que se apliquem penas injustas.

14
I CAPÍTULO
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA DO CONCURSO EFECTIVO DE
CRIMES

1.1 NOÇÃO DE CONCURSO DE CRIMES

O ponto de partida para o entendimento de qualquer assunto é certamente saber o significado dos
termos que se pretende abordar e, connosco não poderia ser diferente. Desta feita, para que
possamos entender o universo do Concurso Crimes à Luz da lei nº 38/20 de 11 de Novembro que
aprova o código penal angolano, é necessário antes de mais que fixemos o olhar à sua proveniência
histórica bem como à sua origem da terminologia central do tema.

Do ponto de vista etimológico, o termo Concurso de crimes é composto por duas palavras de
origem latina sendo a primeira derivante de Concursu, us, substantivo masculino da quarta
declinação, podendo significar em português acção de correr juntamente, acto ou efeito de
concorrer1. A segunda por sua vez deriva de Crimen, querendo dizer «violação transgressão de um
preceito legal ou moral. Em geral, cometer um acto proibido pela lei ou omitir um acto prescrito por
ela são punidos pelo Estado através de um processo que ele próprio desencadeia.»2.

O dicionário compacto de Deocleciano, nos apresenta a ideia segundo a qual, o concurso de crimes
«É a prática de mais de uma acção delituosa por uma só pessoa»3.

Na visão legal, o Código Penal de 1886 no seu artigo 38º transmitia a ideia de que «Dá-se a
acumulação de crimes, quando o agente comete mais de um crime, na mesma ocasião, ou quando,
tendo perpetrado um, comete outro antes de ter sido condenado pelo anterior, por sentença passada
em julgado.».

Hoje por hoje, este conceito foi ultrapassado, uma vez que, com base o Relatório de Fundamentação
da Proposta de Lei que aprova o Código Penal o Concurso de Crimes é entendido como a

1
Cfr. Maria Laura SOTTOMAYOR, «Concurso de Infrações», in Grande Enciclopédia Universal, DURCLUB, S.A.
Editora, Volume VI, 2009, p. 3501.
2
Ibidem, 2009, p. 3977.
3
Deocleciano Torrieri GUIMARÃES, «concurso de crimes», in Dicionário Compacto Jurídico, Editora Rideel, 16ª
Edição Revista e Actualizada, 2012, p. 79.
15
pluralidade de crimes cometidos pelo mesmo agente antes de, por eles, ter sido condenado por
sentença transitada em julgado – sentença definitiva4.

É assim que, o nº 1 do artº 28º do actual Código Penal angolano entende que «O número de crimes
se determina pelo número de tipos de crimes efectivamente preenchidos, ou pelo número de vezes
que o mesmo tipo de crimes for realizado pela conduta do agente.», desencadeando assim num
Concurso de Crimes.

Tendo em conta os dois conceitos legais apresentados podemos de forma clara verificar que, o
legislador optou por terminologias diferentes para abordar a questão. O código de 1886 fala sobre
uma “acumulação de infracções” ao passo que o actual opta pela designação direta de “concurso de
crimes”. Acreditamos que na base desta alteração esteja o facto de os dois termos utilizados pelo CP
de 1886 serem muito amplos para a designação do instituto pois a acumulação pode referir-se ao
acto ou efeito de acumular, aglomeração, amontoação, por outro lado o termo infracções em direito
Penal pode fazer referencia a crimes e a contraversões que, dentre todas as diferenças que podem
ser apontadas entre ambas, achamos apropriada para o nosso caso referir o facto de o primeiro ser
punível com pena de prisão ou com pena de multa, ao passo que ao segundo apenas são aplicáveis
penas de multa(ultima parte do artigo 7º da Lei nº 38/20 de 11 de Novembro).

Do ponto de vista doutrinal, não existe um único e rigoroso conceito de Concurso de crimes, porém
a doutrina nos apresenta diversos que, tendo alguns elementos que consideramos como essenciais,
podermos tê-los como válidos. É por exemplo o caso do apresentado por Orlando Rodrigues que
nos transmite a ideia segundo a qual existirá a acumulação de crimes «sempre que o agente,
mediante condutas independentes, viola diversas normas ou a mesma norma incriminadora várias
vezes.»5.

De uma forma geral, o concurso de crimes indica a ocorrência de mais de um delito mediante
conduta única ou diversas condutas por parte de um agente de forma individual.

4
Cfr. REPÚBLICA DE ANGOLA, Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos, Relatório de Fundamentação da
Proposta de Lei que aprova o Código Penal, Luanda, 2019, p. 28.
5
Orlando RODRIGUES, Direito Penal (Apontamentos) Sumário das aulas ministradas na cadeira de Direito Penal,
Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto, Luanda, 2003, p. 223.
16
1.2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA

Apesar de ser considerado como um instituto antigo do Direito Penal, no que toca a evolução
histórica do concurso de crimes, a doutrina pouco ou quase nada diz sobre o assunto, porém
pesquisando algumas obras jurídicas chegamos a conclusão de que foi no Direito Romano onde o
instituto apareceu de forma embrionária para o mundo, como objecto de estudo de alguns
jurisconsultos no período clássico, isto por volta dos seculos V e VI6.

Acreditamos que tal dificuldade resulta do facto de quase sempre associar-se a evolução histórica
do concurso de crimes a do crime continuado que mais adiante veremos.

Do ponto de vista legal, em Angola o instituto foi definido pela primeira vez no artigo 38º do
Código Penal de 1886, no Livro I sobre as disposições gerais, Título I dos crimes em geral e dos
criminosos e Capítulo IV da responsabilidade criminal, tendo aparecido sob a designação
“Acumulação de crimes” como acima referido.

Actualmente está consagrado no nº 1 do artigo 28º novo Código Penal angolano aprovado pela lei nº
38/20 de 11 de Novembro, isto no Capítulo II do Título I do Livro I, sobre as «Formas Especiais do
Facto Punível» sob a designação que optamos para o nosso trabalho.

1.3 PRESSUPOSTO

A questão do pressuposto nos leva a ideia de algo que se supõe antecipadamente, ou seja, aquilo que
se imagina e se pensa sobre determinada coisa ou situação antes mesmo de ter contacto ou
conhecimento sobre ela. Posto isto, pode ser apontado como pressuposto da identificação da figura
do concurso de crimes efectivo, a pluralidade de crimes cometidos por um só agente antes de
sentença definitiva, isto é, que o agente tenha praticado mais do que um crime antes de os mesmos
terem transitado em julgado a condenação por qualquer um deles (nº 1 do artº 78 do CP).

6
Ernesto BENTO, Concurso de Infracções. Disponível em
https://www.supremotribunalmilitar.ao/BentoJuizdeLuandaAcumulacaodeInfracoes.pdf. Acesso 30 de Agosto de 2023,
Huambo, 16h: 47´.

17
O regime em causa aplica-se de forma exclusiva ao concurso efectivo, não ao concurso aparente
que mais adiante veremos que não se trata de um verdadeiro concurso de crimes, mas sim de um
concurso de normas, onde o que predomina é a unidade criminosa, efectuando-se unicamente a
operação do estabelecimento do crime pelo qual o agente deve de forma efectiva ser punido,
procedendo-se a posterior, quanto ao mesmo, à operação de determinação da pena nos casos em que
se verifique este tipo de concurso, sendo que ao tribunal caberá apenas a aplicar ao agente as penas
acessórias(e os seus respectivos efeitos) e as medidas de segurança que constem das leis que
concorrem entre si7 (quer hierarquicamente, quer de forma subordinada ou ainda por uma
consunção e que ficaram, em via de princípio excluídas do processo ).

1.4 CLASSIFICAÇÃO

É tradicional dividir o Concurso de crimes efectivo em dois blocos:

 Concurso de crimes real;


 Concurso de crimes ideal.

1.4.1 O CONCURSO REAL E O CONCURSO IDEAL

O concurso efectivo ou verdadeiro de crimes, pode assumir as formas de concurso real de crimes e
concurso ideal de crimes (nº1 do artº 28º do actual CP) e, durante algum tempo, ainda na vigência
do código penal de 1886, havia na doutrina uma enorme discussão em volta da relevância do
concurso ideal de crimes no que tocava a sua punição, resultado da interpretação do seu único artigo
38º. Neste momento, o que importa para nós não é a análise deste preceito, mas sim a distinção que
se pode fazer entre concurso real e o concurso ideal que em situações de limites também suscitava
graves dificuldades e a assim como as suas consequências punitivas refletia profundas dúvidas no
que tocava a sua justiça da solução.

7
Cfr. Jorge de Figueiredo DIAS, Direito Penal Português II. As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 1ª
ed., 4ª Reimpressão, Lisboa, 2013, p. 277.
18
O primeiro, normalmente ocorre quando a actividade do agente se desmembra numa pluralidade de
condutas. Assim sendo, haverá concurso real de crimes quando o agente, por via de várias acções ou
condutas independentes, cometer mais do que um crime, violando diversos preceitos penais
incriminadores (v. g.: A, difama B, ofende a integridade física de C e danifica a motorizada de D).
Neste tipo de concurso há uma pluralidade de condutas ou actos (mais de uma acçaão ou omissão) e
uma pluralidade de resultados criminosos (pratica dois ou mais crimes)8.

O Segundo por sua vez terá lugar quando, o agente por via de uma única conduta, violar vários
preceitos penais incriminadores ou viole o mesmo preceito repetidas vezes. Assim, o concurso ideal
de crimes contém duas formas9, ilustradas nos seguintes exemplos:

Imaginemos uma cena em que A, com o mesmo tiro mata B e C. Podemos neste cenário verificar
que o agente com um único acto, uma única acção ou conduta cometeu dois crimes idênticos, dois
homicídios. Isto implica dizer que, sempre que o agente pela sua conduta cometer crimes idênticos,
da mesma espécie duas ou mais vezes estaremos na presença de um concurso de crimes ideal –
“homogéneo”. Tal interpretação resulta da segunda parte do nº 1 do artº 28º do CP.

De forma diferente temos um cenário em que A, com um tiro mata B e fere C. Diferente do que
ocorreu no exemplo supracitado aqui, o agente com um único acto, uma única acção ou conduta
cometeu dois crimes diferentes, um de homicídio e outo de ofensa (simples) a integridade física.
Dito de outro modo, sempre que o agente pela sua conduta cometer crimes de diferentes espécies
dar-se-á um concurso de crimes ideal – “heterogéneo”, consagrado na primeira parte do nº 1 do artº
28º do actual CP.

Assim, no que toca a sua distinção Germano Marques da Silva entende que, a maior dificuldade
resultava do critério de obtenção da medida da conduta, isto é, em que circunstâncias é que se
poderia dizer que se tratava de uma única conduta.10 Se de forma inequívoca a violação de um único
preceito penal incriminador mediante uma só acção constitui uma infracção unitária, de igual modo
a pluralidade de infracções inequívoca será resultado da violação de diferentes normas , porém a

8
Cfr. Bangula QUEMBA; Benja SATULA, Lições de Direito Penal Angolano. UCP Editora, Lisboa, 2023, p. 163.
9
Ivi.
10
Germano Marques da SILVA, Direito Penal Português: Teoria do Crime, Lisboa, Universidade Católica Editora,
2012, p. 420.

19
delimitação da unidade de condutas que dá origem a violação plúrima da mesma norma ou de
normas suscitava problemas complexos, para cuja resolução a doutrina apresentava vários critérios
uns de base objectiva e outros subjectiva11.

Hoje por hoje tal prolema já não é discutido pois, chegou-se a conclusão de que o pressuposto do
concurso de crimes (real ou ideal) é a pluralidade de tipos violados pela conduta do agente12, isto
implica dizer que serão tidos em conta quer os crimes quantos os preceitos legais violados ou
quantas vezes o mesmo preceito penal for violado, independentemente de se saber se a conduta
violadora resultara de um único acto (concurso ideal) ou da de vários actos (concurso real).

Importa realçar que a pluralidade de actos não é o único critério que define a pluralidade de
infracções devido a natureza do crime. O único critério válido deve ser o “normativo, legal e
teleológico”13, que do ponto de vista da ilicitude formal traduz-se na pluriviolação do tipo legal do
crime (violação repetida do mesmo tipo ou violação de vários tipos) bem como da ilicitude material
traduzida plurilesão dos interesses jurídicos ou bens tutelados pelo respectivo tipo ou tipos.

1.5 O CONCURSO APARENTE: LEGAL OU IMPURO

Naturalmente que um dos principais problemas que se coloca em sede do concurso aparente ou
impuro tem que ver com a sua distinção relactivamente a outra qualidade já abordada em parte nas
páginas anteriores que é o concurso de crimes na medida em que se apresenta como o primeiro
limite a figura do concurso de crimes, a par de um outro, o chamado crime continuado, que por
razões de lógica doutrinal preferimos enquadrar no segundo capítulo deste trabalho, onde serão
abordadas questões relacionadas as figuaras afins do concurso efectivo de crimes.

Faz sentido referir o concurso efectivo de crimes e o concurso de normas em conjunto dentro da
teoria da infracção, embora alguns doutrinadores, como é o caso de Teresa Bizarro Beleza, prefiram
situar a questão em sede da matéria relativa a interpretação e aplicação da lei penal. 14

11
Ivi.
12
Cfr. Orlando RODRIGUES, Apontamentos de Direito Penal, Escolar Editora, Lobito, 2014, p. 307.
13
Cfr. Ibidem, Pág. 308.
14
Cfr. Teresa Pizarro BELEZA, Direito Penal volume II, A.A.F.D.L Editora, sl, 1983, p. 609.
20
Tal como se pode verificar em Manuel Cavaleiro de Ferreira15, o concurso de normas refere-se ao
problema da restrição da aplicabilidade de outra norma ao mesmo objecto, não se tratando de uma
questão de interpretação visto que, as normas se integram num sistema subordinando-se umas às
outras, sobrepondo-se e limitando-se de forma recíproca.

Durante muito tempo, o concurso ideal teve a sua consagração neste preceito (concepção do CP de
1886), mas actualmente esta concepção está ultrapassada de forma definitiva, sendo então de
entendimento corrente que o preceito em questão regula de forma individual o concurso aparente ou
legal que não é um verdadeiro concurso de crimes, mas sim de normas, todas elas aparentemente
aplicáveis a uma mesma situação da vida ou relação e que, por via interpretativa, se vão excluindo
ate deixar apenas uma (concepção do actual CP).

O concurso aparente pode ser entendido como uma situação em que várias normas são
alegadamente aplicáveis a um mesmo facto, por este previr todas elas, todavia só uma é realmente
aplicável, melhor dizendo, só uma deve entender-se para a regulação do facto. Para que se considere
um concurso de normas, é necessário que se verifiquem dois pressupostos: (1º) Pluralidade de
normas – existência de no mínimo duas normas concorrentes – e (2ª) Unidade do facto – o mesmo
facto ou situação de facto ou a mesma conduta16.

Encontramos um mesmo facto em todos os casos identificados como concurso aparente, previsto e
punido em duas ou mais disposições, que não são resolvidas nem formal nem materialmente, por
uma acumulação de crimes17. Esta ideia leva-nos a ter como certo que o nº 2 do artº 28º do actual
Código Penal angolano fixa as normas de regulamentação do concurso aparente, legal ou impuro de
crimes pois salienta que «Não há concurso de crimes quando o facto é, no todo ou em parte,
qualificado como crime por mais de uma norma penal incriminadora.». De igual modo, em
parágrafo único o CP de 86 dizia que «Quando o mesm0 facto é previsto e punido em duas ou mais
disposições legais, como constituindo crimes diversos, não se dá a acumulação de crimes.».

Nesta modalidade de concurso, a conduta do agente viola várias normas penais incriminadoras bem
como são cometidos vários crimes. Por esta razão fala-se em concurso. Mas essa pluralidade de

15
Cfr. Manuel Cavaleiro DE FERREIRA, Lições de Direito Penal. Parte Geral I – A Lei Penal e a Teoria do Crime no
Código Peal de 1982 II – Penas e Medidas de Segurança, reimpressão da 4ª ed. De 1992, Coimbra, Almedina, 2010, pp.
527-534.
16
Cfr. Orlando RODRIGUES, Apontamentos de Direito Penal, Escolar Editora, Lobito, 2014, p. 308.
17
Cfr. Ibidem p. 313.
21
violações bem como a pluralidade de crimes é meramente aparente porque aquelas normas
encontram-se entre si numa relação de subordinação e hierarquia, de modos que a aplicação de uma
exclui de forma automática a aplicação das demais. Parece existir concurso de crimes, mas o que há
na verdade é um concurso de normas, pois o que existe é apenas um único crime18.

O professor Figueiredo Dias não corrobora com esta posição, sendo que para ele no concurso
aparente o comportamento do agente preenche vários tipos de crimes constituindo um concurso
(não uma unidade) de crimes, apenas sucedendo que, nos concursos desta modalidade, o conteúdo
ou a substância criminosa do comportamento aqui é abarcada de forma esgotante pela aplicação ao
caso de um só dos tipos violados que os restantes devem recuar, subordinando-se hierarquicamente
perante uma tal aplicação.19 Não corroboramos com esta visão doutrinal, pois esta “divergência
doutrinal”, verifica-se apenas no ponto de partida e não conduz a divergência de soluções.

O que determina a forma do concurso aparente ou legal de crimes é o tipo de relação presidida pelas
normas ou pelos preceitos penais aparentemente aplicáveis a um mesmo facto. Assim, tal como
grande parte da doutrina e como consta do nº 3 alíneas a) e b) do actual CP angolano, consideramos
como factores determinantes desta forma do concurso, a especialidade, a consunção e a
subsidiariedades20.

No que toca o princípio da especialidade previsto na alínea a) do n º 3 do artº 28º do actual CP, o
concurso será aparente quando um mesmo facto for previsto e regulado simultaneamente por uma
lei geral e por uma lei especial. Uma vez que a lei especial contém todos os elementos que há na lei
geral e mais um elemento especificador ou especializador que justifica a sua razão de ser, sendo
neste aspecto onde reside a diferença especifica. Pelo facto de o princípio da especialidade ser geral,
este abrange também o Direito Penal, assim sendo, a lei especial afasta ou derroga a lei geral, por
isso a máxima latina: lex specialis derrogat legi generali21.

Com base neste princípio podemos dizer que, existe uma relação de especialidade entre o
fundamento do crime e os seus tipos qualificados ou privilegiados. Vg.: Entre o crime de furto

18
Ivi.
19
Cfr. Orlando RODRIGUES, Apontamentos de Direito Penal, Apud Figueiredo DIAS, Direito Penal Português, II,
Coimbra Editora, Lisboa, 2013, p. 102.
20
Cfr. Mário Tomás VERÍSSIMO, O Concurso de Crimes: Uma Contraposição entre o Código Penal de 1886 e o
Código Penal angolano 2020, disponível em https://rodrigocastello.jusbrasil.com.br/artigos/121936872/consuncao-lex-c
onsumens- derogat-consumptae. Acesso 2 de Setembro de 2023, Huambo, 20h: 47m.
21
Cfr. Máxima latina segundo a qual: a lei especial derroga ou revoga a lei geral.
22
(artigo 392º), o furto qualificado (artigo 393º) e o Furto de coisa comum (artigo 395º); entre o crime
de corrupção passiva (artigo 453º), o crime de corrupção actiava (artigo 458º) e o crime de
corrupção no domínio do comércio internacional). O princípio da especialidade, é um princípio de
natureza lógica de reconhecimento de lei expressa e que resulta de uma mera comparação abstracta
dos tipos.

Diz-se que haverá consunção ou absorção (como também é designado por alguns doutrinadores)
quando, uma realização de um tipo de crime (mais grave) inclui, ao menos em regra, a realização de
outro tipo de crime (menos grave)22. Contudo, tendo em conta esta ideia, o facto contemplado por
uma norma menos ampla, está também contemplado por uma norma mais ampla do que a primeira,
pelo que se entende que na pena mais grave (estabelecida pela norma mais ampla) já está
compreendida a pena menos grave (estabelecida pela norma menos ampla). Assim entendemos que,
um bem jurídico é tutelado por várias normas de amplitude também variada. De um ponto de vista
material está-se em presença de ofensas de diversas gravidades a um mesmo bem jurídico.

Neste tipo de relações a norma mais grave afasta a norma menos grave lex conumens derrogati legi
consunptae23 sendo acrescida a esta ideia “maiorem absorvet minorem”. De outro modo o mesmo
facto acabaria por ser punido duas vezes, infringindo-se o princípio Ne bis in idem24.

Há casos em que a lei descreve um tipo de crime que só difere de um outro por uma circunstância tal
que apenas se pode admitir tê-la querido legislador como uma circunstância qualificativa agravante,
mas que por lapso legislativo (o que não se admite) a pena prevista para este tipo qualificado é
inferior à do crime simples. Neste caso aplicar-se-á a pena do crime simples sendo a mais elevada
em relação a do qualificado. Em casos como este à consunção atribui-se a característica “impura”
que tem como ideia fundamental a de que: entre deixar de considerar uma circunstância qualificativa

22
Cfr. Orlando RODRIGUES, Apontamentos de Direito Penal. Escolar Editora, Lobito, 2014, p.319.
23
Cfr. Lex Consumens derrogat legis consuptae – também conhecido como princípio da absorção, isto é, o crime mais
grave absorve o crime menos grave. https://rodrigocastello.jusbrasil.com.br/artigos/12193 6872/consuncao - lex-
consumens-derogat- consumptae consultado pela ùltima vez no dia 27 de setembro de 2023.
24
Cfr. Agostinho S. TORRES – O Princípio Ne Bis in Idem Funcionalidade e Valoração na Evolução para a
Transnacionalidade d a sua Expressividade na Jurisprudência Internacional, em especialna do TJ da União Europeia,
Pág. 1. Disponível em http://julgar.pt/wp-content/uploa ds/2014/07/04 -DEBATER-Agostinho-Torres-O-princípio-Ne-
bis - in - idem .pdf, acesso 27 de setembro de 2023, Huambo, 19h: 30m.
23
e violar de uma forma profunda a elementar da exigência de justiça consagrada pelo princípio Ne bis
in idem, é preferível sacrificar a punição da agravante qualificativa25.

Numa última nota, e de forma estranha, o artº 28º não faz menção ao princípio da subsidiariedade
como critério para a resolução do concurso aparente, porém existem no CP normas que estão numa
relação de subsidiariedade, como se pode verificar por exemplo no n.º 2 do artº 166º.

Em tempos passados, era acrescentada a este leque de características a alternatividade considerando


que se estaria na presença da mesma quando, em diferentes preceitos penais fossem tutelados os
mesmos bens jurídicos, porém deveriam estar previstos diferentes meios de punir a sua ofensa26. Isto
aconteceria quando o mesmo fim criminoso pudesse ser atingido por preceitos diferentes. Estariam
neste tipo de relação por exemplo o crime de burla, furto e de abuso de confiança. Hoje por hoje, a
doutrina nega qualquer valor a este princípio e considera-o inaplicável ao concurso aparente e
acreditamos nós que está concepção deve-se ao facto de que na consunção já há uma espécie de
alternatividade e, o actual código penal visivelmente abraçou esta concepção na medida em que não
faz qualquer menção sobre a questão.

O CP de 1886 consagrava a existência do concurso aparente nos termos do seu artigo 38º, porém
não o aceitava como sendo acumulação de crimes isto implica dizer que, havia uma contrariedade
sob o ponto de vista da sua compilação conceitual jurídica, dito de outro modo, se não era aceite
como acumulação de crimes não deveria ser designado como concurso embora aparente uma vez
que, em sede de tal diploma o concurso apenas resultava de uma acumulação de crimes.

25
Ivi.
26
Cfr. Orlando RODRIGUES, Apontamentos de Direito Penal. Escolar Editora, Lobito, 2014, p. 317.
24
II CAPÍTULO
FIGURAS AFINS DO CONCURSO EFECTIVO DE CRIMES

Ao longo dos tempos e até mesmo nos dias de hoje, a figura do concurso de crimes tem sido
confundida com outras figuras. Acreditamos que, depois de ter sido feita uma abordagem em torno
daquele que é o universo do próprio concurso de crimes eectivo, torna-se imperioso falar daquelas
figuras que normalmente nos trazem essas confusões em sede de pluralidade de crimes.
É assim que pretendemos fazer neste capítulo uma abordagem em torno das principais figuras afins
ao concurso de crimes, como é o caso da reincidência e da sucessão de crimes.

2.1 O CRIME CONTINUADO

Uma outra questão que no fundo está relacionada a esta, na medida em que se mostra como uma das
figuras afins ao concurso de crimes se apresentando como limitação do mesmo, tem que ver com o
crime continuado27.
Durante muito tempo o crime continuado foi considerado como uma figura muito estranha, de
contornos muito incertos, se calhar a mais discutida do que qualquer outra dentro do Direito Penal,
e que, o seu sentido apresenta uma relação com a ideia de que, uma pessoa, durante um certo
período de tempo, comete vários crimes de forma sequencial tendo entre si uma certa relação de
homogeneidade no que toca a sucessão temporal.
O conceito de crime continuado tem apresentado grandes divergências na doutrina e nas legislações,
nalguns momentos dando maior predominância ao elemento objectivo, em outras palavras, aos
elementos objectivos do crime e às circunstâncias em que foi praticado, noutros dando maior relevo
ao elemento subjectivo do tipo que unificaria todas as condutas.
Legalmente, nem todos os códigos o definem, é por exemplo o caso do alemão, o que não impede
que a doutrina alemã se ocupe dele com grande interesse28.
À luz do actual CP angolano, o crime continuado encontra consagração no Capítulo II do Título II
do Livro I do CP, sobre as «Formas Especiais do Facto Punível», no seu penúltimo artigo, o artº 29º,

Cfr. Teresa Pizarro BELEZA, Direito Penal, volume II, A.A.F.D.L Editora, sl, 1983, p. 613.
27

Cfr. Germano Marques da SILVA, Direito Penal Português, Apud., H. H. Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte
28

Geral, II, (trad. S. Mir. Puig e F. Munõz Conde), 1981, pp. 1000 ss; Gunther Jakobs, Derecho Penal (trad. Joaquim
Cuello Contreras/Jose LUis Serrano Gonzalez de Murillo), 1995, pp. 1091 ss.
25
e o seu regime punitivo no Título III, Capítulo IV, artº 80º, sob a epígrafe «Punição do Crime
Continuado».
O seu conceito legal vem consagrado no artº 29º do CP dispondo:
1. Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou
de vários tipos de crime que fundamentalmente ofendam o mesmo bem jurídico, executada por
forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma situação exterior que diminua
consideravelmente a culpa do agente.
2. O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens
eminentemente pessoais, salvo se o ofendido for o mesmo.

2.1.1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA. FUNDAMENTOS

A questão ligada a evolução histórica do crime continuado tem sido na doutrina alvo de grandes e
muitas discussões, estudos e algumas controvérsias, sendo que ao longo dos tempos foram
apresentados vários indícios e várias contribuições para a sua delimitação. Hoje por hoje, esta
questão encontra-se um tanto quanto apaziguada, sendo possível uma análise da figura nos
diferentes ordenamentos jurídicos, progressos dogmáticos, fixando-se a sua autoria. Para que
possamos de modo coerente estabelecer uma linha cronológica, temos que passar, de forma
resumida, em três fases diferentes, tais: Direito Romano, Direito Germânico, Glosa e Práticos
Italianos.

1 Direito Romano
Em sede do Direito Romano, a figura do crime continuado, durante muito tempo apresentou-se
como uma questão controvertida. Tendo como base obrigatória o Digesto, vários doutrinadores
conseguiam encontrar fundamentos que legitimavam quer uma quer outra posição, é por exemplo o
caso de Cavaleiro Ferreira que defende em primeira mão que «as doutrinas e legislações modernas
não foram buscar ao direito romano o conceito de crime continuado, embora se defenda que neste
direito afloravam algumas questões que podiam denunciar uma anteabordagem do conceito»29. De
determinado passo era retirado, a expressão popter continuationem, que conjugada a ideia de que só
existe uma actio na hipótese de um ladrão voltar a apossar-se de um escravo que por outrem lhe

29
Cfr. Cavaleiro de FERREIRA, em Lições De Direito Penal. Parte Geral, 1992, p. 542.
26
tinha sido subtraído, parecia conduzir a conclusão de que tal acção desencadeava em um caso de
crime continuado30. Por seu turno, actualmente, tornou-se claro que tal suposição não corresponde
com a verdade.
O aspecto gerador da confusão, tinha como fim ùltimo a resolução da confusão da pena em caso de
furto; de forma concreta pretendia apurar, se esta deveria ter como base do seu cálculo o valor do
escravo no momento em que fora roubado ou de forma contrária, o valor no momento em que
passou a posse do ladrão sobre ele. A propter continuationem furi, não deveria constituir qualquer
privilégio31.

À ideia supra – exposta acrescentar-se-iam ainda argumentos meramente linguísticos, uma vez que
na jurisprudência romana a expressão continuation teria um significado muito mais próximo do de
“permanência” do que do de “continuação”.

Nesta senda, a discussão ficou um tanto quanto resolvida, no sentido de que até mesmo as
passagens iniciadoras do Direito Romano relacionadas ao crime continuado, seriam respeitantes ao
crime permanente, à actio furi (nos termos acima mencionados) e á determinação do valor do
escravo roubado, no sentido de se calcular a pena a aplicar.

Esta conclusão se mostra coerente por intermedio de rigoroso princípio quot delicta tot poenae
imperativo basilar do Direito Romano.

2 Glosa
A apreciação do crime continuado pelos glosadores, teve início com a alteração do antigo pelo novo
método – dedutivo – que consistia em abstrair as normas aos seus princípios, que posteriormente
relacionados, davam origem a corolários nelas intrinsecamente contidos. Assim, por esta via,
Bártolo de Sassoferato e Baldo de Ubaldi nos anos de 1314 a 1357 abordaram o crime continuado32.
Porém, o facto de terem contribuído em grande parte no desenvolvimento da figura, a atribuição da
figura do crime continuado aos glosadores e pós-glosadores foi novamente contestada, sendo que, a
maioria dos doutrinadores a atribuía aos práticos italianos de que falaremos a seguir.

3 Os Práticos Italianos

30
Eduardo CORREIA, A teoria do concurso em direito criminal: unidade e pluralidade de infracções: caso julgado e
poderes de cognição do juiz, Coimbra, 1983, p. 161.
31
Ivi.
32
Cfr. Eduardo CORREIA, Unidade a Pluralidade de Infracções, p. 162- 163.
27
Numa visão geral, considera-se que o crime continuado fora criado por “práticos” italianos da Idade
Média isto nos Séc. XV e XVI. Farinácio e Claro, foram os primeiros juristas a tentar fazer uma
construção do crime continuado, motivados pelo favor rei e pelo propósito de atenuar a violência e
a injustiça das penas, no sentido de se unificar em apenas um os crimes cometidos pelo agente, em
determinado contexto objectivo (v. g., de tempo), e até subjectivo (uno impetu)33. Ao primeiro
reconhece-se o mérito da construção mais ou menos clara de certas distinções como a do concurso
aparente e do concurso ideal, distinções que assumem importantes posições no Direito Penal da
actualidade.

Num primeiro momento, a figura foi abordada no âmbito do “concurso de penas” como resultado da
aplicação do princípio estrito do Direito Romano de acumulação real de penas, dando origem a
vários obstáculos de forma consecutiva. Assim, era um problema relacionado a execução de
determinadas penas, que mediante a aplicação do princípio regra quot crimina tot poenae teria de
cumulativamente ser cumpridas; num segundo momento uma questão preocupante de
desumanidade e desproporcionalidade, em caso de acumulação material de penas ou pena única
excessivamente rigorosa que substituía as demais em caso de pluralidade de infracções34.

Podemos dizer que, o crime continuado foi criado com a finalidade de evitar a pena de morte que,
na época, era aplicável ao autor de terceiro furto, com vista na diminuição da severidade da
cumulação de penas a crimes cometidos repetidamente, desde que observados determinados
pressupostos, influenciados pelo sentimento humanista que era o fervor da época35.

Assim, para Mittermayer, nesta figura, a vontade criminosa é mais leviana do que a que se verifica
no concurso de crimes, de tais modos que, a execução das várias acções desencadeadas pelo agente
mostra-se muito facilitada. Assim, o fundamento do crime continuado está na circunstância de a
prática das diferentes acções explicar-se unicamente «como a consequência e aproveitamento de
uma certa relação na qual o criminoso se colocou»36.

Kraushaar, vai mais a fundo do que Mittermayer, defendendo que o agente é puxado e solicitado
para a prática de crimes posteriores por um conjunto de circunstâncias criadas. O mesmo autor

33
Cfr. Orlando RODRIGUES, Apontamentos de Direito Penal. Escolar Editora, Lobito, 2014, p. 323.
34
Ivi.
35
Cfr. Bangula QUEMBA; Benja SATULA, Lições de Direito Penal Angolano. UCP Editora, Lisboa, 2023, p. 169.
36
Eduardo CORREIA, A Teoria do Concurso em Direito Criminal: I – Unidade e Pluralidade de Infracções, 2ª
reimpressão, Coimbra, Almedina. 1996, p. 207, Apud. MITTERMAYER, Uber den underschied, p. 252
28
entende, de igual modo, que a prática de um crime supõe, desde já, a superação pelo agente de uma
série de constrangimentos objectivos e subjectivos, como por exemplo: o medo de ser descoberto, a
reacção dos comparticipantes, as dificuldades de execução, a dificuldade de meios ou instrumentos
para a execução do acto, o pudor do contacto, a reacção íntima contra a prática do crime, entre
outros factores. Todos os resultados sublinhados desaparecem na reiteração, dando de modo
imediato e consequente diminuição de culpa do agente que é descoberta no momento exógeno da
acção, disposição externa das coisas para o facto37.

Na visão de Manuel Cavaleiro de Ferreira, o que está no substracto do cime continuado é a situação
externa tomada como origem da motivação do agente. o que de certa forma pretende a lei, portanto,
é atribuir razão da diminuição da culpa, indo buscar a sua razão de ser à motivação da decisão
voluntaria do agente, que se configura de forma objectiva na “situação de facto” que a provoca38.

Por sua vez, o professor Eduardo Correia vem dizer-nos que, «o pressuposto da continuação
criminosa será, verdadeiramente, a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável,
facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte
de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito»39 (sic).

Em sentido contrário à ideia acima referida, José Lobo Moutinho, considera que:

«Há casos de reiteração criminosa com diminuição profunda da gravidade penal e,


designadamente, com diminuição considerável da culpa do agente em que se não reconhecer a
existência de um só crime continuado sem que, por isso, tal diminuição deixe der ser ponderada. A
ponderação profunda da gravidade penal (e designadamente da culpa do agente), em si e por si, não
impõe o reconhecimento de um só crime continuado.»40
Com base nestas visões, poderíamos considerar que, quer a “diminuição considerável da culpa do
agente” como a “situação externa” são dois elementos fundamentais norteadores do fundamento da
figura crime continuado, logo, do crime continuado41. Porém, a lei não estabelece tais elementos
como pressupostos do crime continuado objectivamente para a aferição da “situação externa ou
exterior”, por esta razão existe dificuldades em saber quando é que tal situação pode ser relevante

37
Cfr. KRAUSHAAR, Beitrage zur lehre von den fortgesetzten verbrechen, in Gerichtsaal, Vol. XII, sd, pp. 258 e ss.,
apud, Eduardo CORREIA, A Teoria do Concurso em Direito Criminal: I – Unidade e Pluralidade de Infracções. 2ª
reimpressão, Coimbra, Almedina. 1996, pp. 209 e ss.
38
Cfr. Manuel Cavaleiro de FERREIRA, Lições de Direito Pena. Parte Geral I, Almedina, 2010, p. 552.
39
Cfr. Eduardo CORREIA, Direito Criminal II. Coimbra, Almedina, 2000, p. 209.
40
José Lobo MOUTINHO, Da Unidade a Pluralidade dos Crimes no Direito Penal Português. UCE, Lisboa, 2005, p.
1225.
41
Ivi.
29
para a diminuição da culpa do agente. Assim, para tal efeito, torna-se imperioso verificar a sua
identidade ou repetição em relação aos actos sucessivos que integram a continuação criminosa.

2.1.2 PRESSUPOSTOS

Para que possamos fazer uma abordagem em volta dos elementos do crime continuado, é necessário
antes de tudo, o estudo, ainda que de modo resumido, das diferentes teorias que procuraram explicar
o elemento subjectivo do crime continuado, dito doutro modo, o elemento que une os distintos
crimes em continuação. Assim, das várias teorias existentes, faremos menção àquelas mais
destacadas pela doutrina, nomeadamente: subjectiva, objectiva e subjectiva-ojectiva ou mista.

Na visão de Bangula Quemba e Benja Satula, na teoria subjectiva «os aspectos objectivos das
diversas acções praticadas pelo agente são irrelevantes. O relevante e mais importante para a
caracterização do crime continuado é apenas o elemento subjectivo, que se traduz na unidade de
propósito ou desígnio.»42 Isto significa dizer que, o crime continuado assenta somente no
pressuposto ou elemento psicológico que tem que ver com a unidade da resolução criminosa.

Ao contrário do que se verificou na teoria acima citada, na teoria objectiva, os elementos


constitutivos do crime continuado devem ser apurados por intermédio de critérios exclusivamente
objectivos, independentemente do elemento subjectivo, isto é, da antecipada deliberação ou
predisposição do agente. Deste modo, «a unidade do desígnio de resolução criminosa é irrelevante.
O mais relevante será, por exemplo: identidade do bem jurídico violado, ahomogenidade da
execução, repetição da situação exterior e outros elementos, desde que sejam objectivos.»43.

Num último plano aparece a teoria subjectiva-objectiva ou mista, que defende a ideia de que, para
que possamos verificar o crime continuado é imprescindível que se tenha em atenção elementos
subjectivos bem como elementos objectivos. Deste modo, são elementos da continuação criminosa:
pluralidade de acções, unidade de preceito penal violado ou de lesão jurídica e unidade de

42
Cfr. Bangula QUEMBA; Benja SATULA, Lições de Direito Penal Angolano. UCP Editora, Lisboa, 2023, pp. 171 e
172.
43
Cfr. Ivi, Apud, Manuel Cavaleiro de FERREIRA, Lições de Direito Penal. Parte Gera I, Almedina, 2010, p. 544.
30
propósito, projecto criminoso ou resolução44. No que toca à unidade do sujeito passivo, não há
unanimidade e são acrescidos outros elementos secundários, tais como: a unidade de tempo, de
lugar, de meio, de ocasião, entre outros45.

Desta feita, entendemos que podem ser apontados como elementos do crime continuado, os
seguintes:

a. Realização plúrima do mesmo tipo de crimes ou de vários tipos de crime;


b. Identidade fundamental dos bens jurídicos ofendidos;
c. Identidade do preceito penal violado;
d. A homogeneidade do comportamento;
e. A conexão temporal e espacial;
f. A identidade da resolução criminosa.
Na base do crime continuado está uma “plurirealização” de condutas, acções ou omissões típicas,
que, não estando fora do regime do crime continuado, são tratadas em função do regime especial do
mesmo, contrariamente, seriam tratadas no quadro da pluralidade de infracções, dito de outo modo,
cada uma constituiria um facto típico e aplicar-se-ia ao crime uma pena.

Contudo, a conduta pode não corresponder ao mesmo tipo de crime. As condutas podem ser
tipicamente diferentes, isto é, corresponder a violação de diferentes normas penais incriminadoras.
O que deve estar patente é que cada uma delas que integra o crime continuado seja típica, constitua
um facto típico previsto pela norma penal incriminadora46.

a. Identidade fundamental dos bens jurídicos ofendidos

O artº 29º do CP dispõe que, para que se verifique crime continuado, é necessário que o bem
jurídico protegido pelo tipo ou tipos plurimamente realizados deva ser fundamentalmente o mesmo,
o que implica dizer que, quando diversos os tipos incriminadores preenchidos com as várias
condutas do agente, todos hão de proteger essencialmente o mesmo interesse47.

44
C fr. António Furtado dos SANTOS, Crime Continuado: Elementos. in BMJ, n. º 42, 1954, p. 408, citando
HERNÁDEZ, Camargo, trata do elemento psicológico como elemento do crime continuado. Este elemento comum às
várias infracções parcelares serve de traço de união destas na sua unificação sob a forma continuada.
45
Cfr. Ivi.
46
Cfr. Germano Marques da SILVA, Direito Penal Português. Parte Geral II. Teoria do Crime, Editorial Verbo, 2ª ed.
Revista e actualizada, Lisboa, 2005, p. 348.
47
Ivi. (Itálico do autor).
31
Eduardo Correia menciona que é «decisivo (…) que as diversas actividades preencham o mesmo
tipo legal de crimes ou, pelo menos, diversos tipos legais de crime que, fundamentalmente protejam
o mesmo bem jurídico: este será o limite de toda a construção, sem esquecer que o mesmo bem
jurídico se não pode falar quando se esteja perante tipos legais que protejam bens eminentemente
pessoais; caso em que, havendo um preenchimento plúrimo de um tipo legal desta natureza, estará
excluída toda a possibilidade de se falar em continuidade criminosa»48.

O advérbio «fundamentalmente» tem como objectivo solucionar o problema da continuação


criminosa de crimes complexos. Nestes tipos de crime, os crimes em concurso devem proteger
“primordialmente” o mesmo bem jurídico, apesar de alguns dos crimes em concurso poderem
proteger outros bens jurídicos49 . No que toca aos crimes tributários, não é necessário que os crimes
sejam os mesmos. Por isso, admite-se mesmo a possibilidade de verificação de crime continuado
tributário, ainda que o agente tenha cometido crimes diferentes, uma vez que, na generalidade, estes
tipos de crime protegem o mesmo bem jurídico50.

Não sendo expressa de forma clara, à luz do CP angolano de 1886, para que se pudesse falar de
crime continuado era necessário fixar o olhar aos bens eminentemente pessoais e aos bens jurídicos
não eminentemente pessoais. Assim, quando os crimes ferissem bens eminentemente pessoais, só se
falava de crime continuado sempre que a vítima fosse a mesma, descartando assim a possibilidade
de verificação da figura quando de diferentes vítimas se tratasse, pois nestes casos,
desencaminhava-se na figura do concurso de infrações. Por outro lado, nos casos em que os bens
jurídicos violados não fossem eminentemente pessoais, bastava que o comportamento se dirigisse a
bens fundamentalmente semelhantes (v. g.: furto, roubo, dano). De forma exemplificativa
poderíamos imaginar uma situação em que A com uma faca ameaça e rouba os telefones de B e C,
agride D que tentava defendê-los do assalto e corre disparado a fugir. Importa referir que tal
interpretação era maioritariamente alcançada pelo recurso doutrinal.

Nesta senda e de forma comparada, no direito português, onde se encontra maior substracto o CP de
Angola, se a exclusão do crime continuado quanto a bens eminentemente pessoais de várias vítimas
apresentava-se unânime, já a excepção da aplicação da continuação criminosa quando os bens
eminentemente pessoais pertencessem a mesma vítima foi muito criticada, principalmente quando
48
Cfr. Eduardo CORREIA, Direito criminal II, Coimbra, Almedina, 2000, p. 211. (Itálico do autor).
49
Cfr. Paulo Pinto de ALBURQUERQUE, Comentário do Código de Processo PenaL. 2ª ed., UCE, 2010, p. 160.
50
Cfr. Germano Marques da SILVA, Direito Penal Tributário, Lisboa, UCE, 2009, p. 73.
32
estes crimes fossem acompanhados de ameaça grave, violência, abuso de autoridade resultante de
uma relação familiar de tutela ou curatela ou de uma dependência hierárquica, económica ou de
trabalho ou aproveitamento de temor causado sobre a vítima, por ausência da diminuição
considerável da culpa do agente51.

Deste modo, como resultado das duras críticas, em 2010, através da Lei nº 40/ 2010, de 3 de
Setembro, o nº 3 do artigo 30º do CP português, que corresponde ao nº 2 do artº 29º do CP
angolano, foi alterado e suprimiu-se a expressão «salvo tratando-se da mesma vítima». Nestes
moldes, a continuação criminosa já não se aplica aos bens eminentemente pessoais, mesmo quando
a vítima dos distintos actos seja a mesma pessoa. Fica, igualmente, deste modo, restringido o crime
continuado à violação plúrima de bens não eminentemente pessoais, independentemente de existir
uma ou mais vítimas, tal como sucedia antigamente onde se considerava que haveria crime
continuado sempre que nos crimes eminentemente pessoais a pessoa lesada fosse a mesma, assim,
somente em caso contrário se poderia falar de concurso de infracções; e , nos crimes que não
fossem eminentemente pessoais, bastava que o comportamento se dirigisse a bens
fundamentalmente semelhantes.

b. Homogeneidade da execução ou do comportamento

O assunto da verificação deste elemento na prática do crime não é, igualmente, pacifica na doutrina.
Manuel Cavaleiro de Ferreira entende que a execução do crime continuado por forma
essencialmente homogénea é, unicamente, um indício ou sintoma e não objectivo e condicionante
elemento da diminuição da culpa do agente. o mesmo autor considera de igual modo que a
execução da «continuação» de forma essencialmente homogénea pode levantar dúvidas em relação
à possibilidade de ser o crime continuado aplicado, quer nos casos de concurso real, como nos casos
de concurso ideal. Conclui referindo que o modo de execução por um só facto, no caso de concurso
ideal, não é apenas essencialmente homogéneo, pelo facto de ser mais do que isso, é a mesma
forma, visto que é o mesmo facto52.

Esta homogeneidade da execução significa que, não pode existir alterações na actuação ou no
comportamento do agente do crime, isto é, supõe a similitude do modus operandi do agente (não
podendo o mesmo num momento actuar sozinho e noutro acompanhado, ou hoje por acção e

51
Cfr. Paulo Pinto de ALBURQUERQUE, Comentário do Código de Processo Penal, 2ª ed., UCE, 2010, p.160.
52
Cfr. Manuel Cavaleiro de FERREIRA, Lições de Direito Penal. Parte Geral I, Almedina, 2010, p. 552.
33
amanhã por omissão, ou ainda como autor e posteriormente como cúmplice) e, principalmente, dos
meios utilizados aquando da realização do acto criminoso. Nesta senda, a prática do crime por
acção e a prática do crime por omissão são, essencialmente, heterogéneas. O mesmo sucede para a
comissão de crimes por dolo e por negligência. Caso contrário, colocaria em causa aquela
solicitação do exterior para a reiteração a qual, diminuindo a intensidade da censura de que podem
ser objecto várias resoluções que estão na base do crime continuado.

Com base no art. 29º do CP, a execução de forma essencialmente homogénea pressupõe a existência
de uma pluralidade de factos. Nestes moldes, não há crime continuado no caso de concurso ideal,
seja homogéneo ou heterogéneo, pois, alguma franja da doutrina considera que a diminuição da
culpa do agente em casos de repetição de condutas criminosas, foi a ideia chave para a delimitação
do âmbito do crime continuado.

c. Identidade da resolução criminosa

Uma vez que o crime continuado é constituído por uma pluralidade de infracções, a cada uma delas
deve presidir a sua própria resolução criminosa. Simplesmente, deve haver um elemento comum às
diversas resoluções. Elas são “idênticas”. E são assim consideradas por serem, até certo ponto, fruto
de circunstâncias exógenas que se apresentaram no quadro de uma idêntica solicitação exterior à
prática dos crimes e levam o agente à sua sucessiva repetição.

Este elemento tem que ver com o decidir cometer o crime. A decisão de cometer o crime deve ser a
mesma, isto é, o dolo ou a negligência do crime anterior é sucessivamente renovado em cada novo
crime para que o agente é arrastado. Da mesma forma que a conduta é objectivamente continuada,
também deve ser o dolo ou a negligência que aparece sempre que a nova resolução renova a
anterior, de tais modos que todas elas sejam conservadas dentro de “uma linha psicológica
continuada”. Assim, será fácil ver que «às sucessivas renovações da resolução corresponde sempre
uma diminuição progressiva da culpa do agente que, quanto mais vezes repate o crime, cada vez
mais facilmente se deixa sucumbir face ás relações que do exterior o puxam para o «facto»»53.

Importa aqui realçar que, não se trata de uma única(mesma) resolução criminosa, a presidir as
várias acçoões criminosas, como normalmente pensam uns, nem tão pouco de uma subordinação
dessas acçoes a um mesmo projecto, como dizem outros. De certo modo, o mesmo plano, o mesmo

53
Cfr. Orlando RODRIGUES, Apontamentos de Direito Penal, Escolar Editora, Lobito, 2014, p. 328.
34
desígnio ou resolução presidem a uma pluralidade de infracções que podem, em vez de diminuir,
aumentar a censurabilidade e a culpa do agente54.

d. Conexão Temporal e Espacial

O artigo 29º do CP não consagra de modo expresso os elementos de conexão temporal e espacial.
Entendemos que tal decorre de o mesmo só poder ser analisado casuisticamente. Assim, exige-se
uma certa conexão temporal e espacial entre os vários comportamentos ilícitos, pelo facto de que, a
existência ou mediação de um período de tempo muito dilatado entre as várias condutas criminosas
possibilita ao agente mobilizar os factores críticos da sua personalidade para avaliar a sua anterior
conduta de acordo com o Direito e afastar-se da mesma.

A conexão espacial supõe que os vários factos criminosos que constituem o crime continuado
ocorram num mesmo espaço. A ideia aqui subjacente é a da unidade das condutas pela conexão
espacial. Importa aqui salientar que este não é um elemento muito rigoroso, daí a razão de o temos
elencado em último lugar, já que a maior parte da doutrina coloca-o antes do elemento acima
analisado. A prática dos factos em locais distintos, separados ou não, por uma maior ou menor
distância, não afasta a possibilidade da verificação da continuação criminosa.

A título comparado, o direito brasileiro apresenta o elemento temporal e espacial como importantes
na determinação da continuação criminosa e, define o tempo em que devem ser praticadas as
condutas e é também indiferente que as condutas ocorram em distintos locais. Na visão de R ogério
Grego, a jurisprudência brasileira (Supremo Tribunal Federal) considera que se deve observar o
limite de 30 (trinta) dias que, uma vez extrapolado, afasta a possibilidade de se ter o segundo crime
como parte continuadora do primeiro. Quanto ao lugar, haverá crime continuado ainda que os
crimes sejam praticados em cidades do mesmo Estado, dito doutro modo, é indiferente que os actos
sejam praticados em locais separados por uma maior ou menor distância55.

54
Cfr. Ivi.
55
Cfr. Rogério GREDO, Código Penal Anotado, Niterói, RJ, Editora Impetus, 2008, pp. 258 e 259. (Nosso Sublinhado).
35
2.1.3 PUNIÇÃO

Tal como abordamos nas páginas anteriores, o crime continuado não se enquadra no âmbito de uma
hipótese de pluralidade de crimes ou de concurso de crimes, mas sim de unidade jurídica criminosa.
Desta feita, dentro desta lógica de pensamento, de igual modo a punição do crime continuado não
deve ser feita dento dos parâmetros do concurso de infracções.

A regra de punição do crime continuado vem consagrada no artº 80º do CP. Este artigo dispõe que
«o crime continuado é punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a
continuação».

Em regra, a moldura penal mais grave é aquela que apresenta o limite máximo mais grave. Desta
feita, se existirem várias condutas, que integram a continuação criminosa, puníveis com uma
moldura penal igual limite máximo, prevalece aquela moldura que tiver o limite mínimo mais
grave. Assim, na continuação criminosa não se procede à determinação da pena concreta a aplicar a
cada uma das condutas que constituem o crime continuado, mas apenas à determinação da pena que
seria aplicável a cada uma dessas condutas se consideradas autonomamente. A penalidade do crime
continuado não implica qualquer soma nem de penas concretas nem de penalidades, pois é
constituída pela penalidade aplicável à conduta mais grave (isto é, a penalidade mais grave)56.

É fundamental que de forma clara tenhamos a ideia de que, essa punição com a moldura penal da
conduta mais grave que integra a continuação criminosa de que o artº 80º do CP faz menção, não
significa que só um dos crimes agregados no crime continuado seja objecto de punição. O que na
verdade ocorre, de forma efectiva, é que aos vários crimes que integram o crime continuado é
aplicável, em conjunto, uma única pena e essa é a que seria aplicável a um só deles se todos fossem
puníveis com a mesma pena ou mais grave, sendo as penas aplicáveis diferentes.

Consideramos que, o regime de punição do crime continuado constitui uma excepção à punição do
concurso de crimes, tal como o próprio crime continuado constitui também uma exepção limitativa
à forma de concurso de crimes e releva uma diminuída gravidade da culpa do agente. No crime

56
Ibidem, p. 167.
36
continuado existe, como se sabe, uma unificação legal de uma pluralidade de condutas que
constituem uma continuação da actividade criminosa57.

2.1.4 O CONHECIMENTO SUPERVENIENTE DA CONTINUAÇÃO


CRIMINOSA

No que diz respeito ao conhecimento superveniente do crime continuado, o CP angolano nada diz,
dito doutro modo, não prevê situações de conduta superveniente da continuação criminosa.

Se depois de uma condenação transitada em julgado, for conhecida uma conduta mais grave que
integre a continuação, quid iuris?

Ao nosso ver, a opção do legislador em não consagrar as condutas supervenientes da continuação


criminosa apresenta-se contrária à logica da punição do próprio crime continuado apresentada nas
disposições do artigo 80º do actual CP angolano que, nos transmite a ideia de que «O crime
continuado é punível coma pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação.». Pode-
se dar ao caso de que a descoberta da conduta mais grave ocorra depois do agente do crime ter sido
condenado com sentença transitada em julgado. Em casos como este, não se deve consideram que
há caso julgado, uma vez que se deve incluir a nova conduta mediante novo julgamento e
consequentemente uma nova reformulação da pena58.

Neste âmbito, a falta desta previsão da continuação criminosa traduz-se numa injustiça material,
pois o agente do crime estaria a ser favorecido e nunca mais ser punido com a conduta mais grave.

São duas as soluções avançadas sobre esta questão: a de se proceder a um novo julgamento e a
competente revisão da sentença ou julgar-se autonomamente a conduta superveniente59.

Na primeira visão ocorreria uma espécie de anulação do julgamento em que se proferiu a sentença
onde julgava-se que o agente fora punido pela conduta mais grave e consequentemente a

Cfr. Germano Marques da SILVA, Direito Penal português: Parte Geral, Teoria das Penas e Medidas de Segurança,
57

Vol. III, 2ª edição, Lisboa/ São Paulo, Verbo, 2008, p. 186.


58
Cfr. Ibidem, p. 188.
59
Cfr. Bangula QUEMBA; Benja SATULA, Lições de Direito Penal Angolano. UCP Editora, Lisboa, 2023, pp. 185.
37
apresentação de uma nova sentença onde se enquadra a conduta mais grave cujo conhecimento foi a
posterior. Quanto as provas, apenas anexar-se-iam as referentes a esta outra conduta às já existentes
e arroladas no processo. Consideramos que esta via seria a mais viável para a realização da justiça
com justiça.

Num segundo momento poder-se-ia pensar na possibilidade de julgar-se de forma autónoma a


conduta superveniente e enxertar a decisão deste julgamento ao anterior. Consideramos que esta
segunda solução se apresenta menos viável, pois, uma vez que o crime continuado é tido como um
único crime, ao se julgar de forma autónoma uma conduta superveniente cairíamos no risco de
violar o princípio ne bis in idem que nos transmite a ideia de que ninguém pode ser julgado mais do
que uma vez pela prática do mesmo crime.

2.2 A REINCIDÊNCIA

São várias as vezes em que, no campo da medicina nos deparamos com o conceito recidivas,
normalmente utilizado aquando do aparecimento de uma enfermidade que à partida teria
desaparecido. O mesmo termo transposto no Direito Italiano nos dá o significado de reincidência,
isto é, recaída (recaduta em italiano)60. Do latim re e incidere, reincidência quer dizer precisamente
recair, voltar a cair, tornar a errar, retornar61.sempre numa visão negativa, a palavra reincidência está
associada à ideia de repetição de um erro e, a reincidência penal será justamente a repetição de um
crime.

Não tem sido tarefa fácil encontra um conceito de reincidência que seja internacionalmente
consensual e, por este motivo, podemos dizer que não existe um único e rigoroso conceito de
reincidência. É por este modo que, em sede do Direito comparado, os requisitos de reincidência
variam de pais para pais, havendo casos em que apenas se admite a reincidência especifica como

60
Cfr. Teresa Martina COSTA, Recidiva, in Enciclopedia Giuridica apud Joana Rita Rocha Simões de SOUSA, Da
Reincidência Penal - Os avanços e recuos de um instituto complexo – Dissertação apresentada no âmbito do 2.º Ciclo de
Estudos em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2013, p. 7.
61
Cfr. A.L Henriques SECCO, Theroria da Reincidência In Revista da Legislação e Jurisprudência, 9º Anno, n.º 420, p.
161.
38
circunstância agravante e outros, como é o caso de Portugal, em que a mesma natureza dos crimes
deixou de ser pressuposto essencial da reincidência62.

Não descartando a dificuldade de se encontrar um conceito de reincidência, tentaremos chegar a um


significado próximo desta.

Já verificamos que o conceito de reincidência esta ligado a ideia de recaída, de algo que se repete.
Em cede da nossa abordagem esta recaída será sempre a recaída num crime; o erro que se volta a
cometer aqui é, nem mais nem menos que a prática de um novo crime depois de já se ter cometido
outro anteriormente. Desta abordagem são retirados dois elementos essenciais, 1) a existência de
um único sujeito e 2) a pluralidade de delitos. O certo é que estes aspectos se mostram insuficientes,
sendo necessário somar-se a estes um terceiro ligado a necessidade de existência de uma sentença
de condenação pela prática do primeiro crime. É precisamente ente último que permite diferenciar a
reincidência do concurso de crimes bem como de outros casos ligados à repetição de delitos e que
vem justificar a agravação da moldura penal pela prática dos crimes posteriores.

Tendo presente os elementos supracitados, Marnoco e Sousa definiu reincidência como “o estado do
criminoso que comete um novo delito de uma condenação penal”63.

Por sua vez, Germano Marques da Silva vem dizer-nos que reincidência “é a repetição de crimes
dolosos”64.

De uma forma mais abrangente, a reincidência pode ser entendida como um daqueles casos em que
se verifica uma agravação da pena para aqueles agentes que cometem um crime depois de terem
sido condenados pela prática de outros delitos. Mas isto não basta, é necessário que se verifiquem
determinados pressupostos.

2.2.1 PRESSUPOSTOS E EFEITOS

O artigo 76º nos transmite a ideia de que:

62
Joana Rita Rocha Simões de SOUSA, Da Reincidência Penal - Os avanços e recuos de um instituto complexo –
Dissertação apresentada no âmbito do 2.º Ciclo de Estudos em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra, Coimbra, 2013, p. 8.
63
Cfr. Marnoco e SOUSA, «Da Reincidência no Direito Penal Português» in Estudos Jurídicos, Vol I, 1903, p. 14.
64
Cfr. Germano Marques da SILVA, Direito Penal Português: Teoria do Crime, Lisboa, UCE, 2012, p.421.
39
1. É punido como reincidente quem, por si só ou sob qualquer forma de comparticipação
cometer um crime doloso punível com pena de prisão superior a 1 ano, depois ter sido condenado
por sentença transitada em julgado em pena de prisão efectiva superior a 1 ano por outro crime
doloso, se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou
condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime.
2. O crime anterior por que o agente tenha sido condenado não releva para a reincidência se
entre a sua prática e a do crime seguinte tiverem decorrido mais de 6 anos, não sendo computado,
neste prazo o tempo durante o qual o agente tenha cumprido medida processual, pena ou medida de
segurança privativas de liberdade.
3. As condenações proferidas por tribunais estrangeiros contam para a reincidência nos
termos dos números anteriores, desde que o facto constitua crime segundo a lei angolana.
4. A prescrição da pena, o perdão genérico e o indulto não obstam à verificação da
reincidência.

Com base neste artigo, podem ser apontados como elementos da reincidência os seguintes:

 Um crime doloso: a reincidência só ocorre quando se tratar de crime doloso, não podendo
operar entre um crime doloso e um outro negligente, nem entre crimes negligentes (pressuposto
formal);
 Prisão efectiva superior a 1 ano por outro crime doloso (pressuposto formal);
 Sentença transitada em julgado (pressuposto formal);
 Entre a sua prática (crime anterior ou sentença transitada em julgado) e a prática do crime
seguinte (crime novo ou em julgamento) tiverem decorrido mais de 6 anos (pressuposto temporal);
 Não lhe terem servido de advertência contra o crime (pressuposto material), isto implica
dizer que, ao agente seja de censurar por as condenações anteriores não lhe terem servido de
suficiente advertência contra o crime.

Quanto aos efeitos, nos termos dos números 3 e 4 do artigo 76º do CP relevam, de igual modo, as
sentenças condenatórias proferidas por tribunais estrangeiros, desde que preencham os elementos
acima referidos, não obstante à verificação da reincidência a prescrição da pena, tal como se pode
verificar nos termos do artº 133º do CP, o perdão genérico constante do artº 138º também do CP e o
indulto previsto pelo mesmo artigo.

40
A interpretação que se pode fazer do artigo 77º do CP, está ligada a alteração de um terço (1/3) do
limite mínimo da moldura penal, sem descartar a possibilidade de atender a uma limitação legal
ligada a medida da pena mais grave aplicada na anterior condenação, isto é, ao agravar-se em um
terço o limite mínimo da moldura penal tem que se ter em conta se essa agravação não ultrapassa a
medida da pena transitada em julgado. No caso de a mesma exceder, deve-se proceder a uma
redução de conformação, ficando o limite mínimo igual à medida da pena mais grave que consta da
sentença transitada em julgado e tida como referência para efeitos de reincidência.

Podemos dizer que, a grande diferença entre a reincidência e o concurso de crimes reside no transito
em julgado, isto é, na reincidência, a condenação do crime anterior tem de transitar em julgado,
enquanto que no concurso de crimes tem de ser antes do transito em julgado da condenação.

2.2.2 CLASSIFICAÇÃO

Por se tratar de uma figura com contornos complexos, ao longo dos tempos foram verificadas
diferentes formas de classificação da reincidência.

É o por exemplo o caso do Direito Português que na visão de Eduardo Correia faz a distinção entre
reincidência específica, própria ou homótropa e reincidência ou polítropa, a depender da repetição
de condutas homogéneas ou heterogéneas65.

Cá entre nós, não é comum a doutrina fazer uma classificação clara de reincidência, por isso, a
classificação tida em conta tem sido sempre a derivada da lei.

Desta feita, com base à linha de pensamento legal, já no artigo 100º do CP/86 se classificava a
reincidência em primeira reincidência e segunda reincidência. Nos termos do nº 1, primeira parte do
artigo em questão, a primeira reincidência ocorria sempre que o agente praticasse o mesmo crime pela
segunda vez cabendo a esta uma agravação igual a metade da diferença os limites máximos e
mínimos. Já na terceira parte do mesmo número, encontrava-se a segunda reincidência que
normalmente ocorria sempre que o agente praticasse o mesmo crime pela terceira vez, sendo que para
estes casos a medida da pena era elevada com a metade do aumento da primeira reincidência.

65
Cfr. Eduardo CORREIA, «Reincidência e Sucessão de Crimes» in Revista de Legislação e Jurisprudência, 9º Anno, nº
427, p. 161.
41
O actual CP angolano não é claro quanto a isto, mas fazendo uma interpretação do nº1 (primeira
parte) do art. 76º do CP, apresentamos a possibilidade de classificar a reincidência tendo em conta as
modalidades de participação na comparticipação, isto é, dentro da teoria dos agentes. Assim teríamos
a reincidência simples e reincidência composta. A reincidência dir-se-á simples sempre que, em
autoria (material ou moral) o agente cometer um crime doloso depois de outro crime doloso
condenado por sentença transitada em julgado. Por outro lado, sempre que em cumplicidade (material
ou moral) o agente cometer um crime doloso a seguir a outro crime doloso condenado por sentença
transitada em julgado.

Acreditamos que esta classificação ajudaria na medida da culpa dos agentes em caso de reincidência.

2.3 A SUCESSÃO DE CRIMES

Ao abrigo do art. 37º do CP de 1886, havia sucessão de crimes:

Sempre que os crimes não fossem da mesma natureza, independentemente do tempo que medeia
entre o transito em julgado da primeira condenação e o segundo crime ou sempre que, os crimes
fossem da mesma natureza e tivessem passado mais de oito anos entre a condenação definitiva pelo
primeiro e o cometido do segundo.

Isto pelo facto de que, como se tratava de uma circunstância cuja natureza era semelhante à da
reincidência, esta recebia o nome de reincidência genérica, imprópria ou polítropa, não apenas pelo
facto da semelhança estrutural, mas também porque revelava o mesmo tipo de personalidade, o
mesmo género de tendência criminosa66.

O artigo 37º do CP de 1886 remetia de forma genérica para os termos declarados no art. 35º e de
forma especifica para os termos do n.º 2 e 5º do mesmo artigo. Era necessário que o agente fosse
condenado pelo crime anterior por sentença transitada em julgado, caso contrario tratar-se-ia de um
caso de acumulação de crimes.

Exigia-se também a homogeneidade subjectiva, não para que os crimes fossem considerados da
mesma natureza, senão eram enquadrados no âmbito da reincidência, mas por exigência expressa no

66
Cfr. Orlando RODRIGUES, Apontamentos de Direito Penal, Op. cit., p. 357
42
único número do artigo 37º. Assim ficava excluída a sucessão se um crime fosse doloso e outro
meramente culposo.67 Com base neste mesmo artigo não eram inclusos nessa linha a sucessão de
crimes amnistiados nem as condenações que fossem proferidas por tribunais militares por crimes
puramente militares e as sentenças proferidas por tribunais estrangeiros.

De uma forma curiosa, com a entrada em vigor do código penal de 2020, o instituto da sucessão de
crimes foi extinto. Acreditamos que esta decisão do legislador tenha resultado do facto de o mesmo
ter estado mais incorporado ao instituto da reincidência, não tendo assim uma autonomia sob o
ponto de vista legal e uma outra razão tem certamente que ver com as inovações simplificadoras da
própria política criminal.

67
Ibidem, p. 358.
43
III CAPÍTULO
A PUNIÇÃO DO CONCURSO EFECTIVO DE CRIMES

3.1 SISTEMAS DE PUNIÇÃO DO CONCURSO DE CRIMES

Nas páginas anteriores do nosso trabalho fomos fazendo abordagens, embora não muito detalhadas
em torno da questão relacionada a pena unitária que cabe a punição do concurso de crimes.

Neste capítulo, faremos um estudo mais particular e detalhado da forma de punição do concurso de
infracções adoptada pelo nosso legislador e, para que isto corra torna-se imperioso prima face
fixarmos o olhar àqueles que são tidos pela doutrina e pelo próprio Direito como os sistemas
norteadores da punição do concurso nos diferentes ordenamentos jurídicos.

3.2 O CÚMULO MATERIAL, O SISTEMA DE ABSORÇÃO E O CÚMULO


JURÍDICO

É tradicional a doutrina e o Direito terem como alicerce das fundamentações inerentes ao concurso
de crimes o sistema do cúmulo material das penas ou cumulação material, o sistema de absorção e o
sistema do cúmulo jurídico.

«Em princípio, uma pluralidade de crimes deveria determinar a aplicação de uma pluralidade de
penas em acumulação ou cúmulo material, que corresponderia à soma (aritmética) das penas de
todos os crimes em concurso, uma vez que a cada crime corresponde uma pena.»68.

Deste modo, na presença de um concurso efectivo de crimes, suscita-se imediatamente a questão de


saber se devem ser ou não respeitados de forma integral os princípios gerais de determinção da
pena. Se sim, valerá então, sem qualquer limitação o princípio tot poena quod delicta, que de certa
forma conduzirá directamente ao dito sistema da “acumulação material” onde: o juiz determina a
pena que cabe a cada crime concorrente como se de caso de unidade criminosa se tratasse; e aplica-
se ao agente a totalidade das penas determinadas. Subsequentemente, por seu turno, estas serão

68
Orlando RODRIGUES, Apontamentos de Direito Penal, Escolar Editora, Lobito, 2014, p. 310. (Sublinhado do autor).
44
sucessivamente cumpridas, se tiverem a mesma natureza (v. g., 4 penas de prisão); ou sê-lo-ão
simultaneamente, se o mesmo se apresentar materialmente possível (v. g.,1 pena de prisão e 1 pena
de multa)69.

Porém, mesmo quando um tal sistema se disponha de limites destinados a permitir o seu
funcionamento e a racionalizar a execução – máxime, quando à acumulação material se oponham
“limites máximos da pena”70, nem assim são evitados os seu graves e evidentes defeitos politico-
criminais. Por outro lado, a adopção deste sistema é contrário ao princípio da culpa, uma vez que, a
soma aritmética das penas aumentaria injustamente a sua gravidade proporcional, abrindo a
possibilidade de o limite da culpa ser de tal modo ultrapassado, desencadeando quer em penas de
prisão, quer em penas de multa muito elevadas.

Do ponto de vista histórico, os sistemas penais que «(…), seguiram esse caminho viram-se
obrigados quer por razões de natureza processual, de impossibilidade física, de política criminal, de
realização da justiça ou para evitar violências desnecessárias que colidiram com os próprios fiz das
penas, a colocar limites ao cúmulo material suavizando-o. Tratar-se-ia, então, daquilo a que se
chamou o cúmulo material mitigado.»71.

Na sua pura concepção, esse sistema, não se encontra hoje consagrado na maior parte dos sistemas
jurídicos, mas de forma impura podemos encontrar consagrado no ordenamento jurídico do Brasil e
de alguns Estados dos Estados Unidos de América. Desde logo por apresentar certas dificuldades
invencíveis, que são suscitadas a nível da “execução” e até porque, noutros casos, uma possível
execução levaria a modificação da espécie da pena (v. g., execução de 10 penas de prisão de 15 anos
cada transformaria penas temporárias de prisão em penas de prisão perpetua; pena que, inclusive à
luz do sistema sancionatório angolano é proibida, tal como resulta do artigo 59º da CRA e 41º, nº1
do CP angolano).

Uma outra posição consistia em considerar apenas a pena correspondente ao crime mais grave que
absorve todos os outros tidos como menos graves; a aplicação a todas os crimes concorrentes da

69
Cfr. Jorge de Figueiredo DIAS, Direito Penal Português II. As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora,
1ª ed., 4ª Reimpressão, Sl, 2013, p. 279.
70
Como sucede por exemplo com os sistemas italianos e brasileiro de punição de concurso real: cf. arts. 71º e ss. E 69º e
ss dos respectivos CPs. Também o CP espanhol ordena, no seu art. 69º, a acumulação material «sempre que seja
possível».
71
Orlando RODRIGUES, Apontamentos de Direito Penal, Escolar Editora, Lobito, 2014, p. 310. (Sublinhado do autor).
45
pena concorrente mais grave. Aqui, verificar-se-ia, como dissemos nas páginas anteriores, aquando
da abordagem da característicad a consunção ou absorção, que se verifica nos casos de concurso
aparente de infracções o princípio “lex conumens derrogati legi consunptae”.

No entanto, a generalidade das legislações manda construir para a punição do concurso, uma pena
única ou pena do concurso, que resulta das penas parcelarmente aplicadas a cada crime. Deste
Modo, no sistema do “cúmulo jurídico”, aplica-se uma só pena que representa a soma jurídica (não
aritmética) das penas parcelares, que mais ou menos mantêm a sua autonomia; soma-se uma única
ou total, em que se unificam juridicamente as penas correspondentes a cada infracção.

No sistema do cúmulo jurídico, que constitui a regra, a cada crime corresponderá uma pena, mas as
penas correspondentes às várias infracções são depois unificadas numa pena total. Deverá por isso,
aplicar-se a cada crime uma pena correspectiva e só depois proceder a soma de todas as penas
parcelarmente aplicadas. As regras de aplicação das penas graduação, agravação e atenuação,
devem respeitar as penas correspondentes a cada crime. As circunstâncias referem-se a cada crime e
influenciam a culpabilidade particular de cada crime. As regras do concurso72 de penas já actuam
sobre as penas judicialmente individualizadas. O professor Eduardo Correia, seguiu uma posição
contrária.

É este o sistema adoptado como regra pelo legislador de 1886 (embora com algumas excepções que
mais adiante veremos) e de igual modo adoptado pelo legislador do CP de 2020, numa desenvoltura
diferente, por se apresentar como o mais viável para a realização da justiça.

3.3 O CÚMULO JURÍDICO NO CÓDIGO PENAL DE 1886

Na passagem do CP de 1886 para o CP de 2020, foram feitas inúmeras alterações e uma delas tem
que ver com o concurso de crimes e a sua forma de punição.

Anteriormente, a punição do concurso de infracções apresentava alguns contornos diferentes dos


que actualmente são usados pelo sistema sancionatório angolano, por esta via, eram considerados

72
Cfr. Cavaleiro FERREIRA, Direito Penal II Texto de Apoio n.º 4 Direito Penal Português, Faculdade de Direito da
Universidade Agostinho Neto, Luanda, 1999, página 459 & José Eduardo SAMBO – Sebenta de Direito Penal II da
Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto, pp. 58-74.
46
pela maioria dos juristas como complexos. É assim que, o CP de 1886, no seu artigo 102º, seguia
como regra geral, o sistema do cúmulo jurídico, admitindo em determinados casos, o sistema da
acumulação material. E da aplicação da regulamentação legal resultava, em casos concretos, a
absorção das penas dos crimes concorrentes pela pena mais grave, embora essa absorção em sentido
material não o fosse em sentido jurídico, porquanto a pena mais grave era sempre uma pena total
representativa das penas parcelares correspondentes aos vários crimes em concurso.

3.3.1 SENTIDOS DA PENA NO CÓDIGO PENAL DE 1886

Para que possamos entrar de uma forma integra no universo do concurso de crimes ao abrigo do
CP/86, é necessário que antes de mais fixemos o olhar aos sentidos que o termo pena poderia
apresentar na vigência do condigo penal em questão. Assim sendo, no código penal de 1886, o termo
pena poderia aparecer como: espécies de pena, penalidade ou moldura penal e pena concretamente
aplicada.

Quanto ao primeiro sentido, nos termos do artigo 55º e ss do diploma em questão, a pena poderia
aparecer como penas maiores, penas correccionais e penas especiais para os empregados públicos.

Com base nos dispostos do artigo 55º do CP/86, as penas maiores poderiam ser: pena de prisão maior
de 20-24, pena de prisão maior de 16-20, pena de prisão maior de 12-16, pena de prisão maior de 8-
12, pena de prisão maior de 2-8 e pena de suspensão dos direitos políticos por tempo de quinze ou de
vinte anos. Prima Facie, todas as penas supra apresentadas eram variáveis por conterem balizas
(limite mínimo e limite máximo), mas na visão de alguns doutrinadores como é o caso de Grandão
Ramos73, bem como na visão da própria lei (parágrafo 2º do art.º 129º), as penas constantes dos nºs
1,2,3,4, eram consideradas penas invariáveis porque tinham substituído as antigas penas fixas e só a
pena do nº 5 era considerada como pena variável.

Nos termos do artigo 56º do diploma em analise, as penas correccionais eram: pena de prisão de três
dias a dois anos, a de desterro, a de suspensão temporária de direitos políticos, a de multa e a de
repreensão. A pena de demissão, a de suspensão e a de censura, eram enquadradas na última espécie
de penas tal como constava dos termos do art.º 57º do mesmo diploma.

73
Vasco Grandão RAMOS – ESTUDO DAS PENAS - Sumários das aulas ministradas na cadeira de Direito Penal II,
Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto, Luanda, 2001, p. 9.
47
O segundo sentido da pena (penalidade), dizia respeito aos limites mínimo e máximo presentes em
cada crime. A penalidade poderia ser simples quando fosse composta por uma só espécie de pena
(art.º 421º, nº5 CP/86) e compósita quando fosse constituída por mais de uma espécie de pena (artigos
421º, nº4, 233º, 192º do CP/86). Por sua vez esta poderia ser alternativa (paralela ou de valor
diferenciado) e mista.

A pena concretamente aplicada era o último sentido que o termo poderia apresentar e dizia respeito a
pena aplicada pelo juiz na sentença74.

Importa realçar que tal qualificação das espécies de penas tinha uma importância que residia na
diferença dos efeitos que cada pena poderia apresentar (art.º 75º do CP/86).

Assim, com base no artº 102º, ao concurso de crimes do CP de 1886, eram aplicáveis as seguintes
regras:

a) Individualização da pena correspondente a cada crime (determinação das penas


parcelares): em harmonia com regras estudadas em sede determinação legal da medida da
penalidade e da determinação judicial da medida da pena, na hipótese desas penas ainda não terem
sido individualizadas;
b) Determinação da penalidade do cúmulo jurídico (DPCJ): de acordo as regras do artigo
102º, nº 1 e dois do CP de 1886, a partir das penalidades na sua medida legal ordinária ou
extraordinária, dentro das quais as penas parcelares correspondentes aos crimes cometidos que
forem estabelecidos;
c) Verificação da conformidade da penalidade do cúmulo (VCPC): esta regra resultava das
disposições explicitas no nº 2, parte final do artº 102º do diploma em questão, eventual redução do
limite máximo da respectiva moldura penal abstracta até ao valor da soma das penas parcelares;
eventual elevação do mínimo para a mesma moldura para a medida da maior das penas parcelares; e
em consequência formação eventual da nova penalidade do cúmulo, sob a forma ou não de uma
moldura penal diferente ( moldura penal concreta e penalidade fixa);
d) Graduação das penas (GP): esta era feita dentro da moldura penal do cúmulo assim
determinada da pena única, dito doutro modo, agravação da pena feita pelo juiz em função do
número de crimes cometidos e da gravidade deles.

74
Vasco Grandão RAMOS, Op. Cit., p. 9.
48
De uma forma mais claras e célere a operação do cúmulo Jurídico ao abrigo do CP de 1886 pode ser
reduzida nas seguintes operações:

Primeira Fase: Determinação das Penas Parcelares:

1ª Operação da primeira fase: D.M.L.P.

1º Passo: Subsumir ao tipo legal de crime;

2º Passo: Verificar a forma em que o crime foi cometido (consumado, frustrado…);

3º Passo: Verificar a que título o agente praticou o crime (autor, cúmplice…);

4ª Passo Verificar se existem circunstância modificativas agravantes ou atenuantes (agravantes: por


exemplo a reincidência e a sucessão devendo-se aplicar apenas uma delas, a mais grave, tal como se
pode ver no artº 96º do CP. Atenuantes: por exemplo a provocação.).

2ª Operação da primeira fase: D.M.J.P.

1º Passo: Graduação-artº 84º;

2º Passo: Individualização definitiva da pena (agravação ou atenuação – artsº 34º e 39º do CP; aqui
pode surgir agravante sucessão de crimes como agravante geral).

Segunda Fase: D.P.U (cúmulo jurídico)

1ª Operação de segunda fase: D.M.P.A.C.J. nos termos do nº 1 ou nº 2 do artº 102º

2ª Operação da segunda fase: D.M.P.C.C.J. nos termos do segundo parágrafo, de segunda parte do
artº 102º

Correcção: N.M.P.C.C.J

Graduação: P.U.

Podemos tomar como exemplo:

1º Crime: Roubo Qualificado (consumado e em autoria) - condenado a 14 anos de prisão maior

2º Crime: Posse Ilegal de armas (consumado e em autoria) - condenado a 9 meses de prisão


correccional

49
Roubo Qualificado-Penalidade de 20 a 24 anos

Posse Ilegal- penalidade de 3 dias a 2 anos e multa Kz. 2.000,00 a 10.000,00

Por se tratar de penalidades diferentes deve ser feita uma atenuação extraordinária – artº 102º, nº 2 –
seriam 20 a 24 anos de p.m. agravada, mas por força da atenuação extraordinária fica de 12 a 16
anos de p.m. agravada.

Determinação da penalidade concreta – soma das penas parcelares (art. 98º do CP de 1886)

Por se tratar de uma p.c., a pena do crime de posse ilegal deve ser convertida em prisão maior
assim: 9 x 2/3= 18/3 = 6 meses de prisão maior.

Soma:

Na penalidade de 12 a 16 aplicamos 14 anos de p.m.

Na penalidade de 3 meses a 2 anos de p.c. – convertidos aplicamos 6 meses de p.m.

14 anos +6 meses = 14 anos e 6 meses de p.m. e Kz. 8.000,00 de multa (limite máximo)

P. U. – 14 anos e 2 meses de p.m. e Kz 8.000,00 de multa

Regra lógica (implícita): a pena única não pode, por um lado, ser inferior a qualquer das penas
parcelares, no caso, à maior das parcelares (14 anos de p.m.) correspondente ao Roubo Qualificado.
Assim, a penalidade ficou em 14 anos (mínimo) a 14 anos e 6 meses p.m. (máximo)75.

3.4 O CÚMULO JURÍDICO NO ACTUAL CÓDIGO PENAL ANGOLANO

O artigo 78º do actual CP angolano, ainda consagra o concurso de infracções com uma só pena, isto
é, uma pena unitária, porém, com maior facilidade e clareza, pois ultrapassou os contornos
complexos que o sistema do cúmulo jurídico regulado pelo CP de 1886 apresentava aos aplicadores
do Direito Penal, em particular aos juízes.

75
Formulação própria do exemplo, resultante das aulas de explicação ministradas pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal de
Comarca do Huambo Bruno Ferreira.
50
3.5 FASES E OPERAÇÕES DE RESOLUÇÃO

O processo da operação jurídica do cúmulo Jurídico ficou reduzido a duas fases de grande
simplicidade: a I fase é a da determinação das penas parcelares (D.P.P.) que comporta duas
operações, a 1ª tem que ver com a determinação da medida Legal da pena (D.M.L.P.) e a 2ª prende-
se a determinação da medida judicial da pena (D.M.J.P..). A II fase por sua vez, comporta apenas
uma operação, a da determinação da medida legal do cúmulo jurídico (D.M.L.C.J.) que na sua
desenvoltura apresenta uma sub-operação ligada à graduação da pena que dá origem a pena única
(P.U.) do concurso.

Assim, de uma forma mais compreensível temos:

I Fase – Determinação das Penas Parcelares:

1ª Operação – Determinação da medida legal da pena (D.M.L.P.)

2ª Determinação da medida judicial da pena (D.M.J.P.)

II Fase – Determinação da Pena Única

1ª Operação – Determinação da medida ou moldura legal do cúmulo jurídico (comportando o limite


máximo e o limite mínimo nos termos do n.º 2 e 3 do artº 78ºdo CP):

Sub-operação– Determinação da pena única (D.P.U., artº 78º, n.º 4 do CP) por via da graduação (n.º
1 do mesmo artigo).

De forma explicativa poderíamos dizer que, na primeira operação da primeira fase que consiste na
determinação da medida legal da pena é necessário que se saiba se o crime foi cometido por autoria
ou co- autoria, se foi uma tentativa ou consumação e ainda se há circunstâncias agravantes ou
atenuantes modificativas. A seguir a este procedimento, vai-se ao tipo, e são estraídos os dados
como: a nominação do crime cometido, o artigo onde se encontra consagrados a medida lega
prevista. V. g.: A comete os crimes de Homicídio Simples – artº 147º - 14 a 20 anos; Homicídio
Qualificado – artº 148º - art. 148º - 20 a 25 anos; Ofensas Corporais – artº 164º - 3 Meses a 1 ano.

51
Tendo como base a medida da pena onde deve atender-se a culpa do agente, as exigências de
prevenção geral e especial76 constantes do nº 1 do artº 42º e do artº 70º do actual CP, bem como as
circunstâncias agravantes e atenuantes modificativas, na segunda operação , a da determinação da
medida judicial da pena o juiz aplicará penas de forma individual a cada crime, as chamadas penas
parcelares v. g.: suponhamos que o juiz tenha aplicado para o crime de Homicídio Simples – 16
anos; Homicídio Qualificado – 19 anos; Ofensas corporais 8 Meses.

Na segunda fase temos a operação da determinação da medida legal do cúmulo jurídico que,
consiste em achar a moldura legal abstracta aplicável ao concurso, sendo que, para o limite máximo
são somadas todas as penas concretamente aplicadas aos vários crimes na fase anterior, não
podendo ultrapassar os 35 anos, no caso de pena de prisão e 900 dias, no caso de pena de multa tal
como consta no nº 2 do artº 78º do CP. No que toca ao Limite mínimo, este deve corresponder a
mais elevada das penas parcelarmente aplicada aos vários crimes, tal consta do n.º 3 do mesmo
artigo. v. g.: 16 anos + 19 anos + 8 meses = 35,8 anos (ultrapassa, logo é feita a correcção e passa
para 35 anos). Para o limite mínimo temos 19 anos por ser a mais elevada das penas aplicadas
parcelarmente.

Assim teríamos como moldura abstracta do cúmulo jurídico 19 a 35 anos.

Por último, a pena unitária do concurso, o juiz deve basear-se na operação da graduação (explicada
nas páginas anteriores). Assim: 19 a 35 anos há uma diferença de 17 anos; 16 ÷ 2 = 8. Este 8 deve
ser acrescido ao limite mínimo ou ao limite máximo que consta na moldura penal abstracta do
cúmulo – 18 + 8 = 26. Assim sendo, a pena única do concurso será de 26 anos (resultantes da
graduação da pena)77.

Podemos determinar a pena única de C que praticou os crimes de: homicídio negligente, alta
traição, um crime punido com 23 anos de prisão, açabarcamento e especulação.78

Resolução:

I FASE – DPP:

76
Acórdão do Tribunal Supremo, 1ª Secção da Câmara Criminal, processo nº 5882/21, Luanda, 28 de Julho de 2022.
77
Formulação própria do exemplo.
78
Exemplo retirado da 2ª prova de frequência de Direito Penal II no Instituto Superior Politécnico Católico do Huambo,
segundo semestre de 2023.
52
1ª OPERAÇÃO- D.M.L.P.:

Homicídio Negligente – art. 152º, n.º 2 do CP – 1 a 5 anos

Alta Traição – art. 310º do CP – 10 a 20 anos

Um crime punido com 23 anos de prisão

Açabarcamento – art.º 446º, n.º 1 do CP – prisão até 2 anos ou multa até 240 dias

Especulação – art. 447º do CP – prisão até 1 ano ou multa até 120 dias

2ª OPERAÇÃO – D.M.J.P. (com base nos artigos 42º, nº 1 e 70º ambos do CP):

Homicídio Negligente – 4 anos

Alta Traição – 12 anos

23 anos de um crime punido com tal pena sugerida

Açabarcamento – 140 dias de multa

Especulação – 80 dias de multa

II FASE (com base no nº 2 e 3 do artigo 78º)

1ª OPERAÇÃO – D.M.L.C.J.:

Prisão: 4 + 12 + 23 = 39 anos de prisão (corrigindo- 35 anos de prisão)

Assim, para a pena de prisão temos como moldura penal abstracta de 23 a 35 anos.

Multa:140 + 80 = 220 dias de multa.

Assim, para a pena de multa temos como moldura penal abstracta 140 a 220 dias

Após a sub-operação da graduação teremos como pena única 29 anos de prisão e 180 de multa.

Convertendo (com base no n.º 3 do artigo 4º da Lei n.º 38/20 de 11 de Novembro e 47º, nº 2 do CP:

53
200URP x 88 = 17.600,00

17.600,00 x 180 = 3. 168.000,00

Assim, C será condenado numa pena de prisão de 29 anos e a 180 dias de multa que convertidos
correspondem a 3.168.000,00.

Tal como acima ilustramos, uma outra inovação trazida pelo novo CP angolanos, tem
necessariamente que ver com a aplicação das regras do concurso às penas de multa, ou seja, há
aagora a possibilidade de igual modo unificar a pena de multa nos casos de concurso de crimes.
Porém, nos casos de existirem crimes punidos concretamente só com a pena prisão e crimes punidos
concretamente só com pena de multa, cumulam-se as duas penas, sendo o agente condenado numa
pena unitária de prisão e numa pena unitária de multa.

3.6 O CONHECIMENTO SUPERVENIENTE DO CONCURSO

Tal como se entendia à luz dos preceitos que o código de 1886 trazia, as regras do cúmulo
consagradas no artº 78º do actual CP angolano, aplicam-se, em princípio, mesmo em casos de
conhecimento superveniente do concurso cuja previsão consta do artº 79º do mesmo diploma legal.

Desta feita, a necessidade de estabelecer regras para o caso de, posteriormente à condenação por um
crime, surgir o conhecimento de que o réu praticou anteriormente outro ou outros crimes, fez com
que os termos do artigo supracitado estabelecesse que:

1. Se depois de uma condenação transitada em julgado, mas antes de a respectiva pena estar
cumprida, prescrita ou extinta, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação,
outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior.
2. O disposto no número anterior é ainda aplicável no caso de todos os crimes terem sido
objecto separadamente de condenação transitada em julgado.
3. As penas acessórias e as medidas de segurança aplicadas na sentença anterior mantêm-se
salvo quando se mostrarem desnecessárias em vista da nova decisão.
4. Se forem aplicáveis apenas ao crime que falta apreciar as penas e medida de segurança
referidas no n.º 3, só são decretadas se ainda forem necessárias em face da decisão anterior.

54
Entendemos que, a situação prevista na lei ocorre quando o tribunal teve conhecimento, depois de
ter transitado em julgado uma dada condenação, que outro ou outros crimes foram praticados pelo
arguido antes deste trânsito, estando, por isso, esse ou esses crimes em concurso com o primeiro e
devendo ser objecto, todos eles, de uma pena conjunta ou unitária.

Porém, não se pode confundir a formulação do cúmulo Jurídico resultante do conhecimento


superveniente do concurso com situações decorrentes de novos crimes cometidos depois de uma
anterior condenação transitada79.

Nesta linhagem, se, após ter sido anteriormente condenado numa pena declarada suspensa na sua
execução o arguido vier a cometer uma nova infracção, pela qual sofra condenação, caberá ao juiz
competente para a execução, com obediência à regra do contraditório, reapreciar a situação em que
o condenado se encontra e decidir-se pela revogação ou não da anterior suspensão da execução da
pena.

Se optar pela revogação, é óbvio que as penas das duas condenações manter-se-ão autónomas (não
sendo necessário efectuar qualquer cúmulo) e serão efectuadas sucessivamente.

Pois, não é para estas situações que o artigo 79º do CP se destina, não devendo por isso aceitar-se o
chamado cúmulo por arrastamento.

De forma diferente ocorre quando, após uma condenação anterior transitada, e antes de a pena que
lhe corresponde estar cumprida, prescrita ou extinta, se vier a provar que anteriormente àquela
condenação o agente praticou outro ou outros crimes que, com o crime que se lhe segue
(precedente), formem um concurso de infracções ou moderadamente aos quais não se fez o cúmulo
das respectivas penas80.

Se tal se verificar, só resta ao tribunal competente (o da última condenação), fazer aquilo que
deveria ter sido feito e que apenas não se fez porque se desconhecia essa anterior condenação, que
tem que ver com o estabelecimento de uma única pena, fazendo constar a primária e desconhecida
condenação e a última. Como temos defendido, são então também abarcadas as penas, em concurso,
cuja execução está suspensa.

79
Cfr. Manuel Simas SANTOS, Direito Penal de Angola, Escolar Editora, Lobito, 2021, p. 241.
80
Cfr. Ivi.
55
Este pensamento, resulta do n.º 1 do artº 79º, que constitui, assim, um alargamento do regime
instituído pelo artº 78º ambos do CP.

Não faz muita diferença o facto de as penas parcelares terem sido fixadas no processo onde se
procede ao cúmulo, ou noutro(noutros) com decisão transitada. Quer num caso quer noutro o
tribunal deve aplicar de novo a mesma regra de direito, determinando a pena única que engloba
todas as parcelares, sendo que para esta fixação devera ter sempre presente o conjunto dos factos e a
personalidade do agente.

Por várias razoes, a questão apresentada pelo nº 3 do artº 79º, é aplicável aos preceitos não penais
da condenação – apreensão e perda de coisas e direitos e indeminização por perdas e danos.

Por conseguinte, de uma forma breve, o artº 79º manda aplicar as regras do concurso constantes do
art. 78º às seguintes situações:

 Penas correspondestes a crimes cometidos antes do transito em julgado de uma


condenação anterior ainda não totalmente cumprida prescrita ou extinta;
 Penas correspondentes a diversos crimes cometidos em concurso, objecto de condenação
separadas, e ainda que já transitadas, relactivamente às quais não se ferz ainda o respectivo cúmulo
jurídico.

3.7 SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS

Por se tratar de um estudo bibliográfico-comparativo, torna-se fundamental fazer menção aos traços
que se apresentaram similares entre os dois diplomas legais bem como àquelas que por um ou outro
aspecto fizeram com que os diplomas em questão se diferenciassem.

Assim, a baixo apresentaremos as principais semelhanças e diferenças encontradas em sede do


nosso estudo.

56
3.7.1 SEMELHANÇAS

Sobre o assunto do concurso de crimes, não são muitas as semelhanças existentes entre os dois
códigos. Assim, podem sem apontadas como semelhanças as seguintes: os dois diplomas preveem,
aplicam e punem o concurso de crimes. Ainda podem ser acrescidas a este leque as seguintes:

 Determinação do quantum da pena: em ambos os códigos a pena aplicada ao concurso de


crimes é determinada tomando em consideração a gravidade dos delitos, a personalidade do
agente, as circunstâncias do crime e outros factores relevantes;
 No que toca a continuação criminosa: nos dois códigos é estabelecido que quando o agente
pratica uma serie de crimes em um mesmo cotexto ou de forma conexa, eles serão
considerados como um único acto delituoso podendo resultar em uma única pena mais
elevada.

O actual código aplica ao concurso de crimes a mesma regra aplicada pelo antigo código no que diz
respeito a pena ou penas de multas, sendo sempre cumuladas com outras penas. A grande diferença
que neste quesito apresentam, será analisada num dos subpontos do ponto diferenças, no sentido de
seguirmos a lógica e não cairmos em contradição.

3.7.2 DIFERENÇAS

Ao contrário do que ocorre com as semelhanças, o número de diferenças apresentado pelos dois
códigos é maior e serão baseadas em diferentes critérios:

A) Quanto ao conceito: o CP de 1886 conceitua o concurso de crimes considerando-o uma


acumulação de crimes, como sendo aquele que ocorre «quando o agente comete mais de um crime
na mesma ocasião, ou quando tendo perpetrado um, comete outro antes de ter sido condenado pelo
anterior, por sentença passada em julgado.» (art. 38º do CP de 1886), de forma diferente o CP de
2020 entende-o com «o número de crimes que se determina pelo número de crimes efectivamente
preenchidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for realizado pela conduta do
agente.» (artº 78º nº1 do actual CP).

57
B) Quanto ao limite máximo penal: enquanto o código penal de 1886 punia o concurso de
crimes com um limite máximo de até 24 anos, por ser a maior pena prevista por ele, salvo raras
situações que poderia chegar até 30 anos (artº 55º nº 1, disposições gerais, art. 553º, crime de
envenenamento e artigo 355º, crimes de parricídio, todos do CP de 1886) o CP de 2020 prevê o
concurso de crimes com uma pena máxima de 35 anos (artº 44º nº 2, artº 78, nº 2-segunda parte,
ambos do CP de 2020).
C) Quanto ao formalismo: enquanto o CP de 1886 aplicava um formalismo muito complexo
decorrente da aplicação de vários artigos que exigia um nível avançado de interpretação, sendo que
para alguns casos, havia a possibilidade de se fazer recurso ao instituto da atenuação extraordinária
das penas. Por sua vez, o actual CP serve-se de um formalismo mais simples e direcionado
anulando o recurso a alguns institutos.
D) Quanto ao concurso aparente: legal ou impuro: o CP de 1886 consagra a existência do
concurso aparente nos termos do seu artigo 38º, porém não o aceita como sendo acumulação de
crimes na medida em que diz que «quando o mesmo facto é previsto e punido em duas ou mais
disposições legais como constituindo crimes diversos, não se dá a acumulação de crimes». Por outro
lado, o actual CP, à semelhança do CP de 1886, numa primeira fase nega o concurso aparente, legal
ou impuro afirmando que «não há concurso de crimes quando o facto è, no todo ou em parte
qualificado como crime por mais de uma norma penal incriminadora» (nº 2 do artº 28º. Porém, o
seu nº 3, em insistência da aceitação, contraria-se dizendo que verificando situações do género,
estas devem ser regidas pelo princípio da especialidade e subsidiariedade.
E) Quanto as espécies de pena: a expressão pena apresenta três sentidos, espécie de penas,
penalidade ou moldura penal abstracta e pena concreta. No CP de 1886 encontramos preenchido o
sentido da pena enquanto espécie da pena, tal como se pode verificar nos termos do art.º 55º e ss do
diploma em questão. De forma diferente, o actual CP não faz a citação exaustivamente, a mesma
apenas pode resultar de um possível processo de interpretação particularizada do art.º 39º do CP. O
que na verdade não existem hoje são as ramificações da pena de prisão (em maior ou correccional)
tal como outrora abordamos no trabalho, dito doutro modo, hoje a prisão é simples e única. Simples
porque os efeitos já não são automáticos como outrora eram, o único efeito automático presente no
actual código tem que ver com a inscrição no registro criminal. Única porque não existem espécies
de penas de prisão.

58
Outro sim esta ligado a pena enquanto penalidade, isto é, no actual CP angolano existem apenas
penalidades simples (art.º 147º do CP) e penalidades compósitas alternativas paralelas (art.º 159º, nº
1 do CP) não apresentando penalidades de valor e âmbito diferenciado ou penalidades mistas.

F) Quanto a diferença entre as penas: com base no artº 98º do CP de 1886 não se podia
acumular uma pena correccional com uma pena de prisão maior, tal como outrora explicamos numa
das páginas do nosso trabalho, pois era necessário fazer a correspondência da pena correcional a
dois terços da pena de prisão e esta a dois terços da pena de prisão maior. O actual código penal não
prevê esse tipo de penas logo, ignora-se tal questão.
G) Quanto a graduação da pena: embora tendo a culpabilidade como seu principal critério
(art.º 84º) no CP/86 à graduação estavam ligados elementos como o número de crimes, a gravidade
dos factos e os fins da pena (a analise destes elementos é que dava um nível alto, médio ou reduzido
de culpabilidade). Hoje, nos termos do art.º 78º, nº4, a graduação tem como critérios os factos e a
personalidade do agente.
H) Quanto a pena de multa: embora a regra do concurso de crimes fosse a do cúmulo jurídico,
no CP/86, excepcionalmente, nos casos de acumulação de penas de multa era utilizado o sistema de
acumulação material (art.º 102º, parágrafo 1), o que não acontece actualmente.

Estes são os pontos similares e diferentes que achamos aquando das nossas pesquisas por
intermedio do método comparado, que desencadeiam nalgumas vantagens e desvantagens.

3.7.3 VANTAGENS E DESVANTAGENS

É imprescindível a apresentação de vantagens e desvantagens após um estudo comparado, pois elas


nos oferecem uma visão geral, equilibrada e informada sobre as diferentes visões que neste trabalho
foram analisadas. Assim, tornar-se-ia um pouco ambíguo se não as apresentássemos devido as
alterações feitas sobre a matéria na passagem do antigo para o actual código penal angolano.

Vantagens:

 Maior clareza: as alterações trouxeram uma definição mais clara e precisa do conceito de
concurso de crimes bem como critérios mais claros e objectivos para determinar como os crimes

59
devem ser agrupados e punidos quando em concurso, isto desencadeará na vantagem a seguir a
esta;
 Maior justiça: garantem uma maior justiça na aplicação da lei, permitindo a adequada punição
para pessoas que cometem crimes em concurso, sem exceder o limite máximo de pena com
sanções desproporcionais;
 Maior eficácia na prevenção e repreensão criminal: as alterações feitas ajustaram as regras do
concurso de crimes a serem mais eficazes na prevenção e repreensão criminal, isto por meio de
penalidades mais graves para crimes cometidos em conjunto, incentivando a colaboração dos
acusados no processo penal ou estabelecendo penas mínimas e máximas mais claras para casos de
concurso de crimes;
 Eficiência processual: melhoria da celeridade processual, permitindo a junção de processos e
economizando recurso judiciais.

Desvantagens:

 Interpretações divergentes: as alterações da matéria do concurso de crimes efectivo trazidas pelo


actual código penal angolano, deram margens a interpretações divergentes por parte dos
intérpretes do direito (juízes, advogados, entre outros) o que tem levado a diferentes pontos de
vista e a falta de uniformidade nalguns assuntos.

60
CONCLUSÕES

Finda a pesquisa, pudemos verificar que o concurso de crimes efectivo pode ser definido de
diferentes maneiras quer pela doutrina quer pela lei, sem fugir da sua linha base de concepção. É
assim que na sua generalidade pode ser entendido como sendo uma situação em que um único
agente comete uma pluralidade de crimes, condenado em todos por sentença transitada em julgado.
Desta definição podemos considerar como elementos fundamentais do conceito: a singularidade do
agente, pluralidade de preceitos penais violados ou preceito penal violado varias vezes e a
verificação de sentenças definitvas ou transitadas em julgado.

O concurso de crimes efectivo classifica-se em real e ideal e este último em homogéneo e


heterogéneo. Não obstante ao facto de ao longo dos tempos o concurso real ter sido confundido e
até mesmo englobado no universo do concurso aparente, legal ou impuro, actualmente e de forma
clara têm-se mostrado diferentes um do outro na medida em que este último è regido pelos
princípios da especialidade.

Quanto a sua forma de punição, o cúmulo jurídico mostrou-se e tem-se mostrado o mais ideal para
as questões de aplicação e execução das penas que melhor salvaguardam a dignidade da pessoa
humana. E, no que toca a comparação feita entre o código penal de 1886 e o actual código penal (de
2020), vimos que, o primeiro apresentava uma forma de aplicação da pena muito rígida, complexa e
morosa, ao passo que o segundo tem-se mostrado mais célere e directa de se aplica
(processualmente falando), onde a soma aritmética das penas parcelarmente aplicadas a cada crime
maior garante a salvaguarda dos direitos humanos do agente, sendo mais realista, diferente do que
ocorre por exemplo no Brasil, onde uma pessoa pode ser condenada por 100 anos, o que encaramos
como uma espécie de aceitação camuflada das penas de prisão perpetua, que nos termos do
ordenamento jurídico angolano é proibida pelos arts. 59º da CRA e n.º 1 do 41º do actual CP,
permitindo de igual modo que a função reintegrativa do Direito Penal seja uma possibilidade real.

Assim, após uma análise detalhada sobre o concurso de crimes efectivo à luz do actual código penal
angolano e do código de 1886, é possível concluir que houve uma evolução significativa na
abordagem e tratamento deste tema no sistema jurídico angolano.

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O código penal de 1886, influenciado pela doutrina penal clássica e baseado em princípios jurídicos
europeus da época, apresentava um enfoque mais restritivo do concurso de crimes. De um ponto de
vista geral, o agente era responsabilizado apenas pelo crime mais grave cometido e os demais actos
ilícitos eram considerados meras circunstâncias agravantes na determinação da pena.

Por outro lado, o actual código penal angolano, adopta uma postura mais moderna e alinhada aos
princípios contemporâneos do Direito Penal. De acordo com este, o concurso de crimes efectivo é
tratado de uma forma autónoma e permite a punição individual de cada infracção penal cometida,
independentemente da gravidade de cada uma dela.

Essa mudança no tratamento do concurso de crimes reflete uma maior preocupação do legislador
em relação à justiça criminal buscando adequar a punição ao grau de culpabilidade e à gravidade
das condutas praticadas. Além disso, o novo código também considera a reincidência e a actividade
criminal global do agente como critérios na determinação da pena a ser aplicada.

Portanto, é possível concluir que o actual código penal angolano apresenta-se como um avanço na
abordagem do concurso de crimes, ao ajustar-se aos princípios contemporâneos do Direito Penal.
Essa evolução proporciona uma maior justiça na individualização das penas e no combate à
impunidade, respeitando os direitos fundamentais dos cidadãos angolanos.

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RECOMENDAÇÕES

Ao terminarmos este estudo comparativo temos a apresentar algumas recomendações importantes.


Durante a análise comparativa entre o actual código penal angolano e o código de 1886, pudemos
identificar pontos relevantes que merecem atenção e possíveis actualizações para melhorar a
efectividade das normas penais relacionadas a este assunto.
1. Definição clara do concurso de crimes: para garantir a clareza e segurança jurídica do concurso de
crimes, é necessário aprimorar a redação do código penal angolano, especialmente no que diz
respeito à descrição e definição dos tipos de concurso de crimes.
2. Proporcionalidade das penas: durante o estudo, verificamos que o actual código penal angolano já
contempla critérios importantes para a dosimetria das penas, buscando a proporcionalidade entre a
gravidade do crime e a sua punição. No entanto, é necessário que haja um aperfeiçoamento destes
critérios, levando em consideração as particularidades do concurso de crimes, de forma a
continuar a garantir a coerência e a justiça na aplicação das penas.
3. Formação e capacitação dos operadores jurídicos: é fundamental investir na capacitação e
formação dos operadores jurídicos, como juízes, procuradores e advogados no que diz respeito ao
assunto da punição do concurso de crimes efectivo e figuras afins, isto contribuirá para uma
aplicação mais justa e coerentes das normas penais inerentes ao assunto, fortalecendo o sistema
das normas jurídico angolanos.
4. A escassez de obras dedicadas a este tema, bem como as inúmeras figuras que se interligam com o
conceito de concurso efectivo de crimes, às quais não podíamos deixar de fazer referência, sem,
contudo, não nos deixarmos cair na tentação de as aprofundar de forma ampla, constituíram as
maiores barreiras à realização deste trabalho. Por este e outros motivos recomendamos à
comunidade jurídica a continuidade dos estudos sobre o assunto para que sejam criadas bases
doutrinais mais solidas a nível do Direito Penal em Angola.

Em suma, é fundamental que o sistema jurídico angolano continue aprimorando o seu arcabouço
jurídico-penal, especialmente no que diz respeito ao concurso de crimes efectivo por ser uma
realidade presente em seus tribunais.

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