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Encruzilhadas epistêmicas:

a estruturação dos princípios filosóficos dinamizadores


presentes nos terreiros
LINCONLY JESUS ALENCAR PEREIRA*

Resumo: Encruzilhada é o ponto de encontro, de novas possibilidades que se


interligam e podem gerar contribuições potentes para um novo contexto
civilizatório. Através de seus caminhos, Exu, o mensageiro, comunica o possível
ao impossível, o plano espiritual ao plano físico, abre e fecha caminhos, complica
para descomplicar, desorganiza para organizar. Os princípios filosóficos
presentes nos terreiros são dinamizados por Exu, ensinando-nos a questionar e
desobedecer a poderes e hierarquias que se dizem detentoras de saberes únicos.
Assim, propomos como objetivo central deste ensaio a reflexão sobre os
princípios filosóficos dinamizadores que estruturam o processo de
cosmobiointeração ancestral dos terreiros com o objetivo de fundar valores
civilizatórios para a sociedade no pós-pandemia.
Palavras-Chave: Epistemologias de terreiro; Cosmobiointeração; Exu.
Epistemic crossroads: structure and dynamical philosophical fundaments
displayed in terreiros
Abstract: Crossroads (encruzilhadas) is the meeting point of new possibilities
that are interconnected and can generate powerful contributions to a new
civilizing context. Through their paths, Exu, the messenger, communicates the
possible to the impossible, the plan spiritual to the physical plane, opens and
closes paths, complicate to uncomplicate, disorganize to organize. The
philosophical principles present in the terreiros are dynamized by Exu, teaching
us to question and disobey the powers and hierarchies that claim to have unique
knowledge. Thus, we propose as a central objective of this essay the reflection
on the philosophical principles that dynamize the process of ancestral
cosmobiointeraction of the terreiros with the objective of founding civilizing
values for society in the post-pandemic.
Key words: Terreiro’s epistemology; Cosmobiointeraction; Exu.

*
LINCONLY JESUS ALENCAR PEREIRA é professor e Babalorixá. Doutor em
Educação pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

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Introdução originários e tradicionais,
supervalorizando as relações líquidas e a
Adentramos esse caminho pedindo
cultura fast food, apontam para um
licença, permissão e benção aos nossos
abismo iminente. A exploração do meio
ancestrais, que nos possibilitaram ocupar
ambiente como pressuposto para o
esses lugares, e a Exu, senhor dono das
desenvolvimento científico e econômico
encruzilhadas e das brincadeiras e
tornou-se base para a ascensão do
mensageiro que transita pelo espaço
capitalismo, fazendo com que o caminho
sagrado onde habitam os invisíveis.
principal até o momento seja a
Trata-se do fluxo do plano espiritual, ou
superexploração dos recursos naturais e
Orun, que está diretamente ligado ao
humanos, a extinção de muitas espécies
plano material, ou Aiyê, com base na
da fauna e flora, o aumento das
cosmogonia nagô-iorubá. Nessa
desigualdades sociorraciais e a
encruzilhada, visualizamos um cenário
aceleração do colapso planetário.
de novas possibilidades que contradiz a
lógica ocidental, que, por sua vez, O comando de toda essa estrutura de
associa a encruzilhada a um lugar de superexploração parte dos grandes
finitude. É dessa forma que nós, povos conglomerados econômicos
de terreiros, sempre começamos nossas internacionais, que, através do jogo
reflexões. monetário e de suas negociatas,
promovem a manutenção da
Com base nesse alicerce já montado, colonialidade, do patriarcado e da
elencamos como objetivo central deste divisão internacional do trabalho,
ensaio refletir sobre os princípios reforçando a base do capitalismo
filosóficos dinamizadores que predatório. Tudo isso teve início com a
estruturam o processo de fragmentação das civilizações africanas
cosmobiointeração ancestral dos no contexto da diáspora e do escravismo
terreiros a fim de fundar valores criminoso, que se delonga na
civilizatórios para a sociedade no pós- contemporaneidade, ocasionando a
pandemia. Compreendemos, a partir das falência dessa base capitalista predatória
nossas vivências e pesquisas, que o que tem adoecido a humanidade e o
espaço dos terreiros é território de planeta Terra.
resistências, pois nos possibilita
reflexões contra-hegemônicas, tendo em Não somos inocentes, já que a
vista a diversidade de referenciais vindos manutenção da colonialidade também é
da África que subsidiaram sua desenvolvida pelo sistema educacional,
constituição. Com isso, esses diversos que se ancora em uma:
grupos étnicos ressignificaram os seus [...] lógica totalitária investida e
modos de existência para sobreviver. mantida ao longo de séculos [que]
tem pautado a educação, não como
A atual conjuntura que vivenciamos no uma prática emancipatória, mas
planeta Terra nos impulsiona a refletir como forma de regulação. Essa
sobre a necessidade urgente da raça lógica travestida de educação
humana de repensar suas formas de revela-se como mais uma face das
conviver com as outras espécies e de ações assentes no empreendimento
ressignificar o trato com a natureza. O colonial, que tem na raça/racismo/
panorama de uma modernidade gênero/hétero-
inacabada sempre associada às figuras e patriarcado/capitalismo os seus
aos valores tecnologicamente fundamentos. (RUFINO, 2019, p.
264)
desenvolvidos, descartando os saberes

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O cenário até aqui apresentado nos industrialização moderna no século XIX,
possibilita apontar a necessidade urgente também nós precisaremos reinventar as
de lançarmos olhares para um novo relações humanas diante de um futuro
contexto civilizacional no mundo pós- incerto no período pós-pandemia do
pandemia, com o objetivo de século XXI.
provocarmos rupturas nas bases
Acreditamos que as novas estratégias
totalitárias e de dominação perpetradas
que precisamos criar podem contribuir
pelo capitalismo. Dessa forma, lançamos
para outros atributos e fruições
mão dos saberes ancestrais presentes nos
cognitivas e que, a partir desse novo
terreiros, que nos possibilitam promover
panorama, a educação necessitará
o rompimento com o binarismo judaico-
renovar seu projeto filosófico e,
cristão, as bases científicas empiristas e
consequentemente, seu axé:
o paradigma newtoniano-cartesiano e
permitem que vejamos caminhos Esse fenômeno está diretamente
transgressores abertos através da vinculado à experiência com o
transformação provocada pelo orixá Exu outro, tem como natureza radical a
sua condição dialógica, diversa e
e, em específico, pelas epistemologias de
inacabada. Por não ter fuga,
terreiro.
inscrevendo-se como um ato de
A necessidade de um novo contexto responsabilidade, a educação é logo
civilizacional uma problemática ética, pois está
implicada à dinâmica inevitável de
Essa nova condição de existência tessitura de experiências com o
provocada pela atual crise sanitária outro. Assim, o conceito de axé
vivida por toda a raça humana, que tem emerge como uma perspectiva para
como elemento central a pandemia da inscrevermos a educação.
COVID-19 (doença causada pelo novo (RUFINO, 2019, p. 271)
coronavírus) em todo o globo terrestre, Tendo em vista a necessidade de que a
nos impele a refletirmos sobre os modos ciência ocidental tem de compreender
de convivência com o planeta. Hoje, novas epistemologias, lançamos mão da
todos(as) nós somos forçados(as) ao ideia de ebó epistemológico, gerada pelo
isolamento social – apesar de muitos diálogo de Rufino (2019) com Exu,
seguirem caminhos reacionários e apontando para a construção de um
genocidas –, o que nos obriga a traçar, projeto ancestral antirracista, sulista e
assim como nossos ancestrais africanos, decolonial, ou seja, um projeto que
as estratégias de luta e de resistência para contenha axé para a transformação
garantirmos vidas saudáveis. Essa nova educacional, cognitiva e planetária.
condição ou modo de sobrevivência, que
As amarras que rompemos ainda se
busca preservar o bem-estar individual e
encontram nos ambientes acadêmicos.
coletivo, faz com que repensemos nossos
Esse fenômeno fica mais claro quando
valores civilizatórios e meditemos sobre
nos detemos sobre o conceito de
o legado que estamos construindo para as
epistemologia, já que esta trata do
gerações que virão.
conjunto de experiências cognitivas que
Compreendemos a urgência de potencializam a produção ou
ressignificar os saberes e as práticas de manutenção de saberes, ou seja,
vida na contemporaneidade, pois, assim epistemologia é o estudo do
como as populações africanas e seus conhecimento. Se observamos a
descendentes fizeram para sobreviver no etimologia da palavra; porém,
pós-abolição com o avanço da percebemos que o termo epistemologia

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carrega em si uma conotação colonial. seja em relação a grupos extensos
Advinda do grego, ele embarca nas caracterizados pelos diversos
caravelas e aporta em terras “outras”, complexos culturais, seja em relação
impondo-se como o único conhecimento ao conjunto de civilizações negro-
africanas, que formam, mais do que
válido, que é a ciência ocidental
uma simples constelação de povos,
produzida por uma a civilização europeia um universo histórico elaborado
de religião judaico-cristã. Desse modo, pela rede de relações sociais totais
ela descarta outras perspectivas típicas do universo social que define
científicas, como, por exemplo, a essas sociedades. Em outras
africana, a indígena e a dos demais povos palavras, essas civilizações
que constituem a nação brasileira. mantiveram e mantêm a sua
continuidade histórica – e não
No Brasil, onde a formação social do apenas a sobrevivência histórica – e
país se deu através da junção, muitas nesse processo a natureza singular
vezes forçada e violenta, de três de seus valores civilizatórios é
principais grupos raciais – os povos mecanismo de sua materialidade.
originários, os invasores coloniais
europeus e a mão de obra escravizada Há um continuum civilizatório africano
africana –, a evidência civilizatória e que pode ser identificado também no
epistêmica pregada no meio social, com espaço dos terreiros, como um eixo
ênfase na educação escolar, define o científico-cultural na experiência social
grupo racial branco europeu como o afro-brasileira. Esses princípios
centro de toda a civilização, ciência, fundamentam a estrutura das
religião, política e economia, logo, como epistemologias de terreiro, que nos darão
o proprietário da epistemologia. base, mais à frente, para compreender e
aprofundar as reflexões sobre os
Essa dinâmica de supervalorização dos princípios filosóficos dinamizadores.
grupos étnicos europeus em detrimento Entretanto, precisamos dar um grande
dos demais povos da terra é chamada de mergulho nesse oceano, pois, como
eurocentrismo. Com isso, é necessário afirma Machado (2019), os terreiros são
questionar o lugar da ciência ocidental, lugares míticos, espaços de resistência
das epistemologias brancas e de sua política, de proteção e cuidado com o
soberania na educação escolar. Afinal, se outro, são as “pequenas Áfricas”
três grandes grupos raciais contribuem solidificadas e reinventadas na diáspora,
para a formação social brasileira, por que espaços próprios na produção de
apenas um deles – o europeu – é conhecimentos e arranjos socioafetivos.
(super)valorizado? Buscamos refletir
essa questão apontando para as Os terreiros não estão congelados no
epistemologias dos terreiros, passado. Eles reinventam-se
confrontando-as com a soberania cotidianamente. São espaços dinâmicos,
epistêmica branca. inventivos, dialógicos, portadores de
matrizes e motrizes culturais (LIGIÉRO,
Segundo Leite (1996, p. 14), os 2011) que os fazem manter a tradição e,
processos de continuação civilizatória na ao mesmo tempo, transformá-la.
África e, consequentemente, na diáspora, Podemos apontar essas motrizes
nos possibilitam entender que: culturais como dinâmicas das
[...] as sociedades negro-africanas epistemologias do terreiro, que fazem as
sempre viveram suas próprias tradições se manterem vivas em uma
realidades no fluxo de processos relação dialógica com as transformações
sociais abrangentes, que se definem sociais. Há um complexo arranjo

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científico-cultural fundamentado por escravatura, pois, através dessas
valores civilizatórios, que solidificam a amarras, o corpo dos escravizados foi
contribuição africana na experiência colonizado, domado e acorrentado, de
social brasileira. Nos terreiros, essas modo que os desejos da humanidade não
dinâmicas são parte indissociável do poderiam mais ser realizados. Tudo isso
cotidiano do povo de santo. Entender ocasionou uma trama muito bem
isso é crucial para que compreendamos estruturada pelo pensamento
que esses princípios filosóficos africanos eurocêntrico, que, de forma nefasta,
e afro-brasileiros tornam-se dinâmicos atribuiu aos terreiros os estereótipos que
na rotina das práticas religiosas afro- carregam até hoje.
brasileiras.
Impedir que Exu transite, ou seja, sua
O processo de biointeração ancestral contenção pelos sistemas de opressão do
dinamizado por Exu equilíbrio pessoal e coletivo, gera o
desequilíbrio da exploração capitalista,
Os colonizadores, quando chegaram à
promovendo a manutenção da
África, fragmentaram todas as
colonialidade e do patriarcado e
cosmopercepções (OYĚWÙMÍ, 2002) reforçando a superexploração da
ancestrais com o intuito de domar e
natureza e do afastamento da
silenciar o agente dinamizador de todo humanidade do seu compromisso
esse processo, o orixá Exu, como estabelecido com os ancestrais.
podemos ver a partir do olhar dos
colonizadores. Prandi (2001, p. 47) No contexto de ressignificação de
afirma que: estratégias de sobrevivência no Brasil, a
união dos diversos grupos étnicos
Os primeiros europeus que tiveram
contato na África com o culto do africanos nos espaços dos terreiros
orixá Exu dos iorubás, venerado possibilitou a criação de um outro
pelos fons como o Vodum Legba ou modelo familiar. Assim, a
Elegbara, atribuíram a essa cosmobiointeração é a compreensão
divindade uma dupla identidade: a desse arranjo que os africanos e seus
do deus fálico greco-romano Príapo descendentes constroem através da
e a do diabo dos judeus e cristãos família de axé, ou seja, a família que vai
[...]. Atribuições e caráter que os para além dos laços sanguíneos e que
recém-chegados cristãos não possibilita a manutenção da energia
podiam conceber, enxergar sem o pessoal e coletiva. Tratamos da relação
viés etnocêntrico e muito menos
direta da ligação energética/axé através
aceitar.
da qual todos(as) estão diretamente
Sem compreender a dimensão conectados(as), porque isso nos permite
cosmológica dos grupos étnicos analisá-la a partir de dois pontos
africanos e demonizando a figura de referenciais: o corpo coletivo e o corpo
Exu, banindo-o do trabalho de abrir individual, que está imerso e diretamente
caminhos e potencializar a abundância ligado ao corpo coletivo através do axé.
comunitária, os europeus colonizadores
Compreendemos o corpo individual
prosseguiram com o plano nefasto de
como o microcosmo de força/axé, que é
escravização dos corpos, mentes e
divinizado nos momentos rituais no
exploração dos recursos naturais.
terreiro e pode ser diretamente
A contenção da energia de Exu tornou-se subdividido em três energias, sendo elas:
peça fundamental para as estratégias de Orí, Exu Bara (Exu individual) e o orixá.
dominação e colonização no período da Esse estado de equilíbrio é

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potencializado quando analisamos que, sagrados, nos permite perceber a relação
ao falarmos de Orí, estamos tratando da de respeito e significado estabelecida
nossa cabeça, não apenas em um entre os seres vivos e não vivos, entre as
contexto físico, mas, sim, do primeiro folhas sagradas, rios, mares, estradas,
orixá a ser louvado, tratado como a encruzilhadas, pedreiras, ar, fogo, matas,
representação individual, pois nos florestas e manguezais, ou seja, todos os
acompanha desde antes do nosso espaços da natureza, locais que são
nascimento, durante a vida terrena e no estabelecidos como sagrados para
pós-morte. A potencialização de todos os determinados orixás ou fenômenos.
nossos caminhos de vida e destinos, ou
seja, do destino individual e do Para a cosmobiointeração acontecer
desenvolvimento de cada ser humano, é durante os ritos iniciáticos do iyawo,
representada por Exu Bara. Santos toda a comunidade do terreiro precisa
(1986, p. 241) afirma que Exu Bara “é estabelecer seu ritmo de conexão de axé,
aquele que fala e guia e que indica os de forma que todos participem do
caminhos dos indivíduos”. andamento da função. O sistema oracular
do jogo de búzios é o fator disparador
No contexto de sacralização do corpo dessas atividades para o terreiro. Nesse
durante o período de iniciação, momento, Exu é consultado, trazendo os
evidenciamos o rompimento dessas recados de Orumilá, orixá da
amarras, pois o corpo físico, ou Ará, adivinhação. Orumilá determina o
torna-se divinizado, passando a ser melhor caminho a ser seguido para a vida
receptáculo do axé individual, do neófito, concedendo suas receitas de
interconectado com o axé coletivo. ebós, banhos, comidas ou encantamentos
Depois de sete dias de recolhimento no específicos determinados para cada
útero do terreiro – conhecido como roncó orixá. Dessa forma, o sagrado determina
ou camarinha –, nasce, então, o orixá, o conjunto de atividades que serão
uma divindade intermediária entre as desenvolvidas naquele dia, durante a
forças naturais e sobrenaturais que toma iniciação, determinando as práticas de
forma no corpo do iyawo – filho(a) de manutenção do axé e possibilitando a
santo –, que se manifesta durante o conexão ancestral.
estado de possessão através da sua
performance religiosa com todo o Nesse contexto, os abians – filhos(as) de
complexo de mitologias contados pelo santo ainda não iniciados(as) – se
corpo no ritual do xiré – organização encarregam da manutenção do espaço
cosmológica dos orixás nas danças e físico, principalmente aqueles que não
rituais. Todo o conjunto de atos e feitos têm função pré-determinada dentro do
dos(as) filhos(as) de santo demarca a sua espaço do terreiro, seja varrer, limpar,
trajetória na comunidade e a sua função pintar, podar árvores ou cuidar de
religiosa. Dessa forma, a animais ou plantas, enquanto os(as)
cosmobiointeração nos possibilita iyawos executam tarefas específicas que
compreender que essa trajetória não é só pessoas que já passaram pelos ritos
ingênua, tendo em vista o equilíbrio ou sagrados e compreendem a manutenção
desequilíbrio dessas três energias: Orí, do axé coletivo podem desenvolver, seja
Exu Bara e orixá. cuidar do espaço sagrado, do ritual da
cozinha de santo, das folhas sagradas e
O nascimento do orixá, ou seja, a da preparação de rituais ou auxiliar seus
conexão do corpo do(a) iniciado(a) com irmãos e irmãs mais velhos(as), os
o mundo ancestral através dos ritos ebomes, aqueles que já passaram por

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todas as obrigações rituais e fecharam os através dos escritos de Petit (2015),
ciclos dos sete anos. Os(as) ebomes Rufino (2011), Ligiéro (2011), Quintana
auxiliam o babalorixá ou yalorixá, (2009), Leite (1996), dentre outros(as).
juntamente com os ogans – homens
Por tratar de um universo complexo,
responsáveis pelos toques sagrados ou
organizamos uma estratégia de ação para
aqueles que auxiliam o babalorixá em
a compreensão de uma forma mais
rituais específicos de sacralização de
fluida, de modo que possamos analisar
animais etc –, e com as ekedes –
esses princípios filosóficos como base
mulheres que auxiliam os babalorixás e
categorizada a partir de dois pilares,
yalorixás no cuidado dos ibás dos orixás,
mesmo sabendo que essas bases
nas danças e no cuidado com os(as)
dialogam entre si: a Ligação com o Caos
filhos(as) de santo. É importante
(Rudurudu) de Exu e a Ligação com a
especificar que os ogans e as ekedes são
Ancestralidade (Idile).
os(as) filhos(as) de santo que não entram
em estado de possessão, pois são Segundo Ramose (2011, p. 12), “[...] a
escolhidos especificamente por Exu, posse da chave para o conhecimento
através do jogo de búzios, ou nos deste modo é pretender possuir o poder
momentos rituais do terreiro, para servir de determinar o destino dos outros”. Isso
aos orixás. Com base nesses constitui a filosofia de um terreno prático
esclarecimentos, podemos definir, como e intelectual que luta pelo poder sobre as
cosmobiointeração, a manutenção do axé vidas e os destinos dos outros. A
coletivo do terreiro, que retroalimenta os concepção de princípios filosóficos
axés individuais durante as atividades africanos está diretamente atrelada à
cotidianas, dinamizadas por Exu através noção das experiências sociais afro-
de uma conexão ancestral, determinando diaspóricas, dessa forma, ao falarmos
o conjunto de relações que estão dessas filosofias, estamos ao mesmo
conectadas com a natureza e pré- tempo abordando/visualizando os
determinadas pelos ancestrais, sejam valores civilizatórios.
elas econômicas, políticas, sociais, sejam
culturais. Ligação com o Caos (Rudurudu) de
Exu
Nos quatro caminhos de uma Na sociedade brasileira, o racismo é
encruzilhada estrutural e possui um vasto
enraizamento nas relações de poder. Em
Estamos percorrendo esse caminho
específico, trazendo essa discussão para
porque muitos(as) o abriram e nos
nós, povos de terreiros, trata-se de um
possibilitaram chegar até aqui. Nossos
racismo religioso que também foi
ancestrais inicialmente o desbravaram e
ancorado nos espaços de saberes, sejam
deixaram o seu legado para que
eles fora, sejam dentro do universo
aprendêssemos com seus ensinamentos
acadêmico, onde a figura demonizada
ancestrais. Na contemporaneidade,
seguiu sendo atribuída ao orixá Exu.
dialogamos com pesquisadores e
Essa visão equivocada se cristalizou no
pesquisadoras que romperam com as
imaginário simbólico da sociedade
bases teóricas eurocêntricas,
brasileira, que lhe atribuiu um
mantenedoras da colonialidade, e
estereótipo maléfico, e, com isso,
prepararam esse caminho para nossa
condenou-lhe ao destino de orixá mais
jornada, fazendo-nos amadurecer e
incompreendido e caluniado do panteão
refletir sobre os princípios filosóficos
afro-brasileiro (BASTIDE, 1978).
dinamizadores presentes nos terreiros

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Para os povos iorubás, Exu é o portador aqueles(as) que o conquistam em seu
das orientações e ordens, “nada se faz devido equilíbrio cósmico; e o
sem ele, nenhuma mudança, nem mesmo movimento, que introduz a mudança e a
uma repetição” (PRANDI, 2001, p. 50). desordem enquanto resistência à ordem
Sendo aquele que ata e desata o nó e social estabelecida e constituída
propicia o caos na busca pela ordenação (QUINTANA, 2009).
das afetividades humanas com o cosmo,
os espaços e as regras não lhe impõem São por esses e tantos outros motivos que
limites. Ele escapa das distinções entre o Exu nos permite seguir durante essa
bem e o mal; ele é a prática da ironia que trajetória com passos firmes e
inverte os papéis sociais e as aparências estruturados, afinal, caminhamos com
e desfaz as ilusões (QUINTANA, 2009). ginga. Compreendê-lo em sua
Essas explicações iniciais já revelam sua complexidade é o primeiro passo para
potencialidade. Removendo a grossa entrarmos nas cosmopercepções
crosta satânica que o racismo religioso, presentes nas epistemologias de terreiro.
no contato colonial, atribuiu a ele, Exu Ligação com a Ancestralidade (Idile)
aparece em sua forma originária, um
poderoso articulador das relações Da terra/solo extraímos a vida e nela
afetivas, ancestrais e científicas. Sendo o cultivamos nossos alimentos. Nela, estão
próprio movimento, Exu se multiplica ao enterrados nossos ancestrais, nossos
infinito (PRANDI, 2001) e emerge como parentes já falecidos, aqueles(as) que já
o dinamizador de todo o universo passaram pelo plano físico Aiyê, abriram
cosmológico e como aquele que nos caminhos para nossa existência e cujo
possibilita ampliar nossos corpo foi devolvido à terra para unir-se à
conhecimentos e atuações. Sua renovação cósmica do axé planetário,
capacidade de estar em toda parte nos retornando para o Orun. De posse dessa
propicia lograr toda a potencialização da compreensão cosmológica, e a partir de
ordem do mundo e da sociedade toda a sua complexidade, dinamizada por
(QUINTANA, 2009). Exu na interação do que é e está no plano
visível com o invisível, os orixás, os(as)
Sem Exu, não haveria possibilidades de iniciados(as), traduzem esse
encruzilhar experiências, ciências, conhecimento, fazendo isso através das
emoções e cosmopercepções neste danças, dos ritmos, dos toques e dos
ensaio, tampouco de afrontar a ordem cânticos. Esses elementos compõem um
racista e eurocêntrica na educação; aliás, complexo mitológico trazido da África
só a sua citação em espaços educacionais no contexto da diáspora que foi
já pode acarretar reações fervorosas de sistematizado nos primeiros terreiros.
ódio e ignorância a essa figura,
principalmente dos setores mais Falamos da memória viva no corpo dos
conservadores dentre evangélicos e iniciados, de uma memória cultural,
católicos. Exu, o orixá mensageiro, tem como afirma Lima (2015), que nos
toda a capacidade “anticartesiana” permite ir além e avançar nessa
(QUINTANA, 2009), estabelecendo-se compreensão, caracterizando-a como
por três princípios filosóficos centrais memória cultural ancestral. Trata-se do
para esse pilar: a ironia, que desqualifica fluir que brota da ancestralidade a partir
e deprecia o poder e suas hierarquias da interconexão que todos(as) os(as)
dominantes e alienadoras; a rebelião, iniciados(as) têm com seus laços
quando demonstra que o poder não é ancestrais e que os(as) levam para os
intocável e digno de todos(as) espaços sagrados dos terreiros. Nestes,

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estão contidas as lembranças que não Primeiro: buscamos desconstruir a ideia
conseguimos explicar, mas que, de que nos foi passada pelos(as) mais
forma sistemática, relembramos, tendo a velhos(as), por muitos anos, de que, ao
impressão de já termos passado por falarmos de ancestralidade, estaríamos
determinados lugares e cenários ou já apenas nos referindo aos(às) parentes já
vivido situações com pessoas ainda não falecidos(as), ou seja, àqueles(as) que já
conhecidas. Essas lembranças são passaram pelo plano físico. Santos
memórias latente no próprio corpo que, (1986) esclarece que, na verdade,
quando dorme, (re)conecta-se com o estamos tratando de uma complexa
Orun e com seus ancestrais. Através do relação estabelecida entre o ir e o vir dos
desdobramento do espaço-tempo, as nossos ancestrais. Referimo-nos ao
visões do futuro próximo possibilitam trânsito entre os planos sagrados do Orun
que traduzamos mensagens que para o Aiyê, conforme seja necessário
recebemos em sonhos ou prevejamos o por eles, ou conforme sejam convidados
que ainda não aconteceu, em preparação por nós. Ou seja, os nossos ancestrais, os
para a vida no Aiyê. orixás e os invisíveis, podem transitar
pelos nove planos espirituais e pelo
A memória cultural ancestral é aquela a plano material, caso seja permitido ou
que todos nós, humanos, que ainda não seja esse seu desejo.
rompemos com o determinismo
cartesiano, não damos credibilidade, Segundo: tratamos da relação de respeito
descartando-a em vez de vivê-la ou usá- e convivência com a natureza e, em
la para identificar pessoas, lugares, específico, das formas de cuidar/morar
cheiros, formas ou movimentos. Para os da humanidade no planeta Terra, pois
povos de terreiro, especificamente, isso nele estão depositados nossos ancestrais
não acontece, pois essa memória é e dele retiramos nossos alimentos,
naturalmente entendida como um canal promovendo a nutrição alimentar da
de identificação com o sagrado, nossa civilização. Nas nossas análises,
diretamente ligado à irradiação de também precisamos ir além desse
mensagens do Orun para o Aiyê. contexto, pois compreendemos que, na
Tratamos essa memória como um sinal terra/no solo, está toda a dimensão
dos orixás e ancestrais para ajudar os(as) energética do nosso axé. É da terra que
filhos(as) e seus descendentes a nos retroalimentamos; ela é nossa grande
potencializar um melhor contexto de fonte de energia. No momento específico
vida na Terra e, com isso, enfrentar seus do cantar-dançar-batucar nos terreiros,
problemas e superar dificuldades. compreendemos que, quando os orixás
vêm à Terra, o corpo do(a) iniciado(a),
Falamos de ancestralidade com o divinizado(a) no ritual, energiza-se
objetivo de continuarmos adentrando as através desse processo de interconexão,
conexões do Orun com o Aiyê, a fim de o que revigora seu axé. O Aiyê e o Orun
mergulhar nas rupturas e amarras reconectam-se nos terreiros, em uma
acadêmicas de compreensão baseadas no ligação que torna esse espaço vivo e
paradigma newtoniano-cartesiano. cheio de energia vital pulsante,
Nossa tentativa é a de extrapolar emanando vitalidade para todos(as) que
barreiras e, com isso, promover três ali estão e promovendo a renovação do
reflexões que nos permitam axé dos(as) filhos(as) de santo.
descompartimentalizar esse princípio
Terceiro: mergulhamos na consciência
filosófico.
da humanidade, que vive o momento

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presente em um constante aprendizado e com a ajuda dos nossos ancestrais no
transformação, relacionando-se com os Orun para nossa existência no Aiyê. No
saberes e ensinamentos dos decorrer da maturação dessas reflexões e
antepassados, que preparam a chegada das cosmopercepções, concluímos que
das futuras gerações. Dessa forma, nossas influências corporais não são
questionamos: qual a nossa apenas determinações genéticas ou do
responsabilidade para com as gerações meio de interação social que vivemos no
futuras? Trago para esse diálogo a Aiyê, mas trata-se também de elementos
reflexão feita por Beniste (1997, p. 133), que ainda não foram
quando esclarece que todos os aspectos explicados/compreendidos pela ciência
da experiência humana são empírica moderna.
predestinados pela escolha que alguém
faz do seu Orí, no caso dos mitos nagôs- Considerações finais
iorubás cantados nos terreiros de Essa perspectiva nos lança reflexões
candomblés Ketu: acerca do processo urgente que devemos
[...]após a modelagem de cada futura desenvolver enquanto raça humana para
pessoa por Orixalá, é convocado dialogarmos com a construção de outras
Ajalá, com a tarefa de fornecer o epistemologias e, com isso,
Orí, cada ancestral cede as visualizarmos um novo contexto de vida
substâncias necessárias para planetário pós-pandemia do novo
aperfeiçoar a forma das cabeças. coronavírus.
Essas substâncias são denominadas
oke ipori, que passam a acompanhar Estamos nessa encruzilhada epistêmica,
a pessoa todo o tempo de sua em que os conhecimentos e construtos
existência, sendo merecedoras de passados através da tradição oral por
respeito e culto. Mas Ajalá, mesmo milhares de anos, em seguida silenciados
sendo Orixá, tem suas deficiências. e amordaçados, hoje são libertados e
É esquecido e descuidado, e nem
potencializados por Exu, o orixá
sempre as cabeças que faz saem
boas. O resultado é que a maioria dinamizador desse novo modo de vida.
das pessoas que escolhem por si Exu nos possibilita avançar na
mesmas as cabeças, sem recorrerem estruturação de uma nova base
a Ajalá, acabam escolhendo cabeças epistemológica partindo dos terreiros,
ruins e imprestáveis. A interpretação impulsionando-nos a lançar reflexões
para este fato, refere-se ao produto que possam ir além do que não é provado
final que é o homem, que terá uma empiricamente em uma ciência racional,
tarefa árdua e bem complicada para cartesiana, nascida de um modelo
enfrentar quando chegar à Terra. Em colonizador. Exu nos permite delinear
razão disto, Olodumaré ordena um novo contexto paradigmático.
sempre à Orumilá para ensinar os
seres humanos a restabelecerem o Repensar essa estrutura de conhecimento
ponto de equilíbrio necessário em eurocêntrica, cristalizada e hegemônica
suas cabeças. Assim, nasceram os através da cosmobiointeração presente
ritos de borí, sempre determinados
nos terreiros, ou seja, das interconexões
por Orunmilá através dos sistemas
divinatórios. ancestrais, é uma ideia ousada e potente,
afinal, mergulhamos em um processo de
Compreendemos que todos nós somos ruptura e desobediência epistêmica.
agentes das nossas próprias escolhas, Entretanto, tendo em vista a falência do
destino e caminhos de vida, mas que eles sistema capitalista, essa ruptura se faz
também foram traçados inicialmente necessária e se torna possível. A ginga

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em nossos corpos e a mandinga em MACHADO, V. Irê Ayó: uma epistemologia
nossas estratégias nos fazem trazer a afro-brasileira. Salvador: EDUFBA, 2019.
transgressão dos padrões estabelecidos OYĚWÙMÍ, O. Visualizing the Body: Western
pela colonialidade para o centro dessas Theories and African Subjects. In: COETZEE, P.
H.; ROUX, A. P. J. (eds.). The African
encruzilhadas epistêmicas, com o intuito
Philosophy Reader. New York: Routledge,
de reparar as injustiças cognitivas 2002. p. 391-415.
estruturadas contra nós, povos de
PRANDI, R. Exu, de mensageiro a diabo:
terreiro, e contra a imagem de Exu. sincretismo católico e demonização do orixá
Consideramos de máxima urgência e Exu. Revista USP, São Paulo, n. 50, p. 46-63,
necessidade avançarmos nessas jun./ago. 2001.
reflexões e, com isso, visualizarmos PETIT, S. H. Pretagogia: pertencimento, corpo-
estratégia de reconstrução da nossa dança afroancestral e tradição oral africana na
sociedade no contexto pós-pandemia do formação de professoras e professores:
novo coronavírus, de modo que contribuições do legado africano para a
possamos construir processos de implementação da Lei nº 10.639/03. Fortaleza:
UECE, 2015.
autonomia a caminho da emancipação
humana. QUINTANA, E. Sujeitos descontextualizados
em contextos educativos, ou Exu quer ir à escola:
se você abrir eu entro, mas se não abrir eu troco
a porta de lugar. In: SEMINÁRIO
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