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ARTIGOS

O trabalho terapêutico
fonoaudiológico com a linguagem
escrita: considerações sobre a
visitação a gêneros discursivos

Claudia Perrotta*
Lucia Masini**
Maria Laura Wey Märtz***

Resumo

Duas situações cotidianas em que erros ortográficos causaram impasse na interlocução são aqui
apresentadas e analisadas a partir do conceito de gêneros discursivos. Este conceito permite a
compreensão dos impasses na construção de sentidos que é própria da linguagem cotidiana. Tais
impasses também se apresentam com freqüência no trabalho terapêutico fonoaudiológico com a escrita.
A proposta de visitação aos gêneros discursivos mostra-se fecunda pois permite que o paciente, ao
explorá-los, seja apresentado a motivações, desejos e capacidades ainda desconhecidos, podendo
transformar e ressignificar sua história de sofrimento com a linguagem.

Palavras-chave: gêneros discursivos; erros ortográficos; terapia fonoaudiológica.

Abstract

Two ordinary situations which orthographical mistakes have been caused impasse at the conversation
are presented and analyzed from the concept of discoursives genders. This concept allows the
comprehension of impasses on the construction of meanings which pertains to the ordinary language.
Such impasses frequently are also present at the speech-language therapy on writing. The proposal of
leading with discoursives genders is very fruitful as it allows to the patient, when exploring them, to be
presented for motivations, wishes and capacities still unknown and could be transformed and meaning
again its language’s history of suffering.

Key-words: discousive genders; ortographical mistakes; speech-language therapy.

*
Fonoaudióloga clínica do Contraponto; mestre em fonoaudiologia (PUC-SP); assessora na elaboração de textos; autora do livro
Um texto pra chamar de seu – preliminares sobre a produção do texto acadêmico (Martins Fontes, 2004). ** Fonoaudióloga clínica
do Contraponto; docente do curso de fonoaudiologia da PUC-SP; doutora em comunicação e semiótica pela PUC-SP; *** Fonoau-
dióloga clínica do Contraponto; docente do curso de fonoaudiologia da PUC-SP; doutora em lingüística pelo Lael-PUC-SP. As
três autoras publicaram Histórias de contar e de escrever – a linguagem no cotidiano (Summus, 1995).

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Claudia Perrotta, Lucia Masini, Maria Laura Wey Märtz
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Resumen

Dos situaciones cotidianas en que los errores ortográficos causaran impasse en la conversación son
aqui presentadas e analizadas a partir de lo concepto de géneros discursivos. Este concepto permite la
comprensión de los impasses en la construción de los sentidos que es própia de la lenguaje cotidianas.
Estos impasses también se presentan con frecuencia en el trabajo terapéutico fonoaudiologico con la es
escrita. La propuesta de la visitación a los géneros discursivos mostrase fecunda pués permite a el
paciente, a los explotalos, sea presentado a motivaciones, deseos y capacidades aún desconocidos,
pudiendo transformar y significar de nuevo su história de sufrimiento con la lenguaje.

Palabras claves: géneros discursivos; errores ortográficos; terapia fonoaudiologica.

Este artigo está estruturado da seguinte Trabalhando com a hipótese de que um dos
forma: num primeiro momento, apresentamos uma organizadores tenha escrito o e-mail, e como já dis-
proposta de análise de duas situações discursivas semos tratava-se de profissionais reconhecidos na
cotidianas em que a escrita está presente. Ainda que área, alguém duvidaria da capacidade de ambos
distintas, as situações apresentam um ponto em para escreverem agradecemos corretamente? Por
comum: erros ortográficos de um dos interlocuto- que não relevar, então, o deslize? Por que a neces-
res em cada situação geraram impasse na interlo- sidade da reparação tão imediata, se o erro nem
cução. A partir dessa análise, discorremos sobre um estava no material de divulgação e sim no próprio
aspecto do trabalho fonoaudiológico e, em segui- e-mail?
da, buscamos ilustrá-lo com dois momentos tera- E-mails têm sido foco de estudo de diversos
pêuticos distintos. analistas do discurso, dadas suas peculiaridades e
Vejamos cada uma das situações cotidianas. atualidade no âmbito da comunicação. Trata-se de
um discurso realizado em condições especialíssi-
E-mail enviado...ai! mas de produção, na medida em que a Internet, com
será que tinha algo para arrumar?! espaço e tempo virtuais, permite a combinação de
características próprias da escrita com as da orali-
Atualmente, a maioria dos eventos científicos dade. Quem já entrou numa sala de bate-papo ou
e culturais produzidos pelas mais diversas institui- vive plugado no ICQ sabe que não se escreve pro-
ções utiliza-se da informatização, tanto na etapa de priamente nessas horas e, sim, conversa-se ou, para
elaboração quanto na de veiculação. Foi durante as sermos mais precisas, tecla-se. Tente ser um pouco
comunicações via e-mail para a elaboração de um mais verborrágico nesse contexto e logo será cha-
evento da área fonoaudiológica, cujo tema era Fo- mado de chato e sumariamente deletado. A própria
noaudiologia e Educação, que a referida situação escrita de algumas palavras ganha outra forma: não
aconteceu. é naum, é é eh, beijos é bjos, estou feliz é ☺ ou : ).
Após o envio de diversos comunicados, os pro- O tempo da escrita na Internet não é o
fissionais que participariam das mesas de debate e mediato, como o da escrita de um romance, de um
palestras receberam um em que os organizadores texto acadêmico ou mesmo de uma carta, que per-
do encontro, dois fonoaudiólogos renomados na mite releituras, retomadas e certo distanciamento
área, faziam um pedido de divulgação do folder. O do ato da escrita. Ele é imediato, como o da orali-
e-mail terminava com um sincero agradecemos dade, tanto que chegamos a observar, em alguns e-
com “ç”. Uma de nós, autoras deste texto, partici- mails ou conversas nas salas de bate-papo, inter-
pante do evento, só percebeu o erro quando che- nautas preferindo escrever ops ou sorry a apagar o
gou um novo e-mail, vindo logo em seguida, com que foi escrito, quando percebem algo que precisa
um pedido de desculpas pelo deslize da cedilha. ser retomado.

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Poderíamos dizer que está tudo errado, que isso 4º pegue a panela embaixo do armário da pia e leve-
é o fim da escrita ou algo mais catastrófico? a ao fogo
5º coloque na panela uma colher de sobremesa de azeite
Acreditamos que não. Diríamos simplesmen-
6º frite a cebola no azeite até ficar transparente
te que estamos diante de novas condições de pro- 7º despeje o arroz na panela
dução e uso da linguagem que nos levam a novas 8º frite por alguns minutos, mexendo sem parar
formas de composição dos recursos lingüísticos já 9º despeje na panela duas medidas de água
conhecidos. Nossa interpretação para o deslize da 10º não mexa mais
cedilha é a de que o corpo do e-mail tinha mesmo 11º tampe a panela
o caráter da informação oral e igualmente o seu 12º desligue o fogo quando a água secar
tempo de produção, sem espaço para revisões e
reelaborações, que possivelmente levariam o es- Tudo ia correndo bem, até que, um dia, pediu
critor a corrigir a palavra errada. Além disso, a que a moça lhe preparasse escarola refogada:
menos que estejamos enganadas, ainda que o su-
jeito da enunciação tenha sido nós (os dois organi- 1º abra a gaveta da geladeira, do lado esquerdo
zadores do evento), o sujeito empírico, o escriba 2º pegue o maço de escarola
3º lave as folhas da escarola....
do texto, foi um só e o agradecemos foi atravessa-
do pela força da memória visual de agradeço, este
Porém, tomado por um arroubo literário, depois
sim com “ç”.
do 13º item, escreveu: “E pra terminar, salzinho!”.
No meio da manhã, para conferir se estava tudo
Estava tudo muito claro na receita.
certo, telefonou para casa:
Ela não sabe ler, resolveu inventar
ou o quê?
– Sim, está tudo bem, já fiz o arroz, a carne, eu só
não encontrei uma coisa que o senhor pediu pra
Temos um amigo muitíssimo metódico e que colocar na escarola...
possui dotes culinários realmente invejáveis! Acerta – O quê? – perguntou nosso amigo, surpreso, pois
no ponto da carne, na dureza dos grãos do risoto e imaginava ter sido bastante claro.
também dos legumes, na medida dos temperos, – A salsinha.
embora tenda a acentuar a pimenta. O que não acei- – Mas que salsinha? Não vai salsinha na escarola,
ta, como todo bom gourmet, são sugestões de quais- de onde você tirou isso? – perguntou, já um tanto
quer natureza e mesmo auxílios como picar a ce- revoltado com a suposta ousadia da moça, de alte-
rar uma de suas receitas clássicas.
bola ou a salsinha, pois certamente apenas ele e
– Tava na receita...
talvez alguns poucos outros sabem como fazê-lo à – Não pode ser! Lê pra mim.
perfeição. – Aqui, ó: “e pra terminar, salsinha!”
Sendo assim, obviamente, sempre foi nosso – Não, não, você leu errado: é salzinho, sal-zi-nho,
amigo quem preparou a própria comida, o que, dada viu?, com z, de salzinho e não com s, de sal-si-nha,
a correria de seu dia-a-dia, acabou por se tornar si, ouviu?, salsinha, salzinho, se fala diferente, se
uma atividade desgastante. Decidiu, então, embo- escreve diferente.
ra contra seus princípios culinários, contratar uma – Salzinho?
empregada para também cozinhar, mas, pela en- – É.
trevista inicial, desconfiou de que ela não era uma
expert no assunto... E diante do silêncio um tanto constrangido da
Adotou então um método que julgou eficien- moça, esclareceu:
tíssimo: toda manhã, enquanto tomava café, escre-
– Sal. Uma pitada de sal.
via passo a passo o que a moça deveria fazer na
– Ah.
cozinha:
– Esquece a salsinha, ouviu?
1º pegue o pote de arroz na parte de cima do armá-
rio da pia Quando nos contou esse episódio de sua vida
2º meça uma medida de arroz doméstica, nosso amigo estava indignado com o
3º descasque meia cebola e pique-a em pequenos que considerou uma tremenda ignorância da moça.
cubos Como ela poderia confundir salzinho, escrito com

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“z”, com salsinha, escrita com “s”? “E olha que terísticas de um gênero para outro, pressupondo que
minha caligrafia é perfeita”, lembrou-nos, concluin- nosso interlocutor irá nos acompanhar na propos-
do em seguida: “A educação neste país vai mesmo ta. Mas não foi o que ocorreu, talvez também por-
muito mal!”. que a cozinheira de nosso amigo não tivesse tanto
De fato, impossível não concordar com ele: a domínio de outros gêneros discursivos.
educação não anda nada bem e sua letra era impe- De qualquer forma, acostumada que estava ao
cável! Mas nossas concordâncias pararam por aí. estilo de seu patrão na escrita de suas receitas –
Parabenizamo-lo pelo domínio da ortografia e do uma comunicação econômica, seca, sem qualquer
traçado da letra, ainda que na era do computador e tempero – o esperado era ver escrito: 14º uma pita-
dos corretores automáticos isso não conte muito. da de sal. Diante do estranhamento causado pela
Mas na avaliação do fato ele estava equivocadíssi- leitura do salzinho, procurou dentro dos seus co-
mo. Vejamos. nhecimentos lingüísticos e culinários algo que fi-
Em primeiro lugar, dado o tipo de comunica- zesse mais sentido. Eis porque leu salsinha em vez
ção que nosso amigo estabeleceu com sua nova de salzinho, bastante próximos visualmente.
funcionária, a licença poética representada no di- É interessante observar, ainda, a confusão de
minutivo “salzinho” não fez qualquer sentido, pois nosso amigo-patrão no que se refere à imagem de
não combinou com o tom que optou por imprimir sua interlocutora: por vezes, em seu didatismo
em seus textos. exemplar, desconsiderava possíveis conhecimen-
Explicamos: receitas pertencem a um grupa- tos da moça, como o de que em alimentos salgados
mento de gêneros de discurso caracterizado por usa-se sal, supondo que sua leitora era alguém des-
descrever ações, em que o objetivo é o de fornecer provido de um mínimo de bom senso. Por outro
informações ao leitor, passo a passo, de modo a lado, imaginava que ela tivesse tanto domínio da
possibilitar que, por meio delas, ele consiga reali- linguagem a ponto de apreender sua ousadia lin-
zar determinada tarefa, no caso a de preparar um güística.
alimento. A referência às situações acima, que mostram
Podemos, porém, descrever uma receita de di- deslizes ortográficos de seus interlocutores, tem por
versas maneiras; basta passarmos os olhos nas es- objetivo sublinhar a importância de se compreen-
tantes das livrarias que se dedicam ao tema: há li- der a linguagem como prática discursiva social e,
vros de receitas que, além de cumprir a função de como tal, compreender sua elaboração sem incor-
expor procedimentos, informam sobre a origem do rer em avaliações precipitadas e até equivocadas.
prato a ser preparado ou sobre o valor nutritivo dos Não há linguagem fora de situações concretas de
alimentos; há também aquelas publicações que pro- comunicação, assim como não há atividade huma-
curam se aproximar do leitor de maneira mais afe- na que não seja permeada pela linguagem. Essa
tuosa, escolhendo muitas vezes um tom lúdico ou idéia foi profundamente trabalhada por Mikhail
ainda narrando tradições familiares que originaram Bakhtin em sua teoria enunciativa, com a elabora-
os diferentes modos de cozinhar, comunicando que ção de vários conceitos.
comida também é cultura... Essa diversidade é cer- Gostaríamos de destacar, visando o trabalho
tamente exemplo do quanto é possível ser criativo terapêutico fonoaudiológico, o conceito de gêne-
dentro dos limites impostos pelas características de ros discursivos, antes trabalhado somente com tex-
um gênero discursivo. tos literários e que foi pelo autor ampliado para os
Nosso amigo optou pela estrutura composi- mais diversos discursos, inclusive os da esfera co-
cional mais tradicional do gênero receita caracteri- tidiana. Eis sua definição:
zada pela relação inicial dos ingredientes seguida
do modo bastante objetivo de preparo do alimento. Todas as esferas da atividade humana, por mais
Salzinho foi, como dito anteriormente, uma licen- variadas que sejam, estão sempre relacionadas com
ça poética, uma ousadia não compreendida por sua a utilização da língua. Não é de surpreender que o
caráter e os modos dessa utilização sejam tão
interlocutora, que, dada a opção de nosso amigo
variados como as próprias esferas da atividade hu-
dentro do gênero receita, jamais imaginou que ele mana, o que não contradiz a unidade nacional de
pudesse usar de açúcar e afeto para orientá-la na uma língua. A utilização da língua efetua-se em for-
cozinha. Óbvio que uma certa ousadia é bem-vin- ma de enunciados (orais e escritos), concretos e úni-
da, o que nos leva a transgredir, transpondo carac- cos, que emanam dos integrantes duma ou doutra

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O trabalho fonoaudiológico com a linguagem escrita: considerações sobre a visitação a gêneros discursivos

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esfera da atividade humana. O enunciado reflete as Desnecessário o número de e-mails indigna-
condições específicas e as finalidades de cada uma dos enviados ao autor do pedido de ajuda na divul-
dessas esferas, não só por seu conteúdo temático e gação do evento, que acabou por constranger inu-
por seu estilo verbal, ou seja, a seleção operada nos
tilmente o autor do texto, indiscutivelmente reco-
recursos da língua – recursos lexicais, fraseológi-
nhecido como um sujeito letrado.
cos e gramaticais –, mas também, e sobretudo, por
sua construção composicional. Estes três elemen- Desnecessária também a maneira incisiva
tos (conteúdo temático, estilo e construção compo- como nosso amigo apontou o erro à sua funcioná-
sicional) fundem-se indissoluvelmente no todo do ria. Isso, provavelmente, levou-a a rememorar pos-
enunciado, e todos eles são marcados pela especifi- síveis problemas vividos nos primórdios da esco-
cidade de uma esfera de comunicação. Qualquer laridade: a menina tímida que lutava para seguir à
enunciado considerado isoladamente é, claro, indi- risca os passos impostos pela professora na pro-
vidual, mas cada esfera de utilização da língua ela- messa de que, assim, aprenderia a escrever corre-
bora seus tipos relativamente estáveis de enuncia-
tamente, mas sempre acabava emperrando em al-
dos, sendo isso que denominamos gêneros do dis-
1 gum s, ou z, ss, ç...; ou seja, entre outras, essa é
curso. (Bakhtin, [1952-53] 1979, p. 279)
uma relação de poder que se estabelece quando os
Há, portanto, para Bakhtin, uma infinidade de aspectos normativos da escrita são privilegiados e
gêneros discursivos na medida em que infinitas são supervalorizados. É também assim que se contri-
as atividades humanas. Estamos falando de sim- bui para a perpetuação dos famigerados problemas
ples diálogos cotidianos, de documentos oficiais e de evasão escolar, para os distúrbios de aprendiza-
até das mais variadas exposições científicas, sem gem, os déficits de atenção, as dislexias.
esquecer da literatura. É o gênero discursivo, ou Num artigo intitulado A escrita na clínica fo-
seja, o conjunto de enunciados mais ou menos es- noaudiológica, Masini (1999) discute sobre o quan-
táveis relativos a uma esfera de atividade que nos to o foco de atenção na avaliação tanto escolar como
dá a idéia de sabermos mais ou menos o que se fonoaudiológica da escrita recai sobre a ortogra-
pode esperar de uma situação. Por suas palavras, fia, em detrimento de outros aspectos do texto,
em qualquer situação social vivida: e o quanto isso prejudica e impede que muitas
pessoas e, em especial, nossos pacientes utili-
(...) sabemos de imediato, bem nas primeiras pala- zem-se de seus recursos expressivos para ela-
vras, pressentir-lhe o gênero, adivinhar-lhe o volu- borar seus escritos. O sentimento de não saber
me (...), a dada estrutura composicional, prever-lhe escrever com todas as letras generaliza-se para
o fim, ou seja, desde o início, somos sensíveis ao o não saber escrever, independentemente do con-
todo discursivo (...). (Id., ibid., p. 302) texto em que a escrita apareça.
Embora já seja possível observar os efeitos
O que é possível, plausível, esperado em de- positivos das práticas educacionais socioconstruti-
terminados momentos não o é, necessariamente, vistas no que se refere à apropriação criativa das
em outros. Para Bakhtin, aprender a falar (e a es- leis que regem os diversos gêneros discursivos,
crever) não é adquirir um sistema de normas lin- ainda recebemos na clínica fonoaudiológica crian-
güísticas invariáveis, mas, sim, aprender a estrutu- ças, adolescentes e adultos que, diante de erros
rar enunciados nas mais diversas situações sociais naturais, pois inerentes a esse processo de apro-
de comunicação. priação, passam a desconsiderar os seus acer-
Nas situações aqui descritas, os deslizes orto- tos; muitas vezes, afastam-se então da escrita ou
gráficos apareceram em contextos possíveis sim, acabam mais preocupados em acertar, subme-
dadas suas características, mas o que observamos tendo-se a ordens estabelecidas, em vez de in-
foi uma intolerância aos mesmos. Ainda há um vestir de pessoalidade seus textos, aceitando o
valor exacerbado atribuído à ortografia também em desafio de aperfeiçoá-los à medida que forem sen-
situações cotidianas, provocando impasses em in- do criados, lidos e relidos, pelo próprio autor e por
terlocuções como as citadas. outros interlocutores.

1
Neste artigo, usaremos a data da primeira publicação dos textos citados. No caso de Bakhtin ([1952-53] 1979), as primeiras datas
referem-se ao manuscrito, e a segunda, à primeira publicação. A opção por marcar as duas datas é em respeito à cronologia da
produção do autor. A data da edição usada está nas referências bibliográficas. Assim procederemos em todas as citações.

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Torna-se, nessa medida, importante ressaltar Ainda como salienta Bakhtin, compreender é
ainda um fato da linguagem escrita: ela permanece responder ativamente. Isso ocorre na oralidade e
inalterada apenas durante o tempo em que não é também na escrita:
lida. Toda leitura atualiza o texto escrito, e isso
implica as alterações que o leitor faz do texto con- Compreender a enunciação de outrem significa
forme seus próprios pressupostos e necessidades orientar-se em relação a ela, encontrar o seu lu-
no tempo-agora da leitura. Os contornos estabele- gar adequado no contexto correspondente. A
cada palavra da enunciação que estamos em pro-
cidos pelo reconhecimento de diversos gêneros não
cesso de compreender, fazemos corresponder
garantem uma compreensão unívoca da comuni-
uma série de palavras nossas, formando uma ré-
cação, mesmo a que se realiza no cotidiano. Isso plica. Quanto mais numerosas e substanciais
porque o texto escrito guarda sempre uma abertu- forem, mais profunda e real é a nossa compre-
ra, um inacabamento essencial e imprevisto, po- ensão. (Id., ibid., pp. 117-8)
rém entrevisto nas duas situações acima referidas.
Contar com tal inacabamento é saber da impossi- As réplicas oferecidas aos textos escritos nas
bilidade de domínio do texto escrito de forma tão situações acima apresentadas apontam para tais
cabal que nenhuma alteração seja feita no trajeto conteúdos ideológicos ou vivenciais. No caso da
percorrido pela leitura ou pelos diversos possíveis cedilha, o que toca é o valor da ortografia para apre-
leitores. O que chama atenção, no entanto, ainda, é sentação e identidade do profissional, num contex-
a ênfase na ortografia, como se ela pudesse garan- to em que a falha ortográfica poderia ser associada
tir um acabamento que o próprio movimento da à falha profissional se não considerássemos as fa-
linguagem não permite. Com isso não queremos lhas previsíveis possibilitadas pelo uso da Internet.
dizer que não há questões importantes a serem tra- No caso do salzinho, o que se observa é que o
balhadas quanto à grafia correta das palavras, bem conteúdo vivencial da cozinheira criou as ressonân-
como com os demais aspectos normativos da es- cias necessárias para a compreensão alterada para
crita, mas sim que tais aspectos só podem ser toca- salsinha.
dos e trabalhados tendo em vista as necessidades Poderíamos objetar, com razão, que compre-
expressivas de cada texto, dentro de cada proposta ender os possíveis motivos de alterações de senti-
de elaboração escrita. do não alteram, afinal, os equívocos aqui relata-
E, nesse sentido, o trabalho que propõe o trân- dos. No entanto, o que desejamos enfatizar é que
sito entre os diversos gêneros discursivos torna-se tais equívocos fazem parte dos processos de inte-
valioso para que o escritor-leitor elabore recursos ração verbal e, ainda, que a busca dessa compreen-
para o confronto com os impasses próprios da lin- são – a cada vez, em cada caso – é o que sustenta o
guagem escrita, com o que nela não é estável, ape- processo terapêutico com a linguagem escrita.
sar da norma, posto que dependente do contexto Em Histórias de contar e de escrever – a lin-
social e concreto em que se realiza: guagem no cotidiano (1995), abordamos alguns dos
mitos sobre a forma ideal de escrita que acabam,
De fato, a forma lingüística (...) sempre se apresen- muitas vezes, por causar entraves na produção de
ta aos locutores no contexto de enunciações preci- textos, e a necessidade de desconstruí-los no coti-
sas, o que implica sempre um contexto ideológico
diano do trabalho fonoaudiológico.
preciso. Na realidade, não são palavras o que pro-
Acreditamos que faça parte dessa desconstru-
nunciamos ou escutamos, mas verdades ou menti-
ras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, ção a circulação de diferentes gêneros discursivos;
agradáveis ou desagradáveis etc. A palavra está sem- porém não estamos, com isso, preconizando seu
pre carregada de um conteúdo ou de um sentido ensino formal na clínica fonoaudiológica, papel
ideológico ou vivencial. É assim que compreende- reservado à escola, como defendido – corretamen-
mos as palavras e somente reagimos àquelas que te – por algumas vertentes educacionais. Sugeri-
despertam em nós ressonâncias ideológicas ou con- mos aqui a visitação2 a diferentes gêneros.
cernentes à vida. (Bakhtin/Volochinov, 1929, p.81)

2
Denominamos visitação o contato com diferentes gêneros discursivos, apreendendo-lhes as características, sem, no entanto,
termos a obrigação de fazê-lo segundo uma seqüência didática. Nosso compromisso é com o interesse que determinado gênero
suscita no paciente.

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O trabalho fonoaudiológico com a linguagem escrita: considerações sobre a visitação a gêneros discursivos

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Pode parecer antigo, mas ainda se faz necessá- rar ou para finalizar rapidamente a tarefa, e mesmo
rio dizer: não é apenas retomando tarefas tipica- na negação categórica de expor, por escrito, pensa-
mente acadêmicas, como resumos, dissertações, mentos e opiniões.
interpretações de texto ou mesmo cópias e ditados, Para tanto, mais do que elaborar exercícios, o
que possibilitaremos ao paciente da clínica fonoau- que se requer do terapeuta é uma atenção ao que o
diológica transformar a relação de sofrimento his- paciente produz no momento mesmo de sua pro-
toricamente estabelecida com sua linguagem. Ao dução, para que as possíveis intervenções sejam
contrário, é aproximando-o de situações discursi- realizadas em sintonia com as necessidades e ca-
vas cotidianas, em que práticas de escrita e leitura pacidades expressivas de cada um.3
significativas estejam presentes, que podemos levá- Seguem, então, dois momentos de situações
lo a desconstruir suas idéias preconcebidas acerca vividas no espaço clínico fonoaudiológico e que,
de seus processos de elaboração da escrita. acreditamos, podem esclarecer ainda mais nossa
Muitas vezes, pacientes subestimam suas ca- proposta de trabalho. Ressaltamos que ambos os
pacidades discursivas por estenderem as dificulda- pacientes aqui retratados já não se encontram em
des que possuem em contextos bastante específi- terapia.
cos, como o escolar, para outros do cotidiano. Des-
valorizam o bilhete que escrevem ou o livro que Uma experiência de conhecer
lêem, ou ainda as horas que navegam na Internet
porque têm em mente um único parâmetro: o dos O relato que se segue foi escrito por uma me-
gêneros acadêmicos aos quais estão dolorosamen- nina de dezessete anos que cursava o segundo co-
te amarrados (infelizmente, vemos ainda que essa legial, já havia passado por reprovações em séries
desvalorização é, por vezes, partilhada por alguns anteriores e havia sido encaminhada pela institui-
pais, professores e até especialistas da área clíni- ção escolar por apresentar dificuldades tanto para
co-terapêutica). ler como para compor textos. O trabalho de elabo-
Como os interlocutores das duas situações ci- ração e aperfeiçoamento desse relato foi realizado
tadas no início do artigo, alguns pacientes tendem com o terapeuta, tendo em mente a necessidade de
a generalizar o certo e o errado, sem conseguir, a acolher o sofrimento da paciente, que se referia
princípio, compreender que há variações próprias constantemente à imagem negativa que tinha de si
dos diferentes gêneros na composição da estrutura com relação à sua condição de ler e escrever. Sen-
dos textos, no estilo e até na escolha de palavras. do assim, a intenção do trabalho era a de visitar
Nosso papel com a visitação a diferentes gê- diversos gêneros discursivos, sem pretender siste-
neros é o de abrir novas possibilidades de postura matizar o conhecimento deles, mas propondo, de
diante de uma situação. Não há um único modo de acordo com o ritmo e tempo de apreensão da pacien-
se escrever ou ler um determinado texto. É neces- te, possibilidades de aperfeiçoamento que a levas-
sário, inicialmente, compreender em que situação sem a encontrar e desvendar novas maneiras de se
discursiva ele se encontra e quais os lugares dos relacionar com a escrita.
interlocutores nessa situação.
No caso da terapia fonoaudiológica, a situa- 1ª elaboração
ção é de alguém que se encontra despontecializado
em suas possibilidades de apropriação do conheci- A viagem para Cuba foi muito boa, porque tive uma
mento da escrita. Sendo assim, visitar os gêneros experiência de conhecer, eu acho que ninguém iria
discursivos permite que o paciente, ao explorá-los, desperdiçar a oportunidade de conhecer um país,
que vive na pobreza. Sem ter o que fazer o dia in-
seja apresentado a motivações, capacidades e de-
teiro que acaba se dedicando ao Ballet, a arte, por
sejos ainda desconhecidos, podendo transformar e
ter uma educação boa e principalmente com pessoas
ressignificar sua história de sofrimento com a lin- de outros países sem se importar com eles mesmos.
guagem escrita. Essa história muitas vezes se tra- Eles preferem que você esteja bem do que eles fi-
duz no evitar o contato com diversos tipos de tex- carem, na mordomia, como o exemplo do cama-
to, na escrita o mais sumária possível para não er- rim, que deixaram para gente.

3
Sobre o tema, cf. Dauden & Mori-de Angelis (1997, pp. 91-101); Perrotta, C. (no prelo).

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A cidade e as pessoas são tão simples que eles gos- sos, você acaba perdendo a vontade de voltar para
tam do que tem e lógico que preferem ganhar, mas lá. Como um país subdesenvolvido como Cuba pode
eles se contentão pelo que tem, exemplo: da distri- ser totalmente o aucontrário?
buição de arranjos de cabelo, que depois até as
meninas choram, por você dar uma coisa que nem A cidade e as pessoas são tão simples que eles gos-
tem valor para você e que tem para elas, principal- tam do que tem e lógico que preferem ganhar um
mente a dedicação dos bailarinos ao Ballet como se presentinho, mas como são pobres eles se conten-
esforçam e são bons, por estar fazendo alguma coi- tam pelo que tem, exemplo: da distribuição de ar-
sa que gostam, porque diversão para eles é isso o ranjos de cabelo, que depois até as meninas cho-
Ballet e a educação. ram, por você dar uma coisa que nem tem valor
para você e que tem para elas, principalmente a
Diante desse texto, pedimos a você, leitor dedicação dos bailarinos ao Ballet como se esfor-
deste artigo, que faça, de imediato, um primeiro çam e são bons, por estar fazendo alguma coisa
que gostam, porque diversão para eles é isso o
juízo de valor. Decerto, a primeira impressão pode
Ballet e a educação.
tê-lo levado a concluir que o texto está confuso,
com frases pouco inteligíveis (Sem ter o que fazer
Embora a sugestão feita pela terapeuta
o dia inteiro que acaba se dedicando ao Ballet;
para que a paciente precisasse um determinado tre-
por você dar uma coisa que nem tem valor para
cho do relato não tenha sido realizada, a última
você e que tem para elas, principalmente a dedi-
segue procurando esclarecer ao leitor o tema que
cação dos bailarinos ao Ballet). De fato, era essa
pretende abordar em seu texto, deixando nele as
também a avaliação que, constantemente, a pa-
impressões que teve de Cuba, sua surpresa e seu
ciente recebia de seus professores; as notas eram
encantamento com outra maneira de viver. O tra-
muito ruins, seguindo-se observações do tipo: tex-
balho de ampliação e precisão do relato continua,
to confuso, procure reler e fazer modificações.
pois a paciente mostrava disposição para levá-lo
No contexto terapêutico fonoaudiológico,
adiante.
foram sendo abertas, então, outras possibilidades
Nesse sentido, uma próxima resposta da
de diálogo com a paciente a partir de sua produção
terapeuta ao texto foi:
escrita, valorizando-se, nesse momento, mais a sua
disposição em relatar uma experiência para, a par-
– Interessante sua comparação entre esses dois
tir dela, propor reelaborações de acordo com o gê- países: Cuba e Estados Unidos, me fez pensar nas
nero de discurso escolhido. Nessa medida, a tera- experiências semelhantes que tive quando viajei ao
peuta respondeu e sugeriu: segundo. Mas fiquei com uma dúvida: afinal, por
que você foi para Cuba? Acho que seria interes-
– Não conheço Cuba, mas pelo que você está me sante você reelaborar seu texto, esclarecendo isso
contando, parece mesmo que a vida lá é bem dife- ao leitor. Discordo numa coisa que você disse, e
rente da nossa, principalmente no valor que dão à acho que você poderia rever essa idéia: será que
arte e à educação. Mas você deu um exemplo para deveríamos conhecer um país apenas para não des-
contar da generosidade do povo que não compre- perdiçar a oportunidade de ver que vive na pobre-
endi bem: o exemplo do camarim. Releia então seu za? É isso mesmo que você pensa? Mais uma ob-
texto e veja se você pode esclarecer melhor suas servação: você escreveu aucontrário; embora a
idéias ao leitor. gente pronuncie assim, aqui há duas palavras: ao
contrário.
2ª versão
3ª e última versão
A viagem para Cuba foi muito boa, porque tive uma
experiência de conhecer, eu acho que ninguém iria A viagem para Cuba foi muito boa , porque tive a
desperdiçara oportunidade de conhecer um país, experiência de conhecer o Ballet Nacional e prin-
que vive na pobreza. Sem ter o que fazer o dia in- cipalmente fazer aulas com eles. Esta experiência
teiro, os Cubanos, acabam se dedicando ao Ballet de conhecer Cuba, eu acho que ninguém iria des-
ou também a arte. Por terem uma educação boa e perdiçar, um país comunista e que é explorado por
principalmente com pessoas de outros países sem um outro país pode se sair tão bem em relação a
se importar com eles mesmos, um ex: Estados Uni- educação e a medicina e principalmente o Ballet.
dos, um país desenvolvido, você chega lá, para pe- Quem um dia poder visitar, ou vai ficar assustado
dir uma informação, eles são tão estúpidos e gros- ou impressionado com a pobreza. Sem ter o que

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O trabalho fonoaudiológico com a linguagem escrita: considerações sobre a visitação a gêneros discursivos

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fazer o dia inteiro, os Cubanos, acabam se dedican- precisões de seu texto, despertar em seus interlo-
do ao Ballet ou também a arte. Por terem uma edu- cutores a necessidade de formular respostas, res-
cação boa e principalmente com pessoas de outros soar réplicas, objeções e/ou concordâncias.
países sem se importar com eles mesmos, um ex:
Nessa experiência compartilhada no espaço
Estados Unidos, um país desenvolvido, você chega
clínico fonoaudiológico que a paciente foi desen-
lá, para pedir uma informação, eles são tão estúpi-
dos e grossos, você acaba perdendo a vontade de volvendo a condição de aperfeiçoar seus textos de
voltar para lá. Como um país subdesenvolvido como acordo com as situações dialógicas presentes tam-
Cuba pode ser totalmente o ao contrário? bém em outros contextos que não só o terapêutico.
Foi-lhe dada a oportunidade de viver o que há
A cidade e as pessoas são tão simples que eles gos- de prazeroso e também de conflituoso no apro-
tam do que tem e lógico que preferem ganhar um fundamento de uma idéia, de uma impressão, de
presentinho, mas como são pobres eles se conten- um relato, na ampliação de dizeres, exercitando
tam pelo que tem, exemplo: da distribuição de ar-
a tolerância ao não saber, ao erro, às impreci-
ranjos de cabelo, que depois até as meninas cho-
sões, às confusões, permitindo que sua potenci-
ram, por você dar uma coisa que nem tem valor
para você e que tem para elas, principalmente a alidade se articulasse com vivências efetivas e
dedicação dos bailarinos ao Ballet como se esfor- criativas com o ato de conhecer.
çam e são bons, por estar fazendo alguma coisa
que gostam, porque diversão para eles é isso o
Ballet e a educação.
O santista se emociona

Aqui tivemos a oportunidade de conhecer al- Pietro4, garoto de nove anos, estava cur-
gumas idéias e informações que não aparecem na sando a terceira série do ensino fundamental de uma
primeira versão e que foram sendo construídas com escola particular, quando sua mãe procurou terapia
a ajuda do interlocutor. De um interlocutor que pôde fonoaudiológica. Bastante apreensiva, apresentou
acolher o caos da produção inicial, a confusão, que o filho como um menino hiperativo que pouco se
pôde ler o texto não com um padrão em mente, concentrava em atividades de leitura e escrita, pois
mas orientado pela história pessoal da paciente- apresentava muita dificuldade em realizá-las. Para
autora, procurando então ampliar suas possibilida- a mãe, que acompanhava palestras dadas na escola
des de dizer. Ainda havia muito a ser trabalhado sobre desenvolvimento infantil e aprendizagem, seu
para que seus textos correspondessem à extensão filho tinha todas as características de uma criança
de suas idéias, de seus conhecimentos e de suas com problemas de aprendizagem e, embora não
informações, para que, relendo-se, ela pudesse es- nomeasse, guardava no íntimo a idéia de que ele
tar suficientemente livre para revê-los, modificá- fosse disléxico.5
los, aprofundá-los, por, a partir da escrita, percebê- Logo no primeiro encontro com a terapeuta,
los falhos ou incompletos. Pietro se mostrou, de fato, muito ativo na sala. Foi
Porém, o que foi aqui trabalhado e que, como logo lhe dizendo que não conseguia parar quieto e
dissemos anteriormente, parece-nos essencial quan- que ficava se mexendo o tempo todo. A terapeuta
do o tema é linguagem, foi a possibilidade de a falou-lhe, então, sobre sons que poderíamos pro-
paciente vivenciar o tempo de produção de um re- duzir em nosso próprio corpo e que aqueles movi-
lato, garantindo-se um espaço para revisões e ree- mentos que ele fazia tinham sentido dentro de uma
laborações, de acordo com o sentido ideológico que prática chamada barbatuque. Pietro mostrou-se
as palavras que escolhemos para apresentar nossos capaz de manter a atenção naquilo que a terapeuta
dizeres carregam. Antes da sistematização do co- estava lhe apresentando e por algum tempo ambos
nhecimento, para essa paciente era fundamental trocaram seqüências de sons típicas de uma apre-
perceber-se em condições de, a despeito das im- sentação dessa modalidade musical.

4
O nome do paciente foi trocado, assim como aspectos mais particulares de sua história, a fim de se preservar sua identidade.
5
Para quem navega na Internet, tem sido muito fácil encontrar sites que auxiliam o cidadão na identificação de determinadas
patologias pela descrição de algumas de suas características mais comuns. Não raro, os fonoaudiólogos têm recebido, em seus
consultórios, crianças e adolescentes que já vêm com um diagnóstico de dislexia fechado pelos próprios pais, depois de navegarem
pelas informações oferecidas nesses sites. Sem entrar no mérito dessa questão, pois corremos o risco de nos desviarmos do foco
principal, gostaríamos de registrar que essa disseminação de diagnósticos é polêmica e merece maior atenção.

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Isso fez com que Pietro ficasse menos tenso, fotográfica). Mostrou capacidade também em dar
olhando ao seu redor com mais vagar, procurando dicas para a terapeuta, quando ela não conseguiu
conhecer o que tinha à disposição na sala. Interes- adivinhar seu desenho, aceitando sua sugestão de
sou-se por uma revista, a Revista dos Curiosos, que fazer o jogo da forca com a palavra.
trazia na capa uma foto de golfinhos, um de seus A cada início de atividade que envolvesse lei-
temas preferidos. Folheou-a e mostrou outros as- tura ou escrita, Pietro necessitava dizer que não
suntos que também lhe interessavam. Demonstra- sabia ler ou escrever, atribuindo sua dificuldade a
va certo desejo em saber o que estava escrito nas um possível problema orgânico. Como as ativida-
reportagens, mas seus olhos fugiam do texto. Ler des propostas no espaço terapêutico configuravam-
sozinho, nem pensar. Pietro sempre tinha uma ex- se como situações discursivas significativas para
plicação para o fato de não saber ler, mas, apesar ele, Pietro via-se sempre diante de um dilema: de-
disso, leu com a terapeuta algumas pequenas re- sistir daquilo que lhe interessava para ficar com a
portagens, divertindo-se com os assuntos. certeza da incapacidade ou procurar ver como po-
Logo descobriu os jogos e não hesitou em es- deria lidar com o conhecimento que tinha.
colher os que envolviam leitura. O primeiro deles: Na seqüência dos encontros terapêuticos,
Imagem e Ação.6 Pietro iniciou o jogo pegando duas Pietro foi optando, com a ajuda do terapeuta, pela
cartelas, lendo corretamente: orelha de abano e segunda alternativa. Mostrou com isso a existên-
relógio digital. Nem bem terminou de ler disse não cia de recursos integrados dentro de si e, por vezes,
saber o que significavam, como se a tarefa de de- a possibilidade de serem reconhecidos por ele para
codificar já tivesse sido imensa para ele. Descar- lidar com as dificuldades que encontra na vida.
tou a possibilidade de tentar compreender e dese- Será possível observar, na continuidade do re-
nhar as palavras e pegou outra cartela, em que es- lato do caso, que um processo terapêutico volta-
tava escrito concha para sopa. Apressadamente, do para práticas discursivas significativas, nas
leu colchão de sapo, dizendo não saber desenhar quais circulem gêneros discursivos presentes no
por não saber do que se tratava. A terapeuta, estra- cotidiano do paciente, pode contribuir para a
nhando a palavra, pediu nova leitura. Nessa segun- transformação da relação de sofrimento que o
da tentativa, Pietro percebeu que se tratava de con- sujeito estabelece com sua linguagem, nesse caso
cha para sopa, dizendo que havia visto parte da a escrita.
palavra e já inventado o resto. Não há aí uma difi- À época do atendimento terapêutico, a Copa
culdade propriamente com a decodificação, mas o Mundial de Futebol estava em sua primeira fase,
uso de um recurso de leitura (a antecipação) pró- tema de bastante interesse para Pietro, que colecio-
prio de leitores proficientes em uma língua e utili- nava revistas Placar. Ele costumava acompanhar os
zado, nesse momento por Pietro, como estratégia mais diversos campeonatos preenchendo as tabe-
para se livrar de uma situação para ele perturbado- las que a revista publica no decorrer de cada um
ra. A pressa por livrar-se da aflição que uma leitura deles. Eis uma prática discursiva que envolvia lei-
lhe provocava ainda fez com que Pietro não dese- tura e escrita a que Pietro se dedicava com regula-
nhasse uma concha de sopa, mas sim uma tampa ridade, porém pouco valorizada como tal, tanto por
de panela. Apontar seu equívoco, nesse momento, ele quanto por seus pais.
equivaleu a confirmar sua tese de que não sabia ler O terapeuta sugeriu-lhe então que fizessem um
ou escrever, mesmo que a terapeuta tivesse salien- bolão, os dois, de todos os jogos da Copa. A pro-
tado que ele compreendeu o significado da palavra posta foi imediatamente aceita, mas Pietro se viu
em sua segunda leitura. novamente diante do dilema: teria de escrever os
No decorrer do jogo, Pietro mostrou maior se- jogos das fases do campeonato? Sim, era necessá-
gurança e desenvoltura para ler, desenhar e escre- rio o registro dos palpites de ambos, mas o tera-
ver as palavras, ainda que com alguns erros orto- peuta tranqüilizou-o dizendo que ele mesmo pode-
gráficos como em camera fortogarfica (câmera ria fazê-lo.

6
Jogo de tabuleiro que contém cartelas com palavras classificadas nas seguintes categorias: nome, lugar ou animal, ação, objeto,
lazer, difícil e todos jogam. Essas duas últimas categorias trazem palavras por vezes difíceis de serem representadas pelo desenho
ou mímica, como sim ou ar.

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O trabalho fonoaudiológico com a linguagem escrita: considerações sobre a visitação a gêneros discursivos

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O registro dos palpites, a espera pelos resulta- Essa mesma folha serviu para anotações pos-
dos, a confirmação de quem tinha acertado e de teriores de outros jogos até o final da Copa do
quem estava à frente no placar final do bolão fo- Mundo. A marcação de palpites não se caracteri-
ram o mote para as sessões subseqüentes. Não foi zou apenas como um exercício mecânico de escri-
a única atividade desenvolvida ao longo do pro- ta, mas como uma verdadeira interlocução. Pietro
cesso, mas foi fundamentalmente a que deu senti- fez-se participante da interação, na medida em que
do à continuidade do processo terapêutico. A cada partilhava com seu terapeuta um horizonte comum.
sessão, Pietro trazia alguma idéia sobre o assunto Sentiu-se seguro para mostrar-se não apenas pela
como resposta ao que havia sido apresentado ou grafia do outro (como nos primeiros palpites), mas
discutido na sessão anterior. Ele não se dava conta, por sua própria, deixando-se ver (o modo como as
mas estava se aproximando mais de situações em palavras eram grafadas deixava mais explícita sua
que a escrita estava presente. Cada jogo, princi- lógica de construção da ortografia, evidenciando
palmente os que o Brasil jogava, não era somente ao terapeuta que sua dificuldade real estava, por
assistido na televisão. Havia sempre um artigo de ele e pela família, superdimensionada) e também
jornal, revista ou Internet que abordava algum as- podendo ver-se de uma outra perspectiva.
pecto interessante do jogo. Por vezes, Pietro che- E que perspectiva era essa? A de estar viven-
gava, na terapia falando sobre determinado artigo ciando situações de escrita distantes da idéia de ava-
que tinha lido na sua Placar. O terapeuta procurava liação e correção como era o entendimento que ti-
reportagens sobre o assunto, em jornais, para ver nha da escrita escolar e, por que não dizer, familiar
outros enfoques, outras opiniões. Vale ressaltar que também. É curioso notar que o valor atribuído à
aquilo a que Pietro se referia ter lido não era valori- leitura e à escrita, por famílias em que há um maior
zado como tal pelos pais. Em entrevista paralelas com grau de escolaridade, aumenta consideravelmente
o terapeuta, os pais afirmavam que o filho não lia, quando existe um de seus membros – geralmente
apenas valia-se de informações que ele escutava na um filho – fragilizado pelo processo escolar. Se,
televisão, no rádio ou mesmo nas conversas que tinham ainda hoje, nem sempre “é permitido brincar de
em família. Havia sempre um alerta dos pais para o te- ler/escrever”, como nos fala Rojo (1995, p. 69),
rapeuta: não acredite nas coisas que Pietro fala. quando se trata de uma criança com dificuldades
Não acreditar, porém, era negar-lhe a possibi- dessa natureza, o rigor parece triplicar. O que é
lidade de viver o desejo, de viver a ilusão da potên- valorizado pela família é o letramento escolar. Ain-
cia necessária para seu processo de crescimento. da que haja presença de práticas de escrita no coti-
Pietro dizia ter lido a Placar, e era a partir dessa diano familiar, uma maior aproximação da criança
informação que o terapeuta agia, acolhendo-a e a essas práticas não é valorizada.
complementando-a com novas referências advin- Há, ainda, exemplos de outras atividades de-
das de outras situações discursivas. senvolvidas durante o processo terapêutico.
Como dito anteriormente, a aproximação de Numa sessão em que Pietro propôs jogar Cara
Pietro com o ato de escrever, tão doloroso para ele, a Cara7, porque era fácil e não tinha que ler, o
deu-se então pelo registro do palpites. terapeuta sugeriu-lhe uma nova regra, que exigiria
Vejamos como ele ocorreu. de ambos uma outra organização das respostas ob-
Ante o medo inicial de ter de escrever, tam- tidas, dizendo-lhe que poderia se organizar como
bém como já foi dito, o terapeuta prontificou-se a quisesse. Completou dizendo que, de sua parte,
registrar os palpites. Pietro ditou os seus e o tera- usaria a escrita, para não esquecer as informações
peuta escreveu os dele. Ao lado destes últimos, o obtidas. Como era esperado, o primeiro movimen-
terapeuta abriu uma chave e escreveu: palpite T. to de Pietro foi o de se afastar de seu uso, ainda que
Pietro pegou a folha e repetiu o gesto: fez a chave tenha percebido que, naquele momento, ela tenha
e escreveu palpite P. sido um facilitador.

7
O jogo Cara a Cara consiste de dois tabuleiros que trazem plaquetas móveis com figuras humanas (iguais nos dois tabuleiros,
embora dispostas em posições diferentes em cada um deles) e seus respectivos nomes. As mesmas figuras compõem um baralho à
parte. Cada jogador pega uma carta desse baralho e coloca diante de seu tabuleiro sem que seu oponente a veja. O objetivo do jogo
é acertar a figura que o oponente tirou, fazendo perguntas que facilitem essa descoberta, do tipo: é loiro?; tem olho azul?, entre
outras. A cada resposta, o jogador abaixa as plaquetas que não correspondem à descrição dada pelo outro jogador. Ganha o jogo
quem primeiro acertar a figura do outro jogador.

Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 16(2): 181-193, agosto, 2004 191


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Numa sessão posterior, quando jogavam outro – Claro, por quê? Se não é são-paulino não podia
jogo, que também exigia a retenção de uma série estar nessa fila.
de respostas, Pietro lançou-se a usar o recurso pelo – Claro porque eu sou santista e eu já tenho o meu
ingerso, eu esto comprando paro o meu amigo!
terapeuta utilizado anteriormente. De início, dei-
– E ele é são-paulino?
xou na escrita marcas de sua relação conflituosa ao
– Não ele é paumerence, só veio ver o jogo.
optar pelo registro da resposta mais curta (o jogo Mas que mistura! Ta bom, você até pode comprar o
tinha a mesma estrutura do Cara a Cara; no entan- ingresso aqui, mas não vá sentar no meio da minha
to, cada jogador tinha de descobrir sua própria iden- torcida, hein? O São Paulo vai ganhar e você vai
tidade, que estava estampada em sua testa e por- ficar mal.
tanto visível somente ao outro, por meio de per- Os três entraram e o jogo está para começar. Por
guntas do tipo é de comer? Tem dentro de casa? acaso, os três sentaram do outro lado do campo,
etc. Num primeiro momento, Pietro apenas regis- que quase não tem ninguém.
– Eu to emocionado!!!
trava sim ou não). Ao perceber que isso pouco o
– Emocionado por que? Eu estou enrascado. Co-
ajudava na situação e também ao avaliar que a po-
nheço tanto o Morumbi e vim sentar justo aqui, lon-
sição de interlocutor de seu terapeuta ali era a de ge da minha torcida e do seu lado!
jogador tanto quanto ele, estando mais interessado – Azar o seu! Ah!
em suas próprias respostas que em corrigir as dele, – Ah é? Olha lá... Gol!! É tricolor, ô ô ô!
Pietro ousou escrever mais. Vejamos seu registro: Kaká de cabeça marca o primeiro gol. E o santista...
– Não, eu que comemoro. Olha! Gol!!
Sou de cone, é duro, não é furta as cirança gostam O Diego empatou o jogo!
não nacha aropa, não é futura, não é parecida com E foi assim mais duas vezes para cada lado. Placar
torta. final: 3 x 3.
[Sou de comer, não é fruta, as crianças gostam, não Na saída, são-paulino e santista se abraçaram, di-
mancha a roupa, não é fruta, não é parecida com zendo:
torta.] – Bom jogo!
E o paumerence fica queto.
Foi no interior de situações orais e escritas sig-
nificativas para ele que Pietro pôde rever, valorizar No transcorrer dessa atividade, ficou níti-
e ampliar seus conhecimentos sobre a escrita, po- do para o terapeuta que não só o personagem que
dendo também transformar sua relação conflituosa Pietro construiu estava emocionado, como ele pró-
com a linguagem. Como um último exemplo, o prio o estava ante a possibilidade de estar escre-
texto que se segue foi produzido em uma sessão vendo com uma segurança pouco vivenciada ante-
em que ele e seu terapeuta conversavam sobre os riormente. Em um processo terapêutico, é funda-
últimos acontecimentos nos estádios de futebol, as mental que o paciente possa viver experiências
brigas entre torcidas. Entre uma opinião e outra, o como essa para que se consolide um processo de
terapeuta sugeriu que escrevessem juntos uma nar- reelaboração do texto segundo características pró-
rativa em que ele passaria sua sugestão sobre o prias do gênero discursivo em questão.
comportamento dos torcedores. Sem mecanismos Os dois casos relatados de processos terapêu-
de fuga, Pietro aceitou a proposta, desenvolvendo ticos em diferentes momentos apontam para a idéia,
seu personagem a partir do que lhe era proposto defendida neste artigo, de que viver práticas de es-
pelo terapeuta. Eis o resultado (as partes elabora- crita diferenciadas daquelas presentes na escola tra-
das por Pietro estão em itálico): dicional, optando ainda por aquilo que denomina-
Na fila para comprar ingressos para o jogo São mos visitação a diversos gêneros discursivos, mos-
Paulo e Santos, dois torcedores se encontraram. tra-se como um caminho frutífero para o trabalho
terapêutico fonoaudiológico.
– Ei cara, você aí na minha frente. Você não é são-
paulino?
– Não, claro.

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O trabalho fonoaudiológico com a linguagem escrita: considerações sobre a visitação a gêneros discursivos

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Referências

Bakhtin M. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação


verbal. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes; 1997. (1952-53/1979)
Bakhtin M, Volochinov. Marxismo e filosofia a linguagem
(1929). 3.ed. São Paulo: Hucitec; 1986.
Masini MLH A escrita na clínica fonoaudiológica. Rev Dist
Comun 1999;10(2):193-204.
Perrotta CM, Märtz LW, Masini L. Histórias de contar e de
escrever: a linguagem no cotidiano. São Paulo: Summus; 1995.
Rojo, RHR. Concepções não-valorizadas de escrita: a escrita
como ‘um outro modo de falar’. In: Kleiman A. Os significados
do letramento. Campinas (SP): Mercado das Letras; 1995.

Recebido em fevereiro/04; aprovado em agosto/04.

Endereço para correspondência


Claudia Perrotta
Rua Artur de Azevedo, 1537, ap. 103, São Paulo,
CEP 05404-014

E-mail: claper@attglobal.net

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