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EDITORES

Alexandra Rezende Assad


Daniel Volquind
Pedro Thadeu Galvão Vianna
Nádia Maria da Conceição Duarte
Oscar César Pires

Volume I

Sociedade Brasileira de Anestesiologia


Rio de Janeiro
2011
Educação Continuada em Anestesiologia
Copyright © 2011, Sociedade Brasileira de Anestesiologia
Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer sistema, sem prévio consentimento da
SBA.
Diretoria
Nádia Maria da Conceição Duarte
José Mariano Soares de Moraes
Ricardo Almeida de Azevedo
Sylvio Valença de Lemos Neto
Oscar César Pires
Antônio Fernando Carneiro
Airton Bagatini
Comissão de Educação Continuada
Alexandra Rezende Assad
Daniel Volquind
Pedro Thadeu Galvão Vianna
Capa
Maria de Las Mercedes Gregoria Martin de Azevedo
Marcelo de Azevedo Marinho
Revisão Bibliográfica
Teresa Maria Maia Libório
Colaboradores
Maria de Las Mercedes Gregoria Martin de Azevedo
Marcelo de Azevedo Marinho
Teresa Maria Maia Libório
Rodrigo Ribeiro Matos
José Bredariol Junior

Ficha catalográfica
S678e Educação Continuada em Anestesiologia
Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira de Anestesiologia/SBA, 2011.
124 p.; ilust.

978-85-8114-040-7
Vários colaboradores.

1. Educação Continuada em Anestesiologia. 2. Anestesia. I. Sociedade


Brasileira de Anestesiologia. II. Duarte, Nádia Maria da Conceição.

CDD - 617-96

O conteúdo desta obra é de inteira responsabilidade de seu(s) autor(es).


Produzido pela Sociedade Brasileira de Anestesiologia com o patrocínio dos Laboratórios Abbott do Brasil Ltda.
Material de distribuição exclusiva para médicos.

Produzido em outubro/2011

Sociedade Brasileira de Anestesiologia


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EDUCAÇÃO CONTINUADA EM ANESTESIOLOGIA

Sociedade Brasileira de Anestesiologia

Volume I
Esta é uma publicação Direção executiva e comercial: Silvio Araujo | André Araujo
Coordenação editorial: Natalie Gerhardt
Designer: Irene Ruiz
Contatos: acfarmaceutica@grupogen.com.br | www.acfarmaceutica.com.br
São Paulo – (11) 5641-1870 | Rio de Janeiro – (21) 3543-0770

O conteúdo desta obra é de inteira responsabilidade de seu(s) autor(es) e não refletem necessariamente as opiniões da
editora e também do laboratório.
Educação Continuada em Anestesiologia

EDITORES

Alexandra Rezende Assad


TSA/SBA. Presidente da Comissão de Educação de Educação Continuada da SBA. Professora Adjunta
do Departamento de Cirurgia Geral e Especializada da Faculdade de Medicina da Universidade Federal
Fluminense. Anestesiologista do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho – UFRJ.

Daniel Volquind
TSA/SBA. Membro da Comissão de Educação de Educação Continuada da SBA. Professor da Uni-
versidade de Caxias do Sul – UCS. Anestesiologista da CAN – Clínica de Anestesiologia Ltda.

Pedro Thadeu Galvão Vianna


TSA/SBA. Membro da Comissão de Educação de Educação Continuada da SBA. Responsável pelo
CET/SBA do Departamento de Anestesiologia da Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP.
Professor Titular do Departamento de Anestesiologia da Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP.

Nádia Maria da Conceição Duarte


TSA/SBA. Presidente da Sociedade Brasileira de Anestesiologia. Corresponsável pelo CET Serv. de
Anest. do Hospital da Restauração e Hospital Getúlio Vargas.

Oscar César Pires


TSA/SBA. Diretor do Departamento Científico da Sociedade Brasileira de Anestesiologia. Respon-
sável pelo CET do Hospital Municipal de São José dos Campos. Doutor em anestesiologia/mestre
em Farmacologia. Professor-doutor da Universidade de Taubaté.

COLABORADORES

André Marques Mansano


Anestesiologista – Hospital Israelita Albert Einstein. Aluno de Doutorado do Programa de Pós-Gradua-
ção em Anestesiologia da Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP.

Bruno Mendes Carmona


TSA/SBA. Instrutor Corresponsável pelo CET do Hospital Ophir Loyola – Belém-PA. Presidente da
Sociedade de Anestesiologia do Estado do Pará. Membro do Comitê de Via Aérea Difícil da SBA.

Celso Schmalfuss Nogueira


TSA/SBA. Membro do Comitê dos Distúrbios do Sono da SBA. Responsável pelo CET – Santa Casa de
Santos.

Fábio Vinicius Benevenuto Feltrim


TSA e CAAD. Professor auxiliar do curso de Medicina da Universidade Anhanguera-Uniderp
Corresponsável pelo CET Hospital Regional de MS.
Educação Continuada em Anestesiologia

Geraldo Rolim Rodrigues Junior


TSA/SBA. Professor Assistente Doutor do Departamento de Anestesiologia da Faculdade de Medicina
de Botucatu – UNESP.

Glauber Gouvêa
TSA/SBA. MD, MSc, Anestesiologista do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho – UFRJ. Anes-
tesiologista da Unidade de Transplante Hepático – UFRJ. Corresponsável pela Residência Médica em
Anestesiologia – CET Bento Gonçalves – HUCFF/UFRJ. Membro do Comitê Transfusional do HUCFF/
UFRJ. Mestre em Ciências Médicas – UFF.

Leopoldo Muniz da Silva


Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Anestesiologia – Departamento de Anestesiologia
FMB/UNESP. Médico anestesiologista do Hospital e Maternidade São Luiz, São Paulo.

Marcelo Teixeira dos Santos


TSA/SBA. Corresponsável pela residência médica de anestesiologia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Membro da Câmara Técnica de Anestesiologia do Conselho Regional de Medicina do Estado
do Rio de Janeiro.

Macius Pontes Cerqueira


TSA/SBA. Instrutor Corresponsável pelo CET do Hospital São Rafael – Salvador-BA. Membro do Comitê
de Via Aérea Difícil da SBA.

Márcio de Pinho Martins


TSA/SBA. Coordenador do Núcleo SBA Vida. Responsável pelo CET do Hospital da Polícia Militar do
Rio de Janeiro-RJ.

Mary Neide Romero


TSA/SBA. Presidente do Comitê dos Distúrbios do Sono SBA. Responsável CET – Hospital Geral de
Fortaleza.

Rosa Beatriz Amorim


Professor Assistente Doutor do Departamento de Anestesiologia da Faculdade de Medicina de
Botucatu – UNESP.

Simone Soares Leite


TSA/SBA. Mestre em Anestesiologia pela UFRJ. Coordenadora do CET Bento Gonçalves – UFRJ.

Waston Vieira Silva


TSA/SBA. Presidente do Comitê de Via Aérea Difícil da SBA. Instrutor Corresponsável pelo CET do IMIP –
Recife-PE.
Educação Continuada em Anestesiologia

PREFÁCIO

Somos todos agentes da nossa história, construtores do nosso destino e, consequentemen-


te, responsáveis pelo nosso trajeto na vida.
Assim, mesmo diante da árdua realidade que estamos vivendo, não podemos ficar conforma-
dos e jamais esquecer dos nossos ideais, persistindo na busca pela perfeição.
Neste sentido, a Comissão de Educação Continuada (CEC) da Sociedade Brasileira de
Anestesiologia (SBA), mais uma vez cuidadosamente se desdobrou em esforços envolvendo
profissionais atualizados e atuantes para planejar esta obra, elaborando textos sucintos e
objetivos que representam uma oportunidade adicional para atualização e obtenção de novos
conceitos em anestesiologia.
Pelas características desta 1ª edição do livro de Educação Continuada em Anestesiologia,
além de ser fonte de entendimento, servirá de estímulo para a educação permanente.

Oscar César Pires


Diretor do Departamento Científico – SBA
Educação Continuada em Anestesiologia

sumário
Capitulo 1
Controle da via aérea no paciente obeso mórbido....................................01
Bruno Mendes Carmona, Macius Pontes Cerqueira, Márcio de Pinho Martins, Waston Vieira Silva

Capitulo 2
Avaliação pré-anestésica.............................................................................25
André Marques Mansano

Capitulo 3
Equilíbrio acidobásico..................................................................................43
Geraldo Rolim Rodrigues Jr.

Capitulo 4
Fisiologia e farmacologia do sistema respiratório.....................................57
Leopoldo Muniz da Silva

Capitulo 5
Efeitos dos anestésicos inalatórios na resposta inflamatória pulmonar
após ventilação monopulmonar..................................................................65
Marcelo Teixeira dos Santos

Capitulo 6
Alterações cardiorrespiratórias da apneia do sono e suas implicações
anestésicas....................................................................................................71
Celso Schmalfuss Nogueira, Fabio Vinicius Benevenuto Feltrim, Mary Neide Romero

Capitulo 7
Mecanismos moleculares de neuroproteção dos anestésicos inalatórios........... 83
Glauber Gouvêa

Capitulo 8
Como avaliar criticamente a validade interna de um ensaio clínico
controlado de alocação aleatória em anestesiologia................................93
Simone Soares Leite

Capitulo 9
Atualização em anestesia para cirurgia torácica................................................. 107
Rosa Beatriz Amorim
Capítulo 1
Controle da via aérea no
paciente obeso mórbido
Bruno Mendes Carmona
Macius Pontes Cerqueira
Márcio de Pinho Martins
Waston Vieira Silva
Educação Continuada em Anestesiologia

Introdução
A obesidade é uma doença cuja prevalência cresce, principalmente, nos países desenvol-
vidos e naqueles em desenvolvimento. Como resultado, a cada dia se torna mais frequente
a presença de pacientes obesos nas clínicas e hospitais para realização de procedimentos
cirúrgicos ou diagnósticos sob anestesia.
Nos hospitais onde há programas de cirurgia bariátrica, geralmente existem protocolos e
condições específicas para a condução desses pacientes. Lidar com esse tipo de paciente
pode ser bastante arriscado.
Algumas alterações fisiopatológicas, principalmente as mecânicas e inflamatórias, tornam
o manejo da via aérea nesse grupo de pacientes desafiador. Além disso, a presença de
outras morbidades associadas (hipertensão, diabetes, hérnia de hiato, apneia obstrutiva do
sono etc.) pode contribuir para esse fato.1

Classificação da obesidade
A obesidade pode ser classificada pelo índice de massa corporal (IMC), calculado pelo
peso em quilogramas dividido pelo quadrado da altura, de acordo com a Tabela 1.1. Pacien-
tes com obesidade classe 1 geralmente não oferecem maior risco ao manejo perioperatório.
Entretanto, aqueles cujo peso é maior (obesos mórbidos) requerem considerações especiais
com relação ao preparo e quanto aos equipamentos necessários para o controle da via aé-
rea.2,3 O termo obesidade mórbida é usado na maioria dos trabalhos clínicos e será usado
neste capítulo, apesar de existir um grande estigma em relação a essa classificação. Hensrud
e McMahon propõem que os termos obesidade extrema, classe III, ou obesidade com com-
plicações clínicas sejam usados.4

Tabela 1.1: Classificação da obesidade


Classificação IMC (kg/m2) Risco de comorbidades
Normal 18,5 - 24,9 Baixo
Sobrepeso ≥ 25
Pré-obeso 25 - 29,9 Aumentado
Obesidade ≥ 30
Obesidade Classe 1 30 - 34,9 Moderado
Obesidade Mórbida ≥ 35
Obesidade Classe 2 35 - 39,9 Elevado
Obesidade Classe 3 ≥ 40 Muito elevado
Fonte: Organização Mundial da Saúde, 2010.

Alterações fisiopatológicas da obesidade


e risco para broncoaspiração
O tecido adiposo, por ser metabolicamente ativo, faz aumentar o consumo basal de oxi-
gênio e a produção de gás carbônico. O seu acúmulo nas paredes torácica e abdominal
e na cavidade abdominal promove a redução da complacência pulmonar total. Isso resulta
na redução dos volumes pulmonares, especialmente o volume de reserva expiratória (VRE),
comprometendo a capacidade residual funcional (CRF). Quando o obeso assume a posição
supina, há também o deslocamento cefálico do diafragma, o que o torna mais susceptível a
episódios hipoxêmicos. As alterações gasométricas são mais intensas do que em indivíduos
não obesos, causando rápida queda na saturação arterial de oxigênio (SAO2) devido à impor-

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Educação Continuada em Anestesiologia

tante redução da capacidade residual funcional e pela incapacidade de ventilar adequada-


mente o paciente obeso.5-7 Aliado a isso, a infiltração de gordura na musculatura acessória da
ventilação faz com que o obeso tenha menor tolerância à atividade física.
Alterações no trânsito gastrointestinal, como aumento no tempo de esvaziamento gástrico
e redução no tônus do cárdia, têm sido atribuídas à obesidade mórbida.8 Acreditava-se que
indivíduos com IMC acima de 35 kg/m2 teriam maior risco para a regurgitação do conteúdo
gástrico e aspiração brônquica. Reis et al. concluem que o esvaziamento gástrico no obeso
não é lentificado como se acreditava, assim como o conteúdo gástrico não é maior que no
paciente não obeso.9 O IMC não tem demonstrado ser um bom marcador de risco para bron-
coaspiração, e os estudos mais recentes questionam esses conceitos.10,11,12 Atualmente,
considera-se como risco elevado para broncoaspiração os obesos mórbidos portadores de
diabetes e/ou de refluxo gastroesofágico e indivíduos hiperobesos. Ainda assim, a literatura
considera o emprego profilático, nesse grupo de pacientes, de antagonistas-H2, bloqueado-
res da bomba de prótons e/ou de agentes pró-cinéticos, como a metoclopramida.

Obesidade e via aérea


Na avaliação da via aérea do obeso, Langeron et al. identificaram cinco fatores que podem
causar dificuldade na ventilação sob máscara:13

• IMC > 26 kg/m2


• Idade > 55 anos
• Ausência de dentes
• Barba
• Histórico de ronco

O escore de Mallampati elevado (III ou IV), a presença de desproporção orofaringeana


(indiretamente mensurada pela presença de circunferência cervical > 40 cm), da Síndrome
da Apneia Obstrutiva do Sono (SAOS) moderada ou grave e o sexo masculino estão mais
relacionados ao colapso das vias aéreas superiores após a indução anestésica, podendo
impossibilitar a ventilação com emprego de máscara facial.14-18
Devido à redução na capacidade residual funcional (reserva de oxigênio limitada) e ao
consumo de oxigênio aumentado, a apneia em obesos mórbidos pode resultar em rápida
dessaturação da oxi-hemoglobina (Figura 1.1).19-21
Assim, é imperativo alcançar pré-oxigenação máxima nesses pacientes antes do início
da apneia, por ventilação espontânea, durante 3 a 5 minutos com oxigênio (O2) a 100%

Figura 1.1: Diagrama comparando o tempo médio de


dessaturação da oxi-hemoglobina durante a apneia em um
paciente com obesidade mórbida. FAO2: fração alveolar
de oxigênio; SAO2: saturação da oxi-hemoglobina arterial
(Benumof JL: ASA Refresher Course Lectures, 2002)

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Educação Continuada em Anestesiologia

antes da indução. Parece haver pouca diferença entre a pré-oxigenação realizada na


posição de cefaloaclive ou lateral em relação à posição supina em pacientes obesos
mórbidos.22 Nesses pacientes, a administração de O2, por um cateter de nasofaringe
ou orofaringe durante a laringoscopia e a intubação, pode retardar ainda mais o início da
dessaturação da oxi-hemoglobina arterial durante a apneia. Considera-se o emprego de
pressão positiva contínua nas vias aéreas (CPAP) na pré-oxigenação desses pacientes,
principalmente naqueles portadores da SAOS. Trabalhos mais recentes com emprego de
tomografia de tórax ou de gasometria arterial demonstraram que o uso de 10 cmH2O de
CPAP mais O2 a 100% por 5 minutos antes da indução, seguido da ventilação sob más-
cara com utilização de 10 cmH2O de pressão positiva no final da expiração (PEEP), reduz
a ocorrência de atelectasias.23
A SAOS ocorre em até 70% dos pacientes obesos mórbidos submetidos à cirurgia ba-
riátrica.24 Não há relação direta entre a SAOS e o IMC, embora exista uma correlação com
a obesidade central.25 A SAOS é um conhecido fator de risco para resultados adversos
perioperatórios26 e é quantificada pela realização de estudos do sono (polissonografia), por
um índice de apneia-hipopneia (IAH). Essa escala de gravidade da Sociedade Americana de
Anestesiologistas define o indivíduo de acordo com a pontuação da Tabela 1.2.27
A crescente gravidade desse índice presume um aumento do risco perioperatório no que
diz respeito ao manuseio das vias aéreas, obstrução de vias aéreas no pós-operatório, hipo-
ventilação e apneia.28,29

Tabela 1.2: Índice de apneia-hipopneia (IAH) da ASA

IAH SAOS

<5 Não portador


6 a 20 Leve
21 a 40 Moderada
> 40 Grave

Em pacientes obesos, a circunferência do pescoço pode indicar dificuldade para intuba-


ção ou para o acesso invasivo da via aérea. A probabilidade chega a 35% em pacientes com
circunferência de 60 cm.30 Pescoço mais largo é mais comum em homens, com Mallampati
mais elevado, classificação de Cormack-Lehane três na laringoscopia direta (LD), e portado-
res de SAOS. Kheterpal et al. observaram que essa síndrome também aumenta o risco para
ventilação sob máscara difícil ou impossível (Tabela 1.3).31

Tabela 1.3: Fatores relacionados à incapacidade de ventilação sob máscara

Fatores Valor p
Radioterapia em pescoço 0,002
Sexo masculino < 0,001
Apneia do sono (SAOS) 0,005
Mallampati III ou IV 0,014
Barba 0,024

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Educação Continuada em Anestesiologia

Previsão de via aérea difícil em obesos mórbidos


A correlação entre IMC elevado e via aérea difícil (VAD) não parece ser tão linear quanto se ima-
ginava, e essa relação vem se enfraquecendo diante das evidências mais recentes. Novos estudos
mostram que a abordagem da via aérea no obeso mórbido requer, de fato, maior cuidado e um
planejamento adequado. Entretanto, ela tem sido realizada com sucesso pela LD convencional e uso
de lâminas curvas (lâminas de Macintosh). A intubação acordada com fibra óptica (broncofibroscopia)
é desnecessária na maioria dos casos.32 Na verdade, o desafio maior se deve à menor tolerância à
apneia dos obesos mórbidos. Apesar de uma correta avaliação pré-operatória das vias aéreas, nem
sempre é possível excluir todos os pacientes que apresentem dificuldade para intubação traqueal.
Diversos modelos e testes para previsão de VAD foram propostos.33-37 Em geral, os testes clínicos
apresentam poder discriminativo baixo ou moderado quando usados isoladamente. A combinação
de testes ou fatores de risco aumenta a capacidade de previsão da VAD ou dificuldade para intu-
bação traqueal (IT) por LD, entretanto, o valor clínico dos testes à beira do leito permanece apenas
limitado.38 Murphy, em editorial, enfatiza a necessidade de expandir o exame das vias aéreas, incluin-
do a avaliação de previsores para dificuldade em diversos cenários, como: ventilação sob máscara,
ventilação com dispositivos supraglóticos (DSG), para IT e para estabelecer uma via aérea cirúrgica.39
Avanços recentes ocorreram em relação a:

• Ampla divulgação da importância desse problema e das graves complicações associa-


das à VAD.40,41
• Necessidade de uma boa avaliação pré-operatória das vias aéreas e desenvolvimento de
novos dispositivos para o controle da mesma.42-47

Hagberg et al., em um estudo retrospectivo que envolveu 283 pacientes obesos, obser-
varam que 21 obesos mórbidos foram difíceis de intubar, entretanto, não se evidenciou falhas
de IT.48 Lavi et al. estudaram prospectivamente 204 pacientes, dos quais 105 eram obesos
mórbidos, e observaram que nos obesos a dificuldade para intubação foi maior, no entanto,
todos foram intubados e não houve diferenças entre os níveis de SaO2 ou tempo de LD.49
Sifri et al. avaliaram 1.435 IT realizadas em situações de emergência em um centro de trauma
nível 1, onde 17% foram em obesos ou obesos mórbidos, e a análise dos dados não mostrou
correlação entre o IMC e falhas na IT ou complicações a ela relacionadas.50
Acredita-se que os pacientes obesos, particularmente aqueles portadores da SAOS, são mais
difíceis de intubar que a população geral.51 Ezri et al. relataram intubação traqueal difícil (ITD) em
9 obesos em um grupo de 50 pacientes com obesidade mórbida. No grupo com ITD, 78% dos
pacientes eram portadores da SAOS.52 Siyam e Benhamou53 relataram uma incidência de ITD de
21,9% em pacientes com SAOS versus 2,6% no grupo controle (P = 0,05). Eles incluíam apenas
36 pacientes com SAOS em seu estudo, 92% do sexo masculino. Kim e Lee54 relataram uma taxa
de ITD de 16,7% nos pacientes com SAOS submetidos à uvulopalatofaringoplastia versus 3,3% no
grupo controle (P = 0,003). No entanto, esses pacientes não eram obesos, já que a média do IMC
para os pacientes com SAOS foi de 25,3 (± 3,3) e para o grupo controle o IMC era de 27,9 (± 2,9).
Estudo com 764 pacientes submetidos à anestesia geral sem patologia das vias aéreas não
mostrou uma correlação entre o IMC e a laringoscopia difícil.55 Brodsky et al.56 investigaram a
intubação difícil em 100 pacientes com IMC superior a 40 kg/m2. Houve uma falha de intubação
e 12 intubações problemáticas. Na análise de regressão logística, apenas a circunferência do
pescoço, sexo masculino e classificação de Mallampati previram a dificuldade para IT. A análise do
banco de dados de uma grande retrospectiva da Dinamarca, envolvendo 91.332 pacientes que
se submeteram à LD, revelou uma taxa de intubação difícil de 5,2%.57 Neligan et al.58 estudaram
180 pacientes obesos mórbidos submetidos à laringoscopia direta e intubação na posição de
rampa para a cirurgia bariátrica laparoscópica. A taxa de ITD foi de 3,3%. Houve uma incidência

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Educação Continuada em Anestesiologia

de 8,3% para laringoscopia difícil, definida por grau 3 ou 4 na classificação de Cormack e Lehane.
Não houve relação entre o diagnóstico da SAOS, a gravidade do IAH ou IMC e a dificuldade para
intubação. A dificuldade para laringoscopia e/ou IT ocorreu em pacientes do sexo masculino e
com classificação de Mallampati grau III ou IV. A média do IMC foi 49,4 com intervalo entre 36 e
77,5 kg/m2. Houve fraca associação entre o IMC maior que 35 kg/m2 e a intubação difícil.
O assunto permanece controverso e resultados diferentes foram observados por diferentes
autores. Juvin et al.59 observaram uma taxa de ITD de 15,5% em pacientes com IMC maior que
35 kg/m2 em comparação com 2,2% em pacientes com IMC menor que 30.60 Gonzalez et al.61
relataram que a incidência de dificuldade para IT foi de 14,3% em pacientes obesos em relação a
3% em pacientes não obesos (P = 0,03). Todos os pacientes foram intubados na posição olfativa
convencional. A obesidade mórbida ou a SAOS isoladamente não são capazes de predizer a ITD.

Posicionamento para intubação


Após cuidadosa avaliação do grau de dificuldade para ventilação e intubação, e decidida qual
a estratégia será adotada para a abordagem da via aérea, o paciente deve ser adequadamente
posicionado e pré-oxigenado. Recomenda-se o posicionamento em “rampa”, também conhecido
como posição HELP (Head elevated laryngoscopy position) com emprego de coxim de espuma ou
de mantas. A cabeça, os ombros e a parte superior do corpo devem ser elevados acima do tórax.
Estudos usando imagens de ressonância magnética confirmam que a posição em rampa deve ser
realizada com o alinhamento horizontal do canal auditivo externo e do manúbrio esternal.62
Essa posição é preferida à clássica posição olfativa, recomendada aos não obesos e sem risco
de lesão cervical.63 A posição olfativa convencional não pode ser alcançada nesses pacientes devi-
do à deposição de gordura na região suboccipital e na nuca.64 Collins et al. observaram isso, com-
parando as duas técnicas em um grupo de obesos mórbidos, e a posição em rampa demonstrou
melhor qualidade para visualização das estruturas glóticas.65 Uma das razões para as discrepâncias
na intubação difícil, particularmente entre os estudos de Brodsky e Neligan e os de Gonzales e Ju-
vin é o posicionamento do paciente. Sabe-se que, nessa população de pacientes, a posição em
rampa melhora significativamente a visão laringoscópica. A pré-oxigenação com a cabeceira a 25º
permite melhor alinhamento dos eixos boca, faringe e glote nesses pacientes, melhora a dinâmica
pulmonar e aumenta o tempo para que ocorra redução da SaO2.66 Essa medida também pode ser
usada para facilitar a intubação traqueal e a ventilação durante tentativas de intubação.67
Essa rampa pode ser feita com lençóis ou pré-moldada em diferentes materiais. No Brasil,
Simoni68 sugere um molde ilustrado nas figuras abaixo (Figuras 1.2-1.6).

Figura 1.2: A- Paciente com


IMC normal em posição supina
| B- Paciente com IMC normal
em posição olfativa convencio-
nal | C- Preparo para a posição
de rampa | D- Paciente obeso
mórbido em posição supina
| E- Paciente obeso mórbido
em posição de rampa (notar o
alinhamento horizontal do ca-
nal auditivo externo e do ma-
núbrio esternal)

6
Educação Continuada em Anestesiologia

Figura 1.3: Troop Elevation Pillow® (Mercury Figura 1.4: Trapézio de Simoni
Medical®)

Figura 1.5: Dimensões propostas para o Trapézio Figura 1.6: Trapézio de Simoni - paciente em
de Simoni posição ótima com ajuste sob a nuca

Novos métodos para controle da via aérea


Nas situações em que se prevê dificuldade ou impossibilidade para ventilar, a conduta
mais segura é empregar técnicas para intubação com paciente acordado com sedação leve,
titulada e anestesia tópica das vias aéreas superiores. Para ITD, a fibroscopia óptica ainda é
considerada como “padrão-ouro”. Entretanto, os estudos recentes com emprego de disposi-
tivos como as máscaras laríngeas para intubação (MLI), Fastrach® e LMA C-trach® (dispositivo
retirado do mercado pelo fabricante em outubro de 2009), assim como os novos videolarin-
goscópios, têm demonstrado excelentes resultados e de fácil execução. Podem ser conside-
rados como alternativas à broncofibroscopia (Figuras 1.7 e 1.8).69,70 Deve-se considerar tam-
bém que a execução da fibroscopia não é isenta de problemas. A sedação excessiva para
promover conforto do paciente e melhor aceitação à técnica pode causar obstrução da via
aérea e hipoventilação com hipóxia grave. O emprego exagerado de lidocaína nas vias aéreas
pode comprometer os reflexos de proteção da via aérea com risco de broncoaspiração.71,72
No caso das MLI (Fastrach® e LMA C-trach®), antes da IT, é possível ventilar o paciente
tão logo esses dispositivos sejam posicionados, minimizando a possibilidade de hipoxemia
durante o controle da via aérea.73
Mais recentemente, observamos a introdução dos novos dispositivos para intubação,
denominados videolaringoscópios. Até o momento, nem todos estão disponíveis no Brasil.
Os resultados parecem ser bastante promissores para essa população (Figuras 1.7 e 1.8).
Estudo com 80 obesos mórbidos comparou a visualização da laringe obtida na laringoscopia
convencional com a do videolaringoscópio. Em todos os casos, a exposição laríngea foi signifi-
cativamente melhor com o videolaringoscópio, com redução do grau da laringoscopia avaliado
pela classificação de Cormack e Lehane (P < 0.001).74 Em pacientes obesos, esses dispositivos

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Educação Continuada em Anestesiologia

podem melhorar a visualização da abertura glótica, facilitando a intubação traqueal. Dessa forma,
podem reduzir a possibilidade de hipoxemia grave durante o controle da via aérea.75,76

Figura 1.7: Máscara laríngea para intubação (MLI): Figura 1.8: Máscara laríngea para intubação (MLI)
Fastrach® com videocâmara: LMA C-trach®

Figura 1.9: Videolaringoscópio Airtraq® Figura 1.10: Videolaringoscópio Glidescope®

Figura 1.11: Videolaringoscópio Ambu® Pentax Figura 1.12: Videolaringoscópio McGrath®


AWS

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Educação Continuada em Anestesiologia

O emprego de dispositivos como a LMA C-trach® e o Airtraq® tem se mostrado superior à


laringoscopia convencional. Quanto aos dispositivos que possuem o conduto para a cânula
orotraqueal, como o Airtraq® e o Ambu® Pentax AWS (Airway Scope), publicações recentes
sugerem técnicas alternativas de introdução e posicionamento desses dispositivos na cavi-
dade oral de obesos mórbidos.77 É possível que na próxima revisão do algoritmo da via aérea
difícil da Sociedade Americana de Anestesiologistas (ASA) esses dispositivos já venham ocu-
par um espaço no qual a fibroscopia permanece sendo a técnica de escolha.78

Situação não intuba / não ventila


Problemas relacionados com o controle da via aérea podem apresentar alta morbidade79,
causar morte ou dano cerebral irreversível.80,81 Felizmente, esses problemas apresentam uma
baixa incidência, conforme a relação da Tabela 1.4.

Tabela 1.4: Problemas durante o controle da via aérea

Evento Frequência %
ITD 1,5 a 8,5
Incapacidade para IT 0,1 a 0,6
Associação de VMD ou impossível e ITD 0,37
Impossibilidade de VMF 0,01 a 0,16
Incapacidade para IT e VMF 0,0002

VMF = Ventilação sob máscara facial; VMD = ventilação sob máscara difícil; IT = Intubação traqueal;
ITD = Intubação traqueal difícil.

Atualmente, a capacidade do anestesiologista em manter a ventilação do paciente anes-


tesiado é o que requer mais atenção.82 Mesmo que a intubação traqueal não seja possível,
a manutenção de uma ventilação adequada deve ser a prioridade. A situação em que é im-
possível ventilar sob máscara deve ser evitada, pela correta identificação dos fatores de risco
descritos na Tabela 1.3.
A partir da identificação dos pacientes sob risco para ventilação sob máscara difícil (VMD),
pode-se elaborar uma conduta para controle da via aérea do paciente na qual não exista su-
pressão da ventilação espontânea, não expondo o paciente obeso a essa temível situação.
É preciso parar de se pensar no Trachlight, no broncofibroscópio, na máscara laríngea para
intubação (MLI), na cricotirotomia e em outros dispositivos como técnicas de resgate, mas
sim como táticas primárias para o controle da via aérea difícil.83-86
Mesmo assim, alguns pacientes não serão intubados por LD ou por meio de dispositivos
alternativos, como os videolaringoscópios.87 Portanto, é fundamental que o anestesiologista
esteja preparado para o controle da VAD não prevista.
Em razão das alterações fisiopatológicas do paciente com obesidade mórbida, o tempo
para resposta é extremamente reduzido.88,89
Adotar estratégias preestabelecidas para controle da via aérea pode reduzir os danos ou
mesmo impedir a morte dos pacientes.78,90 Isso implica disponibilidade imediata de equipa-
mentos para acesso invasivo à via aérea e médicos com treinamento adequado para realizar
esse tipo de abordagem. Baker et al. demonstraram que a maioria dos serviços de anestesio-
logia não está preparada para o controle emergencial da via aérea.91 Essa situação pode ser
encontrada em outros países92 e provavelmente em muitos hospitais brasileiros.

9
Educação Continuada em Anestesiologia

O anestesiologista é responsável pela verificação dos equipamentos de anestesia, assim


como do material para controle da via aérea difícil. Na Resolução nº 1.802/2006, do Conse-
lho Federal de Medicina (CFM), constam:

ANEXO III – Instrumental e materiais

• Máscaras faciais
• Cânulas oro/nasofaríngeas
• Máscaras laríngeas
• Tubos traqueais e conectores
• Seringas, agulhas e cateteres venosos descartáveis
• Laringoscópio (cabos e lâminas)
• Guia para tubo traqueal e pinça condutora
• Dispositivo para cricotireostomia
• Seringas, agulhas e cateteres descartáveis específicos para os diversos bloqueios anes-
tésicos neuroaxiais e periféricos

De acordo com o projeto diretrizes da Associação Médica Brasileira (AMB) e do CFM93,


para intubação difícil, é importante considerar o uso de:

• Máscara laríngea
• Intubação por laringofibroscopia
• Lâminas de laringoscópio alternativas
• Intubação às cegas
• Intubação retrógrada

É importante enfatizar que não existe uma lista rígida ou obrigatória com materiais neces-
sários para o controle da VAD. Os dispositivos e técnicas devem ser adaptados de acordo
com a realidade de cada serviço, incluindo materiais que sejam de uso diário, permitindo a
prática nos casos de rotina, facilitando o seu uso em situações emergenciais.94
A conduta mais prudente é a participação de dois anestesiologistas para indução
anestésica em obesos mórbidos. 95,96 A presença de outro anestesiologista poderá
significar a diferença entre o sucesso para melhorar a oxigenação ou o fracasso na
ventilação, com a possibilidade de causar danos irreparáveis. A ventilação a quatro
mãos pode melhorar a oxigenação enquanto outras medidas são preparadas. 97 Para a
situação na qual o anestesiologista não consegue ventilar adequadamente e também
não consegue fazer a intubação traqueal (situação não ventila/não intuba – NV/NI), é
fundamental chamar por ajuda.
Devem ser empregadas técnicas e/ou dispositivos que possam fornecer oxigênio imedia-
tamente, na maior concentração possível, até que seja possível restabelecer uma ventilação
adequada. Os DSG podem ser usados nessa situação.98 A máscara laríngea tem sido em-
pregada como técnica de resgate ventilatório nas situações NV/NI99, com taxa de sucesso de
94% para elevar a SaO2 acima de 90%.100 Enquanto dispositivos e/ou técnicas não invasivas
estão sendo tentadas, o material para acesso invasivo à via aérea deve ser preparado.101
Diversos algoritmos publicados sobre o tema sugerem diferentes abordagens com diver-
sas opções para o controle não emergencial da via aérea. Empregar um algoritmo simples
e objetivo facilita a tomada de decisões em situações de estresse, como ocorre na situação
NV/NI (Figura 1.13). Nessa circunstância, as opções tornam-se mais limitadas.102 O aneste-
siologista deve escolher os dispositivos ou técnicas que tenha maior habilidade e experiência.

10
Educação Continuada em Anestesiologia

Caso não seja possível restabelecer uma ventilação adequada com métodos não invasivos,
não resta outra alternativa a não ser o acesso invasivo à via aérea.

Plano A: Laringoscopia direta Intubação traqueal


IT inicial Falha IT

Plano B: MLI ou ML Confirmar IT-BFC


IT plano secundário
Falha oxigenação

Plano C:
Manutenção O2, venti- Reiniciar VMF O2 e Remarcar cirurgia
lação, remarcar cirurgia, ventilação Despertar paciente
despertar paciente
Falha oxigenação

ML Despertar paciente
Plano D:
Técnicas para situação Hipoxemia
NV/NI
Cricotirotomia

Figura 1.13: Algoritmo da Sociedade de Via Aérea Difícil do Reino Unido (DAS-UK)
Fonte: Henderson et al.

IT = Intubação traqueal; BFC = Broncofibroscopia; ML = Máscara laríngea; MLI = Máscara laríngea para intuba-
ção; VMF = Ventilação com máscara facial.

Os dispositivos/técnicas recomendados nessa situação estão relacionados na Tabela 1.5:

Tabela 1.5: Abordagem emergencial da via aérea


Ventilação emergencial

Não invasiva Invasiva

Máscara laríngea Cricotireoidostomia


Broncoscopia rígida
Combitube® e Easytube® Traqueostomia cirúrgica ou percutânea
Ventilação a jatos transtraqueais (VJTT)

Acesso invasivo à via aérea


Nas emergências ventilatórias, esgotadas as opções para controle não invasivo da via
aérea, recomenda-se o uso de técnicas invasivas relacionadas na Tabela 1.5. É importante
ressaltar que nenhum dispositivo foi desenvolvido especificamente para pacientes portadores
de obesidade mórbida. Essa condição dificulta significativamente esse tipo de abordagem,
podendo impossibilitar o seu uso devido à total impossibilidade para identificar corretamente
as estruturas anatômicas.
Em virtude da alta taxa de complicações da traqueostomia emergencial, a cricotireoidosto-
mia (cricotirotomia, cricotireostomia ou cricotirostomia) é o método de eleição na situação NV/
NI. Devido à dificuldade de identificação das estruturas laríngeas e das características anatô-
micas, esse procedimento não é recomendado em crianças abaixo de 12 anos.103 Quando
comparada à traqueostomia, a cricotirotomia apresenta as seguintes vantagens:

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Educação Continuada em Anestesiologia

• Simplicidade
• Menor distância entre a pele e a luz traqueal
• Maior facilidade para identificação das estruturas anatômicas
• Menor tempo para iniciar a ventilação
• Menor possibilidade de sangramento
• Menor taxa de complicações

Alguns conceitos são importantes para utilizar adequadamente essa técnica. A identifica-
ção das estruturas laríngeas é feita facilmente pela palpação em não obesos (Figuras 1.14
e 1.15). A obesidade é uma condição que dificulta bastante a identificação das estruturas
laríngeas. Apesar de apresentar maior dificuldade, mesmo em pacientes obesos é possível
identificar a cartilagem tireoide. É importante o exame e o reconhecimento dessa estrutura
para que técnicas percutâneas possam ser empregadas.
Recomenda-se a extensão da cabeça e do pescoço para facilitar a exposição da anatomia
dessa região, conforme representado na Figura 1.16.

Figura 1.14: Referências anatômicas para identifi- Figura 1.15: Referências anatômicas para
cação da membrana cricotireóidea identificação da cartilagem tireoide e membrana
cricotireóidea

Figura 1.16: Posicionamento ideal para cricotirotomia

Durante a palpação é possível identificar uma incisura em forma de V na cartilagem tireoi-


de. Em homens, a cartilagem tireoide é mais evidente (pomo de Adão). Ao deslizar o dedo
indicador sobre essa estrutura, pode-se sentir uma pequena depressão seguida de leve
abaulamento (cartilagem cricoide). Essa depressão é o espaço entre essas duas cartilagens,
ligadas pela membrana cricotireóidea (MCT). Em adultos, esta membrana apresenta um for-
mato trapezoidal, com cerca de 1 cm de comprimento (superior-inferior) e 3 cm de largura.
O material cirúrgico recomendado para a técnica aberta está relacionado na Tabela 1.6 e
a técnica está representada na Figura 1.17.

12
Educação Continuada em Anestesiologia

Tabela 1.6: Instrumental cirúrgico


Bisturi com lâmina 11
Gancho traqueal
Dilatador Armand Trousseau
Tubo traqueal com balonete nº 5
Cânula de traqueostomia nº 5 / 5,5 / 6,0
Figura 1.17: Técnica cirúrgica

O acesso à via aérea pode ser feito por meio de diferentes técnicas, que podem ser clas-
sificadas para cricotirotomia conforme descrito na Tabela 1.7.

Tabela 1.7: Técnicas para cricotirostomia


Opções para cricotirostomia
Por punção
Cateter reforçado Cateteres para VJTT
Percutânea dilatacional
Com ou sem técnica de Seldinger Com ou sem detector de luz traqueal
Anatômica ou cirúrgica
Convencional Técnica rápida

Resumo das técnicas


Aberta, anatômica ou cirúrgica104,105
• Técnica convencional – consiste na incisão com bisturi e afastadores descritos na Tabela 1.6.
• Técnica rápida
• Incisão da pele e da MCT
• Gancho na cartilagem cricoide
• Elevar a cartilagem no sentido ventral e caudal
• Inserir tubo traqueal nos 5,0 a 6,5
Por punção da MCT106-109

Com estilete
• Cateteres para VJTT
• Cateter reforçado para acesso transtraqueal à via aérea (Cook Medical Inc, USA)
• Dispositivo para via aérea emergencial – Wadhwa (Cook Medical Inc, USA)
• Ravussin (VBM Medizintechnik GmbH, Sulz, Germany)
• Patil/Arndt (Cook Medical Incorporated, USA)
• QuickTrach® I (VBM Medizintechnik GmbH, Sulz, Germany)
• Mini-Trach® II - Non Seldinger® Kit
• Cateteres que permitem ventilação convencional (com balonete)
• QuickTrach® II com balonete (VBM Medizintechnik GmbH, Sulz, Germany)
• Kit para cricotirotomia (PCK) Portex® e Nu-Trake®

Técnica de Seldinger ou dilatacional110


• Arndt (Cook Medical Incorporated, USA)
• Dispositivo de Melker (Cook Medical Inc, USA)
• Portex® Mini-Trach II Seldinger Kit

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Educação Continuada em Anestesiologia

Figura 1.18: Cateter reforçado para acesso


transtraqueal – Diâmetro interno (DI) = 2 mm

Figura 1.19: Cricotireóstomo de Patil

Figura 1.20: Dispositivo para via aérea emergencial – Wadhwa

Figura 1.21: Agulha de Ravussin para VJTT – DI Figura 1.22: Cateter de Arndt com DI = 2 ou 3 mm
= 2 mm

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Educação Continuada em Anestesiologia

Figura 1.23: QuickTrach® I e QuickTrach® II com Figura 1.24: Kit Portex® - PCK
balonete – DI = 4 mm

Figura 1.25: Dispositivo para cricotirotomia em Figura 1.26: Kit de Melker – Diâmetro interno (DI)
adultos – Nu-Trake® entre 3,5 e 6,0 mm com e sem balonete

Figura 1.27: Portex® Mini-Trach® II Seldinger Kit

As técnicas de punção da MCT são de execução bastante simples e de fácil aprendizado


(Figura 1.28).

Figura 1.28: Cricotirotomia por


punção da MCT

15
Educação Continuada em Anestesiologia

A taxa de sucesso com o método varia entre 60% e 100%. Não existem estudos com-
parando especificamente a taxa de sucesso em indivíduos normais com pacientes obesos.
A obesidade é um fator complicador, pois altera a anatomia do pescoço e pode até mesmo
impossibilitar esse tipo de abordagem para o controle da via aérea.
Não é possível ventilar adequadamente por punção com cânula nº 13G. Flint et al. de-
monstram que o volume-minuto eleva com o aumento do calibre da cânula (20G versus 13G),
porém somente com dispositivos apropriados (manujet) é possível gerar fluxos adequados à
ventilação. Recomenda-se não usar dispositivos de baixa pressão (aparelho de anestesia, bolsa
ventilatória ou modulador de fluxo de O2 de Enk) para esse fim.111 Técnicas por punção permitem
oxigenar temporariamente o paciente com jatos de O2 sob pressão ou com equipamentos para
ventilação a jato transtraqueal de O2.112 Esse tipo de ventilação permite a melhora da oxigenação
até que seja obtida uma via aérea definitiva por cricotirotomia ou traqueostomia cirúrgica.113

Figura 1.29: Manujet ou Broncojet para ventilação a jato transtraqueal (VJTT)

De acordo com a lei de Laplace, quanto maior o DI da cânula, melhor a qualidade da


ventilação. Tubos/cânulas de traqueostomia com balonete e diâmetro interno de até 6,0 mm
podem ser inseridos pela MCT (Figura 1.30).

Figura 1.30: Sequência para cricotirotomia com técnica de Seldinger

Técnicas que empregam cânulas com maior DI, mas sem balonete, permitem a ventilação con-
vencional com sistema válvula-bolsa ventilatória (tipo Ambu) ou com circuito ventilatório do aparelho
de anestesia. Devido à retenção de CO2, elas devem ser empregadas por poucas horas.
Dispositivos com balonete permitem a ventilação mecânica convencional sem esse tipo de

16
Educação Continuada em Anestesiologia

problema. Tradicionalmente, tem sido recomendado tempo de permanência da cânula por até
72 horas.114 Essa recomendação tem sido questionada em razão da falta de evidências científicas.
O risco de estenose subglótica após a cricotirotomia parece ser muito baixo.115 No entanto, caso
seja necessária a manutenção de prótese respiratória, indica-se uma traqueostomia eletiva.
Não existe estimativa adequada da taxa de complicações, em virtude do pequeno número
de casos descritos na literatura. Varia de acordo com a técnica empregada, com taxas de
23% no atendimento hospitalar em emergências, podendo chegar a 40%.116 Geralmente,
técnicas que empregam a punção da MCT apresentam menor risco de sangramento. Quanto
maior a cânula, maior o risco de lesões traumáticas e sangramento.
Para traqueostomia, a taxa de complicações graves no pós-operatório em obesos é maior.
Em análise multivariada, a obesidade mórbida foi fator de risco isolado para o aumento de
complicações da traqueostomia (risco relativo de 4,4, intervalo de confiança de 95% entre 2,1
e 11,7).117 Possivelmente, o mesmo se aplica às complicações da cricotirotomia em obesos.
Anestesiologistas preferem e apresentam maior facilidade no uso de dispositivos que
usem a técnica de Seldinger ou a punção por cateter da MCT.117,118 A taxa de sucesso da
cricotirotomia em atendimento pré-hospitalar é de 88%.119
O tempo para estabelecer uma ventilação efetiva depende do treinamento com esse mé-
todo. Por ser um método invasivo, dificilmente pode ser treinado em situações habituais. O
treinamento para técnicas invasivas pode ser feito em manequins, traqueia de animais ou
cadáveres em cursos específicos para o controle da via aérea. Esse tipo de treinamento per-
mite reduzir o tempo para iniciar a oxigenação e ventilação, assim como aumentar a taxa de
sucesso, podendo atingir 96% em 40 segundos ou menos.120
As principais complicações são: perfuração de esôfago, posicionamento incorreto da câ-
nula de cricotirotomia, obstrução por coágulos, enfisema subcutâneo e sangramento.121,122
Podem ser dividas em complicações imediatas ou tardias, conforme a Tabela 1.8.

Tabela 1.8: Complicações da cricotirotomia

Precoces Tardias
Asfixia Estenose traqueal
Hemorragia Hemorragia tardia
Enfisema subcutâneo /mediastinal Disfunção da deglutinação
Pneumotórax Obstrução da cânula
Peruração de esôfago Fístula traqueoesofágica
Lesão de corda vocal Alteração de voz
Ruptura de laringe Traqueomalácia
Broncoaspiração Infecção

Técnicas para controle invasivo da via aérea podem salvar vidas, portanto devem ser en-
sinadas e treinadas regularmente. O ideal é evitar que a situação NV/NI ocorra ou reduzir sua
incidência ao máximo. Isso pode ser conseguido com a instituição de programas para ensino
e treinamento específicos em VAD.123-125
Berkow et al. demonstraram uma redução na incidência do controle invasivo da via aérea
ao longo de 11 anos consecutivos após a introdução desse tipo de programa.126 Dessa
forma, pode-se reduzir a necessidade de medidas invasivas para controle da via aérea, dimi-
nuindo a morbiletalidade associada a esse tipo de procedimento.

17
Educação Continuada em Anestesiologia

Dessa forma, sugerimos as condutas relacionadas na Tabela 1.9.


Tabela 1.9: Conduta sequencial recomendada
na situação não ventila/não intuba
O2 a 100%
Chamar por ajuda
Inserção de cânulas naso e orofaríngeas
Ventilação a quatro mãos
DSG - máscara laríngea
Cricotirotomia
DSG – Dispositivos supraglóticos

Quando e como extubar o obeso


O bloqueio neuromuscular residual pode ser um problema, principalmente em pacientes com obe-
sidade mórbida, contribuindo para complicações respiratórias e necessidade de reintubação. Assegu-
rar completo retorno da função neuromuscular é fundamental. Para que isto ocorra, a monitorização
intraoperatória da transmissão neuromuscular (TNM) em pacientes obesos deve ser usada rotineira-
mente.127,128 Existe certa relutância por parte dos anestesiologistas em usar os monitores da TNM,
mesmo quando facilmente disponíveis.129 Essa é uma lacuna que pode e deve ser corrigida, principal-
mente em relação aos pacientes obesos, que podem apresentar respostas imprevisíveis após doses
de bloqueadores neuromusculares adespolarizantes (BNM-A) baseadas no peso corporal total (PCT).
A extubação deve ser feita após a recuperação da relação T4/T1 acima de 90%.130,131 A
maioria dos pacientes pode ser extubada na sala de operação, desde que sejam obedecidos
alguns critérios de segurança. Os mesmos cuidados para a indução anestésica e IT devem
ser tomados durante a extubação. Em pacientes com IMC acima de 60 kg/m2 recomenda-se:

• Presença de dois anestesiologistas.


• Uso de máscara com bolsa reservatório e fluxo de O2 de 15 l/min após a extubação.
• Observação do paciente por 5 minutos na sala de operação antes da transferência para
outro setor.

Assim como a intubação, a extubação deve ser feita em posição semissentada, com
elevação do dorso para melhora da dinâmica pulmonar.
Outros parâmetros para extubação devem ser usados, tais como:

• Retorno completo da consciência, com resposta às solicitações verbais


• Elevação da cabeça por 5 segundos
• Estabilidade hemodinâmica
• Normotermia
• Frequência respiratória entre 10 e 30 irpm
• Mecânica respiratória normal, com volume corrente > 5 ml/kg de peso ideal
• SaO2 > 95% com FiO2 de 40%
• Ausência de dor significativa

Caso a IT tenha sido difícil ou exista edema de via aérea, a melhor opção é retardar a
extubação em algumas horas.
A extubação pode ser feita com maior segurança por um trocador de tubo que permite a
oferta de O2 e/ou rápida reintubação em caso de dessaturação grave (Figura 1.31).132

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Educação Continuada em Anestesiologia

Figuras 1.31 e 1.32: Trocadores de tubo com adaptadores Rapi-fit® que permitem conexão com o sistema respi-
ratório do aparelho de anestesia ou VJTT – Cook Critical Care (Bloomington, IN)

A dexmedetomidina pode representar uma boa alternativa para a extubação de pacientes


obesos. Como principais características estão: efeito simpaticolítico, mínima depressão respi-
ratória e baixa incidência de efeitos colaterais.133 Apresenta diversas vantagens, podendo ser
usada para a intubação por broncofibroscopia, durante a manutenção da anestesia e após a
extubação na Unidade de Terapia Intensiva (UTI).134,135
Complicações respiratórias podem ocorrer no pós-operatório de pacientes com obesida-
de mórbida, estando entre as principais complicações relacionadas por Bagatini et al.136 O
risco de obstrução das vias aéreas é maior em pacientes com SAOS.137 Chung et al. fizeram
extensa revisão sobre o tema, relacionando métodos para triagem dos portadores de SAOS
e estratégias para manejo perioperatório.138 Esses pacientes podem apresentar grave obs-
trução após extubação, causando hipoxemia grave e risco de vida.139,140 Outra complicação
grave nesses pacientes é o desenvolvimento de edema pulmonar por pressão negativa rela-
cionado ao esforço respiratório contra obstrução da via aérea.
Pacientes dependentes de CPAP antes da cirurgia devem usá-lo no pós-operatório. O
momento de iniciar o CPAP é controverso. Existe uma grande preocupação por parte dos ci-
rurgiões em relação à deiscência de anastomose cirúrgica em cirurgias abdominais, especial-
mente na cirurgia bariátrica. Essa complicação não tem sido descrita. Neligan et al. indicam o
seu uso no pós-operatório imediato de cirurgia bariátrica videolaparoscópica, apresentando
melhores resultados do ponto de vista espirométrico.141
O uso profilático da ventilação não invasiva (VNI) pode ser benéfico. El-Solh et al. indicam o
seu uso por 48 horas no pós-operatório imediato. Os pacientes com VNI apresentaram redu-
ção dos tempos de permanência hospitalar e na UTI. Houve redução em 16% na incidência
de insuficiência respiratória após a extubação.142
Essas medidas podem contribuir para uma redução de eventos adversos após a extuba-
ção dos pacientes com obesidade mórbida, reduzindo complicações e contribuindo para a
prática da anestesiologia cada vez mais segura.

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Capítulo 2
Avaliação pré-anestésica
André Marques Mansano
Educação Continuada em Anestesiologia

Em 1949, o Dr. Alfred Lee propôs o que conhecemos hoje como avaliação pré-anes-
tésica (APA), depois de observar que os anestesiologistas se deparavam com pacientes
que não estavam no seu melhor estado de saúde no momento do procedimento cirúrgico.
Os benefícios da realização da APA são amplos. O anestesiologista tem a possibilidade
de iniciar ou otimizar eventuais tratamentos farmacológicos necessários ou encaminhar
o paciente a especialistas, quando conveniente. A solicitação de exames complementa-
res, quando bem indicada, é ferramenta importante na detecção de doenças no período
pré-operatório. Tais medidas, em conjunto, são capazes de prevenir cerca de 3% das
complicações perioperatórias graves. Além disso, a APA diminui a taxa de suspensão
cirúrgica em até 50%.
A oportunidade de estreitar a relação médico-paciente é única, momento no qual o mé-
dico pode dirimir todas as dúvidas do paciente e de seus familiares, discutir a respeito da
técnica anestésica a ser utilizada, valorizando a atividade do anestesiologista e diminuindo o
número de processos médicos.

Avaliação do paciente saudável


A incidência de complicações perioperatórias é baixa em pacientes saudáveis, portanto
as informações obtidas na APA desses pacientes têm menor impacto na diminuição da mor-
bimortalidade após a cirurgia. Mesmo assim, alguns dados são fundamentais por permitirem
melhor análise e planejamento anestésico. Uma série de perguntas pode ser feita ao paciente
em busca de qualquer doença ou condição que tenha relevância para o ato anestésico-
-cirúrgico. Os pontos mais importantes são:

• ocorrência de dor torácica ou dispneia aos esforços;


• complicações anestésicas (pessoais ou de familiares);
• eventos cardiovasculares anteriores (parada cardiorrespiratória, infarto agudo do miocár-
dio [IAM], arritmias, acidente vascular cerebral [AVC]);
• diagnóstico prévio de convulsões;
• dor ou comprometimento articular, especialmente em pescoço e mandíbula;
• nefropatias;
• endocrinopatias, como hipotireoidismo, hipertireoidismo, diabetes mellitus, insuficiência
adrenal, síndrome de Cushing e síndrome de Cohn;
• hepatopatias;
• pneumopatias, especialmente asma e doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC);
• hábitos sociais;
• uso regular de medicamentos;
• possibilidade de gestação atual.

Avaliação das vias aéreas


Um dos maiores temores do anestesiologista é o paciente com intubação difícil.
Portanto, prever esta condição pode permitir melhor preparo do paciente e solicitação
de dispositivos especiais com antecedência. A classificação de Mallampati (Figura 2.1),
proposta em 1985, é a mais utilizada na prática clínica, embora tenha baixo valor pre-
ditivo positivo.
Outros parâmetros podem ser utilizados para avaliar as vias aéreas, como os
propostos pela força-tarefa da Sociedade Americana de Anestesiologistas (ASA)
(Tabela 2.1).

26
Educação Continuada em Anestesiologia

Figura 2.1 (a) Classificação de Mallampati modificada


por Samsoon e Young: Classe 1 – pilares tonsilares
facilmente visíveis, Classe 2 – úvula totalmente visível,
Classe 3 – somente a base da úvula é visível, Classe
4 – somente o palato duro é visível. (b) Classificação
de Cormack e Lehane segundo o que é visível à la-
ringoscopia: Grau 1 – todo o orifício glótico é visível,
Grau 2 – somente a comissura posterior é visível, Grau
3 – apenas a ponta da epiglote é visível, Grau 4 – ne-
nhuma estrutura glótica é visível.

Tabela 2.1: Achados de exame físico sugestivos de intubação difícil

Exame físico Dados sugestivos de intubação difícil

Tamanho dos incisivos superiores Grandes, em comparação com os outros dentes

Relação dos incisivos superiores e inferiores Retrognatia


Ralação dos incisivos superiores e inferiores durante Incapacidade de levar os incisivos superiores
protusão forçada da mandíbula anteriormente aos inferiores
Distância interincisiva Menor do que 3 centímetros
Forma do palato Muito arqueado ou muito estreito
Distância tireomentoniana Menor do que 6 cm
Circunferência do pescoço Acima de 60 cm
Task Force on Difficult Airway Management: Practice guidelines for management of the difficult airway: An updated
report by the American Society of Anesthesiologists Task Force on Management of the Difficult Airway. Anesthesio-
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Exames complementares
Há inúmeros protocolos institucionais que regem a solicitação de exames complementa-
res pré-operatórios. Não há dúvida de que a melhor conduta é individualizar a indicação de
exames complementares, de acordo com as doenças apresentadas pelo paciente e o tipo
de cirurgia e anestesia a que ele será submetido.
Um estudo mostrou que, dos 3.096 exames pré-operatórios considerados normais,
apenas 13 (0,4%) vieram fora da faixa aceitável antes da admissão (média de intervalo
de 2 meses). A maioria dessas alterações era previsível ao exame clínico. Por outro
lado, dos 461 testes com resultados fora da normalidade, 78 (17%) estavam foram da
faixa aceitável para a cirurgia, sugerindo que exames alterados devem ser repetidos na
véspera da cirurgia.

Hemograma
A prevalência de anemia em pacientes assintomáticos gira em torno de 1%, e esse nú-
mero é ainda menor quando se consideram anemias significativas em pacientes cirúrgicos.
Sugere-se a realização de hemograma àqueles pacientes acima de 65 anos que serão sub-
metidos a cirurgias de grande porte ou aos mais jovens cuja cirurgia tenha expectativa de
altas perdas sanguíneas.

27
Educação Continuada em Anestesiologia

Função renal
A prevalência de creatinina sérica elevada em pacientes assintomáticos e sem história
de nefropatia é de 0,2%, embora este número aumente com a idade, chegando a 9,8% em
pacientes entre 46 e 60 anos. A disfunção renal também é fator de risco independente para
complicações respiratórias pós-operatórias. Sugere-se a dosagem de creatinina sérica em
pacientes acima de 50 anos que serão submetidos a cirurgias de risco intermediário ou alto
ou que apresentem hipertensão arterial ou diabetes mellitus.

Eletrólitos

A prevalência de distúrbios eletrolíticos é baixa (0,6%) e não há estudos correlacionando-


-os com mortalidade pós-operatória. Portanto a dosagem sérica dos eletrólitos só está indi-
cada quando for detectada, na história clínica, uma causa que aumente a probabilidade de
que esses distúrbios ocorram (p. ex., uso de diuréticos ou diagnóstico de insuficiência renal).

Glicemia

A maioria dos estudos bem controlados não encontrou relação entre risco operatório e
presença de diabetes, exceto nas cirurgias vasculares arteriais e em cirurgias coronarianas.
Apesar de algumas escalas de risco incluírem o diabetes como critério, não se sabe se a
hiperglicemia assintomática tem relação com morbimortalidade aumentada. Logo, a dosagem
de glicose sérica de rotina não está recomendada para pacientes saudáveis.

Testes de função hepática

Apenas 0,1% dos pacientes saudáveis apresenta os testes de função hepática alterados,
não se justificando, portanto, as suas dosagens de forma rotineira.

Testes de coagulação

Alterações do tempo de protrombina e do tempo de tromboplastina parcial são incomuns.


Além disso, a relação com sangramento intraoperatório é pobre, especialmente naqueles pa-
cientes com baixo risco de sangramento identificado pela história clínica e pelo exame físico.
Estão indicados os testes de coagulação para aqueles pacientes que já apresentam diátese
hemorrágica ou alguma doença que se associa a elevado risco de sangramento.

Eletrocardiograma

O eletrocardiograma (ECG) tem baixa probabilidade de alterar a conduta pré-operatória em pa-


ciente sem cardiopatia de base. Isoladamente, é indicador pobre de complicações cardiovascula-
res, mas pode ser interessante por permitir comparações com ECGs do período pós-operatório.
O Colégio Americano de Cardiologistas e a Associação Americana de Cardiologia reco-
mendam ECG de 12 derivações para os seguintes pacientes:

• com pelo menos um fator de risco que serão submetidos a cirurgia vascular;
• com doença vascular aterosclerótica que serão submetidos a cirurgia de risco intermediário
ou alto;
• sem fatores de risco que serão submetidos a cirurgia vascular;
• com pelo menos um fator de risco que serão submetidos a cirurgia de risco intermediário.

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Educação Continuada em Anestesiologia

Radiografia de tórax

Provê poucas informações que possam auxiliar na identificação de paciente com maior
risco de complicações. Várias revisões foram feitas e tanto europeus quanto americanos não
recomendam a realização do exame em pacientes saudáveis. Uma metanálise mostrou que,
em uma série de 14.389 pacientes que realizaram radiografias de tórax no pré-operatório, em
10% houve alterações, das quais 90% eram esperadas. Apenas 0,1% de todas as radiografias
influenciou as condutas médicas. O Colégio Americano de Médicos recomenda o uso da ra-
diografia de tórax em pacientes com história de doença cardiopulmonar, naqueles com mais de
50 anos que serão submetidos a cirurgias de aorta abdominal ou cirurgias no abdome ou tórax.

Avaliação do risco operatório


Classificação da ASA: ASA 1: ausência de alterações orgânicas, psicológicas ou bioquí-
micas; ASA 2: paciente com doença sistêmica leve a moderada; ASA 3: paciente com do-
ença sistêmica grave; ASA 4: paciente com doença sistêmica grave (insuficiência), com risco
de óbito; ASA 5: paciente moribundo, com baixa sobrevida; ASA 6: doador de órgãos (morte
encefálica); E: qualquer paciente que será submetido a cirurgia de emergência.

Avaliação do risco cardíaco para cirurgias não cardíacas


As complicações cardiovasculares são as principais causas de morbimortalidade no pe-
ríodo perioperatório. Um estudo identificou, em população cirúrgica não selecionada, a ocor-
rência de IAM em torno de 1,4%.
A Associação Americana de Cardiologia e o Colégio Americano de Cardiologia publica-
ram, em 2007, as diretrizes que norteiam a avaliação do risco cardiológico em pacientes a
serem submetidos a cirurgia não cardíaca. Em 2009, as mesmas instituições publicaram uma
atualização, porém sem alterações. Em resumo, três fatores devem ser avaliados para se
determinar o risco cardíaco, sendo eles:

• fatores de risco clínicos relacionados com o paciente;


• capacidade funcional;
• risco inerente ao procedimento cirúrgico.

Preditores clínicos de risco perioperatório


Os critérios a seguir podem ser identificados mediante história, exame físico ou ECG de
repouso. Preditores maiores:

• IAM recente (mais de 7 dias e menos de 30 dias) ou angina grave (classe III ou IV da So-
ciedade Canadense de Cardiologia);
• angioplastia recente;
• disritmias significativas (bloqueio atrioventricular [BAV] de alto grau, taquicardia ventricular
sustentada, arritmias supraventriculares).

Preditores intermediários

• Cardiopatia isquêmica, incluindo angina moderada (classes I e II), ou IAM anterior, determi-
nado pela história clínica ou ondas Q patológicas.

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Educação Continuada em Anestesiologia

• Insuficiência cardíaca compensada.


• Diabetes mellitus.
• Insuficiência renal.
• Doença cerebrovascular.

Preditores menores

• Idade avançada (acima de 70 anos).


• Anormalidades eletrocardiográficas (hipertrofia ventricular, bloqueio de ramo esquerdo,
anormalidades do segmento ST).
• Ritmo outro que não sinusal (p. ex., fibrilação atrial).
• Hipertensão arterial descontrolada.

Capacidade funcional
A capacidade funcional é um dos melhores preditores de risco operatório. É fundamental ava-
liar a tolerância ao exercício, mensurada em equivalentes metabólicos (METs). Um MET é definido
pelo consumo de 3,5 ml de O2/kg/min e reflete o consumo de O2 de uma pessoa sentada e em
repouso. Existem várias informações que podem, indiretamente, indicar a capacidade funcional de
um paciente e, quanto mais alta ela for, menor a probabilidade de complicações cardiovasculares:

• realizar tarefas básicas, como vestir-se, usar o banheiro ou comer: 1 MET;


• subir um lance de escadas ou uma ladeira: 4 METs;
• realizar trabalhos domésticos mais intensos, como lavar o chão ou fazer caminhadas longas:
4 a 10 METs;
• prática de esportes extenuantes, como natação, futebol ou tênis individual: 10 METs.

Tabela 2.2: *Mortalidade acima de 5%; **mortalidade entre 1% e 5%; ***mortalidade abaixo de 1%
Risco inerente ao procedimento cirúrgico

Alto risco* Risco intermediário** Baixo risco***


Cirurgias aórticas Endarterectomia de carótida Cirurgias ambulatoriais
Cirurgias arteriais periféricas Cirurgia de cabeça e pescoço Procedimentos endoscópicos
Cirurgias intraperitoneais Procedimentos superficiais
Cirurgias ortopédicas Cirurgias de catarata
Cirurgias prostáticas Cirurgias de mama

Escalas de risco
Existem algumas escalas que estimam o risco cardíaco perioperatório. É importante res-
saltar que essas escalas foram desenvolvidas com base em estudos que não elencaram pa-
cientes com fatores de risco maiores, citados anteriormente, ou seja, avaliaram basicamente
pacientes de risco intermediário, não sendo fidedignas para, por exemplo, discriminar quem
precisa ou não de testes para avaliação de isquemia miocárdica.

Escala de risco de Goldman

Goldman publicou, em 1977, um estudo com 1.001 pacientes divididos em quatro gru-
pos baseados na soma de pontos referente aos fatores de risco presentes. A cada grupo foi

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atribuído um risco cardiovascular. A principal limitação deste estudo foi a baixa prevalência de
pacientes submetidos a cirurgia vascular, além de não refletir a prática médica atual.

Escala de risco de Goldman modificada

Posteriormente, Goldman seguiu 2.983 pacientes cirúrgicos e identificou seis fatores de


risco independentes de complicações cardiovasculares:

• cirurgia de alto risco (intraperitoneal, intratorácica e cirurgia vascular suprainguinal);


• história de miocardiopatia isquêmica;
• história de insuficiência cardíaca;
• história de doença cerebrovascular;
• diabetes mellitus em insulinoterapia;
• creatinina sérica > 2 mg/dl.

Escala de Destky

Destky et al. adicionaram, em 1986, angina e edema agudo pulmonar aos critérios de Goldman.

Escala de risco Eagle

Eagle et al. publicaram, em 1989, um estudo no qual foram avaliados 254 pacientes
candidatos a cirurgia vascular e que foram submetidos a cintilografia miocárdica. Foram iden-
tificados 5 fatores de ricos para eventos cardiovasculares:

• ondas Q no ECG de 12 derivações;


• história de angina;
• história de disritmias ventriculares;
• diabetes mellitus em tratamento medicamentoso;
• idade acima de 70 anos.

Algoritmos de avaliação cardiológica pré-operatória


Existem vários algoritmos que norteiam a avaliação cardiológica pré-operatória. O propos-
to pelo American College of Physicians (ACP) é o recomendado pela Sociedade Brasileira de
Cardiologia (SBC) (Figura 2.2), tendo inclusive sido validada em um estudo realizado no Brasil.

1º passo: quantificar os pontos de acordo com as variáveis abaixo

• IAM < 6m (10 pontos) ou • Suspeita de estenose aórtica crítica (20 pontos)
• IAM > 6m (5 pontos) • Ritmo não sinusal ou RS c/ ESSV no ECG
A) • Angina Classe III (10 pontos) ou (5 pontos) ou > 5 ESV no ECG (5 pontos)
• Angina Classe IV (20 pontos) • Idade > 70 anos (5 pontos)
• EAP na última semana (10 pontos) ou • Cirurgia de emergência (10 pontos)
• EAP alguma vez na vida (5 pontos)
Total de pontos:
Classe I = 0-15 pontos Classe III = > 30 pontos
Classe II = 20-30 pontos

31
Educação Continuada em Anestesiologia

2º passo:
1º Cenário (Classe I) Analisar o nº de variavéis de risco
Checar variáveis de risco
• Idade > 70 anos
• História de angina
• Diabetes
1ª situação
• Ondas Q patalógicas no ECG
0 a 1 variável - baixo risco (< 3% EC) = operar
• História de infarto do miocárdio
• Alteração isquêmica do ST
• HAS com HVE severa 2ª situação
• História de Insuficiência 2 ou + varáveis - risco intermediário (3 a 15% EC)

Operar Cirurgia não vascular Cirurgia vascular

Operar Negativo Realizar TN

2º Cenário (Classe II e III)


(Alto risco > 15% de EC)

Determinar a natureza do risco Alto risco (15% de EC)

ICC, arritmia, Fatores não


Isquêmico
doença valvar modificáveis
Determinar elegibilidade para Otimizar o tratamento Considerar cancelamento ou
RM, baseada nas indicações e refazer a avaliação modificação da cirurgia não
da AHA do risco cardíaca

Figura 2.2: Adaptado de ACC/AHA Guideline Update on Perioperative Cardiovascular Evaluation for Noncar-
diac Surgery. J Am Coll Cardiol. 2002;39:542-553.

IAM – infarto do miocárdio; ESSV – extra-sístoles supraventriculares; ESV – extra-sístole ventricular; HAS –
hipertensão arterial sistêmica; HVE – hipertrofia ventricular esquerda; AHA – American Heart Association; EAP
– edema agudo dos pulmões; RM – revascularização do miocárdio; EC – eventos cardíacos; TN – teste não
invasivo; ICC – insuficiência cardíaca congestiva

Avaliação do risco pulmonar


As complicações respiratórias são importantes causas de morbimortalidade operatória,
ocorrendo mais frequentemente do que as complicações cardiovasculares e apresentando
incidência de 2% a 70%, dependendo da série estudada. Além da avaliação clínica, alguns
exames complementares podem auxiliar o anestesiologista a estratificar o risco pulmonar.

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Fatores de risco relacionados com o paciente

• Idade.
• DPOC.
• Asma.
• Tabagismo.
• Obesidade.
• Apneia obstrutiva do sono.
• Hipertensão pulmonar.
• Insuficiência cardíaca.
• Infecção de vias aéreas.

Fatores de risco relacionados com o procedimento

• Sítio cirúrgico (tórax e abdome superior).


• Duração da cirurgia superior a 3 horas.
• Anestesia geral (dados derivados de estudos com baixo poder estatístico).
• Uso de bloqueadores neuromusculares de longa duração (p. ex., pancurônio).

Teste de função pulmonar

O teste de função pulmonar mais utilizado na prática clínica é a espirometria. Alguns au-
tores alertam que os valores espirométricos usualmente apenas confirmam os achados já
detectados pela avaliação clínica. Por outro lado, além de estratificar a gravidade da pneumo-
patia, a espirometria oferece resultados importantes no que tange à resposta aos broncodi-
latadores. De qualquer forma, os resultados a seguir estão associados à maior incidência de
complicações respiratórias.

• Volume expiratório forçado no primeiro segundo (VEF1) < 70% do predito.


• Capacidade vital forçada (CVF) < 70%.
• Relação VEF1/CVF < 65%.
• As indicações mais frequentes para realização de testes de função pulmonar são:
oo
pacientes com DPOC ou asma, objetivando avaliar a gravidade e a responsividade aos
broncodilatadores;
oo
pacientes com quadros de dispneia não elucidados pela avaliação clínica;
oo
é importante ter em mente que os valores espirométricos, isoladamente, não contraindi-
cam o procedimento cirúrgico.

Tabagismo

Os pacientes tabagistas devem ser orientados a parar de fumar pelo menos oito semanas
antes do procedimento cirúrgico. Estudos mostraram que o abandono do cigarro por tempo
inferior a oito semanas pode, inclusive, aumentar o risco de complicações respiratórias.

O paciente com doença tireoidiana


Hipotireoidismo

O paciente com hipotireoidismo apresenta alguns desafios anestésicos, desde alterações

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anatômicas de vias aéreas causadas pelo bócio até incidência elevada de complicações intra-
operatórias, como hipotermia, hipotensão, depressão miocárdica, redução da resposta ventila-
tória à hipóxia e hipocapnia, embora esses dados derivem de estudos retrospectivos. Em um
extremo, o estresse cirúrgico pode desencadear o coma mixedematoso em pacientes com
hipotireoidismo grave. Cirurgias eletivas só devem ser realizadas com o paciente no seu estado
eutireóideo. O hipotireoidismo subclínico só deve ser valorizado quando o hormônio tireoestimu-
lante (TSH) estiver acima de 10 mU/dl. Cirurgias de urgência não devem ser adiadas em casos
de hipotireoidismo leve, mas a reposição hormonal deve ser prontamente introduzida.
Um exame radiográfico da região cervical pode auxiliar na avaliação da dificuldade de
intubação imposta pelo bócio.

Hipertireoidismo

Pacientes com hipertireoidismo usualmente apresentam-se para o procedimento cirúrgico


em estado de aumento de débito e frequência cardíaca. A incidência de disritmias, especial-
mente fibrilação atrial, está aumentada. Em casos mais graves, pode ocorrer a “tempestade
tireoidiana”, uma condição de hipermetabolismo extremamente grave. Os pacientes devem
ser tratados com betabloqueadores e antitireoidianos (p. ex., metimazol ou propiltiouracil).

O paciente com diabetes mellitus


Estima-se que 50% dos pacientes diabéticos sejam submetidos a algum tipo de proce-
dimento cirúrgico durante a vida. A elevada prevalência de complicações macro e micro-
vasculares responde pelo aumento da morbimortalidade cirúrgica nos diabéticos. Portanto
a avaliação pré-operatória é de extrema importância, identificando pacientes de alto risco,
estabelecendo medidas terapêuticas e preventivas e minimizando o risco perioperatório.
A avaliação deve, obrigatoriamente, incluir:

• determinação do tipo de diabetes, visto que o tipo 1 cursa, em maior proporção, com
quadros de cetoacidose;
• avaliação de complicações como retinopatia, neuropatia periférica, neuropatia autonômi-
ca, nefropatia, doença coronariana, doença vascular periférica e hipertensão arterial;
• avaliação dos níveis glicêmicos usuais;
• avaliação da frequência e gravidade dos episódios de hipoglicemia;
• informações detalhadas sobre o tratamento hipoglicemiante;
• características do procedimento cirúrgico, como risco específico, agendamento e duração.

Exames laboratoriais são obrigatórios nesses pacientes e devem abranger: ECG de 12


derivações, hemograma, função renal, eletrólitos, glicemia e hemoglobina glicada.

O paciente com insuficiência adrenal


O paciente com insuficiência adrenal merece atenção especial no período perioperatório.
A inabilidade em aumentar a secreção de cortisol durante o período de estresse cirúrgico
pode ser catastrófica, resultando em hipovolemia e até choque refratário. Devem ser avalia-
dos os pacientes com diagnóstico prévio de insuficiência adrenal e aqueles em uso crôni-
co de glicocorticoides, que frequentemente apresentam o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal
comprometido, sendo incapazes de responder ao estresse cirúrgico. O risco de insuficiência
adrenal após suspensão dos glicocorticoides exógenos é proporcional à dose e ao tempo de

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Educação Continuada em Anestesiologia

duração, de modo que pacientes em uso de:

• 5 mg/dia de prednisona não apresentam risco;


• 5 a 20 mg/dia de prednisona apresentam risco a partir da quarta semana;
• doses acima de 20 mg/dia de prednisona apresentam risco a partir do quinto dia de uso.

Reposição de glicocorticoides

Pacientes com diagnóstico de insuficiência adrenal ou aqueles sob risco após suspensão
abrupta de glicocorticoides devem receber reposição hormonal, de acordo com o porte cirúr-
gico, durante a indução anestésica.

• Cirurgias de pequeno porte: hidrocortisona 25 mg endovenosa (EV).


• Cirurgias de médio porte: hidrocortisona 50 a 75 mg EV.
• Cirurgias de grande porte: hidrocortisona 100 a 150 mg EV.

O paciente com insuficiência renal


Os pacientes com insuficiência renal apresentam maior morbimortalidade operatória, sen-
do a creatinina sérica acima de 2 mg/dl um fator independente de mau prognóstico.

Critério RIFLE
Em 2006, Bellomo et al. validaram alguns critérios prognósticos relacionados com a fun-
ção renal. O conjunto de fatores recebeu o nome de RIFLE (do inglês Risk, Injury, Failure, Loss
e End stage renal disease), e esses fatores são estratificados como mostra a Tabela 2.3.

Tabela 2.3: Adaptado de The Second International Consensus Conference of the Acute
Dialysis Quality Initiative (ADQI) Group. Crit Care. 2004;8:R204.
Critérios RIFLE
Critérios Mortalidade*
Aumento da creatinina 1,5 vez ou redução de 25% no RFG
Risk 2,4
ou diurese < 0,5 ml/kg nas últimas 6 horas
Aumento da creatinina em 2 vezes ou redução de 50% no RFG
Injury 4,15
ou diurese < 0,5 ml/kg nas últimas 12 horas
Aumento da creatinina em 3 vezes ou redução de 75% no RFG
Failure 6,37
ou diurese < 0,5 ml/kg nas últimas 12 horas
Loss Perda completa da função renal por mais de 4 semanas
ESRD Perda completa da função renal por mais de 3 meses
RFG: Ritmo de filtração glomerular; ESRD: End stage renal disease.
*Risco relativo comparado com pacientes sem disfunção renal.

Critério AKIN
O critério AKIN (Acute Kidney Injury Network) foi adicionado ao critério RIFLE, com o termo
“lesão renal aguda” representando todo o espectro da insuficiência renal aguda (IRA). Com
isso foi suprida a principal limitação do critério RIFLE, que é a lenta elevação da creatinina
sérica em casos de IRA.
O critério proposto para IRA é a elevação abrupta (em menos de 48 horas) da creatinina séri-
ca em 0,3 mg/dl ou elevação relativa de 50% da creatinina ou diurese < 0,5 ml/kg/hora por mais

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Educação Continuada em Anestesiologia

de 6 horas. A razão para a inclusão do critério pauta-se no fato de que elevações tão brandas
quanto 0,3 a 0,5 mg/dl da creatinina estão associadas a aumento da mortalidade em até 80%.

Cuidados perioperatórios
• Determinar o grau de insuficiência renal.
• Evitar fármacos nefrotóxicos (p. ex., aminoglicosídeos, anti-inflamatórios, contrastes radiológicos).
• Evitar fármacos de eliminação predominantemente renal.
• Corrigir as doses dos fármacos, quando apropriado.
• Pacientes com falência renal terminal: realizar diálise no dia anterior à cirurgia, evitando
estados hipervolêmicos e distúrbios hidroeletrolíticos, bem como complicações decorrentes
da uremia (p. ex., sangramento).

O paciente hipertenso
A hipertensão arterial não controlada ainda é a maior causa de cancelamento de cirurgias.
Estudos realizados na década de 1970 evidenciaram maior labilidade pressórica em pacien-
tes com hipertensão arterial grave durante a indução anestésica e a incisão cirúrgica. Algumas
metanálises foram realizadas e, embora os estudos não sejam suficientemente homogêneos,
recomenda-se que cirurgias eletivas sejam postergadas caso a pressão arterial sistólica ou
diastólica estejam acima de 180 ou 110 mmHg, respectivamente.

Fármacos: quais e quanto antes devem ser suspensos


Pelo menos metade dos pacientes candidatos a algum tratamento cirúrgico faz uso de
medicamentos de forma regular. O anestesiologista deve, utilizando-se dos poucos dados
que há na literatura a respeito, decidir se algum medicamento deve ou não ser suspenso. De
forma simples, são mantidos os medicamentos cuja retirada implica aumento da morbidade e
são descontinuados aqueles que acarretam aumento do risco de complicações cirúrgicas ou
anestésicas. A dificuldade surge quando os dois princípios são verdadeiros e, nesses casos,
o julgamento clínico é imprescindível. Os melhores exemplos deste último grupo são os an-
tagonistas beta-adrenérgicos, os antiagregantes plaquetários e os anticoagulantes orais, que
merecem maior explanação.

Antagonistas beta-adrenérgicos

Os antagonistas beta-adrenérgicos apresentam inúmeros benefícios para o paciente ci-


rúrgico. Reduzem a isquemia miocárdica por diminuir o consumo de O2 e podem prevenir o
surgimento de disritmias, especialmente em situações nas quais há elevação dos níveis de
catecolaminas séricas, como ocorre no período operatório. Sua retirada abrupta, no período
pré-operatório, pode elevar a morbimortalidade pós-operatória, especialmente em pacientes
de alto risco coronariano.
Em 2007, o Colégio Americano de Cardiologia e a Sociedade Americana de Cardiologia
lançaram as recomendações para avaliação e cuidados cardiológicos de pacientes a serem
submetidos a cirurgias não cardíacas. Em 2009, as mesmas instituições publicaram uma
atualização especificamente sobre o uso de betabloqueadores no período perioperatório.
Resumo das recomendações atuais: os antagonistas beta-adrenérgicos (p. ex., metoprolol,
carvedilol, atenolol, propranolol) devem ser mantidos em pacientes que os recebem por in-
dicações classe I da American College of Cardiology Foundation/American Heart Association

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(ACCF/AHA). Os mesmos medicamentos diminuem a incidência de eventos cardiovasculares


quando introduzidos, no período perioperatório, em pacientes de alto risco que serão subme-
tidos a cirurgias arteriais vasculares, desde que ajustados para frequência cardíaca e pressão
arterial. Por outro lado, há aumento da morbimortalidade quando são introduzidos, no período
perioperatório, em pacientes de risco baixo ou intermediário, especialmente quando a dose
não é ajustada para a frequência cardíaca e pressão arterial.

Aspirina

A aspirina inibe irreversivelmente a cicloxigenase, aumentando o sangramento intraopera-


tório e a taxa de complicações hemorrágicas pós-operatórias. Por outro lado e pelo mesmo
mecanismo de ação, a aspirina previne eventos cardiovasculares isquêmicos, especialmente
em pacientes de alto risco. Há estudos mostrando aumento da mortalidade pós-operatória
em pacientes submetidos à cirurgia arterial periférica em casos de suspensão do antiagre-
gante. Além disso, há aumento da incidência de síndromes coronarianas agudas e AVCs
entre pacientes com doença cardiovascular.
A conduta de suspender ou não a aspirina não é de consenso, devendo ser avaliada a
relação custo-benefício. Em cirurgias em que o sangramento intraoperatório não é causa de
grande morbidade, o medicamento deve ser mantido. É exatamente o caso das cirurgias
arteriais periféricas e da cirurgia de revascularização do miocárdico, empregadas usualmente
em pacientes de alto risco cardiovascular. No outro extremo estão as cirurgias em que o
sangramento intra ou pós-operatório pode ser devastador, os melhores exemplos sendo as
neurocirurgias. Nestes casos, a aspirina deve ser suspensa com 7 dias de antecedência.

Anticoagulantes orais

Pacientes em uso de anticoagulantes orais (p. ex., varfarina) merecem atenção especial
no período pré-operatório. Se por um lado a manutenção da anticoagulação aumenta a inci-
dência de sangramento perioperatório, por outro a sua suspensão está associada ao aumen-
to dos fenômenos tromboembólicos.
São necessários aproximadamente 5 dias para ocorrer a normalização do coagulograma após
a suspensão do anticoagulante. Após a reintrodução, os níveis ótimos de anticoagulação são atin-
gidos após 3 a 4 dias. Portanto uma conduta razoável é utilizar heparina não fracionada (HNF) ou de
baixo peso molecular (HBPM) após a suspensão do anticoagulante oral. Assim, diminui-se o risco
de fenômenos tromboembólicos e garante-se maior flexibilidade no controle da anticoagulação. Vale
lembrar que a meia-vida da HNF é de 45 minutos e a da HBPM é de 4 a 6 horas, devendo ser sus-
pensas antes do procedimento cirúrgico por pelo menos 4 e 24 horas, respectivamente.

Tabela 2.4: Sistema cardiovascular

Classe do fármaco Considerações clínicas Estratégia pré-operatória


• A suspensão pode resultar
em hipertensão grave e isquemia
• Manter a medicação, inclusive no
α2-agonistas miocárdica
dia da cirurgia
• Causa diminuição do consumo
dos anestésicos
• Dados conflitantes sugerem
• Manter a medicação, inclusive no
Bloqueadores de canal de Ca2+ aumento do sangramento
dia da cirurgia
intraoperatório

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Classe do fármaco Considerações clínicas Estratégia pré-operatória


• Manter a medicação em casos
• A manutenção pode causar
de tratamento de hipertensão
hipotensão, enquanto a suspensão
Inibidores da ECA e ARA2 arterial
do medicamento pode resultar em
• Suspender na manhã da cirurgia
hipertensão
em casos de tratamento de ICC
• A manutenção pode causar • Suspender o fármaco na manhã
Diuréticos
hipovolemia e hipotensão da cirurgia
• A suspensão resulta em aumento • Manter a medicação, inclusive no
Estatinas
dos eventos cardiovasculares dia da cirurgia
• Aumentam o risco de • Suspender 1 dia antes da
Fenofibratos
rabdomiólise cirurgia
ECA: Enzima conversora da angiotensina; ARA2: Antagonistas dos receptores da angiotensina;
ICC: Insuficiência cardíaca congestiva.

Tabela 2.5: Sistema respiratório


Classe do fármaco Considerações clínicas Estratégia pré-operatória
• A suspensão pode aumentar a • Manter a medicação, inclusive no
β-agonistas inalatórios
incidência de broncoespasmo dia da cirurgia
• A suspensão pode aumentar a • Manter a medicação, inclusive no
Anticolinérgicos inalatórios
incidência de broncoespasmo dia da cirurgia
• Podem aumentar a incidência de
Metilxantinas • Suspender na manhã da cirurgia
disritmias
• Manter a medicação, inclusive no
Inibidores de leucotrienos • Sem efeitos significativos
dia da cirurgia

Tabela 2.6: Sistema gastrintestinal

Classe do fármaco Considerações clínicas Estratégia pré-operatória


• Manter a medicação, inclusive no
Bloqueadores H2 • Sem efeitos significativos
dia da cirurgia
• Manter a medicação, inclusive no
Inibidores de bomba de prótons • Sem efeitos significativos
dia da cirurgia

Tabela 2.7: Sistema nervoso central

Classe do fármaco Considerações clínicas Estratégia pré-operatória

• Manter o medicamento nos pa-


cientes em uso de altas doses
• A manutenção pode aumentar o • Suspender 7 dias antes do pro-
Tricíclicos
risco de disritmias cedimento cirúrgico nos pacientes
em uso de doses baixas ou naque-
les com maior risco de disritmias

Inibidores da recaptação • Causam aumento do sangra- • Suspender o medicamento 3


de serotonina mento intraoperatório semanas antes da cirurgia
• Podem resultar em hipertensão • Suspender 2 semanas antes da
Inibidores da MAO arterial grave se utilizados com sim- cirurgia, caso o quadro psiquiátrico
patomiméticos (p. ex., efedrina) permita

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Classe do fármaco Considerações clínicas Estratégia pré-operatória


• Prolonga o efeito dos bloqueado-
res neuromusculares • Continuar o medicamento,
Lítio • Pode causar diabetes insipidus monitorar volemia e alterações
nefrogênico, resultando em depleção hidroeletrolíticas
do espaço extracelular e hipernatremia
• Aumentam o intervalo QT e a • Manter o medicamento em ca-
Antipsicóticos
incidência de disritmias graves sos de risco elevado de psicose
• Podem causar hipertensão arte- • Suspender o medicamento na
Antiparkinsonianos
rial e disritmias cardíacas manhã da cirurgia

Tabela 2.8: Sistema endócrino

Classe do fármaco Considerações clínicas Estratégia pré-operatória


• Manter o medicamento nos pacien-
• Aumentam a incidência de fenô- tes com risco baixo ou moderado
Contraceptivos orais
menos tromboembólicos • Suspender 4 a 6 semanas antes
da cirurgia em pacientes de alto risco
• As sulfonilureias podem causar
hipoglicemia; as biguanidas, au-
• Suspender qualquer classe de
mentar o risco de acidose láctica;
Hipoglicemiantes orais hipoglicemiante oral na manhã da
e as glitazonas, agravar a retenção
cirurgia
de fluidos, precipitando quadro de
insuficiência cardíaca
• Manter a medicação, inclusive no
Hormônios tireoidianos • Sem efeitos significativos
dia da cirurgia

Insulina

A suspensão da insulina na manhã da cirurgia está associada à hiperglicemia perioperató-


ria que, por sua vez, correlaciona-se com aumento da morbimortalidade cirúrgica, resultante,
principalmente, de maiores índices de infecção de ferida cirúrgica e eventos cardiovasculares.
Por outro lado, hipoglicemia, agravada pelo jejum pré-operatório, também deve ser avaliada.
Portanto a dose de insulina deve ser reduzida, mas não suspensa. Diversos esquemas de
redução de insulina estão disponíveis na literatura, tendo em comum o fato de que a redução
deve ser pautada na dose e no tempo em que o paciente ficará em jejum.

Tabela 2.9: Cirurgias de pequeno e médio portes

Refeição perdida Insulinoterapia Conduta pré-operatória

Administração de 2/3 da dose


Café da manhã Dose única diária de NPH
usual
Administração de metade da dose
Café da manhã Dose fracionada de NPH
matinal
Administração de metade da dose
Café da manhã e almoço Dose única diária de NPH
usual
Administração de 1/3 da dose
Café da manhã e almoço Dose fracionada de NPH
matinal
NPH: Protamina neutra de Hagedorn.

39
Educação Continuada em Anestesiologia

Tabela 2.10: Fitoterápicos


Classe do fármaco Considerações clínicas Estratégia pré-operatória
• Aumenta a incidência • Suspender 1 dia antes da
Efedra
de disritmias cirurgia
• Suspender 7 dias antes da
Alho • Aumenta o risco de sangramento
cirurgia
• Suspender 36 horas antes da
Ginko biloba • Aumenta o risco de sangramento
cirurgia
• Suspender 7 dias antes da
Ginseng • Aumenta o risco de sangramento
cirurgia
• Aumenta o efeito sedativo dos • Suspender 1 dia antes da
Kava-kava
anestésicos cirurgia
• Suspender 5 dias antes da
Erva-de-são-joão • Promove indução enzimática
cirurgia

Jejum pré-operatório
Os primeiros relatos sobre a necessidade de jejum pré-operatório foram de John Snow,
em 1847, após a ocorrência de uma série de óbitos causados pela aspiração do conteúdo
gástrico. As recomendações sofreram várias alterações até chegarem ao conhecido como
“jejum após a meia-noite” – o paciente estaria proibido de ingerir qualquer alimento ou líquido
durante pelo menos 8 horas.
Alguns estudos foram realizados e concluíram que o volume residual gástrico em pacien-
tes que ingeriram água ou líquidos sem resíduos (p. ex., suco de fruta sem polpa) não era
maior do que o de pacientes que estavam em jejum durante 8 horas. Isso trouxe mais con-
forto ao paciente, sem diminuir a segurança com relação ao risco de aspiração do conteúdo.
As recomendações atuais da ASA estão na Tabela 2.11.

Tabela 2.11: Tempo de jejum pré-operatório para os diferentes tipos de alimentos


Tipo de alimento Tempo de jejum

Líquidos claros (água, chá, café, suco) 2 horas

Leite materno 4 horas

Fórmula infantil e leite não materno 6 horas

Refeição leve (chá com torradas) 6 horas

Medicação pré-anestésica
O preparo farmacológico do paciente no período pré-operatório tem vários objeti-
vos, como diminuir a ansiedade, promover sedação e analgesia, reduzir o consumo de
anestésicos, diminuir a quantidade de secreções no trato respiratório, reduzir o volume
gástrico e aumentar o seu pH. Como regra geral, fármacos administrados pela via oral
(VO) devem ser empregados 60 a 90 minutos antes da cirurgia, podendo ser oferecidos
com 100 a 150 ml de água.

Benzodiazepínicos

São os fármacos mais amplamente empregados como medicação pré-anestésica.


Promovem ansiólise, sedação e amnésia com mínimos efeitos sobre a ventilação e

40
Educação Continuada em Anestesiologia

o sistema cardiovascular, atuando sobre receptores específicos do sistema nervoso


central (SNC). Devido às suas propriedades farmacológicas, o midazolam é o benzo-
diazepínico mais utilizado na prática clínica. Em adultos pode ser utilizado na dose de
5 a 15 mg VO ou 0,05 a 0,1 mg pela via intramuscular (IM). Em pacientes pediátricos,
as doses são de 0,25 a 0,75 mg VO (máximo de 15 mg), 0,35 mg/kg pela via retal ou
0,2 mg/kg pela via nasal.

Tabela 2.12: Propriedades farmacológicas dos benzodiazepínicos


Diazepam Lorazepam Midazolam
Dose equivalente (mg) 10 1-2 3-5
Pico do efeito após dose por via oral (horas) 1-1,5 2-4 0,5-1
Meia-vida de eliminação (horas) 20-40 10-20 1-4
Clearance (ml/kg/min) 0,2-0,5 0,7-1 6,4-11,1
Volume de distribuição (ml/kg) 0,7-1,7 0,8-1,3 1,1-1,7
Adaptado de Stoelting RK. Pharmacology and Physiology in Anesthetic Practice. Philadelphia: JB Lippincott; 1987

Agonistas adrenérgicos

A clonidina, na dose de 2,5 a 5 µg/kg, pode ser administrada no período pré-operatório,


promovendo sedação, diminuição do consumo de anestésicos e diminuição da resposta
simpática à intubação orotraqueal e à estimulação cirúrgica.

Opiodes

A morfina e a meperidina já foram bastante utilizadas como medicação pré-anestésica. Mais


recentemente, o uso de fentanil IM ganhou popularidade, porém há pouca justificativa para o
uso de opioides, exceto nos pacientes que se queixam de dor. Os opioides apresentam efeitos
colaterais significativos, em especial sobre a função respiratória. Além disso, têm efeito sedativo
limitado e não promovem amnésia. Nos pacientes com dor, o uso endovenoso de morfina em
doses tituláveis de 1 mg ou fentanil na dose de 1 a 2 µg/kg resulta em bom efeito analgésico.

Profilaxia da síndrome da aspiração do conteúdo gástrico


Algumas medidas, além do jejum pré-operatório, podem auxiliar na prevenção da sín-
drome de aspiração do conteúdo gástrico. Os benefícios são maiores naqueles pacientes
com diminuição da motilidade gástrica, como diabéticos, obesos e gestantes, e naqueles
com fatores mecânicos que favorecem a aspiração, como os portadores de hérnia hiatal.

Antagonistas dos receptores H2

Os antagonistas dos receptores histaminérgicos (cimetidina, ranitidina, famotidina) di-


minuem a secreção de H+, aumentando o pH gástrico. Em casos de aspiração, haverá
menor dano pulmonar.

Antiácidos

Os antiácidos não particulados (p. ex., citrato de sódio) são extremamente efetivos em

41
Educação Continuada em Anestesiologia

aumentar o pH gástrico, mesmo quando administrados 15 a 30 minutos antes do procedi-


mento cirúrgico. Embora os antiácidos particulados sejam ainda mais eficazes em neutralizar
a acidez gástrica, a sua aspiração está associada a graves danos pulmonares, o que não
ocorre com os não particulados. Essas propriedades os tornam muito benéficos nos paciente
a serem submetidos a cirurgia de emergência.

Inibidores de bomba de próton

Os inibidores de bomba de prótons (omeprazol, pantoprazol) aumentam o pH gástrico, inibindo


a secreção de H+ nas células parietais. A administração VO deve ser realizada com 2 a 4 horas de
antecedência. Por outro lado, o uso endovenoso já traz benefício em 30 minutos antes da cirurgia.

Pró-cinéticos

O melhor exemplo dos pró-cinéticos é a metoclopramida, um antagonista dopaminérgico, que


causa aumento da motilidade gástrica e do tônus do esfíncter esofágico superior, além de diminuir
o tônus do piloro. Esses efeitos resultam em diminuição do tempo de esvaziamento gástrico. Doses
endovenosas de 5 a 10 mg são úteis se administradas 15 a 30 minutos antes da indução anestésica.

Diminuição das secreções das vias aéreas


O uso de fármacos que diminuem as secreções nas vias aéreas e até em orofaringe pode
ser desejável em procedimentos como broncoscopia, endoscopias digestivas e cirurgias de
orofaringe. Os anticolinérgicos (atropina, glicopirrolato e escopolamina) são os fármacos mais
eficazes em atingir esses objetivos. Além do efeito antissialagogo, alguns anticolinérgicos
causam sedação e taquicardia.

Tabela 2.13: Efeitos dos anticolinérgicos

Atropina Glicopirrolato Escopolamina


Taquicardia +++ ++ +
Antissialagogo + ++ +
Sedação + 0 +++

0, sem efeito; +, efeito leve; ++, efeito moderado; +++ , efeito intenso.
Adaptado de Stoelting RK. Pharmacology and Physiology in Anesthetic Practice. Philadelphia: JB Lippincott; 1991.

Leitura recomendada

Feitosa AC, Ayub B, Caramelli B et al. I Diretriz de Avaliação Circulation. 2007;116:1971-1996.


Perioperatória. Arq Bras Cardiol. 2007;88:e139-e178. Khan NA, Ghaki WA, Cagliero E. Perioperative manage-
Fleischmann KE, Beckman JA, Buller CE et al. 2009 ment of diabetes mellitus. version 19.2: May 2011. Dis-
ACCF/AHA focused update on perioperative beta blocka- ponível em: <http://www.uptodate.com>.
de: a report of the American College of Cardiology Foun- Maltby JR. Fasting from midnight: the history behind
dation/American Heart Association Task Force on Practice the dogma. Best Pract Res Clin Anaesthesiol.
Guidelines. Circulation. 2009;120:2123-2151. 2006;20:363-378.
Fleisher LA, Beckman JA, Brown KA et al. ACC/AHA Shammash JB, Kimmel SE, Morgan JP. Estimation of car-
2007 Guidelines on perioperative cardiovascular evalua- diac risk prior to noncardiac surgery. version 19.2: May
tion and care for noncardiac surgery: Executive summary. 2011. Disponível em: <http://www.uptodate.com>.

42
Capítulo 3
Equilíbrio acidobásico
Geraldo Rolim Rodrigues Jr.
Educação Continuada em Anestesiologia

Química fisiológica
Muitos elementos importantes para a homeostase do meio interno encontram-se dissolvidos
em solução aquosa. É fundamental entender que essa solução é formada por uma mistura
uniforme de moléculas dissolvidas e pertencentes às várias substâncias que a compõem. O
solvente é o componente principal que, em soluções biológicas, é representado pela água; os
solutos são todos os outros componentes dos líquidos orgânicos. Esses elementos são en-
contrados nas formas ionizadas e não ionizadas, conforme apresentem carga elétrica ou não.1-3
Muitos fatores interferem na distribuição de uma substância entre os dois estados. Ácidos
e bases fortes apresentam-se, em sua maioria, no estado ionizado ou dissociado, enquanto
que ácidos e bases fracas encontram-se em diversos graus de dissociação.1-3
Brownsted-Lowry postulou uma definição com base no que os ácidos e as bases fazem.
Os primeiros são substâncias capazes de doar íons hidrogênio (H+) para a solução. As bases,
por sua vez, tendem a receber esses íons. Portanto, ácidos e bases denominados fortes são
aqueles que fornecem ou aceitam, respectivamente, grande quantidade de íons H+ na solu-
ção, e fracos, quando, respectivamente, o fazem em menor intensidade.1-3

ÁCIDO FORTE BASE + H+

ÁCIDO FRACO BASE + H+

Existe um fator importante nessa afirmação, pois ácidos ou bases fracas doarão ou aceita-
rão íons H+ de acordo com a quantidade existente desse cátion na solução. Esse fenômeno
químico é fundamental para a manutenção do equilíbrio das concentrações do íon H+ em uma
solução. Por isso, a classe de substâncias que previne grandes alterações nas concentra-
ções do íon hidrogênio é chamada de tampões e formada, geralmente, por ácidos fracos e
suas bases conjugadas, como, p. ex., ácido carbônico e seu sal (bicarbonato). O bicarbona-
to/ácido carbônico é o mais importante tampão extracelular. Outros tampões, presentes nos
espaços extra e intracelulares, são fosfatos, proteínas e hemoglobina.1-4

Interação oxigênio, dióxido de carbono e hemoglobina

A enzima anidrase carbônica, presente no interior das hemácias e nas células tubulares re-
nais, acelera a reação de hidratação do dióxido de carbono (CO2), formando ácido carbônico:

CO2 + H2O ⇄ H2CO3 ⇄ H+ + HCO3-

A presença da anidrase carbônica permite que os eritrócitos transportem o dióxido de car-


bono com eficiência, porque o ácido carbônico é rapidamente dissociado em bicarbonato e
íon hidrogênio. O H+ liga-se quimicamente à molécula de hemoglobina que, nesse momento,
exerce seu efeito tampão, como mostrado a seguir:

HbO2 + H+ ⇄ HHb+ + O2

Essa reação demonstra as inter-relações dos transportes de oxigênio O2 e CO2. Böhr


descreveu o fator químico fundamental que orienta a reação da molécula de hemoglobina
para O2 e CO2. Ao observar que a hemoglobina oxigenada é um ácido mais forte que a não
oxigenada, Böhr postulou que, nos tecidos, o sangue arterial, ao ceder o O2, torna-se um
ácido mais fraco, capaz de receber e fixar os íons H+ presentes nos tecidos pela dissocia-
ção do ácido carbônico. Nos pulmões ocorre o inverso. Portanto, o efeito Böhr refere-se

44
Educação Continuada em Anestesiologia

ao fenômeno da hemoglobina que, na presença do CO2, sob forma de íons H+, libera mais
facilmente O2 para os tecidos.
Diferentemente, o efeito Haldane descreve a influência do oxigênio sobre o transporte de
CO2 pela hemoglobina, isto é, na presença do O2, a hemoglobina aumenta a liberação de CO2.
A curva de dissociação da molécula de hemoglobina também pode explicar o efeito Böhr.
Nos tecidos, a presença do CO2 desvia a curva de dissociação da hemoglobina para a di-
reita, reduzindo sua afinidade pelo oxigênio e, assim, liberando-o mais rapidamente para os
tecidos. Nos pulmões, a curva é desviada para a esquerda, o que aumenta a afinidade da
molécula de hemoglobina pelo O2, facilitando, portanto, sua captação.
Química e quantitativamente, o efeito Haldane é mais importante que efeito Böhr, isto é, a
interferência do O2 no transporte de CO2 tem mais valor fisiológico que o CO2 no transporte
de O2 pela hemoglobina.1,3

Figura 3.1: Efeito Böhr: o CO2, oriundo do metabolismo


celular, aumenta o valor da P50, desviando a curva de sa-
turação da oxi-hemoglobina para a direita, o que ocasio-
na redução da sua afinidade pelo oxigênio e disponibiliza
aos tecidos. Nos pulmões, acontece o inverso: a saída
de CO2 pela ventilação alveolar reduz o valor da P50, des-
viando a curva de saturação para esquerda, aumentando
a afinidade da hemoglobina pelo oxigênio e favorecendo
sua captação.
Definição de pH
Na prática clínica e anestesiológica, o maior relevo é dado para concentração do hidro-
gênio iônico, cuja expressão na forma decimal dificulta sobremaneira sua utilização. Por isso,
Hasselbalch, adotando o conceito que Sorenson usou para referir-se ao expoente H+ na base
10 da escala logarítmica, expressou 10-7 mol/l como logaritmo negativo da atividade do íon H+
e denominou-o de potencial de hidrogênio ou pH.5-7 Observe a seguir:

pH = - log [ H+ ]

Os tecidos normalmente produzem, no final de seu metabolismo, dióxido de carbono


(CO2) que, liberado dos tecidos, reage com água (H2O) na presença da enzima anidrase
carbônica, formando o ácido carbônico (H2CO3). A relação do ácido carbônico (H2CO3) com
o íon bicarbonato (HCO3-) é assim descrita:

H2CO3 ⇄ H+ + HCO3-

Utilizando o conceito da lei da ação das massas a qual, versando sobre o equilíbrio de
uma reação química, conclui que, se forem multiplicadas as concentrações das substâncias
reagentes à direita da reação, e o resultante desse produto for dividido pela concentração do
reagente à esquerda, a resultante será uma constante denominada Ka:

[H+] [HCO3-]
Ka = _______________________
[H2CO3]

45
Educação Continuada em Anestesiologia

Para facilitar os cálculos, introduzem-se logaritmos dos dois lados da equação:

[H+] [HCO3-]
log Ka = log _______________________
[H2CO3]

Como logaritmo de uma multiplicação é igual à soma de logaritmos:

[HCO3-]
log Ka = log [H+] + log _______________________
[H2CO3]

Continuando o desenvolvimento da equação, conhecendo-se a definição matemática de


pH, transpõe-se log [H+] para o lado esquerdo e log Ka para a direita, e têm-se:

[HCO3-]
- log [H+] = - log Ka + log _______________________
[H2CO3]

A concentração de ácido carbônico é representada pelo fator de solubilidade do CO2


(0,03 mmol.l-1/mmHg) multiplicado pela PCO2. Por conseguinte:7-8

[HCO3-]
- log [H+] = - log Ka + log _______________________
0,03(PCO2)

Como o pH é definido por logarítimo negativo da concentração de hidrogênio (- log [H+]),


por analogia, podemos supor que o termo para - log Ka será pKa. Portanto, a equação pode
ser escrita assim:

[HCO3 ]
pH = pKa + log ________________
-

[H2CO3]

Dessa forma, chega-se à equação de Henderson-Hasselbalch, que expressa como ocor-


re a relação do ácido carbônico para o íon bicarbonato.1-8

Definição de pKa
Se nessa equação as quantidades de ácido carbônico e bicarbonato forem iguais, ocor-
rerá o seguinte:

pH = pKa + log 1

Como log 1 é igual a zero,

pH = pKa

46
Educação Continuada em Anestesiologia

Em vista disso, pKa é definido como o valor do pH. O ácido carbônico, ou um soluto
qualquer, encontra-se 50% dissociado e 50% não dissociado na solução. O pKa = 6,1
representa, portanto, o pH no qual o tampão ácido carbônico e sua base conjugada, bi-
carbonato, obtêm o máximo de poder de tamponamento. O conceito de pKa tem utilidade
prática para identificar como certa substância se comportará em diversos pH. Nesses
meios, um ácido fraco poderá ionizar-se mais ou menos, o que indicará qual será a maior
porcentagem não ionizada, que é a forma que atravessa a barreira lipoproteica das mem-
branas celulares (Figura 3.2).

Figura 3.2: Importância do pKa de um fármaco, geralmente ácido fraco, para indicar seu grau de absorção de
acordo com o pH do meio. Um ácido fraco com pKa = 4,4, ao ser administrado em pH extremamente baixo,
tenderá a doar menos protóns e ficará em grande parte sob a forma não ionizada e lipossolúvel, sendo, portanto,
mais absorvido.

Diagnóstico dos distúrbios ácido-base


Primeiramente, para definição de acidose e alcalose, costuma-se incluir o pH na determinação
primária dos distúrbios. Na realidade, ao verificar-se uma elevação ou diminuição do potencial de
hidrogênio, determina-se a ocorrência de alcalemia e acidemia, respectivamente. O diagnóstico
clínico de acidose ou alcalose depende dos valores de bicarbonato sérico e da pressão parcial
de CO2 arterial, conforme o distúrbio original seja metabólico ou respiratório.1,3 A presença de
acidemia ou alcalemia vai determinar se a acidose ou a alcalose está descompensada ou não.1,3

Distúrbios metabólicos

Esse termo refere-se ao aumento ou à redução de bases circulantes no sangue. Significa que o
bicarbonato sérico está abaixo ou acima dos valores normais, independentemente da medida do pH,
que, como já ressaltado, identifica apenas a presença ou não de acidemia ou alcalemia.4 Nas Tabelas
3.1 e 3.2, encontra-se a nomenclatura tradicional para a identificação dos distúrbios metabólicos.4

Tabela 3.1: Alcalose metabólica

Alcalose metabólica pH PCO2 [HCO3-]

Descompensada Aumentado Normal Aumentado


Parcialmente compensada Aumentado Aumentado Aumentado
Totalmente compensada Normal Aumentado Aumentado
Responsiva ao KCl Vômitos, diuréticos e correção rápida de hipoventilação crônica
Não responsiva Depleção grave de K+, administração excessiva de álcalis
ao KCl Excesso de mineralocorticoides

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Educação Continuada em Anestesiologia

Tabela 3.2: Acidose metabólica

Acidose metabólica pH PCO2 [HCO3-]

Descompensada Diminuído Normal Diminuído


Parcialmente compensada Diminuído Diminuído Diminuído
Totalmente compensada Normal Diminuído Diminuído
Com Anion gap elevado
Cetoacidose diabética, acidose lática e insuficiência renal
(>12)
Com Anion gap normal
Acidose tubular renal, diarreia e fístula pancreática
(hiperclorêmica)

• Conceito de hiato de ânions (Anion gap)

Como a neutralidade elétrica no organismo deve existir, isso indica que não podem haver
diferenças significativas entre cátions e ânions. A definição da diferença de ânions, do hiato
aniônico ou até mesmo do Anion gap é a medida artificial da divergência presente entre os
mais importantes cátions e ânions, rotineiramente medidos. São eles: sódio (Na+), cloro (Cl-)
e HCO3- Embora alguns autores incluam o potássio (K+), porque ele também é comumente
medido a maioria não o considera. Assim, o hiato aniônico é com frequência calculado sem
incluir K+, como descrito a seguir:

HA = [Na+] – ([Cl-] + [HCO3-])

O valor normal varia entre 12 ± 4 mEq.l-1. Dessa forma, se houver uma elevação de ânions
não mensuráveis, como lactato ou corpos cetônicos, o Anion gap aumentará. Estará, então,
caracterizada uma acidose gerada pelo aumento desses ânions, isto é, acidose com Anion
gap aumentado.7-9 (Tabela 3.2).

• Acidose láctica

A hipoperfusão tecidual, como vista nos estados de choque e hipovolemia, é causa mais
frequente desse distúrbio. A produção aumentada de lactato está ligada ao desvio do meta-
bolismo aeróbico para anaerobiose, cujo substrato principal, a glicose, é oxidado em piruvato,
o qual entra no ciclo de Krebs. Todavia, também eleva a produção de ácido láctico. Além dis-
so, a glicólise, por anaerobiose, produz apenas 2 moléculas de ATP, enquanto na presença
de oxigênio o mesmo substrato, glicose, é capaz de originar 36.3
Quando a concentração de lactato plasmático ultrapassa 5 ou 6 mmol.l-1, estabelece-se a
acidose láctica (o nível de lactato normal é de 2 mmol.l-1). Portanto, em situações de choque
ou hipovolemia, a restauração da perfusão pela oferta suficiente de líquidos deve trazer de
volta a aerobiose e reverter a acidose.10

• Administração de bicarbonato de sódio


Deve ser criteriosa conforme quadro clínico e patologia subjacente. É imperativo que o
fator determinante do distúrbio seja localizado e corrigido antes de instituir-se uma conduta
desnecessária e potencialmente perigosa.10 A utilização indiscriminada de bicarbonato de
sódio pode causar, principalmente, hipernatremia, hiperosmolaridade, hipocalemia e acidose
paradoxal. Hipernatremia e hiperosmolaridade estão associadas à grande concentração de

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Educação Continuada em Anestesiologia

sódio presente na solução.10 A hipocalemia pode instalar-se após administrações repetidas


ou generosas da solução, e surge pelo aumento da reabsorção tubular renal de H+ e secre-
ção aumentada de K+ (Figura 3.3).10-11 Acidose paradoxal é um fenômeno que ocorre devido
à rápida transformação de HCO-3 em CO2. Por ser altamente difusível, penetra no líquor e
estimula o centro respiratório, como se um ácido estivesse sendo administrado.
Em situações agudas, principalmente, seu uso é muito controverso, mas na insuficiência
renal crônica, a administração de bicarbonato é obrigatória. Neste caso, devem-se acom-
panhar as concentrações séricas de potássio, pois o bicarbonato induzirá maior secreção
tubular desse íon, com possibilidade de hipocalemia.

Figura 3.3 Mecanismo de acidificação renal. Absorção e reabsorção tubular renal do íon hidrogênio (H+) e do
potássio (K+) na presença da enzima anidrase carbônica (AC)

A reposição de bicarbonato pode ser baseada no cálculo da fórmula a seguir:

Défice de HCO3– = peso (kg) x %AEC x (HCO3– normal - HCO3– encontrado)

Sendo:

%AEC = Porcentagem da água do espaço extracelular


(20% do peso ou 0,2)
HCO3- normal = 24 mmoL.l-1

No entanto, a reposição de bicarbonato pode ser estimada pela simples expressão do peso
em mmol. A solução de bicarbonato a 8,4% possui 1 mmol por mililitro, o que simplifica o cálculo.

Distúrbios respiratórios

Esse termo define somente aumento ou redução da pCO2 arterial, independentemente da medida
do pH, que, como já descrito, identifica apenas a presença ou não de acidemia ou alcalemia. Nas Ta-
belas 3.3 e 3.4 encontra-se a nomenclatura tradicional para a identificação dos distúrbios respiratórios.4

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Educação Continuada em Anestesiologia

Tabela 3.3: Acidose respiratória

Acidose respiratória pH PCO2 [HCO3-]

Descompensada Diminuído Aumentado Normal


Parcialmente compensada Diminuído Aumentado Aumentado
Totalmente compensada Normal Aumentado Aumentado
Elevação de cada 1 mEq.l-1 deve ter aumento correspondente de 10 mmHg na
Aguda
PaCO2
Elevação de cada 3,5 mEq.l-1 deve ter aumento correspondente de 10 mmHg na
Crônica
PaCO2
Hipoventilação por sedativos ou doença neuromuscular, DPOC, obstrução de
Causas
vias respiratórias e PCR

Tabela 3.4: Alcalose respiratória

Alcalose respiratória pH PCO2 [HCO3-]

Descompensada Aumentado Diminuído Normal


Parcialmente compensada Aumentado Diminuído Diminuído
Totalmente compensada Normal Diminuído Diminuído
Queda de cada 2 mEq.l-1 deve ter diminuição correspondente de 10 mmHg na
Aguda
PaCO2
Queda de cada 5 mEq.l-1 deve ter diminuição correspondente de 10 mmHg na
Crônica
PaCO2
Causas Hiperventilação por: ansiedade, dor, gravidez, febre, lesão do SNC e tireotoxicose

Certamente, se o distúrbio original é acidose metabólica, a resposta compensatória será


sob a forma de alcalose respiratória e vice-versa.

• Conceito de insuficiência ventilatória


O oxigênio é fundamental à vida, e sua presença determina a produção de energia ne-
cessária ao funcionamento normal das células. O termo troca gasosa é ensinado e entendido
como se a entrada de oxigênio para os capilares pulmonares dependesse da saída de gás
carbônico. Na realidade, ocorrem dois mecanismos diversos.
Para melhor entendimento, consideram-se ventilação alveolar e oxigenação entidades dis-
tintas. Somente a oxigenação dos tecidos é essencial à vida e, para que ela ocorra, é neces-
sário que haja fluxo sanguíneo capilar pulmonar, oxigênio presente no alvéolo e integridade da
membrana alvéolo-capilar. Já o gás carbônico, por ser muitas vezes mais difusível, exige, além
do fluxo sanguíneo capilar, ventilação alveolar, isto é, insuflação e desinsuflação pulmonar. Um
exemplo claro desse mecanismo é o paciente com Síndrome do Desconforto Respiratório Agu-
do (SDRA ou SARA), também denominado edema pulmonar não cardiogênico. Os pacientes
com essa patologia, em seu quadro inicial, apresentam frequência respiratória elevada, mas
com PaO2 diminuída e PaCO2 normal ou até reduzida. Outro exemplo é o método chamado de
ventilação oxigenação apneica, no qual é possível oxigenar o sangue somente com um fluxo
adequado de O2 a 100%, através de um tubo traqueal, sem que haja movimento respiratório.3-4

50
Educação Continuada em Anestesiologia

A tensão arterial de gás carbônico reflete, portanto, o perfeito funcionamento da ventilação


alveolar. Por conseguinte, quando existe redução da PaCO2, fica caracterizada a hiperventila-
ção. Sua elevação chama-se hipoventilação ou insuficiência ventilatória. Pode-se concluir que
situações clínicas de acidose ou alcalose respiratórias4 podem, também, ser classificadas
conforme as Tabelas 3,5 e 3.6:

Tabela 3.5: Acidose respiratória

Acidose respiratória Insuficiência ventilatória


=
alveolar ou hipoventilação
Descompensada Aguda
Parcialmente compensada Subaguda
Totalmente compensada Crônica

Tabela 3.6: Alcalose respiratória

Alcalose respiratória = hiperventilação


alveolar
Descompensada Aguda
Parcialmente compensada Subaguda
Totalmente compensada Crônica

Mecanismo respiratório da regulação do pH


A regulação do pH pelos pulmões faz-se em minutos e é importante pela quantidade de
ácidos eliminada. Existem muitos estímulos que podem modificar a respiração, de maneira a
aumentar ou diminuir a liberação de CO2 pelo pulmão.
O nível de CO2 no sangue regula a ventilação pelo seu efeito no pH do líquido cefalorraqui-
diano (LCR). Elevando-se o CO2 sanguíneo, este atravessa a barreira hemoliquórica. Ocorre
aumento na concentração de íon hidrogênio do LCR, o que estimula os quimiorreceptores
da superfície ventral da medula, próximos à emergência do nono e décimo pares cranianos.
A hiperventilação que resulta daí diminui a pressão parcial de dióxido de carbono arterial.3

Figura 3.4 Regulação da ventilação pela elevação do


ácido carbônico que provoca alteração no pH do líquido
cefalorraquidiano.

51
Educação Continuada em Anestesiologia

Menos importante é a resposta dos quimiorreceptores periféricos (dos corpos carotídeos


e aórticos) à elevação do CO2. Os impulsos aferentes trafegam pelo nono e décimo pares
cranianos e têm certa importância nas mudanças bruscas da PaCO2. Esses quimiorrecep-
tores, contudo, são o principal local de ação do pH reduzido e da baixa pressão parcial de
oxigênio arterial (PaO2). Todavia, a hipoxemia não tem ação nos quimiorreceptores centrais.3
Se houver elevação do bicarbonato plasmático e do pH arterial, o centro respiratório di-
minuirá a frequência e a profundidade dos movimentos respiratórios. Com essa resposta,
haverá acúmulo de dióxido de carbono no sangue por diminuição da sua eliminação, o teor
de ácido carbônico sanguíneo aumentará e a relação bicarbonato/ácido carbônico voltará à
normalidade juntamente com o pH.
Por outro lado, a diminuição da concentração do bicarbonato sanguíneo e do pH causará
o aumento da frequência e profundidade da respiração e mais CO2 será eliminado, diminuirá
o teor de ácido carbônico sanguíneo, a relação bicarbonato/ácido carbônico tenderá à nor-
malidade e, consequentemente, também o pH.
O mecanismo respiratório e os tampões químicos agem apenas temporariamente na re-
gulação do equilíbrio do pH. Os rins fazem correção permanente, suprindo as falhas desses
dois sistemas, eliminando ácidos fixos e regenerando os tampões químicos.

Mecanismo renal da regulação do pH


Essa regulação é lenta, levando de horas a dias para se completar, porém é a mais efi-
ciente. É também a única via de eliminação de ácidos que não podem ser metabolizados até
ácido carbônico. Ocorre pela reabsorção de bicarbonato, eliminação de produtos ácidos e
produção de amônia.3,9

Efeitos do desequilíbrio ácido-base na função orgânica


O desequilíbrio ácido-base causa uma série de modificações na função orgânica. De
forma direta, altera o processo bioquímico intracelular. Indiretamente, interfere no fluxo san-
guíneo, na atividade reflexa do sistema nervoso central (SNC) e no sistema endócrino. As
alterações indiretas são mais profundas que as diretas.

Sistema nervoso central

O CO2 atravessa rapidamente a barreira cerebrospinal, alterando o pH do LCR. A hipo-


capnia determina vasoconstrição cerebral e a diminuição do volume sanguíneo e da pressão
intracraniana. A hiperventilação excessiva é deletéria para o cérebro, pois pode diminuir a
tensão de O2 e modificar o metabolismo cerebral.3,9
A hipocapnia pode originar depressão generalizada, confusão, euforia e, eventualmente,
perda da consciência. Em contraposição, a hipercarbia sistêmica aumenta o fluxo sanguíneo
cerebral e a pressão intracraniana. Elevações na PaCO2 podem alterar a função neuronal e
produzir perda progressiva da consciência, com correspondentes mudanças no eletroence-
falograma (EEG), o qual mostra ondas de baixa atividade com eventual supressão completa.
Em relação às alterações metabólicas, uma vez que a barreira cerebrospinal é relativamen-
te impermeável aos íons H+, as alterações do pH liquórico não são de mesma magnitude que
as do pH plasmático, porém ocorrem na mesma direção.3,9
São estímulos para aumento da ventilação a hipóxia, a hipercapnia e os íons H+, sendo
a elevação do dióxido de carbono o mais importante. Este gás difunde-se dos vasos para o
fluido cerebrospinal, promovendo formação de íons H+, os quais diminuem o pH do líquor e

52
Educação Continuada em Anestesiologia

estimulam os quimiorreceptores centrais (Figura 3.3).


A acidose metabólica aguda tem pouco efeito sobre a ventilação, devido à relativa imper-
meabilidade da barreira hematoencefálica aos íons H+. Por esse motivo, o estímulo chega
rapidamente aos receptores periféricos, localizados nos corpos carotídeos e aórticos.

Sistema cardiovascular

A acidose respiratória ou metabólica causa ao inotropismo negativo e sensibiliza o mio-


cárdio às catecolaminas. As disritmias (ritmo juncional, disritmias atrioventriculares, fibrilação
ventricular) são frequentes, principalmente nos pacientes anestesiados com halotano.
Na presença de hipercapnia moderada, são liberadas catecolaminas que aumentam o
débito cardíaco (volume sistólico e frequência cardíaca) e a contratilidade do miocárdio. No
paciente anestesiado, esse estímulo encontra-se diminuído.
A acidose relaxa a maior parte da musculatura lisa sistêmica. Ao mesmo tempo, as cate-
colaminas liberadas pela ativação do Sistema Nervoso Simpático (SNS) provocam vasocons-
trição, embora a própria acidose diminua a efetividade das catecolaminas.
O tratamento da hipotensão é facilitado pela restauração do pH normal.

Pulmão

Ocorre vasoconstrição pulmonar quando existe acidose, e vasodilatação quando existe


alcalose. Se o paciente está bem oxigenado, este efeito é pequeno, sendo mais acentuado,
portanto, em vigência de hipoxia.
O calibre das vias aéreas também sofre influência das alterações no equilíbrio ácido-base. O
efeito local de aumento do CO2 é a broncodilatação, enquanto a resposta ao efeito central é de
broncoconstrição. Ao contrário, a hipocapnia determina constrição local e dilatação reflexamente.
O aumento na resistência da via aérea pela hipercapnia é mediado centralmente pelo
nervo vago. Logo, a correção da acidose é importante para a restauração da capacidade de
resposta do músculo liso às substâncias broncodilatadoras.

Útero, feto, placenta

Alterações do equilíbrio ácido-base materno podem agir sobre o feto por interferirem na
circulação placentária ou por acidificarem o sangue da circulação fetal.
As mudanças respiratórias (acidose ou alcalose) maternas acompanham-se de alterações
similares no sangue fetal, devido à permeabilidade da placenta ao CO2. Em relação às altera-
ções metabólicas, a passagem pela placenta do íon H+ não se faz tão rapidamente.3
Estudos realizados em animais, principalmente quando anestesiados, mostraram que o
fluxo placentário pode estar diminuído na hiperventilação, alterando a saturação fetal de oxi-
gênio. A acidose materna, porém, pode aumentar a saturação fetal de O2.

Anestesia e equilíbrio ácido-base


Considerações gerais

Anormalidades no equilíbrio ácido-base produzem alterações variadas: respostas ventilatórias


ao distúrbio original, disfunção dos mecanismos iônicos celulares e depressão cardiovascular.
Todos os agentes anestésicos modificam, em variadas intensidades, a resposta ventila-
tória ao gás carbônico, acumulando progressivamente o ácido volátil que leva a acidose res-

53
Educação Continuada em Anestesiologia

piratória.6 Outros agentes, como propofol, podem até causar acidose metabólica, segundo
Burrow, 2004, independentemente da depressão respiratória.12
O paciente anestesiado beneficia-se com a alcalose respiratória moderada, quando se
obtém efeito analgésico máximo, diminuindo, com isso, a necessidade do agente inalatório e
também do bloqueador neuromuscular.3
As alterações vagais, após a reversão do bloqueio neuromuscular, são menos frequentes
e menos graves, e o paciente volta à normalidade respiratória mais precocemente. Há certa
proteção contra disritmias cardíacas.
No paciente idoso com aterosclerose cerebral e submetido à cirurgia de longa duração,
existe o risco de a vasoconstrição cerebral, provocada pela alcalose respiratória, induzir al-
terações de personalidade, as quais geralmente ocorrem no pós-operatório imediato, sendo
reversíveis em dias ou semanas.
Como os sinais e sintomas gerais mais comuns da alcalose metabólica são náuseas, vô-
mitos, confusão mental, obnubilação, desorientação, convulsão e coma, eles costumam não
ser evidenciados no paciente anestesiado. Quando a alcalose é associada à hipopotassemia,
o paciente pode, ainda, apresentar fraqueza muscular, astenia, depressão dos reflexos ten-
dinosos, íleo paralítico, distensão abdominal, taquicardia, disritmias cardíacas e sensibilidade
maior aos digitálicos.
A acidose respiratória inicialmente estimula o SNS, e há aumento da pressão arterial,
taquicardia e disritmias, principalmente com manipulação de estruturas próximas a centros
reflexogênicos. Sudorese fria e maior sangramento podem estar presentes. Se houver es-
timulação direta do coração, poderá ocorrer fibrilação ventricular.
Durante a anestesia, mesmo com o paciente totalmente imobilizado pela ação dos blo-
queadores neuromusculares e sob ventilação mecânica, poderão ser observadas repetidas
movimentações diafragmáticas, exigindo doses maiores de bloqueador neuromuscular. Al-
gumas vezes, segue-se a mesma exigência em relação aos agentes inalatórios, isto é, a
necessidade de dosagens mais elevadas.3
A acidose metabólica pode levar à depressão cardiovascular, com disritmias cardíacas e
alteração da pressão arterial, depressão do sistema nervoso central, causando obnubilação,
sonolência e inconsciência. Quando o pH arterial aproxima-se de 7.0, poderão surgir depres-
são dos centros respiratórios e sangramentos.

Considerações específicas

Durante a anestesia, podem aparecer distúrbios do equilíbrio ácido-base decorrentes da


utilização de fármacos, de técnicas anestésicas conduzidas inadequadamente e de situa-
ções cirúrgicas específicas. Alguns dos mais importantes estão mencionados a seguir:

• Anestesia geral inalatória com respiração espontânea


Sabe-se que a maioria dos agentes anestésicos inalatórios tem ação depressiva sobre
os centros e músculos respiratórios causando, assim, hipoventilação, retenção de dióxido de
carbono, aumento da PaCO2 e consequente acidose respiratória. A ventilação assistida, com
hiperinsuflação dos pulmões a curtos intervalos de tempo, deve evitar a retenção de CO2.3

• Anestesia geral inalatória com respiração controlada


Dependendo de como se realiza a ventilação, podem-se encontrar alcalose ou acidose
respiratórias. Entretanto, o distúrbio mais frequentemente encontrado é a alcalose respiratória
associada ou não às alterações na PaO2.

54
Educação Continuada em Anestesiologia

• Cirurgia vascular
A utilização de clampeamento de grandes vasos, como ocorre nas cirurgias vasculares de
grande porte, induz o aparecimento de anaerobiose no território não irrigado e acidose metabólica,
posterior ao desclampeamento, devido à liberação de radicais ácidos para a corrente sanguínea.

• Cirurgia cardíaca com circulação extracorpórea


Nesses pacientes, já na fase de pré-anestesia, é comum encontrar distúrbios do equi-
líbrio ácido-base por condições preexistentes ou por terapêutica instituída. O papel da
anestesia na alteração do equilíbrio ácido-base estaria mais associado a ajuste inadequado
da respiração artificial ao doente. Sabe-se, contudo, que a acidose metabólica costuma ser
encontrada após a circulação extracorpórea. Isso se deve, principalmente, ao fluxo sanguí-
neo tecidual inadequado decorrente do reduzido fluxo de perfusão, que produz oxigenação
tecidual deficiente e suas consequências. A manutenção de fluxos sanguíneos satisfatórios
pela aparelhagem de circulação extracorpórea e de níveis de anestesia adequados previne
grande parte das complicações.3

Referências bibliográficas

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55
Capítulo 4
Fisiologia e farmacologia
do sistema respiratório
Leopoldo Muniz da Silva
Educação Continuada em Anestesiologia

Fisiologia do sistema respiratório


Mecanismo de respiração

No mecanismo da respiração existem dois movimentos: a inspiração e a expiração. A ins-


piração é a entrada de ar pelas vias aéreas até os pulmões e a expiração é a saída desse ar
após as trocas gasosas. Esses movimentos só são possíveis por causa da capacidade que
os pulmões possuem de sofrer expansão e retração, juntamente com a ação dos músculos
da respiração. O diafragma é o principal músculo envolvido no mecanismo da respiração. A
atividade diafragmática ocasiona diminuição da pressão intra-alveolar abaixo da pressão at-
mosférica e, assim, a entrada de ar no pulmão. A inervação motora desse músculo origina-se
dos segmentos cervicais C3, C4 e C5. Tal músculo apresenta constituição tissular peculiar,
com grande capacidade de metabolismo aeróbico garantido pelo adensamento mitocondrial
e rica rede de capilares, o que lhe confere maior capacidade de resistir à fadiga. Na inspiração
não forçada, os músculos intercostais apresentam pequena contribuição. Ao contrário da ins-
piração, a expiração é mecanismo passivo, embora a musculatura abdominal possa contribuir
ativamente na expiração forçada e no mecanismo de tosse.
Para encher os pulmões, o ar precisa ser movimentado por um gradiente de pressão
produzido durante a inspiração, representado pela diferença entre a pressão atmosférica e
a pressão alveolar. Essa diferença é denominada pressão transpulmonar ou transalveolar.
Ao final da expiração, a pressão alveolar iguala-se à pressão atmosférica. Durante a inspi-
ração, a pressão intrapleural é reduzida, diminuindo proporcionalmente à pressão alveolar
e resultando em pressão transtorácica positiva, que, por sua vez, ocasiona a entrada de ar.
A pressão transtorácica inspiratória possui dois componentes, representados pela pressão
de distensão, necessária para distender os pulmões e a caixa torácica, e a pressão para ven-
cer a resistência das vias aéreas. Tal divisão é bem caracterizada em pacientes sob ventilação
controlada, uma vez que em pacientes sob ventilação espontânea a pressão para vencer a re-
sistência das vias aéreas é desprezível (exceção ocorre em pacientes com doença obstrutiva).
A complacência pulmonar mede o grau de elasticidade ou distensibilidade do pulmão. É a
medida do volume corrente em relação ao gradiente de pressão transpulmonar, representan-
do a razão entre um e outro. Em ventilação mecânica, a pressão transtorácica é representada
pela pressão de platô, considerando-se um valor de pressão positiva expiratória final igual
a zero. A pressão de platô é uma distensão pulmonar, sem o efeito da resistência das vias
aéreas. Se for considerada a resistência das vias aéreas, é preferível utilizar, no cálculo da
complacência, a pressão de pico ou pressão transtorácica inspiratória total, que considera
tanto a distensão pulmonar quanto a resistência das vias aéreas.
O cálculo da complacência pulmonar utilizando-se a pressão de pico ou de platô inspiratório
pode gerar considerações clínicas importantes. Por exemplo: em um determinado paciente,
a complacência pulmonar calculada com base na pressão de platô foi considerada normal.
Contudo, a complacência calculada por meio da pressão de pico estava reduzida. Nesse caso,
a complacência pulmonar encontra-se alterada em razão do aumento da resistência das vias
aéreas. Um aumento na pressão de pico excessivamente maior do que a pressão de platô
(diferença maior que 5 a 10 mmHg) indica aumento de resistência das vias aéreas. A pressão
de platô determina a complacência estática e a pressão de pico, a complacência dinâmica.
A pressão pleural não é uniformemente distribuída. No ápice pulmonar, a pressão pleural
é mais negativa do que em relação à base. Esse fato explica a maior distensão alveolar no
ápice do que nas bases pulmonares, que, em posição ortostática, suporta o peso do pulmão
e da coluna líquida de sangue. A distensão alveolar dos ápices pulmonares termina por deixar
esses alvéolos em um ponto desfavorável na curva de volume-pressão e, em consequência,
ocorre menor ventilação regional dos ápices em relação às bases.

58
Educação Continuada em Anestesiologia

Na superfície alveolar, existe tensão, resultado da força de atração das moléculas constituin-
tes da película fluida dos alvéolos. O surfactante pulmonar, produzido pelos pneumócitos tipo II
a partir de 28 a 33 semanas de gestação, é capaz de reduzir a tensão superficial dos alvéolos
e melhorar o trabalho respiratório. Na ausência de surfactante, a expansão pulmonar é dificul-
tada, sendo necessária pressão intrapleural de -30 mmHg para evitar colapso alveolar. Outras
condições também podem ocasionar redução do surfactante, como exposição prolongada a
elevadas frações inspiradas de oxigênio, circulação extracorpórea e tabagismo.

Capacidade e volumes pulmonares

A cada ciclo respiratório, certo volume de ar entra e sai das vias aéreas durante uma inspiração
e uma expiração, respectivamente. Em situação de repouso, em um adulto saudável, aproxima-
damente 500 ml de ar entra e sai a cada ciclo, o que corresponde ao volume corrente. Além do
volume corrente, pode-se inspirar um volume maior de ar, por meio de uma inspiração profunda.
É o volume de reserva inspiratório, que corresponde a aproximadamente 3.000 ml de ar em um
adulto saudável. Além do volume normalmente expirado em repouso, pode-se expirar, ainda,
maior volume de ar, denominado volume de reserva expiratório, que corresponde a aproximada-
mente 1.100 ml. Após essa expiração profunda, o volume de ar que permanece no interior das
vias aéreas e alvéolos denomina-se volume residual, que é de aproximadamente 1.200 ml.
O volume de reserva inspiratório somado ao volume corrente equivale à capacidade ins-
piratória (aproximadamente 3.500 ml). O volume de reserva expiratório somado ao volume
residual equivale à capacidade residual funcional (aproximadamente 2.300 ml). O volume de
reserva inspiratório adicionado ao volume corrente e ao volume de reserva expiratório é igual
à capacidade vital (aproximadamente 4.600 ml ou 70 ml/kg). A soma dos volumes corrente,
de reserva inspiratório, de reserva expiratório e residual corresponde à capacidade pulmonar
total (aproximadamente 5.800 ml). Ao se subtrair do volume corrente aquele volume que per-
manece no interior do espaço morto anatomofisiológico (aproximadamente 30% ou 150 ml),
obtém-se o volume alveolar (350 ml). O volume-minuto representa o volume de ar que entra e
sai dos pulmões em um minuto. A frequência respiratória normal é de 12 a 16 irpm. Logo, o
volume-minuto normal está em torno de 7 l/min. Esse volume todo chega à árvore respiratória,
mas somente 70% dele chega de fato aos alvéolos. Os 30% restantes preenchem a traqueia
e a árvore brônquica, representando o espaço morto anatômico.

Controle da respiração

Quando há aumento da atividade física, as células consomem quantidade maior de oxi-


gênio e produzem também quantidade maior de gás carbônico. Por isso, a ventilação pul-
monar deve aumentar, pois, caso isso não ocorra, o sangue apresentará uma situação de
hipercapnia e hipóxia – e tanto uma quanto a outra podem causar acidose. O principal regu-
lador da ventilação alveolar é a pressão parcial de dióxido de carbono (PaCO2) no sangue.
Contudo, no início de uma atividade física vigorosa, o aumento da ventilação alveolar ocorre
por estimulação simpática direta e indiretamente por estímulo de proprioceptores ativados
pelo movimento das articulações.
A respiração é controlada automaticamente por um centro nervoso localizado no assoalho
do quarto ventrículo. Os sinais nervosos são transmitidos desse centro, pela medula espinhal,
para os músculos da respiração. O diafragma recebe os sinais respiratórios pelo nervo frênico,
que deixa a medula espinhal na metade superior da região cervical e dirige-se para baixo, até
o diafragma. Os sinais para os músculos expiratórios, especialmente os músculos abdominais,
são transmitidos para a porção baixa da medula espinhal e desse ponto para os nervos espi-

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nhais que inervam os músculos. Impulsos iniciados pela estimulação psíquica ou sensorial do
córtex cerebral podem afetar a respiração. Em condições normais, o centro respiratório produz,
a cada 5 segundos, um impulso nervoso que estimula a contração da musculatura torácica e
do diafragma, fazendo-nos inspirar. A capacidade de aumentar e diminuir a frequência respira-
tória permite que os tecidos recebam a quantidade de oxigênio que necessitam e que o gás
carbônico seja removido adequadamente. Dessa forma, tanto a frequência quanto a amplitude
da respiração tornam-se aumentadas em razão da excitação do centro respiratório.
O centro respiratório é dividido em várias áreas ou zonas, sendo que cada uma tem fun-
ções específicas:
• Zona Inspiratória: é a zona responsável pela inspiração e apresenta células autoexcitá-
veis; dessa zona parte um conjunto de fibras (via inspiratória) que desce pela medula e se dirige
a vários neurônios motores responsáveis pelo controle dos diversos músculos da inspiração.
O impulso aferente proveniente dos receptores periféricos é transmitido via nervo vago e
glossofaríngeo e o impulso eferente é transmitido via nervo vago.
• Zona Expiratória: essa porção permanece inativa durante a respiração usual, mas du-
rante o esforço respiratório, como em atividades físicas, a zona expiratória torna-se ativa e
estimula a musculatura abdominal a participar da expiração.
• Zona Pneumotáxica: constantemente em atividade, tem como função principal inibir (ou
limitar) a inspiração; quando em atividade aumentada, a inspiração torna-se mais curta e a
frequência respiratória, consequentemente, aumenta.
• Centro Apnêustico: tem como função aumentar a duração da inspiração, apresentando
pequena influência sobre a zona inspiratória quando a zona pneumotáxica está funcionante.
• Zona Quimiossensível: está situada entre as zonas inspiratória e expiratória; quanto maior
sua atividade, maior será a ventilação pulmonar; essa zona aumenta sua atividade especial-
mente quando certas alterações metabólicas ocorrem, como aumento da PaCO2, aumento
de íons hidrogênio livres (redução de pH) e, em menor grau, redução de oxigênio; o aumen-
to dos íons hidrogênio constitui o maior estímulo da área quimiossensível, porém esse íon
atravessa a barreira hematoencefálica com dificuldade, o que faz com que alterações do pH
sanguíneo sejam menos eficazes como estímulo respiratório; o gás carbônico (CO2), que
atravessa com mais facilidade a barreira hematoencefálica, reage com a água lá presente
e, graças à enzima anidrase carbônica, rapidamente forma ácido carbônico, o qual, então,
dissocia-se, formando íon bicarbonato e íon hidrogênio livre, sendo esse último o que mais
excita a zona quimiossensível; logo, o mais potente regulador direto da ventilação pulmonar é
o pH liquórico – ocorrendo redução do pH, haverá forte estímulo respiratório hiperventilatório,
e, ao contrário, ocorrendo elevação, haverá potente estímulo hipoventilatório.
Em pacientes retentores crônicos de CO2, o controle do centro bulbar encontra-se hipos-
sensível ao CO2. Esses pacientes mantêm ventilação normal, mesmo com elevada PaCO2.
O pH liquórico acaba se tornando normal ou próximo do normal pela manutenção da norma-
lidade do pH sanguíneo às custas da retenção crônica de bicarbonato.
A estimulação da área quimiossensível pela hipóxia ocorre via receptores aórticos e carotí-
deos. Tais receptores transmitem o impulso nervoso para o centro respiratório via nervo glosso-
faríngeo (corpos carotídeos) e nervo vago (corpos aórticos). A diminuição dos níveis da pressão
parcial de oxigênio (PaO2) constitui o principal estímulo para ativação dos receptores periféricos
quimiossensíveis. A anemia ou intoxicação por monóxido de carbono não altera a quantidade
de oxigênio dissolvido no sangue e, dessa forma, não serve como estimulante dos receptores
periféricos para aumento da ventilação alveolar. Os receptores carotídeos são os principais
receptores periféricos envolvidos com a estimulação respiratória, principalmente com valores
de PaO2 menores que 60 mmHg. Contudo, no pós-operatório imediato, pacientes sob efeitos
de anestésicos inalatórios e opioides irão apresentar resposta ventilatória deficiente à hipóxia.

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Educação Continuada em Anestesiologia

Trocas gasosas

As trocas de gases no pulmão dependem da difusão, circulação de gases nos alvéolos


e perfusão adequada pela parede dos capilares alveolares, assim como de fluxo sanguíneo
adequado pelas arteríolas pulmonares.
A circulação pulmonar inicia-se pela artéria pulmonar principal, que transporta sangue venoso
misto a partir do ventrículo direito para os pulmões. No nível dos bronquíolos terminais, as artérias
pulmonares dividem-se para formar um leito capilar extenso que envolve os alvéolos. A densa rede
formada pelo leito capilar pulmonar é extremamente eficaz para a realização das trocas gasosas.
O sangue atravessa a rede capilar, é oxigenado e levado para o átrio esquerdo pelas veias pul-
monares. Os pulmões têm circulação dupla: a circulação pulmonar para a troca gasosa com os
alvéolos e a circulação bronquial, que nutre o parênquima pulmonar. A maior parte do sangue da
circulação bronquial drena para o lado esquerdo do coração pelas veias pulmonares e esse san-
gue, pobre em oxigênio (O2), faz parte do shunt fisiológico normal. O outro componente do shunt
fisiológico vem das chamadas veias de Tebésio, que drenam uma parte do sangue da irrigação
coronariana diretamente para dentro das câmaras cardíacas esquerdas.
O CO2 é um gás bastante difusível na membrana alveolocapilar e é transportado carreado no
sangue de três formas: dissolvido; sob a forma de íons bicarbonato; e combinado a proteínas,
como a carboxi-hemoglobina. Nos alvéolos, a eliminação do CO2 é facilitada pela saturação da
hemoglobina pelo oxigênio. Tal mecanismo é conhecido como efeito Haldane. A alta concen-
tração de O2 promove a saturação da hemoglobina e libertação de íons H+ e CO2, promovendo
um desequilíbrio químico e facilitando a eliminação por difusão desse gás nos alvéolos.
O O2, ao contrário do CO2, necessita da hemoglobina para ser transportado no sangue, uma
vez que, mesmo com uma PaO2 adequada, a quantidade de O2 dissolvida no sangue é mínima.
De acordo com a lei de Henry, a concentração de um gás no sangue é o produto da sua pressão
parcial por uma constante de solubilidade do gás. Considerando o coeficiente de solubilidade
do O2 de 0,003 ml ⁄dl, somente 0,3 ml ⁄dl de O2 encontra-se disponível para uma PaO2 de 100
mmHg. Para manter um conteúdo arterial adequado de oxigênio, a hemoglobina deve ter satu-
ração de pelo menos 90%, valor correspondente a uma PaO2 de 60 mmHg. A PaCO2 depen-
de exclusivamente da ventilação alveolar. Logo, hiperventilação ocasiona sempre hipocapnia e,
hipoventilação, hipercapnia. Contudo, tal relação direta não se aplica em relação à oxigenação
sanguínea. O processo de oxigenação depende mais da relação ventilação/perfusão do que
propriamente da ventilação alveolar. Áreas pulmonares bem ventiladas e pouco perfundidas, com
elevada relação ventilação/perfusão, tendem a permitir manutenção de hipoxemia.
A resposta das arteríolas no pulmão às mudanças na PaO2 e PaCO2 é oposta à observada
em arteríolas sistêmicas. Considerando que o aumento da PaCO2 ou diminuição da PaO2
dilatam as arteríolas sistêmicas para levar mais O2 para áreas metabolicamente mais ativas ou
sob ameaça de isquemia, as arteríolas pulmonares tendem a iniciar constrição para desviar o
sangue oxigenado para alvéolos mais ventilados.
Todos os gases movem-se pela parede alveolar de acordo com o princípio da difusão
simples: mobilização de moléculas de áreas de maior concentração para áreas de menor
concentração. De acordo com a lei de Fick, a quantidade de gás que se move por uma fo-
lha de tecido é proporcional à área da folha, mas inversamente proporcional à sua espessura.
A taxa de difusão pela membrana é diretamente proporcional ao gradiente de pressão parcial (o
principal fator influenciador das trocas gasosas) e mais rápida em curtas distâncias. Além do gra-
diente de pressão, a quantidade de O2 ou CO2 que se dissolve no plasma é dependente da so-
lubilidade do gás (a difusão do CO2 pelo tecido é cerca de 20 vezes mais rápida do que a do O2).
A ventilação e a perfusão não são igualmente distribuídas em todo o pulmão. A perfusão
está relacionada aos efeitos da gravidade. Na posição ereta, as bases estão em um ponto

61
Educação Continuada em Anestesiologia

mais favorável da curva de complacência do que os ápices, sendo mais ventiladas e também
mais perfundidas. A diferença entre ápices e bases é menos marcante para a ventilação do
que para a perfusão. A perfusão aumenta proporcionalmente mais do que a ventilação e as
áreas apicais tendem a apresentar maior relação ventilação/perfusão. No ápice pulmonar, os
alvéolos estão mais inflados e menos complacentes, devido à elevada pressão transpulmo-
nar, sendo menos ventilados durante a inspiração. Nas áreas dependentes, a pressão trans-
pulmonar menor ocasiona maior expansão durante a inspiração. As diferenças na relação
ventilação/perfusão dividem o pulmão em três áreas (zonas de West):

• Zona I (ápice) – área com espaço morto elevado, na qual a pressão alveolar oclui os ca-
pilares pulmonares. A pressão alveolar é maior do que a pressão arterial pulmonar e pressão
venosa pulmonar. Praticamente inexistente em indivíduos normovolêmicos e sadios.
• Zona II – nessa região, os capilares pulmonares apresentam fluxo intermitente e variável du-
rante o ciclo respiratório de acordo com o gradiente de pressão alveoloarterial. A pressão arterial
pulmonar é maior do que a pressão alveolar, que, por sua vez, é maior do que a pressão venosa.
• Zona III (bases) – o fluxo capilar pulmonar é contínuo. A pressão arterial é maior do que a
pressão alveolar e essa última é menor do que a pressão venosa. O fluxo é determinado pelo
gradiente de pressão arteriovenosa.

O transporte de O2 no sangue e a oxigenação tecidual são essencialmente dependentes


do acoplamento de moléculas de O2 na hemoglobina. Cada molécula de hemoglobina tem
capacidade limitada para o transporte de moléculas de O2. A quantidade de O2 ligado à
hemoglobina, em grande parte, está relacionada à PaO2 a que essa está exposta. Nos pul-
mões, na interface alveolocapilar, a PaO2 é geralmente alta e, portanto, o O2 liga-se facilmente
à hemoglobina que está presente. Como o sangue circula para outros tecidos do corpo em
que a PaO2 é menor, a hemoglobina libera o O2 para os tecidos, uma vez que não consegue
manter seu limite de capacidade total de O2 na presença de baixas pressões parciais de O2.
A curva de dissociação da oxi-hemoglobina é ferramenta importante para avaliar a relação
entre a PaO2 e a saturação de O2, além de verificar a influência de determinados fatores na
afinidade da hemoglobina pelo O2. Em sua forma básica, a curva de dissociação da oxi-
-hemoglobina descreve a relação entre a pressão parcial de O2 (eixo X) e a saturação de O2
(eixo Y). Quanto maior a afinidade pelo O2, maior a dificuldade para que ele seja liberado para
utilização metabólica tecidual. Em pressões acima de 60 mmHg, a curva padrão de disso-
ciação é relativamente plana, o que significa que o teor de O2 no sangue não se altera signifi-
cativamente, mesmo com grandes aumentos na PaO2. Em pressões abaixo de 60 mmHg, o
O2 é liberado para os tecidos com mais facilidade, uma vez que a afinidade da hemoglobina
pelo O2 diminui. A pressão parcial de O2 no sangue em que a hemoglobina está 50% satura-
da, normalmente cerca de 26,6 mmHg para uma pessoa saudável, é conhecida como P50.
Quando uma PaO2 maior é necessária para que a hemoglobina esteja saturada em 50%,
podemos afirmar que houve deslocamento para a direita da curva-padrão. Por outro lado,
uma P50 menor indica deslocamento para a esquerda e maior afinidade. A curva-padrão é
deslocada para a direita por aumento da temperatura, 2, 3-difosfoglicerato (2, 3 DPG); PaCO2
elevada; ou diminuição de pH. Uma mudança para a direita, por definição, causa diminuição
da afinidade da hemoglobina pelo oxigênio. Isso torna difícil a ligação da hemoglonina ao oxi-
gênio, mas facilita a oxigenação tecidual.
Fatores que influenciam a curva de dissociação da hemoglobina:

• Concentração de íons hidrogênio – a diminuição do pH desloca a curva-padrão para a di-


reita, enquanto que o aumento desloca para a esquerda, o que é conhecido como efeito Bohr.

62
Educação Continuada em Anestesiologia

O CO2 afeta a curva, influenciando o pH intracelular (efeito Bohr) e, por meio do acúmulo de
CO2, formando compostos carbamino. Os baixos níveis de compostos carbamino têm o efeito
de deslocar a curva para a direita, enquanto níveis mais elevados causam desvio à esquerda.
• Efeitos do 2, 3 DPG – elevados níveis deslocam a curva para a direita, enquanto que
baixos níveis causam deslocamento para a esquerda.
• Temperatura – a hipertermia provoca deslocamento para a direita, enquanto que hipoter-
mia provoca deslocamento para a esquerda.
• Monóxido de carbono – a hemoglobina liga-se ao monóxido de carbono 240 vezes mais
rapidamente do que ao O2 e, portanto, a presença de monóxido de carbono pode interferir
com a hemoglobina e a aquisição de O2. Além de diminuir o potencial da hemoglobina para se
ligar ao O2, o monóxido de carbono também tem o efeito de desviar a curva para a esquerda.
Com o aumento do nível de monóxido de carbono, uma pessoa pode sofrer de hipoxemia
grave, mantendo PaO2 normal.
• Hemoglobina fetal – a curva de dissociação fetal é deslocada para a esquerda em rela-
ção à curva do adulto normal. Normalmente, as pressões arteriais de O2 fetal são baixas e,
portanto, o deslocamento para a esquerda aumenta a absorção de O2 da placenta.

Farmacologia do sistema respiratório


O calibre das vias aéreas é regulado pela musculatura e pelo estado de insuflação pulmo-
nar. Aumento do volume pulmonar ocasiona aumento do calibre das vias aéreas, principal-
mente daquelas com menos de 1 mm de diâmetro.
Nos brônquios e bronquíolos há rica inervação parassimpática, via nervo vago. A liberação
de acetilcolina e ativação de receptores muscarínicos M3 causa broncoconstrição, principal-
mente das vias aéreas com menos de 1 mm de diâmetro.
Em condições normais, a célula muscular lisa das vias aéreas é relativamente quiescente
em decorrência da alta densidade de canais de potássio, levando a alta condutância de cál-
cio para fora da célula. O tônus colinérgico broncomotor tem pouca influência nos indivíduos
normais. Por outro lado, na doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), em que as vias
aéreas já se encontram estreitadas, o tônus vagal exerce grande influência. Assim, os antico-
linérgicos têm sido considerados como broncodilatadores de primeira linha na terapia escalo-
nada da DPOC, sempre que os sintomas se tornam persistentes. O mecanismo é a inibição
dos receptores muscarínicos da acetilcolina liberada pelas terminações nervosas hiperativas
livres. O brometro de ipatrópio é o principal anticolinérgico administrado por via inalatória. Ape-
sar de ter início de efeito retardado em relação aos β2-agonistas, apresenta efeitos aditivos no
tratamento de crises de broncoespasmo em associação com β2-agonistas.
Os receptores β-adrenérgicos estão presentes predominantemente nas vias aéreas mais
periféricas, enquanto que os receptores muscarínicos localizam-se predominantemente nas
vias aéreas de maior calibre. A ativação dos receptores β-adrenérgicos promove transdução
de sinal e ativação da guanilato ciclase. Essa enzima é responsável pela conversão de ade-
nosina trifosfato em adenosina monofosfato cíclico, que, por sua vez, ativa a proteína quina-
se A. Em seu estado ativado, proteína quinase A é responsável por ações que afetam a fun-
ção do músculo liso, incluindo hiperpolarização e redução do cálcio intracelular, dentre outras.
O principal efeito é o relaxamento muscular, que, no pulmão, produz broncodilatação. Outros be-
nefícios dos β2-agonistas são aumentar a frequência de batimento ciliar, resultando em clearance
mucociliar acelerado, e proteção contra estímulos broncoconstritores inespecíficos mediados pela
histamina, metacolina e adenosina. Além disso, apresentam propriedades anti-inflamatórias.
Os agentes agonistas adrenérgicos possuem em comum um anel de benzeno. Terbutalina, sal-
butamol e fenoterol são agonistas dos receptores β-adrenérgicos de curta duração e utilizados na

63
Educação Continuada em Anestesiologia

crise aguda de broncoconstrição. A maneira mais adequada de utilizar β2-agonistas com o objetivo de
broncodilatação e com menos efeitos adversos é por via inalatória. O salbutamol ou fenoterol pode ser
utilizado na dose média de 2,5 a 5 mg, em 2 a 5 ml de solução fisiológica para nebulização. A admi-
nistração deve ser feita por meio de máscara facial acoplada a um fluxo de O2. O aparelho nebulizador
deve produzir gotas de tamanho adequado (5 a 15 µm) de forma a produzir gotículas que alcancem as
vias aéreas inferiores. Outro modo de administração seria por meio de aerossóis dosimetrados.
Maior seletividade β2 é alcançada pelo aumento da massa da cadeia lateral de carbono
alfa. Recentemente, dois novos agentes, formoterol e salmeterol, foram desenvolvidos e,
devido às suas propriedades lipofílicas, demonstram atividade por até 24 horas. Embora o
formoterol seja ligeiramente menos lipofílico do que o salmeterol, ele entra na membrana plas-
mática, sob a forma de depósito, de onde é gradualmente liberado para a fase aquosa para
reagir com o β-receptor, resultando em prolongada duração de ação.
Formoterol e fenoterol são os agentes com a maior atividade intrínseca. Esses agentes são con-
siderados como agonistas totais, enquanto que salmeterol e salbutamol seriam agonistas parciais.
O início de ação do formoterol é equivalente ao dos agentes de curta duração, como salbutamol e
terbutalina, enquanto que salmeterol é o β2-agonista com maior tempo de duração do efeito. Um
agonista total apresenta vantagens durante episódios de broncoconstrição intensa desencadeados
por um estímulo antagonista broncoconstritor. Nessa situação, pode ocorrer dessensibilização dos
receptores β2 em decorrência da ativação da proteína quinase C que irá fosforilar a proteína G e não
permitir o acoplamento do receptor. Em situações estáveis, entretanto, a ação broncodilatadora de
um agonista parcial seria igual e não inferior. A ocorrência de efeitos colaterais (taquicardia, hipocale-
mia, tremor) com o uso de agonistas parciais, como salbutamol e salmeterol, é menor, uma vez que
a possibilidade de ativar receptores β2 fora do tecido-alvo diminui com um agonista parcial.
As xantinas (teofilina e aminofilina) têm sido cada vez menos utilizadas no tratamento de
doenças que cursam com broncoconstrição, como a asma. Em doses convencionais e não
tóxicas, o efeito broncodilatador é discreto. O índice terapêutico de tais medicações é baixo.
Contudo, apresentam outros efeitos benéficos, como imunomodulação, estimulação do movi-
mento ciliar e da contratilidade diafragmática. O mecanismo de ação é por meio da inibição da
enzima fosfodiesterase, que degrada o AMP-cíclico (AMPc), elevando os níveis dessa subs-
tância. O AMPc promove relaxamento da musculatura lisa brônquica. As xantinas possuem
também a propriedade de antagonizar a adenosina, que apresenta ação broncoconstritora.
Contudo, esse efeito é discreto em doses convencionais. Atualmente, as xantinas não têm
mais sido utilizadas na terapia aguda de crises de broncoespasmo em asmáticos. Sua função
encontra-se somente na terapia de manutenção em virtude de sua ação imunomoduladora.
A bamifilina é uma nova xantina com menos efeitos colaterais, sendo menos tóxica e com
meia-vida mais longa, promissora como substituta da aminofilina em terapia de manutenção.

Leitura recomendada

Benumof JL. Respiratory Physiology and Respiratory Miller RD. Anesthesia. 5th Ed, Philadelphia, Churchill Li-
Function during Anesthesia. In: Miller RD. Anesthesia. 5th vingstone, 2000.
Ed, Philadelphia, Churchill Livingstone, 2000; 578-618. Murray IF, Nade JA. Textbook of Respiratory Medicine. 3rd
Duke J. Anesthesia Secrets. 3rd Ed, Denver, Elsevier, 2006. Ed, Philadelphia, Saunders, 2000.
Guyton AC, Hall JE. Guyton Physiology Review. 1st Ed, Stoelting RK. Pharmacology & Physiology in Anesthetic
Philadelphia, Saunders, 2005. Practice. 4th Ed, Philadelphia, Lippincott-Raven, 2005.
Guyton AC, Hall JE. Textbook of Medical Physiology. 11th Stoelting RK, Miller RD. Basics of Anesthesia. 5th Ed, In-
Ed, Philadelphia, Saunders, 2006. dianapolis, Elsevier, 2007.

64
Capítulo 5
Efeitos dos anestésicos
inalatórios na resposta
inflamatória pulmonar após
ventilação monopulmonar
Marcelo Teixeira dos Santos
Educação Continuada em Anestesiologia

As cirurgias torácicas determinam uma série de repercussões fisiopatológicas que re-


querem várias considerações. Entre elas, alterações fisiológicas do próprio posicionamento
do paciente na mesa cirúrgica, como a posição de decúbito lateral, a abertura da pleura,
determinando um pneumotórax aberto, e, por fim, a necessidade de se utilizar a ventilação
monopulmonar.1
O posicionamento em decúbito lateral do paciente permite um acesso cirúrgico mais
eficiente para a maioria das cirurgias pulmonares, de pleura, esôfago, grandes vasos san-
guíneos, vértebras e estruturas mediastinais. Mas em contrapartida esse posicionamento
determina alterações de ventilação e perfusão pulmonares. Nos pacientes acordados em
ventilação espontânea a relação ventilação-perfusão se mantém preservada. Nesses ca-
sos, o pulmão dependente (inferior) recebe mais perfusão e ventilação que o pulmão não
dependente (superior). A alteração da relação ventilação-perfusão se acentua com indução
anestésica, início da ventilação mecânica, bloqueio neuromuscular, abertura da parede to-
rácica e retração cirúrgica. A perfusão passa a ser preferencialmente dirigida para o pul-
mão dependente (o que fica embaixo), enquanto a ventilação tende a ser desviada para o
pulmão não dependente (o que fica em cima), que se encontra menos perfundido. Essa
alteração aumenta o risco de hipoxemia.2
A indução da anestesia diminui a capacidade residual funcional, levando o pulmão não
dependente a uma posição da curva de complacência pulmonar (relação volume e pressão)
mais favorável, enquanto desloca o pulmão dependente para uma parte da curva menos
favorável. Logo o pulmão não dependente passa a ser mais ventilado e o dependente, mais
perfundido, alterando assim a relação ventilação-perfusão.
A ventilação mecânica em decúbito lateral favorece a ventilação do pulmão não depen-
dente, que se encontra mais acentuada com o uso de bloqueadores neuromusculares, em
que a elevação do hemidiafragma inferior empurrado pelo conteúdo das vísceras abdominais
dificulta mais ainda a ventilação do pulmão dependente, que é mais perfundido. Com a aber-
tura cirúrgica da parede torácica o pulmão não dependente passa a não ter mais restrição
alguma ao seu movimento e a relação ventilação-perfusão fica ainda mais comprometida.
A ventilação monopulmonar é uma modalidade de ventilação quase obrigatória em muitos
procedimentos cirúrgicos torácicos por permitir a deflação de um pulmão com o intuito de
melhorar o acesso cirúrgico. Mesmo sob colabamento o pulmão não dependente continua a
ser perfundido, desenvolvendo uma shunt direita-esquerda intrapulmonar da ordem de 20%
a 30%. Felizmente a resposta fisiológica da vasoconstricção hipóxica e a própria compressão
pulmonar cirúrgica diminuem a irrigação sanguínea do pulmão não ventilado, atenuando o
grau de shunt. Existem alguns fatores que diminuem a resposta da vasoconstricção pulmo-
nar hipóxica, como pressões arteriais pulmonares muito altas ou muito baixas, hipocapnia,
pressão parcial de oxigênio no sangue venoso misto alta ou muito baixa, vasodilatadores
como nitroglicerina, antagonistas de canais de cálcio, nitroprussiato de sódio e agonistas
β-adrenérgicos (dobutamina e salbutamol, p. ex.), infecção pulmonar e anestésicos inalató-
rios. A literatura tem sido controversa em relação ao papel dos anestésicos inalatórios sobre
a perda da resposta fisiológica da vasoconstricção pulmonar hipóxica.
A ventilação monopulmonar apresenta indicações absolutas e relativas. Entre as indica-
ções absolutas encontramos processos infecciosos limitados a um pulmão, bem como he-
morragia confinada a um pulmão no intuito de não haver contaminação do pulmão contralate-
ral. Distúrbios relacionados com a ventilação também são indicações absolutas, como fístula
broncopleural e presença de cistos ou bolhas em um pulmão. Entre as indicações relativas
poderíamos listar as de caráter de prioridade elevada para melhorar o acesso cirúrgico como
em aneurismectomia torácica, pneumectomia e lobectomia superior. Entre as de prioridade
baixa teríamos a cirurgia de esôfago e as lobectomias de lobo médio ou inferior.3

66
Educação Continuada em Anestesiologia

Durante a ventilação monopulmonar, fatores que determinam diminuição da perfusão


no pulmão dependente (ventilado) podem indiretamente alterar a resposta vasoconstritora
pulmonar hipóxica, favorecendo a redistribuição do fluxo sanguíneo pulmonar para o pul-
mão não dependente (não ventilado). Esses fatores seriam pressão média elevada das
vias aéreas devido ao aumento da pressão positiva expiratória final das vias aéreas (PEEP),
aumento da pressão de pico inspiratório ou hiperventilação, diminuição da fração inspirada
de oxigênio (FiO2), drogas vasoconstritoras que têm ação mais acentuada nos vasos nor-
móxicos que nos hipóxicos e PEEP intrínseca devido a tempo expiratório insuficiente.
A hipoxemia que pode estar presente durante a ventilação monopulmonar deve ser tratada
com algumas medidas estratégicas, como o aumento da fração de oxigênio inspirado (FiO2
de 1, embora essa estratégia possa aumentar a possibilidade de atelectasia de absorção),
volume corrente de 10 ml.kg-¹ no pulmão dependente com uma frequência respiratória que
corresponda a uma pressão parcial de gás carbônico (PaCO2) de 35 mmHg, pressão posi-
tiva expiratória final de 5 a 10 cm H2O no pulmão dependente com o intuito de aumentar a
capacidade residual funcional e aplicação de pressão positiva contínua de 5 a 10 cm H2O no
pulmão não dependente.
A ventilação mecânica com um volume corrente de 10 ml.kg-¹ é recomendada durante a
ventilação monopulmonar para se evitar atelectasias, diminuir o shunt intrapulmonar e man-
ter as trocas gasosas (manter a oxigenação arterial e a eliminação do dióxido de carbono).
Esse volume corrente corresponde ao mesmo valor que na ventilação dos dois pulmões.
A ventilação mecânica4 com alto volume corrente por si só pode induzir uma resposta
pulmonar inflamatória. Essa lesão pulmonar induzida pela ventilação é caracterizada por pro-
dução de citocinas, recrutamento leucocitário e destruição tissular neutrófilo-dependente.5
Diferentes mecanismos podem explicar a liberação de mediadores químicos e a ativação
celular, entre eles a força mecânica aplicada ao tecido pulmonar, que levaria a estiramento e
distensão das células alveolares, a reabertura de unidades alveolares e o aumento de pres-
são sobre a parede dos vasos sanguíneos pulmonares.6
Esse volume corrente mais alto, bem como o aumento das pressões de via aérea, como
ocorre na ventilação monopulmonar,7 induz uma reação inflamatória no compartimento intra-
-alveolar do pulmão dependente (ventilado), como já demonstrado em diversos estudos clíni-
cos e experimentais, caracterizada por aumento da permeabilidade capilar, edema pulmonar
e lesão difusa alveolar. O uso de pequeno volume corrente e baixa pressão inspiratória (ven-
tilação limitada a pressão e volume) é bastante favorável a pacientes que serão submetidos a
toracotomia. A ventilação monopulmonar determina lesões tanto no pulmão dependente (ven-
tilado) quanto no não dependente (não ventilado). Diversos estudos8 demonstraram que as
células epiteliais das vias aéreas secretam grande quantidade de moléculas imunes,9 como
moléculas de adesão (molécula de adesão intercelular solúvel 1 [s1CAM]), citocinas (fator
de necrose tumoral [TNF] alfa), interleucina-1-beta (IL 1-β), interleucina-6 (IL-6), interleucina-8
(IL-8) e quimiocinas (neutrófilo citocina induzido quimioatrativo 1 e monócito quimioatrativo
proteína 1 [MCP-1]).
As citocinas estão envolvidas em diversos estados patológicos do pulmão. O TNF-alfa
é uma citocina polipeptídica principalmente sintetizada pelos macrófagos/monócitos e está
associada a diversos estados inflamatórios críticos.
TNF-alfa, IL-6, IL-8 e MCP-1 são importantes quimioatrativos. Eles são responsáveis pelo
recrutamento de células como os neutrófilos e macrófagos alveolares. A produção desses
mediadores inflamatórios desempenha importante papel no início e na exacerbação da res-
posta inflamatória das vias aéreas.
Essa função imune pulmonar é influenciada por condições e doenças pulmonares
preexistentes, medicações, tabagismo, tipo e extensão do trauma cirúrgico pulmonar.

67
Educação Continuada em Anestesiologia

Os anestésicos venosos e inalatórios podem modular essa resposta inflamatória alveolar.


O uso de pequeno volume (5 ml.kg-¹) e a utilização de PEEP de 5 cm H2O são estra-
tégias para reduzir a inflamação, sendo chamada de estratégia de ventilação protetora .O
uso dessa estratégia de ventilação em modelo animal de leitões reduziu TNF-alfa e IL-8 no
plasma e IL-6 e IL-8 no pulmão ventilado. Essa modalidade de ventilação não influenciou
significativamente a PaO2 em leitões. O estudo preliminar precisa ainda de verificação de
sua aplicação em crianças.10
Entretanto existem poucos estudos sobre a resposta inflamatória do pulmão não depen-
dente (não ventilado temporariamente) durante o procedimento cirúrgico torácico.
Os anestésicos inalatórios têm demonstrado efeito cardioprotetor. Embora alguns trabalhos
evidenciem proteção antes da instalação da injúria, outros trabalhos demonstram proteção
mesmo após a instalação da injúria miocárdica isquêmica.11 Dois estudos clínicos mostraram
proteção miocárdica por parte do sevoflurano quando utilizado durante todo o procedimento
cirúrgico cardíaco. O efeito do sevoflurano sobre o pulmão em cirurgias torácicas com ven-
tilação monopulmonar é objeto de estudo e de trabalho publicado recentemente (2009) no
Anesthesiology. Os anestésicos voláteis como o sevoflurano e o isoflurano apresentam efeito
de atenuação da injúria cardíaca após isquemia-reperfusão.12 Lee et al. recentemente descre-
veram efeitos anti-inflamatórios diretos e antinecróticos em culturas de células renais humanas
após injúria.13 O sevoflurano atenuou a expressão dos mediadores inflamatórios, bem como o
acúmulo de neutrófilos em um modelo in vitro de injúria induzida por endotoxinas em células
epiteliais alveolares.14 Um estudo recente em pacientes demonstrou efeito imunomodulatório
do anestésico inalatório desflurano em pulmão dependente (ventilado com alto volume cor-
rente) durante ventilação monopulmonar.15
Um estudo clínico, randomizado e prospectivo publicado em 2009 no Anesthesiology
procurou elucidar o impacto da ventilação monopulmonar na resposta inflamatória pulmonar
em pulmão colapsado e verificar possíveis efeitos imunomodulatórios do anestésico inalatório
sevoflurano sob essa condição ventilatória em comparação com o anestésico venoso pro-
pofol. O lavado broncoalveolar coletado por meio de broncofibroscópio flexível em solução
salina a 0,9% estéril foi utilizado para quantificar os mediadores inflamatórios. A ventilação
monopulmonar resultou em aumento dos mediadores inflamatórios tanto do grupo do pro-
pofol quanto do sevoflurano, entretanto o aumento de todos os mediadores inflamatórios foi
significativamente maior no grupo do propofol, com exceção de interleucina-1-beta.
A intensidade da variação das citocinas se modificou ao longo do curso da ventilação
monopulmonar, seguindo um curso de aumento linear de até 120 minutos e em segui-
da um aumento tendendo a exponencial. Logo se conclui que os danos da ventilação
monopulmonar são tempo-dependentes. Essas alterações foram menos evidentes no
grupo do sevoflurano em relação ao do propofol. Com exceção das Interleucinas-1-beta,
o aumento de todos os outros mediadores inflamatórios foi maior no grupo propofol que
no sevoflurano.
A ventilação monopulmonar determinou aumento da presença de células polimorfonucle-
ares no lavado broncopulmonar tanto do grupo propofol quanto do sevoflurano em cerca de
10%. Particularmente, o aumento dos mediadores inflamatórios IL-1-beta, IL-6, IL-8 e MCP-1
mostrou uma correlação significativa com o aumento das células polimorfonucleares no grupo
propofol, mas não no grupo sevoflurano. Já entre os níveis de TNF-alfa e polimorfonucleares
não houve relação nos dois grupos.
A literatura tem revelado um papel bastante promissor dos anestésicos inalatórios na dimi-
nuição da resposta inflamatória pulmonar durante ventilação monopulmonar em procedimen-
tos cirúrgicos torácicos.

68
Educação Continuada em Anestesiologia

Referências bibliográficas

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8. De Conno E, Steurer MP, Wittlinger M et al. Anesthetic- 15. Schilling T, Kozian A, Kretzchmar M et al. Effects of
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9. Takizawa H. Airway epithelial cells as regulators of th. 2007;99:368-375.

69
Capítulo 6
Alterações cardiorrespiratórias
da apneia do sono e suas
implicações anestésicas
Celso Schmalfuss Nogueira
Fabio Vinicius Benevenuto Feltrim
Mary Neide Romero
Educação Continuada em Anestesiologia

Introdução
A Síndrome da Apneia Obstrutiva do Sono (SAOS) é a forma mais incidente dos distúrbios
respiratórios do sono. Nos Estados Unidos, estima-se que 2% das mulheres e 4% dos ho-
mens de meia-idade são portadores de SAOS.1 Contudo, a maioria dos pacientes não tem
diagnóstico e permanece sem tratamento.
Esses achados indicam que significante porção de indivíduos será programada para ci-
rurgias sem diagnóstico prévio e, como consequência, muitos pacientes serão anestesiados
sem os devidos cuidados, sem a avaliação da gravidade e a terapia necessária.
A SAOS pode ter forte impacto na qualidade de vida do paciente. Episódios recorrentes
de apneia, por vezes, resultam em hipoxia e hipercarbia, o que causa aumento do tônus sim-
pático, com impacto no sistema cardiovascular, alterações cognitivas – devido ao despertar
noturno periódico –, inadequado aprofundamento do sono e alterações na fase de rápido
movimento dos olhos (REM).
Os cuidados perioperatórios envolvem alterações no manuseio da via respiratória e com-
prometimento cardiovascular, principalmente nos casos mais graves e de longa duração.2

Definição e fisiopatologia
A SAOS é definida como uma pausa da respiração maior que 10 segundos durante o sono.
As desordens mais sérias dessa síndrome são definidas como 5 ou mais episódios de apneia/
ou hipopneia por hora, associadas a complicações respiratórias decorrentes da SAOS.3
A oclusão faríngea própria da SAOS resulta de um desequilíbrio de forças entre as pres-
sões positivas de estruturas perifaríngeas e intrafaríngeas, a pressão negativa inspiratória do
interior das vias aéreas e a complacência das paredes musculares da faringe. A compla-
cência faríngea é expressa pela mudança de dimensões da secção transversa desse órgão
por unidade de pressão e, caracteristicamente, encontra-se aumentada nos portadores de
SAOS, contribuindo para a colapsabilidade das paredes musculares no estado de sono.
A relação adequada entre as estruturas moles perifaríngeas e as ósseas de contenção da
faringe, bem como o bom funcionamento neuromuscular dos músculos faríngeos, determina a
estabilidade necessária para a manutenção da permeabilidade desse tubo muscular durante o
sono. O balanço perfeito entre a carga mecânica faríngea e o controle dinâmico neuromuscular
que existe nos pacientes normais costuma estar alterado na SAOS por diversos fatores. São eles:

• a forma da orofaringe;
• as condições e o volume das partes moles circunjacentes;
• a configuração craniofacial;
• o baixo posicionamento do osso hioide;
• a atividade neuromuscular;
• a instabilidade de controle respiratório;
• o efeito fisiológico do sono sobre as vias respiratórias superiores;
• o aumento da adesividade das paredes opostas da faringe, além de outros mecanismos
ainda não bem compreendidos.4

Prevalência

A SAOS é o mais prevalente distúrbio respiratório durante o sono, com uma incidência da
população geral estimada em 1 para cada 4 homens e 1 para cada 10 mulheres nos casos
moderados. Ela é mais prevalente no sexo masculino e em obesos.5
A despeito desses conceitos, a SAOS isoladamente não parece ser um fator de risco in-

72
Educação Continuada em Anestesiologia

dependente nos pacientes ambulatoriais, e sua importância como fator de risco em grandes
cirurgias também é incerta.
A associação da síndrome com múltiplas comorbidades causa aumento perioperatório de
arritmias, complicações respiratórias e suspeita-se que acarreta o aumento da incidência de
infarto agudo do miocárdio (IAM).6
A SAOS é associada com várias comorbidades: doença cardiovascular, incluindo IAM,
insuficiência cardíaca, disritmias, hipertensão arterial, doença cerebrovascular, síndrome me-
tabólica, obesidade e refluxo gastresofágico.7

Tabela 6.1: Comorbidades associadas e sua prevalência

Categoria Condição Prevalência (%)


Hipertensão arterial sistêmica resistente ao tratamento 63-83
Insuficiência cardíaca congestiva 76
Cardíacas Doença isquêmica do coração 38
Fibrilação atrial 49
Arritmias 58
Asma 18
Respiratórias
Hipertensão pulmonar 77
Neurológicas Primeira vez do curso 71-90
Diabetes Mellitus tipo II 36
Síndrome metabólica 50
Metabólicas
Hipotireoidismo 45
Obesidade mórbida 50-90
Cirurgia bariátrica 71
Cirúrgicas Cirurgia dos tumores intracranianos 64
Cirurgia de epilepsia 33
Doença do refluxo gastroesofágico 60
Noctúria 48
Outros Alcoolismo 17
Glaucoma primário de ângulo aberto 20
Câncer de cabeça e pescoço 76

Avaliação pré-anestésica do paciente com SAOS


Como grande quantidade desses pacientes não tem diagnóstico, a identificação antes
da anestesia é importante, para que possam ser providenciados os cuidados adequados ao
quadro apresentado.
Em 2003, o Comitê da Academia Americana de Medicina do Sono sugeriu que uma série
de questionamentos fosse feita para fazer o diagnóstico e avaliar a gravidade da SAOS. Por
razões de segurança, a ferramenta de seleção deve ter um alto grau de sensibilidade, em
detrimento de menor especificidade.
Em 2006, a Sociedade Americana de Anestesiologistas (ASA) desenvolveu um questio-
nário conciso e fácil de usar:

73
Educação Continuada em Anestesiologia

• O questionário STOP (S: roncam alto; T: cansaço diurno; O: observação da parada respi-
ratória durante o sono; P: pressão arterial elevada).
• Ao incorporar quatro variáveis ​​adicionais, com a sigla BANG:7 B: Índice de Massa Corporal
(MC, calculado como peso em quilogramas dividido pelo quadrado da altura em metros) > 35
kg/m2; A: mais de 50 anos; N: circunferência do pescoço maior que 40 cm; G: sexo mas-
culino), o questionário STOP-BANG (ver Tabela 6.2)8 melhorou a sensibilidade. Sendo mais
eficiente que os questionários, Berlim e ASA checklist usados inicialmente.9,10

Tabela 6.2: Ferramentas de triagem SAOS

Questionário STOP

1. Ronco: você ronca alto (o suficiente para ser ouvido através de portas fechadas)?
Sim / Não
2. Cansaço: você frequentemente se sente cansado ou sonolento durante o dia?
Sim / Não
3. Observação: alguém já notou que você para de respirar durante o sono?
Sim / Não
4. Pressão arterial: você tem ou está sendo tratado de hipertensão arterial?
Sim / Não
Alto risco de SAOS: responder “sim” a 2 ou mais perguntas.
Baixo risco de SAOS: responder “sim” a menos de 2 perguntas.

STOP-BANG: pontuação-modelo

1. Ronco: você ronca alto (o suficiente para ser ouvido através de portas fechadas)?
Sim / Não
2. Cansaço: você frequentemente se sente cansado ou sonolento durante o dia?
Sim / Não
3. Observação: alguém já notou que você para de respirar durante o sono?
Sim / Não
4. Pressão arterial: você tem ou está sendo tratado de hipertensão arterial?
Sim / Não
5. IMC: superior a 35 kg/m2?
Sim / Não
6. Idade: superior a 50 anos?
Sim / Não
7. Circunferência do pescoço: maior que 40 cm?
Sim / Não
8. Sexo: masculino?
Sim / Não
Alto risco de SAOS: responder “sim” a 3 ou mais itens.
Baixo risco de SAOS: responder “sim” a menos de 3 itens.6

74
Educação Continuada em Anestesiologia

Tabela 6.3: Questionários de triagem para SAOS

Questionário de STOP-BANG
ASA Checklist STOP Questionário
Berlim Questionário
Netzer et al., 2003 Gross et al., 2006 Chung et al., 2008 Chung et al., 2008
Médico-administrado Médico-administrado Autoadministrado Médico-administrado
Validado no contexto
Validado no período Validado no período Validado no período
dos cuidados primários e
perioperatório perioperatório perioperatório
perioperatórios
10 itens 14 itens 4 itens 8 itens
Três categorias:
Três categorias: ronco,
características pré-
sonolência diurna e Não há categorias Não há categorias
disponentes, sintomas da
condução
SAOS e reclamações
de alto risco, se houver de alto risco, se houver de alto risco, se houver 2 de alto risco, se houver 3
2 ou mais categorias de 2 ou mais categorias de ou mais itens de pontua- ou mais itens de pontua-
pontuação positiva pontuação positiva ção positiva ção positiva
Para IAH > 30 Para IAH > 30 Para IAH > 30 Para IAH > 30
Sensibilidade 87% Sensibilidade 87% Sensibilidade 80% Sensibilidade 100%
Especificidade 46% Especificidade 36% Especificidade 49% Especificidade 37%
PPV 32% PPV 28% PPV 30% PPV 31%
VAL 93% VAL 91% VPN de 90% VAL 100%
Para IAH > 15 Para IAH > 15 Para IAH > 15 Para IAH > 15
Sensibilidade 79% Sensibilidade 79% Sensibilidade 74% Sensibilidade 93%
Especificidade 51% Especificidade 37% Especificidade 53% Especificidade 43%
PPV 51% PPV 45% PPV 51% PPV 52%
VAL 78% VAL 73% VAL 76% VPN de 90%
Melhorar a sensibilidade
Complicado processo de Médico necessário para
Conciso, fácil de usar em comparação com o
pontuação concluir checklist
questionário STOP
IAH = Índice de apneia e hipoapneia; VPL = valor preditivo negativo; PPV = valor preditivo positivo.

Alterações cardiovasculares da apneia do sono


Em pacientes com o sono normal, principalmente durante o estágio do sono de ondas
lentas, ocorre diminuição importante do tônus do SNS, que leva a um relaxamento vascular
periférico, e a pressão arterial chega a diminuir 30% do valor inicial, além da diminuição da
frequência respiratória e do metabolismo basal.11
O consumo de energia do SNC também é reduzido, secundário à redução da atividade ce-
rebral. No sono tipo REM, há maior atividade encefálica e, também, aumento do tônus simpático,
entretanto, esse aumento ainda não é suficiente para alcançar os níveis do indivíduo acordado.
A SAOS é caracterizada por obstrução parcial ou completa das vias respiratórias superiores du-
rante o sono, com consequentes períodos de dificuldade inspiratória e hipoventilação. As alterações
cardiovasculares desencadeadas pela SAOS devem ser entendidas sob dois aspectos, que são:

• alterações secundárias à hipoxemia e hipercarbia causadas pela hipoventilação;


• alterações provocadas por pressão interpleural negativa.

Alterações secundárias à hipoxemia

Os episódios de hipoventilação presentes na SAOS causam hipoxemia e hipercarbia,


e o resultado imediato é a ativação do SNS e a liberação de noradrenalina.12 Já o motivo

75
Educação Continuada em Anestesiologia

da persistência dos sinais de hiperatividade simpática ainda não foi elucidado. Os níveis de
metabólitos das catecolaminas na urina permanecem altos, mesmo durante o dia, e existe
correlação entre essas concentrações e os baixos níveis de saturação da oxi-hemoglobina
durante os eventos. Os seios carotídeos parecem ser os responsáveis por manter o tônus
simpático elevado como resposta à hipoxia noturna.
A hipoxia e consequente ativação do simpático também desempenham papel importante
na manutenção dos elevados níveis de variabilidade da pressão arterial. O uso do CPAP
(continuos positive airway pressure) foi eficiente em reduzir os níveis pressóricos de pacientes
com SOAS e hipertensão arterial sistêmica.13
Hipercarbia e hipoxia e sua consequente descarga adrenérgica também podem estar na
origem da maior prevalência de arritmias cardíacas encontradas nesse grupo de pacientes,
entretanto, o tipo de arritmia e a sua real prevalência ainda são controversos na literatura médica.
Os sucessivos e recorrentes episódios de diminuição e normalização da oximetria e o
ambiente hipóxico resultante dessa variação favorecem a formação de espécies oxigênio-
-reativas e quantidades aumentadas de substância pró-inflamatórias, com consequente dis-
função endotelial e déficit no relaxamento vascular.14
Somado a isso temos o aumento de consumo de O2 pelo miocárdio, devido a taquicardia
provocada pela ativação do SNS. Esse cenário, na teoria, pode favorecer o aparecimento de
doença coronariana e eventos cardíacos isquêmicos. Entretanto, os estudos que tentam cor-
relacionar a doença da artéria coronária e a SAOS apresentam limitações importantes, pois
ambos compartilham vários fatores desencadeantes como obesidade, sexo masculino e idade.

Alterações provocadas por pressão interpleural negativa

A pressão intratorácica excessivamente negativa, que é resultado da tentativa de inspi-


ração contra uma via aérea superior obstruída, pode levar a uma queda transitória no débito
cardíaco com imediata ativação de barorreceptores e descarga simpática. Laaban et al. en-
contraram relação proporcional entre disfunção sistólica esquerda e maior número de eventos
de apneia por hora.
Estudos que avaliaram a função diastólica esquerda também encontraram a mesma rela-
ção.12 A mudança repetitiva nas pressões intratorácicas, que acompanham os episódios de ap-
neia, pode ser uma das causas das disfunções diastólicas e sistólicas do ventrículo esquerdo.
As alterações cardiovasculares secundárias à SAOS têm sido olhadas cada vez com mais
atenção pelos cardiologistas, e o anestesiologista deve estar atento, pois pacientes com his-
tória positiva podem apresentar complicações além daquelas relacionadas à via aérea.

Alterações respiratórias da apneia do sono


O colapso parcial ou total da faringe durante a inspiração é a causa da SAOS. Pode ocor-
rer em qualquer parte da faringe, indo do palato mole até a hipofaringe posterior e a língua.15
A oclusão ocorre quando as forças que tendem ao fechamento das vias aéreas su-
periores (ou a pressão intraluminal negativa produzida pela contração do diafragma) su-
peram a dos músculos dilatadores da faringe. O esforço respiratório para vencer a obs-
trução apenas consegue agravar a oclusão ao aumentar a pressão de sucção. Com a
interrupção de ar pela apneia, ocorre estimulação central com microdespertar, que deter-
mina a abertura da orofaringe e a volta da respiração. Quando volta o sono, os músculos
da orofaringe, mais uma vez, relaxam, e todo o processo se inicia novamente, podendo
repetir-se centenas de vezes durante a noite. O resultado é baixa qualidade de sono com
consequente sonolência diurna.

76
Educação Continuada em Anestesiologia

A anestesia, assim como o sono, pode ser um fator desencadeante da obstrução das vias
aéreas superiores, pois induz a redução na ativação dos músculos dilatadores da faringe e do
volume pulmonar, com consequentes dificuldades na função das vias respiratórias no período
perioperatório. A posição sentada diminui a colapsibilidade passiva da faringe em pacientes
com SAOS anestesiados e sob bloqueio neuromuscular total.16
A posição sniffing (farejador) estruturalmente melhora a manutenção das vias respiratórias
faríngeas passivas em pacientes com SAOS e pode ser benéfica para a ventilação com más-
cara e intubação traqueal durante a indução da anestesia. O tamanho da colapsibilidade das
vias aéreas faríngeas é determinado pela interação entre as propriedades estruturais das vias
respiratórias faríngeas e a regulação neural dos músculos dilatadores da faringe.
A obesidade parece ter duas distintas influências mecânicas na colapsibilidade das vias
aéreas faríngeas.16 Em primeiro lugar, ocorre aumento dos tecidos moles ao redor da via aé-
rea faríngea dentro da caixa maxilomandibular, que ocupa e reduz seu espaço (desequilíbrio
anatômico da faringe). Em segundo, na obesidade, especialmente na central, há aumento da
gordura visceral com diminuição do volume pulmonar.
A colapsibilidade da parede faríngea é aumentada, ainda, pela diminuição do volume pul-
monar, possivelmente por causa da diminuição da tração longitudinal da traqueia. A compen-
sação neural para funcionamento das anormalidades estruturais durante a vigília é perdida
durante o sono, que leva à obstrução da faringe. A instabilidade do feedback negativo do
sistema respiratório pode acelerar o ciclo de fechamento e abertura da faringe. Conclui-se,
então, que a melhoria do desequilíbrio anatômico da faringe e manutenção do volume do
pulmão são as chaves para o manejo seguro das vias aéreas perioperatórias de pacientes
obesos com SAOS.17
Os fatores anatômicos que obstruam as vias aéreas, como hipertrofia das tonsilas ou das
adenoides, além de obesidade e hipoplasia mandibular, aumentam a possibilidade do colap-
so das vias aéreas. Anestesia tópica de boca ou nariz, por abolir a sensação das mucosas,
também promove SAOS. Nesse caso, fumantes são mais propensos à obstrução.
Fatores que aumentam a resistência das vias aéreas nasais e elevam a pressão inspira-
tória subatmosférica levam à piora do colapso, sendo este o fator precipitante mais comum
no Reino Unido.
Sessenta e seis por cento dos pacientes com intubação difícil inesperada, os quais con-
sentiram em se submeter a um estudo do sono, foram diagnosticados com SAOS pela polis-
sonografia. Logo, a seleção para SAOS deve ser considerada para encaminhamento a uma
clínica de sono para polissonografia.
Um estudo entre anestesiologistas canadenses demonstrou variação no acompanhamen-
to pós-operatório de pacientes com SAOS. A maioria dos pesquisados atesta que não exis-
tem protocolos departamentais e acredita que estas orientações iriam ajudá-los na prestação
de cuidados aos pacientes com SAOS.

Consequências respiratórias

O colapso parcial ou total das vias aéreas leva à hipoxemia e hipercarbia, o que pode
causar sérias consequências na saúde do paciente.
A pressão positiva contínua das vias aéreas (CPAP) é um dos métodos empregados nos pa-
cientes com SAOS graves. São usadas máscaras, circuitos respiratórios e bombas com pressão
entre 5 e 15 cmH2O. Casos de extrema gravidade podem necessitar de traqueostomia, que é o
único tratamento cirúrgico com o qual ocorre abolição completa dos episódios de apneia.
Os fatores mais potentes capazes de desencadear SAOS são a adiposidade, principal-
mente a central, o fato de ser do sexo masculino e a idade avançada.

77
Educação Continuada em Anestesiologia

A obesidade aumenta a colapsabilidade faríngea tanto pelo efeito mecânico dos tecidos
moles do pescoço sobre a faringe e da redução do volume pulmonar, que acontece nesses
pacientes, quanto por deterioração do controle neuromuscular, vinculado à ação de adipo-
cinas. Com o aumento progressivo da obesidade, a SAOS pode contribuir para instalação,
nesses pacientes, de hipoventilação alveolar, desenvolvimento de hipertensão vascular pul-
monar, cor pulmonale e insuficiência respiratória aguda.
A distribuição central da gordura responde também pela maior predominância do sexo
masculino no desenvolvimento da SAOS, enquanto a adiposidade periférica e a ausência
de testosterona possivelmente protegem as mulheres contra as apneias obstrutivas.18
O envelhecimento contribui para o aumento da prevalência da SAOS por meio do papel
na diminuição progressiva da complacência das vias aéreas superiores, com consequen-
te aumento da predisposição ao colapso. Portadores de sintomas mais graves costumam
acordar com sensação de sufocamento, refluxo esofágico, boca seca, espasmo da laringe e
vontade de urinar. Além desses sintomas, traumas repetidos determinados pelo ronco podem
levar à inflamação na mucosa e na camada muscular do palato mole, com a enervação da
mucosa das vias aéreas superiores, o que resulta na diminuição sensorial e motoratividade
na via aérea superior.

Avaliação pré-operatória
Após a SAOS ser identificada, o próximo passo é decidir o que fazer antes do procedi-
mento cirúrgico. Se a cirurgia não for uma urgência, deve-se enviar o paciente a um espe-
cialista em sono para fazer uma avaliação da gravidade. Há varias vantagens decorrentes
dessa conduta.
Se o diagnóstico for confirmado, a terapia com CPAP pode ser iniciada oferecendo a van-
tagem de adequar o nível de CPAP requerida no perioperatório.

Vantagens por CPAP nasal no pré-operatório

• Neutraliza a contração das vias aéreas.


• Oferece vantagens quando o anestesiologista opta por não manusear as vias aéreas.
• Decresce o volume da língua e aumento da cavidade faríngea, se for aplicado por
4 a 6 semanas antes do procedimento cirúrgico, o que propicia melhor qualidade da
intubação traqueal.
• Propicia melhor função pulmonar e menor morbidade nos pacientes obesos com SAOS
após a extubação.

Preparação da anestesia em pacientes com apneia obstrutiva do sono


Há relação entre SAOS e dificuldade na intubação orotraqueal (IOT), por isso, cuidados
pré-operatórios devem ser observados.
• Medir a circunferência do pescoço, que é associada à gravidade da SAOS e à dificuldade
de intubação.
• Questionar sobre a existência de refluxo gastresofágico.
• Prescrever CPAP nasal, recomendação primária nas cirurgias eletivas. Nos pacientes com
comprometimento cardíaco, o uso do CPAP durante quatro semanas resulta em aumento
de 35% na fração de ejeção, diminuição da pressão arterial sistêmica e frequência cardíaca.
• Recomendar perda de peso.
• Pedir que o paciente evite a ingestão de bebidas alcoólicas e café.7,19

78
Educação Continuada em Anestesiologia

Anestesia no paciente com apneia obstrutiva do sono


Farmacocinética

Há evidências que os agentes anestésicos causam exagerada resposta nos pacientes


com SAOS, pois reduzem o tônus da musculatura faríngea responsável pela patência das
vias aéreas – (propofol, opioides e benzodiazepínicos).
No caso de crianças com SAOS e hipertrofia amigdaliana, a resposta ao CO2 é diminuída
com o uso de halotano.
Com relação a crianças intubadas em uso de halogenado, em respiração espontânea, a
administração 0,5 µg/kg de fentanil deprime a respiração nas portadoras de SAOS 50% a
mais que nas não portadoras.
Fármacos de ação mais rápida são mais atrativos porque se espera um despertar mais
rápido e retorno da função respiratória com mais precocidade.20

Técnica anestésica

Não existem evidências que o risco perioperatório em pacientes com SAOS tenha relação
com o tipo ou a técnica anestésica empregada. O porte cirúrgico, no entanto, tem importân-
cia relevante.21
Anestesia regional com nível mínimo de sedação, a qual implica rápido despertar,
pode ser a escolha em determinadas cirurgias, mas é capaz de aumentar o risco de
hipoventilação.22
A intubação orotraqueal difícil deve ser esperada, portanto, técnicas alternativas e
material disponível devem ser providenciados. Dexmedetomidina, combinada a agentes
inalatórios, propicia condições intraoperatórias satisfatórias sem efeitos hemodinâmicos
adversos.24

Monitoração

A monitoração deve ser guiada pelo tipo de cirurgia e pelas comorbidades associadas.
O ECO transesofágico é útil na monitoração da função cardíaca, mas não pode ser usado em
cirurgias envolvendo as vias aéreas.
Alcalose metabólica pode resultar em hipoventilação, o que é indesejável nesses pacien-
tes. Dessa forma, a manutenção do bicarbonato em níveis basais é recomendada.

Guia para o manuseio da anestesia no paciente com apneia do sono

• Planejar a anestesia.
• Controlar rigidamente a via aérea visando com intuito de minimizar hipoxia secundária à
obstrução ou apneia.
• Sedar de maneira titulada e rigorosamente monitorada.
• Dar extrema atenção à pré-oxigenação e ter disponível uma máscara laríngea durante a
ventilação espontânea.
• Recomendar a realização de bloqueios em posição lateral, uma vez que a faringe é mais lar-
ga em posição lateral do que em posição supina, o que pode limitar a obstrução respiratória.
• Realizar anestesia com inalatórios ou venosos de eliminação mais rápida.
• Usar bloqueadores neuromusculares monitorados e antagonizados.
• Evitar opioides que podem exacerbar os sintomas na analgesia pós-operatória.
• Usar AINH ou bloqueios anestésicos é mais seguro nessa situação, em que efeitos adver-

79
Educação Continuada em Anestesiologia

sos respiratórios ocorrem com o uso oral, parenteral e peridural de opioide.


• Não fazer uso de PCA.
• Realizar oximetria durante a noite.

Implicações durante o pós-operatório


Sala de Recuperação Pós-Anestésica (SRPA)

• Tempo de permanência: exige um tempo de permanência maior.


• Sedação farmacológica: decresce o tônus dos músculos faringeanos superiores, tole-
rado em muitos pacientes, mas a combinação com SAOS pode causar comprometimento
da via respiratória.
• Oxigenação contínua: deve ser mantida com cânula nasal ou máscara.
• CPAP: se o paciente não mantiver a saturação.
• Posição: a cabeça deve ser elevada pelo menos a 30° para aumentar a estabilização das
vias aéreas. A mudança da posição supina para sentada contribui significativamente para
evitar colapso das vias aéreas.
• Hipercapnia: pode ser causa de hipertensão, e a medida da pressão arterial deve ser foco
de observação constante.
• A alta da SRPA no paciente com SAOS é uma decisão difícil. É necessário avaliar o índice
de apneia-hipopneia, dependência de CPAP para dormir, insuficiência cardíaca direita ou
esquerda e doença pulmonar.26-28
Pacientes com SAOS de mínima ou média intensidade, sem comorbidades, submetidos
a pequenas cirurgias podem ter alta no dia da cirurgia.
Pacientes com SAOS moderada ou intermediária, submetidos à cirurgia de risco interme-
diário, devem permanecer o tempo suficiente para a segurança deles.
Pacientes com SAOS severa que requerem CPAP, portadores de numerosas comorbidades,
devem permanecer na SRPA ou Unidade de Terapia Intensiva, dependendo do tipo de cirurgia.
Oximetria de pulso durante o período noturno deve ser observada pela enfermagem.25
Evitar hiperidratação, pois esta poderá contribuir para insuficiência biventricular.
Monitoração: deve ser contínua por uma média de sete horas após o último episódio de
apneia do sono ou quando houver hipoxemia documentada em pacientes respirando ar.
A privação ou fragmentação do sono no pós-operatório decorrentes da anestesia e
cirurgia produzem apneia e/ou dessaturação em pacientes sem SAOS na segunda e
terceira noites.
A fase do sono REM reaparece com maior intensidade e duração e, normalmente, não
ocorre na primeira noite. Nos pacientes com SAOS há efeito rebote com duração de até sete
dias, principalmente quando estes forem submetidos à cirurgia significativa, tendo como con-
sequências alterações hemodinâmicas e cognitivas

Como tratar a dor pós-operatória

O uso de narcóticos é especialmente perigoso.


Os anti-inflamatórios não esteroides podem ser administrados com segurança e diminuem
em 20% a 35% a necessidade de opioides. O uso de dexmedetomidina reduz o requerimento
de opioides, a agitação e os episódios de dessaturação no pós-operatório.29 A Tabela 6.4
resume os cuidados perioperatórios do paciente com SAOS.

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Educação Continuada em Anestesiologia

Tabela 6.4: Manuseio anestésico do paciente com SAOS

Fase Preocupação Anestésica Princípios de Gestão


Evidências indiretas defendendo a utilidade do PAP
Arritmias cardíacas e perfil para reduzir as arritmias cardíacas, estabilizar a pres-
hemodinâmico instável são arterial variável e diminuir o consumo de oxigênio
pelo miocárdio
Estratificação de riscos pré-operatórios e otimização
Comorbidades multissistêmicas Manejo intraoperatório individualizado
Anestésico adaptado às comorbidades

Pré-operatório 2 agoniza
(adrenérgico clonidina, dexmedetomidina)
Pré-medicação sedativa Pré-medicação intraoperatória pode reduzir os
requisitos de anestesia e tem um efeito poupador
de opioides
Consulta anestésica pré-operatória para avaliação
SAOS: estratificação de risco, dos sintomas, das vias aéreas,
avaliação e otimização polissonografia
Formulação de anestesia gestão
Sniffing-posição23
Dificuldade de intubação Rampa da escápula à cabeça
Intra operatório
(8 vezes mais prevalente) Oxigenação adequada ASA algoritmo
de via respiratória difícil
Opioides: evitar ou minimizar
uso de agentes de curta duração
Opioide: relacionado à depressão
regional e analgesia multimodal (anti-inflamatórios
respiratória
não hormonais, paracetamol, tramadol, cetamina,
gabapentina, pregabalina, dexametasona)
Intra-operatório
Efeitos de transferência de sedação Uso de propofol para manutenção de anestesia
mais prolongada, sedativos intraveno- Uso de agentes anestésicos potentes insolúveis
sos e agentes anestésicos inalatórios (desflurano)
Sedação excessiva no atendimento Uso de capnografia para
anestésico monitorado monitoramento intraoperatório
Verifique a reversão completa do
bloqueio neuromuscular
Reversão de Pós-extubação obstrução das vias
Certifique-se de que o paciente esteja totalmente
anestesia aéreas e dessaturações
consciente e cooperativo antes da extubação
Tenha uma postura de cobrança
Litotripsia, superficial ou menor cirurgias ortopédi-
cas, utilizando técnicas locais ou regionais podem
ser consideradas para cirurgia do ambulatorial
Aptidão para a cirurgia caso do
Nenhuma exigência de opioides no pós-operatório
dia
em altas doses
Pós-operatório Transferência de acordo para instalação de interna-
imediato ção deve estar disponível
Mais tempo de acompanhamento na SRPA, com
Pós-operatório de eventos
monitorização da oximetria contínua e terapia PAP,
respiratórios em conhecidos e
pode ser necessário se os eventos recorrentes SRPA
suspeitos pacientes de alto risco
respiratórias ocorrem (desnaturação, apneia,
com SAOS
bradipneia, incompatibilidade sedação da dor)

Fonte: Seet E, Chung F. Management of sleep apnea in adults – functional algorithms for the perioperative period:
Continuing Professional Development. Can J Anaesth, 2010; 57:849-64.

81
Educação Continuada em Anestesiologia

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82
Capítulo 7
Mecanismos moleculares
de neuroproteção dos
anestésicos inalatórios
Glauber Gouvêa
Educação Continuada em Anestesiologia

Introdução
Desde a década de 1960, é sabido que os agentes inalatórios podem proporcionar algum
grau de neuroproteção.1 A capacidade que os anestésicos têm de diminuir a taxa metabólica
cerebral de O2 (CMRO2) foi considerada durante muito tempo como o principal mecanismo
neuroprotetor. Entretanto, a diminuição da CMRO2 não consegue explicar outros efeitos be-
néficos supostamente relacionados às drogas inalatórias.2 De fato, pesquisas recentes têm
mostrado que outros fatores estão envolvidos, e, nas duas últimas décadas, tem havido um
interesse maior a respeito dos mecanismos moleculares relacionados à proteção cerebral.
O objetivo desta revisão é detalhar os principais mecanismos e eventos moleculares envolvidos
na neuroproteção ocasionada pelos anestésicos inalatórios. A partir de um melhor entendimento
desses eventos, o anestesiologista poderá utilizar, de forma racional, algumas propriedades benéfi-
cas da técnica inalatória em procedimentos nos quais haja risco de isquemia/hipóxia (I/H) cerebral.

Conceitos e definições
De forma abrangente, pode-se definir neuroproteção como um conjunto de condutas
iniciadas antes, durante ou após um insulto I/H cerebral, com o objetivo primário de evitar ou
reduzir a área total de lesão neuronal irreversível (necrose).2 Alguns autores3 caracterizam as
condutas de acordo com o tempo preciso em que elas são realizadas. Sob esse aspecto, e
de forma prática, a intervenção pode ocorrer em três tempos:

• antes da isquemia – p. ex.: pré-condicionamento isquêmico e anestésico;


• durante a isquemia – o que seria denominado neuroproteção propriamente dita; e
• após a isquemia – p. ex.: pós-condicionamento, neurroressuscitação.

As condutas básicas tidas como neuroprotetoras são familiares de todo anestesiologista e


incluem: manutenção da oxigenação e ventilação, suporte circulatório sistêmico e da hemo-
dinâmica cerebral (como controle da pressão intracraniana), controle glicêmico e hipotermia
em algumas situações clínicas.
Em relação à hipotermia, tem havido ao longo dos anos uma dificuldade em se reproduzir
os resultados satisfatórios encontrados no laboratório para a situação real em humanos. Isso
se deve a vários fatores:

• As condições experimentais não conseguem reproduzir fielmente as situações reais que


ocorrem em humanos.
• O grau de hipotermia utilizado, assim como o momento em ela é induzida (antes do evento
isquêmico, durante ou após), e, por fim, a duração (algumas horas após o evento somente,
ou 24 horas) varia consideravelmente entre os estudos.
• O mecanismo de lesão experimental (trauma, ligadura da cerebral média) também varia
entre os estudos.
• A maioria dos animais está sob anestesia durante o estudo, o que, dependendo da situa-
ção, não é ideal para considerarmos como grupo-controle.

Na prática clínica, a controvérsia em relação à hipotermia permanece. De fato, o estudo


IHAST4 (International Hypothermia Aneurysm Surgical Trial) mostrou que durante cirurgia de
aneurisma cerebral, a hipotermia induzida no intraoperatório não provou alterar o prognóstico
do paciente. Em contrapartida, estudos recentes comprovaram que a hipotermia pode ser
benéfica, especificamente no contexto de retorno da circulação espontânea pós-parada car-
díaca fora do ambiente hospitalar.5,6

84
Educação Continuada em Anestesiologia

Várias drogas já foram pesquisadas na tentativa de se prevenir ou atenuar a lesão neuronal:


lidocaína, sulfato de magnésio, cetamina, entre outras.2,3,7 Entretanto, muitas perguntas ainda
permanecem sem respostas e na luz do conhecimento atual nenhuma dessas drogas pode
ser considerada como indicação classe I na prevenção e/ou tratamento de isquemia cerebral.7

Técnica anestésica e neuroproteção


Os agentes inalatórios podem ocasionar vasodilatação cerebral, aumento do fluxo san-
guíneo cerebral (FSC) e tendência a aumentar a pressão intracraniana (PIC) em pacientes
com a elastância cerebral comprometida. Considerando-se essas características, se pode-
ria dizer que a técnica inalatória não é ideal em pacientes neurocirúrgicos. Entretanto, não
há evidência clínica a respeito da influência negativa dos agentes inalatórios no prognóstico
do paciente neurocirúrgico, especialmente depois da introdução de drogas mais moder-
nas. Em um estudo recente, Kanbak et al.8 randomizaram vinte (N=20) pacientes subme-
tidos à cirurgia cardíaca em dois grupos: isoflurano versus propofol. O desfecho analisado
foi a avaliação neuropsíquica e a dosagem da proteína S-100β (marcador bioquímico de
injúria cerebral) no pós-operatório. Não houve diferença entre os dois grupos em relação ao
desfecho clínico, mas no grupo propofol houve aumento significativo da proteína S-100β
em relação ao grupo isoflurano.
Isso pode ser, em parte, explicado pelo fato de que os efeitos deletérios dos anestésicos
inalatórios sobre a hemodinâmica cerebral são dose-dependente. Clinicamente, os inalató-
rios são, em geral, administrados em doses relativamente baixas (aproximadamente 1 CAM)
quando utilizados como agentes primariamente hipnóticos, fazendo parte de uma técnica
anestésica combinada ou balanceada. Nessas doses, os efeitos na hemodinâmica cerebral
são mínimos (desde que haja normocapnia). Não obstante, os anestésicos inalatórios podem
proporcionar neuroproteção mesmo em baixas doses, o que não pode ser justificado somen-
te com a diminuição do metabolismo cerebral (CMRO2).
Do ponto de vista experimental, o anestésico inalatório mais estudado em relação à neu-
roproteção é o isoflurano. Os principais motivos são a ampla disponibilidade e experiência
clínica, e também o baixo custo relativo. Estudos mais recentes têm mostrado que o sevoflu-
rano possui propriedades neuroprotetoras similares, tanto em situações de isquemia global
como regional (ver a seguir). A neuroproteção oferecida pelo sevoflurano parece ser tanto de
curto prazo (72h-96h) como de longo (28 dias). Entretanto, a dose ideal, o momento e a du-
ração da administração não foram ainda bem definidos. De forma peculiar, o halotano parece
também possuir algumas propriedades neuroprotetoras. Entretanto, pelo fato de possuir uma
série de efeitos adversos não só na hemodinâmica cerebral mais também em outros órgãos
e sistemas, o seu uso clínico em neurocirurgia atualmente tem sido bastante restrito, uma vez
que já não é mais fabricado nos Estados Unidos. O gás nobre xenônio mostrou reduzir o grau
de lesão cerebral induzido em roedores submetidos à circulação extracorpórea experimental.
O óxido nitroso quando administrado em condições experimentais e em concentrações altas
(mistura de 70% de N2O/ 30% de O2),está associado ao pior prognóstico neurológico em situ-
ações de I/H cerebrais. Além disso, o N2O inibe as propriedades neuroprotetoras dos outros
anestésicos inalatórios, especialmente do isoflurano.

Consequências da isquemia: necrose x apoptose


A isquemia cerebral pode ser global ou regional. Na primeira, o cérebro inteiro fica com-
prometido, situação que ocorre, por exemplo, na parada cardíaca. Na segunda, como o
próprio nome já diz, somente uma área específica do cérebro fica vulnerável. É o que ocorre

85
Educação Continuada em Anestesiologia

quando há oclusão de uma artéria cerebral média, p. ex., na qual o hemisfério cerebral
ipsilateral fica comprometido.
Após cerca de cinco minutos de isquemia global, ocorre despolarização neuronal e morte
celular.2 Portanto, se não for revertida rapidamente, leva à lesão irreversível. Em contrapartida,
quando somente uma área específica de tecido cerebral é submetida à isquemia, ou seja,
isquemia regional, basicamente pode ocorrer dois tipos de desfecho:2

• Lesão celular irreversível ou morte celular (necrose)


• Morte celular programada (apoptose).

Do ponto de vista anatômico-funcional, a isquemia pode gerar uma zona central (core)
de necrose2, consequente à isquemia intensa ocorrida, e outra denominada de penumbra
isquêmica, geralmente localizada em torno da zona central e representada por neurônios
submetidos à isquemia de menor grau (principalmente devido à circulação colateral). Quando
ocorre no período intraoperatório, a atuação do anestesiologista pode ser determinante para
o prognóstico do paciente, uma vez que representa uma região de neurônios ainda potencial-
mente viáveis que temporariamente sustentam suas funções celulares por intermédio do fluxo
sanguíneo advindo da circulação colateral.
Vários fatores irão determinar o desfecho clínico:2,3 tempo de isquemia, temperatura cere-
bral, acidose local, níveis glicêmicos, idade e sexo do paciente, doenças associadas, circula-
ção colateral, entre outros. Por exemplo: sabe-se que pacientes do sexo feminino estão mais
susceptíveis em algumas situações de I/H cerebral.9 Isso parece ser um fator independente
da idade. A hiperglicemia deve ser evitada a todo custo, uma vez que piora o prognóstico do
paciente neurocirúrgico quando em situações de I/H. Embora não se tenha um número ideal
de glicemia para todas as situações em que haja risco de I/H cerebral, um estudo10 derivado
do IHAST, ou seja, uma análise post-hoc, mostrou que no perioperatório de cirurgia de aneu-
risma cerebral, os pacientes que obtiveram níveis de glicose acima de 152 mg/dL tiveram pior
prognóstico. Por outro lado, a hipoglicemia pode ser tão prejudicial quanto à hiperglicemia, e
a lesão neuronal relacionada à hipoglicemia pode se instalar de forma mais rápida ainda, se
não houver intervenção apropriada.
A lesão neuronal após um insulto I/H é um processo complexo e pode se prolongar por
dias ou até mesmo semanas. Por exemplo: muitas das células neuronais de áreas cerebrais
mais vulneráveis (hipocampo e núcleo estriado) começam a apresentar lesões características
de I/H somente 12h a 3 dias após ressuscitação, ou seja, restabelecimento do fluxo san-
guíneo. Tais lesões continuam a progredir e, por vezes, só se tornam realmente definitivas
após meses de evolução. Em muitas ocasiões, essas células susceptíveis irão “morrer” pelo
processo de apoptose, em vez de necrose.
A apoptose tem sido estudada extensivamente nas duas últimas décadas. Os eventos
subcelulares que se iniciam após um insulto isquêmico-hipóxico e que deflagram a apop-
tose estão sendo cada vez mais elucidados. Embora não sejam exatamente sinônimos, os
fenômenos de apoptose e morte celular programada guardam várias similaridades entre si
em relação aos processos subcelulares envolvidos. De especial interesse, podemos citar as
proteínas caspases e a proteína Bcl-2. As caspases são enzimas proteolíticas que contêm
radicais de cisteína em sua fórmula química e clivam outras proteínas com terminais de áci-
do aspártico. O nome caspase se origina do termo em inglês que justamente descreve essa
propriedade: cysteine-aspartic-acid-proteases. As mais estudadas são a caspase-8, 9 e 3.
As duas primeiras são chamadas de caspases iniciadoras e parecem ser ativadas em algumas
situações específicas, como em I/H e após reperfusão, quando algumas citocinas específicas
(como a interleucina 1-beta [IL-1β] e o fator de necrose tumoral alfa [TNF-α]) se ligam a recep-

86
Educação Continuada em Anestesiologia

tores transmembrana denominados “death domains”. Outros fatores intrínsecos que podem
ativar a caspase-9 incluem a presença de radicais livres e o aumento do influxo de cálcio.
Independentemente do estímulo, uma vez ativadas, as caspases iniciadoras irão clivar outras
proenzimas. A caspase-3 é ativada pelas outras duas, e é denominada de caspase efetora,
uma vez que deflagra o processo de proteólise intracelular generalizada, o que, por sua vez,
culmina no processo de morte celular programada. As caspases-3 clivadas irão estimular mais
caspases-9, deflagrando um processo de feedback positivo muitas das vezes irreversível. Em
contrapartida, a Bcl-2 é considerada uma proteína antiapoptótica, fazendo parte do controle
da permeabilidade da membrana externa mitocondrial. A Bcl-2, quando expressa em grandes
quantidades, favorece a maior sobrevida celular quando em situações de estresse.
O interesse maior dos pesquisadores seria tentar reverter de alguma forma os neurônios em
apoptose, de modo que a integridade celular fosse restaurada, em vez de evoluírem até a morte
programada. Apesar dos inalatórios poderem ter alguma influência benéfica e potencial sobre esse
mecanismo, um estudo recente11 demonstrou que a exposição de células neuronais de primatas
neonatos ao isoflurano em concentrações clinicamente relevantes levou à indução de apoptose
de maneira bastante significativa (13 vezes maior) em relação ao grupo-controle, no qual primatas
neonatos foram expostos somente ao ar ambiente. Os estudos em neonatos humanos ainda são
muito restritos. Portanto, o significado clínico desses achados ainda permanece obscuro.
Os efeitos dos anestésicos inalatórios sobre a neuroapoptose dependem, portanto, do con-
texto clínico, uma vez que em cérebros em desenvolvimento a apoptose parece estar exacerbada,
e em situações de I/H atuantes em cérebros já desenvolvidos ela pode ser potencialmente inibida.

Eventos moleculares da isquemia/hipóxia (I/H) cerebral:


a importância do cálcio
De maneira bastante resumida, a ocorrência de I/H cerebral impõe às células neu-
ronais uma situação de estresse intenso, na qual a produção de ATP fica comprometida.
A reação citoplasmática de conversão da glicose a piruvato gera somente duas moléculas
de ATP. Em situações de hipóxia, as reações intramitocondriais não ocorrem e o piruvato
no citoplasma é convertido em lactato (anaerobiose). O acúmulo desse, por sua vez, gera
acidose láctica. Devido à depleção de ATP, ocorre disfunção da bomba de Na+/K+ ATPase.
A homeostase intracelular do cálcio fica comprometida, uma vez que há acúmulo do neuro-
transmissor excitatório glutamato, que atua nos receptores NMDA, ocasionando aumento do
influxo de cálcio. O aumento do cálcio intracelular pode levar a uma sequência de eventos
que, por fim, culminam em exocitose maciça e lise celular, fenômeno também descrito como
exocitotoxicidade. Os principais eventos estão ilustrados na Figura 7.1.

Figura 7.1: A I/H cerebral ocasiona uma série de eventos celulares que culminam com o aumento do cálcio intra-
celular e exocitotoxicidade, levando, por fim, à lise celular

87
Educação Continuada em Anestesiologia

Pré-condicionamento: isquêmico x anestésico


No contexto de I/H tissular, pode-se definir pré-condicionamento como um conjunto de
ações que visam a aumentar a tolerância de um tecido específico a um insulto isquêmico-
-hipóxico.9 Dessa forma, ele fica condicionado, ou seja, mais tolerante a períodos mais pro-
longados de isquemia, por exemplo. O resultado final é uma menor área de necrose em
relação ao tecido que não foi pré-condicionado.
Embora esse fenômeno tenha sido extensivamente estudado em tecido cardíaco, outros
órgãos têm recebido maior atenção nos últimos anos, como fígado, rim e cérebro. Especi-
ficamente em relação a esse último, existem várias maneiras descritas para que se obtenha
algum grau de pré-condicionamento:

• Doses baixas de endotoxina – injeções intraperitoneais de 0,05 a 1 mg/kg em peque-


nos roedores não causam sepse e parecem reduzir a área de infarto cerebral em até 30% em
modelos de isquemia regional.
• Hipotermia ou hipertermia – em condições experimentais, temperaturas de 25ºC a 32ºC
ou de 42ºC a 43ºC podem aumentar a tolerância à isquemia.
• Depressão cortical difusa – é um fenômeno eletrofisiológico caracterizado por ondas
de despolarização transitórias que se propagam lentamente pelo córtex. Tal estado pode
ser induzido quando uma solução concentrada de cloreto de potássio (5 M) é infundida
diretamente no córtex. Outra maneira seria a colocação de algodão ou gaze embebida
com essa solução, colocada diretamente sobre a dura-máter. Não importando o método, a
consequência final é uma despolarização neuronal progressiva levando à depressão corti-
cal difusa, o que por sua vez pode induzir um período de tolerância à isquemia prolongado,
variando de 1 a 7 dias.
• Ácido 3-nitropropiônico – esse ácido (3-NP) é um inibidor irreversível da succinato de-
sidrogenase, uma enzima que participa do processo de fosforilação oxidativa. Quando admi-
nistrado em baixas doses (1-20 mg/kg) cerca de 1 a 4 dias antes da isquemia, o 3-NP pode
aumentar a tolerância isquêmica de algumas regiões cerebrais do rato, principalmente na
região CA-1 do hipocampo.
• I/H – o pré-condicionamento isquêmico propriamente dito, feito experimentalmente, por
exemplo, quando a artéria cerebral média é ocluída por um tempo que varia de 1 a 20 minutos
a um dia (24 horas) após um insulto isquêmico prolongado ser realizado. A área e o volume de
tecido infartado são significativamente menores do que o controle (sem pré-condicionamen-
to), assim como a avaliação neurofuncional (prognóstico clínico) é melhor. De maneira similar,
quando animais são expostos a situações de hipóxia transitória antes de uma isquemia pro-
longada, os resultados são semelhantes.
• Drogas anestésicas – as mais estudadas têm sido isoflurano e sevoflurano, e estão as-
sociadas a maior tolerância à isquemia.

O pré-condicionamento isquêmico de algum órgão específico pode ser vantajoso em


algumas situações. Por exemplo: em cirurgia hepática, frequentemente o cirurgião realiza o
clampeamento do pedículo hepático para controle vascular durante a ressecção do parên-
quima, com o objetivo de minimizar o sangramento durante essa fase (o pedículo hepático
contém a artéria hepática e a veia porta). Entretanto, com essa manobra, inevitavelmente
ocorre isquemia hepática global. Como uma tentativa de reduzir o grau de lesão hepática
decorrente dessa manobra, alguns centros realizam o clampeamento prévio do pedículo por
um tempo preestabelecido (p. ex., 10 minutos), reperfundem também durante um tempo
determinado (p. ex., 10 minutos), e, logo em seguida, realizam o clampeamento definitivo do
pedículo, para que se comece a ressecção propriamente dita. Essa técnica é na realidade

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Educação Continuada em Anestesiologia

um pré-condicionamento isquêmico hepático. Em neurocirurgia, por se tratar de um contexto


bem diferente, e também pelo receio de que se faça uma lesão irreversível, uma vez que a
tolerância a episódios de isquemia é muito pequena, a utilização do pré-condicionamento
isquêmico é basicamente restrita aos estudos experimentais em animais.9
O pré-condicionamento anestésico guarda algumas similaridades em relação ao isquêmi-
co, principalmente em relação aos mecanismos moleculares envolvidos. A diferença básica
é que o tecido/órgão a ser pré-condicionado não vai ser submetido a períodos prévios de
isquemia temporária per si, e sim à atuação das drogas anestésicas.
Diversos estudos experimentais comprovaram que os anestésicos inalatórios (principal-
mente isoflurano e sevoflurano) possuem atividade agonista nos canais de K+/ATP dependen-
tes localizados na membrana interna mitocondrial. Uma vez que esses canais são ativados,
ocorre uma série de reações intracelulares que limitam o acúmulo de cálcio na célula durante
situações de I/H. Esse efeito é considerado neuroprotetor, uma vez que o aumento de cálcio
intracelular, como foi visto acima, é um dos principais mecanismos que levam à lise neuronal.
A importância desse fenômeno vem sendo pesquisada nos últimos anos. A possibilidade
real de interferir no prognóstico neurológico de um paciente por meio do pré-condicionamento
anestésico obtido com agentes inalatórios reforça ainda mais o fato de que o anestesiologista
é um profissional com plena capacidade de interferir nos resultados de um procedimento ci-
rúrgico. Apenas como exemplo prático, a cirurgia de endarterectomia carotídea (EC) poderia
representar uma dessas possibilidades. Embora a técnica de anestesia regional esteja bem
difundida, alguns grupos ainda praticam e defendem a técnica de anestesia geral, e um dos
motivos é a possibilidade de se realizar neuroproteção com a utilização de drogas anestésicas.
A influência da técnica anestésica no prognóstico neurológico do paciente vem sendo es-
tudada especificamente durante a EC.12 Isso pode ser explicado, em parte, pelo fato de que
o acidente vascular encefálico (AVE – stroke) perioperatório ocorre de forma relativamente co-
mum no contexto dessa cirurgia, variando de 0,25% a 7%. De acordo com o estudo NASCET
(North-American Symptomatic Carotid Endarterectomy Trial), 35% e 65% dos AVEs ocorreram
durante (transoperatório) e após a EC (pós-operatório). Desses últimos, 56% ocorreram nas
primeiras 24 horas.
Ainda não há estudos suficientes demonstrando que a técnica anestésica utilizada durante
a EC possui influência no prognóstico do paciente. Portanto, a indicação da técnica inalatória,
objetivando única e exclusivamente esse fim, parece ser ainda um tanto prematura, uma vez
que as evidências são ainda experimentais.

Mecanismos moleculares neuroprotetores


Vários mecanismos moleculares têm sido propostos para explicar a neuroproteção relacio-
nada aos agentes inalatórios. A maioria dos estudos em animais comprova que essas drogas
diminuem a lesão neuronal induzida por I/H.13-18 Entretanto, tal proteção parece ser dependente
do grau de isquemia, sendo maior quando essa última é leve a moderada. Além do mais, a
neuroproteção parece também ser maior em curto prazo, uma vez que quando os animais são
estudados duas semanas ou mais após o evento isquêmico, os efeitos benéficos dos inalató-
rios diminuem consideravelmente. Entre os diversos mecanismos13-18, podemos citar:

• Diminuição da CMRO2 – essa propriedade já bastante conhecida está relacionada di-


retamente à capacidade dos anestésicos inibirem as funções neuronais excitatórias, princi-
palmente as sinapses. Têm-se observado que durante a exposição dos inalatórios ocorre
preservação dos fosfatos intracelulares de alta energia. De forma dose-dependente, ocorre o
aparecimento do padrão burst-supression (BS) e até mesmo de isoeletricidade ao eletroence-

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Educação Continuada em Anestesiologia

falograma (EEG), sendo que a CMRO2 diminui cerca de 50% quando ocorre BS. Alguns au-
tores titulam as drogas anestésicas de acordo com o EEG até ocorrer BS, quando se deseja
realizar proteção cerebral em situações específicas no intraoperatório (p. ex.: antes de uma
clipagem temporária durante cirurgia de aneurisma cerebral). Estudos em animais, entretanto,
sugerem que os benefícios da diminuição da CMRO2 se tornam menos evidentes quando o
tempo de isquemia é prolongado.
• Aumento do FSC – os inalatórios, em sua maioria, possuem propriedade intrínseca de
vasodilatação cerebral, ocasionando aumento do FSC. Racionalmente, isso poderia ser van-
tajoso em situações de isquemia. Entretanto, o estudo do FSC regional, ou seja, da área
específica submetida à isquemia (i. e., isquemia regional) não tem mostrado resultados con-
sistentes. Além do mais, o aumento do FSC geralmente ocorre de modo simultâneo a um
aumento do volume sanguíneo cerebral, o que pode ocasionar aumento da PIC em situações
de elastância cerebral comprometida.
• Canais mitocondriais de K+/ATP dependentes – como já foi descrito acima, esse efeito
parece ter maior importância na situação de pré-condicionamento. A maioria dos estudos
foi realizada em animais roedores, mostrando que os inalatórios agem como agonistas dos
canais de K+/ATP dependentes na membrana interna mitocondrial. Esses canais, quando
ativados, reduzem a concentração de cálcio intramitocondrial que ocorre durante isquemia
e otimizam o perfil energético intracelular pós-isquemia. As sulfonamidas são antagonistas
desses canais e, quando administradas concomitantemente com inalatórios em condições
experimentais, podem atenuar seus efeitos benéficos.
• Modulação da exocitotoxicidade – inibição da liberação pré-sináptica do glutamato e
também de alguns aminoácidos excitatórios na pós-sinapse. Em condições experimentais, a
adição de um bloqueador específico do transporte do glutamato atenua ou até mesmo elimi-
na os efeitos de pré-condicionamento dos agentes inalatórios.
• Regulação do influxo celular de cálcio – como já descrito anteriormente, em situações de
isquemia invariavelmente ocorre uma sobrecarga de cálcio intracelular. Supõe-se que os anes-
tésicos inalatórios atuem inibindo esse mecanismo por meio da interação com receptores de
glutamato, NMDA e AMPA. Estudos in vitro realizados com isoflurano mostraram que ele reduziu
a neurotoxicidade induzida por ativação dos receptores AMPA. Em condições experimentais, os
anestésicos inalatórios possuem propriedades antagonistas dos receptores NMDA, sendo que
o isoflurano e o sevoflurano inibem a exocitotoxicidade induzida pelo NMDA. Outros estudos
sugerem que um aumento leve do cálcio intracelular poderia ter alguma ação neuroprotetora.
Dessa forma, os inalatórios modulariam a resposta exacerbada do cálcio intracelular mediada
via receptores NMDA e de glutamato em vigência de isquemia, ajudando a manter uma con-
centração ótima de cálcio a fim de se conservar a homeostase celular.
• Mecanismos antioxidantes – situações de I/H cerebral podem ocasionar produção
de espécies reativas de oxigênio (ERO), com possibilidade de exacerbar a lesão neuronal.
Os anestésicos inalatórios poderiam ser benéficos inibindo a formação de ERO, aumentando
a sua eliminação (scavenging) e também inibindo a peroxidação lipídica. Entretanto, a maior
parte das pesquisas tem estudado os anestésicos venosos, como propofol ou tiopental.
O único estudo in vitro com anestésicos inalatórios foi com o isoflurano, e não demonstrou
neuroproteção relacionada ao mecanismo antioxidante.
• Inibição da apoptose – muito pouco se sabe a respeito dos possíveis mecanismos an-
tiapoptóticos dos inalatórios, sejam eles induzidos antes da isquemia (pré-condicionamento)
ou durante a isquemia. Os estudos realizados investigando essa hipótese utilizaram como
marcador de células apoptóticas a técnica de TUNEL (terminal deoxy transferase uridine tri-
phosphate nick end-labeling), que em tecido neuronal parece não conseguir diferenciar muito
bem necrose de apoptose. Em contrapartida, algumas evidências sugerem que os inalatórios

90
Educação Continuada em Anestesiologia

estão associados com um aumento da proteína antiapoptótica Bcl-2.


• Óxido nítrico – normalmente associado à regulação do fluxo sanguíneo cerebral e de neuro-
transmissores. Dependendo da concentração, pode ser neurotóxico. Um dos mecanismos em
estudo seria a capacidade dos inalatórios de modular a formação de óxido nítrico via interação
com a enzima óxido nítrico sintase (NOs), principalmente em situações de pré-condicionamento.
• Receptor de adenosina A1 – parece estar envolvido na cardioproteção associada com
inalatórios, levando à ativação dos canais de K+ mitocondriais ATP-dependentes. Não foi
comprovada ainda em tecido cerebral.
• Proteína cinase mitogênio-ativada (MAPK) p38 – a ativação dessa proteína cinase causa
uma série de reações moleculares que se assemelham ao pré-condicionamento anestésico.
• Ativação de Akt – Akt é uma serina-treonina cinase que, quando ativada por fosforilação,
controla os sinais intracelulares envolvidos na sobrevida ou morte celular. Apenas um estudo
em ratos, com isoflurano, comprovou que esse mecanismo ocorre em situações de pré-
-condicionamento, e parece estar relacionado à isoforma Akt1.
• Canais K2P ou TREK – são canais de potássio com dois poros, nos quais os inalatórios
parecem exercer ação agonista. Quando ativados, induzem hiperpolarização dos neurônios
pré-sinápticos, diminuindo a liberação de neurotransmissores. Nos neurônios pós-sinápticos,
a hiperpolarização tenderia a diminuir o influxo de cálcio via canais de cálcio voltagem-depen-
dente e receptores NMDA.

Conclusões
Uma série de evidências comprova que os anestésicos inalatórios possuem proprieda-
des neuroprotetoras. Acreditava-se que essas últimas estavam somente relacionadas com a
diminuição da CMRO2. Entretanto, estudos em animais mostraram que os anestésicos inala-
tórios atuam também na modulação de diversas reações moleculares desencadeadas pela
isquemia cerebral. Apesar do avanço das pesquisas, várias perguntas ainda permanecem
sem resposta:7,19

• Qual a dose de inalatório ideal para neuroproteção?


• Qual seria o momento ideal de administração dessa dose?
• Por quanto tempo persiste essa neuroproteção?
• Existe alguma superioridade entre os inalatórios nesse contexto?
• Existe sinergismo entre inalatórios e outras condutas neuroprotetoras (p. ex.: hipotermia)?
• Existe sinergismo entre inalatórios e outras drogas anestésicas?

É provável que durante esta década, algumas dessas perguntas possam ser respondidas.
Isso refinaria ainda mais o conhecimento do anestesiologista a respeito das propriedades
neuroprotetoras dos anestésicos inalatórios, com uma perspectiva maior ainda de interferir de
forma positiva no prognóstico de pacientes sob risco de injúria cerebral intraoperatória.

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92
Capítulo 8
Como avaliar criticamente a
validade interna de um ensaio
clínico controlado de alocação
aleatória em anestesiologia
Simone Soares Leite
Educação Continuada em Anestesiologia

Introdução
A avaliação crítica da evidência científica consiste em analisar e classificar os estudos em
termos da sua qualidade para inclusão, ou exclusão, da informação adquirida mediante sua
leitura como complemento na decisão final sobre o paciente. Necessita-se da utilização de
critérios de avaliação rigorosos porque, em grande parte dos estudos publicados, há pouco
rigor metodológico e, por vezes, eles são pouco relevantes.1-3
Em anestesiologia, em geral, interessa a avaliação de estudos científicos que pretendem
estimar o efeito de um tratamento ou qualquer outra intervenção (técnicas ou procedimentos)
no curso de uma doença ou de uma situação clínica específica. Principalmente neste campo
de pesquisa, em que se utilizarão os resultados dos estudos para nortear as medidas clínicas
que serão adotadas nos pacientes em particular, faz-se necessário que os resultados encon-
trados nos estudos sejam legítimos.
A legitimidade dos resultados dos estudos depende da forma como uma pesquisa clínica é
desenhada e conduzida, e diversas medidas devem ser adotadas a fim de evitar-se a presença de
fatores de confusão. Fatores de confusão são diferentes da intervenção planejada, conhecidos ou
não, que podem predizer o desfecho e que se encontram mal distribuídos entre os grupos de com-
paração. Podem ser fatores prognósticos, características basais ou intervenções concomitantes.
Neste sentido, existe uma ordem hierárquica quanto à confiabilidade dos resultados dos
estudos, ou nível de evidência conferido por cada tipo de desenho, e, consequentemente, o
seu valor em gerar um impacto sobre as decisões clínicas. Em relação aos estudos em que
se avaliam estratégias de tratamento, ou profilaxia, a ordem hierárquica decrescente do nível
de evidência conferido pelos diversos tipos de desenhos é: revisões sistemáticas de estudos
controlados aleatórios com ou sem metanálises; estudos controlados aleatórios; revisões
sistemáticas de estudos de coorte; estudos de coorte; estudos de desfecho ou ecológicos;
revisões sistemáticas de estudos de casos e controles; estudos de casos e controles; série
de casos; relatos de casos; opinião de especialistas sem explicitar uma avaliação crítica ou
com base em estudos de fisiologia ou de princípios iniciais.4

Figura 8.1: Desenho de um estudo controlado aleatório

94
Educação Continuada em Anestesiologia

Portanto, neste campo de pesquisa, os ensaios clínicos de alocação aleatória (ECA) são considera-
dos o padrão de excelência entre os estudos simples (não revisão), já que estes são experimentos nos
quais se isola a contribuição singular de um fator e mantêm-se constante, sempre que possível, os outros
determinantes do desfecho. Nos ECAs a seleção apropriada dos participantes, sua distribuição aleatória
nos diversos grupos de estudo e o controle rígido das cointervenções, das perdas e das exclusões ao
longo do seguimento do estudo tornam possível o controle dos fatores de confusão (Figura 8.1).
A seguir analisaremos a interpretação crítica dos ensaios clínicos de alocação aleatória que
pretendem apreciar o efeito de um tratamento, ou intervenção, em situações clínicas específicas.

Relevância e originalidade dos estudos


Quando dispomos de um artigo científico, devemos inicialmente avaliar se sua leitura é rele-
vante. Artigos que abordam a pesquisa básica são pouco úteis de imediato, já que não forne-
cerão informações passíveis de afetar a prática clínica corriqueira. Quanto às pesquisas clínicas,
as mais relevantes são aquelas cujos resultados demonstram um efeito importante na qualidade
de vida ou mortalidade, ou, ainda, quando se demonstram grandes impactos nos custos.4
Três perguntas devem ser inicialmente respondidas, a fim de selecionarem-se para leitura
apenas os artigos referentes às pesquisas clínicas relevantes para o tema pesquisado. São elas:

• Qual a pergunta do estudo?


• Que tipo de estudo foi realizado?
• O tipo de estudo realizado foi apropriado para o campo de pesquisa examinado?

Estas questões frequentemente são esclarecidas com uma leitura rápida do título, do
resumo e da introdução do artigo.

A pergunta chave de um estudo científico deve ser clara e obedecer ao formato PICO, em
que P refere-se ao paciente ou grupo de pacientes, com uma condição particular ou proble-
ma de saúde; a letra I, à intervenção de interesse; A letra C, à comparação ou alternativas à
intervenção (placebo, outros fármacos, cirurgia); e a letra O, ao outcome ou desfecho clínico
observado. Referências à pergunta que desencadeou o experimento são encontradas na
seção “Resumo” de um artigo. Este só merece ser submetido à apreciação quando pelo me-
nos 3 dos componentes PICO da pergunta do estudo forem semelhantes aos componentes
PICO da pergunta que desencadeou a busca por esse artigo (dúvida do leitor).
A descrição do tipo de estudo realizado (desenho) deve ser encontrada de maneira explícita
no título do artigo. Caso isso não ocorra, é possível se descobrir o tipo de estudo realizado por
meio da leitura da seção de métodos do resumo. Como já citado, quanto aos estudos nos quais
se avaliam estratégias de tratamento, ou profilaxia, os resultados advindos dos ECAs são os que
conferem maior grau de evidência e, consequentemente, apenas estes merecem ser lidos.
Além da pergunta do estudo, a hipótese testada pelos autores em um experimento deve
ser descrita explicitamente na seção «Introdução» do artigo, contudo quando isso não ocorrer,
pode-se desvendá-la a partir do desfecho primário avaliado, informação contida na seção
«Introdução» ou no cálculo amostral do estudo (seção «Pacientes e métodos»). Estudos em
que os autores não apresentam, a priori, a hipótese principal testada têm sua validade pro-
fundamente afetada, pois há o risco de os investigadores buscarem primeiro as possíveis
associações e, depois, discutir os “significados estatísticos” dos seus achados.
Apesar das recomendações dos editores, em muitos artigos os autores não apresentam
a hipótese testada, explícita ou implicitamente. Desbiens1 analisou todos os estudos publi-
cados no primeiro semestre de 2002, no Lancet, no New England Journal of Medicine, no

95
Educação Continuada em Anestesiologia

Journal of the American Medical Association e no Annals of Internal Medicine e observou que
em 64% dos estudos a hipótese analisada não havia sido descrita. Em apenas 54% dos es-
tudos ela e/ou o cálculo amostral foram relatados.
Além da hipótese testada e do cálculo amostral, os artigos também devem conter referên-
cia quanto aos detalhes do registro do estudo e da fonte onde o protocolo original pode ser
acessado. Esta informação geralmente é encontrada no início ou final da seção “Pacientes e
métodos”. É importante que se leiam o artigo original e, também, o seu protocolo para que
seja possível julgar se o estudo foi conduzido como originalmente planejado.
Ao analisar a qualidade dos ECAs indexados no PubMed de dezembro de 2000 a de-
zembro de 2006, Hopewell et al.2 constataram que em apenas 53% dos artigos o desfecho
primário foi descrito, e o cálculo amostral apareceu em apenas 45% dos artigos. Quanto ao
protocolo do estudo, só houve referência a ele em 1% dos artigos. Todavia foi observada uma
tendência, de 2000 para 2006, à melhora da descrição dos itens metodológicos.
Estudos nos quais os autores não relataram a hipótese principal testada (ou o desfecho
principal aferido), o cálculo amostral e em que não há referência ao acesso ao protocolo
original não são confiáveis, por conseguinte sua leitura deve ser abandonada logo de início.
Outro fator importante é a avaliação da originalidade do estudo, pois não há lógica em
esclarecer dúvidas quando estas não mais existem. Assim, só é válida a leitura de um artigo
marginalmente diferente de outro previamente publicado, e cujo resultado já é conhecido,
quando a população, a intervenção ou o desfecho aferido forem diferentes. Além disso, es-
sas diferenças devem relacionar-se com os nossos pacientes e serem capazes de produzir
um resultado distinto daqueles de estudos anteriores.5

Qualidade dos estudos


A qualidade dos estudos depende de um conjunto de itens no planejamento e na condu-
ção de uma pesquisa que reflete a validade da variável analisada, relacionada com a validade
interna, o modelo estatístico empregado e a validade externa. A validade interna depende do
rigor seguido ao desenhar-se e executar-se um estudo. Estudos com alto grau de validade
interna apresentam resultados confiáveis. A escolha do modelo estatístico relaciona-se com
a importância dos resultados obtidos. A validade externa refere-se à possibilidade de genera-
lização dos resultados do estudo, ou seja, à utilidade dos resultados em outras populações.
Quanto à validade interna, podemos defini-la como a probabilidade de o desenho de um
estudo gerar resultados não enviesados. Por viés entende-se a ocorrência de erro sistemático
em um estudo que resulte em uma estimativa incorreta da associação entre a intervenção e o
desfecho. Em um estudo cujo desenho, condução e/ou análise foram mal realizados, podem
ocorrer vieses de seleção, de realização, de exclusão e/ou de detecção.
Vieses de seleção são definidos como um erro sistemático que ocorre na criação dos gru-
pos de comparação, ou seja, os grupos diferem nas características basais aferidas ou não afe-
ridas. Eles ocorrem devido à forma pela qual os indivíduos foram selecionados para o estudo ou
pela maneira como foram alocados nos grupos de estudo. Este termo também é usado quando
os participantes não foram representativos da população de todos os possíveis participantes.
Vieses de realização ocorrem quando há diferenças sistemáticas nos cuidados de saúde,
diferentes da intervenção investigada, ofertados aos participantes dos diferentes grupos.
Vieses de exclusão relacionam-se com diferenças nas perdas, ou exclusões, entre os
grupos ao longo do seguimento do estudo.
Vieses de detecção são distorções sistemáticas do resultado que ocorrem quando os
indivíduos que medem o desfecho, seja um investigador ou um participante, conhecem o
grupo de distribuição específico.

96
Educação Continuada em Anestesiologia

Nos ECAs diversas estratégias metodológicas são empregadas a fim de reduzir os riscos
desses vieses, o que visa garantir a alta validade interna do estudo (Figura 8.2).

Figura 8.2: Medidas preventivas de vieses em um estudo controlado aleatório

Para avaliação da metodologia de um ECA utiliza-se o acrômio RAMMbo, no qual a letra R


refere-se à análise do recrutamento empregado e relaciona-se mais com a validade externa
do estudo (quem esses pacientes representam?); a letra A, ao método de alocação dos pa-
cientes nos diversos grupos do estudo. Deve-se perguntar: a distribuição dos participantes
nos grupos de estudo foi feita de maneira aleatória? Os grupos eram semelhantes no início
do estudo? Quanto à primeira letra M, esta faz referência à manutenção ou seguimento no
estudo. Deve-se perguntar: os participantes de grupos distintos foram tratados de forma
semelhante, excetuando-se a intervenção investigada? Todos os participantes da pesquisa
que iniciaram o estudo o concluíram? Os participantes que não concluíram o estudo foram
incluídos na análise final? Os participantes foram analisados conforme os grupos para os
quais foram alocados aleatoriamente no início do estudo (princípio da intenção de tratar)?
A outra letra M refere-se às medidas do(s) desfecho(s), que devem ser realizadas de forma
blind (ocultada) ou tratar-se de medidas objetivas (tipo morreu, não morreu).
Com estes questionamentos em mente, inicia-se a leitura crítica da seção de pacientes
e métodos.

O aspecto ético da condução do estudo


O primeiro ponto que chama a atenção em um estudo de boa qualidade é que este deve
ter sido aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da(s) instituição(ões) onde foi realizado.
Os participantes devem ter sido esclarecidos sobre todos os aspectos relevantes da pesqui-
sa, sobre os possíveis riscos inerentes a sua participação e a eles deve ter sido assegurado
o direito de abandonar a pesquisa mesmo após ter concordado em dela participar. A escolha
da participação no estudo deve ser livre, gratuita e não induzida. Os participantes devem
assinar o temo de consentimento livre e esclarecido.

Recrutamento e critérios de elegibilidade


Após analisar as questões éticas relacionadas com a condução do estudo, devem-se
analisar a técnica empregada no recrutamento dos participantes e os critérios de elegibilidade

97
Educação Continuada em Anestesiologia

(critérios de inclusão e/ou exclusão) adotados. Esses critérios são planejados para aumentar
a homogeneidade entre os participantes do estudo e, então, fortalecer a validade interna dele.
Contudo, critérios muito rigorosos diminuem a validade externa do estudo e, consequente-
mente, a generalização dos resultados não pode ser feita. Por exemplo, ao comparar-se a
eficácia e a segurança do uso de efedrina com a fenilefrina na profilaxia de hipotensão após
raquianestesia em cesariana, um grupo de participantes homogêneas deve ser selecionado a
fim de diminuírem-se os fatores de confusão. Logo, a opção mais atraente é que se estudem
apenas pacientes sem comorbidades submetidas a cesarianas eletivas. Todavia, assim, só é
possível inferir-se conclusões acerca do agente profilático mais seguro do ponto de vista fetal
nas situações de baixo risco. Ou seja, os resultados desses tipos de estudos não podem ser
extrapolados para a população de maior interesse, que são os fetos “em sofrimento”.
Ainda sob este aspecto, existem estudos nos quais inicialmente avaliam-se a segu-
rança e a eficácia de um fármaco em uma população de alto risco (grupo de pacientes
homogêneos), mas, da mesma forma, estes resultados não podem ser extrapolados para
populações de risco intermediário ou baixo. Exemplifica bem este caso a questão do uso
dos agentes bloqueadores dos receptores beta-adrenérgicos na profilaxia de complica-
ções cardíacas em cirurgias não cardíacas. Nos estudos iniciais, em pacientes de alto risco
submetidos a cirurgias de alto risco, demonstrou-se que os benefícios do uso dos bloque-
adores dos receptores beta-adrenérgicos superavam os riscos. Entretanto, na população
de risco intermediário, os benefícios do uso desses agentes não foram tão superiores ao
risco por estes impostos.
Em geral, a norma mais aceita é a realização de estudos, inicialmente, em uma população
mais específica, e, caso os resultados obtidos sejam favoráveis ao uso da intervenção pro-
posta, a fim de generalizá-los, realizam-se estudos pragmáticos, com pacientes e profissio-
nais da saúde menos selecionados e protocolos de seguimento menos rígidos.
A atenção á localização em que um determinado estudo foi realizado é igualmente im-
portante, pois os achados não podem ser extrapolados. Como exemplos destacam-se os
estudos que avaliam o “melhor gatilho transfusional” ou a melhor estratégia de controle glicê-
mico em pacientes internados em unidades de tratamento intensivo. Os resultados destes
restringem-se à população analisada, que difere em diversos aspectos dos pacientes no
contexto perioperatório. Por conseguinte, para os anestesiologistas, esses estudos servem
apenas para gerar hipóteses que devem ser testadas mediante experimentos, no contexto
adequado. Em resumo, as informações obtidas de estudos realizados em uma localização
diferente, ou com uma população distinta, da do paciente sobre o qual está em julgamento
a utilização, ou não, de uma dada intervenção não devem ser consideradas na decisão final
sobre o paciente em questão.

Alocação
O próximo passo é a análise crítica dos critérios utilizados na alocação dos participantes
nos grupos de análise. A alocação deve ser feita por meio de um método aleatório imprevi-
sível. Em uma distribuição aleatória, cada participante tem uma probabilidade conhecida de
receber uma das intervenções em estudo antes de ser incluído no grupo respectivo, mas a
intervenção que vai receber é determinada pelo acaso e não deve ser passível de previsão
antecipada. A distribuição aleatória dos participantes garante que os fatores (conhecidos e
desconhecidos) que influenciam o desfecho estejam igualmente presente nos grupos estu-
dados. Os cuidados empregados a fim de garantir a distribuição aleatória no estudo são a
utilização de um método de geração da sequência de distribuição imprevisível e a distribuição
ocultada ou sigilosa.

98
Educação Continuada em Anestesiologia

O método de geração da sequência de distribuição deve ser descrito no artigo. O melhor


deles é a geração da sequência por meio de softwares apropriados. Outros métodos também
considerados válidos são utilização de tabela de números aleatórios, ou mesmo uso de dado
ou moeda. A utilização de dias alternativos, datas de aniversário ou números de prontuários
para distribuição dos participantes não é considerada aleatória, pois uma distribuição indivi-
dual pode ser facilmente prevista e consequentemente manipulada, conscientemente ou não.
Após uma aleatorização bem-sucedida torna-se necessário garantir que a alocação dos
participantes nos grupos de estudo seja feita sem erros, portanto esta deve ser feita de forma
sigilosa. O sigilo na hora da alocação dos participantes é fundamental para garantir a impre-
visibilidade, assim os investigadores devem primeiro incluir o indivíduo no estudo e só após a
intervenção (experimental ou controle) ser definida. A alocação sigilosa é o critério metodoló-
gico mais importante em um ECA, consequentemente o método utilizado para garanti-la deve
ser claramente descrito no artigo.
O mais efetivo é o realizado centralmente, em que os investigadores cadastram o indivíduo
no estudo via internet ou telefone e, após, recebem a alocação do mesmo. Outro método
aceitável é a utilização de envelopes lacrados com o código da intervenção, os quais só são
abertos após a inclusão dos participantes no estudo. Quando a distribuição dos participantes
não é realizada de forma sigilosa, os resultados dos estudos tendem a superestimar o efeito
tratamento em 30% a 40%.6
O método de distribuição aleatória clássico elege o participante individual como uma uni-
dade e procura distribuir cada um deles per si. No entanto outra técnica de distribuição ale-
atória pode ser empregada, a qual é conhecida como restringida e se destina a manter um
determinado equilíbrio entre os grupos em termos de dimensão ou características específi-
cas. Designa-se por blocos, estratificada e minimizada. Seja qual for o método de distribuição
utilizado, este deve ser sempre claramente descrito.
Pua et al.,3 ao analisarem os estudos ditos controlados e de distribuição aleatória publi-
cados no Anesthesia and Analgesia, no Anesthesiology, no British Journal of Anaesthesia e
no Canadian Journal of Anaesthesia, no primeiro semestre de 2000, observaram que havia o
relato da aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa e da utilização do termo de consenti-
mento em 100% dos artigos avaliados. Os critérios de inclusão e/ou exclusão também foram
descritos em todos eles. Quanto à presença de uma frase que indicasse que os pacientes
foram alocados de forma aleatória, esta estava presente em 80% dos casos em uma revista e
em 100% das vezes nas outras 3. Já em relação ao método empregado para geração da se-
quência de distribuição, este foi relatado entre 0% e 80% das vezes, de acordo com a revista
analisada. Quando o método empregado para geração aleatória da sequência de distribuição
e a estratégia utilizada para garantir uma distribuição sigilosa não são descritos claramente,
não se sabe se as técnicas adequadas foram ou não empregadas, logo a leitura destes tipos
de artigos deve ser abandonada.
Para finalizar a avaliação da qualidade da distribuição aleatória dos participantes nos diver-
sos grupos de estudo, deve-se observar a tabela de comparação das características basais
dos grupos, em geral apresentada no início da seção “Resultados”. As características basais
referem-se às variáveis demográficas e clínicas de interesse que descrevem os participantes
do estudo. Os grupos são comparados, quanto às características basais, por métodos de
análise estatística descritiva. Examina-se o grau de semelhança entre os grupos no início do
estudo, pois se infere que grupos semelhantes nas características conhecidas também pos-
suem os fatores de confusão desconhecidos igualmente bem distribuídos entre si.
Em um estudo com tamanho amostral adequado, as características basais em geral são
bastante semelhantes entre os grupos. Contudo, mesmo com uma distribuição aleatória
bem conduzida, pode acontecer, por pura má sorte, de os grupos não estarem equilibrados.

99
Educação Continuada em Anestesiologia

Quando isso ocorre, as características basais mal equilibradas devem ser submetidas a ajus-
tes estatísticos específicos, o que não compromete a validade do estudo. Idealmente, os pes-
quisadores devem apresentar, na seção “Discussão”, uma análise de sensibilidade, em que
os resultados são apresentados com e sem os ajustes. Quando a direção e a magnitude do
efeito do tratamento não são afetadas pala análise de sensibilidade, as conclusões do estudo
são mais confiáveis.

Seguimento do estudo
Em um estudo, a intervenção pesquisada deve ser muito bem descrita a fim de garantir a
sua reprodutividade. Quando se pretende avaliar uma dada medicação, as doses empregadas
devem ser claras, e, no caso de titulação de doses, o método utilizado para tal precisa ser
descrito. Caso a intervenção investigada já seja conhecida e usada na prática clínica, é preciso
que se pesquise a utilização dela pelo grupo controle fora do protocolo do estudo.Esta situação
é definida como contaminação em ensaios clínicos aleatorizados e reduz a proporção de grupo
controle, uma vez que um percentual deste recebeu a intervenção. A contaminação faz que os
resultados observados tendam a subestimar o verdadeiro efeito do tratamento.
Na análise do seguimento do estudo, faz-se necessário garantir que, com exceção da
intervenção testada, todos os participantes foram tratados da mesma forma. Isto porque
algumas situações ao longo da condução da pesquisa podem mascarar o efeito real do
tratamento investigado. Muitas vezes a utilização de medidas ou medicações concomitantes
pode interferir no resultado, e tal conceito é definido como cointervenção.
Mesmo após a aleatorização, algumas fontes potenciais de perda de segmento devem ser
consideradas: alguns pacientes podem não ter a doença como se imaginava no começo do estu-
do (erro no recrutamento); outros abandonam a pesquisa; uns não aderem ao tratamento; e ainda
outros apresentam reações adversas ou perde-se o contato com eles. Nestes casos, a compara-
ção entre os grupos de estudo torna-se enviesada, mesmo que o delineamento esteja adequado.
Em relação aos participantes da pesquisa que não aderiram ao protocolo do estudo, a
abordagem intuitiva é de retirá-los da análise final. Todavia esta estratégia subverte a vanta-
gem da distribuição inicial aleatória nos grupos de estudo (Figura 8.3), impede uma visão mais
realista do impacto da intervenção testada e permite a introdução de vieses no estudo, o que
pode gerar conclusões errôneas. Chama-se análise per protocol quando apenas os partici-
pantes nos quais o protocolo foi seguido em termos de elegibilidade, intervenção e acesso
ao desfecho são incluídos na análise final (Figura 8.4).

Figura 8.3: Comprometimento da similaridade dos


grupos de estudo gerada pela exclusão de pacientes
após a distribuição aleatória inicial

100
Educação Continuada em Anestesiologia

Figura 8.4: Análise per protocol

O ideal, portanto, é que, para fins de análise estatística final, cada participante seja incluído
no grupo para o qual foi inicialmente destinado, independentemente de qual intervenção tenha
efetivamente recebido. Esta estratégia chama-se de análise por intenção de tratar (Figura 8.5).

Figura 8.5: Análise por intenção de


tratar

Todavia a análise por intenção de tratar subestima o efeito tratamento, e, quando este é
danoso, a inclusão de pacientes que nunca usaram o tratamento pode fazê-lo parecer menos
perigoso. Ademais, nas situações em que a não adesão ao protocolo é diferente entre os
grupos, esta estratégia não evita os vieses.

Como já citado, qualquer não adesão ao protocolo do estudo pode afetá-lo, entretanto isso
é mais grave quando ocorre devido à falta de eficácia da intervenção analisada, ou a um perfil
de efeitos secundários muito desfavoráveis, ou, ainda, quando a adesão ao esquema de trata-
mento é particularmente complicada. Os autores devem descrever as razões da não adesão e
o leitor deve julgar se há ou não motivos para desconsiderar os resultados do estudo.
Também é inevitável que alguns participantes não terminem o estudo, especialmente se
a sua duração for longa. Nestas situações não há como aferir os desfechos de interesse
dos pesquisadores em todos os tempos do estudo. Estes pacientes podem ser excluídos
da análise final, o que compromete o poder do estudo, a similaridade inicial dos grupos e,
consequentemente, a precisão dos resultados. Outra estratégia possível é a utilização dos
últimos dados disponíveis, como, por exemplo, em um estudo de 2 anos de seguimento no
qual um paciente estava vivo após um ano, pode-se incluí-lo como sobrevivente na análise
de 2 anos. Esta extrapolação temporal de dados pode superestimar o efeito do tratamento e
minimizar os seus riscos.
Qual é a dimensão da taxa de desaparecimento a partir da qual o estudo fica compro-
metido, independente da estratégia empregada? Não existe uma resposta simples para esta
pergunta: quanto menor a taxa, melhor. Todavia, quando a taxa de desaparecimento é maior

101
Educação Continuada em Anestesiologia

que 20%, a validade do estudo fica definitivamente comprometida. Quando esta taxa é me-
nor que 20%, o risco de vieses é pequeno quando o número de participantes “perdidos” for
semelhante nos diversos braços do estudo e quando as suas características basais forem
análogas. Neste contexto, deve-se estar atento à apreciação detalhada do quadro descritivo
que os autores devem apresentar no início da seção “Resultados” (Figura 8.6).

Figura 8.6: Recrutamento, distribuição aleatória e seguimento do estudo. Razões da não adesão ao
protocolo e das perdas ocorridas durante o seguimento descritas de forma explícita

A validade do estudo também é comprometida quando a taxa de desaparecimento excede a


taxa de evento, ou é diferencial. Consequentemente, os autores devem apresentar uma análise de
sensibilidade, em que se considera o pior desfecho possível para todos os desaparecidos. Se os
resultados forem semelhantes quanto à magnitude do efeito tratamento, com e sem a inclusão dos
desaparecidos, o resultado do estudo é mais confiável. Quando a inclusão dos desaparecidos,
considerando-se para estes o pior desfecho, altera muito a magnitude ou mesmo a direção do efeito
do tratamento, os resultados do estudo devem ser desconsiderados devido a uma falha metodo-
lógica grave. Se os autores não apresentarem a análise de sensibilidade na seção “Discussão”, o
leitor, antes de qualquer conclusão a respeito do efeito tratamento, deve realizá-la (Tabelas 8.1 e 8.2).

Tabela 8.1: Cálculo da redução do risco relativo sem incluir os desaparecidos


Estudo A Estudo B
Tratamento A Controle A Tratamento B Controle B
Pacientes 1000 1000 1000 1000
Perda de seguimento 30 (3%) 30 (3%) 30 (3%) 30 (3%)
Mortes em cada grupo 200 (20%) 400 (40%) 30 (3%) 60 (6%)
RRR sem considerar os (0,4 – 0,2)/0,40 = 0,2/0,4 = 0,5 (0,06 – 0,03)/0.06 = 0,03/0,06 =
desaparecidos (50%) 0,5 (50%)

RRR = redução do risco relativo.

102
Educação Continuada em Anestesiologia

Tabela 8.2: Cálculo da redução do risco relativo considerando-se


que todos os desaparecidos morreram

Estudo A Estudo B
Tratamento A Controle A Tratamento B Controle B
Pacientes 1000 1000 1000 1000
Perda de seguimento 30 (3%) 30 (3%) 30 (3%) 30 (3%)
Mortes em cada grupo 230 (23%) 400 (40%) 60 (6%) 60 (6%)
RRR sem considerar o pior desfecho 0,17/0,4 = 0,43 0,0/0,06 = 0
para os desaparecidos (43%) Sem redução

RRR = redução do risco relativo.

Ocultação dos grupos de estudo


A próxima pergunta é: foram ocultados aos pacientes, aos investigadores e aos
analisadores dos dados os grupos em estudo? Ou a aferição do desfecho era de cará-
ter objetivo, obedecendo a critérios predefinidos e validados? Deve-se dar preferência
à leitura dos ECAs que utilizem, quando aplicável, o esquema de ocultação, já que a
mensuração do desfecho pode ser influenciada pelo conhecimento da alocação (viés
de observação). Tanto os pacientes quanto os investigadores podem ser afetados,
em particular para desfechos subjetivos como dor. Adicionalmente, pode haver modi-
ficações na condução clínica, intencionais ou não, relacionadas com o conhecimento
prévio do grupo de alocação.
Termos como “estudo duplo ou triplo cego” ou “autor/paciente mascarado” devem ser
evitados. É importante que esteja explícito nos artigos quem desconhecia a alocação dos
participantes nos grupos em estudo e, ainda, os autores precisam descrever que método foi
utilizado para ocultação de tal conhecimento (Tabela 8.3).

Tabela 8.3: Possíveis consequências da não ocultação da alocação


dos participantes nos grupos em estudo

Viesses através da introdução de outras intervenções efetivas; diferentes


Participante
relatos dos sintomas; risco de abandono; efeito placebo

Prescrição diferenciada de cointervenções efetivas: podem influenciar na


Profissionais da saúde complacência do participante com o seguimento; influenciar os relatos
dos pacientes em relação ao desfecho
Encorajamento diferenciado; acesso ao desfecho diferenciado tempo/
Coletores dos dados
frequência; registros diferenciados dos desfechos

Assessores judiciais do desfecho Acesso ao desfecho diferenciado

Decisões diferenciadas em relação aos “participantes perdidos”, seleção


Analista dos dados (estatístico)
post hoc dos desfechos ou métodos analiticos empregados

Comitê de monitoração Decisões diferenciadas quanto a parar ou continuar com o estudo

Pode introduzir vieses de apresentação e/ou de interpretação


Redatores do artigo
dos resultados

103
Educação Continuada em Anestesiologia

Nos estudos em que a eficácia de um determinado fármaco é comparada com a do


placebo, é importante, a fim de manter-se o caráter de ocultação do estudo, que o placebo
possua a mesma forma, tamanho, cor e sabor do fármaco testado, diferindo deste apenas
quanto à presença da substância ativa.7

Resumo da avaliação da qualidade metodológica (validade interna)


dos ensaios clínicos controlados de alocação aleatória (Tabela 8.4)

Tabela 8.4: Resumo da avaliação da qualidade metodológica


dos ensaios clínicos controlados de alocação aleatória

Pergunta Frase procurada Onde encontrar Método desejado


Tipo de estudo pretendido Título ECA
Resumo ou introdução
A hipótese testada ou
ou no cálculo amostra Coerente com a pergunta
Hipótese testada O desfecho primário
localizado na seção de PICO que gerou a busca
avaliado foi…
pacientes e métodos
Técnica de recrutamento
Quem esses pacientes
e critérios de inclusão ou Pacientes e métodos
representam?
exclusão
O método de aleatoriza- Método de geração da Centralmente por
Pacientes e métodos
ção foi descrito? sequência de distribuição computador
Distribuição realizada em
um centro distante ou
A distribuição nos grupos técnica de abertura de
A distribuição foi
de estudo foi realizada de envelopes selados e com
ocultada?
forma ocultada conteúdo desconhecido
dos responsáveis pela
distribuição
Os grupos devem ser
semelhantes quanto as
Tabela de comparação características basais ou
Os grupos eram
das características basais essas devem ter sido
semelhantes no início
dos grupos – no início submetidas a ajustes
do estudo?
da seção discussão estatísticos (ver análise
de sensiblidade na seção
discussão)
Os grupos foram tratados Participantes submetidos
de forma semelhante, às mesmas medidas
Pacientes e métodos
excetuando-se a interven- terapêuticas e mesmos
ção investigativa? exames diagnósticos
Os participantes foram Parte de estatística da
analisados dos grupos Análise por intenção de seção de pacientes e
para o qual foram inicial- tratar e motivos da não métodos e figura com o
mente distribuidos de aderência ao protocolo desenho do estudo na
forma aleatória? seção de resultados
O seguimento foi de …
As perdas ao longo do Resultados (descrição do Análise de sensibilidade -
O seguimento final foi seguimento foram de … e seguimento) onde se considera o pior
superior a 80%? os motivos foram … Discussão (análise de desfecho possível para
sensibilidade) todos os desaparecidos
Análise de sensibilidade

104
Educação Continuada em Anestesiologia

Continuação…

Pergunta Frase procurada Onde encontrar Método desejado


Foi ocultado aos partici-
pantes o grupo a quem Pacientes e métodos Sim
pertenciam?
Foram ocultados aos
pesquisadores e aos
Pacientes e métodos Sim
analisadores dos dados
os grupos em estudo?

Ao avaliar-se criticamente um ECA, idealmente deve-se abandonar a leitura de artigos que


não especifiquem detalhadamente a metodologia empregada, já que a análise da validade
interna deles fica seriamente comprometida. Esta afirmativa é verdadeira quando se trata da
apreciação de ECAs realizados mais recentemente. Até 2006, entre os ECAs indexados no
PubMed, em alguns não havia uma descrição completa e transparente sobre o seu desenho e
condução.2 Atualmente, a qualidade da redação dos estudos científicos tem melhorado, pois
os editores das revistas médicas estão mais exigentes. O problema é que diversas vezes,
na dependência da informação pesquisada, não se encontram, na literatura médica, estudos
recentes e bem redigidos sobre o tema em questão. Assim, deve-se observar, ao analisar o
rigor metodológico empregado em um estudo mais antigo, se realmente houve uma falha grave
na condução deste, ou se a sua redação é que foi inadequada. Quando se dispõem apenas
de evidências advindas de artigos antigos, pode-se lançar mão de consulta, via endereço de
correio eletrônico ou telefone, aos autores, a fim de esclarecer aspectos importantes do estudo.
Deve-se lembrar que nenhum estudo é perfeito, todavia, quando, ao ler um artigo, ou
após contato com os autores, detecta-se o uso de uma metodologia inadequada, capaz de
ter gerado vieses, os resultados finais deste estudo devem ser desconsiderados.

Referências bibliográficas

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parative study of articles indexed in PubMed. BMJ. trials. JAMA. 1995;273:408-412.
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105
Capítulo 9
Atualização em anestesia
para cirurgia torácica
Rosa Beatriz Amorim
Educação Continuada em Anestesiologia

Avaliação pré-anestésica
Avaliação do sistema respiratório

Pacientes submetidos a cirurgia torácica, classificados em American Society Anesthesio-


logist I ou II, com tolerância normal ao exercício, não necessitam de avaliação especializada
antes da cirurgia. Os classificados em ASA III ou com tolerância limitada ao exercício devem
ser submetidos a uma avaliação mais detalhada. No entanto, todos precisam da avaliação
radiográfica do tórax.1
Espirometria com volume forçado de 1 segundo (FEV1) maior de 2 l é necessária para o
paciente que será submetido a pneumectomia; o valor de 1,5 l, é suficiente para a realização
de lobectomia.2
Em pacientes com doença intersticial pulmonar, a capacidade de difusão do CO pelo
pulmão deve ser medida, e, se seu valor estiver abaixo de 80% do normal, o risco de compli-
cações pulmonares aumenta em 2 a 3 vezes; se abaixo de 60%, aumenta substancialmente
a mortalidade.1
A análise pré-operatória da gasometria arterial deve ser realizada de rotina. Hipoxemia
(< 90%) está associada ao risco aumentado no perioperatório.1,2
Para pacientes a serem submetidos a pneumectomia, valores de consumo máximo de
oxigênio (VO2máx), medidos por meio de testes de esforço, são considerados aceitáveis
quando acima de 15 ml/kg/min. Valores abaixo de 10 ml/kg/min classificam o paciente como
inoperável, e valores no intervalo 10 a 15 ml/kg/min são considerados de alto risco e exigem
maiores cuidados do paciente no pós-operatório.1,2

• Radiografia do tórax
No caso da obstrução de vias respiratórias por corpo estranho, a radiografia do tórax pode
apresentar-se normal, pode revelar imagem radiopaca do corpo estranho, ou até mesmo uma
hiperinsuflação pulmonar devido a efeito de válvula do objeto em questão.3 Pode ser obser-
vado colapso pulmonar distalmente ao brônquio obstruído.3,4

Avaliação do sistema cardiovascular

Pacientes de cirurgia torácica que possuem doenças cardíacas associadas são con-
siderados de alto índice de morbidade e mortalidade. Dependendo da cirurgia torácica
a ser realizada, esta deverá ser adiada por 4 a 6 semanas caso o paciente tenha se
submetido à cirurgia cardíaca, ou por 2 a 4 semanas se sofreu angioplastia coronariana
e/ou colocação de stent. Além disso, a anticoagulação pode ocasionar mais complica-
ções para a cirurgia torácica.1
Pacientes com infarto do miocárdio não devem ser submetidos à cirurgia torácica por um
intervalo de tempo menor do que 6 semanas.1,2
Pacientes com doença valvular cardíaca devem ser submetidos à correção da valvulopatia
antes da cirurgia torácica, pois é alto o risco de ocorrência de complicações cardíacas no
intraoperatório.1
Pacientes portadores de sopro cardíaco devem ser submetidos a, no mínimo, uma eco-
cardiografia transtorácica.2

Exame físico

Nas obstruções de vias respiratórias por corpo estranho, observam-se estridor, tosse,
dificuldade respiratória e pneumonias recorrentes.3,4

108
Educação Continuada em Anestesiologia

Para a realização de broncoscopia, é importante a avaliação da mobilidade do pescoço,


devido à necessidade de colocação de coxim sob os ombros e extensão da cabeça para a
introdução do broncoscópio, da mesma forma que para a cirurgia para correção de estenose
de traqueia.3

Monitoramento

O monitoramento deve ser o mais completo possível, abrangendo:

• Eletrocardiograma, nas derivações II e/ou V5.


• Oximetria de pulso.
• Capnografia.
• Termômetro.
• Cateterização arterial e pressão arterial invasiva: permitem medição contínua da pressão
arterial bem como amostragem frequente para determinação da gasometria arterial.
• Pressão venosa central: reflete o volume sanguíneo, tônus venoso e o desempenho ven-
tricular direito; entretanto, é afetada por obstruções venosas centrais e alterações da pressão
intratorácica e pela mudança de decúbito do paciente.
• Cateterização da artéria pulmonar: o cateter arterial pulmonar não é necessário na rotina
cirúrgica, somente se as instalações radiológicas o permitirem, devendo o cateter ser locado
no pulmão contralateral ao da cirurgia.5

Material
A ventilação monopulmonar é indicada de forma absoluta nos casos em que se deseja
evitar a contaminação do pulmão contralateral ao que está sendo operado por sangue, pus
ou material de neoplasia, como nos casos de hemorragia endobrônquica, fístula broncopleu-
ral, lobectomia e pneumectomia. As indicações relativas são a lobectomia baixa, a cirurgia
esofágica e alguns procedimentos de videotoracoscopia.6
O tubo de dupla luz é o método mais amplamente utilizado para a separação e a venti-
lação independente dos pulmões, como também a realização da ventilação monopulmonar.
Porém, é possível realizá-la com a introdução de um bloqueador brônquico no lado em que
se deseja colabar o pulmão.6
O tubo de dupla luz permite a intubação do brônquio esquerdo ou do direito, sempre
contralateral ao pulmão que será operado. Há, para isso, os seguintes tubos: de Carlens
(para a esquerda) e de White (para a direita), ambos com uma espícula que se apoia na
carina, e de Robertshaw para a esquerda ou para a direita, mas sem espícula que se apoie
na carina. Os tubos de dupla luz possuem dois balonetes para insuflação, um traqueal e
outro brônquico, que é o que realmente isola um pulmão do outro. Nos tubos cuja porção
brônquica fica à direita, o balonete brônquico possui uma abertura central para a ventilação
do lobo superior direito.6,7
Os tubos de Carlens e de White possuem numeração apropriada somente para pacientes
adultos: 35, 37, 39 e 41, correspondentes à circunferência externa do tubo em milímetros
(escala francesa). O tubo de Robertshaw possui três tamanhos para pacientes adultos: gran-
de, médio e pequeno, e um tamanho para adolescentes, extrapequeno.6,7
Os tubos de dupla luz devem ser trocados pelo tubo traqueal simples com o paciente
ainda anestesiado e relaxado, evitando-se trauma de corda vocal e ruptura de traqueia
devido a esforço por parte do paciente ou fechamento da corda vocal durante a retirada do
tubo de dupla luz.

109
Educação Continuada em Anestesiologia

Bloqueadores brônquicos

Os bloqueadores brônquicos podem ser utilizados para isolamento de um pulmão como


um todo quando locado em brônquio principal, ou de apenas um lobo quando locado em
brônquio secundário.7
Univent é um tubo traqueal simples, que possui um bloqueador brônquico acoplado à sua
face anterior, por meio de um pequeno tubo, que será introduzido para o brônquio através
de fibroscópio óptico, apenas no momento desejado. Para tanto, o tubo traqueal apresenta
conector duplo em sua ponta proximal para a passagem do fibroscópio e para a ventilação
do paciente.6
Outros modelos de bloqueadores são compostos de tubo traqueal único, com conector
triplo para passagem do fibroscópio e do bloqueador além da ventilação, tais como Arndt,
Cohen, Uniblocker e Coopdech.6
Existe, ainda, o tubo de traqueostomia de dupla luz, que pode ser utilizado para anestesia
de pacientes previamente traqueostomizados.6

• Introdução do tubo de dupla luz


Através de laringoscopia, introduz-se o tubo com espícula (Carlens ou White) passando
primeiramente a ponta do brônquio a ser intubado (ponta mais longa) voltada para cima,
entre as cordas vocais. A seguir, roda-se o tubo cerca de 180º, deixando a espícula volta-
da para cima, introduzindo-a entre as cordas vocais. Passada a espícula, voltar a rodar o
tubo, agora em sentido inverso à rotação anterior, cerca de 90º, posicionando-se o tubo de
acordo com o lado a ser intubado, terminando de introduzi-lo até que se encaixe a espícula
na carina. Se a traqueia é anteriorizada, um fio-guia pode ser introduzido no tubo que será
inserido no brônquio.6
A confirmação da intubação correta deve ser feita com manobra de ventilação manual e
clampeamento alternado de ambos os pulmões, podendo-se auscultar o murmúrio vesicular
(ventilação) ou silêncio pulmonar (colabamento), além do movimento torácico unilateral. Após
a fixação do tubo e o posicionamento no decúbito apropriado à cirurgia, a verificação da ven-
tilação seletiva deve ser novamente realizada.6,7
Por não possuir espícula de encaixe na carina, o tubo Robertshaw deve ser introduzi-
do através de broncoscopia ótica, para acomodação na posição correta da abertura dos
brônquios.7
Os bloqueadores brônquicos são introduzidos com o auxílio da broncoscopia ótica.6,7

Posicionamento do paciente
A maioria das cirurgias de ressecção pulmonar é realizada com o paciente em decúbito
lateral. O braço virado para cima deverá ser fixado em um suporte em arco ou mesa auxiliar.
O braço voltado para baixo pode ser mantido estendido sobre uma braçadeira em ângulo de
90º ou flexionado em direção ao travesseiro da cabeça. A perna que fica para baixo deve ser
flexionada, e, a outra, estendida, mantendo a estabilidade do quadril.5
Sob a cabeça lateralizada, deve ser colocado um travesseiro ou coxim com altura corres-
pondente ao ombro, para que a coluna cervical fique alinhada à torácica. Uma auréola sobre
o travesseiro ou coxim permitirá que a orelha e o olho posicionados inferiormente fiquem livres
de compressões. Um coxim de tamanho adequado deve ser colocado sob o tórax na região
axilar, impedindo que o braço de baixo, os nervos e vasos sejam comprimidos, liberando a
expansão torácica durante a ventilação. Entre as pernas, na região dos joelhos, deve ser co-
locado coxim para evitar atrito e lesão pelo peso do membro que está por cima.

110
Educação Continuada em Anestesiologia

Para a realização da broncoscopia e da cirurgia para correção de estenose de traqueia,


é necessária a extensão do pescoço do paciente para a introdução do broncoscópio e a
melhor apresentação do campo cirúrgico para o cirurgião. Para tanto, deve ser colocado um
coxim sob os ombros do paciente, a fim de permitir a extensão da cabeça.3,4

Manutenção da ventilação monopulmonar


O fluxo sanguíneo pulmonar mantém-se durante a ventilação monopulmonar, ocasionan-
do um efeito shunt, pelo qual há fluxo sanguíneo alveolar, mas não ventilação. O shunt é a
principal causa de hipoxemia durante a ventilação monopulmonar, embora a baixa relação
ventilação-perfusão também contribua.
Recomenda-se usar inicialmente uma fração de oxigênio inspirado (FiO2) de 50%. Hipe-
rinsuflações de um único pulmão podem determinar lesão aguda, assim como a situação de
isquemia-reperfusão do pulmão cirúrgico. Ventilação limitada pode determinar hipercapnia,
porém ela é preferível ao trauma pulmonar.5
O posicionamento do tubo de dupla luz deve ser constantemente verificado, sendo que
pressões intratraqueais acima de 30 a 35 cm H2O podem indicar deslocamento ou obstrução.
Assim, aspiração e insuflação manual do pulmão inferior dependente devem ser realizadas
regularmente. Outras medidas incluem o aumento da FiO2, a introdução da pressão positiva
ao final da expiração (PEEP) no pulmão dependente ou a complementação da oxigenação
do pulmão não dependente através da pressão aérea positiva contínua (CPAP), reduzindo o
shunt. Todavia, a somatória dos efeitos do PEEP no pulmão inferior e do CPAP no pulmão
superior podem determinar diminuição do débito cardíaco e do fornecimento de oxigênio.5
Pesquisa realizada com a administração de diferentes doses de ropivacaína em cateter de
peridural (0,25%; 0,50% e 0,75%), associada ao propofol contínuo, demonstrou que apenas com
a maior dose de anestésico local houve hipoxia durante a ventilação monopulmonar. Ademais,
maiores doses de ropivacaína exigiram menores doses de propofol e maiores de efedrina.8

Vasoconstrição hipóxica pulmonar


Mecanismo homeostático no qual o fluxo sanguíneo pulmonar é desviado de área hipóxica
ou colapsada, na tentativa de melhorar a oxigenação durante a ventilação monopulmonar.
Experimentos in vitro têm demonstrado que os anestésicos inalatórios inibem esse mecanis-
mo, mas experimentos in vivo não foram ainda conclusivos. Porém, os anestésicos inalatórios
promovem a melhora do mecanismo por meio da diminuição do débito cardíaco. Por outro
lado, a manipulação pulmonar também o reduz.5

Anestesia para procedimentos específicos


Broncoscopia

O broncoscópio flexível geralmente é utilizado, em adultos, sob anestesia tópica e seda-


ção; para a utilização em crianças, é necessária a anestesia geral. Já o uso do broncoscópio
rígido exige a anestesia geral.3
A indução e a manutenção da anestesia geral devem ser realizadas com opioides de curta
ação. A infusão contínua de remifentanil associada ao propofol ou ao sevorane produz uma
boa estabilidade cardiovascular e uma rápida recuperação.3 A ventilação do paciente é feita
pelo braço lateral do broncoscópio, que permite a conexão com o sistema de ventilação do
aparelho de anestesia e a manutenção da ventilação com pressão positiva intermitente.3,4

111
Educação Continuada em Anestesiologia

Não podemos esquecer que a passagem do broncoscópio pela traqueia e sua manipula-
ção durante o procedimento podem causar edema significativo, o qual dificultará a respiração
após o procedimento. A administração intravenosa de dexametasona, 600 µg/kg/dia, em 4
doses durante o dia, é conduta adequada para evitar essa complicação.3
A inalação de corpo estranho é comum em crianças pequenas e adultos com distúrbios de
consciência. A retirada do corpo estranho é realizada por broncoscopia rígida, sob anestesia geral.3, 4
Deve-se tomar muito cuidado com a ventilação manual do paciente durante a indução
anestésica para que não se “empurre” mais o corpo estranho distalmente à sua posição
original, causando a obstrução de vias respiratórias menores com aprisionamento do ar, difi-
cultando a retirada do corpo estranho.3
Situação semelhante pode haver na presença de tumores em vias respiratórias, sendo neces-
sários os mesmos cuidados do corpo estranho quanto à indução e ventilação do paciente. Já em
relação à ressecção com laser, devemos utilizar a menor concentração de O2 possível e evitar o
óxido nitroso.3

Fístula broncopleural

Comunicação direta entre a árvore traqueobrônquica e a cavidade pleural, causada por


deiscência do coto brônquico da ressecção pulmonar, trauma, inflamações (p. ex., tuber-
culose) e neoplasias. O quadro clínico pode iniciar-se agudamente, com dispneia e tosse,
apresentando secreção acastanhada. Hipoxia e septicemia podem determinar falência car-
diorrespiratória. O paciente deve ser mantido na posição sentada para evitar mais extrava-
samento de fluidos do espaço pleural. Devem ser realizadas oxigenação e instalação de
acesso venoso e drenagem do tórax. A intubação com tubo de dupla luz deve ser feita com o
paciente acordado e sob anestesia tópica da via respiratória superior ou em sequência rápida,
após garantida oxigenação máxima e com o paciente sentado.5

Redução de volume pulmonar

Cirurgia indicada para pacientes que apresentam enfisema pulmonar, pode ser realizada
por técnica videotoracoscopia, promovendo menos lesão e menor incidência de dor no pós-
-operatório. Pode ser necessária a realização bilateral. O paciente deve ser intubado com tubo
de dupla luz e mantido em ventilação monopulmonar. O colapso do pulmão para ventilação
monopulmonar é lento na presença de enfisema; uma das técnicas para obtê-lo é a insuflação
de CO2 na cavidade pleural, na velocidade de 2 l/min. Mesmo assim, existe o risco de embolia
gasosa. Há quem adote o uso contínuo de óxido nitroso a 50% em oxigênio para conseguir o
colapso pulmonar. É importante limitar a pressão de insuflação e aumentar a fase expiratória da
ventilação, a fim de prevenir hiperinsuflação. O uso de PEEP está contraindicado. Essa limitação
na ventilação ocasiona hipercapnia, mas é bem tolerada por esse tipo de paciente. Por outro
lado, insuflação excessiva pode causar redução do retorno venoso e colapso cardiovascular.5

Estenose traqueal

A estenose traqueal em razão de intubação prolongada ou traqueostomia é a principal indica-


ção de cirurgia de traqueia. Também são causa de estenose a tração do tubo e a infecção local.4
A dificuldade respiratória pode ser inicialmente tratada com o uso de esteroides, diuréticos
e nebulização com adrenalina para diminuir o edema, além da administração de antibióticos
quando houver infecção. A dilatação da estenose traqueal é realizada através da broncosco-
pia rígida, podendo ser alocado um stent para manutenção da via aérea. Para esses procedi-

112
Educação Continuada em Anestesiologia

mentos, o controle de reflexos da via aérea e da ventilação é essencial.4


Para a resolução definitiva da estenose, é preciso ressecar os anéis da traqueia que se
encontram estreitados. A cirurgia pode ser realizada nas regiões cervical, cervicomediastinal
ou posterolateral. Esternotomia parcial ou completa pode ser necessária para acesso da
porção torácica da traqueia. A aproximação das porções proximal e distal da traqueia exige a
flexão da cabeça, sendo a pele da mandíbula fixada com pontos cirúrgicos na porção anterior
do tórax, com permanência de uma semana.4
A ventilação inicial do paciente deve ser realizada com tubo aramado de pequeno calibre,
ou maior se houver possibilidade de dilatação da estenose, introduzido via oral para além da
estenose traqueal. Após a ressecção inferior da estenose, o cirurgião introduz um segundo
tubo aramado, estéril, na porção distal restante da traqueia, e o tubo oral é retrocedido em
direção à porção proximal da traqueia, anteriormente à estenose.
Feita a anastomose posterior da traqueia, o segundo tubo é retirado, e o primeiro é nova-
mente introduzido até ultrapassar a sutura, podendo o cirurgião terminar o fechamento ante-
rior da traqueia. Para estenoses próximas à carina, a ventilação durante a anastomose deve
ser feita com intubação seletiva de um dos brônquios e posterior colocação de cateteres em
ambos os brônquios para ventilação a jato. O paciente deve ser extubado acordado, com
boa oxigenação e estável hemodinamicamente.3,4
A cirurgia pode ser prolongada com perda importante de sangue e calor, sendo neces-
sárias as manutenções hídrica e de temperatura. A anestesia deve visar a um mínimo efeito
residual de fármacos relaxantes e de opioides para extubação o mais breve possível, porém
com analgesia adequada para que o paciente suporte a posição incômoda da flexão da ca-
beça, sendo indicada a anestesia venosa total com propofol e remifentanil.4

Controle da dor
A toracotomia é um procedimento que causa dor intensa, muitas vezes persistente, com
duração de meses ou até anos. A dor aguda pode ocasionar redução da capacidade venti-
latória e prejudicar a eliminação de secreções.9
O controle da dor pode ser conseguido com a associação de analgesia sistêmica e anes-
tesia regional.9
Revisão sistemática de 74 trabalhos randomizados demonstrou que a analgesia mais efetiva é
obtida com infusão contínua de anestésicos locais e opioides com o cateter epidural torácico, ini-
ciada no pré-operatório ou no intraoperatório, com continuidade nos 2 ou 3 dias de pós-operatório.9
Estudo realizado com cetamina em infusão contínua durante a anestesia e por 24 ho-
ras após a toracotomia resultou em melhora da dor aguda pós-operatória, mas não evitou
a dor crônica nos 4 meses de acompanhamento. A combinação de epidural torácica com
o inibidor COX-2 durante a cirurgia e nas 48 horas seguintes proporcionou melhora da
dor durante o repouso e ao tossir, mas não a do ombro, uma das maiores queixas após
toracotomia.9

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