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Narrar e descrever são duas operações similares, no sentido de que ambas se traduzem por uma
sequência de palavras, mas o seu objetivo é diferente: a narração “restitui a sucessão igualmente
temporal dos acontecimentos”, a descrição representa “objetos simultâneos e justapostos no espaço”.
O romancista, como o pintor ou o fotógrafo, escolhe em primeiro lugar uma porção de espaço,
que enquadra, e situa-se a uma certa distância. Os deslocamentos do olhar introduzem na descrição
um elemento dinâmico, permitindo nela uma circulação, uma exploração do espaço em vários
sentidos. Na pintura, é o próprio observador que a efetiva, visto o quadro ser dado de uma só vez; no
romance, onde a descrição tem de ser sucessiva, o autor guia vista ao longo dos caminhos que ele
próprio traçou. O olhar estabelece, portanto, relações entre as diversas partes do objeto a descrever,
assinala as similitudes, fixa as proporções, marca os contrastes.
A revelação das personagens pelo meio ambiente é uma concepção presente em muitos
romances importantes do século XIX, como um processo de caracterização entre outros ou como uma
teoria de pretensões científicas.
Tentemos examinar essa questão da descrição do espaço, considerando as suas funções, a sua
natureza e as suas significações. Ela pode servir para criar um ritmo na narrativa: desviando o olhar
para o meio ambiente, provoca um descanso após uma passagem de ação, ou uma forte expectativa
quando interrompe a narrativa em um momento crítico. A descrição leva-nos a ver. Nem sempre há
necessidade de minuciosos quadros que nada querem deixar escapar. A descrição oscila, pois, entre
os dois pólos do esboço que retém apenas alguns traços significativos e do quadro que intenta abraçar
a totalidade de um objeto.
A descrição serve para, no interior da narrativa, comunicar informação, do autor ao leitor, por
meio de uma personagem informada a uma outra desinformada. A descrição implica o olhar de uma
personagem, a necessidade de introduzir essa personagem e de a colocar em face do objeto. Esta
condição prévia determina campos semânticos (adjetivos qualificando atitudes físicas e psicológicas,
etc.), personagens tipos (o passante, a fofoqueira, etc.), cenas estereotipadas (visita de um
desconhecido, devaneio...), traços psicológicos (curiosidade, vazio interior...). Pouco a pouco, a
descrição provoca reações em cadeia no interior da narrativa: a necessidade de descrever leva a
introduzir tal personagem, a colocá-la em tal situação, a dar-lhe tal motivação. Longe de ser um
enfeite mais ou menos parasitário, a descrição condiciona, portanto, o funcionamento da narrativa no
seu conjunto.
A relação com o mundo
A descrição pode restringir-nos a observar a realidade que ela pretende colocar diante dos
nossos olhos, e essa realidade só, ou então pode querer sugerir mais: num caso extremo, mostraria
uma coisa diferente do que finge mostrar. Uma descrição do espaço revela, pois, o grau de atenção
que o romancista concede ao mundo e a qualidade dessa atenção: o olhar pode parar no objeto descrito
ou ir mais além. Ela exprime a relação, tão fundamental no romance, do homem, autor ou
personagem, com o mundo ambiente: ele foge deste e o substitui por outro, ou mergulha nele para o
explorar, o compreender, o transformar, ou se conhecer a si mesmo.
Amigo ou hostil, o espaço aparece também, no romance, com um grau variável de fluidez ou
de densidade, de transparência ou de opacidade. O espaço opressivo parece predominar nos romances
contemporâneos. Para além desta influência psicológica, o romancista impregna este tipo de espaço
de um sentido filosófico. O tema do labirinto traduz, com evidência, a angústia dos homens face ao
mundo em que não encontram o seu lugar.
Ao contrário, a viagem que abre espaço aos homens aparece como uma promessa de felicidade.
O processo freqüentemente utilizado pelos romancistas, consistindo em exprimir o extraordinário
através de outro lugar, tem a sua origem na crença de que não nos pode acontecer coisa alguma, isto
é, algo inédito, senão num outro lugar. Desta concepção nasceu uma abundante literatura qualificada
habitualmente de evasão e de que o romance de aventuras é uma forma particular. O errar de lado
para lado, se é por vezes (para Édipo ou para o povo judeu da Bíblia) uma maldição, também pode
significar uma livre realização do nosso destino ou, tornar-se promessa duma outra vida onde tudo é
possível.
Nesses romances, em que o espaço desempenha o papel primordial, cristalizam-se velhos
sonhos da humanidade: voar nos espaços intersiderais como Ícaro, ou descobrir sobre o nosso planeta
um Éden escondido, onde o homem poderá reencontrar na natureza a felicidade perdida.
Adaptado de: BOURNEUF, René & OUELLET, Réal. O universo do romance. Coimbra,
Almedina, 1976.