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EDIÇÃO 46
Profissionalismo
Conheça as ideias do mestre Ubiratan D’Ambrosio, um homem com o olhar sempre apaixonado para o futuro.
Transdisciplinaridade é uma palavra esquisita e guarda um conceito ainda desconhecido para nossos ouvidos leigos, mas vem recebendo
a atenção da academia há tempos. O professor Ubiratan D’Ambrosio foi um dos primeiros a falar disso no Brasil. Trans é mais que multi. É
para “além de”. É um universo em que as disciplinas — Matemática, Literatura, Geografia, etc. — não só se complementam, mas
principalmente incluem o indivíduo, o que ele sente e pensa. Nessa abordagem, a escola tem um papel fundamental na educação para a
paz.
Professor emérito de Matemática da Universidade Estadual de Campinas e, atualmente, da pós-graduação da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo e da Universidade de São Paulo, esse paulistano do bairro do Brás é um resgatador de esperança. “Só quem pode
surgir com o povo é o novo. E o novo são as crianças. Com elas, poderão vir as respostas que não encontramos”, declara.
Bons Fluidos – “Violência vem de medo. Medo, de incompreensão, que vem de ignorância. E ignorância se combate com educação.” O
senhor costuma citar essa frase da professora americana Lear Weels. Como a sala de aula pode contribuir para a paz?
Ubiratan D’Ambrosio – Educação é preparar para o futuro. Os governadores pensam que isso é instrumentalizar mão de obra para uma
indústria que está se desenvolvendo, instruir para a cidadania de modo que o sujeito seja cumpridor de leis. Mas, se só pensarem desse
jeito, nós não teremos muito futuro. Corremos o risco de formar uma geração, duas, três para viver como nós, e esse é um mundo
invariável. Um bom engenheiro, um bom agricultor, o que eles vão fazer? Abrir mais terreno para plantar mais. E isso, sabemos que tem
impacto no meio ambiente. Você tem que produzir mais alimento, claro, mas não deve sacrificar uma fonte vital, como a água e as árvores.
UD – Incluindo os aspectos emocional e espiritual. Na hora em que você faz uma usina hidrelétrica e cobre um lugar onde estavam as
raízes de muitas pessoas, nem percebe a angústia que gerou. A transposição do Rio São Francisco é o caso mais recente. O rio, se
passasse por outra região, beneficiaria mais gente. Há méritos nisso. Por outro lado, as pessoas que hoje estão perto dele sentirão um
vazio quando ele mudar de lugar. E não estamos pensando no impacto desse vazio a médio e longo prazos. É mais ou menos o que
acontece com uma árvore sem raiz. Se bate um vento forte, ela tomba. Assim se dá com o indivíduo que imigrou para fugir da seca, para
fugir da violência, para buscar novas oportunidades. O que acontece com ele? Como fica seu passado e sua tradição?
UD – Isso desaparece. Mesmo na cozinha. Os filhos começam a comer mais fast-food do que a comida tradicional dos pais. Então, a escola
básica tem como responsabilidade valorizar a cultura dos pais, estimular a curiosidade da criança, pedindo para ela perguntar, por
exemplo, como era a vida deles ou com o que o pai brincava quando tinha a idade dela. Dificilmente uma criança vai para casa perguntar
uma coisa que só os pais sabem.
UD O filh d h i d f d j li t f t i t bl f lt d t d i O i
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10/03/2019 A paz se aprende na escola | Revista Construir Notícias
UD – Os filhos dos engenheiros, dos professores, dos jornalistas enfrentam o seguinte problema: a falta de tempo dos pais. O pai paga ao
professor particular, dá um computador melhor, mas não estuda com o filho. A comunicação continua interrompida entre as gerações. Ao
trabalhar com isso, a escola devolve a dignidade. Quando os pais se tornam detentores de um conhecimento que interessa ao filho, ambos
se beneficiam. Isso valoriza a geração mais velha e dá às crianças legitimidade para admirar os pais. “Poxa, até que essa geração mais
velha tem algo a oferecer”, pensam. E é nisso que se inserem as tradições. A escola pode ajudar? Mas é claro. Só a escola.
UD – Aí entra a crítica. Nessa lembrança do passado, os pais imigrantes, por exemplo, vão contar a violência social que os fez deixarem a
casa, e os filhos, sentir que não é esse o caminho a repetir.
UD – Essa é a maior violência que pode haver. E a sala de aula pode interferir. Se você quer manter a vida, reconheça a essencialidade do
outro. Simplesmente porque, sem ele, não há você nem nada mais será gerado. E não adianta só ser outro igual a você. Tem que ser
diferente. Só posso dar continuidade à vida se encontro uma mulher e tenho um filho.
UD – Cada um se pensa como indivíduo, mas esquece que é uma criatura extinta se não tiver o outro. O que aconteceria com o Palmeiras
se o Corinthians desaparecesse? Nos esportes, essa interdependência fica evidente: como os times podem jogar se forem iguais e não
houver adversário? O conflito é importante. Agora, o conflito não significa o confronto, que tem por objetivo subordinar e mesmo eliminar
uma das partes. A paz e a sobrevivência têm que ser baseadas na convivência entre os diferentes. Eu não vou transformar minha mulher
em um homem para poder viver com ela. Ela vai poder ser mulher, completamente diferente. Isso, aliás, é o que há de mais criativo e
agradável.
BF – A Matemática, a Gramática e a História ajudam o aluno da escola básica a entender a necessidade da diferença?
UD – Nossa conversa toda é mais de natureza filosófica, mas o modelo escolar nunca está separado. Vamos pensar na Matemática. O
professor diz: eu tenho tantos mil reais e o outro não tem nada. Para ter uma vida boa, precisaria de tanto. E o resto? Coloco no banco e
ele vai aumentando. O outro tem quase nada. Mas ele precisa de coisas para sobreviver, assim como eu. Como vai fazer? Vai procurar no
banco. O banco tem porque eu deixei o dinheiro que não uso lá. Aí o banco empresta para ele e cobra uma fortuna de juros. A minha vida
fica cada vez mais perfeita porque eu ganho juros do outro. E a vida dele fica cada vez pior. Alguns dizem que esse tipo de reflexão não é
UD – Eu não sei. Os que estão aí na política também não. Quem pode saber um novo sistema? A criançada de hoje, que pode surgir com
algumas ideias que a nós não ocorrem. Essa é uma grande falha da escola hoje. Estimula-se um sentimento de que alguém é melhor, o
professor, e merece a medalha de ouro. Esquece-se de que, sem adversário, não haveria medalha alguma. Aí pode estar a raiz do conflito.
Pois embute o conceito de que, se alguém é superior, o outro pode ser subjugado. Toda vez que o outro — seja uma criança, seja um povo
— não é respeitado como ser pensante, há a possibilidade de o conflito virar um confronto. No fundo, é preciso aprender a lidar com o
encontro de culturas. Evidentemente há conflitos, mas precisam ser resolvidos sem o cala-boca. Assim se constrói uma criança livre, capaz
de pensar por si. Se ela fizer isso, nós teremos uma chance de que pense o novo.
UD – É. Todas essas coisas estão subordinadas a algo maior, no qual, penso eu, as crianças são como pássaros. Se vivem presas, com
medo, sem poder falar muito porque falam errado, sem poder se mexer muito porque são estabanadas, acabam com um comportamento
que não ajuda na formação do novo A grande responsabilidade de nós educadores não é dizer que o mundo deve ser “assim ou assado”
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10/03/2019 A paz se aprende na escola | Revista Construir Notícias
que não ajuda na formação do novo. A grande responsabilidade de nós, educadores, não é dizer que o mundo deve ser assim ou assado
porque, se soubéssemos o que é melhor, já teríamos feito. Precisamos dar espaço à criança durante seu processo de aprendizado. Lá na
frente, não basta abrir a porta da gaiola. Se ela não praticou, não saberá voar.
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