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Misturados na vida, separados na escola:


a integração das idades dos alunos
LOURDES ATIÉ 31 de dezembro de 2019

Quando eu era criança, brincar na rua era a coisa mais importante do dia.
Escola era apenas um dos lugares que era obrigada a frequentar, assim como as
aulas de catecismo, na igreja, de domingo. Mas a rua, era o verdadeiro sentido da
vida. Era onde tudo acontecia. Muitas aprendizagens, conquistas, derrotas, medos,
sustos e alegrias.
Era tudo misturado. Não se brincava por idade, não se separava as
brincadeiras por idade. Tinha brincadeiras de menina, como casinha. E de meninos,
o futebol. E tinha a maioria das brincadeiras de jogos coletivos que juntava meninas
e meninos com queimada, vôlei, quantos passos e muitas outras…
O que unia ou separava eram as propostas de brincadeira. Participava quem
sabia ou queria. Assim cresci, com tudo misturado. Assim, também, é a rua até hoje.
Lugar de múltiplas idades. Nos espaços coletivos, como clubes ou igrejas,
encontramos todas as idades misturadas.
Atualmente, no entanto, as crianças estão cada vez menos nas ruas e o que
era lugar de viver e aprender, virou lugar de passar e não mais lugar de ficar. E
onde ficam hoje as crianças e jovens na maior parte do seu tempo? Nas escolas.
É neste lugar que todo seu tempo passa a ser consumido. Tempo organizado
por atividades, tempo controlado, sem tempo para ficar à toa. Tudo vigiado. Acabou
o protagonismo infantil e juvenil do tempo. Foi instituído o tempo programado,
previsível e avaliado.
Tudo planejado com um propósito, que é em nome da construção de um
futuro promissor. Mas qual futuro? Como é possível achar que em tempo de
fechamento da segunda década do século 21, sabemos algo a respeito do futuro?
Ora, se o passado já foi e o futuro não sabemos o que será, efetivamente o
presente é o lugar onde está acontecendo a vida e a escola não é o único lugar para
se viver.
Mas além do tempo, que já escrevi um artigo sobre, quero agora focar em
outro aspecto. Ao sair da rua, o que mais as crianças perderam foi a possibilidade
de conviver com outras crianças e jovens de idades diferentes. Enquanto na rua
tudo é misturado, na escola tudo é separado por idades. E assim, a convivência,
aspecto fundamental de socialização e aprendizagem, foi ficando cada vez mais
pobre.

A escola dividida
Escola é lugar de aprender, mas também de conviver. E isso significa ampliar
os momentos dos encontros. Quando a escola é organizada para trabalhar com
cada idade de forma exclusiva, crianças e jovens perdem a oportunidade de
conviver com pessoas de faixas etárias diferentes. As escolas particulares, em sua
maioria, e muitas do setor público, separam até fisicamente os estudantes. Não
basta separar por sala de aula. Estão todos separados nos recreios e nos prédios
também.
O recreio que é uma excelente oportunidade de convivência coletiva, os
estudantes seguem separados. Como nos presídios, que estão organizados em
alas, onde os presidiários podem ter acesso ao pátio para tomar sol, sem misturar
as alas por segurança.
Ao separar as idades até no tempo livre, como no recreio, a escola não
reproduz o mesmo conceito? Do que tem tanto medo as escolas? Temem que os
estudantes maiores maltratem os menores ou machuquem, mesmo sem querer.
Não será excesso de zelo e falta de confiança nos princípios básicos da educação?
Como aprender a respeitar e cuidar do outro, se não praticam, simplesmente
convivendo? Ao separarem os estudantes por idades, até no recreio, as escolas
roubam a riqueza da convivência real e verdadeira.
Em muitas escolas, o espaço da educação infantil é como um galinheiro, todo
cercadinho para “os pintinhos” ficarem protegidos. Sempre segurança máxima. As
crianças pequenas não têm acesso ao espaço total da escola. Estão limitadas aos
territórios pensados exclusivamente para elas. Muitas escolas alegam que os pais
exigem isso. Ficam com medo das crianças correrem riscos. Mas qual é o papel
educativo da escola, junto às famílias?
A escola não se limita a prestar um serviço. É um espaço coletivo que está
educando crianças e jovens não apenas para passarem de ano com boas notas,
mas, acima de tudo, para serem cidadãos na e para além da escola. É preciso
esclarecer para os pais que eles são mais que “consumidores de um serviço” e sim
parceiros da instituição com o compromisso conjunto para que seus filhos vivam a
escola como um espaço para entender o mundo e se prepararem para atuar na vida
de forma positiva.
Se os prédios dos pequenos têm segurança máxima, os prédios dos maiores
são cheios de “troféus”, fotos dos formandos, dos que passaram nas melhores
faculdades ou venceram alguma olimpíada ou qualquer outra competição. A
linguagem subliminar que transmite é que o valor de cada um se mede pelo
resultado individual, focado em algum rendimento. Onde foi parar a convivência livre
e misturada? Assim fica difícil ser feliz na escola, não é?
Está na hora de nos questionarmos: por que a escola segue agindo da mesma
forma como nos séculos passados, em um mundo que está mudando tão rápido e
radicalmente?

A escola pode mudar essa história


Está amplamente divulgado quais são as competências necessárias para se
viver no século 21. Já sabemos que não bastam competências cognitivas. A
educação emocional ou as habilidades socioemocionais tem igual relevância. Para
viver um futuro que não sabemos qual será, é preciso transmitir as bases da
resiliência, flexibilidade, cooperação, colaboração, empatia, adaptabilidade e o
sentido de pertencimento. Como trabalhar tais demandas sem a convivência
multietária?
Se no tempo livre, que deveria ser o recreio, os estudantes estão impedidos
de conviver, imagine misturar para trabalhar juntos em um projeto, em um estudo ou
até mesmo em um passeio? As escolas poderiam se permitir pensar de outra
perspectiva, mais educativa e de menos controle.
Para isso precisa não ter medo de correr risco. É assim que as mudanças
acontecem. Educação sem risco, não existe para pessoas, mas somente para
robôs. Correr risco significa inovar, paixão pelo conhecimento, utopia. Escola que
não arrisca, está imobilizada, tem medo, está paralisada. Assim, como encantar
para a vida?
A escola necessária para o século 21 não é mais aquela que reforça o
desenvolvimento individual, a competição, julgamentos e comparações. Mas sim
aquela que educa para a convivência, valoriza a colaboração, a partir do
desenvolvimento das fortalezas individuais. É a escola que se preocupa com o
aprender a conviver e com o aprender a ser. Hoje pelo mundo tem muitas escolas
que estão conseguindo avançar neste sentido.
As crianças, os jovens e os adultos formam uma coisa só: a humanidade.
Fazem parte uma grande atividade: aprender a lógica de viver a vida juntos. A
escola não pode roubar esta possibilidade, sob pena de deixar de ser necessária
para este mundo que vivemos.
Estamos fechando o ano, fazendo planos, planejamento e currículo para
2020. É uma excelente oportunidade para mudar este cenário, para desenhar outras
configurações de habitar a escola, criar projetos de outra perspectiva e se propor a
correr riscos. E para isso não é preciso derrubar tudo e iniciar do zero. Pelo
contrário: ter claro a história de cada escola, indica o tamanho das mudanças
possíveis e como elas podem ser promovidas.
As transformações acontecem “no miudinho”, com calma e por meio do
comprometimento coletivo de todos. Basta dar um passo para já não estar mais no
mesmo lugar. É o que diz o adesivo que está na minha geladeira. Eu acredito. É
assim, em movimento sempre. Vamos começar a mudar?

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